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Psicologia ·

Psicologia Social

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Walter Boechat org A ALMA BRASILEIRA LUZES E SOMBRA EDITORA VOZES Walter Boechat A ALMA BRASILEIRA Luzes e sombra XXII Congresso da Associação Junguiana do Brasil Walter Boechat org Michel Maffesoli Iduína MontAlverne Chaves Alberto Filipe Araújo Cristiana de Assis Serra Teresinha V Zimbrão da Silva Elisabeth Bauch Zimmermann José Jorge de Morais Zacharias Lygia Aride Fuentes Vivian Verônica Buck Isabela Fernandes Gil Antonio de Britto Duque EDITORA VOZES Petrópolis Coleção Reflexões Junguianas Assessoria Dr Walter Boechat Puersenex Dinâmicas relacionais Dulcinéia da Mata Ribeiro Monteiro org A mitopoese da psique Mito e individuação Walter Boechat Paranoia James Hillman Suicídio e alma James Hillman Corpo e individuação Elisabeth Zimmermann org O irmão psicologia do arquétipo fraterno Gustavo Barcellos As emoções no processo psicoterapêutico Rafael LópezPedraza Viver a vida não vivida A arte de lidar com sonhos não realizados e cumprir o seu propósito na segunda metade da vida Robert A Johnson e Jerry M Ruhl O feminino nos contos de fadas MarieLuise von Franz Revendo a psicologia James Hillman Sonhos A linguagem enigmática do inconsciente Verena Kast Sobre Eros e Psiquê Um conto de Apuleio Rafael LópezPedraza Introdução à psicologia de CG Jung Wolfgang Roth O encontro analítico Transferência e relacionamento humano Mario Jacoby O amor nos contos de fadas O anseio pelo outro Verena Kast Psicologia alquímica James Hillman A criança divina Uma introdução à essência da mitologia CG Jung e Karl Kerényi Sonhos Um estudo dos sonhos de Jung Descartes Sócrates e outras figuras históricas MarieLouise von Franz O livro grego de Jó Qual o interesse de Deus no sofrimento do homem Antonio Aranha Ártemis e Hipólito Mito e tragédia Rafael LópezPedraza Psique e imagem Estudos de psicologia arquetípica Gustavo Barcellos Sincronicidade Natureza e psique num universo interconectado Joseph Cambray A psicologia de CG Jung Uma introdução às obras completas Jolande Jacobi O sonho e o mundo das trevas James Hillman Quando a alma fala através do corpo Compreender e curar distúrbios psicossomáticos Hans Morschitzky e Sigrid Sator A dinâmica dos símbolos Fundamentos da psicoterapia junguiana Verena Kast O asno de ouro O romance de Lúcio Apuleio na perspectiva da psicologia analítica junguiana MarieLouise von Franz O corpo sutil de eco Contribuições para uma psicologia arquetípica Patrícia Berry A alma brasileira Luzes e sombra Walter Boechat org CDD150192 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil A alma brasileira luzes e sombra Walter Boechat org Petrópolis RJ Vozes 2014 Coleção Reflexões Junguianas Vários autores Bibliografia ISBN 9788532649225 Edição digital 1 Alma 2 Arquétipo psicologia 3 Personalidade 4 Psicologia existencial 5 Psicologia junguiana I Título II Série 1408920 Índices para catálogo sistemático 1 Alma brasileira Psicologia arquetípica 150192 2014 Editora Vozes Ltda Rua Frei Luís 100 25689900 Petrópolis RJ wwwvozescombr Brasil Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma eou quaisquer meios eletrônico ou mecânico incluindo fotocópia e gravação ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da editora Diretor editorial Frei Antônio Moser Editores Aline dos Santos Carneiro José Maria da Silva Lídio Peretti Marilac Loraine Oleniki Secretário executivo João Batista Kreuch Editoração Fernando Sergio Olivetti da Rocha Diagramação Sandra Bretz Capa Omar Santos ISBN 9788532649225 Edição digital Editado conforme o novo acordo ortográfico Agradecimentos Agradecemos a todos aqueles que colaboraram de várias maneiras para a realização de mais esse Congresso da Associação Junguiana do Brasil Em especial ao suporte da Editora Vozes e sua disponibilidade de realização deste livro Agradecemos também ao esforço da Comissão Executiva do Congresso e da Firma Correia e Sousa Eventos por suas múltiplas tarefas de organização divulgação e planificação do evento Nosso especial agradecimento à Comissão Científica do Congresso que muito trabalhou na seleção do grande número de trabalhos inscritos e na organização das diversas atividades Nosso especial agradecimento a nossa colega Dra Maria Cecília Zanatta pelo seu incansável trabalho criativo em todas essas frentes de atividades Walter Boechat Sumário Prefácio I A MULTIPLICIDADE DA ALMA BRASILEIRA 1 Iniciação arquétipos e Pósmodernidade 2 Entre as luzes e as sombras Em busca dos mitologemas da alma brasileira na perspetiva de Gilbert Durand 3 Luzes e sombra da alma brasileira Um país em busca de identidade 4 De Sodoma à Samaria Cristianismo homofobia e alteridade no Brasil 5 A alma brasileira na literatura machadiana Complexo cultural de cordialidade 6 O tempo e o vento Traços da alma brasileira II A ALMA BRASILEIRA AFRICANA 1 Uma breve análise psicológica de Exu 2 Tornarse o que se é no sentido da filosofia ubuntu africana e o sentido para a inpiduação na e da cultura brasileira 3 A alma ancestral africana bate à porta dos consultórios de análise Estaremos prontos para recebêla III A ALMA BRASILEIRA AMERÍNDIA 1 Os irmãos criadores um mito de origem brasileira 2 A tradição guarani e o eterno retorno Textos de capa Prefácio Walter Boechat A América Latina é a única cultura realmente nova criada por seres humanos na história A Ásia é continuação da velha Ásia com o acréscimo da tecnologia mas sem uma mudança radical A África não tem modernidade não pode ainda ultrapassar o trauma do colonialismo A Europa é uma continuação de simesma e a América do Norte uma continuação da Europa numa vestimenta hipertecnológica Apenas a América Latina é uma nova complexidade ZOJA L Entrevista a Gustavo Barcellos Cadernos Junguianos n 2 2006 O XXII Congresso da Associação Junguiana do Brasil elegeu como tema a Alma Brasileira Luzes e Sombra Esse título não encerra um erro de concordância gramatical como pode parecer A palavra Sombra aponta para aspectos sombrios da alma brasileira carentes de atenção e que correm paralelos às suas muitas luzes e ao mesmo tempo é uma referência ao conceito junguiano de Sombra aquela parte da personalidade de difícil acesso incompatível com os valores que nós ingenuamente atribuímos a nós mesmos um ideal de ego elevado O próprio título do evento aponta para a questão importante da intersecção da alma brasileira coletiva e a alma dos indivíduos como elas se afetam como a memória ancestral de todo um povo afeta o comportamento de cada pessoa Cada vez se torna mais claro que a compreensão da alma brasileira é fundamental para o melhor entendimento de cada um de nós em nossa particularidade Nesses tempos de emergência do novo paradigma quando as disciplinas não podem ser mais compartimentalizadas o psicólogo estende suas mãos para o sociólogo e o antropólogo para entender a complexidade da alma brasileira O olhar para as raízes do Brasil é como uma anamnese de um indivíduo seus traumas suas descobertas suas transformações sua possibilidades A compreensão da alma brasileira não é tarefa fácil devido à sua natureza eminentemente multicultural Nossa identidade como povo ainda não se completou não é um todo acabado mas é muito mais um processo Qual o futuro desse processo Talvez daí resulte a fascinação que a alma brasileira exerça sobre muitos no Brasil e principalmente no estrangeiro esse seu caráter mutável Enquanto a cultura europeia ocidental apresentase em geral como um todo acabado a América Latina e o Brasil em particular mantêm esse caráter de potencialidades e desdobramentos embora com inúmeros e graves problemas Outro aspecto fascinante de nossa identidade brasileira é sua multiculturalidade O processo de colonização da América do Norte se deu por famílias regidas por rigorosos princípios do puritanismo protestante onde predominou a exclusão dos nativos e escravos No Brasil ao contrário a miscigenação foi o processo dominante Embora em nossa história estivemos longe de uma democracia racial logo os afrodescendentes e brasilíndios passaram a constituir maioria entre a população geral produzindo uma população de ampla predominância mestiça Embora tenha havido toda a mortandade indígena por ocasião dos descobrimentos ainda assim nossa sociedade mantém uma proximidade com sociedades tribais e suas tradições orais seus costumes e mitos Também a presença africana que se estendeu ao longo dos séculos sendo parte fundamental de nossa história trouxe diversas contribuições para a alma brasileira na alimentação na religião costumes e linguagem Essas heranças permanecem no inconsciente cultural da nação brasileira e afetam de diferentes maneiras nosso comportamento nossos sonhos e nossas ambições embora tenhamos pouca consciência disso O temário abordado nessa publicação tem como objetivo um aprofundamento maior em busca de raízes um enraizamento nas origens Isso porque uma das características importantes do brasileiro é sua falta de memória e falta de contato com sua própria identidade Essa falta de identidade cultural leva ao perigoso fenômeno da imitação de modelos quer venham da América do Norte ou da Europa com esquecimento da nossa originalidade que é única Se a Europa passou por um longo período da Idade Média entrando em seguida no processo enandiodrômico extrovertido do Renascimento durante o qual se deram as descobertas ultramarinas o Brasil nessa fase abrigava as mais variadas etnias indígenas com uma realidade social inteiramente diferente A partir do século XVII com a imigração africana e mais tarde com a forte entrada do branco europeu a partir do século XIX deuse continuidade ao processo de formação da identidade brasileira movimento que tem continuidade até os dias de hoje Um caminho inteiramente diferente do europeu uma identidade diferente com possíveis soluções que devem ser pensadas de forma original A conclusão a que chegamos é que muitas vezes esquecemos que o Brasil apresenta uma nova complexidade à qual o analista junguiano Luigi Zoja se referiu O distanciamento de nossa identidade original está sem dúvida associado ao característico complexo de inferioridade do brasileiro referido por diversos autores Os valores nacionais são sempre inferiores aos do estrangeiro este último mais inserido em um padrão moderno de ordem organização e planejamento O brasileiro ao contrário é desorganizado improvisa não tem método Mas será que nosso herói típico Macunaíma é apenas sem caráter ou terá ele com toda sua improvisação um aspecto criativo trazendo uma nova vitalidade Depressivos nos tornamos hipercríticos de nossa realidade e deixamos de perceber nossa capacidade criativa e deixamos de nos renovar em nossa improvisação Reza a antiga lenda que a cidade de Lisboa foi fundada por Ulisses que ali parou depois dos dez anos da batalha de Troia Daí o nome da cidade Ulissabon em grego Ulissipona cidade de Ulisses O que Aquiles não conseguiu durante dez longos anos pela força Ulisses realiza pela esperteza o estratagema do cavalo Todos nós herdeiros do povo ibérico trazemos essa herança de truques de trapaças autênticos tricksters Essa é uma das figuras simbólicas de nossa psique coletiva recebendo inúmeros nomes em nosso folclore Pedro Malasartes Macunaíma Exu Malandro Carioca Em geral ficamos fixados numa visão negativa desses personagens verdadeiros dominantes do inconsciente cultural brasileiro e não percebemos seu caráter criativo transformador A estória de Zé Pelintra um dos mais famosos malandros ilustra essa possibilidade criativa de transformação Sua trajetória começa na Lapa zona boêmia do Rio de Janeiro sendo um perigoso malandro ágil em brigas Acabou morto em um conflito na noite boêmia por golpes de navalha Mais tarde o Malandro Zé Pelintra vai aparecer magicamente nos rituais do Catimbó nordestino onde exerce o papel de um curador poderoso um hábil médico como se fosse um curadorferido semelhante ao antigo Asclépio grego O Malandro aparece como num espectro que oscila desde o psicopata perigoso até personagens extremamente positivos Chico Buarque expressou as ambiguidades da figura do malandro de maneira brilhante em seu musical A ópera do malandro Essa mutabilidade desses estereótipos em nosso inconsciente cultural não falará também das enormes possibilidades criativas da nossa cultura Embora sabendo da impossibilidade de se fazer uma descrição abrangente da alma brasileira e seus contrastes procuramos trazer uma sistematização dos trabalhos apresentados neste livro Dividimos os escritos em três partes a multiplicidade da alma brasileira a alma brasileira africana e por último a alma brasileira ameríndia Em a multiplicidade da alma brasileira temas abrangentes da complexidade nacional são abordados O Professor Michel Maffesoli contribui com seu brilhantismo articulando conceitos do imaginário social com conceitos junguianos Devido a suas diversas vindas ao nosso país pode contribuir com o olhar perspicaz do estrangeiro que por não estar diretamente envolvido com nossas idiossincrasias pode contribuir com uma maior objetividade Um olhar amplo sobre os mitologemas da alma brasileira na perspectiva de Gilbert Durand é oferecido pelos professores Iduína Chaves da Universidade Federal Fluminense e Alberto Felipe Araújo da Universidade do Minho Portugal Os autores assim como o Professor Maffesoli partem de uma abordagem da escola do imaginário que tem importantes conexões com o pensamento junguiano Para as conexões entre psique individual e psique coletiva as abordagens desses autores são muito bemvindas e necessárias Walter Boechat se detém na questão de identidade brasileira a ausência de memória histórica entre nosso povo e a dissociação de suas raízes Esse é um dos mais importantes complexos culturais no Brasil e o autor julga a falência do mito do herói em nossa cultura um dos fatores da falta de identidade do brasileiro Cristiana Serra fala de uma questão universal atual a questão da homofobia e como esse problema se constela no Brasil país de forte herança patriarcal desde os tempos coloniais Ainda hoje o Brasil é em muitos de seus seguimentos o país dos coronéis Como essas questões de gênero poderão ser assimiladas A Professora Teresinha Zimbrão realiza uma interessante exploração na obra de Machado de Assis Esaú e Jacó utilizandose do conceito junguiano de complexo cultural O bruxo do Cosme Velho a quem o escritor anglo indiano Salman Rushdie considerou um dos grandes escritores da história revela em sua obra uma fascinante conjunção de elementos brasileiros urbanos e universais O capítulo da Professora Zimbrão se detém em diversas dessas questões da alma brasileira na obra de Machado Elisabeth Zimmermann estuda outro ícone de nossa literatura Érico Veríssimo Seu capítulo é importante pois reflete sobre uma área do Brasil com características muito próprias o Sul magnificamente descrito por Érico Veríssimo A autora se detém sobre os diversos personagens homens e mulheres da obra de Veríssimo procurando refletir sobre sua psicologia Na segunda parte temos capítulos trabalhando a importante contribuição africana na identidade nacional Sabemos que o aporte africano à alma brasileira teve início já no século XVII influenciando fortemente hábitos vestimentas linguagem alimentação e crenças O Professor José Jorge Zacharias escreve sobre uma das mais importantes representações do panteão Nagô Exu que teve sua imensa importância religiosa resgatada pela antropóloga Monique Augras no livro Os nàgô e a morte Muito mais do que apenas um trickster fálico Exu é um verdadeiro agente cosmogônico Lygia Fuentes resgata uma tradicional ideia africana a filosofia Ubuntu e procura aplicála à cultura brasileira articulando o Brasil atual com um conceito tribal africano tradicional Para tal lança mão do conceito central da psicologia junguiana de individuação Finalmente Vivian Verônica Buck descreve de forma muito pessoal sua experiência com a questão da convivência de brancos e negros numa tradicional família paulista Essa experiência pessoal ecoa mais tarde no atendimento de uma paciente afrodescendente O livro se encerra em sua terceira parte com dois trabalhos que refletem sobre a alma brasileira ameríndia A Professora Isabela Fernandes estuda um mito de origem dos índios Aruás de Rondônia Em seu trabalho percorre diversos aspectos do mito contrastandoo com narrativas de origem da Teogonia de Hesíodo o mito de Marduck revelando a particularidade de os mitos indígenas de criação não apresentarem a clássica luta das trevas com a luz mas uma aparente convivência em harmonia desses princípios Gil Duque se detém sobre a tradição dos Guarani povo com rica mitologia e estuda seu conceito circular do tempo A concepção do fim dos tempos dos Guarani curiosamente é semelhante à ideia dos nórdicos do Ragnarök final dos tempos Gil Duque lança a pergunta O que pensar quando nos deparamos com uma mitologia tão complexa quanto desconhecida que jaz em silêncio na base cultural da principal matriz indígena de nosso povo Essa pergunta feita com relação à tradição Guarani é válida para toda a memória brasileira que tende a jazer em silêncio O propósito central das reflexões nesse livro é promover um processo de volta a essas memórias em um processo de resgate de raízes brasileiras I A MULTIPLICIDADE DA ALMA BRASILEIRA 1 Iniciação arquétipos e Pósmodernidade Michel Maffesoli Introdução Podemos distinguir na história da humanidade ciclos de renovação dos valores dos epistemas inicialmente alguns valores são secretos posteriormente discretos e subsequentemente propagandeados Com o passar dos tempos eles se saturam abrindo assim espaço a outros que de maneira mais deliberada eclodem Entretanto não se trata de um movimento circular mas antes de uma evolução em forma de espiral Neste capítulo gostaria de mostrar como uma forma social o grupo de iniciação ou o reagrupamento de iniciados consistente e propagandeado no final da Idade Média foi perdendo força ao longo da Modernidade para em nossos dias na Pósmodernidade ressurgir de maneira se não secreta ao menos discreta e para alguns até mesmo ostensivamente Este processo de iniciação repousa primeiramente sobre a lei do segredo É graças a esse recuo a esse Schritt zurück passo para trás diria Heidegger que ele é dinâmico e gerador de heterodoxia Celebrando comunitariamente o livro sagrado esse irmanamento esse viver sob o mesmo teto facilita a elevação do indivíduo à alteridade favorecendolhe o acesso a um real ampliado propiciandolhe um apocalipse uma revelação Segredo e discernimento A relação entre discernimento a discretio da filosofia medieval e segredo assim é evidente Atribuindo a este termo seu sentido mais estrito isto é desembaraçandoo de todas as elucubrações subalternas é o esotérico que permite a existência do exotérico Interação do conteúdo e da forma do visível e do invisível em uma palavra da germinação e da eclosão Eis o coração pulsante da ordem das coisas e o fio vermelho da obra da forma como um sociólogo pode concebêla ao ler os escritos de CG Jung1 Em um tempo em que a imbecilidade ambiente falo da imbecilidade que sacoleja sem o apoio bacillus da razão sensível destituída da prudência do discernimento discute sobre a necessidade da transparência as tradições iniciáticas lembram com justeza o claroobscuro da existência Justificando assim a aproximação semântica a ser dita e redita entre humus e humano que tem por corolário a humildade Sabedoria ecosófica reconhecedora da necessidade do enterramento prévio à eflorescência sabedoria tradicional que postula a importância das raízes para a emergência da vida senso comum lembrando que as fundações profundas garantem a solidez das construções E não é paradoxal ver aí a dialogia em ação entre o humanismo e as diversas sociedades secretas que são seus vetores essenciais Relação fecunda passível de se resumir através de um oxímoro dos mais pertinentes enraizamento dinâmico Sendo a força dinamis interna à natureza humana Eis exatamente para além de um racionalismo ao mesmo tempo arrogante e paranoico do qual ainda não se mediu todas as consequências na devastação do mundo contemporâneo o que pode ser a fecundidade de uma razão sensível Razão vitalista que sabe de saber incorporado que a verdade como o lembra Heidegger é um desvelamento sempre e de novo renovado2 Mas é por haver recuo que existe revelação Hegel e Descartes cada qual à sua maneira insistiam no lento e laborioso andamento de toda existência humana e da ciência a ciência do homem possibilitando e legitimando esta ciência A obra do primeiro é em parte esotérica O segundo aconselhava um avançar camuflado masqué O que em nada prejudica seus brilhantismos ulteriores Pois não há vida senão por e graças ao mistério Sendo o mistério lembremolo o que une os iniciados entre si Ou seja os que compartilham dos mitos e que portanto são mudos em face dos ineptos em compreender os arcanos próprios ao labirinto do vivido O dobrarse é necessário para poder desdobrarse É exatamente assim que podemos compreender o Mito de Teseu cuja imagem segundo Virgílio foi desenhada na porta da morada da Sibila Encontramola também na caverna de Platão e no mandala A tradição judaica da Cabala igualmente faz referência a ela transformandoa num atributo da sabedoria de Salomão e de seu templo Enfim os construtores das catedrais utilizaramna à vontade e a transformaram em marca pessoal das confrarias iniciáticas O grande labirinto da Catedral de Amiens com sua alternância de pedras brancas e escuras é uma boa ilustração da relação estreita existindo entre o exotérico e o esotérico Eis a exata importância do segredo da discretio em face da ideologia da transparência Estamos no próprio âmago de nosso homismo hommerie que para retomar uma bela citação de Chateaubriand consiste em ocultar à vista certos lados fracos da alma a alma tem suas necessidades vergonhosas e suas baixezas como o corpo O belo ideal humano sendo a arte de escolher e de esconder3 É reconhecendo isso que superaremos a lancinante cantilena da transparência que martelam em todas as épocas os inquisidores que lutam contra a corrupção em nome de uma pureza ou purificação de consequências inquietantes O discernimentosegredo quanto a ele é o feito destes colegas invisíveis que se transmitem um conhecimento enraizado e portanto tolerante Heidegger via no que ele denominava círculo dos lanthanontes círculo dos inaparentes círculo invisível o lugar da resistência do pensamento o lugar dos que trabalham a longuíssimo prazo4 A imagem é bela enquanto nos remete à necessidade da semeadura como condição de toda colheita futura Que é o elemento fundamental de um crescimento humano simultaneamente respeitoso do viver juntos e de seu escrínio natural É realmente útil lamentarse É necessário sempre vituperar denunciar amargamente o mundo como ele é Há controvérsias Há várias Aponto o quanto são cansativas e inúteis todas estas lamúrias um tanto quanto moralizadoras com que nos agraciam os discursos da sociedade oficial Em suma seria necessário sempre dizer não à vida A sociedade oficiosa enquanto fiel à discrição discretio e ao segredo de boa qualidade transformase em guardiã de uma sabedoria imemorável ciente de que convém dizer sim ao que é E sim igualmente ao mundo a este mundo aqui Assim continuadora de uma postura pitagórica ela sabe reconhecer que tudo em seu senso estrito é admirável E que uma das maneiras de participar dessa sabedoria é como o dizem inúmeros rituais iniciáticos a análise é aliás no sentido junguiano um processo iniciático ver que o que é é em situação de gestação sempre em devir Portanto nossa natureza humana é fruto de uma dinâmica fecunda que mistura sabedoria força e beleza Iniciação e heterodoxia Se ao largo do tempo as posturas iniciáticas foram algo suspeito inquietante e até mesmo perseguidas isso se deve ao fato de sua heterodoxia ser um tanto quanto insolente em relação às ideias convencionais É exatamente dessa forma que de um lado elas respondem à tradição imemorável e que de outro podem entrar em sintonia com o não conformismo próprio aos valores pósmodernos Entretanto para captar este sentido urge pôr em marcha um pensamento exigente Este pensamento como os antigos afirmavam não é um lectulus florulus um pequeno leito florido no qual se refestelam papagaiando os que não tendo o que dizer o dizem com muito barulho Se retomarmos a metáfora da quête du Graal busca do Graal ou a da busca poética de um tesoro nascosto tesouro escondido a metáfora da palavra perdida tem a mesma ambição inventar a vida Ou seja trazer à luz in venire o que está aí descobrir o que parece temermos ver Eis pois o caminho perigoso da verdade a aletheia como desvelamento Não se trata absolutamente de repouso já que para além ou aquém das certezas lenitivas da doxa este exercício força a experimentar sem excessivo pavor as insuficiências da vida e a aceitálas É esta amarga sabedoria que evitando o perigo da revolta como o da inércia constitui o âmago do humanismo pósmoderno Mas não se trata jamais de uma resposta É sempre uma questão A questão que segundo Heidegger é promessa do pensamento consiste em cavar profundamente neste humus próprio à nossa humanidade a fim de desvendarlhe os tesouros escondidos O mito da palavra perdida encontra aí sua mais simples justificação uma busca contínua na interioridade da língua E dessa forma tentar reencontrar por trás da língua falada a língua falante Reencontrar aquém das palavras desgastadas ocas vazias esclerosadas etc a palavra fundadora embasamento de todo viver juntos De Joseph de Maistre a Michel Foucault inúmeras foram as mentes aguçadas que acentuaram a relação estreita entre as palavras e as coisas sublinhando que é um poder enorme o das palavras5 Poderseia falar a este respeito de uma verdadeira onomaturgia A das palavraspaixões suscitando a energia humana ou seja a incansável atividade própria a uma sociedade viva É este constante questionamento que faz com que o percurso iniciático não possa de forma alguma ser confundido com uma simples engenharia ingénérie social ou uma ação política sem futuro A filosofia progressiva sempre em movimento contentase em acompanhar o fervilhar do poder societário E isso ateando fogo aos restos daquilo que convencionouse denominar questões de escola próprias aos dogmatismos de todos os tempos É exatamente isso que permite estabelecer um vínculo entre a vida e o conhecimento da vida Esta busca teimosa da palavra perdida isto é da palavra fundadora possui um termo bastante aviltado em nossos dias que poderia resumila societal que concerne à sociedade e à vida social dos homens De minha parte já nos idos de 1970 sugeri empregar este neologismo para designar aquilo que não reduzia o contrato social ao simples racional que lhe é próprio Ao social para designar o viver juntos puramente racional tal como ele se elabora na Modernidade Ao societal como um conjunto bem mais complexo onde o imaginário o lúdico o onírico ocupam um espaço de destaque Um lençol freático irrigando em profundidade a vida das sociedades um invisível confortando o visível Este preço das coisas sem preço constituindo o qualificativo de uma existência que não pode se resumir ao simples quantitativo Isso equivale a afirmar que o humanismo verdadeiro isto é o humano em sua inteireza não se resume em preocupações utilitárias Não é mais possível considerar o homem a partir de um materialismo obsoleto de que a economia é a mais perfeita expressão CG Jung ao longo de toda a sua obra evocou esta prevalência da ordem simbólica6 Relação eminentemente complexa que nos torna atentos à força do imaterial O homem de desejo que põe em prática uma razão sensível constituise em coração pulsante da ordem simbólica e de todos os processos iniciáticos A análise ela mesma em particular a de Jung inscrevese nesta ordem simbólica com seus rituais diversos Inteireza do ser apelando ao constante despertar da inteligência inteligência que o mais proximamente possível de sua etimologia consiste em aproximar os fragmentos disparatados do mundo compreender que reúne o disperso Aí ainda uma preocupação presente em Jung não unidade redutora mas unidade bem mais fecunda enquanto integra com constância os elementos mais diversos da pluralidade humana da diversidade social Portanto compreender e humanismo vão de par Daí o apelo lancinante à leitura encontrável em todos os ritos iniciáticos e que constitui a via real da busca Graal palavra perdida tesouro escondido a que nos referíamos antes O que é aqui indicado é que o compreender isto é o questionar constituise em tarefa essencial de nossa humana natureza Não se trata de acusar de vituperar mas de acompanhar pelo conhecimento o que é O que não é sem perigo em todo caso sem esforço pois compreender todas as coisas é aceitar tanto os vícios quanto as virtudes o humus no humano O que implica e aí reside a reputação da postura do iniciado que progressivamente nada se pode concluir que os problemas não consistem em ser resolvidos mas em ser bemformulados Assim muito evidentemente a busca não seria feita por todos Os textos se destinariam somente a alguns aos que podem compreendêlos Aí ainda vale lembrar tratase de uma atitude reenviando à aristocracia do espírito Seria paradoxal a partir disso sublinhar a estreita relação existente entre o compreender e o mistério A douta ignorância N de Cusa do iniciado que sabe progressivamente que tanto mais alto se eleva quanto mais ele ignorar aonde a deambulação existencial poderá conduzilo Efetivamente conscientemente ou não a busca própria ao homo viator consiste em ignorar e até mesmo recusar o lugarcomum que leva a objetivos conhecidos próprios às certezas da opinião comum ou até mesmo à erudição sem horizonte Contrariamente a verdadeira busca consiste em trilhar o caminho estreito abrupto o que leva ao desconhecido ao qual o homem de desejo aspira Destarte o compreender é uma luta constante que a todo instante deve desenraizarse das rotinas filosóficas dos dogmatismos confortáveis das garantias contra qualquer risco Evidências do momento que dissimuladamente invadem o domínio público Lá ainda ouçamos J de Maistre as falsas opiniões assemelhamse à falsa moeda inicialmente cunhada por grandes culpáveis e subsequentemente utilizada por pessoas honestas que sem conhecimento de causa perpetuam o crime7 A celebração do Livro É para apegarse a um pensamento autêntico para conceder poder total ao Verbo que incontáveis círculos iniciáticos celebram de forma quase litúrgica o livro Ele reina majestosamente nas assembleias e reúne consciências individuais que sem isso isolarseiam num solipsismo restrito Não posso deixar de fazer referência ao Livro Vermelho de CG Jung que de um lado é um objeto feito para ser mostrado e que de outro tem todos os atributos de uma obra iniciática incluindo sua escrita dificilmente decifrável O sucesso que teve sua reedição em francês em alemão em inglês em português diz muito sobre o interesse da época por tais posturas iniciáticas e simbólicas Neste particular sabemos que o livro sagrado seja ele qual for armazenou ao longo da tradição uma provisão de hormônios simbólicos que reinjeta na comunidade para darlhe a vitalidade necessária à sua sobrevivência Bíblia Corão ou outro corpus tradicional podem ser vistos como reservatórios energéticos da palavra comum8 O livro tem uma pregnância simbólica E Cassirer lembrando que as palavras pertinentes vivificam as coisas O que nos lembra seguramente que o homem é sapiens mas igualmente animal symbolicum isto é que reúne ideias imagens emoções e paixões em um misto extremamente fecundo Em todo caso aquilo a partir do qual se constitui todo viver juntos Mas a função ética do livro sagrado e com isso me refiro ao que garante a coesão de conjunto não deve ser reduzida o que geralmente é o caso a uma erudição de maior ou menor boa qualidade tendo por único resultado o de evitar a confrontação com o mundo contemporâneo Deste ponto de vista a multiplicação de revistas de trabalhos históricos tipo New Age até mesmo de blogs na internet focalizandose num historicismo a curta distância testemunham mais um retraimento um tanto quanto sectário que uma abertura aos valores pósmodernos em gestação dos quais as jovens gerações são sedentas Podemos comparar este retraimento ao dos mosteiros beneditinos dos séculos XVII e XVIII9 aos trabalhos intelectuais essencialmente históricos mas que por conseguinte não participam mais da dinâmica civilizacional impulsionada na Europa pela obra fecunda de São Bento Comparação instrutiva quando se conhece a influência da vida monacal sobre os construtores de catedrais e sobre os francomaçons operativos e em seguida especulativos Aí ainda a prevalência da ordem simbólica Para afastar uma última objeção sobre este tema urge não confundir o reservatório energético do livro comum símbolo da palavra ativa e estruturante com a multiplicação das obras de edificação de autoconhecimento e diversos substitutivos de espiritualidade que fazem o melhor quinhão das editoras Efetivamente New Age puxando a fila é instrutivo sublinhar que as livrarias de aeroportos os quiosques de estações e múltiplas vitrines de livrarias transbordam de publicações versando sobre iniciação meditação bom uso do corpo filosofias orientais e espiritualidades em geral A história das religiões os romances de Harry Potter a Da Vinci Code e outros Infernum conhecem um sucesso sem par Em muitas dessas produções referência é feita à postura iniciática e de uma maneira excessivamente livre bastante malinformada em todo caso bastante mercantilizada Não entendo fazer uma crítica a tal entusiasmo Vejoo antes como o sintoma de um movimento de fundo o da razão sensível Ou seja o da reemergência de uma concepção integral do humano Isto é pelo viés dos rituais o corpo entrando em ressonância com o espírito Concepção holística que com toda certeza reside no âmago da perspectiva iniciática Iniciação um processo de irmanamento ou de fraternidade um compartilhamento relativista Vale lembrar igualmente que é no ocaso de um ciclo civilizacional e quando as ideologias que o haviam cimentado se saturam que as sociedades secretas no sentido dado mais acima a este termo recobram um novo vigor Em nossos dias a falência das instituições elaboradas ao longo do século XIX a desafeição em relação aos partidos políticos aos sindicatos ou às associações oficiais vão de par com o renascimento das tribos oficiosas das quais diversos grupos de tipo iniciático fazem parte O irmanamentofraternidade que estes grupos propõem permite remediar o vazio espiritual e o isolamento que se desenvolve nas megalópoles pós modernas A solidariedade e o espírito de tolerância que eles preconizam convêm perfeitamente às jovens gerações que como já o indiquei10 desconfiam dos dogmatismos religiosos políticos ou ideológicos Ao inverso do que se passou entre o Antigo Regime e a Revolução Francesa a busca por novas formas de sociabilidade é uma espécie de resposta à observação cheia de humor de Joseph de Maistre Um homem sozinho sempre está em má companhia A busca por comunhões emocionais está na ordem do dia O que evidentemente leva à multiplicação dos lugares de intercâmbios Mas como já o indicamos de intercâmbios holísticos Ou seja de lugares em que a razão e os sentimentos entram em uma complementaridade ordenada Busca de sociabilidade fuga do isolamento indubitavelmente mas isso só é possível quando simultaneamente existem palavras pertinentes para dizê lo O que reenvia à elaboração de uma ordem simbólica Só para indicar que ao abordarmos tais temas não podemos excluir nenhum teórico posso remeter aqui a uma judiciosa afirmação de Santo Tomás de Aquino O uso popular que é a regra dos sentidos dos termos denomina sábios os que têm a responsabilidade de colocar ordem nas coisas e de bem governálas Dessa forma dentre os atributos que os homens conferem aos sábios Aristóteles declara que lhes cabe ordenar11 Diversas são as formas de interpretar essa análise De minha parte vejo aí a apetência às vezes bastante evidente por uma sabedoria que sabe dizer e ordenar o mundo Estando as ideologias modernas saturadas voltamonos então para um conhecimento mais tradicional permitindo dizer uma ordem das coisas que se adequa à vida cotidiana Conhecimento não vindo de forma desaprumada do alto mas que surgiu da experiência a da inteireza própria ao vivido dia após dia Relativismo de boa qualidade que invade de uma maneira radical o dogmatismo seja ele qual for Ora ocorre que tal relativismo é o coração pulsante da atmosfera mental pósmoderna Ele reenvia a um politeísmo dos valores que regularmente vemos ressurgir nas histórias humanas Politeísmo que metaforicamente visa a relativização de uma verdade única e que coloca em relação às múltiplas verdades que constituem a vida corrente Talvez devamos retomar em boa parte a antiga questão do relativismo a verdade o que é a verdade A que eu denominaria Síndrome de Pôncio Pilatos renasce em nossos dias Com certeza existem fanatismos de todas as ordens e a atualidade nos oferece muitos testemunhos inquietantes Mas a tendência de fundo tão subterrânea quanto poderosa diz respeito à tolerância multiculturalismo respeito à alteridade diversidade de todas as ordens sincretismo religioso e filosófico A mestiçagem sob todas as suas formas está na ordem do dia E é importante ter presente que uma mistura cultural dessas é sempre o indício de uma renovação civilizacional O fervilhamento até mesmo o formigamento é em seu sentido mais simples o indício do desenvolvimento vital Suas ações são escondidas suas consequências manifestas Talvez seja por isso que no segredo dos pensamentos iniciáticos esteja em vias de se elaborar a renovação da sociabilidade pósmoderna Arquétipo e Pósmodernidade a elevação de si A memória coletiva em suas profundezas eternas assegura a sobrevivência do que poderíamos denominar gnose popular Saber incorporado instintivoconstitutivo de um habitus comum cadinho fecundo onde se arquiteta o viver juntos Esta sabedoria ancestral é estruturalmente feita de tolerância de acolhida do outro continuadamente irrigada pela diferença Que pode parecer um pouco utópica embora todas as histórias humanas mostrem que a longo prazo é desta forma que se constituíram as diversas civilizações e inclusive as nações Vale lembrar que a expressão central de toda postura iniciática cristaliza se em uma sociedade do presente fundada na nostalgia do passado O que engendra uma felicidade leve isto é efêmera que mesmo não se projetando na direção de hipotéticos amanhãs canoros não deixa de ser intensa Intensidade não destituída da busca por delícias sensuais estas delícias infinitas dos sonhos culminando ao mesmo tempo naquilo que é a marca da Prémodernidade e da Pósmodernidade um espiritualismo corporal Este espiritualismo não deixa de sintonizarse com o espírito do tempo enquanto inversamente a estes curiosos sem almas unicamente preocupados com os scoops os furos jornalísticos e diversos pensamentos adventícios e de pouco interesse estimula a busca de nutrientes outramente revigorantes Este é o espírito de insubmissão diante da doxa corrente estar atento à sede do infinito que sempre atormenta os melhores e lhes fornece bebidas fortes a fim de sustentálos um pouquinho Eis o que está ao mesmo tempo no coração da contemporânea exigência de intensidade própria ao presenteísmo e que simultaneamente constitui o residus isto é o fundamento o alicerce irrefragável da ardente e viva tradição É isso mesmo que engendra estes pensamentos dinâmicos ricos de névoas fecundas as da cloud névoa pósmoderna reencontrando a antiga preocupação da sociabilidade tradicional o saber viver juntos Intercambiar discutir chattear twittar unindo em infinitos compartilhamentos as comunhões emocionais específicas destas religiões dos mistérios antigas onde a circulação dos bens dos afetos e das ideias de uma maneira holística global o conteúdo mitos e o recipiente comunidade participam juntos à inteireza do ser individual e do Ser coletivo O que Jung definiu como o processo mesmo de individuação esta apropriação pelo si do inconsciente coletivo desaguando no Si O que eu mesmo nas sendas do poeta Rimbaud que afirmava Eu é um outro eu traduzo por uma elevação do si no Si Lembro aqui uma definição da Pósmodernidade sinergia do arcaico e do desenvolvimento tecnológico Outra maneira de nomear a dinâmica dialogia existindo entre as tribos e a internet Outra maneira igualmente de lembrar a importância do imaterial do espiritual para cada pessoa e para a sociedade em seu conjunto Aí está a ordem simbólica uma energia comum impalpável onírica Estamos longe do subjetivismo moderno que encontra sua fonte no cogito cartesiano Em todo caso na interpretação que lhe foi dada Os tweets fóruns sites comunitários etc confortam em sua tecnologia de ponta esta arcaica dependência que faz existir no e para o olhar do outro É o outro que me cria Alteridade sendo por conseguinte causa e efeito da pessoa humana Dependência própria a esta ordo amoris de longa linhagem e recobrando força e vigor no momento em que a época época significando em grego parêntese moderna está em vias de fecharse Não é mais a evidência do eu que constitui o ponto de partida do conhecimento mas justamente a evidência do Outro O que por sua vez permite voltar ao sentido etimológico do termo conhecer é nascer com cum nascere É dizer em quê e como o Eu se transfigura em nós A tribo pósmoderna como a comunidade prémoderna são uma manifestação dessa estrutura antropológica que é a solidariedade orgânica a das solidariedades e da camaradagem próprias à Idade Média Solidariedade encontrada ao longo das eras em todas as sociedades iniciáticas O que sublinha o havíamos quase esquecido o caráter carismático do vínculo social É esta glutinum mundi esta cola do mundo que garante a solidez do viver juntos Neste sentido o irmanamentofraternidade é a energia escondida de toda existência social H Corbin lembrava que a simpatia entre os seres é a da teopatia12 Esta paixão divina causa e efeito da transubjetividade ou intersubjetividade pela qual o indivíduo se ultrapassa talvez seja melhor dizer se eleva em um Si mais vasto constitutivo da memória coletiva a da tradição imemorial Aí encontramos as energias escondidas das vibrações comuns das comunhões emocionais contemporâneas Os contágios afetivos os sentimentos de pertença os fenômenos compassivos não repousam mais sobre um ego substancial estável mas exatamente sobre um nós em constante devir O princípio de individualização invertendose em princípio de individuação junguiano isto é em principium relationis Aquele da religação reliance estar religado ao outro religare estar em dependênciaconfiante com o outro reliant em inglês A religação é assim a expressão de um pluralismo coerente em que nos conhecemos no outro isto é na comunidade A tópica da época ou a teoria do lugarcomum está em vias de mudar no sentido que em todos os domínios a verticalidade sede seu espaço a uma horizontalidade de consequências infinitas Um real ampliado Uma destas consequências é o retorno de um real ampliado Contra uma realidade um pouco raquítica a da economia do político do social que se resume num suposto princípio de realidade a postura iniciática nada mais é que a inclusão dos possíveis do surreal do irreal Isto é um real mais vasto repleto de sonhos imemoriais da humanidade Foi exatamente isso que designei com a metáfora da tribo este mais que um que estabelece um constante vai e vem entre os diversos elementos de um real carregado de passado e repleto de futuro Não mais o único e sua propriedade Stirner bela expressão resumindo o individualismo epistemológico moderno mas exatamente uma expressão que resume uma transposição expropriante onde cada elemento cada pessoa é expropriada por este Outro que é a comunidade e que por essa via reencontra um excedente de ser Aí ainda penso exprimir de maneira sociológica isto é do ponto de vista das relações sociais ou societais do viver juntos o que Jung pensou do ponto de vista da psicologia A introdução em sua obra e em sua prática das análises do inconsciente coletivo e de suas produções mitológicas corresponde a esta visão da comunidade Podemos igualmente fazer referência a Gilbert Durand grande antropólogo do imaginário para quem as estruturas antropológicas do imaginário permitem analisar a produção artística cultural da humanidade através de grandes ciclos que ele denomina reservatórios semânticos Refletir sobre este real ampliado não é coisa fácil já que sub repticiamente e a longo prazo o moderno colocou o acento numa concepção unilateral de uma realidade reduzida à sua dimensão econômica e racional Conscientes ou não estamos imersos numa marxização que faz a sociedade repousar sobre sua infraestrutura econômica a superestrutura cultural tendo apenas uma importância secundária Jean Baudrillard mostrou eximiamente o aspecto limitado de tal visão do mundo13 mas é esta concepção que encontramos na obsessão econômica nas lamúrias sobre o desemprego e em outras elucubrações sobre o valor do trabalho cuja fonte reside nesta suma teológica do século XIX denominada O capital de Karl Marx Somente volto à crítica que se pode fazer a esta redução drástica do real a uma realidade econômica para lembrar alusivamente que esta crise repetidamente divulgada está primeiramente em nossas cabeças E para dizer que é apostando numa visão multilateral do mundo que podemos compreender a mutação civilizacional em curso que convencionouse denominar mudança de paradigma Apocalipse E é exatamente isso que traduz a insubmissão espiritual a que nos referíamos Irmãos de mente livre eis a expressão que melhor caracterizaria o apocalipse ao qual assistimos Apocalipse ainda aí entendido em seu sentido primeiro o de revelação de um estado de fato Revelação que se contenta em prestar atenção a esta coação extremamente presente em toda cultura digna deste nome e que Virgílio com a notável concisão do latim resumia bem mens agitat molem um espírito faz mover o mundo Mas muito evidentemente o verdadeiro espírito Falo não das construções teóricas dos sistemas puramente racionais que progressivamente abstraíramse da existência comum mas de um espírito que podemos compreender como uma cristalização em que interagem a razão os afetos os sentidos Um oxímoro o exemplifica a razão sensível Coincidência dos opostos permitindo captar a fecundação mútua exercida uns sobre os outros por todos os elementos da natureza humana e superando assim o racionalismo mórbido que culminou no princípio de recorte que foi o modus operandi da Modernidade Invertendo uma formulação de Montesquieu não é mais o Espírito das leis que prevalece mas as leis do espírito Desde que seguramente com isso se designe a inteireza do ser Não mais um humanismo simplesmente decorativo mas justamente o que tira proveito de todas as potencialidades que caracterizam nossa espécie animal Numa lindíssima introdução ao livro de Kant O que são as Luzes M Foucault lembra que ao inverso da estreiteza do materialismo as Luzes isto é esta filosofia que fez o esplendor do século XVIII colocou em cena