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Psicologia ·
Psicologia Social
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Jung CG 18751961 Espiritualidade e transcendência CG Jung seleção e edição de Brigitte Dorst tradução da introdução de Nélio Schneider Petrópolis RJ Vozes 2015 Título original Schriften zu Spiritualität und Transzendenz ISBN 9788532651242 Edição digital 1 Espiritualidade 2 Jung Carl Gustav 18751961 3 Psicologia transpessoal 4 Psicoterapia I Dorst Brigitte II Tìtulo 1503165CDD1501954 Índices para catálogo sistemático 1 Espiritualidade e transcendência Psicologia junguiana 1501954 2007 Foundation of the Works of CG Jung Zurich Título original alemão Schriften zu Spiritualität und Transzendenz Direitos de publicação em língua portuguesa 2015 Editora Vozes Ltda Rua Frei Luís 100 25689900 Petrópolis RJ wwwvozescombr Brasil Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma eou quaisquer meios eletrônico ou mecânico incluindo fotocópia e gravação ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da editora Diretor editorial Frei Antônio Moser Editores Aline dos Santos Carneiro José Maria da Silva Lídio Peretti Marilac Loraine Oleniki Secretário executivo João Batista Kreuch Diagramação Sheilandre Desenv Gráfico Capa Idée Arte e Comunicação Ilustrações de capa Pinturas da Senhora X paciente de Jung retratando a evolução do processo de individuação In JUNG CG Os arquétipos e o inconsciente coletivo 11 ed Petrópolis Vozes 2014 OC 91 caderno iconográfico quadros 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 ISBN 9788532651242 edição brasileira digital ISBN 9783843602228 edição suíça impressa Editado conforme o novo acordo ortográfico Nota do editor Os números que constam no início dos parágrafos do livro indicam os parágrafos em que se encontram os excertos de textos em seu respectivo volume nas Obras Completas de CG Jung As referências a fontes e as notas entre chaves são de Brigitte Dorst Complementações entre colchetes correspondem ao texto original e provêm em regra das editoras e dos editores do respectivo volume das Obras Completas Sumário Introdução I As dimensões da Psique O inconsciente pessoal e o inconsciente suprapessoal ou coletivo A função transcendente A autonomia do inconsciente II Simbolismo religioso A função dos símbolos religiosos A cura da divisão III Psicoterapia e religião Introdução à problemática da psicologia religiosa da alquimia Sobre a relação entre a psicoterapia e a direção espiritual Religião e psicologia uma resposta a Martin Buber IV Caminhos Espirituais e Sabedoria Oriental Comentário psicológico sobre o Livro Tibetano da Grande Libertação A ioga e o Ocidente Prefácio à obra de Suzuki A Grande Libertação Considerações em torno da psicologia da meditação oriental Prefácio ao I Ging V Realidade e Transcendência da Psique O real e o suprarreal Sobre a sincronicidade A alma e a morte Sobre o renascimento Textos de capa Introdução Brigitte Dorst Tradução de Nélio Schneider Nas últimas décadas na passagem para o século XXI uma quantidade imensa de temas religiosos penetrou na consciência coletiva Nesse processo um novo conceito começou a se impor espiritualidade Por trás dele afloraram as velhas perguntas da humanidade De onde viemos Para onde vamos Qual é o sentido da nossa existência Quem ou o que nós humanos somos neste cosmo No campo da psicologia houve nova abertura e disposição para reconhecer religiosidade e espiritualidade como temas importantes Ocorreu uma inversão de tendências uma mudança de paradigmas tendo como ponto de partida a América do Norte desenvolveuse a assim chamada Psicologia Transpessoal espiritualidade e consciência se converteram num importante campo de investigação e análise A Psicologia Transpessoal que foi edificada sobre as bases da Psicologia Humanista caracterizase por uma abertura especial para os conhecimentos psicológicos filosóficos e espirituais de todas as tradições religiosas Nela confluem diversos caminhos do conhecimento de forma interdisciplinar psicologia e psicoterapia tradições espirituais e conhecimento místico adquirido pela experiência história da religião e antropologia xamanismo e outras terapias alternativas doutrinas sapienciais orientais pesquisa da consciência conhecimentos ecológicos e ciências naturais modernas Uma autodefinição mais recente diz O objeto da Psicologia Transpessoal é a exploração do potencial máximo da humanidade bem como o conhecimento a compreensão e a realização de estados de consciência unificadores espirituais e transcendentes 1 As imagens de mundo e ser humano da Psicologia Transpessoal só são compreensíveis sobre o pano de fundo da nova imagem do mundo desenvolvida nas últimas décadas com base nos conhecimentos da física Fundamentais para a nova imagem do mundo são sobretudo os conhecimentos da Física moderna entre outros a Teoria da Relatividade e a Teoria Quântica a Teoria da Autoorganização e da Autopoiese a Teoria da Evolução a Teoria dos Sistemas a Teoria dos Campos Morfogenéticos e a Teoria do Holograma Cada ente humano como parte dos processos descritos nessas teorias constitui um ponto nodal num sistema de constante troca de informações em todos os seus processos vitais ele está alojado no ecossistema ser humanouniverso enquanto processo total unificado O conceito central da Psicologia Transpessoal é o da consciência A consciência transpessoal pode ser circunscrita com conceitos como presença integral permeabilidade amplitude aberta emocionarse sentirse profundamente tocado por energias numinosas vivência da unidade universal experiências místicas de convergência do Simesmo individual com o absoluto a experiência do que há de mais baixo e de mais elevado na alma humana tratase portanto de experiências que em regra são associadas com os conceitos espiritualidade e mística De acordo com a concepção de diversos pesquisadores de tendências a espiritualidade se converteu num movimento mundial David Tacey fala de uma revolução espiritual 2 sendo a espiritualidade entendida sobretudo como conexão e relação formas de sentirse unido a uma totalidade maior bem como um transcender do ego e do individualismo 3 O último ponto vale especialmente para as culturas ocidentais Ao mesmo tempo criticase uma psicologia desalmada que teria tabulizado todas as questões e experiências religiosas em sua imagem do ser humano Pesquisadores e cientistas que se ocupam com experiências espirituais como formas da realidade psíquica valemse de métodos consagrados para investigálas Temse chegado a resultados impressionantes nas pesquisas sobre a conexão entre espiritualidade e saúde como por exemplo nas áreas da redução do estresse da expectativa de vida da redução de doenças cardíacas e circulatórias e do incremento do bemestar Tendo como fundamento um paradigma pósmoderno os físicos e pesquisadores do cérebro igualmente participam de projetos de pesquisa transpessoais Nesse meiotempo a Psicologia Transpessoal também está sendo mais respeitada mesmo que a postura de certos céticos às vezes lembre a seguinte breve parábola sufista Que absurdo disse a moscadeumdia quando ouviu pela primeira vez a palavra semana Não são poucos os especialistas para os quais uma psicologia que se orienta na espiritualidade ainda é suspeita de esoterismo Em círculos psicanalíticos ela às vezes é tida como regressão mórbida à infância Essa suspeita recai com frequência ainda maior no âmbito da psicologia acadêmica sobre a Psicologia Analítica de CG Jung que pode ser entendido como precursor da Psicologia Transpessoal As análises feitas por Jung a respeito de questões e temas espirituais são uma antecipação do que já está estabelecido hoje na segunda década do século XXI em termos de concepções novas e integradoras há ligações com a espiritualidade em segmentos da psicoterapia bem como na área da psicologia da saúde na medicina no acompanhamento de pessoas com enfermidades que ameaçam a vida no trabalho de albergagem e acompanhamento a moribundos 4 Espiritualidade e transcendência hoje Espiritualidade é um termo carregado de significados Etimologicamente esse conceito está ligado ao termo latino spiritus espírito e significa cheio de espírito ou inspiradoanimado como orientação ou práxis vital intelectualespiritual A espiritualidade se refere a todas as formas de religiosidade independentemente de confissões e igrejas e é tida hoje como o conceito superior que abrange uma pluralidade de fenômenos religiosos Sínteses e associações novas orientais e ocidentais surgem em muitos lugares Para Raimon Panikkar a palavra espiritualidade é uma reação branda à calcificação das religiões 5 No extremo oposto de uma espiritualidade ou então religiosidade modificada e aberta para o mundo observase o enrijecimento das aspirações fundamentalistas como expressão de uma resistência a mudanças e inovações motivada pelo medo A espiritualidade abarca as religiões e independe das tradições remetendo desse modo às dimensões profundas da experiência que não são mais perceptíveis em muitas formas de religião Um importante mestre espiritual do nosso tempo o mestre zen e monge beneditino Willigis Jäger descreve isso assim Um número cada vez maior de pessoas está perguntando hoje pelo sentido de sua existência e as religiões tradicionais praticamente não conseguem mais oferecerlhes respostas dignas de crédito A crença em Deus dá lugar hoje ao anseio por uma experiência espiritual com essa realidade última 6 Jäger prossegue A religiosidade é um traço básico da nossa natureza humana Tratase da tendência profundamente enraizada em nós de abrirnos para a totalidade e a unidade Compartilhamos essa tendência com todos os seres vivos pois ela é a força motriz da evolução Até agora ela se manifestou nas multiformes religiões do mundo pois fora das religiões durante milênios não houve separação entre religião e espiritualidade Agora porém presenciamos como essa força religiosa está se desvinculando das religiões tradicionais Encontro cada vez mais pessoas que são religiosas sem confessar o credo de nenhuma religião Identifico nisso um vestígio da evolução progressiva da consciência 7 A espiritualidade como fenômeno universal que comprovadamente deixou suas marcas no mundo todo nos últimos 30000 anos de história é uma constante antropológica em múltiplas formas de manifestação Dentre o leque de significados da espiritualidade Anton A Bucher fala dela como conexão e unidade connectedness conectividade como relação com Deus ou com um ser superior como conexão com a natureza como relação com outros como relação com o Simesmo como formas de práxis específica oração e meditação como capacidades e experiências paranormais p ex experiências de quase morte e como autotranscendência 8 