essencialmente as forças do espírito14 Mas como geralmente é o caso o que um dia foi dinâmico tende a esclerosarse E por conseguinte a tornar se dogmático Talvez seja isso que por acidente esteja ocorrendo com estas famosas Luzes cuja deplorável tendência é a de se tornarem um tanto quanto intermitentes Muito precisamente quando elas não sabem mais prestar contas da vida em seu contínuo desenvolvimento Vida que integra os afetos as emoções e as paixões comuns Indignações múltiplas rebeliões pontuando a atualidade revoltas juvenis abstenções políticas e sociais tudo isso não reflete um racionalismo galopante qualquer mas contrariamente reenvia a um retorno às fontes do Iluminismo e à exigência de uma concepção plural do que é o ser humano Reconhecendo assim que o não racional não é irracional mas detentor de uma razão própria Reconhecendo que o não lógico não é ilógico mas possuidor de uma lógica que lhe é própria a de uma ratiovitalismo cuja postura iniciática oferece uma boa explicação Entretanto isso implica saber lutar contra as formas abastardadas dos conformismos intelectuais Pois os pensamentos obsoletos não fazem mais parte da receita E um humanismo vazio não está mais em sintonia com sua época De fato nada é eterno e os trabalhos de Gilbert Durand mostram claramente que uma estrutura ou um arquétipo não podem ser constantes a não ser revestindose das formas particulares Simplesmente adaptandose às mutações civilizacionais Tratase aí do eterno problema de nossa espécie animal necessariamente dizer as palavras em conformidade com seu tempo Daí de um ponto de vista sociológico o interesse primordial pela obra de CG Jung15 Convém para compreender bem esta situação ampliar o problema E dizer e redizer que nos períodos de apocalipse como o atual período em que cessa uma maneira de ser e outra se revela não é raro perceber duas atitudes aparentemente opostas mas de fato inteiramente complementares Ou prevalece o conformismo que sem originalidade desenovela as ideias convencionais ou com retraimento enrijecese num legalismo tranquilizador Duas facetas de uma mesma realidade a busca barata de um pensar pronto prêt à penser sem envergadura e horizonte Atitudes complementares que além disso favorecem o entresi e se protegem em face da alteridade A liberdade de espírito encontrável na ardente exigência das jovens gerações repousa sobre uma real imparcialidade bem mais forte que a disposição de espírito ou a estreiteza das convicções Imparcialidade indo de par com uma espécie de insolência ou de desenvoltura diante das certezas estabelecidas e que valoriza a postura de um pensamento iniciático autêntico em relação à sabedoria profundamente enraizada na tradição Somente quando fiel à sua ordo essentialis a da heterodoxia a da não conformidade é que este pensamento pode adaptarse ao seu tempo E isso para acompanhálo isto é para seguir sua evolução A insubmissão generalizada que caracteriza este pensamento não pode admitir a violência dos que querem o bem à custa dos outros Dominação dos que se sentem responsáveis pelos outros e que podem impor pela força a ordem que ideologicamente elaboraram Do Goulag aos campos de concentração cambojanos inúmeros são os exemplos que vão nesta direção Mas esta imposição do bem comum pela força aquilo que abstratamente consideramos bem comum não está absolutamente em congruência com a sensibilidade libertária com a especificidade do pensamento iniciático Digo sensibilidade visto que não se trata de um sistema dogmático Entretanto é esta sensibilidade que misteriosamente sabe isto é a partir dos mitos imemoráveis que a história é uma contínua palingênese uma gênese sempre recomeçada Reconhecendo com lucidez que toda inspiração primeira tende a se amornar em instituição que o que institui acaba em instituído que o enamoramento se enrijece em conjugalidade tetânica E que existe por conseguinte necessidade de novo impulso Este não podendo realizarse senão unindose às forças profundas primordiais em ação subterraneamente no devir humano Tratase aí de um princípio gerador o da tolerância que não condiz com a propalada facilidade mas que contra a violência das ideias preconcebidas dá provas de audácia e coragem Entretanto este relativismo necessita também de um pensamento meditativo oposto ao pensamento calculista que por natureza é convidado a difundirse Daí a urgência experimentada por alguns de voltar a tal sabedoria À sua maneira M Heidegger havia insistido nesta questão a indigência do pensamento é um hóspede perturbador que se insinua não importa aonde no mundo16 Muitos são os que recusam tal estado de fato e se revolvem à postura iniciática para exprimir esta recusa Tradução de Francisco Morás É professor da Université de ParisDescartes É secretáriogeral do Centre de recherche sur limaginaire e membro do comitê científico de revistas internacionais como Social Movement Studies e Sociologia Internationalis Recebeu o Grand Prix des Sciences Humaines da Academia Francesa em 1992 por seu trabalho La transfiguration du politique É vicepresidente do Institut International de Sociologie IIS fundado em 1893 por René Worms e membro do Institut Universitaire de France IUF Doutor Honoris Causa das universidades de Bucareste Romênia Braga Portugal PUC de Porto Alegre Brasil e da Universidade do México 1 Cf JUNG CG La réalité de lâme Pochothèque Paris Le Livre de Poche 1998 MAFFESOLI M Lordre des choses se CNRS 2014 2 Cf HEIDEGGER M Lessence de la vérité Paris Gallimard 1969 3 Cf JUNG CG Le divin dans lhomme Paris Albin Michel 1999 cap X La gnose p 401 CHATEAUBRIAND R Génie du christianisme Paris Pourrat 1893 segunda parte livro segundo cap XII p 92 4 Cf HEIDEGGER M Écrits politiques Paris Gallimard 1995 p 189 5 Cf MAISTRE J Les soirées de SaintPétesbourg 8 Entrevista Lyon Pélagand 1850 p 89 FOUCAULT M Les mots et les choses Paris Gallimard 1969 6 Cf MAFFESOLI M La violence totalitaire 1979 Trad bras São Paulo Zahar 1979 Porto Alegre Sulina 2001 BAUDRILLARD S Besoindésir snt 7 Cf MAISTRE J Les soirées de SaintPétersbourg Op cit 1 entrevista p 1 8 Cf JUNG CG O Livro Vermelho Petrópolis Vozes 2010 DURAND G La foi du cordonnier 1984 Paris se 2014 p 41 e 43 9 Cf JEANMESMY C Saint Benoît et la vie monastique Paris Seuil 1959 p 166 10 Cf MAFFESOLI M Le temps des tribus 1988 caps 45 La loi du secret 1988 Trad bras Rio de Janeiro Forense Homo eroticus des communions émotionnelles 2012 Trad bras Rio de Janeiro Forense 2014 11 DAQUIN T Somme contre les gentils liv I ch I 12 CORBIN H Limagination créatrice dans le soufisme de Ibn Arabi Paris Flammarion 1981 p 212 13 BAUDRILLARD J Le miroir de la production Paris Denoël 1975 14 KANT I Que sont les Lumières Paris Vrin 1969 Introdução de M Foucault Cf tb MAFFESOLI M Éloge de la raison sensible 1996 Trad bras Elogio da razão sensível Petrópolis Vozes 1998 15 Cf JUNG CG Ma vie souvenirs rêves et pensées Paris Gallimard 1975 DURAND G Les mythes fondateurs de la francmaçonnerie sl Dervy 2002 16 HEIDEGGER M Sérénité Questions III Paris Gallimard 1966 p 163 Cf tb JUNG CG KERÉNYI C Introduction à lessence de la mythologie 1941 Paris Payot 1953 2 Entre as luzes e as sombras Em busca dos mitologemas da alma brasileira na perspetiva de Gilbert Durand Iduína MontAlverne Chaves Alberto Filipe Araújo Nós brasileiros somos um povo em ser impedido de sêlo Nela na mestiçagem fomos feitos e ainda nos continuamos nos fazendo Essa massa de nativos oriundos da mestiçagem viveu por séculos sem consciência de si afundada na ninguendade RIBEIRO D O povo brasileiro 1996 p 453 Mas nós não sabemos que nossos mitos já sabiam GAMBINI R A alma ancestral do Brasil 2004 p 3 Introdução A nossa abordagem da alma brasileira inscrevese particularmente na tradição antropomitodológica de Gilbert Durand não descurando contudo o contributo incontornável da obra junguiana É portanto a esta luz que quando falamos de alma imaginal brasileira e de imaginário mítico brasileiro ao longo do nosso estudo estamos nos referindo aos conteúdos arquetípicos míticos que pensamos caracterizar a alma ancestral brasileira na perspetiva hermenêuticosimbólica que é a nossa GARAGALZA 2004 p 197200 ORTIZOSÉS 1994 p 223315 como aquele tipo de hermenêutica mais adequado para o estudo dos mitos e dos símbolos Esta dupla filiação Gilbert DurandJung reconfortanos na medida em que ela nos conduz consequentemente a escapar tanto ao etnocentrismo prometeico como ao dionisismo etnológico que troca o Mito de Prometeu pelo Mito da Idade de Ouro além de nos proteger de cairmos na tentação de produzirmos juízos unilaterais e comentários eivados de um moralismo sectário certamente incompatível com a tradição junguiana basta lembrar o que Jung escreveu sobre o homem arcaico 1991 p 133164 Além disso nunca é demais sublinhar que a alma brasileira é tigrada mestiça politeísta e como tal é uma alma que se diz antes no plural Deste modo importa indagar o porquê de a alma coletiva brasileira continuar nas palavras de Darcy Ribeiro afundada na ninguendade 1996 p 453 ou seja uma alma arquetipicamente órfã prisioneira ora de uma persona intransponível ora de uma sombra terrífica e paralisante Devemos saber perscrutar auxiliados simultaneamente pelo fio de Ariadne e pelo deus Hermes nos corredores e salas sombrias e luminosas da Memoria coletiva brasileira para lembrarmos aqui Santo Agostinho e James Hillman os mitologemas que a habitam Por isso mesmo o presente estudo apresentase aos olhos do leitor dividido em quatro partes a primeira tratará da alma imaginal e como ela abre caminho ao imaginário mítico a segunda se debruçará sobre o imaginário mítico brasileiro com os seus mitos da Idade de Ouro e de Prometeu a terceira parte incidirá sobre os mitologemas da alma imaginal brasileira finalmente a quarta parte que servirá também de conclusão falará da importância do mitologema do homem novo e da educação remitologizadora 1 Da natureza da alma imaginal ao imaginário mítico brasileiro A nossa noção de alma imaginal1 é devedora dos contributos de Jung de Henry Corbin e de Gilbert Durand é um tipo de alma poliédrica tigrada visto que articula a realidade psíquica Jung o mundo imaginal Henry Corbin e a noção de trajeto antropológico Gilbert Durand numa dinâmica de polos antagonistas que sempre busca uma coesão Jung diria uma conjunctionis ou reunião de opostos ou de contrários numa quaternidade criadora JUNG 1992 p 2744 ou então na tradicional experiência interior expressa pelo Tao da filosofia chinesa Neste sentido esta alma imaginal aparece como tigrada na expressão de Gilbert Durand ou seja como aquela metáfora que melhor dá conta da pluralidade individual e cultural tanto ao nível antropológico como psicológico do sujeito humano enquanto trajeto do presente ou projeto de futuro DURAND 1980 p 9 41 74 A alma imaginal enquanto sinônimo de imaginário coletivo que é sempre sociocultural e mítico de acordo com a tópica sociocultural durandiana DURAND 1996c p 131156 exprimese através daquilo que Jung 1988 p 353 Karl Kerényi 1974 p 13 e Gilbert Durand 1982 p 72 1983 p 2833 denominam de mitologemas2 que são na verdade temas míticos3 É através dos mitologemas ou seja de temas míticos recorrentes das constantes de imaginação que modelam a alma imaginal brasileira que o imaginário mítico se exprime Existe uma forte ligação entre as noções de alma imaginal e do imaginário mítico daí a importância que assume a noção de imagem primordial em Jung Chamo primordial toda a imagem com caráter arcaico dito de outro modo que apresenta uma concordância notável com os motivos mitológicos conhecidos JUNG 1991b 433 11 A alma imaginal brasileira como alma tigrada Do ponto de vista sociológico constatamos que a alma mestiça brasileira se formou quer pelo acasalamento do europeu branco com a mulher índia quer pelo acasalamento entre o europeu branco com a mulher negra Destes dois tipos de acasalamento surgiram mestiços de origem ameríndia e mulatos Um povo mestiço na carne e no espírito já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado RIBEIRO 1996 p 453 Deste acasalamento primigênio particularmente com a Índia constituiuse a protocélula da futura sociedade brasileira e consequentemente aquilo que se chamaria o povo brasileiro assente em duas matrizes antropológicas diversas mas ambas rejeitadas dos pontos de vista político social e rácico pelo europeu português RIBEIRO 1996 p 208227 Interessa deste modo que a alma imaginal brasileira assuma convictamente a sua dimensão tigrada ou seja o seu fundo plural malhado e miscigenado cujas raízes étnicoraciais mergulham e se perdem no complexo emaranhado antropológico indígena africano e europeu obreiro de um trajeto antropológico Gilbert Durand simultaneamente étnicosocial e ideocultural e cósmico imaginário social e psicológicomitológico imaginário mítico que ainda hoje não se conhece todos os seus efeitos e consequências A sobrevivência da alma imaginal brasileira e a sua respectiva saúde sociocultural psicológica e míticosimbólica depende do modo e da capacidade de resiliência da sociedade brasileira em estimular e animar a pluralidade antagonista que a constitui numa tensão heterogênea criativa e remitologizante4 Uma alma imaginal5 imemorial e transpessoal reservatório luxuriante de imagens arquetípicas Jung veiculadora de uma visão do mundo impregnada de inocência adâmica e de solidarismo edênico que logo no ano de 1500 começou e principalmente depois ainda mesmo hoje no nosso século e é preciso não o esquecer e dizêlo sem qualquer ambiguidade a ser profanada e espoliada pela santa união da cruz e da espada dos pontos de vista antropológico cultural ético e ecológico Chegados aqui importa indagarmos através das múltiplas salas da alma imaginal da memoria coletiva brasileira quais os mitologemas que a constituem que a povoam enfim saber aquilo que se esconde no thesaurus inscrutabilis dessa alma tigrada mestiça O que significa portanto reconhecer que é no mito que se revelam os arquétipos ou universais da psique inconsciente Os mitos são de universali fantastici de Giambattista Vico e eles podem modificar a ordem da imaginação Eles tornamse os novos universais imaginais de uma psicologia arquetípica HILLMAN 1977 p 148 2 Do imaginário mítico brasileiro Darcy Ribeiro aponta na base de outros contributos as caraterísticas do tipo psicossocial brasileiro do seguinte modo o servilismo a humildade a rigidez o espírito de ordem o sentido de dever o gesto pela rotina a gravidade a sisudez a resignação e a passividade não deixando contudo de assinalar também outras caraterísticas tais como a criatividade do aventureiro a adaptabilidade de quem não é rígido mas flexível a vitalidade de quem enfrenta ousado azares e formas originalidade dos indisciplinados RIBEIRO 1996 p 451 Para além deste contributo seria igualmente tentador atermonos ao qualificativo de novo numa perspetiva étnicoracial em que uma cultura sincrética e mestiça suscita uma inverossímil alegria e espantosa vontade de felicidade RIBEIRO 1996 p 19 ou evidenciarmos a mestiçagem do imaginário social brasileiro Contudo aquilo que nos atrai é na perspetiva de Gilbert Durand encarar o imaginário novo do Brasil6 a partir das suas caraterísticas míticas dos seus mitos e dos seus mitologemas Gilbert Durand caracteriza novo imaginário brasileiro como fisiologicamente fecundo e feminino por um lado o imaginário da fecundidade lembrando as deusas gregas ligadas à fecundidade e à terra tais como Deméter Reia ou Reía GaiaGeiaGêGea Ártemis Perséfone e o deus grego Dioniso e por isso é um imaginário da penetração pela terra adentro e dela possessivo desde o litoral à vastidão da Amazônia como aliás os estudos entre outros da história indígena e do indigenismo o ilustram por outro o imaginário da feminilidade lembrando a deusa Afrodite e o deus Eros na mitologia grega Deste modo os contornos deste tipo de imaginário quase sempre desconhecido e recalcado7 pelo eu social 1996c p 144 colonial 15001822 e mesmo póscolonial 1822 até aos dias de hoje são nos dados pela feminilidade e natureza nas suas formas aquática e terreal um imaginário que simultaneamente se pretende telúrico ctônico possessivo da terra que rasga e que conquista as tribos indígenas mas igualmente um imaginário feminino que sonha com a figura da mulher quer como mãe acolhedora e esposa procriadora quer como objeto de desejo e de posse sexual DURAND 1996b p 184186 O imaginário mítico brasileiro que estamos descrevendo dificilmente fica completo se não evocarmos alguns dos seus mitos diretores8 um que identificamos com o Mito da Idade de Ouro9 e outro identificado com o Mito de Prometeu Do lado do primeiro mito da Idade de Ouro encontram se os mitologemas do ouro da fecundidadefeminilidadematriarcalismo enquanto do lado do segundo mito o de Prometeu encontramos os mitologemas da masculinidadepatriarcalismo da ordem e do progresso10 cujas divisas comtianas animaram a realidade sociopolítica e científicocultural brasileira nomeadamente a ideologia e a ação republicana brasileiras como é conhecido LINS 1967 SOARES 1998 Como corolário deste conjunto de mitologemas agora apresentados temos também o do homem novo como uma espécie de salvador vindo de dentro ou seja não somente como fruto do processo sociocultural e de uma nova construção étnica brasileira RIBEIRO 1996 p 132133 257265 447455 mas como sendo possuidor de uma alma mestiça tigrada miticamente plural Por fim importa realçar a importância das figuras míticas que constituem o imaginário mítico brasileiro e que foram estudadas particularmente por Luís da Câmara Cascudo nas suas obras dedicadas ao folclore e aos mitos brasileiros 1954 1982 21 Do Mito da Idade de Ouro ao País da Cocanha O Mito da Idade de Ouro aurea aetas aurea saecula tempus aureum Hesíodo 2001 versos 9093 e 109120 Ovídio 1928 versos 9011011 associado também às Ilhas Afortunadas às Ilhas dos Bemaventurados ao Jardim das Hespérides à Árcadia aos Campos Elísios ao País da Cocanha e ao Jardim do Éden é um mito universal que traduz bem as aspirações profundas da humanidade quando ela procura idealizar uma vida coletiva bemaventurada e pacífica WUNENBURGER 2002 p 26 25 27 28 Salientamos que os mitologemas12 ou temas fundamentais que o constituem são fundamentalmente três a saber os da paz da abundância e da longevidade este mito representa uma época em que a humanidade vivia sem artifícios sem invenções técnicas mas também sem instituições sem mediação das leis numa espécie de estado de natureza oposto à cultura WUNENBURGER 2002 p 2728 A visão dos primeiros navegantes de quinhentos quando do primeiro encontro com os indígenas era como se estes fossem uma humanidade edênica antes da sua expulsão do paraíso terrestre Para os índios que ali estavam nus na praia o mundo era um luxo de se viver tão rico de aves de peixes de raízes de frutos de flores de sementes que podia dar as alegrias de caçar de pescar de plantar e colher a quanta gente aqui viesse ter na sua concepção sábia e singela a vida era dádiva de deuses bons RIBEIRO 1996 p 45 Também são os mitologemas atrás mencionados que caracterizam o país imaginário da Cocanha onde reina a abundância a paz a concórdia e a justiça WUNENBURGER 2002 p 22 29 GUSDORF 2005 p 1321 2734 POIRIER 1996 Neste contexto pensamos não ser forçado identificar miticamente o Brasil com o país imaginário da Cocanha como aquele país lembrando aqui a pintura de Peter Bruegel 1567 em que a mãe terra é fecunda e rica em águas doces e em peixes uma terra que produz abundantemente e sem esforço os alimentos que humanos e animais carecem permitindo aos índios alimentaremse sem esforço dada a prodigalidade da natureza cujas colheitas generosas permitiam que o indígena vivesse sem angústia e sem o desejo destrutivo da cobiça pelas riquezas o trabalho é desconhecido nos moldes que os descobridorescolonos portugueses o praticam assim como desconhecia qualquer tipo de exploração e de violência racial o homem tradicional leiase o índio do Brasil de quinhentos vivia em condições climáticas ideais e em perfeita harmonia com todas as formas de vida homemanimalplanta a vida para os índios antes do achamento do Brasil era uma tranquila fruição da existência num mundo dadivoso e numa sociedade solidária RIBEIRO 1996 p 47 o homem tradicional quase que androgínico13 do Brasil de quinhentos não conhecia a doença RIBEIRO 1996 p 4647 nem as vicissitudes da usura do tempo e apesar de se guerrear em lutas intertribais vivia ainda num clima de aparente tranquilidade Claro que tinham suas lutas suas guerras Mas todas concatenadas como prélios em que se exerciam valentes RIBEIRO 1996 p 34 47 Numa palavra o País da Cocanha leiase a terra brasileira antes da descoberta e consequente colonização vivia numa primavera eterna a expressão é de Ovídio e os seus rios eram de leite de néctar e o mel abundante quando comparado com o depois da descoberta colonização e exploração forçadas que se lhe seguiram abençoadas pelo flagelo da pregação missionária da Contrarreforma principalmente pela mão dos próprios jesuítas seguidos dos franciscanos e dos carmelitas envoltos numa atmosfera messiânica e apocalíptica influenciada pela doutrina de Joaquim de Fiore RIBEIRO 1996 p 5863 DURAND 1996b p 183 DESROCHE 2010 DELUMEAU 1997 p 710414 22 O Mito de Prometeu sob o signo do progresso O outro mito diretor por nós atrás mencionado é o de Prometeu15 que na leitura à americana feita por Gilbert Durand aparece constituído dos seguintes mitologemas natureza titanesca desobediência aos deuses castigos pai dos homens benfeitor da humanidade liberdade generosidade heroica e imortalidade Na base destes mitologemas Gilbert Durand salienta que este mito define sempre uma ideologia racionalista humanista progressista cientista e algumas vezes socialista 1996 p 91 daí que possamos afirmar que o mito prometeico representa um ideal de uma humanidade senhora do seu destino senhora da natureza e guia suprema do devir muito crente no par técnicaciência como condição de progresso e de aperfeiçoamento da espécie humana Por detrás deste mito escondemse as expectativas milenaristas que à medida que se laicizaram foramse travestindo na ideologia do progressoanunciadora por sua vez de uma nova Idade de Ouro já metamorfoseada em Nova Jerusalém Celeste TAGUIEFF 2004 cidade luminosa anunciadora de um amanhã radioso e de uma nova humanidade ou seja de uma humanidade transfigurada mais feliz a ideia de Felicidade e mais perfeita a ideia de Perfectibilidade ilimitada sob a égide da ciência e da técnica que os descobridores de quinhentos e mais tarde os colonos representavam Desde o achamento descoberta ou invasão brasileira até à independência a tecnologia nas suas mais diversas facetas assumiu sempre um lugar privilegiado por parte dos núcleos coloniais brasileiros que se ocupavam da vida econômica agrário mercantil nas suas diferentes fases de produção da canadeaçúcar passando pela extração mineira de ouro e de diamantes pelo ciclo da borracha e do café além da criação de gado RIBEIRO 1996 p 7475 3 Os mitologemas da alma imaginal brasileira A nossa tarefa de inventariação dos mitologemas da alma brasileira encontrase facilitada porque Gilbert Durand escreveu uma conferência intitulada justamente Lointain Atlantique et prochain tellurique imaginaire lusitanien et imaginaire brésilien 1996a p 181187 na qual oferece uma reflexão aprofundada e estimulante do imaginário telúrico brasileiro Na sua perspectiva conseguimos inventariar explicitamente os mitologemas da fecundidadefeminilidadematriarcalidade e do ouro indiretamente selecionamos os mitologemas da masculinidadepatriarcalidade e do homem novo que daremos uma particular ênfase 31 Mitologema da fecundidade sob o signo da feminilidade matriarcalismo Andrés OrtizOsés Anima Jung A natureza imensa do Brasil bem como a sua fecundidade agrícola piscícola e cinegética é de tal modo imponente e transbordante que não pode deixar de ser simbolizada pela Terra Mater ou Tellus Mater16 ELIADE 2008 p 192233 que por sua vez está intimamente ligada à feminilidade como aliás o realça Gilbert Durand Imaginário da terra e quem diz terra diz feminilidade Inicialmente pura constelação imaginária em que a fecundidade agrícola a fecundidade fluvial a fecundidade florestal se conjugam com o ventre mineiro do Eldorado 1996b p 183184 É de notar que as tribos encontradas pelos lusitanos ao longo do litoral brasileiro eram principalmente tribos de tronco tupi que tinham já ultrapassado o estádio préagrícola daqueles indígenas que dependiam da generosidade da natureza tropical para se alimentarem A agricultura lhes assegurava aos índios da matriz Tupi fartura alimentar durante todo o ano e uma grande variedade de matériasprimas condimentos venenos e estimulantes RIBEIRO 1996 p 32 Não esquecendo que aos alimentos cultivados simbolizados pela mandioca e pelo caju muito abundantes os indígenas procuravam instalarse em lugares potencialmente ricos em caça e pesca Feita esta obervação importa igualmente salientar que quando Pedro Álvares Cabral desembarcou na então Ilha de Vera Cruz 1500 constatou que a natureza luxuriante e exótica de Vera Cruz era fértil e generosa TAVARES PEREIRA 2000 p 40 e 42 Como se depreende quer a fecundidade polimórfica da natureza quer a feminilidade se conjugam para tornar a alma imaginal brasileira mais Anima JUNG 1988 p 6185 nas suas intenções profundas ELIADE 1992 p 71 73 na medida em que o inconsciente coletivo brasileiro abriga a numinosidade escondida não figurativa da feminilidade brasileira nas palavras de Gilbert Durand 1996a p 186187 ELIADE 1992 p 7172 O tutelar que inclui a figura da mãe de família tende a manifestarse também no culto igualmente sentimental e místico da Mãe identificado pelo brasileiro com imagens de pessoas ou instituições protetoras Maria Mãe de Deus e Senhora dos Homens a Igreja a madrinha a mãe figuras que frequentemente intervêm na vida política ou administrativa do país para protegerem a seu modo filhos afilhados e genros De maternalismo ou maternismo mostrase na verdade impregnado quase todo brasileiro de formação patriarcal ou tutelar Era como se no extremo amor à mãe ou à madrinha ou à mãepreta o menino e o próprio adolescente se refugiassem do temor excessivo ao pai ao patriarca ao velho senhor às vezes sádico de escravos de mulheres e de meninos FREYRE 1º tomo sd p 49 32 Mitologema da masculinidade sob o signo da ordem patriarcalismo etnocentrista Andrés OrtizOsés Animus Jung A sociedade colonial é fisiologicamente patriarcal etnocentrista cuja Anima se encontra ferozmente recalcada nas profundezas da sua psique coletiva A economia é predominantemente agroindustrial e dominada pela monocultura açucareira RIBEIRO 1996 p 274306 cafeeira RIBEIRO p 393407 extrativista do ouro depois de 1700 RIBEIRO 1996 p 372382 e a cultura da borracha RIBEIRO 1996 p 323330 sem contudo esquecer a crescente importância das pastagens para a criação do gado RIBEIRO 1996 p 339554 da exploração da floresta mesmo a cultura do algodão que só realmente se desenvolveu no período do Império 18221889 A este modelo econômico corresponde um sistema social classista marcado pelo poder econômico pela ordenação oligárquica pela cor pelo preconceito e pela distância social entre o pobre e o rico e a discriminação dos negros mulatos e índios muito especialmente a discriminação dos negros RIBEIRO 1996 p 75 208227 Ambos o coronel fazendeiro e o cabra representam os produtos humanos naturais e necessários de uma ordem que brilha no fazendeiro como a sua expressão mais nobre e se degrada no lavrador como o seu dejeto produzido socialmente para trabalhar como enxadeiro apenas aspirando a ascender a capataz na usina a peão na estância ou a cabra valente no sertão RIBEIRO 1996 p 218 A caraterística de base deste tipo de mitologema é a obsessão pela ordem política pela rigidez e pela estratificação social representadas pelo proprietário do engenho açucareiro do Brasil crioulo17 que encarnava o patronato oligárquico RIBEIRO 1996 p 277279 208227 A figura do senhor de engenho qual pater familias RIBEIRO 1996 p 278279 símbolo de uma masculinidade viril e patriarcal18 cujo ethos se mantém ora patente ora latente na sociedade brasileira até os dias de hoje FREYRE sd 1990 O patriarcal tende a prolongarse no paternal no paternalista no culto sentimental ou místico do pai ainda identificado entre nós com as imagens de homem protetor de homem providencial de homem necessário ao governo geral da sociedade FREYRE 1º tomo sd p 49 A sociedade tradicional brasileira tomou como modelo esta matriz estrutural assente na dialética senhor de engenhoescravo índio ou negro e da empresa agromercantil RIBEIRO 1996 p 283 que afirmava a natureza sacrossanta da ordem social e a inviolabilidade do direito à propriedade que incluía os escravos O senhor de engenho detinha o poder econômicosocial sobre os demais a ordem açucocrática era patriarcal rígida hierarquicamente e onde a família senhorial desempenhava também um papel social não despiciendo particularmente os filhos varões do senhor de engenho Diante dele se curvavam submissos o clero e a administração reinol integrados todos num sistema único que regia a ordem econômica política religiosa e moral Nesse sentido constituía uma oligarquia que operava com a cúpula patronal da estrutura de poder da sociedade colonial No seu domínio o senhor de engenho era amo e o pai de cuja vontade e benevolência dependiam todos já que nenhuma autoridade política ou religiosa existia que não fosse influenciada por ele A senhorialidade do patronato açucareiro lembra em muitos aspectos a da aristocracia feudal pelos poderes equivalentes que alcança sobre a população que vivia em seus domínios pelo exercício da judicatura e pela centralização pessoal do mando RIBEIRO 1996 p 284285 e 289 33 Mitologema de ouro A importância que a procura senão mesmo corrida do ouro 17011780 RIBEIRO 1996 p 37219 seguida da mineração do diamante 1740 1828 teve no tempo colonial o seu apogeu no século XVIII personificado quer pela cidade de Ouro Preto outrora chamada de Vila Rica RIBEIRO 1996 p 152157 372377 quer pelo próprio estilo barroco de natureza rococó traduzido na e pela Igreja de São Francisco em Salvador 17131750 20 É um tipo de estilo que se oferece aos olhos do profano como um dos melhores exemplos da primeira época do estilo barroco brasileiro e como metáfora perfeita da simbólica do próprio ouro brilho e fulgor cintilante O ouro como símbolo da prosperidade material e brilhando como o sol aparece como uma das referências míticas pregnantes da alma imaginal do povo brasileiro porque o ouro tem um significado para além daquilo que é quer dizer mais do que aquilo que diz ele é um universal humano cujo significado múltiplo excede muitíssimo a mera realidade material Porque o homem não vive num mundo de coisas vive sim num mundo de valores e de símbolos GUSDORF 2005 p 21 E aqui encontramos a simbólica do ouro que tem a ver com a sua raridade e riqueza com o seu brilho e fulgor cintilante com o fato de ser inalterável logo dotado de um caráter de pureza e de genuinidade GUSDORF 2005 p 23 As terras de Minas Gerais Goiás e Mato Grosso eram tão ricas em ouro que graças às suas riquezas foram edificadas cidades magníficas e ricas de patrimônio secular e religioso exuberante e suntuoso o caso por exemplo de Ouro Preto particularmente este último com o seu estilo barroco é portanto uma civilização do ouro que nasce 4 Do mitologema do homo novus brasileiro o papel da educação remitologizadora Gilbert Durand no seu artigo Lointain Atlantique et prochain tellurique imaginaire lusitanien et imaginaire brésilien 1996b p 181187 escreveu uma frase que rotulamos de profética no tocante ao homo novus brasileiro quando diz A ascese indoeuropeia denuncia a dupla tentação da mulher e ouro O homo novus brasileiro não tem estes pruídos e aceita com avidez os eldorados e mulher múltipla DURAND 1996b p 185 Se há frases felizes que podiam ser escritas sobre o mitologema do homem novo brasileiro esta é seguramente uma delas porque se há coisas que este tipo de novo homem mais deseja é na verdade possuir riquezas acumulálas ostentálas Por outro lado é consumido pelo desejo feminino pelo prazer da sensualidade e pelos deleites sexuais o princípio de prazer diria Freud ou seja é consumido pelo desejo do eterno feminino travestido de índia negra mulata ou branca Contudo as facetas do homo novus brasileiro não se limitam ao culto do ter e do prazer embora estes aspectos sejam a expressão patente o sintoma diríamos de feridas simbólicas latentes como por exemplo as feridas da sua inferioridade ancestral e da sua orfandade arquetipal A nova sociedade brasileira procura sublimar pelo e no ter o sentimento de ninguendade que fala Darcy Ribeiro persistindo em esquecer que a sua pacificação e reconciliação com a sua alma imaginal passa antes pelo caminho do ser novamente aqui a lembrança de Erich Fromm Para o trilhar é preciso como diz o poeta sevilhano António Machado andar fazêlo e isto significa que o homem novo deve tomar antes de tudo consciência dos seus sentimentos de inferioridade cultural e civilizacional e de orfandade arquetípica e mítica Estes sentimentos são conjuntamente ainda que não certamente exclusivos responsáveis pelas feridas simbólicas que a alma brasileira manifesta entre luzes que representam a esperança desse homem novo reencontrar as suas raízes indígena e africana perdidas e sombras que representam aquilo que Darcy Ribeiro designou de ninguendade 1996 p 453 ou seja aquele que não tem consciência de si corresponde nas palavras de Roberto Gambini à alma do anônimo ninguém 2004 p 8 Urge pois que o homem novo brasileiro abandone o estádio de ninguendade que o consome e que o sufoca ao ponto de ele não chegar mais a ter consciência de si ou seja dele ignorar a natureza da sua alma imaginal tigrada mestiça Para isso ele deve tomar consciência das correntes que o agrilhoam tão pesadamente a um passado de culpa de tumulto de escravidão de revoltas de ódios e de injustiças e correlativamente deixar de messianicamente esperar quer pelo salvador vindo de fora quer pela vinda de um rei salvador escondido DURAND 1989 p 241248 que o resgatarão da terra da ninguendade da multidão do zéninguém e que lhe ofertarão uma identidade quiçá ilusória como aquela que foi obtida com a independência do Brasil enquanto nação una e independente 1889 A recuperação da sua identidade é obra dele próprio Ele tem como tarefa primeira e última de fazerse de conhecerse na sua polifonia étnica ainda que transfigurada para ocupar o seu lugar na sua vida pessoal e coletiva O que pretendemos dizer é que o homem novo brasileiro para cumprirse e cumprir o seu destino individual e coletivo não deve esperar messianicamente por um qualquer salvador vindo de fora pela vinda de um rei salvador escondido ou por qualquer outro milagre deve sim olharse como sendo ele próprio o salvador de simesmo já não vindo de fora mas das entranhas profundas da Terra Mater amada porque continente de tantas civilizações imemoriais assim como também não deve esperar em vão pela vinda de um rei salvador que lhe leve novamente de volta ao país perdido da Cocanha ao prestígio das origens Mircea Eliade em que o mais belo era dar que receber RIBEIRO 1996 p 42 Deve enquanto salvador vindo de dentro ser obreiro da alma imaginal brasileira como alma tigrada espelho portanto de homem novo universal mais fratrial21 e mais reconciliado eudaimoniamente com a sua AnimaAnimus graças a uma educação humanista não iconoclasta e remitologizadora ORTIZOSÉS 1994 p 309312 ou seja por uma educação valorizadora simultaneamente de um novo humanismo ELIADE 1991 p 1732 e do papel formativo que os mitos os mitologemas as figuras míticas e os símbolos assumem no imaginário social e que desempenham na alma imaginal de determinada cultura uma função remitologizadora Numa palavra a educação remitologizadora tem como uma das tarefas principais redescobrir os mitos e símbolos que habitam a alma imaginal de uma determinada cultura neste caso concreto a brasileira É portanto pela iniciação que o homo novus brasileiro pode aceder à pluralidade tigrada da sua alma imaginal adquirir uma sensibilidade mítica que o faça entender que essa alma encerra em si uma novidade criativa de novas possibilidades irrigadas por correntes mitogênicas ou tradições míticas tão diferentes a mitologia ameríndia a mitologia africana e a mitologia grecoromana É pois um conjunto de mitologias milenar que lhe confere simultaneamente uma vitalidade instintivamente transformadora e a capacidade de produzir um potente antídoto para curar a alma brasileira da sua mutilação para parafrasearmos aqui o título de Dulce Helena Briza 2006 E é por esse mesmo antídoto uma espécie de elixir salvífico até mesmo do Santo Graal com a riqueza simbólica que lhe é milenarmente atribuída DURAND 2000 p 123171 que o Brasil possa de novo se conciliar com os seus daimones míticos e se torne assim para jogarmos aqui com a máxima célebre de Pascal o cosmos do homem verdadeiro e total Referências ARAÚJO AF O homem novo no discurso pedagógico de João de Barros Ensaio de mitanálise e de mitocrítica em educação sl UMIEPCeep 1997 BAUZA HF El imaginario clásico Edad de oro utopia y arcadia Santiago de Compostela Universidad 1993 BRIZA DHR A mutilação da alma brasileira Um estudo arquetípico São Paulo Vetor 2006 Psicoterapia e a mutilação da alma brasileira Desafios da prática O paciente e o continente São Paulo Lector 2004 p 8590 Anais do III Congresso LatinoAmericano de Psicologia Junguiana CASCUDO LC Geografia dos mitos brasileiros Rio de Janeiro José Olympio 1982 Dicionário do Folclore Brasileiro Rio de Janeiro MECInstituto Nacional do Livro 1954 COMTE A Catecismo positivista ou exposição sumária da religião universal de onze colóquios sistemáticos entre uma mulher e um sacerdote da humanidade O amor por princípio a ordem por base o progresso por finalidade MemMartins Publicações Europa América sd Trad de Fernando Melro CORBIN H Corps spirituel et terre celeste de LIran Mazdéen à LIran Shîite 2 ed Paris BuchetChastel 1979 LImagination creatrice dans le Soufisme DIbn Arabî Paris Flammarion 1976 Mundus imaginalis ou Limaginaire et limaginal Cahiers Internationaux de Symbolisme n 6 1964 p 326 CUNHA E Os sertões Campanha de Canudos Lisboa Livros do Brasil sd DELUMEAU J Mil anos de felicidade Uma história do paraíso Trad de Augusto Joaquim Lisboa Terramar 1997 DESROCHE H Dieux dHommes Dictionnaire des Messianismes et des Millénarismes du 1er siècle à nos jours Paris Berg International 2010 DUCHEMIN J Prométhée Histoire du mythe de ses origines orientales à ses incarnations modernes Paris Les Belles Lettres 2000 DURAND G SUN C Mythe themes et variations Paris Desclée de Brouwer 2000 Redondances mythiques et renaissances historiques In CHAUVIN D Champs de limaginaire Textes réunis Grenoble Ellug 1996a p 169179 Lointain Atlantique et prochain tellurique imaginaire lusitanien et imaginaire brésilien In CHAUVIN D Champs de limaginaire Textes réunis Grenoble Ellug 1996b p 181187 Introduction à la Mythodologie Mythes et sociétés Paris Albin Michel 1996c Les structures anthropologiques de limaginaire Introduction à larchétypologie générale 11 ed Paris Dunod 1992 Oração do Prof Gilbert Durand Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas 3 1989 p 238255 The Imaginal In ELIADE M ed chefe The Encyclopedia of Religion vol 12 1987 p 109115 Nova York Macmillan Mito e sociedade A mitanálise e a sociologia das profundezas Lisboa A Regra do Jogo 1983 Trad de Nuno Júdice Mito símbolo e mitodologia Lisboa Presença 1982 Trad de Hélder Godinho e Vítor Jabouille Lâme tigree Les pluriels de psyché Paris DenoëlGonthier 1980 ELIADE M Initiation rites sociétés secrètes Paris Gallimard 2012 Aspects du mythe Paris Gallimard 2011 Mythes rêves et mystères Paris Gallimard 2008 O sagrado e o profano São Paulo Martins Fontes 1992 Trad de Rogério Fernandes La nostalgie des origines Paris Gallimard 1991 Trad de Henry Pernet Tratado de história das religiões Lisboa Cosmos 1977 Trad de Natália Antunes e Fernando Tomaz FLUSSER V Fenomenologia do brasileiro Em busca de um novo homem Rio de Janeiro Uerj 1998 Org de Gustavo Bernardo Disponível em httptextosdevilemflusserblogspotcom200810fenomenologiado brasileiroihtml Acesso em 13072014 A numeração das páginas é da nossa responsabilidade FREYRE G Ordem e Progresso22 4 ed Rio de Janeiro Record 1990 Sobrados e mucambos Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano 1º e 2º tomos Lisboa Livros do Brasil sd Casagrande Senzala Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal Lisboa Livros do Brasil sd GAMBINI R A alma ancestral do Brasil 2004 p 113 Disponível em httppsiquejungblogspotpt200410almaancestraldobrasilhtml Acesso em 19022014 O espelho índio Os jesuítas e a destruição da alma indígena Rio de Janeiro Espaço e Tempo 1988 GARAGALZA L Hermenêutica simbólica In ORTIZOSÉS A LANCEROS P org Diccionario de Hermenéutica 4 ed Bilbao Universidad de Deusto 2004 p 197200 GUATTARI F As três ecologias 3 ed Campinas Papirus 1991 Trad de Maria Cristina F Bittencourt GUSDORF G Mythe et métaphysique Introduction à la philosophie Paris CNRS 2012 Reflexões sobre a Idade de Ouro Tradição da Idade de Ouro no Ocidente In SIMÕES MB org Os templários o Espírito Santo e a Idade de Ouro Lisboa Ésquilo p 1343 Trad de Rosário Morais da Silva HILLMAN J Le mythe de la psychanalyse Paris Imago 1977 Trad de Philippe Mikriammos HÉSIODE Les travaux et les Jours In HÉSIODE Théogonie et autres poèmes suivi des hymnes homériques Paris Gallimard 2001 p 95144 Trad de JeanLouis Backès HOLLIS J Mitologemas Encarnações do mundo visível São Paulo Paulus 2005 Trad de Gustavo Gersheim JUNG CG Mysterium conjunctionis Études sur la séparation et la réunion des opposés psychiques dans lalchimie Tomo 1 Paris Albin Michel 1992 Trad de Étienne Perrot Dialectique du moi et de linconscient Paris Gallimard 1991a Trad de Roland Cahen Types Psychologiques 7 ed Genebra Librairie de lUniversité Georg 1991b Trad de Y Le Lay Problèmes de lâme moderne Paris BuchetChastel 1991c Trad de Yves le Lay Les racines de la conscience Études sur larchetype Paris BuchetChastel 1988 Trad de Yves le Lay JÚNIOR HF Cocanha várias faces de uma utopia Cotia Ateliê 1998 KERÉNYI C Prometheus archetypal image of human existence Princeton Princeton University Press 1997 De lorigine et du fondement de la mythologie In JUNG CG KERÉNYI C Introduction à lessence de la mythologie Paris Payot 1974 p 1141 Trad de HE Del Medico LINS I História do positivismo no Brasil 2 ed São Paulo Nacional 1967 NEUMANN E La grande madre Fenomenologia delle configurazioni femminili dellinconscio Roma AstrolabioUbaldini 1981 Trad de Antonio Vitolo ORTIZOSÉS A Hermenéutica simbólica In KERÉNYI K NEUMANN E SCHOLEM G HILLMAN J Arquetipos y símbolos colectivos Círculo Eranos I Barcelona Anthropos 1994 p 223315 Las claves simbólicas de nuestra cultura matriarcalismo patriarcalismo fratriarcalismo Barcelona Anthropos 1993 OVIDE Les metamorphoses Tome I IV Paris Les Belles Lettres 1928 Trad de Georges Lafaye POIRIER J org LÂge dOr Dijon Éditions Universitaires 1996 RIBEIRO D O povo brasileiro A formação e o sentido do Brasil São Paulo Companhia das Letras 1996 SÉCHAN L Le Mythe de Prométhée Paris PUF 1951 SOARES MP O positivismo no Brasil 200 anos de Augusto Comte Porto Alegre AGE 1998 STRAUSS CL Anthropologie Structurale Paris Plon 1958 TAGUIEFF PA Le sens du progress Une approche historique et philosophique Paris Flammarion TROUSSON R Le thème de Prométhée dans la littérature européenne 2 vols 2 ed Genève Librairie Droz 1976 WHITMONT EC A busca do símbolo Conceitos básicos de Psicologia Analítica 10 ed São Paulo Cultrix 1995 Trad de Eliane F Pereira e Kátia M Orberg WUNENBURGER JJ Une utopie de la raison Essai sur la politique moderne Paris La Table Ronde 2002 Obteve o título de Doutora em Educação pela Universidade de São PauloUSP Professora associada do Departamento Sociedade Conhecimento e EducaçãoSSE da Faculdade de Educação da Universidade Federal FluminenseUFF e pesquisadora integrada ao Programa de Pósgraduação em EducaçãoUFF Os domínios de suas investigações são os seguintes Antropologia das Organizações e da Educação Epistemologia da Complexidade Sociologia do Cotidiano e Antropologia do Imaginário Obteve o seu doutoramento em Educação na área de especialização em Filosofia da Educação no ano de 1994 É professor catedrático do Instituto de Educação da Universidade do Minho Braga Portugal e professorvisitante do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo É autor de várias obras e artigos em Portugal e no estrangeiro especialmente no Brasil e na França nos domínios de investigação da Filosofia do Imaginário Educacional Filosofia da Educação e da História das Ideias Pedagógicas Email institucional afaraujoieuminhopt 1 Preferimos denominar a alma mítica brasileira de alma imaginal por esta expressão ser simultaneamente psicológica JUNG 1991a p 1138 JUNG 1991b p 405411 HILLMAN 1977 p 4148 159165 HILLMAN 1982 p 125168 antropológica DURAND 1980 1987 p 109115 e filosófica CORBIN 1979 p 719 1964 p 326 1976 p 167189 logo menos conotada com a clássica noção de alma ancestral usada nomeadamente por Roberto Gambini 2004 p 113 o que nos permite desde logo uma liberdade de interpretação e de leitura não despicienda 2 James Hollis na sua obra Mitologemas Encarnações do mundo visível 2005 p 10 diz o seguinte Um mitologema é um elemento ou tema isolado em qualquer mito Os temas da ascensão ou declínio são mitologemas A busca do herói reúne dois mitologemas o herói e a busca cada um dos quais possui uma linhagem e um significado separados e ao mesmo tempo engrandecem um ao outro Por seu lado Edward C Whitmont na Busca do símbolo 1995 p 66 Chamamos a essas imagens de mitológicas porque estamos familiarizados com elas através de seu aparecimento em mitos histórias contos de fadas e formas religiosas tradicionais de todos os tempos lugares e épocas e nos referimos a esses temas recorrentes como mitologemas Eles aparecem em sonhos e fantasias de homens contemporâneos 3 Karl Kerényi a este respeito escreve os mitologemas representam o conjunto de elementos antigos transmitidos pela tradição tratando de deuses e de seres divinos de combates de heróis e de descidas aos infernos elementos contidos nas narrativas conhecidas mas que não excluem no entanto toda a modelagem mais aprofundada 1974 p 13 4 Sobre a questão do retorno do mito cf DURAND G Introduction à la Mythodologie cap 1 Le retour du mythe 18602100 p 1544 5 Quase que escreveríamos aqui do seu inconsciente coletivo JUNG 1991a p 2346 1991b p 448 da sua Memoria coletiva para lembrar James Hillman 1977 p 142 Sa redécouverte de la memoria comme inconsciente collectif rendit possible une distinction entre linconscience aux sens étroits léthargie transe coma routine et oubli et linconscient dans le sens ancien de memoria 6 Cf as designações da terra brasileira desde a descoberta por Pedro Álvares Cabral Ilha de Vera Cruz 1500 Terra Nova 1501 Terra de Vera Cruz ou do Brasil 1503 Terra de Santa Cruz 1503 Terra do Paubrasil 1505 Ilha da Cruz 1505 Terra do Brasil 1505 Terra Santa Cruz do Brasil 1527 e finalmente nos limites do século XVI foi denominada Brasil cuja designação permanece até os dias de hoje 7 Na tópica sociocultural durandiana DURAND 1996c p 131156 tanto a feminilidade como a Terra Mãe que correspondem aos arquétipos da Anima e da Mãe na psicologia junguiana encontram se recalcadas no chamado id social com consequências nefastas mutiladas e sombrias no plano do eu social ou seja da consciência social GAMBINI 1988 2004 p 115 1988 BRIZA 2004 p 85 90 2006 8 Da mitanálise que fizemos da história do Brasil colonial póscolonial e republicano recenseamos dois grandes mitos diretores o Mito da Idade de Ouro e o Mito de Prometeu Contudo não é de todo nossa intenção reduzir a configuração mítica da bacia semântica históricosocial brasileira a estes dois mitos que embora considerados diretores não pretendem de modo algum ser exclusivos Certamente que outros haveriam que ser igualmente considerados e analisados particularmente aqueles ligados ao messianismo que sacode a alma imaginal brasileira e que por sua vez reenviam para o cenário milenarista com os seus mitos de origem e escatológicos 9 Incluindo aqui a importância míticosimbólica da Terra Mãe muito ligada à fecundidade humana e agrária e o País da Cocanha que nós identificamos com o Brasil das descobertas 10 Estes mitologemas não serão desenvolvidos aqui individualmente devido aos constrangimentos editoriais do presente estudo de os termos juntado ao Mito de Prometeu no que concerne ao mitologema do progresso enquanto colocamos o mitologema da ordem do lado do mitologema da masculinidadepatriarcalismo 11 Da nossa parte contentarnosemos na linha de Gilbert Durand de assinalar os cinco mitologemas ainda que G Durand fale de mitemas que o constituem O Mito da Idade de Ouro retrata um mundo imaginário ligado à tradição grega e muito próximo do Paraíso da tradição judaicocristã A bem dizer a Idade de Ouro e o Paraíso descrito nas primeiras linhas da Bíblia são duas maneiras de representar uma existência ideal feliz e perfeita que foram desenvolvidas nas duas tradições de pensamento e de civilização diferentes paganismo grecolatino e biblismo judaico e cristão WUNENBURGER 2002 p 22 Existe uma extensa bibliografia sobre este mito e outros que lhe estão associados Cf p ex os trabalhos de Hilário Franco Júnior Cocanha Várias faces de uma utopia 1998 de Hugo Francisco Bauza El imaginario clássico edad de oro utopia y arcadia 1993 entre outros 12 Gilbert Durand usa o conceito de mitemas em número de cinco para caracterizar as significações do Mito da Idade de Ouro DURAND 2000 p 248 WUNENBURGER 2002 p 26 13 O descobridor face a esta quase androginia das várias tribos índias encarnava a serpente no paraíso do homem inocente animado de boas intenções e de projetos e desígnios Eram os índios a seu modo inocentes confiantes e capacitados como gente alguma jamais o foi para a convivência solidária RIBEIRO 1996 p 45 14 De acordo com Mircea Eliade a colonização das duas Américas começou sob o signo escatológico on croyait que les temps étaient venus de renouveler le monde chrétien et le vrai renouveau était le retour au Paradis terrestre ou tout au moins le recommencement de lHistoire sacrée la réitération des événements prodigieux dont parlait la Bible 1991 p 153 15 Para um desenvolvimento deste mito em que Prometeu aparece como um protótipo do heroi masculino e do futuroprevisto e planeado vejase entre outras as seguintes obras TROUSSON R Le thème de Prométhée dans la littérature européenne 1976 KÉRENYI C Prometheus archetypal image of human existence 1997 SÉCHAN L Le mythe de Prométhée 1951 DUCHEMIN J Prométhée Histoire du mythe de ses origines orientales à ses incarnations modernes 2000 16 Terra Mãe que tem no arquétipo da Grande Mãe a sua correspondência psicológica JUNG 1988 p 87131 NEUMANN 1981 assim como tem nas deusas Gaia e Reia a sua correspondência mitológica na tradição grega 17 Diznos Darcy Ribeiro que a cultura crioula é por isso a expressão na conduta e nos costumes dos imperativos da economia monocultora destinada à produção de açúcar RIBEIRO 1996 p 288 18 Antes de abalançarmonos a descrever a dominância patriarcal nesse tipo de exploração não podemos deixar de chamar também a atenção entre outros exemplos possíveis para a relação rigidamente hierarquizada entre criador e vaqueiro na cultura sertaneja Enquanto dono e senhor o proprietário tinha autoridade indiscutida sobre os bens e às vezes pretendia têla também sobre as vidas e frequentemente sobre as mulheres que lhe apetecessem RIBEIRO 1996 p 343 CUNHA sd p 9698 19 A este respeito afirma Georges Gusdorf O fenômeno da corrida ao ouro delírio coletivo mobilizando massas fanatizadas em direção aos lugares onde se manifestou a presença do metalrei não passa de um aspecto entre muitos outros desta procura do absoluto da qual o projecto alquímico da grande obra figura como uma das formas mais tenazes 2005 p 24 20 Recordamos que a riqueza derivada da economia açucareira esteve na base da edificação das cidades de Recife Olinda e das do Estado da Bahia e também do seu patrimônio religioso nomeadamente das suas igrejas e conventos Mais tarde devido ao contributo financeiro proveniente da mineração essas cidades e seu respectivo patrimônio sofreram um impulso considerável 21 Este conceito é da autoria de Andrés OrtizOsés 1993 p 1722 que o usa hermesianamente quando fala das categorias matriarcal e patriarcal é um conceito de ligação que recupera em si as características tanto do inframundo ctônico e matriarcal Dioniso por exemplo tanto do supramundo celestial e patriarcal Apolo 22 Dada a extensão do subtítulo desta obra de Gilberto Freyre optamos por colocála em nota Processo de desintegração das sociedades patriarcal e semipatriarcal no Brasil sob o regime de trabalho livre aspectos de um quase meio século de transição do trabalho escravo para o trabalho livre e da monarquia para a república 3 Luzes e sombra da alma brasileira Um país em busca de identidade Walter Boechat A história da África é importante para nós brasileiros porque ajuda a explicarnos nos faz melhor compreender o grande continente que fica em nossa fronteira leste e de onde proveio quase a metade de nossos antepassados Ainda que disso não tenhamos consciência o obá de Benin ou o angola quiluanje estão mais próximos de nós do que os antigos reis de França COSTA E SILVA A Um rio chamado atlântico p 240 A comissão científica do XXII Congresso da Associação Junguiana do Brasil chegou ao tema do Congresso desse ano após pensar o duplo aspecto da cultura brasileira suas urgências e intersecções do indivíduo e com a cultura Na sociedade da comunicação não podemos mais pensar o indivíduo como um ser isolado mas emergente dentro de um contexto de relações sociais e culturais Indivíduo nação povo e cultura constituem um tecido complexo de relações e interpenetrações potencializado pelas comunicações trocas comerciais e facilidade de interpenetração entre culturas Nesse momento de grande abertura para a informação símbolos e valores de culturas as mais diversas nas artes e no comércio surge um movimento de reflexão uma carência de autorreconhecimento e descoberta Quem somos nós Como se faz o nosso processo cultural A questão da identidade cultural passa a ter uma grande urgência A psicologia passa a ter um papel fundamental nessa busca identitária onde indivíduo cultura e trocas sociais formam um todo dinâmico em interação Psicologia junguiana e o estudo da alma brasileira A alma brasileira está em processo dinâmico de formação não é um todo acabado Mais de sessenta povos migraram para o território do Brasil desde a chegada dos portugueses e constituem uma sociedade eminentemente complexa multirracial de características únicas mesmo se comparadas aos nossos irmãos latinoamericanos Por sua própria característica de processo único original uma reflexão sobre identidade brasileira tornase um grande desafio A psicologia de Jung pode contribuir em alguma medida nessa reflexão sobre a natureza da alma brasileira e suas questões Alguns poderão dizer oh estudar o Brasil é uma questão para sociólogos historiadores e economistas Os psicólogos do inconsciente terão pouco a contribuir sobre isso O que podemos dizer sobre isso é que em tempos do paradigma da complexidade desde as colocações de Thomas Khun sobre a crise de paradigma as ciências não podem mais ser pensadas de modo separado A alma brasileira em sua vasta complexidade só pode ser pensada de forma complexa com o recurso das diversas disciplinas que se interagem E a psicologia analítica terá muito a dizer sobre isso CG Jung em sua extensa obra teórica focou seus trabalhos em sua proposta fundamental do inconsciente coletivo de toda a humanidade os arquétipos e suas manifestações em mitos dos mais diversos povos Em diversas viagens realizadas a partir dos anos de 1920 esteve em povos tão distintos quanto as sociedades tribais na Costa do Marfim índios Pueblo do Novo México e templos xivaístas na Índia Em todos esses locais buscava um objetivo comum a observação da emergência espontânea do arquétipo através de imagens mitológicas da cultura local Essas pesquisas tiveram portanto um fundamento eminentemente cultural embora Jung não tenha formulado um modelo teórico para a psique cultural do povo estudado que é particular tendo suas particularidades próprias Em uma única obra Jung procura articular os diversos planos ou extratos da psique comparandoos aos extratos geológicos JUNG Notes on a Seminar given in 1925 conference 16 Figura 1 Fonte JACOBI J A psicologia de CG Jung Uma introdução às Obras Completas Petrópolis Vozes 2013 p 62 Diagrama XI Percebemos assim as diversas camadas da psique como I Nação isolada II e III Grupo nacional ex América Latina A Indivíduo B Família C Tribo D Nação E Grupo de povo Indivíduo latinoamericano p ex F Antepassados primitivos humanos G Antepassados animais H Força central Nessa que foi uma das importantes articulações de Jung entre o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo vemos as camadas de cultura e nação bem diferenciadas e associadas ao inconsciente coletivo da humanidade Jung voltaria pouco a esse tema entre relações entre inconsciente da cultura e inconsciente coletivo da humanidade como um todo Um dos poucos escritos em foco nessas relações foi no texto Wotan 1936 no qual lança mão do deus teutônico Wotan ou Odin o deus das tempestades do vento da profecia e dos campos de batalha para descrever os rápidos movimentos políticos sociais na Alemanha de então com a ascensão do nacionalsocialismo ao poder há apenas três anos antes em 1933 Diversos teóricos junguianos procuraram aprofundar as relações entre identidade individual e cultura Joseph Henderson desenvolveu o conceito de inconsciente cultural ie a camada do inconsciente coletivo pertencente a um povo país ou cultura determinados Esta é uma das referências teóricas importantes que procura dar conta do desafio da identidade cultural Vannoy Adams fala de estereótipos e imagens estereotípicas da cultura isto é valores e referencias que orientam o comportamento em determinado grupo social E finalmente Kimbles e Singer desenvolveram o conceito de complexo cultural importante articulação teórica para se compreender a estrutura social das culturas e a sua história A noção de complexo cultural é uma expansão do conceito original de Jung de complexo afetivo um núcleo de representações na psique do indivíduo cimentada por emoção para conceituar núcleos de conflito na psique social dos povos e grupos sociais geralmente fruto de traumas em sua história e conflitos identitários O presente trabalho abordará alguns complexos culturais no Brasil entre eles um complexo de inferioridade típico descrito por diversos autores nacionais e estrangeiros a carência de heróis e o trauma da escravidão As diversas referências teóricas citadas já demonstram uma preocupação com a aplicação da psicologia do inconsciente aos estudos sociais Essa aplicação a uma cultura multirracial e complexa como a nossa é da maior importância Identidade brasileira história e memória Para irmos de encontro à identidade cultural de nosso país sua história e sua memória são fundamentais Não será por acaso o aparecimento recente de diversos livros alguns bestsellers sobre a história do Brasil sob diversos ângulos não faltando mesmo o livro com o título curioso de O livro politicamente incorreto da história do Brasil Também o cinema brasileiro com sua recente expansão comercial contribuiu para esse resgate de memória necessário A intensidade de informação a proximidade íntima com outras culturas suas imagens questões e possibilidades são expostas pelos meios de comunicação a todo instante talvez provocando o movimento de reflexão sobre nossa própria identidade E com isso vem à tona um fato inquestionável há um desconhecimento quase total de nossa história somos um povo sem memória sem referências portanto em crise de identidade poderíamos dizer Isso nos leva a uma busca quase obsessiva de referenciais fora de nossa própria história É notório o valor exagerado atribuído a raízes familiares europeias e a pesquisa dessas raízes como identidade pessoal Esse processo revela um complexo cultural importante de nossa identidade que Nelson Rodrigues definiu de sua maneira muito particular como o complexo de viralatas do brasileiro A analista junguiana Denise Ramos escrevendo sobre a corrupção como complexo cultural no Brasil explora também a marca do sentimento de inferioridade do povo brasileiro Tudo o que é do chamado Primeiro Mundo é muito superior Preso a essa perspectiva o brasileiro tende a não olhar para seu próprio potencial criativo Esse marcante complexo de inferioridade é visto também por observadores de fora como o brasilianista norteamericano Thomas Skidmore antigo estudioso da alma brasileira O Brasil praticamente perdeu sua identidade brasileiros pensam que só os estrangeiros têm a solução O Brasil tem muitos recursos a autoestima deveria ser recuperada Passei quarenta anos estudando o Brasil principalmente essa questão de otimismo e pessimismo esse hábito de dizer que o Brasil é uma perda de tempo SKIDMORE apud RAMOS 2004 p 107 Como buscar a identidade brasileira em suas origens O dado básico de nossa identidade é a geografia a natureza tropical Alma e terra título poético de um dos livros de Jung são os elementos essenciais para pensarmos a identidade brasileira Nessa obra Jung cita uma crença dos aborígenes australianos de que o colonizador não consegue na verdade se apropriar da terra conquistada pois nela vivem espíritos ancestrais que reencarnariam nos recémnascidos Para Jung há uma grande verdade psicológica nisso a terra estranha assimila o conquistador JUNG 1927 103 No caso do nosso país a natureza luxuriante a selva quase interminável rios e montanhas constituem o fator elementar que atua como catalisador de diversas projeções arquetípicas do navegante que chegava à terra brasilis Com relação ao grande acontecimento cultural que foi o encontro de dois grandes grupos humanos o europeu e o das Américas temse em geral uma perspectiva bastante etnocêntrica desse encontro Mesmo nas culturas mais diferenciadas como os astecas no México e os incas no Peru há uma leitura de que o índio percebe o europeu de uma forma mitologizada como o reconhecimento de Hernán Cortez como deus asteca Quetzalcoatl a Serpente Emplumada Mas a maioria dos historiadores não menciona o fato de que também a visão da América pelo europeu foi permeada de projeções mitológicas Fantasias arquetípicas milenaristas dominavam a Europa ao final dos quatrocentos Essas fantasias entre elas a de que novos mundos poderiam ser descobertos naquele período de tempo de renovação alimentou o projeto dos descobrimentos Mitos diversos foram projetados pelos europeus nas terras novas a serem conquistadas a imagem mítica do Eldorado as misteriosas Amazonas as descrições fabulosas das terras do Preste João são apenas alguns desses mitos Portanto o processo de projeção mitológica ocorreu de ambos os lados Essa é uma tendência natural da psique o desconhecido irá atrair sempre a projeção mitológica em situações propícias Proponho portanto que abandonemos a perspectiva etnocêntrica de que só os ameríndios teriam seus deuses e sua mitologização e o colonizador uma perspectiva concreta e objetiva A grande mélange cultural que iria constituir a cultura brasileira estava tendo início e continua até hoje como um projeto inacabado A escravização do índio no processo colonial durou apenas no primeiro século sendo substituída pela mão de obra africana já a partir do século XVI Esse primeiro encontro de duas culturas a europeia e a americana aconteceu com grandes custos sacrifícios guerras e mortes O mecanismo de transmissão de doenças era totalmente desconhecido naturalmente não se tinha noção do vírus e bactérias Louis Pasteur só viria a fazer suas descobertas no século XIX A explicação pela transmissão das doenças era atribuída aos ventos malignos Desde a Antiguidade os ventos foram sempre personificados e associados a espíritos que influiriam nas pessoas e seus destinos Na Grécia Antiga o vento Bóros era o responsável pela fertilidade os Hiperboreanos os imortais habitariam a região dos Hiperboros Essa atribuição mágica aos ventos permanece até hoje mesmo na Europa na Suíça o vento quente que sopra do sul da região do Ticino o Föhn é tido como responsável por todas as doenças e malestares súbitos A palavra malária advém precisamente de malesares ares ruins pois a doença era tida como produzida por ventos ruins É conhecida a estória dos navegadores portugueses comandados por Martim Afonso de Sousa fundeados perto da Ilha Queimada Grande no litoral de São Paulo Tendo um vento quente soprado a partir da ilha os marinheiros atearam fogo a toda a ilha para se protegerem dos ventos malignos que advinham dela e poderiam contaminálos com doenças mortais NARLOCH 2013 Nesses inícios da colonização do Novo Mundo havia apenas uma vaga noção de que as doenças venéreas pudessem ser transmitidas pelo contato sexual Isso favoreceu que diversas doenças venéreas fossem levadas para a Europa e tornassem verdadeiras pragas nas cortes dos reis Assim como a Europa contaminou os primeiros habitantes das Américas com epidemias mortais de gripe dizimando grupos inteiros de indígenas também doenças de origem americana foram transportadas ao velho continente pelos primeiros navegadores Parece que esse foi um preço a pagar pelo reencontro desses dois grandes grupos humanos NARLOCH 2013 A busca das origens da identidade três mitos de origem O estudioso de psicologia brasileira e diplomata José Oswaldo de Meira Penna citando os trabalhos de Sérgio Buarque de Holanda organiza os mitos de origem brasileira como três principais o Mito do Paraíso Terrestre o Mito do Inferno Verde e o Mito do Eldorado MEIRA PENNA 1974 Trataremos de cada um destes mitos O homem medieval herdou da Antiguidade Clássica a crença homérica na Idade de Ouro original uma idade de perfeição perdida uma nostalgia dessas origens perdidas a serem resgatadas A mentalidade medieval expressou esse sentimento nostálgico de retorno às origens uterinas dos começos Com o poderoso movimento extrovertido do Renascimento esse movimento de retorno ao passado foi projetado para o futuro e tornado concreto ie as terras do Extremo Ocidente a serem descobertas passaram a ser a representação no aqui e agora do paraíso terrestre ideal O Mito do Paraíso antes no passado ideal da Idade de Ouro passa a ser projetado no futuro e é literalizado Sérgio Buarque de Holanda em sua obra Visão do paraíso trabalhou as fantasias mitológicas que antecederam a descoberta do Brasil pelos navegantes portugueses A ideia do paraíso terrestre dominou essas fantasias Entre as lendas de um paraíso terrestre nas terras do Extremo Ocidente uma chama particularmente a atenção a lenda irlandesa do Hy Brasil ou Bresail ilha paradisíaca de bemaventurança que existiria nos confins do Ocidente Essa lenda mitológica anterior à descoberta levanta dúvidas severas sobre a origem do nome do nosso país Sérgio Buarque de Holanda menciona os próprios relatos de Cristóvão Colombo aos reis católicos como permeados da visão do paraíso O navegante menciona que pretende explorar as terras paradisíacas ao norte do Rio Amazonas como uma parte do paraíso terrestre Para tal requisita aos reis de Espanha três naus perfeitamente equipadas Também Américo Vespúcio fala da inocência das índias nuas e das formas perfeitas dos índios como algo do domínio do paraíso terrenal A fantasia do paraíso terrestre domina o inconsciente cultural brasileiro e constela a poderosa imagem do arquétipo Grande Mãe a Senhora das Origens que Pero Vaz de Caminha já descrevia em sua tão citada carta do descobrimento em se querendo aproveitála tudo se dá A Grande Mãe senhora do prazer e das origens teria na economia nacional um equivalente o eterno país produtor de matériasprimas as commodities frutos da terra para outras nações que possam desenvolver produtos manufaturados A Grande Mãe constela no caráter nacional a figura do menino dependente aquele que não quer crescer que se torna dependente das benesses da Grande MãeEstado protetor com nomeações por apadrinhamento e não por merecimento Essa é uma das sombras importantes da alma brasileira o arquétipo do puer aeternus eternamente dependente de sua Grande Mãe Estado protetor Nossos descobridores ao adentrar o país na colonização jamais o teriam conseguido sem o auxílio dos índios aliados tais eram os perigos do inferno verde nosso segundo mito de origem listado por Meira Penna A densidade da floresta seus animais peçonhentos seus índios inimigos constituíam um obstáculo quase intransponível Essa densidade verde impenetrável teve sempre um caráter mítico Nosso folclore e lendas tanto de origem indígena como fruto de mesclagem de imagens africanas iria mostrar um dos símbolos universais mais marcantes da mãe devoradora em todos os tempos a serpente Ela irá aparecer sob a forma da Boiúna nome indígena que quer dizer a cobra grande um dos mitos mais significativos da região amazônica O maior de nossos folcloristas Câmara Cascudo diz da Boiúna que ela ao contrário de mitos serpentários de origem africana não gera cultos não tem também a natureza sedutora sexual daqueles mitos sua razão como origem da noite no princípio dos tempos é apenas destruir ameaçar pessoas e as devorar reduzindoas ao nada Seus olhos enquanto nada à superfície da água são como dois archotes iluminando a noite Produz enquanto se move um ruído aterrador Meira Penna cita outro sonho poderoso como único capaz de superar a letargia da busca do seio da Grande Mãe nas praias e a evitação do inferno verde e seus perigos a busca do ouro e diamantes Segundo a antiga lenda de origem indígena disseminada por toda a América Latina com diversas versões de acordo com o país haveria antiga nação cuja capital com muitos palácios alguns erigidos com pedras cravejadas de gemas outros possuíam tetos de ouro ali reinava um homem que se chamava El Dorado porque possuía um corpo com reflexos de ouro como se fora um céu salpicado de estrelas O país mítico do Eldorado foi procurado por espanhóis e ingleses inúmeras vezes em diversos países da América do Sul na Venezuela na Colômbia no Peru na região das Guianas e no estado brasileiro de Roraima O Mito do Eldorado tem um forte elemento alquímico Mas enquanto o ouro filosófico do alquimista medieval era buscado em suas retortas em seu laboratório sendo muitas vezes um ouro simbólico o ouro do Eldorado tem a mesma concretude e imediatez dos outros mitos de fundação no Novo Mundo ele deve ser achado no aqui e agora para enriquecimento imediato e conforto material Aurum nostrum non est aurum vulgi dizia o antigo ditado alquimista Essa afirmação certamente não se aplicaria ao ouro do Eldorado local do ouro material concreto agente causador da ambição e morte de muitos A busca de ouro e de esmeraldas foi o motor do fenômeno importante na construção da identidade brasileira as Bandeiras Sérgio Buarque de Holanda considerou as Bandeiras uma das raízes importantes da identidade brasileira BUARQUE DE HOLANDA 1995 p 101 Surge um personagem novo o Bandeirante tipo ambicioso e intrépido cujas expedições darão ao Brasil seu contorno atual pois irão mesmo ultrapassar as linhas do Tratado de Tordesilhas As expedições de Fernão Dias Paes Leme Raposo Tavares e outros não teriam sucesso em superar as incríveis dificuldades do território inexplorado do interior brasileiro não fosse a ajuda dos índios aliados Os relatos históricos falam de Bandeiras com um número bem maior de índios do que de brancos Além disso o elemento índio estava presente no próprio bandeirante sua tenacidade e resistência revelam o componente indígena em seu próprio sangue o elemento de mestiçagem tão manifesto em nossa constituição e tão típico da identidade brasileira desde suas origens Mestiçagem e identidade Darcy Ribeiro se alongou no papel formador dos mestiços na identidade brasileira RIBEIRO 1995 p 106111 O mameluco gerado pela união do português com o índio tinha incrível resistência física Percorria enormes distâncias e ajudava nas Bandeiras ao contínuo processo civilizatório A palavra mameluco é de origem árabe e designa os escravos tomados pelos senhores árabes de grupos vencidos Eram escravos tomados de seus pais pelos conquistadores e preparados para liderar e controlar outros escravos O termo foi aplicado aos brasilíndios mestiços pelos jesuítas horrorizados com a selvageria primitiva desses homens capazes de escravizar e capturar sua própria gente O mameluco é um exemplo clássico do primeiro estágio de miscigenação no Brasil o branco com o índio Em um segundo momento o elemento africano passará a ser integrado ao caráter nacional pelos inícios do tráfego negreiro ainda nos inícios do século XVII só vindo a terminar em 1895 tendo sido o Brasil o último país no hemisfério ocidental a eliminar a escravidão Isso faz da escravidão um tremendo complexo cultural para a identidade brasileira Como lembra Darcy Ribeiro Nenhum povo que passasse por isso o período da escravidão como sua rotina de vida através de séculos sairia dela sem ficar marcado indelevelmente Todos nós brasileiros somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados Todos nós brasileiros somos por igual a mão possessa que os supliciou A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal que também somos RIBEIRO 1995 p 120 O que Darcy Ribeiro afirma de um ponto de vista antropológico é também uma constatação importante do ponto de vista psicológico O que está sendo descrito aqui é um importante complexo cultural da psique brasileira as sequelas de um período de escravidão de mais de três séculos As imagens do feitor sádico e do escravo sofredor podem ser vistas como um importante estereótipo cultural brasileiro presente em nossa psique coletiva um dos principais responsáveis pelo nosso sistema de classes sociais extremamente estratificados Pari passu ao enorme sofrimento e ao processo de exploração do trabalho escravo o contínuo fluxo de africanos durante todo esse tempo veio a produzir uma intensíssima influência cultural Deuses comidas costumes variados linguagem constituem a riquíssima contribuição africana para a psique coletiva nacional Desde sua origem o Brasil se constituiu um país mestiço por natureza O predomínio de mestiços e negros na população em geral nos inícios do século XIX era bastante grande Sob um manto aparente de assimilação de diferenças e uma liberdade e convivência aparentemente integradas dos mais diversos grupos desenvolviase na cultura brasileira desde seus inícios um disfarçado racismo que denomino aqui racismo cordial Tomo emprestado esse termo de uma muito bemelaborada pesquisa do jornal Folha de S Paulo 1989 com o mesmo nome que procurou demonstrar a presença de racismo na sociedade brasileira Mesmo o grande Gilberto Freyre pode se enganar e ele se enganou quando afirmou que convivíamos no Brasil com uma democracia racial O que hoje se sabe é que o racismo brasileiro existe embora diferente do racismo anglosaxão típico sendo um racismo intimamente ligado às classes sociais A denominação que estou empregando de racismo cordial remete às noções de cordialidade definidas por Sérgio Buarque de Holanda De acordo com o autor de Raízes do Brasil Já se disse numa expressão feliz que a contribuição brasileira para a civilização será a cordialidade daremos ao mundo o homem cordial A lhanesa do trato a hospitalidade a generosidade virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam representam com efeito um traço definitivo do caráter do brasileiro Seria um engano supor que essas virtudes possam significar boas maneiras civilidade São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante BUARQUE DE HOLANDA 19361999 p 146ss Sérgio Buarque de Holanda diz mais adiante que a atitude de polidez consiste exatamente em uma tentativa de disfarçar as manifestações que seriam realmente espontâneas no homem cordial A espontaneidade aqui é convertida em uma fórmula A polidez tornase uma defesa perante a sociedade equivale a um disfarce que permite à pessoa manter suas sensibilidades e emoções intactas BUARQUE DE HOLANDA 19361999 p 147 Essa descrição de Sérgio Buarque de Holanda do homem cordial contida em seu livro de 1936 é de grande preciosidade psicológica Em um texto de sociologia e história do Brasil Holanda nos dá uma descrição vívida do arquétipo da persona do brasileiro funcionando como sistema de defesa um verdadeiro estereótipo cultural Agora podemos entender melhor a expressão racismo cordial Conhecendo as implicações e contrastes que Holanda implicava com a palavra cordial nós podemos ter uma ideia melhor de que a cordialidade pode ser um disfarce para violência rejeição ódio atitude superior e principalmente uma falta de abertura para igualdades em oportunidades para melhores salários e melhor educação em universidades para negros mestiços e índios Todas essas questões de aparente integração e velada exclusão tomaram lugar na história do Brasil desde a abolição da escravatura O meio milhão de escravos libertos em 1888 entrou em um complexo sistema multirracial no qual o arquétipo da persona adquiriu uma feição particular que eu vou chamar aqui de persona racial Essa persona racial se tornou de grande importância para a colocação social do indivíduo Devemos lembrar que o Brasil desde o princípio não era uma sociedade birracial como os Estados Unidos ou África do Sul Desde os inícios a colonização se deu por intensa mestiçagem a princípio do português com o elemento indígena e depois com o africano A grande maioria da população sempre teve sangue índio ou africano Do ponto de vista do fenótipo a sociedade multirracial permitiu todos os graus de cor entre o branco europeu e o negro africano e ainda posteriormente com a contribuição asiática A cor da pele a textura do cabelo e outras características isto é a persona racial iria ajudar em grande medida os esforços do indivíduo em sua ascensão na escala social Os mestiços apresentam nesse particular uma grande mobilidade na escala social devido a sua persona racial E um fenômeno surpreendente acontece com essa mudança de classe social a própria percepção da cor da pele muda com a mudança de status social é como se à medida que a pessoa ascendesse na escala social sua pele como que por milagre clareasse Ainda lembrando Thomas Skidmore esse perspicaz estudioso do Brasil que cita um ditado cínico popular no Brasil o dinheiro clareia Um exemplo nítido dessa mistura de classe social e cor da pele é um exemplo clássico relatado por Darcy Ribeiro 1995 p 225 mostrando que essa atitude remonta a tempos coloniais Henry Koster um viajante inglês no Brasil do século XIX ficou surpreso ao ver um mestiço vestido com o uniforme de capitãomor algo bastante incomum A ele foi dada a seguinte explicação Sim ele era um mestiço agora como capitãomor ele só pode ser branco O preconceito de cor peculiar existente no Brasil incluiu no passado a poderosa fantasia conhecida como o branqueamento da raça Segundo Thomas Skidmore 19741989 a facilitação de imigração branca da Europa em finais do século XIX não foi apenas uma decisão de base econômica A elite intelectual brasileira teve uma grande influência de ideias racistas europeias da época e desejava um verdadeiro branqueamento da raça A tese do branqueamento mantinha que através de repetidas miscigenações os genes brancos sendo mais fortes predominariam sobre os genes africanos ou indígenas chegando por fim a produzir uma geração de brancos depois de várias gerações mestiças O incrível de semelhante teoria é de que por ela o Brasil adquiriria uma pureza étnica através da miscigenação isto é tratase de uma teoria racista pela miscigenação não pela exclusão Essa teoria foi peculiar ao Brasil e nunca apareceu em nenhum outro lugar O primeiro etnólogo a defender a teoria do branqueamento da raça foi João Batista de Lacerda durante o 1º Congresso Universal de Raças em Londres em 1911 cf SKIDMORE 1989 p 81ss A ideia alquímica do branqueamento da raça foi combatida por outro movimento que começou no Brasil nos anos 1930 o Movimento da Antropologia Cultural e do Sincretismo Cultural liderados por Gilberto Freyre e outros Freyre criticou fortemente a teoria do Branqueamento da Raça defendendo que o ambiente e a cultura eram os agentes principais da formação da identidade do país sendo a raça um fator etiológico de menos importância De 1933 em diante com a ascensão do nazifascismo na Europa e sua ênfase fanática do fator racial a abordagem de Freyre demonstrou ser a mais apropriada As antigas ideias sobre a raça desapareceram no Brasil teorias de racismo científico se tornaram um anacronismo também na América do Sul Mas a ideia da inferioridade de grupos étnicos não brancos permaneceram a ideia de que negros e índios só podem chegar à realização social pelos esportes ou música não através de profissões acadêmicas Felizmente essas ideias ainda permanecem entre poucas pessoas A emergência de mitos na busca de identidade Uma vista dolhos por toda a história do Brasil desde sua descoberta deixa claro que os períodos anteriores à colonização à miscigenação ao grande trauma da escravidão ao branqueamento da raça deixaram suas marcas no inconsciente cultural brasileiro e poderosas imagens em nossas tradições influenciando nosso psiquismo e nosso comportamento Entre as marcas deixadas pelo nosso processo histórico em nosso caráter há o marcado sentimento de inferioridade a busca obsessiva de valores na Europa ou América do Norte RAMOS 2010 A carência de uma identidade cultural reflete a falta de modelos exemplares e figuras de referência na história brasileira O Mito do Herói é referência fundamental para a organização da consciência individual e coletiva Se o Mito do Herói está presente na organização da psique infantil ele é também referência básica para a identidade cultural de todo o povo E na cultura brasileira podemos notar uma ausência grande de modelos exemplares que sirvam para a organização da consciência coletiva Com exceção dos esportes e da música há um vácuo de modelos de referência Talvez por isso as recentes experiências da Copa do Mundo de Futebol sediada por nosso país tenham sido tão dolorosas para a consciência coletiva um importante modelo de heroísmo e sucesso foi colocado por terra de forma absolutamente inesperada e nunca imaginada Voltando um pouco para trás quero fazer referência a uma das mais importantes figuras de herói da história brasileira que emergiu na época do Brasil colônia na antiga Vila Rica então capital do reino Refirome ao famoso escultor referência de genialidade e superação Antonio Francisco Lisboa chamado O Aleijadinho As obras a ele atribuídas bem como sua própria vida foram sempre foco de controvérsia Recentemente a filósofa e historiadora Guiomar de Grammont publicou pesquisa sobre a controvertida vida de Aleijadinho reforçando a tese já defendida anteriormente de ser a vida de Antonio Francisco Lisboa o Aleijadinho produto de um mito Na verdade Grammont foi além de seus antecessores mostrando vínculos entre o mito de Aleijadinho e figuras típicas de romances históricos A figura do monstro repulsivo digno de pena mas que também busca redenção e é criativo aparece já em contos de fada tipo A Bela e a Fera no qual a Fera deve ser resgatada e possui tesouros em um castelo mágico Outra aparição desse mesmo modelo é na novela escrita em 1818 pela inglesa Mary Shelley Frankstein ou o moderno Prometeu O romance descreve a criação de uma criatura monstruosa artificial pelo jovem médico Viktor Frankstein Questões éticas e de consciência moral são conflitos importantes da criatura monstruosa que trafega nos limites homemmáquina e elabora as questões da beleza derivada da monstruosidade O terceiro exemplo de proximidade de monstruosidade e beleza lembrado por Grammont é a marcante figura de Quasímodo o corcunda guardião dos sinos de Notre Dame no romance de Victor Hugo NotreDame de Paris O corcunda feio recluso deformado é tomado também de genuíno amor pela cigana Esmeralda Esses modelos que emergem espontaneamente na produção literária obedecem a genuínos padrões arquetípicos Mesmo se recuarmos à Grécia Clássica iremos encontrar o padrão de associação da deformidade física e beleza na figura do deus Hefesto o deuscoxo o artesão o deus da techne ou do agir como a natureza age A monstruosidade de Hefesto adveio de seus pais Zeus e Hera o terem lançado do Olimpo ao oceano de sua queda tornou se coxo Poderíamos defender que a comovente lenda do Aleijadinho tem raízes em uma figura arquetípica grega Onde está a fronteira entre o Antonio Francisco Lisboa histórico e o Aleijadinho mítico que povoou as ruelas de Vila Rica Mariana São João del Rei e outras cidades do ciclo do ouro em Minas Gerais Houve ao tempo da corrida do ouro em Minas Gerais a lenda de um artesão e escultor entre os diversos que trabalharam na decoração das igrejas barrocas e no serviço para as irmandades religiosas que se destacara pela deformidade física Seu nome era Antonio Francisco Lisboa e teria uma das mãos paralisada por uma doença não claramente determinada Em 1858 o jurista e diretor de ensino em Ouro Preto Rodrigo Ferreira Bretas interessou se pela figura envolvida em mistério e resolveu escrever uma biografia De dados concretos muito pouco encontrou a não ser o nome Antonio Francisco Lisboa associado a um artesão barroco entre os diversos que trabalharam decorando as igrejas mineiras que teria vivido quase cinquenta anos antes As referências à sua doença física eram vagas e não documentadas Entretanto Bretas foi adiante e escreveu uma biografia rica em detalhes O escultor teria sofrido de doença grave e deformante provavelmente tuberculose ou lepra que deformaram suas mãos deixandoo com aspecto repulsivo Apesar de tudo o artista num incrível esforço de superação e criatividade conseguia produzir esculturas de notável beleza e sensibilidade Bretas descreveu as terríveis deformidades que a doença infligiu a Antonio Lisboa Deulhe ainda o nome de Aleijadinho apelido não encontrável em nenhuma fonte histórica Como detectou Grammont as semelhanças da fascinante figura do Aleijadinho com personagens do Romantismo como Quasímodo e suas deformações físicas são muito grandes O deus coxo Hefesto guarda semelhanças muito grandes com o Aleijadinho Podemos afirmar com segurança que estamos diante de um personagem mítico do inconsciente cultural brasileiro uma lenda mitológica que emerge a partir do inconsciente cultural Isso porque a cultura necessita da imagem da referência É curioso que a lenda é produzida a partir do esforço consciente de um jurista cinquenta anos depois da vida real de Antonio Lisboa A partir de rumores e boatos de uma doença física desse artesão Bretas cria uma figura mitológica que terá forte presença nos livros de história do Brasil e nos bancos escolares Como todo mito a lenda de Aleijadinho tem raízes arquetípicas e curiosas semelhanças com o deus artesão Hefesto e figuras da literatura romântica Como autêntico heróicriador genuinamente nacional o Aleijadinho deveria ser também um mestiço É construída para ele uma genealogia mítica Ele seria filho do arquiteto português Manoel Lisboa com uma lavadeira negra natural de Açores Essa origem mestiça iria impressionar alguns artistas do movimento de arte moderna de 1922 que irão elevar o Aleijadinho à condição de gênio representante da criatividade genuinamente nacional Quais das obras atribuídas ao Aleijadinho são verdadeiramente dele Hoje sabemos que muitas provêm do atelier de Antonio Francisco Lisboa sendo de autoria de outros mestres A maioria delas também é de qualidade bastante duvidosa Mas será que a existência histórica do Aleijadinho é realmente importante Não serão os demais heróis sempre em certa medida fabricados um produto de nossas próprias carências psicológicas individuais e coletivas Como afirmou Jung certa vez em uma das suas colocações mais importantes a psique cria realidades todos os dias Referências BUARQUE DE HOLANDA S Raízes do Brasil 1936 sl se 1989 COSTA E SILVA A Um rio chamado Atlântico A África no Brasil e o Brasil na África Rio de Janeiro Nova Fronteira 2003 FOLHA DE S PAULO DATAFOLHA Racismo cordial 2 ed São Paulo Ática 1998 GRAMMONT G Aleijadinho e o aeroplano São Paulo Civilização Brasileira 2004 JUNG CG 19361993 Wotan Aspectos do drama contemporâneo Petrópolis Vozes 1993 OC vol 102 Alma e terra Civilização em transição 1927 Petrópolis Vozes 1993 OC vol 103 CG Analytical Psychology Notes on Seminar given in 1925 Amazon Kindle ebooks 1989 MEIRA PENNA JO Em berço esplêndido Ensaios de psicologia coletiva brasileira Rio de Janeiro José Olímpio 1974 NARLOCH L O livro politicamente incorreto da história do Brasil Amazon Kindle eBooks 2013 RAMOS D Corruption a cultural complex in Brazil In SINGER T KIMBLES S orgs The Cultural Complex Nova York Brunner Routledge 2004 RIBEIRO D O povo brasileiro São Paulo Companhia das Letras 1995 SKIDMORE T Preto no Branco 2 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 1989 É médico diplomado pelo Instituto CG Jung de Zurique Suíça Doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina SocialUerj Membrofundador da Associação Junguiana do Brasil AJB Publicou diversas obras no Brasil e no exterior Sua obra mais recente é Mitopoese da psique mito e individuação 2 ed Editora Vozes 2009 É coordenador técnico da Coleção Reflexões Junguianas da Editora Vozes Revisor da tradução para o português de O Livro Vermelho de CG Jung Editora Vozes Contato walterboechatgmailcom 4 De Sodoma à Samaria Cristianismo homofobia e alteridade no Brasil Cristiana de Assis Serra Um colóquio verdadeiro só se torna possível quando o eu reconhece a existência de um interlocutor CG Jung 1 Introdução Na virada do século XX para o XXI desenvolveramse nas sociedades ocidentais duas tendências a princípio paradoxais nas esferas jurídica e religiosa Na primeira ampliouse o debate internacional acerca das múltiplas expressões da sexualidade humana especialmente em termos do asseguramento dos direitos humanos e civis de homossexuais e transgêneros elencados sob a sigla LGBT referente a transgêneros lésbicas bissexuais e gays Com isso direitos historicamente resguardados pela elite identificada com a heteronormatividade isto é o conjunto de práticas sociais políticas ou crenças que estabelecem a heterossexualidade como única orientação sexual normal e utilizam o sexo biológico a identidade e os papéis sociais de gênero como categorias capazes de enquadrar a todos em roteiros integralmente masculinos ou femininos vêm sendo estendidos aos assim chamados LGBT enquanto se tem aprofundado o debate público acerca da existência de outras formas de ser e se relacionar Longe porém de mostrar se unívoco e livre de tensões esse movimento apresenta como contrapartida uma reação no sentido de perpetuar o alijamento desses sujeitos e seus afetos No âmbito religioso o fundamentalismo cristão surgido no protestantismo em reação ao modernismo teológico e cultural da virada do século XX e caracterizado pela exigência de uma adesão estrita a doutrinas ortodoxas veio desdobrarse no florescimento de movimentos tradicionalistas que ultrapassam confissões ou denominações específicas e se dedicam ao ativismo religioso na esfera pública valendose do espaço legislativo para impor suas normas à sociedade como um todo Assim a despeito do empenho de diversos segmentos em desenvolver discursos religiosos contrahegemônicos observase uma acentuada correlação entre o grau de engajamento religioso e uma visão tradicionalista da hierarquia de gêneros e da sexualidade humana MACHADO PICCOLO p 15 No Brasil vem se intensificando o embate entre ativistas religiosos e militantes LGBT em torno da regulação jurídica dos direitos dessa população da criminalização das formas de discriminação e violência por ela sofridas e da realização de campanhas educativas acerca da diversidade sexual A crescente animosidade entre os dois campos em confronto vem se traduzindo na polarização do conflito na demonização mútua e na percepção do grupo antagonista como monolítico homogeneizando diferenças e posicionamentos individuais e doutrinários Dos dois lados a violência física e simbólica perpassa toda a polêmica e os combates em torno da sexualidade Os acusadores criam as vítimas do outro lado e as executam e estas por sua vez fazem o mesmo Como superar tal violência e possibilitar um lugar de encontro em vez de rivalidade Que contribuição pode dar a psicologia analítica no sentido do entendimento e eventualmente de uma restauração da criatividade que permita transcender o impasse Na busca de pistas proponho um diálogo entre Jung e algumas vozes da teologia cristã contemporânea mediado pela filosofia de Emmanuel Lévinas crítico ferrenho da egolatria e muito presente nos debates relacionados à problemática da alteridade nas figuras do estrangeiro do refugiado do diferente e que ademais seguindo as indicações de Bernardi 2003 possibilita levar a reflexão sobre o processo de individuação de uma leitura ontológica redutora controlada pela perspectiva do Mesmo para uma dimensão ética reconhecida no encontro com as imagens no processo de individuação de crucial importância para o relacionamento entre consciente e inconsciente Essas imagens apresentam demandas morais à consciência e devem ser encaradas com seriedade se não respondidas adverte Bernardi poderão emergir formações neuróticas Supondo pois que seja a alteridade que possibilita a criatividade no sentido da aproximação dos opostos da qual resulta o aparecimento de um terceiro elemento que é a função transcendente OC vol 82 181 partiremos então ao seu encontro pela via da hospitalidade vamos examinar do referencial da psicologia analítica o pressuposto ético de Lévinas de uma subjetividade como responsabilidade e com ele indagaremos Como enfrentar a violência sem gerar mais violência Comecemos por um pouco de história 2 Homossexuais homofobia e cristianismo na história e na ética Se historicamente os indivíduos cuja orientação sexual eou identidade de gênero