Hoje em dia é muito natural que a práxis espiritual faça parte da vida cotidiana de muitas pessoas Exercícios meditativos são vias trilhadas por toda a vida e que conduzem o ser humano para dentro de si para outros espaços da consciência e para um maior conhecimento de si Tratase de chegar à realidade por trás da realidade de fazer experiências num espaço transpessoal da consciência experiências que não se consegue captar nem com os conceitos de nossa linguagem cotidiana nem com os conceitos da ratio O interesse disseminado pela espiritualidade e o anseio por experiências próprias pode ser reconhecido também no número crescente de grupos de meditação e ofertas de meditação Em quase todas as cidades há ofertas muito variadas de ioga cursos de meditação e contemplação exercícios espirituais cristãos bem como sesshins zen retiros de meditação zen ou recitação de mantras hinduístas Cresce constantemente o número de pessoas que com toda naturalidade programam momentos de quietude de recolhimento e de meditação na sua rotina diária Toda a área da formação contínua e de atualização incluindo as atividades de supervisão e coaching treinamento de administradores também oferece hoje com toda naturalidade exercícios de Qigong treinamento de atenção ou percepção plena e meditação budista A pluralidade e a diversidade desses grupos de meditação e dessas ofertas também deixam claro que as pessoas de hoje têm uma grande carência de experiências espirituais e não de ofertas de crença e que as tradições místicas do Oriente e do Ocidente se tornam herdeiras coletivas da humanidade independentemente da educação religiosa recebida ou do entorno cultural Isso vale sobretudo para as pessoas do hemisfério ocidental Nessa compreensão de espiritualidade nós seres humanos somos uma forma da consciência encarnada capaz de se orientar para fora e para dentro de si mesma No espaço transpessoal da consciência o ser humano se percebe conectado como parte de uma totalidade maior Isso corresponde também aos conhecimentos das ciências naturais atuais A palavrachave transcendência aparece na maioria das publicações como um subaspecto da espiritualidade Etimologicamente transcendência está ligada às expressões latinas trans por cima além de e scandere ascendergalgar escalar isto é tratase de transpor um limite Mas sob o conceito da transcendência entendese também o absoluto o divino a realidade primeira propriamente Na teologia e na filosofia transcendência se refere ao âmbito situado além da experiência sensual O par de conceitos complementar imanência e transcendência remete à diferença fundamental entre os dois âmbitos o do aquém e o do além que foi objeto de análises reiteradas desde a teoria platônica das ideias na Antiguidade passando pelos Padres da Igreja e os filósofos medievais até chegar aos pensadores da Era Moderna como por exemplo Kant Hegel Scheler e Jaspers As representações metafísicas de uma transcendência de Deus foram substituídas no decorrer da história por uma concepção antropológica de transcendência como anseio humano de ir além de si mesmo Na Pósmodernidade deplorase uma perda da transcendência como perda de sentido como crise espiritual como perda da sensação de acolhimento e segurança na vida Na compreensão atual bastante ampliada a transcendência referese também à transposição das fronteiras do Eu a formas de referência como por exemplo à conexão íntima com uma pessoa que se ama mas também ao modo de ocuparse com o inconsciente Transcender tem muito a ver com sermos capazes de renunciar ao nosso Eu e não obstante conseguirmos viver plenamente seguros de nós mesmos Abrimonos para uma totalidade maior para o mundo para o semelhante para o inconsciente 9 Espiritualidade e transcendência em CG Jung O título do volume de textos selecionados das Obras Completas de CG Jung apresentado aqui é Espiritualidade e transcendência Entretanto quem procura pela palavrachave espiritualidade em passagens das Obras de CG Jung não encontra muita coisa A palavra espiritualidade como é usada hoje em dia não era usual na época de Jung Religião e religiosidade eram as designações estabelecidas A convicção de Jung é esta Minha opinião é que as religiões se acham tão próximas da alma humana com tudo quanto elas são e exprimem que a psicologia de maneira alguma pode ignorálas OC 112 172 Ele se preocupou em desenvolver uma psicologia da experiência religiosa Jung ocupase portanto com a experiência religiosa que para ele é um fenômeno psíquico Ele diz Deus nunca falou com o ser humano senão pela alma e a alma o entende e nós percebemos isso como algo psíquico Quem chama a isso de psicologizar renega o olho que vê o sol 10 Jung sustenta uma compreensão da psique como espaço de experiência do numinoso defendendo novos modos de ver fenômenos e experiências religiosos que até aquele momento não haviam ocorrido na psicologia da religião Esses fenômenos e experiências se revestem de grande importância para ele Por isso ele diz Se tentarmos definir a estrutura psicológica da experiência religiosa isto é da experiência integradora curadora salvadora e abrangente parece que a fórmula mais simples que podemos encontrar é a seguinte na experiência religiosa o homem se depara com um outro ser espiritual superpoderoso OC 104 655 As experiências espirituais põem as pessoas em contato com âmbitos situados além da consciência cotidiana Jung fala às vezes do transcendenteempírico O próprio Jung precisou lutar por muitos anos com a religião e imagens de Deus como forças eficazes Testemunha dessa luta é também o assim chamado Livro Vermelho o documento de um autoexperimento especial de Jung e de suas explorações do inconsciente O conceito da transcendência possui diversos significados em Jung A descrição do que ele caracteriza como a função transcendente psicológica trata da união de conteúdos conscientes e inconscientes Ele enfatiza que isso não deve ser entendido como algo de misterioso e por assim dizer suprassenssível ou metafísico mas uma função psicológica que por sua natureza podese comparar com uma função matemática de igual denominação OC 82 131 O que se pretende com isso é abolir a separação entre a consciência e o inconsciente para compensar as unilateralidades da consciência Ele enfatiza que com transcendente não quer designar nenhuma qualidade metafísica mas o fato de que por meio dessa função é criada uma transição de uma mentalidade para outra OC 6 833 Na função transcendente Jung descreve por conseguinte a capacidade fundante da transposição da fronteira entre as porções conscientes e as inconscientes da psique 11 A transcendência da psique da qual ele fala em outras passagens referese a experiências espirituais de conexão com o divino com o absoluto a ter como referência algo mais abrangente maior às possibilidades de experiência que transcendem a consciência cotidiana à transposição das fronteiras entre imanência e transcendência Que o mundo tanto por fora como por dentro é sustentado por bases transcendentais é algo tão certo quanto nossa própria existência OC 14II 442 A transcendência da psique permite experimentar outra realidade por trás da realidade Jung se interessou por demonstrar isso reiteradamente Tratase do conhecimento de que tudo o mundo físico e psíquico corpo e espírito o que pode ser apreendido e percebido com os sentidos e o mundo invisível do inconsciente faz parte de uma totalidade indivisível perfazendo um campo da realidade una chamada por Jung de unus mundus Como mostra o conjunto de sua obra Jung ocupouse durante toda a sua vida com questões espirituais transculturais e transpessoais Seu interesse voltouse para o âmbito das experiências espirituais situadas além de confissões igrejas e tradições religiosas Em sua biografia Memórias sonhos e reflexões ele descreve sua atitude espiritual básica Jung diz ali a seu respeito Constato que todos os meus pensamentos giram em torno de Deus como os planetas em torno do sol e como estes são atraídos irresistivelmente para Ele como um sol Eu sentiria como o maior dos pecados se tivesse que oferecer resistência a esse poder 12 E ele confessa A natureza a alma e a vida se manifestam a mim como a divindade revelada 13 MarieLouise von Franz que por muitos anos cooperou com Jung também o descreve como uma pessoa que com paixão e sofrimento extremos pugnava sem cessar com o problema de Deus Ele relacionava com Deus tudo o que acontecia com ele e no mundo e indagava dele o porquê e o para quê 14 Sua postura também ganha expressão nas seguintes sentenças Tudo que tem vida sofre mudança Não deveríamos nos contentar com tradições imutáveis OC 1811 1652 Como se sabe em questões religiosas não é possível entender o que não foi interiormente experimentado OC 12 15 O passo na direção de uma consciência mais elevada leva a abandonar todas as coberturas e seguranças OC 13 25 Encontro com CG Jung Os textos selecionados para este volume que surgiram em épocas bastante diferentes do processo produtivo de Jung visam mostrar sobretudo isto o modo como Jung pesquisou por noções e conhecimentos num vasto campo de questões e temas religiosos e psicológicos e como ele entendeu a si mesmo como alguém empenhado num processo de busca aberto e inconcluso Em muitas coisas Jung estava à frente do seu tempo intuindo e pesquisando Algumas coisas talvez só possam mesmo ser entendidas reconhecidas e aceitas agora com o atual estado de consciência Sua obra é um gigantesco filão de conhecimentos psicológicos pensamentos filosóficos saber antropológico e sabedoria de vida Nela abrangentes estudos empíricos psicológicos antropológicos etnológicos e de ciência das religiões estão associados com material tratando de casos clínicos Desse modo ele reuniu as bases da Psicologia Analítica e sua terapia Jung não foi nenhum sistemático e não gostava de conceitos abstratos mas estava constantemente em busca de novas maneiras de descrever o que para ele eram fenômenos psíquicos básicos Suas ideias estavam em constante evolução rodeando o tema seguidamente se aproximando dele por meio de formulações às vezes paradoxais Jung deixa o leitor participar de suas intuições de seus conhecimentos dos resultados de suas pesquisas das experiências cotidianas dos seus sentimentos e pensamentos Há coisas que estão sujeitas à limitação da temporalidade em correspondência à sua frase Todo o entender está sujeito à categoria da temporalidade OC 14I 207 Hoje algumas das formulações de Jung soam estranhas e parecem antiquadas às vezes não é fácil captar o sentido do que está sendo dito Naturalmente também há algumas coisas no pensamento de Jung que hoje estão ultrapassadas e não se sustentam mais onde se vê que Jung foi filho do seu tempo como por exemplo em relação à polaridade dos sexos Evoluções das ideias e dos conhecimentos de Jung podem ser encontradas em representantes posteriores da Psicologia Analítica como por exemplo Verena Kast Ingrid Riedel ou Murray Stein Portanto quem encontraremos neste livro Entre outras coisas o Jung tateando em busca de compreensão e lutando por ela o pensador crítico da cultura o Jung profético o cientista pesquisador o sábio experimentado As dimensões espirituais da Psicologia Analítica Na imagem de ser humano de Jung o transcendente como ponto de referência constitui o aspecto decisivo da vida humana A pergunta decisiva para o ser humano é esta tens o infinito como referência Este é o critério de sua vida Quando alguém entende e sente que está conectado ao ilimitado já nesta vida modificamse seus desejos e sua atitude No final das contas só valemos algo por causa do essencial e quando não se tem isto a vida foi desperdiçada 15 O próprio Jung confessa O interesse principal do meu trabalho não reside no tratamento de neuroses mas na aproximação ao numinoso 16 Ele se defende da acusação de ter construído uma psicologia que injustificadamente conectaria a alma com temas e dimensões religiosas Não fui eu que inventei uma função religiosa para a alma o que eu fiz foi apresentar fatos comprovando que a alma é naturaliter por natureza religiosa OC 12 14 E em outra passagem ele escreve isto A imagem de Deus não é uma invenção que se achega ao ser humano sua sponte espontaneamente do que se pode ter suficiente ciência quando não se prefere trocar a verdade pela ofuscação advinda de preconceitos ideológicos OC 9II 303 Todas as contribuições de Jung à psicologia da religião devem ser vistas como construídas sobre a base de sua tese inicial a necessidade psíquica da religio da religação a algo maior a algo inteiro Seguidamente ele se empenha por delimitar a problemática psicológica em relação à problemática teológica Ele recusa a pergunta pela existência de um Deus transcendente e não obstante acercase desse tema insistentemente Ele ressalta que ele próprio na condição de psicólogo nada pode dizer sobre Deus em si mas somente alguma coisa sobre imagens e símbolos de Deus e nada mais Todavia justamente estes podem transmitir experiência espiritual dado que elas têm conteúdos que transcendem a consciência Símbolos são imagens significativas Eles surgem quando algo exterior é associado com um conteúdo espiritual um significado ou um sentido Símbolos não são signos visíveis de uma realidade não visível Na compreensão da Psicologia Analítica de CG Jung os símbolos transportam conteúdos psíquicos inconscientes até a consciência Eles têm um efeito integral sobre o pensar e o sentir sobre a percepção a fantasia e a intuição Eles unem os lados conscientes e inconscientes da psique Símbolos sempre são mais do que meros signos Eles estão altamente carregados de energia e por vezes têm efeitos misteriosos Quem se envolve com símbolos abandona o superficial e se põe a caminho das profundezas Os símbolos arquetípicos e assim também as imagens de Deus do simbolismo religioso possuem caráter numinoso e são chaves para as camadas profundas da existência humana 17 Enunciados sobre o divino são para Jung portanto descrições de possibilidades de experiências espirituais da psique humana eles não são enunciados teológicos mas enunciados psicológicos A formulação psicológica da questão dirige o foco para o que se passa na alma e para o que lhe é próprio No entanto Jung chega ao ponto de dizer Em todo caso a alma precisa ter dentro de si uma possibilidade de relação ou seja uma correspondência com a essência de Deus senão jamais poderia estabelecer se uma conexão Essa correspondência é em termos psicológicos o arquétipo da imagem de Deus OC 12 11 O encontro com os campos de força dos arquétipos e com suas simbolizações também é para Jung uma experiência numinosa Ele adverte Sempre que se tratar de configurações arquetípicas tentativas de explicação personalistas induzem a erro OC 10 646 Para ele a ampliação da consciência Jung a chama de elevação da consciência que também pode acontecer no confronto com conteúdos arquetípicos é destinação humana Decerto é por isso que a vida terrena tem um significado tão grande e aquilo que uma pessoa leva para o além na hora de morrer se reveste de tão grande importância só aqui na vida terrena onde se dá o embate dos opostos podese elevar a consciência universal Essa parece ser a tarefa metafísica do ser humano 18 O desenvolvimento da consciência humana tem para Jung um significado cósmico porque nele o universo reconhece a si mesmo o ser humano existe para que o Criador se torne consciente de sua criação e o ser humano de si mesmo 19 O conceito de Simesmo da Psicologia Analítica O conceito de Simesmo Selbst da Psicologia Analítica constitui um conceito central que abrange dimensões espirituais e se diferencia bastante do conceito de Simesmo de outras correntes psicológicas O Simesmo junguiano é uma expressão abrangente para a totalidade e integralidade do potencial psíquico de um ser humano Os enunciados sobre o Simesmo por um lado devem ser obtidos mediante o procedimento empírico e por outro lado esse conceito transcende as possibilidades racionais de descrição O Simesmo não é só o ponto central mas também o perímetro que engloba a consciência e as coisas inconscientes OC 12 44 Ao mesmo tempo ele é o centro do qual procedem todos os impulsos vitais criativos Na interação entre o Eu o centro da consciência e o Si mesmo efetuase o processo da vida como autorrealização como processo de individuação O conceito de individuação de Jung o coração da Psicologia Analítica pode ser reduzido a esta fórmula Tornate quem és Temse em mente com isso um processo de desdobramento progressivo da personalidade no confronto entre o Eu e o Simesmo entre o consciente e o inconsciente como um processo de amadurecimento humano criativo arquetipicamente determinado O Simesmo determina e estrutura todos os processos psíquicos de desenvolvimento e nesse sentido pode ser visto em última análise como o transcendente numinoso e conceitualmente inapreensível A centralização no Simesmo como ponto central próprio e misterioso da pessoa o deslocamento do centro de gravidade para o eixo EuSimesmo no processo de individuação sobretudo na segunda metade da vida pode levar a mudanças de grande alcance na compreensão do Simesmo e do mundo No Simesmo são possíveis experiências de unidade o despontar de uma unidade universal na qual foi abolida a cisão entre sujeito e objeto individual e coletivo pessoal e suprapessoal Temas espirituais e perguntas pelo sentido em tempos de crise Temas espirituais emergem com frequência quando os padrões costumeiros da vida são rompidos e a vida se torna questionável Isso pode ser desencadeado por diversas formas de crises e acontecimentos que mudam a vida experiências que transcendem a consciência cotidiana ou também uma insatisfação crescente a experiência de carência uma inquietação cada vez maior e a sensação de que falta algo essencial na vida Quando isso acontece algumas pessoas saem à procura é um movimento de busca na profundeza na esfera da religiosidade e transcendência A espiritualidade também se expressa em tais desejos por mais profundidade e autoconhecimento mais abrangente No campo da saúde a espiritualidade adquire importância crescente Doença e saúde atingem todos os níveis do ser É verdade que as ciências da saúde em boa parte ainda encontram dificuldades para estabelecer uma relação entre espiritualidade e saúde que seja relevante também para a pesquisa Mas tornaramse fluidas as fronteiras entre ofertas de saúde de bemestar e de terapia entre abordagens orientadas em recursos entre curas alternativas e concepções de tratamento médico ocidentais tradicionais Já em 1995 em um posicionamento da Organização Mundial da Saúde OMS a qualidade de vida foi descrita como multidimensional e pelo menos quatro categorias foram amplamente detalhadas as dimensões física psíquica social e espiritual A dimensão espiritual em um paradigma contemporâneo de saúde é elaborada especificamente também por Ralph M Steinmann no estudo Espiritualidade a quarta dimensão da saúde 20 Sobretudo a bibliografia especializada norteamericana entrementes oferece pesquisas abrangentes sobre a importância da espiritualidade para a saúde Os efeitos da práxis espiritual e da orientação de vida espiritual sobre a saúde podem ser provados empiricamente como por exemplo redução do estresse diminuição de enfermidades cardíacas e circulatórias fortalecimento da imunidade redução de riscos de infarto menor necessidade de medicamentos internações mais raras em hospitais amenização de depressões bem como prolongamento da vida 21 Também já há numerosas investigações sobre a relação entre espiritualidade e o histórico de doenças cancerosas 22 Cada vez mais pessoas demandam acompanhamento e apoio em seu processo de enfermidade Num estudo norteamericano mais recente para o qual foram consultadas pacientes com câncer em estado avançado 72 se queixaram de total falta de apoio e atenção ou de apoio e atenção apenas mínimos para suas necessidades espirituais por parte do pessoal clínico 23 Para muitas pessoas contudo espiritualidade e religiosidade são recursos importantes e isso especialmente em conexão com a superação de doenças o envelhecimento e o acompanhamento a moribundos Uma enfermidade que ameaça a vida como por exemplo o câncer leva muitos atingidos a submeter sua vida a um exame A doença impõe limites à possibilidade de planejar sua própria vida muda prioridades Ela pode ser entendida como um chamado especial da vida para mudar a valoração do que é importante e do que não é importante e levar a pessoa a perguntar criticamente pelo sentido do seu próprio modo de viver Tal enfermidade é para muitas pessoas um memento mori lembrese de que terá de morrer que as confronta com a vulnerabilidade e finitude da vida Justamente em crises da vida nas situações de transição e nas rupturas da vida em perdas repentinas de uma pessoa querida ou no diagnóstico de doenças que ameaçam a vida irrompe a pergunta pelo sentido As crises andam de mãos dadas com sentimentos de abandono existencial impotência e ameaça Golpes do destino e acontecimentos que mudam repentinamente a vida bem como a incapacidade de dar conta deles com seus próprios recursos frequentemente constituem o motivo pelo qual as pessoas buscam auxílio e acompanhamento terapêuticos 24 Na análise e na terapia também afloram temas religiosos e perguntas pelo sentido O trabalho terapêutico toca a esfera das perguntas existenciais básicas e por conseguinte exige de ambos terapeuta e paciente que se envolvam com essas questões É o que enfatiza Ingrid Riedel O que