os afastavam de maneira mais significativa dos padrões heteronormativos eram e são estigmatizados e levados a viver no anonimato ou à margem da sociedade sua recente visibilização no Ocidente vem sendo acompanhada de uma explicitação da homofobia em vigor O termo homofobia referese a uma realidade multifacetada que vai além dos crimes de ódio ou seja violências tipificadas pelo Código Penal e cometidas em função da suposta orientação sexual eou identidade de gênero da vítima e não se reduz à aversão aos homossexuais de fato a homofobia se expressa de maneira mais ampla na violência simbólica da qualificação arbitrária do Outro como contrário inferior ou anormal e em sua destituição em virtude de sua diferença da sua humanidade dignidade e personalidade e se traduz por exemplo no discurso prefiro um filho morto a um filho gay por parte dos pais de LGBT No Brasil não há dados oficiais acerca da violência homofóbica em suas várias formas embora a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República SDHPR tenha compilado estatísticas a partir de fontes diversas nos anos de 2011 e 2012 tais números são necessariamente incompletos Em que pese a subnotificação porém o Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil o ano de 2012 da SDHPR ainda assim levantou oito denúncias por dia naquele ano a maior parte das violações foi perpetrada por conhecidos vizinhos familiares ou amigos das vítimas estas jovens 15 a 29 anos em sua maioria Só os homicídios registrados chegaram em 2011 a um a cada 33 horas em geral marcados por extremos de violência além de armas de fogo são comuns o uso de armas brancas desde facas até foices e machados espancamentos enforcamentos degolamentos tortura carbonização e estupro Ademais entre LGBT os índices de suicídio são alarmantes e o risco de morte voluntária significativamente mais elevado do que na população em geral Quando atravessada por elementos religiosos e aqui nos restringiremos aos cristianismos a homofobia leva a casos como o do pecuarista do Mato Grosso do Sul que em agosto de 2013 torturou o filho de 16 anos alegando que este estava com o demônio no corpo por ser homossexual A violência maior porém talvez seja de ordem simbólica como ilustra o relato de um homossexual de família católica muito engajada que foi demovido do suicídio me sentia um lixo humano cheio de nojeira dentro do meu coração Eram e são ainda coisas horríveis que escuto desde criança Escutei tanto que depois de escutar mais uma vez que pessoas com os desejos que possuo são demoníacas eu achava que esse demônio aqui não merecia estar vivo que seria melhor para todos ele ir embora Comunicação pessoal No âmbito coletivo as edições recentes da Marcha para Jesus que em 2014 reuniu 600 mil pessoas no Rio de Janeiro e 200 mil em São Paulo segundo a Polícia Militar vêm sendo pautadas por temas de ordem moral sobretudo o embate com os LGBT com gritos de guerra contra a criminalização da homofobia e a extensão do casamento civil aos homossexuais Já a militância LGBT brasileira sofre críticas por parte de segmentos do próprio público gay quanto a uma postura demasiado reativa e pouco propositiva e um excesso de atenção conferido aos discursos e às práticas homofóbicos do fundamentalismo cristão manifestase a preocupação com a possibilidade de que os movimentos se tornem reféns do ressentimento em detrimento de projetos libertários e igualitários CAMILO 2012 Diante dessa situação de guerra declarada podese facilmente tomar por inescapável a incompatibilidade entre cristianismos e diversidade sexual No entanto nem sempre foi assim Em meados dos anos de 1960 nos Estados Unidos os ativistas do incipiente movimento gay com frequência recorriam aos religiosos das mais diversas denominações como aliados de primeira hora segundo dados da LGBT Religious Archives Network KALEEM 2014 No Brasil o padre redentorista Jaime Snoeck publicou em uma revista de teologia em 1967 dois anos portanto antes dos confrontos no Bar Stonewall em Nova York tidos como o momento fundador da luta por direitos LGBT em todo o mundo um artigo acerca do acolhimento pastoral aos homossexuais em que salienta de qualquer maneira homem algum comprometido seriamente com a promoção integral e de todos os homens cristão algum digno deste nome pode ignorar ou ficar indiferente perante a sorte do seu próximo homoerótico E acrescenta com notável presciência isto vale de modo particular para o médico e o psicólogo para o sociólogo e o jurista para o criminologista e o policial para o assistente social e o pastor Recuando no tempo cumpre salientar que a homossexualidade como categoria de descrição e enquadramento da sexualidade num esquema dualista em que se contrapõe à heterossexualidade é uma criação recente remontando ao século XIX e embora haja registro de relações entre pessoas do mesmo sexo nos mais diversos tempos e culturas seu tratamento em cada contexto é específico indo do mais absoluto repúdio à divinização Na tradição judaicocristã embora as diversas prescrições e proscrições sexuais estabelecidas no Antigo Testamento sejam de caráter ritual não moral o cristianismo já em suas origens absorveu do estoicismo do dualismo helênico e do neoplatonismo uma visão unilateral da sexualidade que lhe atribuiu a procriação como finalidade exclusiva assim como uma metafísica depreciadora da matéria que levou à defesa da abstenção de tudo aquilo referente ao comportamento sexual este se viu assim cercado de estigmas negativos e engendrou um malestar com relação ao prazer sexual que perdura até hoje Em suma desde a Patrística o critério da condenação do homoerotismo é fundamentalmente a frustração da finalidade procriadora que aliada à busca indevida do prazer sexual justifica sua condenação como ato contra naturam Após a Reforma as outras denominações cristãs não trouxeram considerações muito distintas a respeito assim o homoerotismo classificado como sodomia seguiu sendo um crime horrendo que provocava a ira de Deus a ponto de causar tempestades terremotos pestes e fome que destruíam cidades inteiras CORRÊA LIMA 2014 À medida que o cristianismo foi adquirindo hegemonia e sendo alçado a religião do Estado procedeuse à criminalização da sodomia os tribunais eclesiásticos julgavam os acusados desse delito e entregavam os culpados ao poder civil para sua punição até mesmo com a morte Com o advento do Iluminismo e da Modernidade desencadeouse uma paulatina descriminalização da sodomia que no Brasil ocorreria em 1823 No século XIX a questão foi trazida do âmbito religioso e moral para o médico contexto em que o termo substituto homossexualismo foi cunhado em 1869 O que até então era tido como abominação passou a ser considerado doença abordada mediante a internação de homossexuais em sanatórios e sua submissão aos mais diversos tratamentos que iam da contenção ao choque elétrico A progressiva despatologização da homossexualidade impulsionada pela expansão do movimento gay só se daria a partir dos anos de 1970 sua retirada do rol de doenças da Organização Mundial da Saúde ocorreria apenas na década de 1990 3 Além do ressentimento Sodoma e seus habitantes são muito usados pelas tradições judaica e cristã para recriminar o suposto pecado da homossexualidade a ponto de o termo sodomia ter sido usado por séculos para referirse às relações entre pessoas do mesmo sexo uma escolha que acaba sendo muito significativa à luz das mudanças sofridas ao longo do tempo pela exegese da passagem sobre sua destruição Gn 191112429 Lemos que os pecados de Sodoma e Gomorra resultaram em sua completa destruição mas que pecados seriam esses Os demais textos do Antigo Testamento que se referem aos seus delitos assinalam que seus homens eram muito maus e pecadores Gn 1313 fornicadores e mentirosos Jr 2314 caracterizados pelo orgulho alimentação excessiva tranquilidade ociosa e desamparo do pobre e do indigente Tornaramse arrogantes e cometeram abominações em minha presença Ez 164950 não respeitosos com a lei da hospitalidade Eclo 168 Nas menções dos evangelhos Mt 1015 112324 Lc 172829 não se faz referência à temática homossexual Apenas dois textos neotestamentários aludem a Sodoma com alguma conotação homossexual Jd 17 e 2Pd 2610 VIDAL 2008 Assim da passagem em si e dos demais trechos do Antigo Testamento que a ela se referem podese depreender a injustiça e a violação das leis da hospitalidade por parte dos habitantes da cidade mas não que se tratasse concretamente de uma intenção de violação homossexual ainda que o estupro fosse e seja ainda uma forma contumaz de humilhação imposta por exércitos vencedores aos vencidos e muito menos que esta justificasse por si a total obliteração das duas cidades A interpretação homossexual de Jd 17 e 2Pd 2610 é derivada de apócrifos intertestamentários Testamento de Benjamin e II Henoch e dos escritos de Fílon e Flávio Josefo e foi a partir do contato com o helenismo que esses escritos judaicos interpretaram a passagem de Sodoma pela chave da homossexualidade em sua origem contudo ela não guardava qualquer relação nem com o amor nem com relações sexuais livremente consentidas entre adultos do mesmo sexo O crescente consenso entre os exegetas nesse sentido vem substituir assim um paradigma de condenação e exclusão por outro de alteridade expresso no imperativo ético da hospitalidade para com o Outro estrangeiro Com efeito a novidade do cristianismo consiste na desvinculação dos valores religiosos do reino da violência da reivindicação da vingança do antagonismo na preconização da gratuidade e da responsabilidade ética do Eu pelo Outro em que a existência de um não implica a exclusão vitimização nem separação do Outro salienta o teólogo J Libânio apud ALISON p 22 Daí Jung escrevendo depois de o mundo assistir no Holocausto ao paroxismo da lógica da demonização do Outro advertir adotouse o cristianismo para escapar da brutalidade e da inconsciência dos antigos Se o abandonarmos está à nossa espera a antiga brutalidade da qual a história de nossa época deu um exemplo dificilmente suplantado OC vol 5 341 O teólogo James Alison nos fornece indicações significativas para o entendimento da mensagem simbólica do cristianismo e a superação do ressentimento das vítimas da violência normatizadora em especial os LGBT Em sua análise da cura do cego de nascença Jo 9 ele assinala que a ordem estabelecida não só não tem dificuldade com a existência de excluídos como pelo contrário depende deles De um lado portanto está o paradigma religioso segundo o qual a Lei cumpre a finalidade de separar seus seguidores os bons daqueles que não a observam e portanto maus O objetivo dos moralmente justos é amalgamar sua unidade coletiva que se dá na exata medida em que o elemento contaminador eles os diferentes o Outro é identificado e expulso é a própria exclusão do impuro que define o grupo dos eleitos nós os iguais o Mesmo Como admoesta Jung entretanto as identificações com o papel coletivo são pródigas fontes de neuroses o homem jamais conseguirá desembaraçarse de si mesmo em benefício de uma personalidade artificial Sua disciplina pública particularmente exigida dos outros fraqueja Quanto à sua moral pública sem mácula tem um aspecto estranho atrás da máscara OC vol 72 307 E alerta o mau humor é o vício dos virtuosos OC vol 72 306 uma vez que o único método educativo consiste na supressão ou repressão das fraquezas ou a exigência de que se as esconda do público OC vol 72 317 Em contraponto emerge o paradigma da criação inacabada que é oportunidade para manifestarse a criatividade exuberante de Deus e por isso mesmo remete ao engajamento ético na abertura radical ao Absolutamente Outro que constitui o impulso humano para a transcendência e se verifica como propõe Lévinas só se e quando o Eu relacionase com o Outro com generosidade de tal forma que este não seja mais objetivado reduzido ou relativizado mas acolhido em sua alteridade e integridade e o Eu se torna responsável por ele Bernardi propõe Se o símbolo é a melhor tentativa de se formular algo desconhecido o que dele podemos pensar é sempre da ordem de uma aproximação nunca de um esgotamento À tradução completa em algo conhecido Jung chamou de signo que podemos dizer que é a morte do desconhecido a morte do Outro sua radical estranheza é reduzida ao meu total conhecimento de seu sentido dando vazão ao nosso sonho de estabilidade Cada imagem é uma alteridade radical e absoluta infinitamente me instigando Com isso o Simesmo deixa de ser o arquétipo do significado passando a ser o arquétipo da significância um enigma que provoca minha responsabilidade BERNARDI 2003 Ora no entender de Alison as tendências à inclusão e à exclusão apesar do aparente paradoxo não são inconciliáveis pelo contrário é a partir do momento da exclusão que tem início a inclusão Deus não tem a menor dificuldade em promover uma completude de criação na pessoa que de algum modo encontrase incompleta e se reconhece como tal O problema está com aqueles que pensam estar completos aqueles que pensam que a criação está ao menos no caso deles finalizada Por essa razão acreditam que a bondade se encontra na manutenção da ordem estabelecida a bondade é definida a partir da unidade do grupo à custa do maligno excluído e por contraste com ele Os membros moralmente virtuosos do grupo pensando enxergar tornaramse cegos precisamente ao se agarrarem à ordem que se julgam no dever de defender ALISON p 5152 Não se trata porém alerta Alison de identificarse alternativamente com as vítimas da exclusão e transformálas no novo grupo dos moralmente justos excluindo por sua vez seus algozes É nessa passagem de excluídos a partícipes no engendramento de uma virtude excludente que surge a oportunidade de nos reconhecermos nas duas posições ao mesmo tempo de assumirmos nossa participação na hipocrisia farisaica que chama de justiça a exclusão que promove o holocausto do Outro só assim poderá se dar a verdadeira inclusão aquela que se esvazia da pretensão à virtude ao admitir que é excludente e se justifica ao responsabilizarse pela inclusão do Outro O processo não transcorre sem dores o mundo tornase ambíguo e ele mesmo tornase ambíguo Começa a duvidar do bem e o que é pior começa a duvidar de sua própria boa intenção Em benefício da nossa concepção atual do mundo é mais agradável acusarmonos de fraqueza pessoal do que duvidar da força dos ideais em que ancoramos nossa persona OC vol 72 310 A solidariedade baseada no mecanismo de unidade grupal indiferenciada que se organiza em torno da exclusão do diferente é assim abolida em favor da instauração de uma nova fraternidade em que se ultrapassam os dualismos certoerrado bemmal justopecador incluídosexcluídos e se funda uma ordem ética pela introdução do terceiro como aponta Lévinas Jung assinala O alternarse de argumentos e de afetos forma a função transcendente de opostos A confrontação entre as posições contrárias gera uma tensão carregada de energia que produz algo de vivo um terceiro elemento que não é um aborto lógico consoante o princípio tertium non datur mas um deslocamento a partir da suspensão entre os opostos e que leva a um novo nível de ser a uma nova situação A função transcendente aparece como uma das propriedades características dos opostos aproximados Enquanto estes são mantidos afastados um do outro evidentemente para se evitar conflitos eles não funcionam e continuam inertes OC vol 82 189 Se a individuação processa suas diferenciações a partir do todo indiferenciado dos valores coletivos em estado de massa confusa ou inconsciência aponta Bernardi ela caminha em direção a um segundo todo fruto do posicionamento do indivíduo diante de tudo que o cerca Jung destaca que o sujeito em individuação não é um ser isolado mas pressupõe relacionamentos coletivos cada vez mais amplos e intensos não um isolamento Com efeito a aderência ou submissão cegas à coletividade evitam o caminho da responsabilidade individual Nas palavras de Jung citadas por Bernardi Quanto mais a vida de um homem é moldada pela norma coletiva maior é sua imoralidade individual Entretanto a mera oposição à norma coletiva seria igualmente um despropósito na medida em que não passaria de outra norma contrária à primeira A mensagem simbólica aí implícita portanto é aquela sugerida a Nicodemos Jo 3121 há que superar as tendências incestuosas do Mesmo como adverte Jung libertando a libido aí capturada e reconduzindoa em direção ao Absolutamente Outro assim o homem como ser espiritual volta a ser criança e a nascer em meio a um círculo de irmãos mas sua mãe é a Comunidade dos Santos a Igreja e seu círculo de irmãos é a humanidade com a qual torna a unirse no patrimônio comum da verdade simbólica OC vol 5 335 É por reconhecer a relevância desses símbolos religiosos na transformação da libido que Jung insiste em levar os indivíduos a pensar de novo simbolicamente como os pensadores da Igreja Antiga Isto jamais foi dogmática estéril Porém uma vez que este modo de ver não atinge mais o homem moderno é preciso encontrar um caminho para que este possa voltar a participar espiritualmente do conteúdo da mensagem cristã OC vol 5 340 Nesse sentido a adesão da ortodoxia fundamentalista a uma suposta verdade cristalizada por meio da retomada do rigor da lei do Antigo Testamento ignorando a subversão operada pelos evangelhos vai de encontro à proposição ética levinasiana de que a relação entre o Eu e o Outro é que constitui a base sobre a qual tudo se ergue bem como ao entendimento análogo de Jung acerca de todos os que têm em vista uma confrontação consigo próprios Na medida em que o indivíduo não reconhece o valor do outro nega o direito de existir também ao outro que está em si e vice versa A capacidade de diálogo interior é um dos critérios básicos da objetividade OC vol 82 187 Toda Verdade pois fundamentase na relação intersubjetiva que considera a originalidade de cada ser humano e o respeito que lhe é devido não só inviabilizando rótulos niveladores e achatadores mas sobretudo realçando a unicidade própria a cada indivíduo para além de contextos molduras e convenções inclusive aqueles tidos por científicos A totalidade em que nada nem ninguém pode ser segregado reprimido ou esquecido admoesta Bernardi constituise em mutualidade na qual a integração decorre do reconhecimento mútuo de todas as partes Com efeito Como Lévinas deseja pensar o homem a partir de uma posição essencialmente ética julga imprescindível proteger o Outro de ser reduzido ao Mesmo Em outras palavras deseja que o Outro seja recebido em sua irredutível estranheza A subjetividade passa a ser entendida como a abertura original ao Outro Este Outro não é um outro que eu possa compreender pela empatia Ele é sempre um mistério essencial nunca conhecido nem conhecível O Outro me coloca em questão e é este colocarme em questão pelo Outro que Lévinas denomina ética Por isso a ética é uma ótica brota da percepção impossível do Outro que mostra sua face revela se epifanicamente mas nunca se constitui um objeto de percepção ou conhecimento A imagem é sempre um discurso que nunca consigo compreender em sua plenitude BERNARDI 2003 Somente uma ética que parta do Outro pode abrir espaço para sua dignidade enquanto radicalmente diferente do Eu e no entanto doador de sentido para o próprio Eu Nesse sentido o Outro é o que chama e a seu chamado o Eu deve responder Eisme aqui 1Sm 3 o processo de individuação dáse aí em toda sua força ética em termos da hospitalidade absoluta onde o Eu hospeda a face enigmática do Outro sem tentar reduzilo ao Mesmo em termos intrapsíquicos inclusive Ao contrário se a imagem que se apresenta ao Eu passar por uma domesticação tal que seu mistério se transforme no conhecido que consigo aceitar e suportar a individuação acabará reduzida ao projeto egoico de ampliação e estabilidade BERNARDI 2003 Eis aí o cerne do embate moral entre fundamentalistas e LGBT 4 Conclusão a redenção do samaritano Se a causa de condenação dos sodomitas é sua violação da hospitalidade e talvez o uso da sexualidade como instrumento de profanação do Outro e não um inexistente homoerotismo bemintegrado e responsável perante o Eu e o Outro é na estrada de Jerusalém para Jericó cenário da Parábola do Bom Samaritano Lc 103037 que os bodes expiatórios encontram em seu contraponto neotestamentário a redenção Na estrada caminhantes como Abraão o ícone levinasiano da eterna errância o samaritano o excluído e marginalizado dos judeus por definição consegue entre ressentimento e retaliação entre inferioridade e superioridade alcançar a síntese da compaixão fruto do esvaziamento de si em direção ao Outro que lhe permite constituirse em seu próximo transcendendo toda violência Um dos temas centrais de Lévinas é sua crítica à pretensa neutralidade do pensamento racional ele suspeita que o dito neutro não passe do travestimento do masculino do discurso dominante da história do pensamento de modo que apenas um pensamento que se deixe contaminar pelo feminino poderá em lugar da ontologia tornarse ética e acolhimento Assim em seu pensamento o feminino é alçado a um lugar fundamental tornandose a metáfora mesma do acolhimento do Outro a fim de que se pense a diferença em sua diferencialidade mesma isto é o Outro como Outro não mais como reflexo do Mesmo Faria sentido pois substituir o termo tolerância tão em voga por misericórdia Quem tolera faz uma concessão ao Outro quem dá o coração àqueles que são vítimas da miséria significado latino de misericórdia compreende que não pode ser sem o Outro O cristianismo é jovem tem apenas dois mil anos e talvez só agora cada vez mais livre dos interesses do poder graças à secularização esteja começando a lidar seriamente com as diversidades do mundo especula o teólogo Vito Mancuso Com efeito prossegue ele testemunhamos hoje uma profunda transformação do conceito de sagrado que não pretende ter nada a ver com a concepção primitiva e machista do culto da força e da arbitrariedade incluindo o Deus do teísmo e da onipotência de algumas páginas bíblicas O que cada vez mais se torna sagrado para a consciência é a lealdade nas relações a harmonia em permanente busca e construção o rosto para usar um termo caro a Lévinas humano como quer que se apresente o que não só implica uma profunda transformação do conceito de religião como assegura a aquisição de que sagrada é a vida livre dos seres humanos Consolidamse assim as premissas profetiza Mancuso para que se cumpra a revolução teológica do Cristo do teísmo ao panenteísmo À diferença do panteísmo em grego pan tudo theos Deus segundo o qual tudo é Deus Deus é tudo e não comporta nenhuma diferença diluindo todo Eu no Outro a teologia cunhou uma nova expressão o panenteísmo pan tudo em em theos Deus Quer dizer Deus está em tudo e tudo está em Deus numa relação dinâmica de alteridade Deus e mundo são diferentes Mas não estão separados ou fechados Estão abertos um ao outro explica Leonardo Boff 2012 Ele prossegue Se são diferentes é para possibilitar o encontro e a mútua comunhão Por causa dela superamse as categorias que se contrapunham transcendência e imanência O cristianismo por causa da encarnação de Deus criou uma categoria nova a transparência Ela é a presença da transcendência Deus dentro da imanência mundo Quando isso ocorre Deus e mundo se fazem mutuamente transparentes Como dizia Jesus quem vê a mim vê o Pai BOFF 2012 Ego e Simesmo enquanto opostos encontramse em perpétuo movimento Bernardi 2003 sublinha a negociação entre os dois resgatando com Derrida sua etimologia de não descanso em contraponto ao desejo do ego de dominação e apropriação por meio de um posicionamento unilateral que não se engaja no diálogo ético com o Outro Jung comenta que não é possível individuar fora da relação com outros seres humanos não podemos individuar no cume do Monte Everest ou numa caverna onde não vemos ninguém durante 70 anos Só podemos individuar com ou contra alguém ou alguma coisa apud BERNARDI 2003 A tarefa portanto é ao mesmo tempo interna e externa e cada um é responsável por responder aos desafios e questionamentos com que se deparar Que também o embate entre cristãos e LGBT no Brasil de hoje se converta em oportunidade de síntese e elaboração responsáveis cumprindo a vocação ética fundadora do humano Referências ALISON J Fé além do ressentimento Fragmentos católicos em voz gay São Paulo É Realizações 2010 335 p BERNARDI C Individoação do Eu para o Outro eticamente III Congresso LatinoAmericano de Psicologia Junguiana Salvador maio de 2003 Disponível em httpwwwrubedopscbrartigosbjgetiindhtm Acesso em 19062014 BOFF L Panteísmo versus panenteísmo Instituto Humanitas Unisinos 16042012 Disponível em httpwwwihuunisinosbrnoticias508499 panteismoversuspanenteismo Acesso em 26062013 BRASILSecretaria de Direitos Humanos Relatório sobre violência homofóbica no Brasil ano de 2012 Brasília jun2013 CAMILO F Avon homofobia e falsos combates Amálgama Atualidade e cultura 16042012 Disponível em httpwwwamalgamablogbr042012silasmalafaiaavon Acesso em 29062014 CORRÊA LIMA L Homoafetividade e evangelização abrir caminhos Revista Vida Pastoral ano 55 n 297 julago2014 Disponível em httpvidapastoralcombrartigostemaspastoraishomoafetividadee evangelizacaoabrircaminhos Acesso em 29062014 JUNG CG Símbolos da transformação Petrópolis Vozes 2012 653 p OC vol 5 O eu e o inconsciente Petrópolis Vozes 2002 166 p OC vol 72 A função transcendente A natureza da psique Petrópolis Vozes 2000 p IX23 OC vol 82 KALEEM J Unearthing The Surprising Religious History of American Gay Rights Activism Huff Post Religion 28062014 Disponível em httpwwwhuffingtonpostcom20140628gayreligious historyn5538178html Acesso em 29062014 MACHADO MDC PICCOLO FD orgs Religiões e homossexualidades Rio de Janeiro FGV 2010 286 p MANCUSO V O que resta do sagrado o cristianismo a ética e o Ocidente Instituto Humanitas Unisinos 18112012 Disponível em httpwwwihuunisinosbrnoticias515605oquerestadosagradoo cristianismoaeticaeoocidenteartigodevitomancuso Acesso em 26062013 SNOEK J Eles também são da nossa estirpe Considerações sobre a homofilia Vozes ano 61 set1967 p 792803 Petrópolis Vozes VIDAL M Sexualidade e condição homossexual na moral cristã Aparecida Santuário 2008 196 p É psicóloga e psicoterapeuta em Análise PsicoOrgânica pelo CebrafapoEfapo e candidata a analista junguiana pelo Instituto Junguiano do Rio de Janeiro Tem especialização em Psicoterapia Junguiana e Imaginário pela PUCRio e em Neurociências Aplicadas ao Envelhecimento pelo IpubUFRJ 5 A alma brasileira na literatura machadiana Complexo cultural de cordialidade Teresinha V Zimbrão da Silva 1 Literatura e psicologia É certo e até mesmo evidente que a psicologia ciência dos processos anímicos pode relacionarse com o campo da literatura JUNG 1985 p 74 Este trabalho é parte de uma pesquisa que tem uma proposta interdisciplinar contribuir para análises literárias à luz da psicologia junguiana As relações entre literatura e psicologia são discutidas por Jung em um conjunto de ensaios publicados em português sob o título O espírito na arte e na ciência JUNG 1985 Lemos então que a força imagística da poesia que pertence ao domínio da literatura e da estética é um fenômeno psíquico e como tal pertence também ao domínio da psicologia Nestes ensaios Jung defende a interdisciplinaridade entre as duas áreas de conhecimento espaço onde este trabalho pretende se situar Tendo concluído em 2006 no IBMRRJ uma pósgraduação lato sensu em psicologia junguiana com a monografia intitulada Literatura e Psicologia Analítica orientada pelo analista junguiano Dr Walter Boechat eu me proponho a divulgar no meio acadêmico brasileiro os estudos sobre literatura e psicologia junguiana 2 Inconsciente cultural e complexo cultural O médico em mim se nega a crer que a vida psíquica de um povo esteja além das regras psicológicas fundamentais A psique de um povo tem uma configuração apenas um pouco mais complexa do que a psique do indivíduo JUNG 1993 p 85 Se uma teoria psicológica é válida para o indivíduo deve poder também ser aplicada a situações coletivas GAMBINI 2000 p 35 Os psicólogos têm a tendência a não ver senão os efeitos individuais desses arquétipos importa agora apreciarlhes as consequências sociais MAFFESOLI 1998 p 100 É importante notar que os estudos sobre literatura e psicologia junguiana contam com a contribuição dos conceitos de inconsciente cultural e complexo cultural Admitese que muito do que Jung considerava como sendo pessoal hoje é percebido como culturalmente condicionado e muito do que ele considerava coletivo percebese também como condicionado pela cultura O conceito de Inconsciente Cultural foi introduzido no discurso junguiano em 1984 por Joseph L Henderson e redefinido em 1996 por Michael V Adams Henderson definiu o Inconsciente Cultural como uma dimensão entre o inconsciente coletivo e o inconsciente pessoal HENDERSON 1984 Contudo aquilo que é cultural é obviamente também coletivo Adams redefiniu então o Inconsciente Cultural como uma dimensão dentro do Inconsciente Coletivo Por esta redefinição o Inconsciente Coletivo passa a comportar duas dimensões a primeira arquetípica natural transhistórica transétnica a segunda estereotípica cultural histórica étnica e é esta dimensão que define o Inconsciente Cultural ADAMS 1996 Em 2004 Thomas Singer e Samuel Kimbles inspirados no conceito de Inconsciente Cultural introduziram o conceito de Complexo Cultural redefinindo a teoria dos complexos de Jung para que esta não só se referisse ao Inconsciente Pessoal mas que também incluísse os complexos do Inconsciente Cultural SINGER KIMBLES 2004 A introdução desses conceitos no discurso junguiano se deu com o fim de resgatar a influência da cultura sobre os conteúdos do inconsciente e efetivar a participação da psicologia junguiana na discussão sobre as questões culturais tema dos mais importantes na Pósmodernidade Neste trabalho procuro explicitar que a Psicologia Junguiana pode contribuir e muito sobretudo com os conceitos de Inconsciente Cultural e Complexo Cultural para os estudos sobre identidade e diferença culturais na literatura brasileira 3 Cordialidade e complexo cultural O presente trabalho inspirouse na minha pesquisa de pósdoutorado desenvolvida em 2006 onde estudei Machado de Assis a partir da hipótese de que o escritor teria antecipado na sua produção literária e crítica as reflexões desenvolvidas por Sérgio Buarque de Holanda que resultaram no conceito de homem cordial exposto em Raízes do Brasil O conceito desde a sua definição por Holanda em 1936 tem se revelado muito produtivo como tentativa de caracterizar aspectos importantes de identidade e diferença culturais do brasileiro Contudo carrega consigo uma grande polêmica que importa comentar a fim de melhor definir a proposta da pesquisa O principal contraargumento ao conceito de Holanda é a afirmação de que uma sociedade violenta como a brasileira que primeiro explorou o trabalhador escravo e depois o assalariado não poderia ser cordial Esta argumentação é motivada pela interpretação de cordial no seu significado corrente amigo bondoso sincero franco Mas como advertiu o próprio Holanda cordial deve ser tomado em seu sentido etimológico pertencente ao coração A inimizade e a violência podem ser tão cordiais quanto a amizade e a bondade pois tanto umas como outras nascem do coração Em Raízes do Brasil lêse Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade estranha por um lado a todo formalismo e convencionalismo social não abrange por outro apenas e obrigatoriamente sentimentos positivos e de concórdia A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade visto que uma e outra nascem do coração procedem assim da esfera do íntimo do familiar do privado HOLANDA 1973 p 107 A pesquisa interpreta o conceito sublinhando os seguintes aspectos a cordialidade está próxima da afetividade da família patriarcal e distante da civilidade do Estado moderno caracterizase pela espontaneidade da emoção íntima e não pelo convencionalismo da polidez cidadã pressupõe antes relações pessoais e privadas orientadas por simpatia e favor resquícios do patriarcalismo e não relações impessoais e públicas orientadas por mérito e trabalho introduções da Modernidade não consolidadas de todo no Brasil O presente trabalho também se inspirou no artigo do psicólogo junguiano Henrique Pereira intitulado Considerações sobre a teoria dos complexos culturais PEREIRA 2010 Neste artigo Pereira se pergunta quais seriam os complexos culturais do brasileiro e relaciona alguns estudos a respeito Ora autores junguianos brasileiros têm se mostrado cada vez mais interessados em discutir a identidade cultural brasileira e seus complexos Eis alguns exemplos Roberto Gambini 2000 estudou a atuação do mecanismo psicológico da projeção na fantasia que os primeiros colonizadores portugueses faziam dos nativos Fernando Araújo 2004 e Walter Boechat 2010 abordaram as questões psicológicas relacionadas ao racismo no Brasil e Denise Ramos 2004 identificou o sentimento de inferioridade como traço principal de um complexo cultural brasileiro Isto sem falar na notável contribuição de Arthur Ramos 2007 que já nos anos de 1930 buscava estudar psicossociologicamente a tradição afro brasileira abdicando das teorias raciais tão em voga naqueles tempos Muitos anos antes de Henderson propor um inconsciente cultural Ramos sugeria o inconsciente folclórico PEREIRA 2010 p 43 Depois de citar alguns dos estudos junguianos sobre os complexos culturais do brasileiro Pereira sublinha gostaria de chamar a atenção para um aspecto sensível incômodo da alma brasileira que não passa diretamente pelo preconceito racial ou étnico e tampouco pelo sentimento de inferioridade Eu diria que como nação sofremos de um complexo de cordialidade PEREIRA 2010 p 44 Pereira propõe então interpretar a cordialidade tal como definida por Holanda como um complexo cultural do brasileiro Este por ainda sofrer a influência de um estilo de vida social prémoderno baseado em laços de sangue e pessoais não conseguiu substituir de todo a lei particular da família pela lei abstrata e impessoal do Estado Tende portanto a tratar a coisa pública como patrimônio pessoal e daí a legislar e governar não em nome do povo mas em causa própria Pereira sumariza E seguindo a lógica do complexo se eu penso que o Estado é meu se o trato como patrimônio pessoal a corrupção deixa de ser rapina Afinal como roubar aquilo que já possuo Por conseguinte a corrupção que tanto revolta os brasileiros não é somente sintoma compensatório de nosso complexo de inferioridade mas deve também ser pensada como vinculada a este complexo de cordialidade PEREIRA 2010 p 45 O homem cordial encontra sérias dificuldades para se adequar às relações impessoais desobedecendo portanto à lei abstrata do Estado Sua vida em sociedade se pauta pela ética da emoção por aquilo que nasce do coração Pereira ainda sublinha Há aspectos da cordialidade contudo que por não nos causarem conflito ou malestar já estão integrados na identidade nacional É o caso do uso de diminutivos e da omissão de nomes de famílias no trato social como forma de criar intimidade A cordialidade do brasileiro se faz notar principalmente no seu desejo de estabelecer intimidade em vez de respeito A polidez de outros povos nos parece fria e formal O convívio social entre nós está fundado numa ética da emoção PEREIRA 2010 p 45 São esses aspectos de cordialidade da alma brasileira que o presente trabalho pretende explicitar no romance machadiano Esaú e Jacó No seu penúltimo romance publicado em 1904 Machado de Assis nos introduz ao menos cordial de seus personagens o narrador e diplomata Aires Procuraremos mostrar que é a partir da definição deste como cordato polido justamente o oposto de cordial que Machado de Assis constrói por oposição a cordialidade dos demais personagens e portanto antecipa as reflexões de Holanda sobre o homem cordial expostas em Raízes do Brasil reflexões que permitem a interpretação junguiana de complexo de cordialidade da alma brasileira 4 O homem cordial e o homem cordato Principiemos por lembrar que Esaú e Jacó ainda que seja um texto narrado na terceira pessoa é definido no prólogo como o último volume das memórias de Aires Machado de Assis constrói então a estranha situação narrativa de um eu que se trata como um ele De fato é em terceira pessoa que o narradordiplomata sublinha o detalhe de ser um homem extremamente cordato Aires era cordato repito embora esta palavra não exprima exatamente o que quero dizer Tinha o coração disposto a aceitar tudo não por inclinação à harmonia senão por tédio à controvérsia ASSIS 1997 p 965 Cordato no contexto significa se pôr de acordo para ser polido De fato lemos que Aires usava sempre em concordar com o interlocutor não por desdém da pessoa mas para não dissuadir nem brigar ASSIS 1997 p1057 Era em todos os sentidos um diplomata Imagina só que trazia o calo do ofício o sorriso aprovador a fala branda e cautelosa o ar da ocasião a expressão adequada tudo tão bem distribuído que era um gosto ouvilo e vêlo ASSIS 1997 p 964 Lembremos que este diplomata passou uns trinta anos da sua vida no exterior só visitando o país em ocasionais licenças É o mais europeizado dos personagens machadianos o mais civil e polido Ora a polidez comparece como um detalhe importante do retrato com que posa para a Modernidade o homem civilizado É suposta como uma grande virtude apurada em longos anos de civilização e reivindicada como condição essencial para a vida em sociedade Indispensável ao guardaroupa do homem moderno a polidez só será despida por ocasião da intimidade do lar tal como Aires nos é descrito a fazer Não cuides que não era sincero erao Quando não acertava de ter a mesma opinião e valia a pena escrever a sua escreviaa tendo para isso uma série de cadernos a que dava o nome de Memorial Naquela noite escreveu estas linhas Noite em casa da família Santos Natividade e um Padre Guedes que lá estava gordo e maduro eram as únicas pessoas interessantes da noite O resto insípido mas insípido por necessidade não podendo ser outra coisa mais que insípido Não acabo de crer como esta senhora aliás tão fina pode organizar noites como a de hoje ASSIS 1997 p 965967 O mais europeizado dos personagens machadianos parece ter realizado a separação moderna entre o público e o privado No fragmento nós o vemos despir a atitude cordata de salão para adotar a sinceridade devida a um diário íntimo que só após a sua morte seria publicado Neste diário Aires qualifica as mesmas pessoas a que em público tivera o trabalho de polidamente agradar de insípidos Em diversos momentos do romance comparece sublinhada a oposição entre a atitude pública e a atitude privada de Aires Vejamos alguns em um diálogo mantido com Santos quando fumava com este um charuto o diplomata enquanto olhava mansamente para o anfitrião pensava consigo mesmo não podia negar a si mesmo a aversão que este lhe inspirava ASSIS 1997 p 1012 Há também o episódio da imprópria consulta noturna a Aires por parte de Batista este como político conservador queria saber a opinião do diplomata se devia ou não aceitar o convite dos liberais para assumir a presidência de uma província Aires ouvia e escondia o espanto Convidado assim àquela hora Uma profissão de fé política A calma aparente do diplomata antes escondia uma impaciência que ele civilizadamente procurava controlar O impróprio da situação era demais até para a sua cordata polidez Quando Aires se achou na rua só livre solto entregue a si mesmo sem grilhões nem considerações respirou largo ASSIS 1997 p 1017 Ou ainda o caso de Flora esta pedira a Aires que dissuadisse o pai da ideia de deixar a corte e ir para a província e o diplomata cordato prometeu intervir só que no íntimo achou tão absurdo este pedido que esteve quase a rir mas contevese bem ASSIS 1997 p 1015 Contudo diante da oportunidade proporcionada pela consulta de Batista aconselhou então a este exatamente o contrário do que antes prometera à filha e portanto sendo agora cordato para com o pai a quem interessava aceitar o cargo na província Enfim o europeizado Aires alcança satisfazer cordatamente a todos e sobressai nestas cenas como o único a dominar com maestria as leis modernas do convívio social De fato notemos que os outros personagens comparecem justamente a infringir estas leis quando exteriorizam em contraste com a atitude cordata do Conselheiro uma disposição tanto para controvérsias apaixonadas os insípidos da noite em casa de Santos discutiam com paixão sobre a adivinha do Morro do Castelo quanto para revelações íntimas como nos exemplos de Batista e Flora ambas as atitudes tidas como impróprias à conversa polida de salão A atitude cordata de Aires demonstra a moderna impessoalidade com que este conduz as suas relações sociais já a atitude dos demais personagens explicita um arcaísmo de um país patriarcalista que insistindo na pessoalidade de todos os vínculos não faz distinções entre o espaço público e o privado Aires se vê então às voltas com casos como os de Flora e Batista a pedirem ambos um conselho pessoal a ele praticamente um estranho Lembremos que o diplomata considerava esta sociedade como composta por gente estranha ASSIS 1997 p 989 e não por amigos e ele só os ouvia por imposição de sociedade ASSIS 1997 p 1015 É ainda significativo que estes dois personagens não sejam os únicos a reivindicar ao Conselheiro Aires a intimidade que acompanha o papel de conselheiro título que deveria ser por convenção apenas simbólico De fato tanto Batista e Flora quanto Natividade Santos Pedro Paulo e até Custódio recorrem aos conselhos do Conselheiro E se este os recebe em público com polidez quando na intimidade do seu Memorial os deprecia atribuindolhes a condição de insípidos além da epígrafe anima mal nata A esta altura nos interessa sublinhar que o romance machadiano Esaú e Jacó de fato sugere que na sociedade brasileira há constante invasão do espaço público pelo privado existem outros exemplos a serem citados mas que extrapolam os limites do presente trabalho1 Pois este importante traço identitário é determinante nas reflexões desenvolvidas por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil No capítulo O homem cordial Sérgio Buarque denomina este traço definitivo do caráter brasileiro definido pelos padrões de convívio humano informados no meio rural e patriarcal de cordialidade Expressão que deveria ser tomada em seu sentido exato e estritamente etimológico para designar um sentimento nascido do coração procedendo assim da esfera do íntimo do familiar do privado HOLANDA 1975 p 106107 Machado então antecipa através da oposição que constrói entre a moderna impessoalidade do europeizado Aires atualizada na atitude cordata ou polida deste e a arcaica pessoalidade dos outros personagens atualizada por seu turno na atitude cordial destes últimos as reflexões de Holanda sobre as possíveis raízes do Brasil Notemos que o próprio Holanda distingue ambas as atitudes sublinhando a atitude polida consiste precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no homem cordial é a forma natural e viva que se converteu em fórmula HOLANDA 1973 p 107 De fato o seu estudo explicita a distância que separa os dois conceitos a polidez e a cordialidade e ainda o quanto que o modelo de convivência social em vigor no Brasil ao destoar do primeiro distancia o país da ritualística impessoalidade com que o indivíduo aprendeu a se disfarçar na sociedade moderna E conclui Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualística da vida que o brasileiro Nossa forma ordinária de convívio social é no fundo justamente o contrário da polidez a polidez é de algum modo organização de defesa ante a sociedade Detémse na parte exterior epidérmica do indivíduo podendo mesmo servir quando necessário de peça de resistência Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar intatas sua sensibilidade e emoções HOLANDA 1973 p 107 Pois é este impessoal disfarce em contraste com a pessoalidade dos outros personagens que estamos presenciando o europeizado Aires a vestir em Esaú e Jacó Machado constrói então um personagem que no convívio social procura disfarçar as suas emoções mais íntimas as quais serão transcritas em um diário a ser publicado somente depois da sua morte quando este não mais precisar se disfarçar e se defender diante desta sociedade Ao mesmo tempo que apresenta um personagem extremamente cordato Machado apresenta seus outros personagens com traços de cordialidade A invasão do espaço público e estatal pelo privado e familiar na sociedade brasileira não escapou ao escritor e é registrada no seu penúltimo romance Estas são algumas das reflexões machadianas que estamos relacionando ao conceito do homem cordial de Holanda conceito que admite a interpretação junguiana de complexo cultural de cordialidade e a respeito do qual importa ainda notar a seguinte observação de Henrique Pereira O complexo cultural de cordialidade evoca um tema arquetípico que é a passagem da lei da família para a lei da Cidade O conflito entre estes dois princípios foi retratado por Sófocles como o conflito entre Creonte representante da Pólis e Antígona a guardiã dos valores familiares Psicologicamente a família está sob o signo dos vínculos eróticos cuja metáfora recorrente é a mãe enquanto que a Cidade ou o Estado impessoal está simbolicamente impregnado da lei própria do pai O complexo de cordialidade do brasileiro seria assim expressão da tensão decorrente do atrito destas duas experiências arquetípicas mãe e pai E a nação brasileira mantendose perigosamente vinculada aos valores cordiais maternos permanece infantilizada uma reencenação arquetípica do puer aeternus a criança eterna somos um povo que realiza pouco seu enorme potencial criativo Não disseram afinal que o Brasil é o país do futuro PEREIRA 2010 p 4546 5 Considerações finais Eis então o estudo da alma brasileira registrado no romance machadiano Esaú e Jacó a partir do conceito de cordialidade do sociólogo e historiador Sérgio Buarque de Holanda e do conceito de complexo cultural da psicologia junguiana Esperamos ter conseguido estabelecer relações pertinentes entre estas diferentes áreas de conhecimento Não foi nossa pretensão em absoluto esgotar o assunto Muito provavelmente ângulos importantes deixaram de ser explorados ou sequer foram vislumbrados Por ora este é o trabalho possível Referências ADAMS MV The multicultural imagination race color and the unconscious Nova York Routledge 1996 ARAÚJO FC Da cultura ao inconsciente cultural Disponível em httpwwwrubedopscbrartigosbcultaculhtm Acesso em 26102004 ASSIS JMM Esaú e Jacó 1904 Rio de Janeiro Nova Aguilar 1997 Obra Completa vol I BOECHAT W Eros poder e o racismo cordial aspectos da formação da identidade brasileira V Congresso Latinoamericano de Psicologia Junguiana Santiago 2009 p 125314 Anales GAMBINI R Espelho índio A formação da alma brasileira São Paulo Axis MundiTerceiro Nome 2000 HENDERSON JL Cultural attitudes in psychological perspective Toronto Inner City Books 1984 HOLANDA SB Raízes do Brasil 1936 Rio de Janeiro José Olympio 1973 JUNG CG Civilização em transição Petrópolis Vozes 1993 Obras Completas vol 103 O espírito na arte e na ciência Petrópolis Vozes 