distingue a psicologia junguiana de todas as demais correntes e caracteriza o lugar especial que ela ocupa na psicologia profunda é o fato de ter seu centro de gravidade onde se trata da busca de sentido e da pergunta pelo sentido 25 A temática religiosa esse sempre foi o entendimento de Jung é inerente ao processo de análise e ao processo de individuação terapeuticamente acompanhado 26 Quando se trata de cura na terapia quando se trata de recuperar a saúde do ser humano inteiro o espaço de experiência da terapia precisa estar aberto para o numinoso para a busca de sentido e para todas as questões espirituais e religiosas que são parte inseparável de sua existência humana Não é por acaso que Heil salvação heilen curar e heilig santo provêm do mesmo radical Psicoterapia e medicina não podem reduzir o ser humano nem somaticamente nem psiquicamente Elas precisam aceitálo e tratálo como unidade de corpo espírito e alma dotada do anseio e da capacidade para a transcendência Para Jung a individuação significa sempre também o confronto com o sentido e a falta de sentido Pessoas que vivem conscientemente não são poupadas desse confronto O processo de individuação é um esforço vitalício visando à tomada de consciência e à inteireza psíquica Nesse sentido a via da individuação também é uma quest isto é uma jornada de busca espiritual A busca por sentido por uma base de sustentação é entendida na Psicologia Analítica como uma profunda necessidade a priori do ser humano Para CG Jung enfermidades psíquicas eram expressão de perda de sentido e do Simesmo um sofrimento da alma que não encontrou seu sentido OC 11 497 Para ele a perda de sentido e a falta de sentido na vida têm importância decisiva na etiologia das neuroses Isso vale também para as pessoas de hoje A nova intransparência do mundo 27 como diz Jürgen Habermas leva à insegurança à perda de orientação e ao isolamento A sociedade do quem pode mais chora menos com suas assim chamadas agências egotistas e a mudança e perda de valores ligadas a esses processos de mudança social lançam muitos em um vácuo existencial incluindo os que aparentemente têm tudo do que se vive mas pouco ou nada do para quê vale a pena viver Jung enfatiza Como o corpo carece do alimento e não de um alimento qualquer mas daquele que lhe apetece assim a psique precisa do sentido do seu ser OC 13 476 Por conseguinte experiências de sentido diz a psicanalista junguiana Ursula Wirtz muitas vezes têm o caráter das vivências numinosas que nos tocam profundamente e permitem que nos conscientizemos da existência de outra realidade que transcende nossa consciência cotidiana e ainda assim tornase experimentável como pertencente a nós Assim o sentido pode ser percebido como um chegar em casa ou um chegar ao destino uma descoberta daquilo que sempre já fomos Na Psicologia Analítica esse nível transpessoal e a pergunta pelo sentido fazem parte da base de sustentação da práxis terapêutica 28 Sobre este volume de textos selecionados A intenção desta seleção de textos é oferecer ideias básicas sobre a temática espiritualidade e transcendência a partir da extensa obra completa de CG Jung O livro só permitirá um vislumbre da multiplicidade dos temas espirituais com os quais Jung se ocupou ou mais precisamente dos temas que se apossaram dele Tendo em vista que Jung frequentemente aborda questões fundamentais de espiritualidade e transcendência que se encontram dispersas por toda a sua obra seria de antemão inviável querer levar em conta todos os textos relativos ao tema A seleção já não pôde ser exaustiva porque o espaço disponível para a publicação impossibilitou o acolhimento de alguns trabalhos como por exemplo o escrito bastante extenso Resposta a Jó OC 114 553758 A compilação não se baseou em aspectos cronológicos mas em pontos de vista de conteúdo Surgiu um mosaico possível e multifacetado sobre o tema espiritualidade e transcendência Renunciei conscientemente a reunir os highlights destaques aforísticos meu interesse foi antes possibilitar às leitoras e aos leitores o acompanhamento com base nos textos escolhidos das linhas de pensamento das ponderações e dos processos cognitivos de Jung Essa seleção de textos destinase a pessoas que se preocupam com o desenvolvimento e a autorrealização dos seus potenciais que escutam no seu íntimo o chamado Tornate quem és Ele se dirige a leitoras e leitores que com franca curiosidade gostariam de entender mais daquilo que CG Jung chamou de a realidade da alma OC 12 9 e que estão dispostos a acompanhar os processos de busca de Jung e deixarse interpelar e inspirar por ele Não se trata da indicação de um caminho seguro mas de um perguntar aprofundado Tratase de um encorajamento para que se ouse adentrar o espaço interior da sua própria psique e avançar em consonância com as ideias de Jung Tratase de um encontro com Jung como alguém que foi dominado pelo mistério da alma A leitura dos escritos de Jung pode transmitir um saber norteador no campo da psicologia da religião da história da religião e da cultura inclusive no tocante às atuais perguntas pelo sentido Numa entrevista Ingrid Riedel que com suas numerosas publicações possibilitou que muitas pessoas tivessem acesso à Psicologia Analítica formulou isso assim Pois tratase em última análise da pergunta pelo sentido e da localização na realidade atual Muitas vezes dispomos de uma ciência muito exata dos fatos em contextos isolados mas o que falta é a visão mais abrangente Nesse tocante a psicologia junguiana pode proporcionar acessos e ela não deve ser compreendida como esoterismo mas pode ser fundamentada comunicada compartilhada e desse modo está aberta para todo o horizonte da experiência do jeito que este hoje está sendo buscado incluindo a espiritualidade e a religião Isso é algo que atrai amplos círculos mesmo que na atividade científica oficial esteja se disseminando a mera racionalidade que prefere se fechar para as perguntas pelo sentido 29 Os textos de Jung podem estimular acima de tudo a entrar em diálogo interior consigo mesmo envolverse com questões da espiritualidade e da transcendência encontrar um horizonte ampliado mergulhar mais profundamente em dimensões da nossa própria psique Exatamente a isso ele encoraja É preciso ocuparse consigo mesmo senão não há como tornarse alguém senão nem é possível desenvolverse OC 18II 1813 O objetivo do diálogo interior consigo mesmo é em última análise este Quanto mais alguém se torna consciente de si mesmo mediante o autoconhecimento e o agir correspondente tanto mais desaparece aquela camada do inconsciente pessoal acumulada sobre o inconsciente coletivo Por essa via surge uma consciência que não está mais enredada no mundo mesquinho e pessoalmente sensível do Eu mas que participa de um mundo mais amplo do objeto Essa consciência ampliada não é mais aquele emaranhado sensível e egoísta de desejos temores esperanças e ambições pessoais que precisa ser compensado ou então também corrigido por tendências contrárias pessoais e inconscientes mas é uma função relacional vinculada ao objeto ao mundo a qual transfere o indivíduo para dentro de uma comunhão incondicional compromissiva e indissolúvel com o mundo OC 7 275 Fogo e vento Quando eu tiver me tornado póstumo tudo o que antes era fogo e vento será conservado em álcool e convertido em preparados sem vida Assim os deuses são sepultados em ouro e mármore e os mortais comuns como eu em papel 30 Jung endereçou estas palavras certa vez com o senso de humor que lhe era peculiar à Baronesa von der Heydt A intenção desta seleção de textos é permitir que se experimente algo do fogo e vento espirituais que impulsionaram Jung em toda a sua vida buscando investigando e lutando por conhecimento Para as leitoras e os leitores que se deixarem contagiar pelo entusiasmo de Jung eles serão testemunhos vivos e não preparados sem vida Referências BALBONI TA et al Religiousness and Spiritual Support Among Advanced Cancer Patients and Associations with EndofLife Treatment Preferences and Quality of Life Journal of Clinical Oncology vol 25 n 5 2007 p 555560 BISCHOF I DELLA CHIESA M Gespräch mit Ingrid Riedel ein Lebensrückblick Konstanz am 9 September 2011 Analytische Psychologie vol 168 n 2 2012 p 238255 BUCHER AA Psychologie der Spiritualität Handbuch Weinheim Beltz 2007 DORST B Lebenskrisen Die Seele stärken durch Bilder Geschichten und Symbole Mannheim Walter 2010 Therapeutischer Umgang mit Schicksals und Sinnfragen Zum Verhältnis von Psychotherapie und Spiritualität In NEUEN C RIEDEL I WIEDEMANN HG eds Freiheit und Schicksal Vom therapeutischen Umgang mit Zeit und Lebensgeschichte 3511 p 2008 Düsseldorf Walter Therapeutisches Arbeiten mit Symbolen Wege in die innere Bilderwelt Stuttgart Kohlhammer 2007 CG Jung und die Transpersonale Psychologie JungJournal Forum für Analytische Psychologie vol 1112 2004 p 2229 GALUSKA J Einführung In GALUSKA J ed Den Horizont erweitern Die transpersonale Dimension in der Psychotherapie Berlim Leutner 2003 HABERMAS J Die neue Unübersichtlichkeit 7 ed Frankfurt am Main Suhrkamp Kleine politische Schriften V JÄGER W Die schönsten Texte von Willigis Jäger Perlen der Weisheit Freiburg im Breisgau Herder 2010 Ed por C Quarch e E Walcher JUNG CG Briefe 3 vols Ölten Walter 19721973 Ed por A Jaffé em colaboração com G Adler Erinnerungen Träume Gedanken SolothurnDüsseldorf Walter 1971 Anotado e ed por A Jaffé Ed Esp Gesammelte Werke GW 20 vols ÖltenDüsseldorf Walter 1971 Ed por L JungMerker et al KAST V Die Transzendenz der Psyche In EGNER H ed Psyche und Transzendenz im gesellschaftlichen Spannungsfeld heute Düsseldorf Walter 2000 p 3355 PANIKKAR R Vorwort In JÄGER W Westöstliche Weisheit Visionen einer integralen Spiritualität Stuttgart Theseus 2007 RIEDEL I Die Welt von innen sehen Gelebte Spiritualität Düsseldorf Patmos 2005 STEFANEK M McDONALD PG HESS SA Religion spirituality and cancer Current Status and methodological challenges Psycho Oncology vol 14 2004 p 450463 STEINMANN RM Spiritualität die vierte Dimension der Gesundheit Berlim LIT 2008 TACEY D The Spiritual Revolution The Emergence of Contemporary Spirituality Nova York BrunnerRoutledge 2004 VON FRANZ ML CG Jung Leben Werk und Visionen Krummwisch bei Kiel Königsfurt 2001 WIRTZ U ZÖBELI J Hunger nach Sinn Menschen in Grenzsituationen Grenzen der Psychotherapie Stuttgart Kreuz 1995 1 LAJOIE SHAPIRO apud GALUSKA Einführung p 8 2 TACEY The Spiritual Revolution 3 Cf BUCHER Psychologie der Spiritualität p 3 4 Cf DORST Jung und die Transpersonale Psychologie 5 PANIKKAR Vorwort p 8 6 JÄGER Westöstliche Weisheit p 80 7 JÄGER Die schönsten Texte p 131 8 Cf BUCHER Psychologie der Spiritualität p 2434 9 KAST Transzendenz der Psyche p 45 10 JUNG Briefe I p 132 11 Tendo em vista a centralidade desse tema para a Psicologia Analítica e para a imagem de ser humano de Jung uma contribuição sobre ele foi acolhida também nesta seleção de textos JUNG CG Erinnerungen Träume Gedanken SolothurnDüsseldorf Walter 1971 Anotado e ed por A Jaffé Ed Esp Ed bras Rio de Janeiro Nova Fronteira 1986 NT A partir daqui citado como JUNG Erinnerungen 12 JUNG Erinnerungen p 6 13 Ibid p 280 14 VON FRANZ CG Jung p 169 15 JUNG Erinnerungen p 327s 16 JUNG Briefe I p 465 17 Cf DORST Therapeutisches Arbeiten mit Symbolen p 1734 18 JUNG Erinnerungen p 314 19 Ibid p 341 20 STEINMANN Spiritualität die vierte Dimension der Gesundheit 21 Cf BUCHER Psychologie der Spiritualität p 100142 22 Cf STEFANEK McDONALD HESS Religion spirituality and cancer p 450463 23 Cf BALBONI et al Religiousness und Spiritual Support p 555560 24 Cf DORST Lebenskrisen p 2129 25 RIEDEL Die Welt von innen sehen p 168 26 Cf DORST Therapeutischer Umgang mit Schicksals und Sinnfragen 27 HABERMAS Die neue Unübersichtlichkeit 28 WIRTZ ZÖBELI Hunger nach Sinn p 224 310 29 Ingrid Riedel In BISCHOF DELLA CHIESA Gespräch mit Ingrid Riedel p 251 30 JUNG Briefe III p 211 I AS DIMENSÕES DA PSIQUE O autoconhecimento é uma aventura que conduz a amplidões e profundezas inesperadas OC 142 398 Mas o homem não pode avançar por conta própria se não possuir um conhecimento mais apurado a respeito de sua própria natureza OC 114 746 O inconsciente pessoal e o inconsciente suprapessoal ou coletivo 97 Neste ponto se inicia uma nova etapa no processo do conhecimento de si A dissolução analítica das fantasias de transferência infantis tinha prosseguido até o momento em que o próprio paciente reconheceu claramente que para ele o médico tinha sido pai mãe tio tutor professor ou outra das formas usuais de autoridade paterna No entanto a experiência tem mostrado insistentemente o aparecimento de outro tipo de fantasia o médico fica investido das funções de salvador ou ente com características divinas contrariando frontalmente a razão sadia da consciência Pode acontecer também que esses atributos divinos não se limitem ao quadro cristão em que fomos criados e adotem por exemplo formas pagãs teriomórficas formas animais 98 A transferência em si nada mais é do que uma projeção de conteúdos inconscientes Primeiro são projetados os conteúdos chamados superficiais do inconsciente reconhecidos através de sonhos sintomas e fantasias Neste estado o médico interessa como um amante eventual mais ou menos como o rapaz italiano daquele caso A seguir aparece preponderantemente como pai pai bondoso ou furibundo conforme as qualidades que o pai verdadeiro tinha para o paciente Uma vez ou outra o médico também recebe atributos maternos o que já pode parecer estranho mas ainda está dentro dos limites do possível Todas essas projeções de fantasias são calcadas em reminiscências pessoais 99 Finalmente podem surgir fantasias de caráter exaltado Nestes casos o médico fica dotado de propriedades sobrenaturais Tornase um bruxo um criminoso demoníaco ou então o bem correspondente um verdadeiro salvador Também pode aparecer como uma mistura de ambos Entendase bem tudo isso não se passa necessariamente no consciente do paciente São fantasias que surgem e representam o médico sob essas formas Muitas vezes não entra na cabeça de tais pacientes que na realidade essas fantasias provêm deles mesmos e nada ou muito pouco têm a ver com o caráter do médico Este engano ocorre por não existirem bases de reminiscências pessoais para este tipo de projeção Ocasionalmente podemos provar que em determinado momento de sua infância tiveram fantasias semelhantes em relação ao pai e à mãe sem que os mesmos tivessem realmente dado motivo para isso 100 Freud demonstrou num pequeno trabalho 1 como a vida de Leonardo da Vinci tinha sido influenciada pelo fato de ele ter tido duas mães O fato das duas mães ou da dupla filiação era real na vida de Leonardo Embora imaginária outros artistas também sofreram a influência da dupla filiação Benvenuto Cellini por exemplo teve fantasias a respeito dessa dupla filiação Aliás este é um tema mitológico Muitos heróis legendários tiveram duas mães A fantasia não vem do fato de os heróis terem duas mães mas de uma imagem universal primordial pertencente aos segredos da história do espírito humano e não à esfera da reminiscência pessoal 101 Afora as recordações pessoais existem em cada indivíduo as grandes imagens primordiais como foram designadas acertadamente por Jakob Burckhardt ou seja a aptidão hereditária da imaginação humana de ser como era nos primórdios Essa hereditariedade explica o fenômeno no fundo surpreendente de alguns temas e motivos de lendas se repetirem no mundo inteiro e em formas idênticas além de explicar por que os nossos doentes mentais podem reproduzir exatamente as mesmas imagens e associações que conhecemos dos textos antigos Meu livro Wandlungen und Symbole der Libido 2 contém alguns exemplos Isso não quer dizer em absoluto que as imaginações sejam hereditárias hereditária é apenas a capacidade de ter tais imagens o que é bem diferente 102 Logo neste estágio mais adiantado do tratamento em que as fantasias não repousam mais sobre reminiscências pessoais tratase da manifestação da camada mais profunda do inconsciente onde jazem adormecidas as imagens humanas universais e originárias Essas imagens ou motivos denomineios arquétipos 3 ou então dominantes 103 Essa descoberta significa mais um passo à frente na interpretação a saber a caracterização de duas camadas no inconsciente Temos que distinguir o inconsciente pessoal do inconsciente impessoal ou suprapessoal Chamamos este último de inconsciente coletivo 4 porque é desligado do inconsciente pessoal e por ser totalmente universal e também porque seus conteúdos podem ser encontrados em toda parte o que obviamente não é o caso dos conteúdos pessoais O inconsciente pessoal contém lembranças perdidas reprimidas propositalmente esquecidas evocações dolorosas percepções que por assim dizer não ultrapassaram o limiar da consciência subliminais isto é percepções dos sentidos que por falta de intensidade não atingiram a consciência e conteúdos que ainda não amadureceram para a consciência Corresponde à figura da sombra 5 que frequentemente aparece nos sonhos 104 As imagens primordiais são as formas mais antigas e universais da imaginação humana São simultaneamente sentimento e pensamento Têm como que vida própria independente mais ou menos como a das almas parciais 6 fáceis de serem encontradas nos sistemas filosóficos ou gnósticos apoiados nas percepções do inconsciente como fonte de conhecimento A ideia dos anjos e arcanjos dos tronos e potestades de Paulo dos arcontes dos gnósticos das hierarquias celestiais em Dionysius Areopagita etc derivam da percepção da relativa autonomia dos arquétipos 105 Assim também encontramos o objeto que a libido escolhe quando se vê liberada da forma de transferência pessoal e infantil A libido segue sua inclinação até as profundezas do inconsciente e lá vivifica o que até então jazia adormecido É a descoberta do tesouro oculto a fonte inesgotável onde a humanidade sempre buscou seus deuses e demônios e todas as ideias suas mais fortes e poderosas ideias sem as quais o ser humano deixa de ser humano 106 Vejamos por exemplo um dos maiores pensamentos do século XIX a ideia da conservação da energia Robert Mayer é o verdadeiro criador dessa ideia Ele era médico e não físico ou filósofo da natureza como seria de se esperar Mas o importante é saber que a ideia de Mayer não foi propriamente criada Também não foi produto da confluência das ideias ou das hipóteses científicas da época ela foi crescendo dentro do seu criador como uma planta Mayer escreveu o seguinte numa carta a Griesinger 1844 A teoria não foi chocada em escrivaninha A seguir informa sobre certas observações fisiológicas feitas em 18401841 como médico da Marinha Se quisermos esclarecer certos pontos da fisiologia prossegue em sua carta é indispensável conhecer os processos físicos isto se a matéria não for trabalhada de preferência do ponto de vista da metafísica o que me desagrada profundamente Ativeme portanto à física e lanceime no assunto com tal paixão que pouco me interessavam as paragens exóticas que percorríamos o que muitos vão achar ridículo e preferia ficar a bordo onde podia trabalhar ininterruptamente e me sentia como que inspirado durante horas a fio Não me lembro de ter vivido momentos semelhantes nem antes nem depois Rápidos clarões perpassavam meu pensamento isso foi no ancoradouro de Surabaja eram captados e imediata e avidamente perseguidos levando por sua vez a novos objetos Esses tempos passaram Mas o exame calmo do que emergiu em mim naquela ocasião confirmou que se tratava de uma verdade Não só uma verdade subjetiva mas uma verdade que também pode ser provada objetivamente Se isso pode acontecer a um homem tão pouco versado em física como eu é uma questão que tenho que deixar em suspenso7 107 Em sua Energetik Helm diz que o novo pensamento de Robert Mayer não se desenvolveu pouco a pouco a partir do aprofundamento das ideias tradicionais existentes sobre energia mas pertence à ordem das ideias captadas intuitivamente provindas de outras esferas de trabalho espiritual que também assaltam o pensamento exigindo que os conceitos tradicionais se transformem de acordo com elas8 108 A questão agora é a seguinte de onde surgiu a ideia nova essa ideia que se impôs à consciência com tão elementar violência De onde tirou a sua força essa força que se apoderou da consciência de modo a tornála insensível às inúmeras atrações de uma primeira viagem aos trópicos A resposta não é fácil Mas se a nossa teoria for aplicada ao presente caso a explicação deve ser a seguinte a ideia da energia e de sua conservação deve ser uma imagem primordial adormecida no inconsciente coletivo Semelhante conclusão nos obriga evidentemente a provar que tais imagens primordiais existiram efetivamente na história do espírito humano e que foram ativas durante milhares e milhares de anos Esta prova pode ser realmente fornecida sem maiores dificuldades As religiões mais primitivas nas regiões mais variadas do mundo são fundadas nessa imagem São as chamadas religiões dinamísticas Seu pensamento único e decisivo é que há uma força universal mágica 9 e que tudo gira em torno dessa força Tanto Taylor o conhecido cientista inglês como Frazer interpretaram essa ideia como animismo erroneamente Na realidade os povos primitivos não se referem a almas ou espíritos nesse seu conceito de energia mas a algo que o cientista americano Lovejoy 10 qualificou acertadamente como primitive energetics A este conceito corresponde a ideia de alma espírito deus saúde força corporal fertilidade poder mágico influência