1985 Obras Completas vol XV LIMA LC O controle do imaginário São Paulo Brasiliense 1984 MAFFESOLI M Elogio da razão sensível Petrópolis Vozes 1998 PEREIRA H Considerações sobre os complexos culturais In NASCIF R LAGE V orgs Literatura crítica cultura IV interdisciplinaridade Juiz de Fora UFJF 2010 RAMOS A O folclore negro do Brasil 1935 São Paulo WMF Martins Fontes 2007 RAMOS DG Corruption symptom of a cultural complex in Brazil In SINGLER T KIMBLERS S orgs The cultural complex contemporary Jungian perpectives on psyche and society HoverNova York Brunner Routledge 2004 p 102123 SINGLER T KIMBLERS S orgs The cultural complex contemporary Jungian perpectives on psyche and society HoverNova York Brunner Routledge 2004 Possui graduação em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro 1990 graduação em Matemática pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 1987 doutorado em Literatura University of Newcastle Upon Tyne 1994 especialização em Psicologia Junguiana pelo IBMRRJ 2006 e pós doutorado em Literatura pela PUCRJ 2007 É professoraassociada da graduação e pósgraduação em Letras mestrado e doutorado em Estudos Literários da Universidade Federal de Juiz de Fora Tem experiência na área dos Estudos Literários com ênfase em literatura brasileira atuando principalmente nos seguintes temas Apropriação Identidade cultural Literatura e psicologia junguiana Literatura e espiritualidade Literatura e budismo Machado de Assis Guimarães Rosa Clarice Lispector 1 O registro machadiano da não distinção por parte do brasileiro entre os espaços público e privado já foi estudado por Luiz Costa Lima no ensaio Machado e a inversão do veto em O controle do imaginário LIMA 1984 p 242261 6 O tempo e o vento Traços da alma brasileira Elisabeth Bauch Zimmermann Escolhemos trabalhar psicologicamente a trilogia de Érico Veríssimo O tempo e o vento como narrativa de uma saga familiar que apresenta a colonização de uma região denominada O Continente de São Pedro e a construção do Povoado de Santa Fé Descrevendo os acontecimentos históricos da época compreendida entre 1745 e 1945 e analisando as personagens masculinas e femininas da saga foi possível resgatar traços da formação da alma brasileira na região do Rio Grande do Sul sob o ângulo de visão da psicologia analítica Descrever e analisar os fatos e as personagens da saga familiar O tempo e o vento de Érico Veríssimo tem como intenção revelar traços da alma brasileira que foram se formando naquele período de colonização da região em seus aspectos luminosos e sombrios Relacionar uma obra literária de grande porte com grande conhecimento de uma região brasileira pareceme uma forma relevante de penetrar no mistério da alma de um povo sob a ótica da psicologia junguiana Publicado entre 1949 e 1961 a trilogia de Érico Veríssimo O tempo e o vento narra a saga familiar dos Terra e dos Cambarás famílias que fizeram parte da construção de toda uma região no Rio Grande do Sul região esta denominada O Continente de São Pedro A ação da narrativa começa em 1745 e se desenvolve até 1946 No ano de 1777 Ana Terra filha de colonos de origem portuguesa vive na estância paterna uma vida restrita e sacrificada Junto com a mãe se ocupa das árduas tarefas domésticas o preparo da comida a limpeza da casa e das roupas enquanto o pai e os dois irmãos cuidam da lavoura e de alguma criação Estão isolados não têm vizinhos um dia transcorre como o outro trabalho refeições descanso e tudo novamente no outro dia Nenhum conforto ou diversão Ana sente falta do lugar de onde veio a Capitania de São Paulo onde viveu antes da família obter a terra O pai Maneco Terra é um homem calado teimoso que sonha em ampliar a estância em criar gado em plantar trigo Ana quer ver gente ir à igreja ouvir música O pai dá as diretrizes em tudo A mãe se cala Um dia Ana encontra à margem da sanga um índio ferido que mais tarde relata ter sido criado e educado pelos padres nas missões uma vez que sua mãe morreu no parto Filho de índia e bandeirante paulista foi chamado de Pedro Missioneiro Veríssimo o descreve como um índio visionário que prevê os acontecimentos inclusive o final trágico da missão em consequência de um acordo de terras feito entre Espanha e Portugal Cem anos de um processo civilizatório de alto nível foi destroçado sem levarse em conta o grande valor humano da obra que padres e índios haviam desenvolvido Padre Alonso um dos missionários em meados do século XVIII descreve um corregedor índio José Tiaraju como um belo homem de rígida postura marcial parco de palavras e de gestos Sabia ler e escrever com fluência tinha habilidade para a mecânica e conhecia a doutrina cristã melhor que muitos brancos letrados Ninguém melhor do que ele domava um potro ou manejava o laço poucos podiam ombrear com ele no conhecimento e trato de terra e a guerra mostrara que ninguém o suplantava como chefe militar e guerrilheiro Em tempos de paz sabia exprimirse com precisão e economia de palavras e nas suas sábias sentenças Alonzo vislumbrava às vezes uma pontinha de ironia o que o deixava a pensar nas ricas reservas mentais daquela raça considerada pelos homens brancos inferior e bárbara p 67 Pedro Missioneiro ainda menino começou a divulgar ingenuamente a lenda de que José Tiaraju era o arcanjo São Miguel que estava lutando a favor da missão contra os espanhóis e portugueses Censurado pelos padres por esta heresia continuou no entanto a espalhar por todos os cantos que o corregedor era uma encarnação do arcanjo Pedro tinha uma relação mística com os santos e com a Virgem Maria com quem falava quando ia visitar o túmulo de sua mãe e a quem chamava mãe espiritual Com os padres aprendeu a ler escrever e fazer contas Tocava dois instrumentos e compunha música A família de Ana Terra cuidou de seu ferimento obtido numa das batalhas em defesa do território das missões e deixouo ficar para ajudar os homens da casa nas tarefas da estância Ele vivia numa cabana solitária e às vezes tocava em sua flauta melodias nostálgicas compostas por ele mesmo Ana sentiase perturbada por sua presença e acabou se envolvendo com ele numa paixão muito intensa Quando sua gravidez foi percebida os irmãos a mando do pai mataram Pedro e o enterraram longe da casa como Pedro tinha previsto e relatado a Ana nada fazendo para evitar sua morte Através dessa parte da narrativa entramos em contato com a força original da natureza indígena seus critérios rígidos de honra e justiça sua sensibilidade e também sua ingenuidade fatalismo e superstição Algumas dessas características da natureza do índio podem ser consideradas aspectos da alma brasileira e estão profundamente arraigadas em habitantes de várias regiões em que a presença indígena foi mais marcante Ana deu à luz um menino e lhe deu o nome de Pedro O pai a ignorava os irmãos a evitavam a mãe tentava servir de apoio e consolo silencioso depois adoeceu e morreu Então Ana cuidava dos afazeres da casa sozinha mais tarde foi auxiliada pela cunhada casada com o irmão Antonio Quando em 1790 o pai e os irmãos são mortos num assalto à estância por bandoleiros castelhanos Ana é violada e machucada uma vez que só ela ficou de mulher na casa com os irmãos e o pai Preocupandose com o filho pequeno e a cunhada que tinha também uma filha pequena mandouos se esconderem no mato Quando voltou a si após o assalto viu o pai e os irmãos mortos e os dois escravos também A estância estava destruída e as mulheres com seus filhos foram resgatados por carreteiros que estavam a caminho das terras que fariam parte da Vila de Santa Fé a ser fundada por Ricardo Amaral Este lutara como tenente junto às forças portuguesas na guerra contra os castelhanos e recebera como recompensa além de condecorações muitas terras Em 1803 Chico Amaral filho de Ricardo Amaral deu início às providências para fundar o povoado de Santa Fé Lá Ana viveu até sua morte Ganhou um pedaço de terra construiu seu rancho de taipa coberto de capim plantou o alimento e criou o filho Tornou se a parteira da comunidade e usava uma velha tesoura legado da família desde os tempos de sua bisavó portuguesa para cortar o cordão umbilical dos recémnascidos Ana gostou de um só homem em toda a sua vida Pedro Missioneiro e sempre rejeitou as propostas de casamento que lhe foram feitas depois no povoado Temos em Ana uma mulher fortemente ligada aos elementos da natureza os ventos os cheiros a tensão antes das tempestades o desejo e a dor Representa a mulher elementar corpo robusto beleza rústica firme em seu propósito de sobreviver e criar seu filho a quem ama intensamente e que representa todo o conteúdo de sua vida Não demonstra preocupações intelectuais ou aspirações espirituais Sua religiosidade é primária e tosca como toda ela Pedro já feito homem casase com Arminda e tem dois filhos Bibiana e Juvenal Como Ana Terra Bibiana é uma mulher forte mesmo tendo sido criada na vila com mais recursos do que sua avó Ana Terra mas igualmente obstinada e persistente em suas ambições e em sua ligação com a terra Teve o seu momento de paixão casandose com o Capitão Rodrigo o grande amor de sua vida Este descendente de portugueses foi um soldado forte e bonito violeiro cantador aventureiro corajoso e mulherengo que se apaixonou por ela e a roubou do noivo Bento Amaral a quem tinha sido prometida Veríssimo o descreve assim Um dia chegou a cavalo vindo ninguém sabia de onde com o chapéu de barbicacho puxado para a nuca a bela cabeça de macho altivamente erguida e aquele seu olhar de gavião que irritava e ao mesmo tempo fascinava as pessoas Devia andar pelo meio da casa dos trinta montava um alazão trazia bombachas claras botas com chilenas de prata e o busto musculoso apertado num dólmã azul com gola vermelha e botões de metal Tinha um violão a tiracolo sua espada apresilhada aos arreios rebrilhava ao sol daquela tarde de 1828 e o lenço encarnado que trazia ao pescoço esvoaçava no ar como uma bandeira p 170 Bibiana sendo íntegra e forte aceitou a índole aventureira de seu marido o Capitão Rodrigo sem perder seu amor por ele mantendose fiel a sua memória após sua morte em combate Desenvolveu ao longo de sua vida uma personalidade autoritária e dominadora defendendo a terra e o sobrado em que a família viveu por várias gerações Bibiana e o Capitão Rodrigo tiveram três filhos Bolívar Anita e Leonor durante a narrativa Bolívar é o que tem maior destaque As palavras de Dr Winter o médico da vila a descrevem D Bibiana Ali estava uma criatura de valor Com umas duzentas matronas como aquela estaria garantido o futuro da Província Entretanto o destino das mulheres naquele fim de mundo era bem melancólico Não tinham muitos direitos e arcavam com quase todas as responsabilidades Sua missão era ter filhos criálos tomar conta da casa cozinhar lavar coser e esperar um forasteiro que dirigisse a palavra a uma senhora corria o risco de incorrer na ira do marido do pai ou do irmão dessa senhora que lhe viria imediatamente tirar uma satisfação p 347 Outra personagem que pode ser citada como protótipo não muito honroso da alma brasileira é Aguinaldo Silva um negociante que veio do norte do país e que fez fortuna formando tropas vendendoas a charqueadores e emprestando dinheiro a juros altos Como muitos tinham dificuldades em pagar os empréstimos Aguinaldo foi se apossando de muitas propriedades em Santa Fé inclusive das terras e da casa de Pedro Terra pai de Bibiana Nesta terra construiu um grande sobrado na praça da vila Este terá um papel importante no desenrolar dos acontecimentos Luzia Silva neta adotiva do negociante tinha sido educada numa escola de freiras na capital e seu avô sempre lhe proporcionara do bom e do melhor A moça gostava de saraus musicais tocava cítara e lia romances Dizia Fui educada na Corte Sei como vivem as mulheres nas grandes cidades do mundo p 396 Era voluntariosa autoritária cheia de caprichos p 335 Demonstrava ter uma certa morbidez doentia e uma maneira altiva ao lidar com as pessoas evocando nelas uma atitude defensiva Numa terra de gente simples sem mistérios Luzia se revelava uma criatura complexa uma alma cheia de refolhos uma pessoa enfim para usar a expressão das gentes do lugar que tinha outra por dentro Fitava as pessoas com a mesma indiferença com que olhava as coisas p 338 Não era vista com bons olhos pela população feminina de Santa Fé e os homens a admiravam mas ela os intimidava com seus modos diferentes Odiava a vida provinciana de Santa Fé e sempre quis sair de lá Porém Bolívar com quem se casou por sugestão de Bibiana não conseguia se subtrair à vontade da mãe que mantinha o filho junto às propriedades recémreconquistadas através do casamento com Luzia Após o casamento de Bolívar com Luzia o sobrado se tornou o feudo dos Terra Cambará fortaleza protegida a partir de onde os chefes da família combateram o poder constituído até se tornarem parte dele Novamente nas palavras do Dr Winter temos uma descrição de Bolívar Ali estava um belo tipo Era robusto másculo tinha coragem conhecia as lidas do campo e as da guerra Mas era homem de poucas letras mal sabia ler e escrever e não possuía a menor noção de história ou geografia p 394 Em 1855 Bolívar é morto durante um cerco inimigo ao sobrado e Luzia fica cada vez mais soturna recolhida em seu quarto sem se ocupar do filho Licurgo ou do sobrado Morre sem ter se aproximado do filho deixandoo perdido em relação a seu vínculo materno Luzia foi uma mulher instruída e bela mas perversa estigmatizada e sem utilidade nenhuma para a família Deslocada e infeliz teve uma existência trágica até o fim de sua vida Aos quinze anos Licurgo Cambará era já um homem Usava faca na cava do colete fumava fazia a barba e já tinha conhecido mulher Estudava História e Linguagem com o Dr Nepomuceno Aritmética e Geografia com o vigário e Ciências com o Dr Winter O resto que para ele era o principal aprendia com o velho Fandango o capataz p 465 Casouse com sua prima Alice e teve dois filhos Durante toda sua vida Licurgo foi um homem calado correto irredutível em seus princípios um senex que não se aproxima afetivamente de seus filhos nem de sua família A exceção foi Ismália Carré com quem manteve um relacionamento extraconjugal até o fim de sua vida e a quem dedicou todos os seus sentimentos É Maria Valéria neta de Juvenal Terra quem completa o ciclo das mulheres fortes da narrativa Vai viver um grande amor por Licurgo seu cunhado que se casou com sua irmã Alice Permanece solteira e após a morte da irmã assume os cuidados do sobrado e da família até o fim da narrativa Tornase a Dinda personagem central da casa sempre presente com seus cuidados e suas regras e suas concepções preconceituosas Domina a todos com sua presença severa e no entanto confortadora É uma Héstia que mantém o fogo do lar aceso cuidando de tudo e de todos por três gerações a dela e a de seu sobrinhos e sobrinhosnetos Os filhos de Licurgo Rodrigo e Toríbio representam a sexta geração de homens da narrativa de Veríssimo Dois homens peleadores como era comum se dizer naqueles tempos no Rio Grande do Sul Entre 1844 e 1937 aconteceram muitas guerras e revoluções e os homens se lançavam nestas campanhas com euforia e coragem Às vezes parecia que a única função dos homens da Província do Rio Grande do Sul era a de servirem como soldados a fim de manterem as fronteiras do país com a Banda Oriental e a Argentina Parecia que a guerra era a regra sendo a paz apenas uma exceção a gente vivia guerreando e nos intervalos cuidava um pouco da atividade agrícola e pastoril Tudo era feito com o pensamento na próxima guerra ou na próxima revolução Havia nos olhos das mulheres uma permanente expressão de susto p 394 Era nobre lutar pelos ideais e pela pátria Era o que se esperava de um homem Confirmavase a instalação da sociedade machista no Rio Grande do Sul A arma de fogo e a faca estavam sempre prontas Nenhum homem que se prezasse engolia desaforo As mulheres sofriam com o medo de perder os maridos e os filhos e estavam sempre à espera de seu retorno em noites de ventania como diz Veríssimo Dr Winter refletindo sobre esses costumes e considerando que aquele era um país novo ainda em sua primeira infância diz tratavase positivamente duma sociedade tosca e carnívora que cheirava a sebo frio suor de cavalo e cigarro de palha As casas eram pobres primitivas sem gosto nem conforto quase vazias de móveis em suas paredes caiadas não se via um quadro uma nota de cor que lhes desse um pouco de graça Os homens machos da Província de São Pedro pareciam achar que toda a preocupação artística era além de inútil efeminada e por isso olhavam com repugnada desconfiança para os que se preocupavam com poesia pintura ou certo tipo de música que não fossem as toadas monótonas de seus gaiteiros e violeiros p 148 Por outro lado Rodrigo Cambará bisneto do Capitão Rodrigo e herdeiro de sua índole apaixonada e inquieta foi médico homem culto e bonito vaidoso e cheio de ambições Generoso por natureza quis fazer algo de valor por sua cidade natal Santa Fé após o término de seus estudos de medicina em Porto Alegre Pretendia criar um hospital e uma farmácia popular ser um homem de bem casarse e formar uma família Realizou esses projetos tornandose um líder político muito atuante em sua cidade Seu irmão Toríbio foi um homem do campo Cuidava da estância da família que neste ponto da narrativa é muito abastada Ambos tiveram prestígio e reconhecimento na região e participaram de várias ações políticas e campanhas revolucionárias Turíbio era forte honesto intransigente quando se tratava de princípios e de fidelidade aos ideais patrióticos No entanto vivia de maneira descompromissada saia atrás das chinocas e não assumiu casamento Seu irmão Rodrigo casouse com Flora Quadros e teve cinco filhos Alicinha morreu cedo e foi a filha preferida do pai sua princesinha João ou Jango tornouse o homem da terra cuidando da estância da família Florêncio se tornou um escritor renomado personagem provavelmente autobiográfica de Érico Veríssimo Angustiado não tinha crença espiritual apaixonouse por Sílvia afilhada de Dr Rodrigo mas não se casou com ela por temor de assumir essa responsabilidade Sílvia filha de uma costureira pobre que tinha sido abandonada pelo marido lutava para manter a si e a filha A menina projetava no pai ausente uma imagem idealizada que era desmentida constantemente pela mãe Ao ser acolhida no sobrado e poder brincar com os filhos de seu padrinho era uma menina triste que ficava sempre esperando ser amada como se fosse uma filha legítima e projetando no Dr Rodrigo todo o amor que não podia dedicar ao pai biológico Foi estudar em Porto Alegre a partir da iniciativa de seu padrinho e formouse professora Casouse com Jango apesar de não amálo por insistência do Dr Rodrigo Florêncio e Sílvia viveram seu amor enrustido durante boa parte da narrativa Sílvia se manteve no casamento com Jango e acabou achando um caminho de superação e sublimação através do encontro com Deus e com a maternidade Florêncio seguiu seu destino confortado por vêla em paz tendo encontrado uma solução para sua tristeza Continuou a amála até o final da narrativa daquele jeito platônico que correspondia a sua natureza pouco inclinada a lutar por seus desejos Foi um homem culto e viajado teve sucesso com seus livros viveu de maneira disciplinada não se permitindo a vida desregrada do pai Fortemente ligado à mãe tomou seu partido no sofrimento pelas traições constantes do marido Flora emocionalmente frágil desde o início do casamento consumiuse com as revoluções que afastavam Dr Rodrigo por longos períodos da casa e mais tarde não suportou as traições do marido abatendo se no sofrimento e no sentimento de rejeição Os homens podiam sair em aventuras amorosas a fazer filhos nas chinocas que encontrassem pelo caminho nas escravas ou nas concubinas p 347 Rodrigo não conheceu limites em suas aventuras extraconjugais Como o bisavô o Capitão Rodrigo foi vaidoso egocêntrico amoral e venal ao extremo Neste último aspecto parece não ter amadurecido nada mantendose até o fim de seus dias um adolescente libidinoso Um puer talentoso e cativante mas sempre um puer incapaz do sacrifício de seus desejos Em 1931 mudouse com a família para o Rio de Janeiro e lá permaneceu durante 15 anos tornandose o homem de confiança de Getúlio Vargas Neste período afastouse dos ideais da juventude e tornouse um político que aproveitava as chances que a proximidade de Getúlio lhe oferecia Toríbio não o perdoou e rompeu violentamente com o irmão na noite de 31 de dezembro de 1937 noite em que foi morto numa luta de botequim na presença de seu sobrinho Florêncio Esta passagem é especialmente comovedora uma vez que os irmãos eram ligados por fortes sentimentos Na estância da família muitas vezes nadando na sanga partilharam os acontecimentos importantes de suas vidas Essa relação afetiva e fraterna entre os irmãos mas também em várias gerações de amigos vai se repetindo na narrativa evidenciando uma característica muito especial da alma brasileira Resumindo então as personagens femininas temos Ana Terra Bibiana e Maria Valéria como exemplo de mulheres fortes que sustentavam a casa e os princípios arraigados da família E Luzia Flora e Sílvia como mulheres frágeis sensíveis e angustiadas diferenciadas em graus diferentes pelo estudo pela leitura e pela maior consciência de sua existência Como personagens masculinos marcantes desta saga familiar temos Maneco Terra Pedro Terra Capitão Rodrigo Cambará Bolívar Licurgo Toríbio Dr Rodrigo e Florêncio entre muitos outros A distância percorrida entre Maneco Terra homem pobre sem cultura rústico e preconceituoso orgulhoso e arraigado a terra e Dr Rodrigo Cambará e seu filho Florêncio homens cultos amantes das artes viajados e ricos foi muito grande e revela o processo de formação e civilização daquela região brasileira Esses homens incorporam as gerações que formaram o território do Rio Grande do Sul desde as guerras de fronteira até as revoluções republicanas federalistas e nacionalistas Como arquétipos temos o homem da terra e o homem das ideias e das letras O chão e a cultura A sobrevivência e os ideais Junto a isso as paixões os amores os gestos de generosidade e de coragem a honra e também a corrupção a má administração e o declínio dos ideais Em relação ao homem do chão é preciso citar Fandango personagem ricamente ilustrada por Veríssimo Velho gaúcho descendente de índios peão da família Cambará desde menino e depois capataz é um homem vigoroso ligado à terra e à natureza Gosta de contar casos de assombração à noite com os homens reunidos no galpão da estância pitando ao redor do fogo Sendo bom bailarim ama dançar nos bailes mesmo depois de velho É sábio mas tem opiniões muito formadas das quais não abre mão para deixar entrar novidades Tendo participado de guerras e revoluções desde seus 16 anos é um homem simples trabalhador fiel e corajoso e muito desconfiado em relação ao que vem escrito nos livros É estimado por todos patrões e peões e ao perder seu filho e seu neto nas guerras continua vivendo sua vida porque não há nada que se possa fazer a não ser isso mesmo Podese perceber nesta personagem a grande energia persistência coragem e ludicidade do homem daquela região sulina formado pelo casamento de portugueses e índios em intensa luta pela sobrevivência Temos ainda em oposição ao Fandango Roque Bandeira ou Tio Bicho amigo da família Terra Cambará que por ser muito feio recebeu esse apelido por parte das crianças É um intelectual solitário e anarquista com uma posição cética em relação a tudo que tem um cunho confessional ou religioso Resume a formação da nação brasileira dizendo que somos herdeiros de dois Pedros com tendências opostas Pedro Malazarte e D Pedro II O primeiro malandro inconsequente brincalhão e sem moral O segundo inteligente culto nobre e honesto em suas ideias e atitudes Esta afirmação representa provavelmente a posição de Érico Veríssimo em relação à formação da atitude nacional por excelência Juntamente com a descrição do papel da mulher na família forte e dominadora de um lado e sensível e angustiada por outro as duas descrições compõem uma imagem do que teria sido a construção da alma brasileira pelo menos no que se refere àquela região do Rio Grande do Sul Veríssimo enfatiza a personagem de Dr Rodrigo na segunda e na terceira partes da narrativa O retrato e o arquipélago que descrevem os acontecimentos durante os anos de 1909 até 1945 Demorase em seu percurso provavelmente também porque viveu numa época mais atual sobre a qual existem muitos documentos e notícias de fatos ao alcance do escritor Mas também por ser um retrato bastante adequado quando se pensa nos traços que delineiam a alma brasileira com suas luzes e sombras Representa o homem generoso lúdico apaixonado heroico mas também desmoralizado infantil sombrio e perverso Rodrigo não encontrou dentro de si os recursos para a apropriação de seus inúmeros aspectos positivos nem para o confronto efetivo com sua sombra Talvez lhe tenha faltado uma imagem paterna mais próxima e afetiva que o teria ajudado na autorregulação de suas qualidades Um desperdício de potenciais como tantas vezes temos a oportunidade de presenciar em nossa história brasileira Por outro lado a presença do feminino nesta saga é um misto de submissão e dureza sensibilidade doentia e autoritarismo não propiciando a relação com um grande amor que por um lado poderia manter o homem protegido de suas paixões e por outro o conduziria a uma grande realização interior a uma conjunção superior O que resulta dessa dupla falta é a vida se desenrolando entre experiências opostas de ligações imaturas e bravatas ideológicas levadas tão a sério que roubavam a vida de milhares de homens gaúchos de boafé A caricatura de um feminino frágil ou duro e de um masculino pueril ou heroico revela uma integração de opostos ainda insuficiente nesta narrativa de O tempo e o vento A distância entre a dimensão carnal e a psíquica persiste Jung diz em outro contexto mas oportuno aqui Em última análise ambos buscam um relacionamento psíquico porque o amor necessita do espírito e o espírito do amor para se completarem JUNG OC 10 269 Também em nosso tempo tanto o logos quanto o eros tanto a dimensão material quanto a espiritual precisam estar enraizados na essência do ser humano para atingirem um grau pleno de diferenciação Quando isto tiver sido alcançado o melhor dos dois níveis de expressão estará a serviço do todo Referências EDINGER E Anatomia da psique São Paulo Cultrix 1995 JUNG CG Arquétipos do inconsciente coletivo Petrópolis Vozes 2000 Obras Completas vol 9 VERÍSSIMO É O tempo e o vento O arquipélago Tomos 13 Porto Alegre Globo 1962 O tempo e o vento O retrato Tomos 12 Porto Alegre Globo 1951 O tempo e o vento O continente Tomos 12 Porto Alegre Globo 1950 Psicóloga pela USP analista junguiana pelo Instituto CG Jung de Zurique Suíça Doutora em Saúde Mental pela Unicamp Licenciada em Dança Moderna pela UFBA Docente do Instituto de Artes da Unicamp II A ALMA BRASILEIRA AFRICANA 1 Uma breve análise psicológica de Exu José Jorge de Morais Zacharias47 Dizem que Exu é aquele que vai ao mercado comprar azeite e retorna levandoo em uma peneira e nenhuma gota se perde Dizem que Exu mata um pássaro ontem com a pedra que lançou hoje Exu subverte a ordem do espaço e do tempo ordem necessária à consciência que é fundada no contínuo espaço tempo e causalidade Exu transita além dos limites da consciência e além do bem e do mal Dizem que certa vez disse para a lua vá brilhar no dia E para o sol brilhe à noite E tudo se confundiu até que Oxalá restituiu a ordem das coisas Princípios estruturantes e desestruturantes unidade e diversidade centro e periferia Oxalá e Exu comungam dos primórdios do início do mundo da natureza intraduzível de Olorum a divindade suprema Como Exu é aquele que subverte é o que contradiz a lógica formal estabelecida podemos iniciar pelas considerações finais ou terminar pela introdução neste contexto simbólico tanto faz pois a palavra Exu significa em yorubá esfera CACCIATORE 1977 Introdução ou considerações finais Exu é um caleidoscópio tem muitas facetas e é continente de todas as possibilidades Contradição dinâmica que evita a cristalização e estagnação das coisas Executor das ações de homeostase também é a divindade da comunicação do embuste e executor da justiça tem parentes em várias culturas e épocas Transformador psíquico Mago que declara a verdade no deboche na sátira e na ausência de lógica Porteiro regulador entre mundos psicopompo condutor das almas e bode expiatório acolhendo a maldade e os medos humanos É diabo que representa a assombração a sexualidade a sensualidade a agressividade a alegria a boemia a malandragem que não encontrar lugar no contexto ascético judaicocristão É o diálogo possível entre o rejeitado e o aceito o condenável e o louvável entre as virtudes e os vícios É a tênue linha que separa o certo do errado o bem do mal a mente e o coração o vivido do porvir e o consciente do inconsciente Diante dele tiramos a persona e podemos nos ver nem bons nem maus somente humanos ZACHARIAS 2010 Conta um mito da criação que o deus supremo cósmico OlorumOlofim envia OxaláOduduá para a criação do mundo e da humanidade e Exu participa desta criação diversificando e ampliando as possibilidades Podemos imaginar esta relação de OlorumOlofim OxaláOduduá e Exu em uma imagem na obra de Blake a criação em que Deus constitui um compasso entre os dedos desenhando um círculo no cosmos OlorumOlofim é quem segura o compasso enquanto o ponto de apoio e centralização é OxaláOduduá e a outra ponta a que se expande no universo perfazendo um círculo é Exu que percorre todo o mundo ZACHARIAS 2010 Olorum é inacessível só o percebemos a partir de duas expressões polares de manifestação a unidade centralizadora e estruturante coagulatio e a diversidade múltipla expansiva e multifacetada solutio Algo que podemos afirmar não é uno e nem múltiplo é um possível além da polaridade um e dois O excesso de concentração tende a formar uma persona rígida Parece mais criativo buscar a integridade o diálogo de instâncias psíquicas que é um processo para toda a vida A tentativa de tornarse perfeito baseada em um código externo e social pode levar ao conflito neurótico Por outro lado o excesso de rebeldia e insubordinação ao instituído dificulta a existência dos indivíduos em sociedades e grupos a construção de um sistema ético e moral que possa organizar uma cultura e a realidade imediata Este excesso pode levar ao conflito psicótico JUNG 1987 A patologia está em se fixar em uma ou outra polaridade o curso da vida exige a dinâmica necessária para que ela aconteça o ego deve manter contato consciente com a natureza e a cultura em sua própria essência Exu nos convida a caminhar pelo mundo por outros mundos além do conhecido Loki Hermes Ganesh e Exu têm muito em comum na sua representação simbólica e função psíquica nas diversas culturas Exu convida a subverter o estabelecido para evitar a cristalização Por isto podemos iniciar pelo fim para oferecer ao leitor uma pequena experiência nos caminhos de Exu Exu na umbanda Na umbanda Exu se mostra portador do rejeitado a possibilidade de integração entre opostos irreconciliáveis Apesar disto está sujeito a Oxalá pai de todos os Orixás que determina a Lei do Retorno o karma e a caridade limitando a ação e Exu Em meados de 1907 surge na cidade de Niterói a primeira tenda espírita de umbanda Este fato deveuse a uma dissidência em um centro espírita kardecista Como era de prática comum nas comunidades kardecistas que já havia se espalhando pelo Brasil desde 1865 as entidades ou mentores espirituais sempre eram compostos por espíritos de brancos europeus ou de cultura europeia e de preferência letrados como André Luiz ou Dr Fritz ZACHARIAS 2010 O médium Zélio Fernandino de Moraes funda em 16 de novembro de 1908 a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade em Niterói o primeiro terreiro oficial de umbanda MIRANDA 2008 A umbanda nasce como uma religião sincrética com forte influência do culto católico popular aos Santos do culto aos Orixás de rituais indígenas e da moral e prática de consultas e passes do kardecismo A umbanda apresenta a incorporação de caboclos indígenas e mestres do mato pretosvelhos negros escravos boiadeiros baianos ciganos crianças marinheiros e exus não são entidades europeias como no kardecismo ou Orixás como no candomblé Neste contexto o exu presente na umbanda não é o Orixá Exu uma vez que Orixá é uma divindade os exus da umbanda são pessoas falecidas de índole mais perversa e tendem a continuar a fazer maldades mas alguns desses espíritos decidem resgatar suas faltas e tornamse o que é denominado por exu de lei ou exus guias e guardiães que atuando com os aspectos mais tenebrosos da vida humana o fazem para o bem seguindo a lei da caridade base ética da umbanda ZACHARIAS 2010 Em virtude destas questões Exu algumas vezes passou a ser associado ao diabo cristão Suas imagens representam seres fantásticos de pele vermelha chifres rabo pés de cabra tridentes capas pretas esqueletos e outras formas distorcidas do ser humano fazendo referência a aspectos de animalidade ferocidade ou à morte como putrefação Ou ainda apresentase de cartola bengala e cavanhaque a exemplo do diabo teatral uma espécie de Mefistófeles Estas são representações de Exu na umbanda por forte influência do cristianismo católico que a compõe Um ponto cantado diz Exu exu TrancaRuas me abre o terreiro me tranca a rua ALVA sd Este é um canto de abertura da sessão pedindo a Exu que atue como guardião dos trabalhos abrindo caminho para o contato com o Sagrado e impedindo que da rua cheguem perturbações Evidencia a função de Exu como intermediário comunicador entre os humanos e o mundo sobrenatural No princípio da umbanda Exu não tinha uma conotação tão trevosa associada ao diabo judaicocristão mas gradualmente Exu foi sendo o depositário dos conteúdos sombrios e rejeitados pela cultura cristã o mal a materialidade o feminino e a sexualidade como diz Dourley 1987 Esta transformação levou Exu a representar principalmente três aspectos da cultura judaicocristã dissociados da espiritualidade São eles a agressividade violenta a sexualidade e a malandragem tendo como outros campos as experiências humanas terríveis como a morte a doença e o mal Com o passar do tempo muitos terreiros de umbanda associaram Exu ao diabo judaicocristão e hoje podemos ver sua representação demoníaca em cânticos nomes e imagens Desta configuração originouse a quimbanda segmento religioso dedicado somente ao culto de exus Alguns cânticos dizem Ai ai ai valeime sete diabos Exu Brasa é um diabo ou Lalu era anjo do céu e do céu foi despejado Na tronqueira da calunga tem seu trono confirmado ou ainda Satanás Satanás Lúcifer é Satanás é um Exu é Satanás 3333 pontos riscados e cantados 2006 Referências muito claras aos aspectos sombrios do cristianismo o Diabo Além das figuras masculinas de Exu há também mulheres de pele vermelha chifres exibindo lascivamente o seio nu Estas são as Pombas Gira exus femininos especialistas em amores proibidos amarrações separações e assuntos ligados à sexualidade convencional ou não Um de seus cânticos diz A porteira do inferno estremeceu as almas correm para ver quem é Deu uma gargalhada na encruzilhada é a PombaGira e seu Lucifé 3333 pontos riscados e cantados 2006 Depositário da maldade humana no contexto da umbanda cristã com o tempo Exu foi associado ao diabo a Lúcifer e a Satanás figuras estranhas ao candomblé matriz religiosa original de Exu Mas mesmo na umbanda não foi sempre assim Nos primórdios da religião a maldade permanecia com o indivíduo não era projetada a tal ponto em Exu Embora fosse ele a trabalhar com esta maldade sentimentos de ódio vingança desejo erótico trazida pelo consulente Podemos observar o que foi dito quando observamos os pontos cantados para Exu nos primórdios da umbanda Vejamos a letra de alguns pontos desta época Ponto de Exu Tranca Ruas década de 1940 Salve ele que segura a nossa banda E que traz a nossa luz Ele é empregado de Ogum E nos traz uma mensagem de amor Por isso nós vamos cantar e bater palmas Pra Seu Tranca Rua das Almas Nosso amigo e protetor Com licença de Oxalá Com o calor de nossas palmas Seu Tranca Ruas das Almas Vem na luz e Oxalá MIRANDA 2008 O mesmo ocorreu com a figura da PombaGira que originalmente traduzia mais o galanteio e o romantismo próprios de uma época Ponto da PombaGira Dona Sete 1957 Subindo para o alto da colina Encontrei uma casa linda com uma moça formosa Era PombaGira com sete rosas amarelas na mão Era Dona Sete moça bonita Que nos dá sua bênção Sua meta é a bondade com amor e humildade Praticar a caridade Filha de Seu Omulu vem trazendo sua luz Para os filhos de Jesus MIRANDA 2008 Como podemos observar a figura de Exu presente na umbanda surgiu com uma aura de luz embora tivesse como função trabalhar os aspectos mais sóbrios da personalidade humana mas ainda integrados no eixo da totalidade sem a cisão bem e mal própria do sistema cristão Vale lembrar que no kardecismo no candomblé na umbanda e nas religiões indígenas não há a presença de uma figura malévola por natureza como o diabo cristão A associação feita pelos umbandistas de Exu com o diabo ocorreu posteriormente ZACHARIAS 2010 Exu no candomblé Sem Exu nada se pode fazer pois é responsável pela comunicação entre o mundo humano e o divino levando e trazendo pedidos e oferendas traduzindo os oráculos de Ifá e expressando a vontade dos deuses nos jogos divinatórios CACCIATORE 1977 Sendo mais um princípio do que uma figura pessoal Exu é o Orixá que participa da criação e é considerado um Orixá entre outros Outro aspecto de Exu é sua individualidade uma vez que cada pessoa tem seu Exu pessoal Além disto há o Exu guardião de um local ou de um caminho Diferente dos demais Orixás o campo de atuação de Exu é ilimitado ele é genericamente um mas com múltiplas facetas dependendo da função exercida MARTINS 2005 Várias tradições deram a ele nomes diferentes como Elegbara Bará Pombonguera e Aluvaiá CACCIATORE 1977 Originalmente Exu é conhecido como um Orixá masculino provido de um grande falo de madeira chamado de opaogó representando a truculência e irreverência bem como a fertilidade que é resultada da comunicação e interação entre os princípios masculino e feminino elemento que o aproxima do grego Príapo MARTINS 2005 Na qualidade de Trickster é moleque brincalhão e zombeteiro malicioso e arrogante como protetor dos ladrões e arruaceiros e senhor do mercado apresenta um aspecto mercurial sendo coerente somente com sua própria incoerência Um dos mitos da criação diz que OlorumOlofin senhor do firmamento e da lei reuniu os sábios do Orum céu para que o auxiliassem na criação da vida sobre a terra Esta reunião não obteve sucesso pois cada um dos participantes tinha uma ideia diferente e sempre encontrava um inconveniente na proposta do outro Quando os sábios e o próprio Olofin estavam a ponto de desistir desta tarefa Exu surgiu com uma solução Seria necessário sacrificar cento e um pombos como ebó oferenda para purificar as diversas anormalidades que impediam o sucesso da empreitada Ao ouvilo Olofim ficou perturbado pois a vida dos pombos está intimamente ligada à sua própria existência Mesmo assim consentiu pelo bem de seus filhos e pela primeira vez se sacrificaram pombos Exu guiou Olofim em todos os lugares em que deveria verter o sangue dos pombos e assim Exu participou da criação do mundo PRANDI 2001 A criação do universo ocorre a partir de um ponto original e em desdobramentos sucessivos origina tudo o que existe em níveis de existência com fenomenologia própria para cada nível Esta fenomenologia pressupõe sistemas e centros independentes entre si mas constantemente interativos e interdependentes na atração ou repulsão Podemos observar esta dinâmica desde a mitologia dos deuses com eventos de colaboração ou conflito e até na natureza igualmente conflituosa e cooperativa Estas narrativas de criação em muito se aproximam às ideias gnósticas surgidas no início do cristianismo HINNELLS 1989 Ampliando a imagem do número 101 teremos o zero no centro início e origem de tudo porém não existente na realidade apenas potência infinita o zero origina o um primeira manifestação existente do infinito A partir daí surge o duplo um a manifestação existente em dois lados direito e esquerdo mundo conhecido e não conhecido céu e terra luz e sombra consciente e inconsciente par de opostos base da homeostase natural e psíquica A criação somente foi possível a partir dos desdobramentos do Deus Supremo que traz à luz o cosmos a partir de Simesmo Neste mito podemos vislumbrar uma das mais importantes funções de Exu a de dar início ao dinamismo criativo em oposição à centralização e estabilidade Para a criação era necessário que se criasse um dinamismo contrário à estabilidade existente no mundo dos Orixás Funfuns brancos Orixás dos princípios o que incluía o autossacrifício do uno em múltiplo Como foi dito acima Exu rompe os limites do estabelecido possibilitando que o Deus Supremo se expandisse em toda a sua criação Exu é o primogênito da criação e o mensageiro dos Orixás quem abre e fecha os caminhos portanto senhor das encruzilhadas portador da fortuna ou do infortúnio Como princípio criador Exu também expressa a consumação de tudo o que foi criado Duas lendas contam que Exu resolve devorar todas as coisas que existem começando por alimentos passando por animais e plantas até sua própria mãe Frente a esta ameaça Orunmilá seu pai parte em seu encalço com uma espada e a cada encontro com Exu cortalhe uma parte do corpo esta perseguição se estende aos nove níveis do Orum céu portanto ele é cortado em 201 partes Ao chegar ao último nível eles fazem um acordo e Exu devolve tudo o que havia devorado inclusive sua mãe com a promessa de que sempre seria servido primeiro MAKINDÊ 2006 PRANDI 2001 Diferentemente dos 101 cuja somatória mantém em tensão conflitante os opostos o número dois o 201 gera o três que prenuncia a estabilidade possível para a existência de algo e os pontos necessários para se criar o plano em geometria e o mundo físico estável A extrema fome de Exu lembra o conceito de física contemporânea de matéria e antimatéria e na psique as mesmas forças que criam a consciência podem devorála Como Exu auxiliou a criação cósmica ele mesmo tenderá a aniquilála como um buraco negro Exu o próprio dinamismo psíquico que permeia todas as instâncias psíquicas participa da construção ou rompimento da consciência através de forças progressivas e regressivas No mito somente Orunmilá princípio centralizador e dono de todos os destinos é quem põe termo à fome insana de Exu O movimento enantiodrômico de Exu ampliar e contrair deve ser contido pela centralização necessária a certa estabilização do universo criado Se em um primeiro momento ele participa da criação promovendo sua expansão em outro se torna quase como um buraco negro absorvendo tudo o que foi criado Se não houvesse a intervenção de divindades estabilizadoras e centralizadoras como Olorum Orunmilá e Obatalá não existiria a estabilidade necessária para o desenvolvimento da vida Exu o intenso o dinâmico participa tanto das forças progressivas quanto das regressivas da psique ZACHARIAS 2010 Por conta desta tendência de desestruturar e inverter o que existe Exu deve ser alimentado sempre e antes de qualquer atividade Uma vez aceita reverenciada e reconhecida a tendência regressiva da psique podese garantir que as forças progressivas atuarão sem o risco de fracasso ou instabilidade Não podemos contar com a certeza de que as empreitadas chegarão a bom termo Se negligenciarmos Exu as possibilidades do inusitado e do fracasso serão maiores Reconhecer que a psique tem seu próprio dinamismo que pode ser fortemente destrutivo e regressivo e lhe dar a atenção necessária poderá nos resguardar do desastre anunciado ZACHARIAS 2010 Podemos conjecturar que no uno há o princípio do múltiplo assim como no múltiplo há o princípio do uno Em termos psicológicos este princípio dinâmico complementar permite ao Simesmo sua fenomenologia múltipla ou una dependendo da necessidade da psique individual ou cultural Apesar desta equivalência parece ser igualmente verdade haver certa predominância do princípio da estabilidade sobre a mutabilidade Podemos entender esta prevalência em função da necessária estabilidade da criação conferindo ao mundo o sentido de continuidade e estabilidade estabelecimento do Ego como realidade contínua e unilateral da experiência consciente Quando Olofim cria o universo necessita da atuação diversificadora e mutável de Exu para que as múltiplas possibilidades da criação fossem manifestas Quando ObataláOduduá cria o mundo humano e as pessoas necessita da estabilidade para que se estabeleça a continuidade da existência a permanência dos motivos e a unilateralidade na manifestação dos fenômenos Assim pensando a atuação do Self é pluralista em relação à totalidade da psique e centralizadora em função da estruturação do Ego Como já foi discutido anteriormente podemos perceber que mesmo em culturas politeístas a prática individual religiosa é a da monolatria a eleição de um ou mais deuses como imagem de adoração pessoal apesar de se reconhecer a grande quantidade de outros deuses ZACHARIAS 2010 Um dos mitos mais conhecidos conta que dois amigos sempre trabalhavam juntos e há muito tempo a estima entre eles era grande Antes de se dirigirem ao trabalho era comum saudarem Exu para que todo o trabalho corresse de forma correta Certa vez eles estavam tão preocupados com suas próprias atividades que se esqueceram de saudar o Orixá dos caminhos Exu decidiu vingarse Vestiu um gorro de duas cores de um lado preto e de outro vermelho e passou por um caminho que ficava entre o campo dos dois amigos saudando cada um efusivamente Quando os amigos se encontraram mais tarde comentaram sobre o estranho que passou pelo campo deles Um dos amigos afirmou que o homem usava um gorro preto ao que o outro retrucou Não Era vermelho Estava implantada a discórdia entre eles A discussão levou os amigos a se engalfinharem em uma briga séria Enquanto isto Exu ria a valer estava vingado ZACHARIAS 2010 Exu transita sempre pelos limites da realidade e do absurdo Mantém a homeostase e a dinâmica psíquica em funcionamento opondose a qualquer evento que comprometa esta dinâmica Na narrativa acima Exu mostra de maneira cruel a necessidade de se conhecer ambos os lados de qualquer coisa A unilateralidade própria da consciência deve ser relativizada com os conteúdos do inconsciente para que se obtenha a integridade psíquica É comum ocorrer que pessoas muito comprometidas com sua vida consciente sejam surpreendidas por eventos que desestruturam seu frágil equilíbrio emocional Nestas ocasiões sempre estará presente Exu para restabelecer a integridade psíquica e enquanto o indivíduo tenta lidar com neuroses pânicos ou sumarizações Exu se diverte Outro mito conta que após oito gerações de opulência na cidadeestado de Oyó o rei deixou de frequentar o mercado sinal claro de que ele estava doente A enfermidade do rei não melhorou e nem piorou e por isto o reino foi definhando aos poucos a exemplo de várias outras lendas que vinculam a saúde coletiva do reino à saúde do rei As lavouras não produziam e as mulheres não pariam houve seca e fome naquele lugar Os sábios de várias cidades foram convocados para resolver o problema porém sem sucesso Quando tudo parecia perdido chegou a Oyó um andarilho de sorriso debochado trazendo um bornal uma pequena faca encurvada fumava cachimbo e tinha um gorro preto e vermelho Ao chegar ao mercado os anciãos lhe perguntaram quem era e para onde ia Ele respondeu Não sei se hei ido ou se fui havido mas irei ser e serei ido Como a recepção não foi agradável Exu disse que esta não era a forma de Oyó a soberba a orgulhosa receber os estrangeiros Quando informado sobre a doença do rei Exu dá uma gargalhada e diz Eu sou andarilho antigo Venho de andar muitas léguas A terra é do meu tamanho O mundo é da minha idade Não há números para contar as proezas que fiz no tempo em que tenho andado Colhi mel de gafanhoto mamei leite de donzela esquentei sem ter fogueira já fiz parto de mulher velha emprenhei recémnascida trago a cura das moléstias e as perguntas respondidas MUSSA sd p 49 Esta fala de Exu já demonstra que ele representa a inversão da lógica a contravenção do estabelecido se assim for necessário para estabelecer a Lei e o equilíbrio Exu diz aos anciãos que tudo tem um preço ao que estes respondem que Oyó a soberba e justa saberá recompensar o estrangeiro Qual seria o preço de Exu O que tenha a maior grandeza e caiba na menor medida Em três dias o rei recuperou a saúde e no terceiro dia dirigiuse ao mercado e mandou chamar o andarilho que o havia resgatado das garras da morte O rei ofereceu primeiramente cem partes de marfim depois mais trinta facas de ferro mais dez partidas de contas de vidro mais cinquenta escravos e a todas as ofertas Exu dizia que era pouco e não cabia em seu bornal Mesmo quando o rei ofereceu todo o reino Exu respondeu da mesma maneira e acrescentou não pode viver quem deve a vida eu quero a cabeça do rei O rei ficou indignado como pode alguém que veio curar exigir como pagamento a morte após salvar o doente É muita infâmia uma ingratidão Exu respondeu não é nada disto é somente o preço Caminhou em direção ao rei e decepou lhe a cabeça meteua no bornal e antes de sumir na estrada deu uma gargalhada e disse Ko si oba kan ofi Olorum Não há rei senão Deus E ele tem razão ZACHARIAS 2010 Nesta narrativa Exu interfere favoravelmente para restabelecer a saúde No entanto diferentemente de outras lendas em que o rei está doente e precisa ser curado para a felicidade do reino como o rei pescador Oyó e seu rei se mostram como uma cidade soberba Para além da fragilidade do poder central a doença estava associada à arrogância e prepotência da cidade e do rei portanto a cidade havia entrado em um processo de inflação de hybris Este se constituía o verdadeiro estado doentio Exu corta a cabeça do rei ou seja obrigao a se humilhar frente ao poder dos deuses Agora o reino poderia ser reconstruído sob uma nova visão mais adequada sem os perigos da inflação o reino que estava doente pode ser restaurado Esta sanidade implica em reconhecer que o rei não é maior que Olorum o deus supremo Em outra lenda Exu encontrou um homem que tinha muitos discípulos portanto deveria ser um mestre e que havia adoecido Tendo o homem feito o ebó oferenda como prescrito pelo adivinho mesmo assim não se curou e todos o abandonaram Exu porém recebeu o ebó e carregou o homem até Orunmilá que não o desprezou neste momento terrível e o curou PRANDI 2001 Aqui vemos a ação benéfica de Exu que promoveu a cura do homem que havia sido abandonado até por seus discípulos A diferença das narrativas indica que este homem embora um possível mestre não incorreu na hybris e seguiu humildemente a todas as indicações que o oráculo lhe fez Não inflou mas deu de si em oferenda e Exu foi o único a amparálo Todo o tempo e atividade que a consciência despende em conhecer e integrar os conteúdos do inconsciente serão recompensados com o acréscimo de energia e criatividade que do inconsciente podem emergir fertilizando a vida consciente e ampliando seus horizontes No mundo dos deuses e do inconsciente a manutenção da homeostase exige uma relação e trocas que evidenciam o diálogo respeitoso entre estas instâncias psíquicas O acesso a toda divindade requer uma oferenda por parte do ego reconhecendo a amplitude dos conteúdos que povoam a psique para além dos limites da consciência Quando a energia psíquica fica presa em algum complexo do inconsciente ou mesmo nas resistências do ego um vetor dinâmico do Simesmo põe em movimento outros complexos da psique e até mesmo eventos externos sincrônicos para que no embate entre estes elementos a homeostase se restaure e o sistema psíquico se dinamize Podemos entender o Simesmo em dois aspectos um estrutural estabilizador e centralizador e outro como um vetor dinâmico funcional desestabilizador e descentralizador Como no mito narrado no Antigo Testamento em que Javé é questionado a respeito da estabilidade ingênua da fé de Jó por Satã JUNG 1991 Ou ainda podemos evocar a ideia do simia Dei o macaco de Deus associado a elementos mercuriais e presente em contos de fadas como um herói negativo um tanto estúpido ou palhaço JUNG 2000 Assim podemos ver que Exu não atua diretamente mas indiretamente induz seduz conduz Ele pode promover projeções e criar situações entre as pessoas em que conteúdos ocultos se revelem muitas vezes destituindo a consciência de seu controle da energia psíquica e mesmo revelando aspectos sombrios submissos à persona A estratégia é a principal atividade de Exu Dificilmente ele interfere diretamente em uma situação prefere arquitetar planos mirabolantes para atingir seus objetivos Montando o cenário basta esperar que as personagens interpretem seus papéis Sua proximidade com Orunmilá o senhor do destino concede a Exu esta habilidade e nos possibilita perceber qual o desfecho de uma situação quando estamos sintonizados com ele O segredo está em compreender qual a trama que Exu está armando para restaurar o equilíbrio Neste sentido o Orixá fornece uma visão teleológica de um caso principalmente quando o processo analítico se desenrola no sentido de um desfecho previsível ZACHARIAS 2010 Outros parentes O dinamismo psíquico personificado por Exu na cultura nagô tem correlatos em várias culturas e lugares do mundo Hermes deus mensageiro era filho de Zeus e de Maia a mais jovem das Plêiades Como deus tem no caduceu de ouro seu principal instrumento assim como Exu porta o Opá Ogó porrete em forma fálica PRANDI 2001 Em Hermes ou Mercúrio estão associadas as atividades de astúcia ardil e trapaça companheiro e amigo protetor dos ladrões e dos comerciantes Aprecia misturarse ao povo e viver entre as pessoas ao invés de permanecer no Olimpo É representado como protetor dos viajantes e por isto tornouse um deus protetor dos caminhos e estradas Igualmente Exu é considerado o dono do mercado é o mais próximo dos Orixás e convive entre as pessoas participando da intimidade humana Ambos apresentam ainda a função de mensageiros e comunicadores entre os deuses e os humanos transitando em todos os lugares nos céus na terra e nos ínferos Também podemos evocar Toth famoso pelos grandes conhecimentos atingindo o status de guardião dos arquivos divinos e emissário e escriba dos deuses Compreendia os meandros da psique humana e em função disto participava da avaliação da alma dos mortos O Livro dos Mortos o representa como advogado da humanidade por causa de sua íntima relação com a alma humana DAMASO HENDGES CASTRO JÚNIOR 2007 Um dos mais populares deuses venerado pelos hindus é Ganesha ou Ganesh possuindo cerca de noventa manifestações por toda a Índia conhecido também por Ganapathi A ele é atribuída a habilidade de abrir caminhos de ouvir as pessoas possuidor de grande inteligência e sabedoria intelectualidade que discerne profundamente todos os opostos dos reinos interiores e exteriores permanente e transitório A simbologia de uma de suas presas quebradas se reporta ao fato de que Ganesh vai além das ilusões da dualidade aparente É a divindade que deve ser reverenciada no início de rituais e cerimônias antes de qualquer empreendimento da mesma maneira que Exu Ganesh representa o equilíbrio entre os opostos em todos os níveis da manifestação divina DAMASO HENDGES CASTRO JÚNIOR 2007 No norte da Europa Loki é a divindade mais presente em todas as histórias dos deuses nórdicos origem das histórias mais divertidas e das tramas mais complexas Figura ambivalente nem bom nem mau foi gradativamente associado ao diabo cristão quando esta religião se aproximou da cultura nórdica Uma de suas principais características é a sociabilidade Companheiro de quase todos os habitantes de Asgard teve participação especial na criação do mundo e do próprio Asgard Apresentase como um deus mais manhoso e traquina do que malvado causando inconvenientes e sofrimentos aos deuses Loki tem poderes mágicos um deles é a habilidade de mudar de forma Jan de Vries apud DAVIDSON 2004 identifica como a principal característica de Loki o seu talento como ladrão roubando e trapaceando com a maioria dos deuses de Asgard A relação de Loki com os demais deuses é tão ilogicamente desconcertante quanto a de Exu com os demais Orixás narrada em várias lendas Em função destas características Loki foi aproximado à figura do Trickster figura importante na mitologia e folclore de muitas tribos norte americanas DAVIDSON 2004 Jung afirma que a pessoa culta deixa de lado a realidade do Trickster lembrandose dele somente quando as coisas dão erradas não percebendo o movimento de sua própria sombra que esconde perigos muitas vezes reais para sua vida Não é de admirar que seja este o caso uma vez que o reconhecimento mais elementar da sombra provoca ainda as maiores resistências no homem europeu contemporâneo JUNG 2000 p 266 Aqui se prepara o caminho para se compreender Exu em seu aspecto mais sombrio desenvolvido pela umbanda que muitas vezes será associado à magia negra e ao mal Podemos observar que a dinâmica psíquica se encontra em vários contextos culturais e históricos onde a humanidade caminhou O elemento dinamizador e do ponto de vista da ordem desagregador sempre se expressou em divindades participantes do panteão divino em diversos povos Exu tem muitos nomes assim como Loki Estas divindades tendem a ser assertivas e equilibrantes em sistemas mais ou menos integrados ou serem depositários dos aspectos tidos como malévolos em sistemas opressores e centralizadores Palavras finais ou iniciais Compreender Exu em nossa cultura é um exercício de reflexão profunda que exige atenção para aspectos psíquicos contraditórios e portanto para conceitos aparentemente excludentes Os mitos originais de Exu vindos da África contam que sua participação na criação do mundo é muito importante Embora não seja ele o criador seu dinamismo é fundamental Os mitos nos remetem a perceber uma dimensão além do manifesto e não compreensível que dá início ao cosmos por dois princípios a unidade e a pluralidade identificados como Oxalá e Exu É curioso notar que no culto do candomblé a louvação aos Orixás através de cânticos e danças se inicia com Exu e termina em Oxalá passando por todos os Orixás em ordem fixa de referência Partese da periferia ao centro Se tomarmos a serpente urobórica como imagem podemos identificar Exu e Oxalá como a cabeça e o fim da cauda desta serpente Oxalá é considerado o pai por excelência e todos os Orixás o reverenciam por isto mas o primeiro a ser reverenciado é Exu sem ele nada se faz Neste sentido ambos são importantes e não se pode falar em princípio e fim uma vez que o círculo não os tem Tomando a ideia de que o Simesmo é a Imago Dei podemos imaginar que o arquétipo da totalidade se expressa em unidade centralizadora e pluralidade diversificadora Digamos poeticamente que quando o Sagrado incognoscível inspira traz a si todas as coisas e se apresenta como uno quando o Sagrado expira expandese em todas as coisas e se diversifica em todas as coisas Entendendose o Sagrado como algo além das possibilidades de uno e múltiplo e aglutinador de ambas Neste sentido a psique necessita de constante dinamismo este respirar profundo da alma e do Simesmo Quando ocorrem cristalizações em uma das posições entrará em ação o dinamismo contrário oriundo do Simesmo para o restabelecimento do dinamismo original Podemos observar na história este movimento psíquico coletivo Quando povos nômades dispersos por regiões áridas e em contato com diversas culturas corriam o risco de perder sua identidade criaram sistemas monoteístas evocando a divindade centralizadora e exclusiva do povo para manter o sentido de unidade Como exemplo temos os povos semitas Por outro lado povos agregados e seguros de sua identidade como povo desenvolveram sistemas politeístas e monolatristas que melhor representavam as experiências com a vida da comunidade O próprio cristianismo que partindo de um contexto monoteísta judaísmo e imerso em um contexto politeísta religiões grecoromanas se expressa em uma infinidade de Santos intercessores na figura da Mãe Divina e tantos outros objetos de culto A necessidade de coesão do Império vislumbrada por Constantino recaiu na figura do papa e não de um culto estritamente monoteísta Se assim foi podemos entender que os deuses e sistemas divinos surgem entre os povos em função do movimento coletivo e das necessidades culturais e psíquicas Assim a Imago Dei pode ser expressa segundo a necessidade coletiva As figuras de mandalas desenhadas por pacientes psicóticos e observadas por Jung remetem a um centro Nestes desenhos a busca do centro ordenador é fundamental Se pensarmos que a psique está desestruturada e a consciência invadida por conteúdos inconscientes temos um paralelo com os povos nômades sem identidade sem eixo interno Neste caso o modelo monoteísta se faz necessário para a busca de coesão e centralização Se esta hipótese é validada para as psicoses não seria as neuroses uma cristalização de um modo de viver a vida psíquica e portanto uma centralização autoritária excessiva como uma ditadura exigindo do povo uma rebelião Se assim for o Simesmo neste caso se expressará como a desordem a desestruturação para restabelecer o equilíbrio Neste caso o divino seria politeísta cada instância pode ser um deus Simbolicamente falando a psicose necessita da organização de Oxalá e a neurose a desorganização de Exu É certo que mesmo na pluralidade há estabilidade os mitos mostram que há uma deferência de Exu para com Oxalá mas a estabilidade proposta é dinâmica e não cristalizada Os excessos de regras ou de liberdade sempre são nocivos Parece que a virtude está no caminho do meio Exu é instigante transgride a norma e a forma incomoda subverte o rigidamente estabelecido mas desvenda possibilidades confere dinamismo e podemos dar boas gargalhadas com ele Referências ALVA A O livro dos exus Rio de Janeiro Eco sd CACCIATORE OG Dicionário de Cultos Afrobrasileiros Rio de Janeiro Forense Universitária 1977 DAMASO CR HENDGES IM CASTRO JÚNIOR T Hermes Tot Ganesh e Exu os mensageiros dos deuses psicopompo Brasília FacisIcep 2007 monografia não publicada DAVIDSON HRE Deuses e mitos do norte da Europa São Paulo Madras 2004 DOURLEY JP A doença que somos nós São Paulo Paulinas 1987 HILLMAN J Psicologia monoteísta ou politeísta São Paulo 1987 Artigo não publicado traduzido por Gustavo Gerheim e Gustavo Barcellos HINNELLS JR Dicionário das Religiões São Paulo Cultrix 1989 JUNG CG Os arquétipos do inconsciente coletivo Petrópolis Vozes 2000 OC vol 9 A natureza da psique Petrópolis Vozes 1991 OC vol 12 A prática da psicoterapia Petrópolis Vozes 1987 OC vol 16 MAKINDÊ F 2007 entrevista pessoal com o autor não publicada MARTINS A Lendas e Exu Rio e Janeiro Pallas 2005 MIRANDA P Todo mundo quer umbanda São Paulo Ayom Records 2008 CD registro fonográfico MUSSA A O Mito de Elegbara Revista Orixás Especial n 13 sd São Paulo Minuano PRANDI R Segredos guardados São Paulo Companhia das Letras 2005 Os candomblés de São Paulo São Paulo HucitecEdusp 1991 PRANDI R org Encantaria brasileira Rio de Janeiro Pallas 2001 SEM AUTORIA 3333 pontos riscados e cantados Rio de Janeiro Pallas 2006 WHITMONT EC A busca do símbolo Conceitos básicos de psicologia analítica São Paulo Cultrix 1995 ZACHARIAS JJM O compadre uma análise possível de Exu São Paulo Vetor 2010 Ori axé a dimensão arquetípica dos orixás São Paulo Vetor 1998 É psicólogo mestre em Psicologia Escolar e doutor em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo USP analista didata pela Associação Junguiana do Brasil AJBIaap Autor de obras sobre tipologia e psicologia da religião autor do inventário de tipos psicológicos Quati docente universitário atualmente na Unipaulistana é músico e organista 2 Tornarse o que se é no sentido da filosofia ubuntu africana e o sentido para a individuação na e da cultura brasileira Lygia Aride Fuentes Argumento se os negros foram depositários da sombra da cultura branca hegemônica herdeira de um patriarcalismo exercido com a crueldade da opressão ao outro enquanto colonizado escravizado assassinado e subjugado para que possamos integrar como propõe Jung aspectos de nossa sombra coletiva farseão necessárias uma abertura psicológica e uma reflexão ao diálogo entre luz e sombra desse fato histórico que foi a escravidão e ainda hoje são suas consequências nefastas não somente para os afrodescendentes mas para toda a cultura brasileira A busca pela igualdade enquanto discurso fazse como mecanismo de assimilação desse anseio mas ao que parece apenas para manter os mesmos privilégios e mudança alguma Ou seja sem antes valorarmos positivamente as diferenças aquilo que se perdeu da forte e importante herança da filosofia africana da sua visão de mundo trazida pelos negros e que ainda nem ouvimos falar pois sobre isso há apenas silêncio não será possível que mudanças significativas aconteçam No princípio era silêncio Para conhecermos um pouco mais sobre a matriz africana da cultura afro brasileira é preciso quase uma investigação arqueológica reunindo material numa perspectiva histórica e antropológica uma pesquisa na área da linguística e da literatura à época da escravidão de fontes documentais criminais e um pouco de ficção pois o que encontramos é silêncio Silenciados foram os negros no Brasil de todas e variadas maneiras Segundo Orlandi ORLANDI 1997 p 12 em As formas do silêncio no movimento dos sentidos esta estudiosa da linguagem se ocupa do silêncio também como ideologia ou seja o silêncio liga o não dizer à história e à ideologia e trabalha sobre o silenciamento que já não é silêncio mas se trata de pôr em silêncio e a essa dimensão do não dito bem como a da censura como fatos produzidos pela história com intenção que limite o sujeito no percurso de sentidos Buscando preencher lacunas trabalhamos como fazemos com os sonhos numa perspectiva psicológica junguiana e passamos a recolher o material como numa série onírica E nos perguntamos se aquilo que desvendamos seriam como que conteúdos subterrâneos e se eles poderiam constelar novos mitos e novas forças criativas que possam iluminar os conflitos sociais da cultura brasileira João José Reis autor do livro O Alufá Rufino inicia a história dos negros no Brasil através de um certo Rufino José Maria um negro malê letrado e herdeiro da tradição islâmica dizendo que a história dos africanos no Brasil do tempo da escravidão em grande parte é escrita a partir de documentos policiais REIS 2010 p 9 O que nos faz pensar que nos dias atuais não tenha se modificado o fato de podermos recuperar a história de afrodescendentes brasileiros e o modo como foram e são tratados no Brasil ainda pelos boletins de ocorrência policiais Como um espelho esse fato reflete e denuncia uma sociedade desigual que mantém os duradouros e permanentes sectarismos resultando numa negação dos aspectos positivos e contributivos da grande população negra que fora sequestrada e escravizada para o trabalho forçado no Brasil em tempos coloniais Então é preciso reconhecer como escreveu Eliane Brum que nenhuma violação dos direitos humanos mais básicos se sustenta por tanto tempo sem a nossa omissão ARBEX 2013 p 15 E quando pensamos sobre o problema do racismo e da invisibilidade do contingente negro no Brasil que se somam ao sofrimento e à pobreza da população brasileira o nosso compromisso com pesquisas sociais econômicas e psicológicas deverá elucidar os mecanismos de sua manutenção Nas palavras de Milton Santos Os pobres e grande parcela das classes médias ganham consciência de que a manutenção do atual estado de coisas é apenas possível porque violências novas são inventadas ainda que venham revestidas com a capa da legitimidade Todavia o discurso que as legitimam é cada vez menos aceito SANTOS Apenas a partir de 1996 quando foi instituída a obrigatoriedade da identificação da cor da pele nas declarações de óbito foi possível constatar que são os negros homens e jovens as vítimas preferenciais de assassinatos no Brasil dados apresentados em A cor da morte SOARES BORGES 2004 Somente nessas duas recentes décadas abrese então a possibilidade para pesquisas amplas e aprofundadas que venham dar visibilidade a injustiças violações de direitos entre outros tantos dados silenciados até agora Talvez consigamos refletir seriamente sobre os problemas sociais brasileiros no que tange à desigualdade e sua relação com a cor da pele Aquilo que intuitivamente já sabíamos mas que negávamos à maioria dos brasileiros o negro aprende desde muito cedo no silêncio das palavras não ditas mas significado nos olhares como rejeição ódio e exclusão Ele sabe na pele sente na carne e na vida em sociedade o que só agora poderá vir a ser comprovado a violência da exclusão e da invisibilidade e sua consequente negação não acarreta apenas a não acessibilidade ao negro aos seus direitos como cidadão mas psicologicamente à impossibilidade de formar sua identidade e tornarse inteiramente realizado como pessoa um Simesmo como proposto por Jung Devemos ainda ampliar a importância desse esforço em direção à integração de aspectos sombrios para a realização da totalidade cultural com o esforço de todos os brasileiros com o objetivo de forjarmos um processo de individuação de toda a cultura Na área da saúde mental no recente livro Holocausto brasileiro Arbex ARBEX 2013 denuncia o assassinato cometido pelo Estado brasileiro de 60 mil internos no Colônia uma instituição psiquiátrica de Barbacena em Minas Gerais durante quase todo o século XX Passando os olhos apenas pelas fotografias divulgadas identificase o grande contingente negro entre os encarcerados naquela instituição que compulsoriamente internado cerca de 70 não tinha diagnóstico de doença mental Essas pessoas foram sistematicamente violadas de várias formas na sua dignidade e humanidade E retirandolhes também a identidade foram violentadas e abandonadas à própria sortemorte Pesquisas que levem em consideração a variável cor da pele poderão vir a ser esclarecedoras ao cruzar informações obtidas sobre o contingente negro e suas realidades em diferentes instituições Sob esta perspectiva da cor da pele poderá se revelar uma cruel estatística também em presídios ou em instituições para menores infratores e poderemos evidenciar a atualidade desse holocausto brasileiro Nos casos de violência doméstica aborto violação e abuso de meninas e mulheres moradores de rua sem teto sem terra entre outros problemas negligenciados negados que ainda não foram estudados e estatisticamente mapeados dessa consequência nefasta e remanescente da nossa história escravista e de dominação patriarcal Há urgência para que se faça esse desvelamento e não nos surpreenderemos com as revelações Para acabar com esse silêncio que é cruel e para que políticas públicas possam incluir e pautar suas ações na realidade dos fatos LopezPedraza em seu livro Ansiedade cultural afirma que os conflitos mais profundos do homem são culturais algo que não pode ser descartado em psicologia quando abordamos os aspectos da construção da identidade e aqui aplicamos a sua reflexão à questão impossibilidade que se deu para a construção plena da identidade da pessoa negra no Brasil destituída que foi de seu passado ancestral Num dos atos mais cruéis contra os negros arbitrado por Rui Barbosa que foi a queima dos documentos e registros de origem dos negros que aqui aportaram Jung em vários momentos nos mostrou o valor de estarmos Lutando com a sombra título de um entre vários textos que nos fará refletir sobre o mal LopezPedraza compreende que as oposições de bem e mal no âmbito da tradição religiosa não são adequadas para abordar o tema da crueldade nos tempos atuais Ao aceitar a tarefa junguiana de lidar com a SOMBRA como campo de exploração a psicologia profunda diz o autor deve incluir a crueldade um subproduto da cultura e da civilização como elemento essencial da sombra Considero a crueldade como algo suficientemente acessível para ser mantida dentro de nossa consciência diária a crueldade é cultural e nela jaz a possibilidade de tornarse psíquica É como se a história mudasse constantemente nossa visão deste ponto É impossível ter hoje em dia a mesma visão desta característica humana que se tinha há cinquenta anos a crueldade está crescendo Historicamente falando Jung e seus seguidores e colaboradores trabalharam sobre esta parte da natureza humana em termos de maldade Eles a consideraram principalmente dentro da tradição religiosa das polaridades do bem e do mal ou do mal como parte de nossa natureza com a qual não podemos lidar e por isso temos de rechaçar estamos tratando de diferenciar o que pertence à parte mais obscura de nossa sombra A agressividade é uma atitude instintiva que aparece nos conflitos do homem primitivo e assim mesmo no nível primitivo da psique e de nossos complexos Poderíamos talvez empregar a palavra agressão para algumas atitudes e comportamentos das crianças e enfermos mentais A crueldade é um produto do homem civilizado e surge de sua ansiedade cultural LOPEZPEDRAZA 1997 Relações de alteridade Minha raça sou eu mesmo A pessoa é uma humanidade individual Cada homem é uma raça senhor polícia Mia Couto Se a cultura ocidental eurocêntrica pudesse se abrir em vez de querer oprimir ou dominar e mesmo negar projetivamente o Outro diminuindo essa tremenda SOMBRA E se pudesse se maravilhar com a alteridade do OUTRO Seguirei o convite de Lévinas que evoca um encontro com o Outro para fundar uma base dialogal a alteridade do absolutamente outro é Outrem Diz ele que não uma espécie de alteridade mas a original exceção à ordem fazendo surgir uma relação de transcendência de responsabilidade pelo outro a paradoxal e contraditória responsabilidade por uma liberdade estranha diferente excepcional numa relação em que o Mesmo pode ser concernido pelo Outro sem que o Outro se assimile ao Mesmo Fazendo dialogar Jung com Lévinas podemos compreender e contrapor esse Mesmo ao SiMesmo que é Outrem o inteiramente outro Lévinas afirma que a relação com o Outro é uma abertura do si mesmo à face nua do outro LÉVINAS 2002 p 31 Então fazemos um convite abrirmos olhos e ouvidos para aquilo que é silenciado Em vez de olhar apenas para um aspecto do nosso umbigo valorizando a matriz portuguesa e europeia Aqui se aplica o que diz Jung pois estamos ainda em estado inconsciente e urobórico se não dialogamos com as outras ricas matrizes brasileiras Outros valores outros modos de construção de relações outros fundamentos para a construção da vida social e cultural Abrirmonos ao que ainda é silêncio para receber a ainda não compreendida concepção e visão de mundo de matriz africana e sua filosofia ubuntu Assimilação na teoria e exclusão na prática Jung passou seis meses na África e teve medo de certas experiências Sentiuse ameaçado quando entrou em contato com uma determinada tribo eram os negros mais escuros que já tinha visto em minha vida JUNG 1984 p 237 Jung diz ainda o grupo tinha um aspecto que não despertava confiança E quando o chefe propôs que organizassem à noite uma dança ao redor do fogo Jung sentiuse aliviado porque pensou que ficariam em melhores termos com a tribo À noite chegou um grupo mais de sessenta homens equipados militarmente com lanças brilhantes clavas e espadas seguidos a distância por mulheres crianças e mesmo bebês de colo o coro dos homens começou a entoar poderosos cantos guerreiros e ao mesmo tempo começaram a bailar os homens dançavam brandindo as armas em direção ao fogo e recuavam para avançar de novo cantando um canto selvagem com acompanhamento de tambores e ao som de trompas Era uma cena selvagem Dançando eu brandia a única arma que possuía um chicote de rinoceronte O ardor dos dançarinos redobrava e todo o bando batia os pés cantava e gritava Pouco a pouco o ritmo da dança e dos tambores acelerou os negros entram numa espécie de possessão o transbordamento começou Os dançarinos formavam uma horda selvagem e eu começava a temer pelo fim de tudo aquilo JUNG 1984 p 238 Jung teve medo da força e do poder dos negros Teria a fantasia de ser morto e consumido antropofagicamente num ritual de assimilação Assimilação em ambos sentidos literal e metaforicamente Assimilação em via dupla medo de uma sombra constelada nos negros e de seus próprios conteúdos reprimidos Medo do resultado da opressão do branco sobre os negros que poderiam bem querer se vingar Sentimentos persecutórios aparecem quando a sombra está projetada colocada fora no outro e assumem a forma de complexos autônomos Vale dizer quando os atos que ferem o outro voltamse contra nós mesmos Jung então com ar ameaçador mas rindo ao mesmo tempo começa a brandir o seu chicote de rinoceronte mas sem saber o que isso resultaria comecei também a gritar a plenos pulmões em suíçoalemão que já era o bastante e que o melhor seria ir para a cama dormir Uma gargalhada geral se generalizou e fazendo cabriolas todos se separaram e se eclipsaram na noite em todas as direções Muito tempo ainda ouvimos seus gritos e seus tambores Finalmente fezse silêncio e esgotados mergulhamos no sono JUNG 1984 p 239 Referiase Jung ao seu medo de sucumbir Que o seu egoidentidade europeusuíçoalemão pudesse ser ameaçado e dissolvido no caldeirão negro da África desconhecida como um certo Obelix Igualmente esse personagem retirava toda a sua força físicamentalcultural de suas raízes ancestrais para resistir à invasão anglosaxônica para não ser colonizado ou mesmo dizimado ou extinto Jung teve medo da potência da cultura africana o que o fez defenderse com todas as suas forças Lembroume aquela enfática recomendação de Freud a Jung e que ele recusara anteriormente e em outro assunto afirmar a psicanálise e sua própria cultura a servirlhe de baluarte contra a negra lama do ocultismo Entramos aqui na simbólica da cor e de suas projeções enraizadas que estão na afirmação do que é negativo é preto Segundo Hillman há um perigo na moralização das cores O termo inglês branco caracterizando um grupo étnico ocorre primeiramente em 1604 após a percepção dos africanos como pretos A moralização e oposição entre branco e preto continuam até hoje na língua inglesa já que branco equacionase com bom preto com mau sujo imundo sinistro o mal HILLMAN 2011 p 129 Ou poderia o ego de Jung ao se abrir ganhar um novo colorido Jung teve medo da invasão de outra cultura negra sobre a sua psique ocidental branca porque estava impregnado por essa moralização das cores Jung escreve que queria conhecer a África não para olhar os africanos com uma visão europeia mas perceberse aos olhos do outro e ele soube que o viam com desprezo Seria visto assim pelos negros porque fosse branco Ou por viajar à África em companhia de ingleses e representar como os colonizadores o opressor Convidados a olhar agora com os olhos dos africanos mantenhamos a imagem de Jung brandindo o seu chicote mas também contratando homens negros para carregar suas pesadas malas Seria visto pelos africanos como bwana o chefe E eles se ressentiriam porque o homem branco tinha ideias pretensiosas de superioridade de raça de ser humano civilizado de cultura mais desenvolvida Sentirseiam os africanos respeitados Qual o lugar do homem africano nesse encontro Sentiamse valorizados e considerados em sua totalidade Seriam respeitados pela sua presença e considerados numa relação EuTu Segundo Martin Buber autor de Eu e Tu uma das maiores obras filosóficas acerca da convivencialidade o homem tem duas atitudes diante do mundo EuTu e EuIsso Enquanto as interações do tipo EuTu se referem à convivencialidade é presença e relação o modo EuIsso nunca é uma relação mas uma interação instrumental O ser humano fora do seu contexto de totalidade não pode expressar a relação EuTu E o ser humano no contexto de sua totalidade não pode expressar o EuIsso BUBER 2011 O Isso é um objeto Se a presença desse Outro não for considerada como um Tu não haverá relação e esse outro agora um Isso estará na condição de objeto O outro tornado um Isso estará a serviço da projeção do desconhecido em mim Enquanto o outro for tratado como um Isso não será um sujeito mas uma coisa e ao ser coisificado é transformado em objeto passível de ser usado descartado aviltado trocado espoliado assassinado morto Em tempo de linchamentos perseguições e amarrações de negro em poste feito negro fujão naturalizado como nos tempos da escravidão evidenciase como está presente esse tipo de relação em nossa sociedade Na psicologia analítica trabalhamos com conceitos como formação do ego e formação da identidade para a construção de um indivíduo Segundo Jung é a partir da experiência dos opostos que se dá o surgimento de um ego discriminado de uma totalidade denominada por ele de Si Mesmo um arquétipo uma potencialidade da totalidade da psique E a individuação esclarece Jung pedese que se fale no gerúndio pois que é numa dimensão pessoal um processo e porque estamos sempre nos individuando tornandonos indivisíveis caminhando para a realização da nossa inteireza ou totalidade psíquica E numa dimensão coletiva A nossa cultura ocidental estaria seguindo um caminho para a individuação A individuação é sempre e unicamente para sujeitos singulares individuais Há um self cultural e uma cultura passível de trilhar caminhos para a individuação E quando exclui grupos étnicos estaria produzindo ainda mais sombra E como essa ideia de indivíduo em nossa cultura ajudou a forjar todos os ismos como individualismo egoísmo Numa cultura dirigida para a discriminação a competição e não para a colaboração ou para um sentido de unidade para um sentimento de irmandade tendo sentido uma tensão com risco de agravarse Ou construiremos um novo sentido de humanidade Sujeito identidade indivíduo versus ser com o Outro Segundo Jung individuação é a realização do indivíduo no que se tem de específico próprio mas não identificado com individualismo ou egoísmo e sim com a realização da psique Anima no mundo mas também com a realização do mundo como Anima Mundi alma do mundo Assim para não cairmos nesses ismos contrários à individuação proposta por Jung caberia aqui um complemento A realização de cada um de nós não seria também a de todos nós numa realização com os outros no mundo O jogo de opressão e poder em nossa cultura não permite caminhar nesse sentido O poder como concebido em nossa cultura ocidental e se olhamos para o Brasil joga um jogo excludente competir destruir o outro enquanto ameaça ou inimigo dividir para reinar se ele é forte desqualifiqueo isoleo seja indiferente a ele negue a sua realidade sua identidade o seu ser Aniquile a sua autoestima mate a sua alma Não seria o oposto o que estamos precisando Alimentar as potências sim não o poder Mas há primeiro que descobrir as nossas potencialidades integrandoas todas para uma relação de alteridade com outros na sua igual inteireza Não está mais do que na hora de repensarmos o processo de individuação enquanto o tornarse o que se é tornarse indivisível total inteiros e vislumbrarmos incluir inteiros com Fazendo dialogar o dinâmico processo de individuação de Jung com a filosofia ubuntu africana nos fazemos inteiros com a visão de mundo africana na filosofia ubuntu As influências da língua Bantu na construção de uma identidade brasileira Segundo dados destacados por Yêda Pessoa de Castro assessora técnica de línguas africanas do Museu de Língua Portuguesa em São Paulo dos escravos que foram sequestrados para o Brasil 75 eram Bantos Considerase que os Bantos apesar de não trazerem nada material vieram com sua herança ancestral imaterial na alma e no coração trazendo sua visão de mundo e sua espiritualidade As nações que se agruparam sobre essa denominação são assim identificadas por pertencer ao grupo linguístico Bantu que se disseminou por vários séculos através de migrações dentro do continente africano Daí a nossa ênfase em recuperar as influências linguísticas e filosóficas dos africanos provenientes do mundo bantofalante situados como destacou Castro atualmente em Angola e nos dois Congos Esse contingente banto que originalmente grafase bantu era de tal ordem na cidade da Bahia do século XVII que instigou o Padre Pedro Dias a escrever A arte da língua de Angola uma gramática publicada em 1687 em Lisboa como meio de instruir os jesuítas e facilitar o trabalho de catequese dos 25 mil etíopes africanos MELO 2008 Aos Bantos se somaram outros grupos africanos posteriormente os YorubáNagô com os seus orixás e inquices ancestrais e os malês muçulmanos nagôs letrados e responsáveis pela grande Revolta dos Malês em 1835 Enfatizamos que à grande importância e influência dos negros africanos que misturaramse aos índios e aos portugueses criouse em terra brasilis o que Darcy Ribeiro define como sendo o povo brasileiro essa mestiçagem essa ninguendade no sentido de não ser nem europeu nem negro nem índio RIBEIRO 1995 Criativamente os negros inundaram o Brasil com sua musicalidade ritmo iguarias culinárias sua espiritualidade e rituais religiosos entre outros legados Misturandose e reunindo uma profusão de elementos Assim os Bantos no Brasil ajudaram forjar numa das maiores contribuições à construção de uma identidade nacional um dos mais importantes fatores dessa identidade que é a língua brasileira Através da língua Bantu de origem dos seus vocábulos e de sua oralidade devido à migração e à circulação pelo país e devido ao trabalho escravo procuram os autores de África à vista confirmar essa tese de que os africanos e afrodescendentes não apenas foram os principais difusores da língua portuguesa no Brasil mas foram também os formatadores da sua variante social majoritária o chamado português popular brasileiro LOBO OLIVEIRA 2009 p 11 Ubuntu para curar as nossas próprias feridas nossas cisões Ubuntu é uma palavra zuluque que sustenta a vida espiritual das sociedades africanas Essa filosofia de cosmovisão unificadora está contida nesse aforismo tradicional africano umuntu ngumuntu ngabantu significando como diz Schutte uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas citado por Dirk L Louw LOUW 2014 Essa expressão irá articular várias dimensões das sociedades africanas respeito e compaixão pelos outros regras de conduta e ética social expressão da religiosidade bem como descrever o ser humano como ser comoutros significando também humanidade Segundo Henrique Cunha Jr na raiz filosófica africana denominada Bantu o termo NTU designa a parte essencial de tudo que existe e tudo que nos é dado a conhecer à existência O Muntu é a pessoa constituída pelo corpo mente cultura e principalmente pela palavra A palavra com um fio condutor da sua própria história do seu próprio conhecimento da existência A população a comunidade é expressa pela palavra Bantu A comunidade é histórica é uma reunião de palavras como suas existências No Ubuntu temos a existência definida pela existência de outras existências Eu nós existimos porque você e os outros existem tem um sentido colaborativo da existência humana coletiva As línguas são um espelho das sociedades e dos seus meios de nomear os seus conhecimentos no sentido material imaterial espiritual A organização das línguas bantu reflete a organização de uma filosofia do ser humano da coletividade humana e da relação destes seres com a natureza e o universo CUNHA JR sd Em comunicação pessoal Bartholo nos oferece informações valiosas para uma reflexão e diálogo tanto com o pensamento junguiano quanto com o pensamento mítico dizendo que para a filosofia ubuntu o princípio era o fluxo vital e vinculante a filosofia ntu engloba os vivos e os mortosvivos ancestrais Os ancestrais influenciam sua descendência protegendo e reforçando sua vitalidade No mundo da filosofia ntu os nascimentos humanos são duplos O primeiro nascimento é corpóreo O segundo nascimento é a recepção de um nome Por seus dois nascimentos a pessoa humana se torna um ser completo O primeiro nascimento é a união de um corpo com uma sombra buzima O segundo nascimento possibilita através de nommo a união de uma nova pessoa com o poder dos ancestrais magara A vida tem duração concretude e imaterialidade Os viventes possuem simultaneamente concretude e imaterialidade Um vivente não tem nem mais nem menos buzima Ele ou ela só podem ser buzima Um vivente nunca pode ser magara Ele ou ela só podem ter mais ou menos magara Somente mortosvivos ancestrais são magara Para ubuntu o eu de um vivente humano é um nó contingente numa rede de conexões em fluxo onde o nós tem um papel central Esta rede relacional é tríplice Ela inclui os viventes os ancestrais e os descendentes ainda por nascer BARTHOLO 2014 Ativa e simbolicamente não estariam os afrodescendentes impregnados também no Brasil e ainda hoje pela filosofia ancestral ubuntu Como pensar em construção de identidade do indivíduo e da identidade cultural do Brasil sem este fermento que é o conceito de ubuntu na alma de cada africano que para cá foi forçado a vir e que não era um enquanto unidade ou indivíduo mas um ser com Ele chegou é já era muitos já era múltiplo e já carreava o Outro os espíritos imateriais dos antepassados e os que ainda estavam por vir Sociedade e cultura não resultam de um somatório de indivíduos mas é muito mais Precisamos ver para além dessa materialidade precisamos reconhecer essa energia ancestral essa força seu axé Pensemos em como a força de trabalho conjunto é maior do que a força da unidade de trabalho Esta força do trabalho que sob o primado do capitalismo dizse que se pode pagar Mas o que sabemos sobre essa força coletiva de trabalho Como mensurar computar e pagar monetariamente por essa imaterialidade que segundo os afrodescendentes vem da força dos ancestrais que não são os mortos mas mantêmse vivos em seus cultos e rituais O que resulta dessa força coletiva de trabalho no Brasil quando os negros cortando a cana cantavam em conjunto com os seus ancestrais Ou quando reuniam forças mesmo extenuados alquebrados das lavouras e das minas para cultivarem os antepassados E os seus rituais seus tambores e seus lamentos Essa força conjunta aumentava e isso não é computável mensurável unitariamente À força do canto se somam a forçaenergiaaxé que é do ser com as forças da natureza com as forças dos irmãos oprimidos no cativeiro com as forças criativas dos negros juntavamse ainda a vontade e a alegria de viver de cada um somandose aos ancestrais e aos que ainda virão nesse conjunto que resulta no ser com Não há como mensurar essa energia esse axé essa força de trabalho coletiva Nem por isso deixaremos de estar em dívida e ainda que não devemos reconhêla Então concluímos que nós sociedade e cultura brasileira precisamos pedir desculpas pelas ofensas mas também pela não redistribuição que o benefício desta força coletiva de trabalho gerou Ajudando a resgatar a autoestima do povo negro que construiu essa nação atribuindolhes o devido valor e respeito reconhecimento e voz bem como promovendo ações reparadoras e redistibutivas como nas ações afirmativas com o objetivo de real inclusão e eliminação das injustiças e das desigualdades sociais Eu reconheço e declaro que fui enquanto branca beneficiária desse sistema que desmereceu o povo negro no Brasil e que igualmente se aplica a todo índio brasileiro a toda a sociedade mantida empobrecida sem recursos como saúde educação e tantos outros direitos de cidadãos negados Seres humanos que devolvamos a sua dignidade pois que foram e ainda são considerados objetos descartáveis ou mantidos com aquele manto de invisibilidade que se inicia com o silêncio Podemos aprender com esse rico substrato cultural que é a filosofia ancestral ubuntu dos provos africanos Que se mantém presente essa é a nossa tese na força do povo desse país para resgatar uma parte da alma brasileira que poderia nos ajudar a todos a superar esse individualismo ocidental Segundo Louw a filosofia ubuntu aponta ainda e creio que podemos aprender muito em várias áreas e dimensões um papel precioso para as relações sociais no sentido de acordos e consensos Ubuntu reforça a importância do acordo ou consenso A cultura tradicional africana ao que parece tem uma capacidade quase infinita para a busca de consenso e reconciliação Democracia à maneira africana não simplesmente se resume à regra da maioria Democracia africana tradicional opera sob a forma de discussões às vezes extremamente longas Apesar de haver uma hierarquia de importância entre os falantes cada pessoa recebe igual oportunidade de falar até que algum tipo de acordo consenso ou coesão de grupo seja alcançado Este importante objetivo é expresso por palavras como simunye nós somos um ou seja união é força e slogans como uma ofensa a um é uma ofensa a todos LOUW 2014 tradução nossa Ubuntu é abertura e diálogo e leva em consideração um tipo de particularidade e também de individualidade e historicidade que nos poderá ajudar a criar acordos baseados em critérios comuns Que esse consenso verdadeiramente trabalhado nos inspire também a nos expor aos outros para encontrar a diferença Para aprendermos a lidar com as diferenças na e da humanidade da sua e de cada um a fim de nos informar e enriquecer a nossa própria humanidade Assim compreendido ser humano significa afirmar a humanidade reconhecendo a humanidade dos outros em sua infinita variedade de forma e conteúdo Então tornemonos todos humanos A individualidade que respeite ubuntu contradiz diretamente a concepção cartesiana da individualidade nos termos em que o indivíduo ou o ego pode ser concebido sem necessariamente reconhecer o outro Nesta perspectiva a sociedade não seria nada mais do que um bando ou uma coleção de indivíduos que existem separadamente Enquanto que para a compreensão da filosofia ubuntu a palavra individual significa uma pluralidade de personalidades correspondendo à multiplicidade de relacionamentos em que representa o indivíduo em questão Ser um indivíduo por definição significa sercomoutros e os outros encontramse eles mesmos em um todo no qual eles já estão relacionados Segundo Louw isto tudo parece incompreensível para uma mente cartesiana cuja noção de individualidade agora tem que se esforçar para mudar de solitário para solidariedade de independência