poder respeito remédio bem como certos estados de ânimo caracterizados pela liberação de afetos Mulungu precisamente este conceito primitivo de energia significa para certos polinésios espírito alma ser demoníaco poder mágico respeito e quando acontece algo assombroso as pessoas exclamam mulungu Este conceito de energia também é a primeira versão do conceito de deus entre os primitivos A imagem desenvolveuse em variações sempre novas no decurso da história No Antigo Testamento a força mágica resplandece na sarça que arde em chamas diante de Moisés No Evangelho manifestase pela descida do Espírito Santo em forma de línguas de fogo vindas do céu Em Heráclito aparece como energia universal como o fogo eternamente vivo Entre os persas é a viva luz do fogo do haoma da graça divina para os estoicos é o calor primordial a força do destino Na legenda medieval aparece como a aura a auréola dos santos desprendendo se em forma de chamas do telhado da cabana onde o santo jaz em êxtase Nas faces dos santos essa força é vista como sol e plenitude da luz Segundo uma interpretação antiga a própria alma é essa energia a ideia de sua imortalidade é a de sua conservação e na acepção budista e primitiva da metempsicose transmigração da alma reside a sua capacidade ilimitada de transformação e perene conservação 109 Há milênios o cérebro humano está impregnado dessa ideia por isso jaz no inconsciente de todos à disposição de qualquer um Apenas requer certas condições para vir à tona Pelo visto essas condições foram preenchidas no caso de Robert Mayer Os maiores e melhores pensamentos da humanidade são moldados sobre imagens primordiais como sobre a planta de um projeto Muitas vezes já me perguntaram de onde provêm esses arquétipos ou imagens primordiais Suponho que sejam sedimentos de experiências constantemente revividas pela humanidade Parece que a explicação não pode ser outra Uma das experiências mais comuns e ao mesmo tempo mais impressionantes é o trajeto que o sol parece percorrer todos os dias Enquanto o encararmos como esse processo físico conhecido o nosso inconsciente nada nos revela a respeito No entanto encontramos o mito heroico do sol nas suas mais variadas versões É este mito e não o processo físico que configura o arquétipo solar O mesmo podemos dizer das fases da lua O arquétipo é uma espécie de aptidão para reproduzir constantemente as mesmas ideias míticas se não as mesmas pelo menos parecidas Parece portanto que aquilo que se impregna no inconsciente é exclusivamente a ideia da fantasia subjetiva provocada pelo processo físico Logo é possível supor que os arquétipos sejam as impressões gravadas pela repetição e reações subjetivas 11 É óbvio que tal suposição só posterga a solução do problema Nada nos impede de supor que certos arquétipos já estejam presentes nos animais pertençam ao sistema da própria vida e por conseguinte sejam pura expressão da vida cujo modo de ser dispensa qualquer outra explicação Ao que parece os arquétipos não são apenas impregnações de experiências típicas incessantemente repetidas mas também se comportam empiricamente como forças ou tendências à repetição das mesmas experiências Cada vez que um arquétipo aparece em sonho na fantasia ou na vida ele traz consigo uma influência específica ou uma força que lhe confere um efeito numinoso e fascinante ou que impele à ação 110 Após este comentário sobre a formação de novas ideias a partir do tesouro das imagens primordiais voltemos ao processo da transferência Vimos que a libido captou seu novo objeto justamente nas fantasias extravagantes e aparentemente sem nexo a saber os conteúdos do inconsciente coletivo Como já dizia a projeção das imagens primordiais no médico é um perigo que não pode ser subestimado no prosseguimento do tratamento Essas imagens contêm não só o que há de mais belo e grandioso no pensamento e sentimento humanos mas também as piores infâmias e os atos mais diabólicos que a humanidade foi capaz de cometer Graças à sua energia específica pois comportamse como centros autônomos carregados de energia exercem um efeito fascinante e comovente sobre o consciente e consequentemente podem provocar grandes alterações no sujeito Isso é constatado nas conversões religiosas em influências por sugestão e muito especialmente na eclosão de certas formas de esquizofrenia 12 Se o paciente não conseguir distinguir a personalidade do médico dessas projeções perdemse todas as possibilidades de entendimento e a relação humana tornase impossível Se o paciente evitar este perigo mas cair na introjeção dessas imagens isto é se atribuir essas qualidades não mais ao médico mas a si mesmo corre um perigo tão grave quanto o anterior Na projeção ele oscila entre um endeusamento doentio e exagerado e um desprezo carregado de ódio em relação ao médico Na introjeção passa de um autoendeusamento ridículo para uma autodilaceração moral O erro cometido em ambos os casos consiste em atribuir os conteúdos do inconsciente coletivo a uma determinada pessoa Assim ele próprio ou a outra pessoa se transforma em deus ou no diabo Esta é a manifestação característica do arquétipo uma espécie de força primordial se apodera da psique e a impele a transpor os limites do humano dando origem aos excessos à presunção inflação à compulsão à ilusão ou à comoção tanto no bem como no mal Aí está a razão por que os homens sempre precisaram dos demônios e nunca puderam prescindir dos deuses Todos os homens exceto alguns espécimes recentes do homo occidentalis particularmente dotados de inteligência super homens cujo Deus está morto razão por que eles mesmos se transformam em deuses isto é deuses enlatados com crânios de paredes espessas e coração frio O conceito de Deus é simplesmente uma função psicológica necessária de natureza irracional que absolutamente nada tem a ver com a questão da existência de Deus O intelecto humano jamais encontrará uma resposta para esta questão Muito menos pode haver qualquer prova da existência de Deus o que aliás é supérfluo A ideia de um ser todopoderoso divino existe em toda parte Quando não é consciente é inconsciente porque seu fundamento é arquetípico Há alguma coisa em nossa alma que tem um poder superior não sendo um deus conscientemente então é pelo menos o estômago no dizer de Paulo Por isso acho mais sábio reconhecer conscientemente a ideia de Deus caso contrário outra coisa fica em seu lugar em geral uma coisa sem importância ou uma asneira qualquer invenções de consciências esclarecidas Nosso intelecto sabe perfeitamente que não tem capacidade para pensar Deus e muito menos para imaginar que Ele existe realmente e como Ele é A questão da existência de Deus não tem resposta possível Mas o consensus gentium o consenso dos povos fala dos deuses há milênios e dentro de milênios ainda deles falará O homem tem o direito de achar sua razão bela e perfeita mas nunca em hipótese alguma ela deixará de ser apenas uma das funções espirituais possíveis e só cobrirá o lado dos fenômenos do mundo que lhe diz respeito A razão porém é rodeada de todos os lados pelo irracional por aquilo que não concorda com ela Essa irracionalidade também é uma função psíquica o inconsciente coletivo enquanto a razão é essencialmente ligada ao consciente A consciência precisa da razão para descobrir uma ordem no caos do universo dos casos individuais para depois também criála pelo menos na circunscrição humana Fazemos o esforço louvável e útil de extirpar na medida do possível o caos da irracionalidade dentro e fora de nós Ao que tudo indica já estamos bastante avançados neste processo Um doente mental me disse outro dia Doutor hoje à noite desinfetei o céu inteiro com cloreto mercúrico mas não descobri deus nenhum Foi mais ou menos o que nos aconteceu 111 O velho Heráclito que era realmente um grande sábio descobriu a mais fantástica de todas as leis da psicologia a função reguladora dos contrários Deulhe o nome de enantiodromia correr em direção contrária advertindo que um dia tudo reverte em seu contrário Lembro aqui o caso do empresário americano que ilustra claramente isso A cultura racional dirigese necessariamente para o seu contrário ou seja para o aniquilamento irracional da cultura 13 Não devemos nos identificar com a própria razão pois o homem não é apenas racional não pode e nunca vai sêlo Todos os mestres da cultura deveriam ficar cientes disso O irracional não deve e não pode ser extirpado Os deuses não podem e não devem morrer Há pouco dizia que sempre parece haver algo como um poder superior na alma humana Se não é a ideia de Deus é o estômago para empregar a expressão de Paulo Com isso pretendo deixar expresso o fato de sempre haver um impulso ou um complexo qualquer que concentra em si a maior parcela da energia psíquica obrigando o eu a colocarse a seu serviço Habitualmente é tão intensa a força de atração exercida por esse foco de energia sobre o eu que este se identifica com ele passando a acreditar que fora e além dele não existe outro desejo ou necessidade É assim que se forma uma mania monomania possessão ou uma tremenda unilateralidade que compromete gravemente o equilíbrio psíquico O poder de concentrar toda a capacidade num único ponto é sem dúvida alguma o segredo de certos êxitos razão por que a civilização se esforça ao máximo em cultivar especializações A paixão ou seja a acumulação de energia em torno de uma monomania é o que os antigos chamavam de deus E mesmo na linguagem atual isso ainda persiste As pessoas dizem Fulano endeusou isso ou aquilo Estamos certos de que ainda podemos querer ou escolher e não percebemos que já estamos possessos que o nosso interesse já é senhor e usurpou todo o poder Esses interesses são como deuses quando reconhecidos e aceitos por muitos pouco a pouco formam uma igreja agrupando ao seu redor todo um rebanho de fiéis Chamamos a isso organização Seguese a reação desorganizadora que pretende expulsar o demônio com Belzebu A enantiodromia ameaça inevitável de qualquer movimento que alcança uma indiscutível superioridade não é a solução do problema porque em sua desorganização é tão cega quanto em sua organização 112 Só escapa à crueldade da lei da enantiodromia quem é capaz de diferenciarse do inconsciente Não através da repressão do mesmo pois assim haveria simplesmente um ataque pelas costas mas colocandoo ostensivamente à sua frente como algo à parte distinto de si 113 Só mediante este trabalho preparatório será possível solucionar o dilema a que aludi anteriormente O paciente precisa aprender a distinguir o eu do não eu isto é da psique coletiva Assim adquire o material com que vai ter que se haver daí em diante e por muito tempo ainda A energia antes aplicada de forma inaproveitável patológica encontra seu campo apropriado Para