para interdependência de comunidade de individualidades para individualidade sendo com a comunidade No Ocidente individualismo muitas vezes se traduz em uma competitividade selvagem Fazendose superiores ao interesse comum as regras supremas de interesse individual sendo a sociedade ou os outros considerados como nada mais que meios para fins individuais Transformando os seres de relação EuTu como Buber definiu em objetos de instrumentalização e dominação Esse individualismo está em contraste com a preferência africana para a cooperação trabalho em grupo ou shosholoza trabalha como um ou seja trabalho em equipe Existem na África do Sul por exemplo os chamados stokvels que são empresas comunais ou empresas coletivas bem como associações de poupança sociedades funerárias e outras cooperativas Esse tipo de economia é descrita como capitalismo com siza ou seja com humanidade É podese dizer uma forma socialista de capitalismo onde há lucro porém nunca se isto envolve a exploração dos outros E também os lucros são compartilhados em bases iguais Stokvels são baseados no sistema ubuntu de família estendida ou seja todos os envolvidos devem ser considerados como irmãos e irmãs membros da mesma família A percepção de ubuntu sobre o outro nunca é fixa ou rigidamente fechada mas ajustável ou em aberto Ele permite que o outro seja tornese Reconhece a irredutibilidade do outro e nunca reduz o outro a qualquer característica conduta ou função específica Isto está de acordo com a gramática do conceito ubuntu que denota um estado de ser e um tornarse Como um processo de autorrealização através dos outros esta filosofia enfatiza realça e aumenta a autorrealização dos outros Teríamos aqui uma nova proposta para o que denominou Jung de Processo de individuação A cultura ocidental eurocêntrica poderá se beneficiar abrindose também para a visão de mundo dos afrodescendentes da cultura brasileira e de sua herança filosófica ancestral e se permitir afetarse colocando em prática novas formas de relação de estar com no intuito de buscar a cura para as nossas próprias feridas nossas cisões E que o conteúdo que surja do silêncio esquecido emerja das sombras dessa matriz negra trazendo um encantamento aprofundamento e integração de tantos aspectos positivos mas ainda pouco considerados e mesmo negligenciados em nossa cultura Referências ARBEX D Holocausto brasileiro Vida genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil São Paulo Geração 2013 BARTHOLO RS Skokiaan ou não Sobre cultura africana e sua filosofia no prelo BUBER M Eu e Tu São Paulo Centauro 2011 COUTO M Cada homem é uma raça São Paulo Companhia das Letras 2013 CUNHA JR H NTU Revista Espaço Acadêmico n 108 2010 Disponível em httpperiodicosuembrojsindexphpEspacoAcademicoarticleviewFile93855601 HILLMAN J Psicologia alquímica Petrópolis Vozes 2011 JUNG CG Memórias sonhos e reflexões 6 ed Rio de Janeiro Nova Fronteira 1984 LÉVINAS E De Deus que vem à ideia Petrópolis Vozes 2002 LOBO T OLIVEIRA K África à vista Salvador Edufba 2009 LOPEZPEDRAZA Ansiedade cultural São Paulo Paulus 1997 LOUW DJ Ubuntu An African Assessment of the Religious Other sd Disponível em httpwwwbueduwcpPapersAfriAfriLouwhtm MELO A Língua bantu e identidade sl Fundação Palmares 2008 Disponível em httpwwwpalmaresgovbr20080975porcentodos escravoslevadosparaobrasilerambanto REIS JJ O Alufá Rufino São Paulo Companhia das Letras 2010 RIBEIRO D O povo brasileiro São Paulo Companhia das Letras 1995 SOARES GAD BORGES D A cor da morte Um estudo estatístico e criminológico sobre as vítimas de homicídio no Brasil Ciência Hoje 2004 vol 35 n 209 p 2631 É psicóloga mestre em Engenharia de Produção pela CoppeUFRJ Analista didata e membro do Instituto Junguiano do Rio de Janeiro Membro da Associação Junguiana do Brasil filiada à International Association for Analytical Pychology Docente e supervisora clínica na formação de analistas do Instituto Junguiano do Rio de Janeiro e docente na Pósgraduação Lato Sensu em Psicologia Junguiana da Universidade Estácio de Sá 3 A alma ancestral africana bate à porta dos consultórios de análise Estaremos prontos para recebêla Vivian Verônica Buck Nasci e cresci numa família de elite Sou branca judia descendente de pai e mãe europeus criada por uma madrasta católica vinda de uma família quatrocentona ramo pobre Frequentei os melhores colégios de São Paulo os melhores salões de beleza as mais sofisticadas butiques Quando precisei de médicos fui levada aos mais bemreputados nem sempre os mais competentes Frequentei salas de concerto e museus Imagino que o que me salvou da futilidade dos aspirantes à grãfinagem paulistana do pósguerra foi minha doentia introversão que me protegeu através da fuga para um mundo secreto e imaginário cuja inspiração veio em primeiro lugar das brincadeiras infantis e mais tarde da música barroca e da dança Meu pai por conta das vivências de guerra e do antissemitismo europeu era extremamente preocupado com a segurança da prole Por isso ao contrário de outras crianças que moravam nas redondezas meus irmãos e eu não éramos autorizados a brincar na rua os companheiros que frequentavam nossa casa tinham de passar pelo crivo afiadíssimo de minha madrasta sempre supervisionada por meu pai Para sair éramos sempre acompanhados de algum adulto Nessas condições pode imaginar o leitor não tínhamos muitas oportunidades de interagir com pessoas que não pertencessem ao restrito grupo de amigos que frequentavam minha casa O mais próximo que cheguei de afrodescendentes foi daqueles serviçais que trabalhavam para minha família Atenção especial à minha querida e saudosa Nadir uma alquimista dos quitutes minha mãe preta responsável por dar sabor a minhas tardes solitárias Meu pai era um apaixonado pelas artes plásticas e alguns pintores e escultores frequentavam minha casa Entre eles Walter Levy um judeu alemão radicado no Brasil pintor surrealista que na complementação de seu mundo europeu branco e introvertido encontrou em uma negra extrovertida exmodelo de Di Cavalcanti a parceira ideal para realizar seu impulso no sentido da Conjunctio Oppositorum Exuberante ela personificava a imagem sobre a qual o artista iria projetar a própria anima de forma a fazer desabrochar sua criatividade e através dela galgar os caminhos de sua individuação Não me lembro o nome dela mas é certo que ela foi a pessoa negra que mais se aproximou da sofisticação esperada de alguém que desejasse carimbar o passaporte para o mundo branco das elites Tendo sido modelo de Di Cavalcanti essa mulher ratificava a noção dominante segundo a qual os negros só tinham alguma chance de ser reconhecidos pelos brancos quando esbanjavam sensualidade jogavam futebol ou dedicavamse ao exercício da música e principalmente do ritmo Àquelas alturas a companheira do amigo de meu pai já era uma mulher mais velha mas fazia questão de afirmar a todos que havia sido modelo do grande pintor brasileiro como se quisesse lembrar sua trajetória era a prova do cumprimenro da profecia da cultura brasileira isto é no passado a então jovem mulher havia esbanjado sensualidade Por isso tornouse visível1 e conseguiu penetrar num mundo que não fosse o bom humor dos anjos da criação estarlheia vedado para todo o sempre É bem verdade que desde muito cedo fui ensinada a respeitar os negros e outros diferentes Estou certa de que meus pais acreditavam profundamente nos princípios que incutiam nos filhos Nossa ingenuidade porém não nos deixava perceber que eles eram respeitados apenas na cozinha de nossa casa no banco de motorista do carro de meu pai na roça carpindo a erva daninha na oposição perfeita à alva e bucólica paisagem dos cafezais em flor ou da rubedo sugerida pelos grãos maduros e graúdos algum tempo antes da colheita Naquela época não me dava conta de que as meninas negras não se sentavam junto a mim nas classes onde as aulas escolares eram ministradas tampouco brincavam comigo no intervalo de recreio Na cátedra não havia professores negros Raramente eles se faziam presentes nas salas do Teatro Municipal quando um grande solista acariciava nossos ouvidos com sonatas de Mozart sinfonias de Beethoven ou ainda quando uma grande orquestra sinfônica vinha do lado de lá do oceano para se apresentar nesta terra de alémmar Por tudo o que acabo de relatar a preocupação com relação aos afrodescendentes não foi exatamente um tema presente em minha jornada como pessoa e psicóloga Mas isso começou a mudar a partir da década de 1990 quando torneime próxima de parentes por parte de minha mãe falecida Uma de minhas primas não pôde ter filhos Como sabem para um judeu a família representa a certeza da transmissão do legado de um povo através das gerações Assim o judaísmo se concentra em seus filhos Diante do drama da infertilidade minha prima decidiu adotar duas crianças a primeira menino havia nascido no Sul Tinha traços europeus pele clara olhos castanhos e atendendo aos mais nobres sonhos de consumo de uma família judia foi agraciado pelo destino com um enorme talento musical Desde muito cedo estudou violino e transformouse num excelente músico A segunda uma menina não se parecia em nada com o irmão mais velho Minha prima tinha a tez morena cabelos negros e lisos Os responsáveis pela escolha da criança a ser encaminhada para a nova família houveram por bem designar à mãe adotiva uma bebezinha morena Qual não foi a surpresa quando a graciosa criança foi se transformando numa menina e mais tarde numa adolescente com traços nitidamente mestiços cabelos pretos e crespos de textura espessa nariz achatado e largo lábios grossos e escuros quadris e glúteos proeminentes À medida que a menina crescia o relacionamento entre mãe e filha se deteriorava Quando a conheci Mariana estava com 15 anos Apesar de ser uma jovem alegre e sorridente os efeitos da profunda rejeição de sua mãe faziam se notar da escola vinham queixas da dificuldade de aprendizado que minha tia avó da menina traduziu sem nenhuma dúvida como Ela tem QI baixo Não podemos esperar nada dela Sem sucesso tentei explicar a minha tia e a minha prima que na maior parte dos casos dificuldades de aprendizagem estavam relacionadas a segredos em família à rejeição a problemas de identidade etc Minha família judia já havia determinado o destino da menina negra feia e burra A dificuldade de minha prima em aceitar sua filha mulata incomodavame sobremaneira Não conseguia entender como era possível que alguém que trazia tão viva na memória a história de parentes próximos de seus pais que tinham sido mortos em campos de concentração durante a Segunda Guerra podia ser tão preconceituoso Afinal seus pais ainda choravam a morte de amigos e parentes mortos por causa do preconceito em relação à religião de seu povo Agora a questão era um pouco diferente Tratavase de um outro tipo de rejeição a não aceitação referia se à raça e à cor de uma jovem adolescente A existência do racismo no Brasil não me era desconhecida Mas nunca o havia vivenciado tão de perto Meu desconforto foi crescendo a tal ponto que comecei a ter um desejo incontrolável de conversar com a jovem apresentála ao mundo de seus ancestrais mostrarlhe a música os mitos as tradições de seu povo Queria tornála consciente de que estava sendo alienada de sua história e da injustiça que isso representava Queria incentivála no sentido de assumir a parte africana de sua identidade É óbvio que minha autocrítica impediume de fazêlo Depois de algum tempo acabei me afastando da família em parte por causa da dificuldade em lidar com a situação Depois desse episódio os incidentes referentes ao preconceito racial ficaram adormecidos em minhas lembranças porém a semente do que hoje se traduz por um de meus objetos mais contundentes de estudo havia sido plantada definitivamente No final de agosto de 2012 fui procurada por uma paciente negra que chamarei de Patrícia 28 anos estudante de Psicologia em vias de terminar o curso que trazia como queixa central a relação conturbada com o namorado Tratavase de um rapaz branco e minha paciente foi logo afirmando Prefiro parceiros brancos porque os negros não são nada confiáveis na primeira oportunidade eles trocam a namorada negra por uma branca Fiquei um pouco chocada com a afirmação de Patrícia mas não dividi esse sentimento com ela Muito rapidamente porém as queixas referentes ao namorado foram passando para um segundo plano Como pude constatar aquela era apenas a ponta do iceberg Por outro lado as questões referentes ao preconceito racial invadiram o setting de maneira avassaladora De uma hora para outra vime tocada profundamente pelo sofrimento de minha paciente Em um de seus primeiros relatos Patrícia referiuse a vivências traumáticas ocorridas num tempo em que ela não tinha mais do que 10 anos Todas as noites eu dormia com a faca debaixo de meu travesseiro Queria me matar Não valia a pena viver num mundo onde eu era diferente de meus colegas não valia a pena viver num mundo cheio de crianças que durante as brincadeiras me chamavam de macaca A intensidade da dor que senti na contratransferência ao ouvir as palavras de Patrícia deixoume desconcertada Ela extrapolava em muito tudo o que já havia sentido em meus anos de experiência clínica De alguma forma eu sabia que aquilo ia além dos limites pessoais da díade O desejo de morte de minha paciente penetrou minha alma Tive dificuldade de continuar a sessão Qual o significado do que estava acontecendo naquela sala Quando pensei que o desconforto não poderia ser maior um outro fenômeno bizarro chegou para piorar a situação passei a sentir a presença de alguém mais no setting Não demorei a perceber que se tratava da filha de minha prima de quem não tinha notícias há muitos anos a menina que sofrera a rejeição da mãe por seu cabelo duro por seu nariz largo por sua cor da pele O que estaria ela fazendo ali Estaria eu acessando através de Patrícia o sofrimento de toda uma população afrodescendente que sentia na pele e na alma os efeitos do profundo descaso por parte dos brancos Naquele momento veiome à lembrança uma cena que presenciei na época em que convivia com a família Mariana tinha dois priminhos mais jovens que ela As crianças adoravamna Desde o momento em que os três se encontravam a alegria era contagiante Os meninos puxavamna para o sofá Queriam brincar de luta Ela era a heroína que os salvava dos monstros imaginários No meio da brincadeira uma voz estridente fezse ouvir Mariana Olhe como está o seu cabelo Vá se pentear A menina rapidamente passou a mão na cabeça tentando ajeitar uma mecha de seu cabelo alisado que ficara espetada para o alto Naquela época as técnicas de alisamento ainda não eram capazes de transformar os cabelos africanos nas macias madeixas das meninas brancas A mecha fora de lugar denunciava o fracasso da tentativa da mãe de embranquecer a jovem Pensei se uma mãe branca manifesta tal desconforto em relação à cor e aos traços da própria filha o que acontecerá conosco analistas dentro do setting Não seria por demais ingênuo acreditar que somos refratários aos problemas referentes ao preconceito racial que permeia a nossa cultura E se assim for de que forma e com que intensidade eles nos afetam Será que corremos o risco ainda que inconsciente de tentar embranquecer a alma de nossas pacientes afrodescendentes E em meu caso até que ponto seria capaz de impedir que a educação e os condicionamentos sociais aos quais fora submetida na infância e adolescência se imiscuíssem de forma sombria entre minha paciente e mim Resolvi expor minha dúvida para a Patrícia Disse a ela que por mais que me esforçasse não estava segura de que teria a capacidade de imaginar o sofrimento infligido a uma pessoa pertencente a um grupo tão ferido pela sombra coletiva dos brancos Mas prometi que daria o meu melhor Fizemos então um pacto no sentido de que ela teria toda a liberdade de apontar minha falha se isso por acaso acontecesse Tal iniciativa pareceu ser muito bem recebida por Patrícia Demos continuidade ao trabalho terapêutico Logo de saída tive confirmada a suspeita de que o preconceito revelado por Patrícia em relação a eventuais parceiros negros não traduzia um problema de cunho individual HOOKS B 2000 afirma Dentro do patriarcado capitalista o contexto social e político em que surge o costume entre os negros de alisarmos os nossos cabelos essa postura representa uma imitação da aparência do grupo branco dominante e com frequência indica um racismo interiorizado um ódio a si mesmo que pode ser somado a uma baixa autoestima Minha paciente não tinha consciência desse fato Ao contrário dizia ter orgulho da própria raça Patrícia foi progredindo muito mais rapidamente do que o esperado em seu processo terapêutico Mas depois de algum tempo uma nova dificuldade surgiu a jovem começou a chegar atrasada às sessões Eu decidira atendêla aos sábados por causa de suas dificuldades de locomoção da indisponibilidade de horários durante a semana Os atrasos de Patrícia incomodavamme crescentemente sentiame pouco respeitada Tinha a impressão de que a jovem não levava em consideração meu esforço no sentido de atendêla fora do horário convencional Em suma definitivamente esta paciente não me via A partir de um determinado momento ela mesma começou a se questionar com relação ao não cumprimento do horário Será resistência Quando a pergunta surgiu de forma sincera e despretensiosa por parte da paciente levei outro choque com minha reação Por algum motivo que não fui capaz de entender respondi mais do que depressa Não Não se trata de resistência Porque as palavras teriam saído de minha boca antes que eu pudesse controlálas como se eu fosse uma simples iniciante na arte de clinicar O que me teria levado à incapacidade de aproveitar a deixa da jovem para trabalhar um complexo que tão generosamente se fazia notar no setting terapêutico Sentiame travada e não conseguia entender as razões de tal dificuldade Só mais tarde pude compreender que minha resposta aparentemente desajeitada vinha de uma certeza inconsciente que afirmava não se trata apenas de um complexo pessoal não se trata apenas de um tipo de resistência nos termos concebidos pela psicanálise Decidi levar o caso para a supervisão Ali as coisas não foram menos desconcertantes Tive a impressão de ouvir uma certa crítica de minhas colegas Elas pareceram questionar minha forma de trabalhar com ênfase na questão culturalracial Sugeriram que eu passasse a dar mais atenção a aspectos tais como o complexo materno o complexo paterno etc Levantaram hipóteses sobre os conteúdos familiares presentes na transferência Um pouco desapontada com minhas colegas e acima de tudo comigo mesma pela inaptidão em dar conta da situação voltei ao consultório decidida a resolver o problema Na sessão seguinte pusme a discutir os atrasos de Patrícia Mas para meu espanto minha voz saía sem que eu pudesse reconhecêla eu que sempre cuidara de impedir qualquer pressão que pudesse cercear o fluxo da libido vinda do inconsciente de meus pacientes não me reconhecia mais Obviamente um dos motivos para que isso estivesse acontecendo era claro eu havia cedido à pressão do grupo de supervisão em vez de manterme fiel aos ditames de minha intuição E pior à medida que me colocava diante de Patrícia minha percepção de que aquela iniciativa poderia dar em nada foi crescendo passei a ter a sensação muito forte de que corria o risco de matar o símbolo representado por sua atitude aparentemente desrespeitosa Senti me literalmente como uma funcionária da Gestapo Mas era tarde para arrependimentos Rezei e pedi ajuda aos deuses Devo reconhecer que eles foram extremamente generosos pois passado algum tempo Patrícia trouxe um sonho que remetia aos problemas dos atrasos Enquanto nos dedicávamos à interpretação do sonho Patrícia começou a falar Sabe atrasar é um defeito de todas as pessoas de minha família Acho que é porque a gente é invisível mesmo Pedi a Patrícia que me explicasse melhor o significado de suas palavras Ela continuou Nós negros não somos importantes para ninguém Ninguém se importa conosco ninguém nos vê somos invisíveis Então por que chegar no horário Estava explicado o motivo dos atrasos Minha paciente chegava tarde a nossos encontros porque na transferência ela atuava a grande ferida da alma de seu povo a invisibilidade diante dos brancos E afinal eu era uma branca Como sempre intuíra não se tratava simplesmente de um trauma pessoal Como perceberia mais tarde tratavase de um trauma coletivo que afetava a todos nós brancos negros índios mulatos cafusos para não citar outros Depois desse dia decidi confiar mais em minha intuição Eu não tinha nenhuma dúvida de que minha paciente como qualquer outra pessoa deveria ter lá seus complexos materno paterno etc Mas concluí que se tentasse manterme restrita às questões pessoais da jovem não conseguiria ir muito longe A essa altura estava mais do que claro que o trabalho terapêutico entre uma analista branca e uma paciente negra ou viceversa guarda certas características específicas que não podem ser negadas ou simplesmente relegadas a um segundo plano sob o risco de se colocar a perder todo o esforço terapêutico tanto do paciente quanto do terapeuta Mais uma vez fui levada a questionar minha capacidade de acompanhar minha paciente em seu processo analítico Saí em busca da ampliação de meu conhecimento sobre racismo exclusão preconceito etc Para minha estranheza porém encontrei muito pouco material teórico nacional escrito por profissionais da área Antropólogos e sociólogos dedicam muito de sua energia produtiva às questões de etnia de raça de gênero Mas eles não lançam as luzes de que precisamos quando o problema diz respeito à conceituação à metodologia e ao atendimento terapêutico com mulheres afrodescendentes mestiças ou não2 A descoberta da escassez de fontes de consulta pareceume um tanto despropositada num país em que 87 da população branca brasileira têm ao menos 10 de ancestralidade africana In SCANDIUCCI G Cultura HipHop um lugar psíquico para a juventude negrodescendente das periferias de São Paulo Constatei também que este fato não ocorre somente no Brasil Jackson e Greene 2004 descrevem a mesma situação em países europeus e nos Estados Unidos Elas afirmam Os déficits na literatura psicológica vão desde oferecer informações limitadas da teoria até intervenções baseadas em tais informações e pior em corolários distorcidos e ofensivos que resultam em danos os mais variados para os pacientes Entre os junguianos o tema vem sendo tratado por vários teóricos Thomas Singer e Smauel Kimbles afirmam Desde a queda do Muro de Berlim e o colapso da visão binária de mundo e dos conflitos entre as duas grandes potências político econômicas que tal visão acarretava uma série sem fim de facções étnicas raciais religiosas de gênero emergiu ao redor do mundo Como esses conflitos intergrupais invadem as relações com uma carga fortíssima de emoções é preciso que busquemos explicações SINGER T KIMBLES SL 2004 A partir dessas observações a noção de complexo explorada por Jung CG 1991 teve como afirma Boechat W 2012 um desenvolvimento significativo a ser aplicado aos estudos dos grupos sociais e das culturas Ele continua dizendo que criouse para isso o conceito de complexo cultural a saber os complexos afetivos de toda uma cultura que emergiram com base em experiências históricas significativas desses povos ou culturas Ao questionar o motivo da escassez de literatura no Brasil cheguei a ouvir mais de uma vez que os afrodescentes ainda não conseguem acessar o divã psicanalítico o que inviabiliza estudos e pesquisas referentes a esse extrato da população Sim é verdade que historicamente os negros e mestiços tiveram menor acesso à educação formal sendo que as estatísticas sempre apontaram para uma maior defasagem no caso da formação universitária Mas não há dúvidas de que esta situação apresenta uma tendência de mudança As políticas de inclusão através do sistema de cotas estão abrindo as portas da educação universitária para um semnúmero de pessoas que de outra maneira não teriam acesso ao Ensino Superior Minha paciente é apenas uma entre milhares que através da educação formal renovam a esperança no sentido de mudar a história de sua vida de sua família e de seu povo Ela é apenas uma entre muitas que tendo tido a possibilidade de chegar à formação superior conseguiu acessar degraus mais altos da pirâmide socioeconômica e hoje pode darse o direito de buscar ajuda nos consultórios de análise Vale a pena chamar a atenção para a história da família de Patrícia pois ela ilustra de forma clara a trajetória de muitas famílias afrodescendentes no Brasil ela conta que todas as tias por parte de mãe e de pai foram domésticas Na verdade elas mantiveram e de certa forma mantêm viva a tradição que se iniciou no tempo da abolição da escravatura Naquela época os homens exescravos foram obrigados a sair das terras de seus senhores por causa da economia desacelerada no campo Digase de passagem que foi graças à crise econômica que se delineou e se concretizou a ideia da abolição da escravatura promulgada pela Princesa Isabel filha de Dom Pedro II em 13 de maio de 1888 Com a extinção do direito de compra de escravos os homens negros passaram a não ter mais serventia e partiram em busca de trabalho e sobrevivência A história das mulheres porém foi diferente pois alguém tinha que manter a ordem nos casarões sedes das fazendas chácaras e casas Com isso elas não perderam seus postos de trabalho Para aquelas que trabalhavam como mucamas e amas de leite as atividades permaneceram intactas agora remuneradas e com alguns direitos As mulheres da família de Patrícia descendem daquelas antigas mucamas Patrícia e uma prima são as primeiras mulheres da família a sair dos quartos dos fundos das casas das patroas para galgar as escadarias das universidades descêlas com um diploma nas mãos e com a esperança de que o sonho se torne realidade a Maldição das mucamas3 começa a ser quebrada Ela sabe que depende dela e de outros afrodescendentes que fazem parte desse grupo o esforço de conscientização no sentido da continuidade desse processo de mudança Estaremos nós analistas brancos conscientes de nossa responsabilidade nesse processo Um outro ponto que chama a atenção Patrícia relata que durante os cinco anos de Faculdade de Psicologia o tema do preconceito racial nunca foi abordado Digase de passagem que a universidade em questão tem vários alunos afrodescendentes matriculados nos diversos cursos oferecidos à população estudantil Ao saber disso mais uma vez meu espanto foi indescritível Com base em minhas primeiras incursões na leitura dos autores que desenvolvem o conceito de complexo cultural sugiro que ele está constelado no Corpo Docente Consequentemente o problema nunca foi abordado na sala de aula Diante disso Patrícia que estava em fase de escolher o tema de sua monografia de final de curso não se permitia explorar algo relacionado com a questão racial Ora pensava ela se o tema não era abordado isso deveria ocorrer pelo fato de ele não ter nenhuma pertinência A fantasia de Patrícia era a de que se ousasse enveredar por esse caminho os orientadores se negariam a ler a monografia e ela não seria aprovada Através de suas reflexões ao longo do processo terapêutico Patrícia não só acabou optando pelo tema que tanto lhe diz respeito como foi aprovada com mérito e foi convidada a participar de um grupo de pósgraduação em universidade das mais respeitadas em São Paulo que se dedicará à pesquisa sobre relações interraciais Mas os desafios continuam A jovem que começou a trabalhar como psicóloga na área organizacional tem trazido com alguma frequência questões que surgem no cotidiano tais como o estranhamento de colegas diante de sua presença uma negra entre as pessoas do grupo de contratados as dúvidas quanto à adequação de seus trajes penteados maquilagem etc Como sabem hoje existe toda uma estética voltada para as mulheres negras Mas Patrícia se pergunta Terá ela a liberdade de escolha sem que isso desperte o olhar do preconceito de colegas e superiores Recentemente um dos grandes desafios vencidos pela jovem diz respeito à forma de tratamento que ela vinha dando a seu cabelo Apesar das diversas mudanças na política racial as mulheres negras continuam obcecadas com os seus cabelos e o alisamento ainda é considerado uma necessidade Este fato demonstra claramente a influência da ditadura da moda idealizada por uma supremacia branca que leva as mulheres negras a uma enorme insegurança com respeito a seu valor na sociedade Com Patrícia não foi diferente ela submetia seus cabelos a um processo de embranquecimento dos fios através da técnica de relaxamento nome moderno para o que antigamente se costumava chamar de alisamento A decisão de deixar de fazêlo coincide com a crescente conscientização do direito de ser fiel às origens de seu povo e à alma africana que ela carrega em seu interior Conclusão O processo de análise de Patrícia está apenas começando Há ainda muito a ser conquistado Mas a forma como ele foi se desenvolvendo até agora já nos permitiu um enorme aprendizado Juntas descobrimos que em situações onde o encontro terapêutico acontece entre pessoas de duas raças diferentes alguns cuidados devem ser tomados De minha parte no início contava quase que tão somente com minha intuição minha sensibilidade alguma experiência como analista e com as percepções resultantes da contratransferência Aos poucos porém fui encontrando grande apoio na literatura que explora temas afins Este foi o caso por exemplo da teoria do Complexo Cultural SINGER T KIMBLES SL 2004 através do qual formulei muito do que hoje conheço sobre a questão do racismo Além disso outros autores junguianos ou não me foram de profunda serventia Eles confirmaram muitas vezes aquilo que eu intuía mas não me autorizava a validar pelo fato de me faltar base teórica e argumentação caso fosse questionada Assim Roberto Gambini afirma No Brasil há um débito psíquico que se não for formulado e trabalhado não permitirá que surja um novo processo de conscientização de identidade Dias Gambini 1999 p 69 Em outras situações eles me fizeram tomar conhecimento de uma série de riscos referentes às dificuldades que fatalmente ocorreriam no setting podendo levar a um grande fracasso terapêutico caso eu não estivesse consciente de seu significado e instrumentalizada para contornálos Parte de meu aprendizado diz respeito à quantidade de variáveis que podem passar ao largo da compreensão dos analistas Para citar apenas alguns exemplos consideremos 1 A dificuldade dos terapeutas em assumir para si mesmos o preconceito maior ou menor por conta de estarmos mergulhados numa cultura escravocrata em sua origem além de profundamente classista e preconceituosa 2 A profunda desconfiança de pacientes que até então foram sistematicamente ignorados desrespeitados ofendidos pelos brancos com que se relacionaram e que repentinamente veemse indefesos diante de mais um suposto vilão o terapeuta branco 3 A forma como o preconceito surge na mente de uma criança muitas vezes sem que ela tenha ouvido falar de racismo AUSDALE DV FEGIN JR 2001 E muitas outras Perguntome Quantos terapeutas brancos tiveram como eu o privilégio de ter aprendido com seus mestres a importância da leitura e da escuta multidisciplinar Neste caso por multidisciplinar entendo a leitura socioantropológica articulada com a escuta pessoal e arquetípica das mais variadas representações dos pacientes a saber sonhos relatos imaginação ativa desenhos dança música e outras técnicas expressivas Penso que esse olhar multidisciplinar fez aflorar minhas impressões de adolescência somandose à lembrança de meu choque diante da manifestação de racismo de meus parentes De certa maneira a partir disso torneime consciente da profunda distorção de mundo que me foi apresentado pelo extrato socioeconômico de onde vim levandome a direcionar meu olhar para o lado de fora de minha redoma pessoal A partir daí estava pronta para receber minha primeira paciente negra E ela chegou em 2012 Não fossem esses fatores talvez não pudesse ter alcançado a dimensão da dor de minha paciente Eu seria apenas mais uma branca desejosa de estar de acordo com aquilo que nossa sociedade denomina politicamente correto No entanto eu sabia muito bem do que ela estava falando pois eu havia estado do outro lado não só por ter crescido imersa num mundo profundamente preconceituoso mas também por ter sido educada por pessoas pertencentes à elite que desde os tempos coloniais parece estar cega para uma realidade cruel que pode ser observada tanto na arquitetura rural brasileira através do contraste entre os majestosos casarões dos antigos proprietários de terras e as humildes e desconfortáveis acomodações dos escravos ou dos colonos quanto na distribuição habitacional das grandes cidades contemporâneas como é o caso em São Paulo dos luxuosos condomínios construídos no bairro do Morumbi vizinhos aos barracos da Comunidade de Paraisópolis Hoje tenho a profunda convicção de que num intervalo não muito grande de tempo pacientes negros ou mestiços entrarão em número crescente porta adentro em nossos consultórios com suas vivências e seus traumas nascidos a partir do racismo Cabe então perguntar Os professores das faculdades de psicologia e nós analistas estaremos prontos para superar o grande desafio que se coloca não só diante dos profissionais de ajuda mas também diante da humanidade como um todo para aceitar o Outro em sua singularidade e inalterável diferença sem que isso seja percebido como ameaça Estaremos prontos para compreender que longe de ser uma ameaça esta aceitação representa uma enorme expansão da consciência coletiva e individual em direção a um mundo mais humano mais justo mais harmônico E finalmente nós que tanto desejamos aceitar e compreender o ser humano em sua maravilhosa diversidade ESTAREMOS PRONTOS PARA RECEBER A ALMA ANCESTRAL AFRICANA EM NOSSOS CONSULTÓRIOS Referências AUSDALE DV FEGIN JR The First R How Children Learn Race and Racism LanhamBolderNova YorkTorontoPlymouth Howman Littlefield Publishers 2001 BOECHAT W Cordial Racism race as a cultural complex InListening to Latin America exploring cultural complexes in Brazil Chile Colombia Mexico Uruguay and Venezuela New Orleans LA Spring Journal Books 2012 p 3150 A teoria dos complexos de C G Jung aplicados ao estudo da cultura In Universidade Gama Filho RJ 15 ago2012 Disponível em httpwwwposugfcombrnoticiastodas1737ateoriadoscomplexosde cgjung Acesso em 13 mar2014 GAMBINI R DIAS L Outros 500 Uma conversa sobre a alma brasileira São Paulo Senac 1998 HOOKS B Alisando o nosso cabelo Revista Gazeta de Cuba Unión de escritores y artistas de Cuba janfev2005 Disponível em httpwwwcriolaorgbrmaisbellhooksalisandonossocabelopdf Retirado do blog coletivomariasblogspotcomalisandoonosso cabelohtml Acesso em 05022014 JACKSON LC GREENE B orgs Psichotherapy with African American Women Inovations in Psychodynamic Perspectives and Practice Nova YorkLondres Guilford Press 2000 p XVI JUNG CG A natureza da psique 3 ed Petrópolis Vozes 1991 OC 82 p 2540 PENA SDJ BORTOLINI MC Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas Estudos Avançados vol 18 n 50 2004 p 3150 São Paulo USP RIBEIRO D O povo brasileiro A formação e o sentido do Brasil 2 ed São Paulo Companhia das Letras 1995 SCANDIUCCI G Cultura HipHop um lugar psíquico para a juventude negrodescendente das periferias de São Paulo São Paulo Imaginário USP v 12 2006 SINGER T KIMBLES SL orgs The Cultural Complex Contemporary Junguian Perspectives on Psyche and Society Nova York Brunner RoutledgeEast Sussex 2004 É pedagoga e psicóloga clínica analista trainee do Curso de Formação do Instituto Junguiano de São Paulo Ijusp filiado à Associação Junguiana do Brasil AJB e à International Association for Analytical Psychology Iaap com sede em Zurique na Suíça Trabalha atualmente em clínica particular na cidade de São Paulo 1 Este termo surgirá mais à frente no relato de um caso de análise que apresentarei a seguir 2 As reflexões aqui desenvolvidas não se restringem apenas às mulheres Para os afrodescendentes do sexo masculino o problema é igualmente grave O fato de tratar a questão numa perspectiva feminina devese tão somente à minha experiência na prática clínica da qual os homens ainda não fazem parte 3 Referência à Maldição dos labdácidas que faz parte do Mito de Édipo Ao perder o filho herdeiro Pélope rei da Frígia culpou Laio pai de Édipo e lançou sobre ele uma maldição se tivesse um filho este seria morto e sua descendência sofreria consequências trágicas Sófloques Édipo Rei III A ALMA BRASILEIRA AMERÍNDIA 1 Os irmãos criadores um mito de origem brasileira Isabela Fernandes Introdução Este trabalho pretende analisar o relato de um mito de origem do mundo do grupo indígena dos Aruás habitantes de Rondônia Nesta narrativa de criação diferente do que ocorre nas grandes cosmogonias das civilizações antigas não há uma luta entre o deus da luz e o deus da sombra não há vitória da ordem sobre o caos Neste mito indígena as forças luminosas e as forças obscuras se equilibram e permanecem justapostas em um espaço simbólico de integração dos opostos Para introduzir a discussão será apresentado um livre resumo da narrativa indígena tal como esta é contada na obra de Betty Mindlin1 Não há espaço aqui para o relato do mito todo cuja longa história excederia o objetivo deste texto Serão focados os episódios que interessam ao estudo Iniciaremos o relato utilizando as palavras do texto de Mindlin que registram o caráter de oralidade das narrativas ameríndias Havia dois irmãos Andarob o irmão mais velho e Paricot o mais novo Tinham uma irmã Antoinká O mais velho não tinha tanta inteligência quanto Paricot Andarob era preguiçoso gostava muito de rede não trabalhava Paricot é quem trabalhava O começo do mundo surgiu assim Não existia ninguém neste mundo não existia mundo Mas o mundo surgiu de uma gia A mãe de Deus para nós é uma gia O pai de Deus é o veadomateiro Gia é Wirib e veado é Wití Destes dois surgiu Deus Deus são os dois irmãos mais a irmã A Gia e o Veado surgiram de si mesmos Pensaram em ter um filho para criar o mundo Era tudo escuro não existia nada Tiveram os filhos MINDLIN 1999 p 52 Em seguida o mito conta que a Gia e o Veado tiveram três filhos nesta ordem Andarob o mais velho Antoinká a irmã do meio e Paricot o mais novo que era o mais inteligente Quando já estavam crescidos os seus pais a Gia e o Veado não disseram o que eles tinham que fazer Então Paricot disse ao irmão Eu sei o que vou fazer eu vou formar o mundo Assim pensou o mais novo mas o mais velho não pensou Não tinha uma ideia como o outro já desde pequeno MINDLIN 1999 p 53 Então mesmo sem o conselho dos pais Paricot começou a fazer o mundo Bastava ele pensar que as coisas passavam a existir Primeiro Paricot fez um marido para a irmã pois era urgente que ela se casasse logo para não correr o risco de ficar solteira Para tanto ele criou o Beijaflor Kirun e com ele casou a irmã Paricot fez o cunhado Kirun para casar a irmã porque mulher sem marido não dá certo MINDLIN 1999 p 53 O primeiro e mais difícil problema estava resolvido Kirun o cunhado foi criado por Paricot para ser o primeiro pajé Este ensinou aos dois irmãos a serem pajés também a tomarem rapé e a fumar Paricot tomava rapé fumava pensava um monte de coisas e tudo ia se tornando real Mas quando Andarob fumava não conseguia pensar em nada e nada acontecia Em seguida Paricot teve que resolver o segundo maior problema se casar Então Paricot criou o montinho do cupim O buraco do cupinzeiro era a vagina de sua esposa Já casado Paricot pôde se dedicar à criação do mundo Bastava ele pensar para virar verdade Assim ele foi criando os bichos e as árvores e andava azafamado de um lado para o outro achando tudo o que ele criava muito bonito A sua mulher que era a terra do cupinzeiro ficou grávida dos vários povos indígenas que estavam para nascer Depois de um tempo os filhos quiseram nascer mas não conseguiam porque a porta do buraco do cupinzeiro estava trancada Paricot chamou o irmão Andarob que estava deitado na rede para ajudar a fazer os filhos nascerem Mas Andarob ficou com preguiça e não quis ir A irmã Antoinká mandou que ele fosse aí ele foi Os dois irmãos fumaram para ver se tinham alguma ideia Andarob fumou fumou mas não tinha ideia nenhuma Paricot teve uma ideia que não deu certo Ele criou os pássaros coloridos de bico duro como o papagaio o periquito a maritaca para bicar a porta do buraco Mas os pássaros entortaram seus bicos e não conseguiram quebrar a porta do cupinzeiro por isso estas aves possuem o bico recurvado Então Andarob foi dormir desanimado Paricot não desistiu fumou fumou até que a porta se abriu Então saíram do buraco vários casais de índios cada par já saía com a sua marca e o nome de seu povo Saiu muita gente feia Depois saíram alguns casais bonitos entre estes alguns de raça branca Assim foram criados os diferentes povos Paricot começou a ensinar aos povos a língua Aruá Ele pretendia ensinar apenas uma língua para que todos os homens se entendessem Depois de um tempo ele ficou cansado e chamou Andarob para continuar a tarefa Ele pediu para o irmão que ensinasse uma língua só Mas Andarob ensinou várias línguas fazendo com que todos os homens se desentendessem O relato continua contando uma série de eventos importantes da criação tais como a invenção da agricultura a descoberta da água o roubo do fogo da noite e do sono o primeiro incêndio assim como outros incidentes fantásticos todos eles frutos do incessante trabalho de Paricot No entanto vamos focar agora o último episódio da criação a descoberta da gravidez de barriga pois nesta cena há uma participação especial do irmão preguiçoso Andarob O mito conta que naquele tempo as mulheres não ficavam grávidas na barriga porque não havia relação sexual O homem ainda não havia descoberto a vagina da mulher Antes a vagina tinha a função de guardar o óleo para as mulheres passarem no corpo e nos cabelos O homem mexia com seu membro nos dedinhos do pé da mulher e ela engravidava na batata da perna Bastava à mulher dar uma topada com o dedo do pé para a criança nascer não dava trabalho nenhum nem havia nenhuma dor Foi Andarob quem descobriu a vagina da mulher porque ele não trabalhava e ficava à toa Andarob começou a namorar a cunhada a esposa de Paricot porque tinha cisma do irmão talvez porque este fosse um chato com aquela inteligência toda Quando estavam namorando escondido Andarob não quis mexer no pé da cunhada como todos faziam Ele quis mexer na vagina dela A cunhada não quis disse que ia quebrar o vaso de óleo Andarob insistiu acabou entrando e quebrando a vasilha de óleo Paricot descobriu a traição e ficou muito zangado Ele decretou que dali em diante as mulheres teriam que fazer sexo e ter filhos pela vagina e não mais pelo pé A narrativa de Mindlin termina com a seguinte frase Paricot continuou o trabalho dele E quanto trabalho MINDLIN 1999 p 65 Pais e filhos O início do relato de Mindlin chama a atenção por sua falta de encadeamento lógico e cronológico Antes de tudo havia três irmãos No entanto logo depois a história afirma que não existiam nada nem ninguém neste mundo E logo depois de afirmar que não havia nada neste mundo o mito conta que o mundo surgiu da Gia e do VeadoMateiro Ora se não havia nada no mundo como havia esses seres A narrativa dos povos Aruá não especifica como nasceram estes dois entes misteriosos Na maioria das narrativas indígenas brasileiras o mundo surge a partir de um vazio primordial sempre existe uma ordem anterior enigmática que precede à criação Assim A Gia e o Veado surgiram de si mesmos Pensaram em ter um filho para criar o mundo Era tudo escuro não existia nada MINDLIN 1999 p 52 O relato dos índios Aruá como a maioria das narrativas míticas não segue uma causalidade racional restrita ele utiliza a linguagem simbólica que opera através da lógica da simultaneidade e da analogia O mito formado por símbolos justapõe as camadas temporais torna indiferenciados os espaços diferenciados racionalmente O imperativo do mito é personalizar o mundo tornálo um palco de personagens e dramas entrelaçados emocionalmente no tempo e no espaço Neste mito específico a indiferenciação da sequência espaçotemporal é particularmente acentuada Este fato decorre em parte da própria estrutura do texto de Mindlin que tenta preservar ao máximo a marca de oralidade das histórias contadas2 Mas podemos também afirmar que a desarticulação lógica do relato obedece à linguagem típica das cosmogonias em geral Os mitos de origem relatam eventos que ocorreram no início do mundo quando as fronteiras espaciais e temporais ainda não tinham sido estabelecidas Pois bem no início do mundo não havia nada nem ninguém mas apesar disso havia três irmãos Em seguida uma gia se casa com um veado para gerar os três irmãos que já tinham aparecido na narrativa E tudo estava escuro Este mito incrível inventou um casamento completamente absurdo O simbolismo da união da gia e do veado obedece a um padrão infantil e primitivo típico dos relatos que tentam representar os primórdios do mundo No estágio arcaico das origens em que tudo é obscuro indefinido e informe dois animais tão díspares podem se unir em casamento e gerar filhos na escuridão Tratase aqui de uma imagem mítica que representa a totalidade cósmica anterior ao processo de organização Nos mitos de criação em geral sempre aparecem estes pais primordiais cujos filhos vão formar o mundo A Gia e o Veado expressam forças originais de fecundação de onde vai surgir o cosmo O motivo dos pais primordiais é uma imagem arquetípica comum em mitos de diversas culturas Ela representa a fantasia infantil a respeito da cena primal da sexualidade dos pais o que torna este motivo fundamental para a organização da personalidade da criança BOECHAT 2008 p 50 A reflexão de Boechat nos ajuda a compreender melhor a imagem aberrante que se refere à gia e ao veado como os pais do mundo O simbolismo se aproxima aqui das fantasias infantis para expressar uma sexualidade primitiva que no entanto inaugura uma ordem no caos os pais divinos por mais disformes que sejam um dia se amaram e tiveram bebês surge assim um primeiro sentido no abismo original A gia se associa a um princípio feminino telúrico e amniótico ao mesmo tempo que exprime a fertilidade em seu estado indiferenciado A gia é aparentada com sapos e rãs e estes animais surgem com frequência nas narrativas de diversas culturas Sob o foco da psicologia analítica podese afirmar que os anfíbios nos mitos e contos emergem das águas lodosas simbolizando conteúdos do inconsciente que tentam se aproximar da consciência anunciando uma transformação3 Em nossa história Aruá parece que a Mãe Gia surge nas trevas do mundo para anunciar que uma força reptiliana está preparando uma futura renovação O veado por sua vez configura uma imagem masculina mais diferenciada e evoluída Com seu porte elegante e seus chifres majestosos o veado é em várias culturas do mundo um símbolo da espiritualidade que emana da energia animal No Brasil o veado é uma das bases da alimentação dos índios sendo a sua carne muito cobiçada O veado encarna a sacralidade do animal caçado sendo divinizado em muitas comunidades indígenas como atesta o Mito do Anhangá o espírito das florestas o veado branco de olhos de fogo que protege os animais contra os caçadores A Gia e o Veado formando um par de opostos que simboliza a união entre a matéria e o espírito vão gerar os filhos criadores do mundo primeiro veio Andarob o irmão mais velho e preguiçoso depois veio Antoinká a insossa irmã do meio e Paricot o irmão mais novo e mais inteligente O relato conta que o mundo foi criado pelos três mas Paricot foi quem trabalhou de fato Andarob apesar de ter participado um pouco da criação mais atrapalhando do que ajudando gostava mesmo é de ficar na rede Só que o mais velho era preguiçoso vivia deitado O mais novo era trabalhador MINDLIN 1999 p 53 Nas cosmogonias míticas em geral os filhos expressam um estágio mais evoluído e espiritual em relação ao estágio primitivo representado pelos pais primordiais Os pais expressam um princípio de inconsciência e de repouso nas trevas originais já os filhos querem sair do escuro criar coisas trazer o movimento e a luz O filho se torna assim o deus civilizador em oposição aos pais cujo papel se reduz ao de deuses procriadores No Mito Aruá Paricot o deus filho representa um princípio racional que resolve criar um mundo mais organizado em que leis e limites possam ser fixados e em que os homens possam viver Paricot expressa a iniciativa rumo à liberdade e à individualidade que se opõe à inércia da totalidade expressa pelos pais Nos mitos de criação o nascimento dos filhos e netos dos pais primordiais configura uma transgressão da ordem familiar arcaica Por isso em quase todas as cosmogonias das grandes civilizações criase o cenário simbólico de um conflito entre as gerações muitas vezes tomando a forma de uma guerra cósmica entre pais e filhos No mito de origem babilônica por exemplo os pais primordiais Apsu e Tiamat que representam forças subterrâneas entram em conflito com o seu neto Marduk representante de um princípio espiritual Na cosmogonia grega contada na Teogonia de Hesíodo o pai primitivo Úrano é castrado por seu filho Crónos este por sua vez representando o pai devorador é destronado pelo filho Zeus deus da ordem e da luz Na narrativa Aruá não há uma guerra épica entre as gerações Paricot embora representante de uma nova ordem não luta contra os pais Há de fato uma transgressão inegável Paricot quer trabalhar fazer coisas enquanto a Gia e o Veado permanecem acintosamente em repouso e em silêncio No entanto esta diferença entre as gerações não gera um conflito maior O máximo que os pais fazem é não aconselhar nem ajudar os filhos Foram crescendo Já crescidos perguntaram um ao outro O que nós vamos fazer Se nossa mãe e nosso pai não aconselham nada o que nós vamos fazer E já começou a trabalhar O pai e a mãe não aconselhavam nada MINDLIN 1999 p 53 Na narrativa indígena uma nova ordem surge sim mas não para exilar ou substituir a ordem primeva O mundo organizado que Paricot inventa não é necessariamente melhor ou mais justo do que o mundo caótico e disforme dos pais Parece não haver necessidade de exclusão da ordem precedente Os dois princípios opostos o elevado e o primitivo convivem lado a lado sem violência As trevas originais permanecem justapostas à realidade mais evoluída que vai sendo criada Destacamos aqui esta ideia porque toda a reflexão a seguir vai se basear neste tema central no Mito Aruá há uma ausência de conflito violento entre o princípio da luz e o da sombra Veremos em seguida como este processo se repete na relação entre os dois irmãos criadores Paricot e Andarob eles também representantes de princípios opostos Não vai haver uma guerra entre o irmão luminoso e o sombrio São dois eixos contrários que se encontram de certa forma conciliados Os irmãos O tema mítico que retrata a criação do mundo a partir de uma dupla de deuses é bem característico das cosmogonias ameríndias brasileiras Na mitologia dos índios Mundurucus por exemplo os criadores são um deus pai Caru e seu filho Rairu Em uma narrativa dos índios Bororo os principais heróis fundadores são dois irmãos Itubore e Bokororo que juntos criam a cultura humana Os mitos dos índios do Rio Xingu contam que foram dois irmãos o Sol e a Lua que atuaram no início do mundo como heróis civilizadores4 A imagem de um único deus atuando como o criador solitário do mundo não é frequente nas mitologias indígenas embora ela possa ocorrer eventualmente A narrativa Aruá afirma que no início do mundo não havia um único deus apenas mas sim uma Gia e um Veado A energia primordial que fecunda o universo se manifesta através de dois deuses Em seguida eles tiveram três filhos que criaram o mundo Este mito é um bom exemplo para mostrar que as cosmogonias indígenas brasileiras são mais afins com a ideia da multiplicidade do que com a ideia de unidade5 Na mitologia indígena os dois deuses criadores em geral constituem uma polaridade e expressam tendências opostas Um dos deuses frequentemente representa a ordem enquanto o outro deus representa a tendência ao caos Enquanto um é forte o outro é fraco se um é autoritário o outro obedece se um é mais benévolo o outro é mais perverso quando um é luminoso o outro é sombrio e assim por diante Na narrativa Aruá Paricot tem ideias é mais inteligente e trabalhador já Andarob é burro preguiçoso e não tem ideia nenhuma Mas o mais velho não pensou Não tinha uma ideia como o outro já desde pequeno MINDLIN 1999 p 53 Como ocorre em diversos mitos e contos populares o irmão mais novo é quem de fato funda e transforma a ordem existencial O caçula por ser o último na ordem de herança e sucessão traz um novo poder que rompe com o padrão familiar enquanto o irmão mais velho representa uma fixação nos modelos paternos Paricot o mais novo é o herói renovador aquele que pensa que age que traz a força de progressão o mais velho Andarob aquele que não pensa nada e só fica dormindo expressa uma força de regressão ao estado de repouso original Do ponto de vista junguiano podemos supor que Paricot representa o movimento arquetípico que tende a romper a totalidade inconsciente para estruturar a consciência Já Andarob representa os conteúdos que tendem a retornar para junto dos pais primordiais na totalidade inconsciente Nos mitos e contos de várias culturas surge com muita frequência a imagem de irmãos rivais e opostos Esaú e Jacó Caim e Abel Rômulo e Remo são exemplos de gêmeos míticos que representando princípios contrários nutrem entre si um ódio mortal Segundo Boechat 2008 o motivo mítico dos gêmeos rivais vem a ser um tema arquetípico que traduz a dinâmica psíquica dos opostos no processo de organização da consciência humana O complexo egoico como centro da consciência estruturase à medida que seu oposto a sombra também se organiza como uma contraparte inconsciente BOECHAT 2008 p 736 Na narrativa Aruá Andarob é associado ao arquétipo da sombra porque ele expressa uma energia primitiva e caótica oposta à função organizadora e racional de Paricot A sombra atua muitas vezes boicotando ou dificultando a dinâmica progressiva da consciência Da mesma forma Andarob atrapalha ou trava os projetos de Paricot o tempo todo Paricot chama o irmão para fumar e ajudálo a criar o mundo mas Andarob fuma e não tem ideia nenhuma Paricot chama o irmão para ajudar no nascimento dos filhos mas Andarob fica com preguiça e prefere ficar na rede Paricot deseja ensinar aos homens uma única língua para todos se entenderem porém Andarob ensina várias línguas originando a discórdia entre os homens Paricot deseja que o mundo evolua rumo a um padrão mais refinado de existência já Andarob deseja que o mundo se mantenha para sempre em um estado uterino A oposição entre o ego e a sombra quando representada nos mitos dos irmãos rivais em geral gera um conflito mortal que acaba com a destruição de um dos lados Não é isto o que ocorre no Mito Aruá O que diferencia esta narrativa indígena de outros mitos é que nesta os dois irmãos não tentam se matar nem chegam a ser rivais entre si A sombra personificada por Andarob não é excluída nem eliminada pelo seu irmão solar Pelo contrário Paricot chama o irmão o tempo todo para participar da criação embora Andarob nem sempre fique muito animado Ao analisar um mito de criação brasileira dos índios Mundurucus sob o foco da psicologia analítica Von Franz 1972 confirma a ideia de que em geral os deuses criadores das cosmogonias indígenas atuam sob a forma de um par de opostos Um deles expressa um princípio mais inconsciente o outro expressa a tendência à formação da consciência Mas esta oposição configura uma totalidade arquetípica que não pode ser desfeita Estas tendências contrárias formam uma união natural uma é inerente à outra Assim a autora prefere afirmar que o par divino forma uma dualidade e não exatamente uma oposição Um é mais ativo o outro é mais passivo um conhece mais o outro conhece menos um é mais humano o outro é menos humano um é o tipo Pai o outro é o tipo Filho um é macho o outro é fêmea um é melhor o outro é pior um tende mais para a vida o outro tende mais para a morte VON FRANZ 1972 p 70s Andarob e Paricot formam de fato uma parceria indissolúvel Andarob jamais é excluído pelo irmão Ele se associa aos níveis psíquicos inferiores que são importantes para contrabalançar o movimento de contínua evolução de Paricot Este muitas vezes fica zangado com Andarob que atrapalha seus projetos mas como afirma a narrativa Paricot se conforma e acaba aceitando os desmandos do irmão MINDLIN 1999 p 57 Assim Andarob é capaz de participar da gestação do mundo de forma mais criativa embora sempre acabe destruindo um pouco também Segundo a psicologia analítica a sombra se torna uma energia destrutiva se não for reconhecida e trazida à luz pela consciência porém quando a sombra é integrada ela é capaz de ativar aspectos criativos significativos para a vida humana A imagem mítica de parceria entre Andarob e Paricot representa o processo de integração da sombra com a consequente elaboração de seu aspecto destrutivo Ao se conformar com as trapalhadas do irmão Paricot é capaz de canalizar o poder virtualmente hostil da sombra para um sentido criativo Quando assimilada a criatividade da sombra se revela e ela pode acordar as fontes instintivas de energia antes ocultas Andarob é o responsável pelas duas mais incríveis descobertas do mito a sexualidade e a vagina da mulher Andarob é que descobriu a vagina da mulher pois não tinha o que fazer MINDLIN 1999 p 64 Se antes o amor e a procriação se resumiam a uma operação insossa realizada pelo casal através dos dedos dos pés graças a Andarob ela se torna sexualizada e prazerosa Em um dos episódios narrados Paricot chama o irmão para ajudálo a fazer os filhos nascerem mas como esta tarefa se mostra muito difícil Andarob desiste e volta para a rede Andarob vai ajudar o irmão somente quando a irmã Antoinká ordenalhe que vá Andarob tem grande amizade pela irmã e parece ser submisso a mulheres Além disso é um excelente amante já que consegue mudar o padrão da relação sexual com a descoberta da vagina Já Paricot muito duro e inteligente não sabe lidar com as mulheres Sua esposa o considera um marido sem graça e sua irmã Antoinká não gosta dele Antoinká não gostava desse deus de Paricot porque ele era muito inteligente MINDLIN 1999 p 63 Andarob é portanto mais próximo do princípio feminino e sua afetividade atenua a rígida masculinidade de Paricot Podemos completar esta reflexão utilizando as ideias de Mindlin 1999 e afirmar que os dois irmãos nas mitologias indígenas brasileiras constituem uma diferença e não exatamente uma oposição pelo menos não uma oposição moral Não existe aqui uma dissociação maniqueísta porque não há uma delimitação tão clara entre o bem o e o mal Os demiurgos os Criadores não são iguais mas não são o contrário um do outro um faz e acontece o outro descobre um cria as regras o outro desobedece e provoca desastres e assim por diante Não há um Criador Bom e um Malvado MINDLIN 1999 p 17 A narrativa Aruá é um exemplo desta reflexão de Mindlin pois Paricot e Andarob possuem simultaneamente aspectos benignos e malignos O caráter elevado de Paricot não o torna um guardião do bem Além disso ele pode chegar a ser muito chato como é destacado na narrativa Da mesma forma a preguiça e a perversão de Andarob não são marcadas no mito como qualidades destrutivas que devam ser eliminadas Apesar de atrapalhar a organização de Paricot Andarob não impede que a ordem e a justiça sejam estabelecidas No fim das contas Paricot conseguiu formar um mundo razoavelmente justo e ordenado mesmo com as bagunças de Andarob A oposição mais clara entre o bem e o mal surge com frequência nas cosmogonias das grandes civilizações da Antiguidade O Deus cristão e a serpente Zeus e Crónos Osíris e Set Marduk e Tiamat são exemplos de pares de opostos que entram em conflito e deflagram uma guerra cósmica Estes pares divinos configuram princípios excludentes que não podem se conciliar O deus da luz expressa aqui não apenas um princípio de ordenação mas também se identifica com o bem e com a justiça E o deus sombrio por sua vez expressa um poder monstruoso de destruição que deve ser exilado O deus cristão Zeus Osíris e Marduk não são apenas opostos aos seus rivais sombrios eles precisam eliminar os seus rivais A única solução possível para que seja criado um mundo mais justo e ordenado é o deus da luz dominar e expulsar a sombra Na cosmogonia grega por exemplo a criação do universo coincide com uma guerra épica entre Zeus e os Titãs Esta luta foi necessária para que fossem instauradas a justiça e a ordem pois os Titãs correspondem a forças caóticas que deviam ser superadas Quando estes deuses primitivos reinavam dominavam a violência e a injustiça De Úrano a Zeus ocorreu então um processo evolutivo em que um estágio inicial do universo dominado por deuses indiferenciados transformase em um mundo ordenado liderado por um deus que expressa o princípio organizador do logos No Mito Aruá Paricot também expressa o princípio ordenador do logos tendo certa semelhança com Zeus No entanto ele não entra em guerra contra a energia caótica de Andarob O irmão não representa um poder titânico que deve ser banido A sombra foi integrada à consciência dominante portanto o seu poder destrutivo foi desviado Não existe aqui a necessidade de vitória de Paricot sobre Andarob Talvez seja preferível afirmar que Andarob ao invés de se opor francamente ao princípio luminoso de Paricot atua como uma força traiçoeira e bemhumorada que se mostra indispensável na dinâmica da criação Andarob expressa um princípio de desequilíbrio e irreverência que atenua a exagerada perfeição do trabalho de Paricot Mindlin afirma que nas cosmogonias brasileiras o deus sombrio não atua tanto como o oposto moral do deus luminoso mas sim como uma força de desconstrução e irreverência No Brasil podemos encontrar muitos pares de demiurgos indígenas que contêm o bem e o mal simultaneamente mas não são estereótipos maniqueístas ou o são somente em germe São patriarcas e salvadores do mundo mas também endiabrados malandros brincalhões beirando o mau caráter ameaçando os homens com grandes tragédias MINDLIN 1999 p 20 O episódio da criação das diferentes línguas no Mito Aruá é brilhante para esclarecer esta ideia Paricot começa a ensinar aos homens uma única língua para que todos se entendam Mas o deus inteligente fica cansado e chama o irmão Andarob para terminar a tarefa Aqui fica claro que o princípio ordenador não exclui o princípio caótico ao contrário precisa dele para ajudálo No entanto Andarob acaba atrapalhando todo o projeto de Paricot quando ensina várias línguas gerando a discórdia entre os homens Todo o episódio é recheado com a aura da galhofa Foi ensinado várias línguas até chegar no branco Como vai disse Andarob já estendendo a mão ensinando a dar a mão como fazem os que não são índios os índios não dão a mão Ensinou todos os tipos de língua que só ele sabe hoje O outro sabia até mais mas não queria ensinar queria que falassem uma língua só Paricot se conformou Separou os índios e os brancos MINDLIN 1999 p 57 É interessante notar como Andarob não apenas desfaz o projeto de Paricot como também trai o irmão ao bajular o povo de raça branca Ele subverte a lei quando ensina aos brancos o estranho hábito do cumprimento de mãos comportamento desconhecido dos índios Espertamente Andarob descobre que os brancos são mais poderosos e resolve logo se alinhar com eles Andarob como bom diplomata e bom malandro permite a negociação entre povos inimigos Andarob desempenha aqui o importante papel do trickster cuja função é não perder de vista dois lados contrários e inverter uma situação unilateral para o seu oposto Analisando a figura do trickster em seu ensaio de 1954 Jung aponta para a função psicológica compensatória desta personagem que surge para lembrar ao ego que ele possui conteúdos primitivos de inferior qualidade espiritual com os quais deve aprender a conviver Segundo Jung a simbologia do trickster possui um efeito psicoterapêutico pois mantém diante dos olhos do indivíduo altamente desenvolvido um baixo nível moral e intelectual para que a consciência não se desvincule totalmente de suas bases inconscientes JUNG 1954 2000 480 Vejamos outro exemplo da função do trickster na narrativa Aruá Andarob lá pelas tantas fica enjoado com a inteligência do irmão Portanto para implicar Andarob se torna amante da cunhada e insiste em burlar a lei ele não quer fazer sexo pelos pés quer penetrar na vagina da mulher Desta forma Andarob acaba quebrando o vaso de óleo que ela guardava lá dentro Esta imagem aponta para uma simbologia de conexão e de geração que antes não havia no mito O óleo possui a propriedade de lubrificar as superfícies para tornar possíveis os encaixes e justaposições Andarob como trickster é o guardião do poder de conexão das emoções inconscientes Apesar de deter um baixo nível moral e intelectual Andarob revela diante do intelecto refinado de Paricot que é necessário dar atenção aos conteúdos inferiores da psique Como trickster Andarob transgride as regras para que as funções instintivas tais como o afeto e a sexualidade não sejam para sempre banidas do novo mundo criado Na narrativa Aruá Paricot o irmão solar e Andarob o irmão sombrio formam uma perfeita comunhão de opostos Eles se complementam e se relativizam mutuamente Quando Paricot se torna muito sério e chato Andarob traz a irreverência e o bom humor Um dos deuses cria o outro brinca se Paricot fica exausto de tanto trabalhar Andarob vem mostrar que o descanso é uma bênção Se Paricot tem ideias e o outro não é porque a luz em excesso resseca e ofusca E se Paricot cria para o irmão destruir é porque a criação não existe sem um pouco de destruição Considerações finais A narrativa Aruá foi aqui usada como um exemplo do que ocorre na maioria das cosmogonias indígenas do Brasil Nestas os dois deuses criadores embora representando princípios opostos não se excluem mutuamente nem lutam entre si em um conflito épico No final dos mitos a força luminosa se entrelaça à força sombria formando uma imagem simbólica de equilíbrio A reflexão termina aqui apresentando a hipótese de que talvez possamos falar de uma visão de mundo indígena fundamentada na necessidade de assimilação da alteridade e não na sua exclusão Nos mitos indígenas parece não existir o padrão de domínio da identidade sobre a alteridade Resta saber se esta imagem de harmonia entre luz e sombra é fruto de uma mera construção compensatória da narrativa indígena ou se ela reflete uma realidade social de fato E quais seriam as razões culturais para os mitos indígenas se estruturarem segundo este modelo Deixaremos o desenvolvimento destas ideias para outra oportunidade Referências BOECHAT W A mitopoese da psique Petrópolis Vozes 2008 COSTA E SILVA A Lendas do índio brasileiro Rio de Janeiro Ediouro 1985 JUNG CG Os arquétipos e o inconsciente coletivo Petrópolis Vozes 2000 MINDLIN B Terra grávida Rio de Janeiro Rosa dos Tempos 1999 PERET JA Mitos e lendas Karajá Rio de Janeiro Peret 1979 SCHADEN E A mitologia heroica de tribos indígenas do Brasil Brasília MEC 1970 VILLASBOAS O VILLASBOAS C Xingu os índios seus mitos São Paulo Círculo do Livro 1970 VON FRANZ ML O feminino nos contos de fadas Petrópolis Vozes 1995 Creation Myths Dallas Spring 1972 ZWEIG C ABRAMS J orgs Ao encontro da sombra São Paulo Cultrix 1991 É professora da área de Letras Clássicas do Departamento de Letras da PUCRio ministrando também disciplinas de História Antiga no Departamento de História da PUCRio É doutora em Literatura pelo Departamento de Letras da PUCRio Atua nas áreas de mitologia e literatura gregas e mitologia indígena brasileira É coautora do livro A vida a morte e as paixões no mundo antigo com a professora da PUCRio Flávia Eyler publicado pela Editora Cassará 1 Este trabalho utilizou como referência o relato contado em Terra grávida de Mindlin 1999 p 52 65 2 Em Terra grávida p 261263 a autora explica que as narrativas do livro foram escritas por ela a partir de transcrições orais gravadas em língua indígena contadas pelos próprios índios e traduzidas para o português por intérpretes também indígenas 3 Para um melhor desenvolvimento do tema cf a análise de Von Franz do conto A Bela Adormecida em O feminino nos contos de fadas 1995 4 Os mitos aqui mencionados são narrados nas obras Lendas do índio brasileiro de Alberto Costa e Silva 1985 e Xingu os índios seus mitos de Orlando e Claudio VillasBoas 1970 5 Mindlin 1999 e Schaden 1970 podem ampliar a reflexão sobre a criação do mundo se configurar a partir de dois deuses criadores nas cosmogonias das tribos brasileiras 6 Para maior esclarecimento sobre o conceito junguiano de sombra cf JUNG CG Arquétipos e inconsciente coletivo 2000 4146 assim como ZWEIG C ABRAMS J Ao encontro da sombra 1991 A tradição guarani e o eterno retorno Gil Antonio de Britto Duque E a afirmativa do índio Arru que falava de outro céu acima do céu que aí está e ainda que ela está lá Quem é ela Arru Ninguém ninguém somente uma sabedoria Afirmava com veemência Somente uma SABEDORIA VillasBoas 2000 1 Introdução Em 1953 foi publicada nos Boletins da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo uma parte da primeira versão escrita das ñeeporãtenondé as Primeiras Palavras Formosas os ensinamentos sagrados da tradição guarani Essa narrativa trazida pelo antropólogo Leon Cadogan e chamada de Ayvurapyta Os fundamentos da linguagem humana relata parte da tradição oral do grupo Mbyá Mais precisamente os JeguakaTenondé do Paraguai um antigo clã entre os índios guarani que resistiu ao contato com os colonizadores e não se catequizou mantendo vivas muitas de suas tradições orais ancestrais JEKUPÉ 2001 Um dos aspectos mais interessantes do universo mitológico dos guaranis são os mitos referentes ao fim e ao renascimento do mundo Os mitologemas do fim do mundo e seu ressurgimento são encontrados em diversas culturas e trazem uma raiz arquetípica Mitos como o dilúvio judaicocristão ou o Ragnarök descrito na cosmologia nórdica são mitos fundadores em culturas que se tornaram hegemônicas e por isso escreveram a história Mas o que pensar quando nos deparamos com uma mitologia tão complexa quanto desconhecida que jaz em silêncio na base cultural da principal matriz indígena de nosso povo Nosso objetivo é apresentar e discutir alguns aspectos da tradição ancestral guarani que chegaram até nós relacionandoos com as concepções do homem do fim do mundo e do renascimento dentro da mitologia e da psicologia analítica 2 Cosmologia guarani Segundo Kaká Werá Jekupé JEKUPÉ 1998 os anciãos da raça vermelha detinham uma ciência chamada de Arandu Arakuaa que significa A sabedoria dos ciclos do céu e trata da lei dos ciclos da terra do céu e do homem Segundo essa visão o universo foi criado em quatro grandes ciclos de desenvolvimento que partem do imanifestado o Um o Paiprimeiro chamado Namandu até a formação da Terra e do mundo material Esses quatro estágios são gerados gradualmente em estágios sucessivos de materialização e diferenciação formando um cosmo com quatro níveis ou quatro moradas sagradas ou amba as quais são regidas por quatro grandes SeresTrovões ou espíritos cocriadores Jakaira Ru Ete Karaí RuEte Tupã RuEte e Ñamandu RuEte Essas divindades após a formação da Terra ocupam as quatro colunas de sustentação do mundo as quatro respirações da GrandeMãe relacionadas com os quatro ventos os quatro elementos e os quatro pontos cardeais No centro está a Terra Mãe ÑandeCy onde situa se o eixo o bastão de poder a palmeira que como a Yggdrasil dos nórdicos é a coluna vertebral do mundo JEKUPÉ 2001 ÑandeCy gira e dança entre os quatro cantos do espaço Sua dança cósmica traz a tarefa de tornarse uma Estrela Mãe e cada ciclo que surge refletese em provas desafios e aprendizados para todos os reinos JEKUPÉ 1998 Coerente com a noção junguiana de um inconsciente tanto coletivo quanto pessoal macro e microcósmico os regentes guaranis também deram ao mundo quatro qualidades ou cantos musicais que brotam do caos inicial ara yma arapoty ara pyaú ñemo kandire e arakuaracypuku JEKUPÉ 2001 Esses quatro movimentos da criação se expressam através dos quatro ciclos da natureza o inverno seco e vazio a primavera que brota com as flores celestes o verão com suas emanações de luz e calor e o outono que traz a semente da renovação em um outro ciclo Já o surgimento da consciência como atributo humano por sua vez fazse através de três movimentos o abrirse o desdobrarse e o desatarse de si guerojera jera mbojera JEKUPÉ 2001 que cria as sete dimensões sutis e materiais da realidade Ñandecy que está no centro dos quatro pilares corresponde ao último ciclo a Terra propriamente dita a qual se manifesta nas duas partes complementares da realidade A primeira de natureza espiritual é chamada pelos guaranis de Yvy Mara Ey a Terra Sem Males a morada dos antepassados e a segunda de natureza material é chamada Maraney a Terra de Provas o mundo em que habitamos JEKUPÉ 1998 3 O fim dos tempos Segundo a mitologia guarani ao final de um ciclo quando os homens não realizam o aprendizado referente àquele estágio e durante sua passagem na Terra de Provas desnaturam e desequilibram as relações existentes no âmbito da GrandeMãe ocorre um aniquilamento Esse fim dos tempos é conduzido pelo regente pela divindade responsável por aquele ciclo No último ciclo regido por Tupã a limpeza foi feita na forma de um grande dilúvio assim descrito No tempo de Tupã o Senhor dos Trovões e Tempestades Comandante das Sete Águas o grande desafio foi o Poder Sua bênção colocada na orelha esquerda chamase arandukua inteligência e na orelha direita mbaekua sabedoria Na cabeça humana fez sua pintura chamada pensamento que não é outra coisa senão seus raios e trovões sagrados em ação cujo corpo são as águas das emoções e dos desejos que se movimentam para o criar e o destruir Esse foi o mais difícil ciclo para a Mãe Terra pois a humanidade quase a extinguiu colocando em risco a Dança Sagrada da Galáxia pelo mau uso que fez do poder de criar Tupã reagiu limpando todo o mal com o Sal da Terra As águas abraçaram a Mãe para que ela não morresse desse mundo JEKUPÉ 1998 4 O renascimento Com a grande limpeza do mundo surge a esperança de um novo retorno e renovação Esse renascimento se faz através da matriz pura da Terra Sem Males da terracéu o paraíso arquetípico Todas as culturas do tronco tupiguarani preservam a crença na Terra dos Antepassados na Yvy Mara Ey Esse mito de origem prototupi com a perda de suas raízes ancestrais e sua virtual literalização estimulou uma grande migração desse povo possivelmente iniciada há três mil anos Essa grande migração para o leste descrita por alguns antropólogos FAUSTO 2005 povoou todo o litoral brasileiro antes quase despovoado cinco séculos antes da chegada dos invasores europeus Antes da migração houve entre os proto tupi também chamados tubuguaçu uma verdadeira diáspora levando a uma separação entre os Filhos do Sol os tupinambás e os Filhos da Lua os guaranis Liderados por seus pajés e seus tamãi sábios os tupinambás expansionistas e belicosos partiram do centro da América do Sul para o norte seguindo os afluentes da bacia amazônica enquanto os guaranis mais introspectivos e vinculados aos cultos ancestrais seguiram para o sul através dos afluentes da bacia do Prata JEKUPÉ 1998 2001 Os dois remanescentes do tronco Tupi dispersos e enfraquecidos pela quebra de sua tradição e identidade comuns buscaram cada um à sua maneira a Terra Sem Males a qual segundo seus guias encontravase no nascente ao leste Ao se depararem com o oceano não puderam prosseguir e contornando o litoral brasileiro ao norte e ao sul voltaram a se encontrar na futura costa brasileira Esse reencontro ocorreu aproximadamente quinhentos anos antes da promessa do nascente se converter em maldição ou seja a escravidão e o aniquilamento trazidos pelos invasores europeus Eduardo Galeano em seu livro As caras e as máscaras descreve de forma poética o mito e a epopeia dos guaranis O jaguar azul romperá o mundo Outra terra a que não tem mal a que não tem morte vai nascer da aniquilação desta terra Ela pede que seja assim Pede a morte pede o nascimento esta terra velha e ofendida Ela está cansadíssima e de tanto chorar por dentro ficou cega Moribunda atravessa os dias lixo do tempo e quando é noite inspira piedade às estrelas Logo logo o Pai Primeiro escutará as súplicas do mundo terra querendo ser outra e então soltará o jaguar azul que dorme debaixo da sua rede Esperando esse momento os índios guaranis peregrinam pela terra condenada Você tem alguma coisa que dizer para nós colibri Dançam sem parar cada vez mais leves mais voadores e cantam os cantos sagrados que celebram o próximo nascimento da outra terra Lança raios lança raios colibri Buscando o paraíso chegaram até as costas do mar e até o centro da América Rodaram selvas e serras e rios perseguindo a terra nova a que será fundada sem velhice nem doença nem nada que interrompa a incessante festa de viver Os cantos anunciam que o milho crescerá por sua conta e as flechas voarão sozinhas na floresta e não serão necessários o castigo e o perdão porque não haverá proibição nem culpa GALEANO 1999 5 Discussão Os tupiguaranis foram os nativos que maior contato tiveram com os invasores europeus no litoral atlântico Sendo os mais numerosos e os mais assimilados formaram a principal matriz indígena racial cultural e linguística do Brasil O fato de sua riquíssima tradição míticoreligiosa ser para nós praticamente desconhecida tem raízes em questões culturais e antropológicas que não cabe discutir nesse trabalho mas cabe aqui citar Orlando VillasBoas quando diz que O índio é mais um teósofo do que um teólogo Isso porque sua concepção de divindade é fruto de uma introspecção em que a fé deve nascer da intuição e não da doutrinação de outrem VILLASBOAS 2000 Essa afirmação aponta não só para uma autonomia do universo religioso indígena mas sobretudo para a relação íntima e vivencial que estabelecem com seus mitos e crenças com seu mundo psíquico Ao nos depararmos com os mitos de criação destruição e renascimento dos guaranis chamanos a atenção as inúmeras correlações e analogias que podemos estabelecer entre eles e os grandes sistemas míticos e religiosos conhecidos A ocorrência dessas semelhanças tão expressivas em povos histórica e geograficamente tão afastados em nossa opinião poderia ser explicada dentro da teoria do inconsciente coletivo de Jung Boechat afirma que os núcleos componentes de todos os mitos das diversas culturas os mitologemas representam estruturas mentais básicas de todos os homens Estas moléculas estruturais do psiquismo são expressões do inconsciente coletivo BOECHAT 1998 Mircea Eliade em seu livro Mito do Eterno Retorno afirma que as sociedades arcaicas se relacionam com o tempo cíclico em detrimento do tempo histórico isso por sentiremse indissoluvelmente vinculadas com o cosmo e os ritmos cósmicos Dessa forma contextualizam uma história sagrada que pode ser repetida de maneira infinita no sentido de que os mitos servem como modelos para cerimônias de reatualização periódica dos importantes eventos ocorridos no princípio dos tempos ELIADE 1992 Esse tempo cíclico com ciclos de formação declínio e restauração do cosmos fazem parte da cosmologia guarani e como vimos são em número de quatro Quatro eras ou idades conforme encontramos nos mitos gregos e nas teorias dos grandes ciclos cósmicos Em sua visão o Apocalipse de João descreve quatro regentes os quatro seres viventes diante e em torno do trono divino a coluna central e os quatro anjos que guardam os quatro ventos 4 vers 6 O quatro ou quatérnio significa ao mesmo tempo o sólido o material o manifestado na Terra mas também a universalidade donde ela emana no sentido dos elementos que compõem o corpo da divindade Buscando esclarecer o sonho de uma paciente onde surge a imagem de quatro divindades que a circundam Jung afirma que a personalidade total é indicada pelos quatro pontos cardeais os quatro deuses isto é as quatro funções que dão a orientação do espaço psíquico e que o ponto central o eixo é um símbolo de individuação JUNG 2012 A noção de um universo que é criado e destruído periodicamente é encontrada na tradição indiana no AtharvaVeda ELIADE 1992 e a mesma ideia do dilúvio está presente em tradições tão múltiplas quanto a judaica suméria africana hindu grega maia asteca mapuche pascuence e inca O dilúvio provocado pela interferência divina com o propósito de expurgar uma humanidade desviada limpa e renova a Terra engendrando um novo início Essa renovação entre os guaranis se relaciona aos dois aspectos do mundo Yvy Mara Ey a Terra sem Males o mundo dos ancestrais e Mara Ney o mundo material de provas e sofrimento O Apocalipse de João também fala do paraíso como uma terra sem males onde os escolhidos jamais terão fome nunca mais terão sede não cairá sobre eles o sol e não terão mais ardor algum 7 vol 16 e ao fim de sua narrativa afirma Vi novo céu e nova terra pois o primeiro céu e a primeira terra passaram e o mar já não existe 21 vol 1 Essa noção de dois mundos alternantes e complementares é trazida por Jung no que diz respeito à relação entre o inconsciente e o consciente a qual no processo de individuação pode se desenvolver desde o conflito com suas provas e desafios até o tornarse si mesmo unificando os opostos JUNG 2014 Nesse ponto a imagem do colibri o pássaroalma trazida por Galeano é um elemento fundamental do pensamento guarani O colibri habita a morada do coração e é uma grande expressão do sagrado pois como expressão da função transcendente é aquele que vem da morada de Tupã JEKUPÉ 2001 o ágil mensageiro alado que liga o divino ao humano um psicopompo multicor Interessante notar que o próprio termo Tupi é formado originalmente por duas palavras tu som e py pé assento Tupi é o som de pé ou som que tomou assento e tornouse consciente de si mesmo selbst ou de seu próprio som primordial Ainda nas palavras de Jekupé Uma tonalidade da Grande Música Divina colocada em pé encarnada dentro de um assento chamado corpo carne para entoar a criação no mundo terreno para ser na Terra o que sua essência sagrada é no céu JEKUPÉ 2001 Dessa forma Tupi é o homem consciente de sua totalidade de seu self a palavraalma que brota do Grande Som Primeiro cuja essência manifestada é o ritmo gerador da vida Já TupãTenondé é expressão das palavras tu som pan expansão fluir e tenondé primeiro início ou seja o som primordial que se expande e se manifesta No início e no fim de cada grande ciclo existe Ñamandu que é descrito ao mesmo tempo como o Grande Mistério o Grande Um Imanifestado e o responsável pela Terra um Ser presente na tribo Ele é o grande e o pequeno o que antecede permeia e finaliza todos os ciclos é também simultaneamente o círculo que abarca e o eixocoluna que está no centro Uma clara analogia ao conceito junguiano de self que é ao mesmo tempo a totalidade e o centro estruturador da psique No caso de Tupã também encontramos a representação de um poderoso deustrovão semelhante a Zeus Thor um fogo cósmico Agnisekpyrosis Esse pai guarani da consciência traz para a humanidade dois presentes arandukua inteligência e mbaekua sabedoria que geram o pensamento lampejos sagrados e as emoções e desejos águas sagradas que juntas trazem o poder O poder de criar e destruir Nesse ponto ressurge a questão do uso indevido da faculdade da consciência onde os pensamentos como luz manifestada são raios e trovões sagrados Jung também relaciona a consciência do eu como uma multidão de luminosidades e citando os alquimistas falas das scintillae centelhas Afirma que a mente humana é também uma scintilla desta espécie mais adiante compara as scintillae com os arquétipos e que as centelhas provêm do Rhuah Elohim do Espírito de Deus JUNG 2012 Pois é a consciência o pensar criativo como livrearbítrio que através da sedução do poder provoca a destruição do mundo pelas águas Em analogia com os processos psíquicos poderíamos falar que a destruição do mundo criado pela consciência luminosa é realizada pela invasão das águas turvas do inconsciente e que seu ressurgimento em um novo ciclo se faz através das energias e padrões ancestrais presentes na matriz purificada da TerraCéu inconsciente Yvy Mara Ey Dessa forma Jung afirma no 253 de seu livro O eu e o inconsciente Assim pois encaro a perda de equilíbrio como algo adequado pois substitui uma consciência falha pela atividade automática e instintiva do inconsciente que sempre visa à criação de um novo equilíbrio JUNG 2014 6 Conclusão Mesmo abordado de maneira superficial como fizemos o universo da tradição indígena guarani nos mostra uma grande riqueza simbólica a qual aponta para inúmeras considerações de ordem mitológica e psicológica Queremos com isso justificar um estudo mais profundo e detalhado da tradição ainda muito desconhecida desse grupo étnico que se encontra na raiz da formação cultural e racial de nosso povo Não é difícil perceber que essa sabedoria genuinamente brasileira que se encontra perdida no passado pode com sua profundidade atemporal nos auxiliar na construção de nossa própria individualidade pessoal e coletiva Tzvetan Todorov em seu livro A conquista da América A questão do outro afirma que Colombo descobriu a América mas não os americanos TODOROV 2003 e os chamados índios foram tratados como selvagens incultos pois alegavase que não tinham alma e eram pouco diferentes de animais Os guaranis guardam em suas ñeeporãtenondé poderosas expressões arquetípicas e culturais Essa visão de mundo universal e integralizante talvez tenha o poder de nos aproximar de nossas raízes de uma forma que até então a história não permitiu Nosso povo é fruto do mito e do complexo das três raças tristes cujas desventuras e violência clamam em nosso sangue As primeiras palavras formosas dos nossos irmãos guaranis falam à alma brasileira como uma luz que emerge das sombras Podem nos mostrar um caminho de retorno aos fundamentos dos quais tanto carece nosso povo no mundo atual pois como diz Mircea Eliade ELIADE 1992 Tudo que se precisa é de um homem moderno dotado de sensibilidade menos fechada para o milagre da vida e a experiência da renovação renasceria para ele Uma visão semelhante O sonho da pacificação do branco surge em 1784 na roda dos sonhos de uma aldeia xavante prestes a ser aniquilada Essa mesma visão dirigida a todos nós repetese no início do século XX nas palavras da profecia do clã guarani Jeguaka narrada por Pablo Werá Depois de fundirse o espaço e amanhecer um novo tempo eu hei de fazer que circule a PalavraAlma novamente pelos ossos de quem se põe de pé E que voltem a encarnarse as almas disse nosso Pai Primeiro Quando isso acontecer Tupã renascerá no coração do estrangeiro e os primeiros adornados novamente se erguerão na morada terrena por toda a sua extensão JEKUPÉ 2001 Referências BOECHAT W In BRANDÃO JS Mitologia grega Vol I 3 ed Petrópolis Vozes 1998 404 p ELIADE M Mito do Eterno Retorno São Paulo Mercuryo 1992 175 p FAUSTO C Os índios antes do Brasil 3 ed Rio de Janeiro Zahar 2005 94 p GALEANO E As caras e as máscaras Porto Alegre LPM 1999 366 p JEKUPÉ KW Tupã Tenondé A criação do universo da terra e do homem segundo a tradição oral guarani São Paulo Peirópolis 2001 107 p A terra dos mil povos 3 ed São Paulo Peirópolis 1998 115 p JUNG CG O eu e o inconsciente 26 ed Petrópolis Vozes 2014 196 p OC 72 A natureza da psique 10 ed Petrópolis Vozes 2012 410 p OC vol 82 TODOROV T A conquista da América A questão do outro 3 ed São Paulo Martins Fontes 2003 387 p VILLASBOAS O A arte dos pagés Impressões sobre o universo espiritual do índio xinguano São Paulo Globo 2000 126 p É médico mestre em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro especialista em Homeopatia pela Associação Médica Homeopática Brasileira e Associação Médica do Brasil analista em formação pelo Instituto Junguiano do Rio de Janeiro Textos de capa Contracapa Este livro aborda a questão importante da intersecção da alma brasileira coletiva e a alma dos indivíduos como elas se afetam como a memória ancestral de todo um povo afeta o comportamento de cada pessoa Cada vez se torna mais claro que a compreensão da alma brasileira é fundamental para o melhor entendimento de cada um de nós em nossa particularidade Nesses tempos de emergência do novo paradigma quando as disciplinas não podem ser mais compartimentalizadas o psicólogo estende suas mãos ao sociólogo e ao antropólogo para entender a complexidade da alma brasileira Orelhas O propósito central das reflexões deste livro é promover um processo de recuperação das memórias de nossas origens multiculturais em um processo de resgate de raízes brasileiras de sua alma e de seus contrastes O temário abordado nesta publicação busca recuperar através de um percurso pelas características multiculturais de nossas origens como povo o contato com nossa própria identidade Pois a falta de identidade cultural nos leva ao perigoso fenômeno da imitação de modelos quer venham da América do Norte ou da Europa com esquecimento de nossa originalidade que é única Se a Europa passou por um longo período de Idade Média entrando em seguida no processo enandiodrômico extrovertido do Renascimento durante o qual se deram as descobertas ultramarinas o Brasil nessa fase abrigava as mais variadas etnias indígenas com uma realidade social inteiramente diferente A partir do século XVII com a imigração africana e mais tarde com a forte entrada do branco europeu a partir do século XIX deuse continuidade ao processo de formação da identidade brasileira movimento que tem continuidade até os dias de hoje Um caminho inteiramente diferente do europeu uma identidade diferente com possíveis soluções que devem ser pensadas de forma original Muitas vezes esquecemos que o Brasil apresenta uma nova complexidade à qual o analista junguiano Luigi Zoja se referiu O distanciamento de nossa identidade original está sem dúvida associado ao característico complexo de inferioridade do brasileiro referido por diversos autores Os valores nacionais são sempre inferiores aos do estrangeiro estes últimos mais inseridos em um padrão moderno de ordem organização e planejamento O brasileiro ao contrário é desorganizado improvisa não tem método Mas será que nosso herói típico Macunaíma é apenas sem caráter ou terá ele com toda sua improvisação um aspecto criativo trazendo uma nova vitalidade Depressivos tornamonos hipercríticos de nossa realidade e deixamos de perceber nossa capacidade criativa deixando de nos renovar em nossa improvisação Os capítulos estão organizados em torno de três eixos A multiplicidade da alma brasileira A alma brasileira africana e A alma brasileira ameríndia Henrik Fexeus Jogos de Poder Métodos simpáticos para influenciar as pessoas Jogos de poder Fexeus Henrik 9788532653574 280 páginas Compre agora e leia Este livro inclinará a balança ao seu favor Não importa se você for vendedor advogado garçom professor cuidador gerente estratégico estudante ou encantador de cães a meta é ajudálo a dominar a arte de conseguir o que quer e não o que os outros querem Deixeos envolvidos em aulas e pesquisas Atividades assim podem ser interessantes e divertidas mas não são realmente necessárias Mais fácil é parar de ser um seguidor e tornarse um líder Compre agora e leia Carol Kinsey Goman A LINGUAGEM CORPORAL DOS LÍDERES 2ª Edição Grande treinamento para os líderes globais do futuro Marshall Goldsmith coautor mundamente como quatro dos CDs A linguagem corporal dos lideres Kinsey Goman Carol 9788532648686 304 páginas Compre agora e leia A linguagem corporal é a administração do tempo do espaço da aparência da postura do gesto da prosódia vocal do toque do cheiro da expressão facial e do contato visual A mais recente pesquisa na neurociência e psicologia provou que a linguagem corporal é crucial para a eficácia da liderança e este livro vai mostrar a você exatamente como ela impacta a capacidade dos líderes em negociar administrar a mudança estabelecer a confiança projetar o carisma e promover a colaboração Compre agora e leia James Hillman UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE A IMAGEM EDITORA VOZES Uma investigação sobre a imagem Hillman James 9788532661739 136 páginas Compre agora e leia Este livro reúne pela primeira vez os ensaios que James Hillman escreveu sobre a centralidade da imagem psíquica na psicologia arquetípica e em sua concepção de terapia Essa inclusive já foi chamada de terapia focada na imagem São textos paradigmáticos que se tornaram já clássicos escritos em 1977 1978 e 1979 e que servem para o praticante da psicoterapia analítica entender de que modo Hillman elabora sua visão teórica a partir do alinhamento de psique e imagem feito por CG Jung A psicologia arquetípica é herdeira dessa tradição que elabora uma fenomenologia da imagem como foco de sua prática Compre agora e leia WALTER BOECHAT O LIVRO VERMELHO DE CG JUNG JORNADA PARA PROFUNDIDADES DESCONHECIDAS PREFÁCIO DE SONU SHAMDasan I EDITORA VOZES O livro vermelho de C G Jung Boechat Walter 9788532649270 192 páginas Compre agora e leia Em O Livro Vermelho de C G Jung Jornada para profundidades desconhecidas Walter Boechat pretende levantar apenas algumas questões que julga de interesse dos leitores de Jung questões que impressionaram como bastante significativas não só para a compreensão da obra junguiana mas que lançam luz sobre o grande mistério do que é a natureza humana e sobre essa dimensão nova que Jung e Freud desvendaram para a contemporaneidade o universo do inconsciente e possíveis maneiras de abordálo Compre agora e leia CG JUNG SOBRE SONHOS E TRANSFORMAÇÕES Sobre sonhos e transformações Jung Carl Gustav 9788532649256 80 páginas Compre agora e leia Os textos aqui apresentados são a transcrição de gravações em som original de exposições de Jung e documentam as célebres rodas de conversação que ocorreram em 1958 no Instituto CG Jung de Zurique Para um público internacional CG Jung respondeu tanto em alemão como em inglês a perguntas selecionadas referentes aos grandes temas de sua obra e aos diversos aspectos práticos do tratamento terapêutico Compre agora e leia