diferenciar o eu do nãoeu é indispensável que o homem na função de eu se conserve em terra firme isto é cumpra seu dever em relação à vida e em todos os sentidos manifeste sua vitalidade como membro ativo da sociedade humana Tudo quanto deixar de fazer nesse sentido cairá no inconsciente e reforçará a posição do mesmo E ainda por cima ele se arrisca a ser engolido pelo inconsciente Essa infração porém é severamente punida O velho Synesius insinua que a alma espiritualizada πνευματικὴ ψυχή se torna deus e demônio e sofre neste estado a punição divina o estado de estraçalhamento do Zagreu o estado pelo qual Nietzsche passou no início de sua doença mental A enantiodromia é o estar dilacerado nos pares contrários Estes são próprios do deus e portanto do homem divinizado que deve sua semelhança a Deus à vitória sobre seus deuses Assim que começamos a falar do inconsciente coletivo nós nos colocamos numa esfera numa etapa do problema que não pode ser levada em conta no início da análise prática de jovens ou de pessoas que ficaram por demasiado tempo no estágio infantil Quando as imagens de pai e mãe ainda têm que ser superadas e quando ainda tem que ser conquistada uma parcela de experiência da vida exterior que o homem comum possui naturalmente é melhor nem falar de inconsciente coletivo nem do problema dos contrários Mas assim que as coisas transmitidas pelos pais e as ilusões juvenis estiverem superadas ou pelo menos a ponto de serem superadas está na hora de falar do problema dos contrários e do inconsciente coletivo Neste ponto já nos encontramos fora do alcance das reduções freudianas e adlerianas O que preocupa não é mais a questão de como desembaraçarse de todos os empecilhos ao exercício de uma profissão ao casamento ou a fazer qualquer coisa que signifique expansão de vida Estamos diante do problema de encontrar o sentido que possibilite o prosseguimento da vida entendendose por vida algo mais do que simples resignação e saudosismo 114 Nossa vida comparase à trajetória do sol De manhã o sol vai adquirindo cada vez mais força até atingir o brilho e o calor do apogeu do meiodia Depois vem a enantiodromia Seu avançar constante não significa mais aumento e sim diminuição de força Sendo assim nosso papel junto ao jovem difere do que exercemos junto a uma pessoa mais amadurecida No que se refere ao primeiro basta afastar todos os obstáculos que dificultam sua expansão e ascensão Quanto à última porém temos que incentivar tudo quanto sustente sua descida Um jovem inexperiente pode pensar que os velhos podem ser abandonados pois já não prestam para nada uma vez que sua vida ficou para trás e só servem como escoras petrificadas do passado É enorme o engano de supor que o sentido da vida esteja esgotado depois da fase juvenil de expansão que uma mulher esteja liquidada ao entrar na menopausa O entardecer da vida humana é tão cheio de significação quanto o período da manhã Só diferem quanto ao sentido e intenção 14 O homem tem dois tipos de objetivo O primeiro é o objetivo natural a procriação dos filhos e todos os serviços referentes à proteção da prole para tanto é necessário ganhar dinheiro e posição social Alcançado esse objetivo começa a outra fase a do objetivo cultural Para atingir o primeiro objetivo a natureza ajuda e além dela a educação Para o segundo objetivo contamos com pouca ou nenhuma ajuda Frequentemente reina um falso orgulho que nos faz acreditar que o velho tem que ser como o moço ou pelo menos fingir que o é apesar de no íntimo não estar convencido disso É por isso que a passagem da fase natural para a fase cultural é tão tremendamente difícil e amarga para tanta gente agarramse às ilusões da juventude ou a seus filhos para assim salvar um resquício de juventude Podese notar isso principalmente nas mães que põem nos filhos o único sentido da vida e acreditam cair num abismo sem fundo se tiverem que renunciar a eles Não é de admirar que muitas neuroses graves se manifestem no início do outono da vida É uma espécie de segunda puberdade ou segundo período de impetuosidade não raro acompanhado de todos os tumultos da paixão idade perigosa Mas as antigas receitas não servem mais para resolver os problemas que se colocam nessa idade Tal relógio não permite girar os ponteiros para trás O que a juventude encontrou e precisa encontrar fora o homem no entardecer da vida tem que encontrar dentro de si Estamos diante de novos problemas e não são poucas as dores de cabeça que o médico tem por causa disso 115 A passagem da manhã para a tarde é uma inversão dos antigos valores É imperiosa a necessidade de se reconhecer o valor oposto aos antigos ideais de perceber o engano das convicções defendidas até então de reconhecer e sentir a inverdade das verdades aceitas até o momento de reconhecer e sentir toda a resistência e mesmo a inimizade do que até então julgávamos ser amor Não são poucos os que vendose envolvidos no conflito dos contrários se desvencilham de tudo quanto lhes parecera bom e desejável tentando viver no polo oposto ao seu eu anterior Mudanças de profissão divórcios conversões religiosas apostasias de todo tipo são sintomas desse mergulho no contrário A desvantagem da conversão radical ao seu contrário é a repressão da vida passada o que produz um estado de desequilíbrio tão grande quanto o anterior quando os contrários correspondentes às virtudes e valores conscientes ainda eram recalcados e inconscientes Às perturbações neuróticas anteriores determinadas pela inconsciência das fantasias antagônicas correspondem agora novas perturbações provocadas pela repressão dos ídolos antigos Cometemos um erro grosseiro ao acreditar que o reconhecimento do desvalor num valor ou da inverdade numa verdade impliquem na supressão desses valores ou verdades O que acontece é que se tornam relativos Tudo o que é humano é relativo porque repousa numa oposição interior de contrários constituindo um fenômeno energético A energia porém é produzida necessariamente a partir de uma oposição que lhe é anterior e sem a qual simplesmente não pode haver energia Sempre é preciso haver o alto e o baixo o quente e o frio etc para poder realizarse o processo da compensação que é a própria energia Portanto a tendência a renegar todos os valores anteriores para favorecer o seu contrário é tão exagerada quanto a unilateralidade anterior Mas quando se descartam os valores incontestáveis e universalmente reconhecidos o prejuízo é fatal Quem age desta forma perdese juntamente com os seus valores como Nietzsche já dissera 116 Não se trata de uma conversão no seu contrário mas de uma conservação dos antigos valores acrescidos de um reconhecimento do seu contrário Isto significa conflito e ruptura consigo mesmo É compreensível que assuste tanto filosófica como moralmente por isso é mais frequente procurar a solução no enrijecimento convulsivo dos pontos de vista defendidos até então do que numa conversão no seu contrário É preciso reconhecer que esse fenômeno aliás extremamente antipático em homens de certa idade encobre um mérito considerável pelo menos não se transformam em apóstatas mantêmse de pé e não caem na indefinição e na lama Não se transformam em falidos mas apenas em árvores que definham testemunhas do passado para falarmos com um pouco mais de cortesia Mas os sintomas concomitantes rigidez petrificação bitolamento incapacidade de evoluir dos laudatores temporis acti são desagradáveis e até prejudiciais pois a maneira de representar uma verdade ou outro valor qualquer é tão rígida e violenta que a rudeza tem mais força de repulsão do que o valor possui força de atração e com isso se obtém o contrário do que se desejava No fundo o motivo do enrijecimento é o medo do problema dos contrários O sinistro irmão de Medardo é pressentido e secretamente temido Por isso é que só pode existir uma verdade e uma norma de conduta e esta tem que ser absoluta Caso contrário não há proteção contra a ameaça da derrocada pressentida em toda parte menos em si mesmo Mas o mais perigoso revolucionário está dentro de nós mesmos Quem quiser transferir se são e salvo para a segunda metade da vida tem que saber disso No entanto a aparente segurança de que gozávamos até então é substituída por um estado de insegurança ruptura e convicções contraditórias O pior deste estado é que aparentemente não há saída Tertium non datur diz a lógica não existe terceiro 117 As necessidades práticas do tratamento dos doentes obrigaram me a buscar meios e caminhos que me guiassem para fora desse estado inaceitável Cada vez que o homem se encontra diante de um obstáculo aparentemente intransponível ele recua faz uma regressão para usar a expressão técnica Recua ao tempo em que se encontrava numa situação parecida e tentará empregar novamente os meios que outrora lhe haviam servido Mas o que ajudava na juventude já não tem eficácia De que serviu ao empresário americano voltar ao antigo trabalho Simplesmente não adiantava mais A regressão continua até a infância por isso muitos neuróticos velhos se infantilizam e finalmente até o tempo anterior à infância Isto soa como uma aventura na realidade porém tratase de algo que não só é lógico mas também possível 118 Mencionamos anteriormente o fato de o inconsciente conter como que duas camadas uma pessoal e outra coletiva A camada pessoal termina com as recordações infantis mais remotas o inconsciente coletivo porém contém o tempo préinfantil isto é os restos da vida dos antepassados As imagens das recordações do inconsciente coletivo são imagens não preenchidas por serem formas não vividas pessoalmente pelo indivíduo Quando porém a regressão da energia psíquica ultrapassa o próprio tempo da primeira infância penetrando nas pegadas ou na herança da vida ancestral aí despertam os quadros mitológicos os arquétipos 15 Abrese então um mundo espiritual interior de cuja existência nem sequer suspeitávamos Aparecem conteúdos que talvez contrastem violentamente com as convicções que até então eram nossas É tal a intensidade desses quadros que nos parece inteiramente compreensível que milhões de pessoas cultas tenham aderido à teosofia ou à antropossofia pois esses sistemas gnósticos modernos vêm ao encontro da necessidade de exprimir e formular os indizíveis acontecimentos interiores As outras formas de religião cristã existentes inclusive o catolicismo não o conseguiram apesar de este ser capaz de exprimir muito melhor do que o protestantismo tais realidades interiores através de simbolismos dogmáticos e rituais Mas mesmo assim nem no passado nem no presente atingiu a plenitude do simbolismo pagão da Antiguidade É esta a razão por que o paganismo permaneceu ainda por muitos séculos na era cristã transformandose pouco a pouco em correntes subterrâneas Estas nunca perderam totalmente sua energia vital desde a Baixa Idade Média até a Idade Moderna Na realidade desapareceram da superfície no entanto transfiguradas voltam para compensar a unilateralidade da orientação da consciência moderna 16 Nossa consciência está impregnada de cristianismo e é quase inteiramente por ele formada por isso a posição inconsciente dos contrários não pode ser aceita simplesmente porque parece excessiva a contradição com as concepções fundamentais dominantes Quanto mais unilateral rígida e incondicional for a defesa de um ponto de vista tanto mais agressivo hostil e incompatível se tornará o outro de modo que a princípio a reconciliação tem poucas perspectivas de sucesso Mas se o consciente pelo menos reconhecer a relativa validade de todas as opiniões humanas o contrário também perde algo de sua incompatibilidade Entretanto esse contrário procura uma expressão adequada por exemplo nas religiões orientais no budismo no hinduísmo e no taoísmo O sincretismo mistura e combinação da teosofia vem amplamente ao encontro dessa necessidade e explica o seu elevado número de adeptos 119 Através da ocupação ligada ao tratamento analítico surgem experiências de natureza arquetípica à procura de expressão e forma Evidentemente não é esta a única maneira de se experimentar coisas desse tipo Não raro se produzem experiências arquetípicas espontâneas não apenas em pessoas com um espírito psicológico Muitas vezes fiquei sabendo de sonhos e visões extraordinários de pessoas de cuja saúde mental nem o próprio especialista podia duvidar A experiência do arquétipo é frequentemente guardada como o segredo mais íntimo visto que nos atinge no âmago É uma espécie de experiência primordial do não eu da alma de um confronto interior um verdadeiro desafio É compreensível que se procure socorro em imagens paralelas o acontecimento original poderá ser reinterpretado de acordo com imagens alheias com a maior facilidade Um caso típico desses é a visão da Trindade do Irmão Niklaus von der Flüe 17 Outro exemplo é a visão da cobra de múltiplos olhos de Inácio de Loyola que a princípio foi interpretada como sendo uma visão divina e depois como uma visão diabólica Através de reinterpretações desse tipo a experiência original é substituída por imagens e palavras emprestadas de fontes estranhas e por interpretações ideias e formas que não nasceram necessariamente no nosso chão e sobretudo não estão ligadas ao nosso coração mas apenas à cabeça E a cabeça nem mesmo é capaz de as pensar claramente porque jamais as teria inventado São um bem roubado que não prospera O sucedâneo transforma as pessoas em sombras tornandoas irreais Colocam letras mortas no lugar de realidades vivas e assim vão se livrando do sofrimento das oposições e vão se esgueirando para um mundo fantasmagórico pálido bidimensional onde murcha e morre tudo o que é criativo e vivo 120 Os acontecimentos indizíveis provocados pela regressão ao tempo préinfantil não exigem sucedâneos mas uma realização individual na vida e na obra de cada um Aquelas imagens se formaram a partir da vida do sofrimento e da alegria dos antepassados e querem voltar de novo à vida com experiência e como ação Mas por causa de sua oposição à consciência não podem ser traduzidas imediatamente para o nosso mundo mas é preciso achar um caminho intermediário conciliatório entre a realidade consciente e a inconsciente Referências FRANZ ML von Die Visionen des Niklaus von Flüe Zurique 1959 FREUD S Eine Kindheitserinnerung des Leonardo da Vinci Ges Schriften Bd IX Leipzig e Viena 1925 HELM GF Die Energetik nach ihrer geschichtlichen Entwicklung Leipzig 1898 JUNG CG Allgemeines zur Komplextheorie In Psychische Energetik und das Wesen der Träume 1948 GW 8 1967 vollst rev 1976 41982 Bruder Klaus In Neue Schweizer Rundschau August 1933 GW 11 1963 vollst rev 51988 Kommentar zu Das Geheimnis der Goldenen Blüte GW 13 1978 21982 Die Lebenswende In Seelenprobleme der Gegenwart 5 ed 1950 GW 8 1967 vollst rev 1976 41982 Paracelsus als geistige Erscheinung Paracelsica 1942 GW 15 1971 31979 Psychologie und Alchemie 2 ed 1952 GW 12 1972 31980 Die psychologischen Aspekte des MutterArchetypus In Von den Wurzeln des Bewusstseins 1954 GW 91 1976 51983 Psychologische Typen 1315 Tausend 1950 GW 6 1960 9 ed rev 1967 10 ed rev 141981 Die Struktur der Seele In Seelenprobleme der Gegenwart 5 ed 1950 GW 8 1967 vollst rev 1976 41982 Symbole der Wandlung 4 umgearbeitete Auflage von Wandlungen und Symbole der Libido 1952 GW 5 1973 31983 Uber den Archetypus mit besonderer Berücksichtigung des Animabegriffes In Von den Wurzeln des Bewusstseins 1954 GW 91 1976 51983 Uber den Begriff des kollektiven Unbewussten Als The Concept of the Collective Unconscious Barrholomews Hospital Journal XLIV 3 und 4 Dez 1936 und Jan 1937 GW 91 1976 51983 Uber die Archetypen des kollektiven Unbewussten In Von den Wurzeln des Bewusstseins 1954 GW 91 1976 51983 Über psychische Energetik und das Wesen der Träume 2 ed 1948 GW 8 1967 vollst rev 1976 41982 Zum psychologischen Aspekt der KoreFigur In Kerenyi und Jung Einfuhrung in das Wesen der Mythologie GW 91 1976 51983 Zur Psychologie des KindArchetypus In Kerenyi und Jung Einfuhrung in das Wesen der Mythologie GW 91 1976 51983 KERENYI K JUNG CG Einführung in das Wesen der Mythologie 4 ed Zurique 1951 Jungs Beiträge in GW 91 LOVEJOY AO The Fundamental Concept of the Primitive Philosophy In The Monist XVI 1906 MAYER R Kleinere Schriften und Briefe Stuttgart 1893 NELKEN J Analytische Beobachtungen über Phantasien eines Schizophrenen In Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen Bd IV 1 Hälfte Leipzig e Viena 1912 SÖDERBLOM N Das Werden des Gottesglaubens Leipzig 1916 WOLFF T Einführung in die Grundlagen der Komplexen Psychologie In Die kulturelle Bedeutung der Komplexen Psychologie Festschrift zum 60 Geburtstag von CG Jung Berli 1935 Neuaufl In Studien zu CG Jungs Psychologie Zurique 1959 Fonte OC 71 capítulo 5 97120 1 Eine Kindheitserinnerung des Leonardo da Vinci sl se 1910 2 Nova edição Symbole der Wandlung Op cit OC 5 Cf tb Über den Begriff des Kolletktiven Unbewussten OC 9 3 Para esclarecer esse conceito posso indicar os seguintes trabalhos dos quais se depreende o desenvolvimento posterior do conceito Symbole der Wandlung OC 5 Psychologische Typen Op cit p 567s OC 6 759s Cf tb Von den Wurzeln des Bewusstseins 1954 os ensaios Über die Archetypen des Kollektiven Unbewussten p 3s Über den Archetypus mit Besonderer Berücksichtigung des Animabegriffs p 57s Die psychologischen Aspekte des MutterArchetypus p 87s OC 91 JUNG CG KERÉNYI K Einführung in das Wesen der Mythologie Das göttliche KindDas göttliche Mädchen Zurique RheinVerlag 1951 p 103s Zum psychologischen Aspekt der KoreFigur p 215s OC 91 Comentário sobre WILHELM R Das Geheimnis der goldenen Blüte 1928 OC 13 4 O inconsciente coletivo representa a parte objetiva do psiquismo o inconsciente pessoal a parte subjetiva 5 Sombra é para mim a parte negativa da personalidade isto é a soma das propriedades ocultas e desfavoráveis das funções maldesenvolvidas e dos conteúdos do inconsciente pessoal T Wolff resumiu o conceito em Einführung in die Grundlagen der komplexen Psychologie In WOLFF T Studium zu CG Jungs Psychologie Zurique RheinVerlag 1959 p 151ss 6 Para aprofundar este conceito cf Allgemeines zur Komplextheorie In JUNG CG Über psychische Energetik und das Wesen der Träume Op cit OC 8 7 MAYER R Kleinere Schriften und Briefe Stuttgart se 1893 p 213 Cartas a Wilhelm Griesinger 16 de junho de 1844 8 HELM GF Die Energetik nach ihrer geschichtlichen Entwicklung Leipzig se 1898 p 20 9 O chamado Mana Cf SOEDERBLOM N Das Werden des Gottesglaubens sl se 1916 10 LOVEJOY AO The Fundamental Concept of the Primitive Philosophy The Monist vol XVI 1906 p 361 11 Cf Die Struktur der Seele In JUNG CG Seelenprobleme der Gegenwart Zurique se 1931 1950 p 127 OC 8 12 Um caso analisado em profundidade em Symbole der Wandlung Op cit OC 5 bem como em NELKEN J Analytische Beobachtungen über Phantasien eines Schizophrenen Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen IV1 1912 p 504 LeipzigViena 13 Esta frase foi escrita durante a Primeira Guerra Mundial Deixeia tal qual pois contém uma verdade que vai ser confirmada mais de uma vez no decorrer da história escrita em 1925 Como se vê pelos acontecimentos atuais esta confirmação não tardou muito Quem é afinal que quer essa destruição cega Mas todos ajudam o demônio com o maior espírito de sacrifício ó sancta simplicitas acrescentado em 1942 14 Confrontar essas considerações com Die Lebenswende In JUNG CG Seelenprobleme der Gegenwart Op cit p 220s OC 8 15 O leitor verá que aqui se insere um elemento novo no conceito de arquétipo que não tinha sido mencionado antes Essa mistura não significa uma falta de clareza involuntária mas uma ampliação intencional do arquétipo através do importantíssimo fator do carma da filosofia indiana O aspecto do carma é indispensável à compreensão mais profunda da natureza de um arquétipo Sem entrar aqui em maiores detalhes sobre esse fator queria ao menos mencionar a sua existência Fui muito combatido pela crítica por causa da ideia do arquétipo Não hesito em concordar que a ideia é controversa e causa perplexidade Mas sempre tive a curiosidade de saber que conceitos os meus críticos teriam usado para exprimir o material experimental em questão 16 Cf o meu estudo Paracelsus als geistige Erscheinung OC 13 e Psychologie und Alchemie OC 12 17 Cf meu ensaio Bruder Klaus OC 2 E ainda FRANZ ML von Die Visionen des Niklaus von Flüe Zurique se 1959 Estudos do CG JungInstitut 9 A função transcendente Prefácio Este ensaio foi escrito em 1916 Recentemente foi descoberto por estudantes do Instituto CG Jung de Zurique e impresso como edição privada em sua versão original provisória porém traduzida para o inglês A fim de preparar o manuscrito para a impressão definitiva retoqueio estilisticamente respeitandolhe porém a ordem principal das ideias e a inevitável limitação de seu horizonte Depois de 22 anos o problema nada perdeu de sua atualidade embora sua apresentação precise de ser complementada ainda em muitos pontos como bem o pode ver qualquer um que conheça a matéria Infortunadamente minha idade avançada não me permite assumir esta considerável tarefa Portanto o ensaio poderá ficar com todas as suas imperfeições como um documento histórico Pode dar ao leitor alguma ideia dos esforços de compreensão exigidos pelas primeiras tentativas de se chegar a uma visão sintética do processo psíquico no tratamento analítico Como suas considerações básicas ainda são válidas pelo menos no momento presente ele poderá estimular o leitor a uma compreensão mais ampla e mais aprofundada do problema E este problema se identifica com a questão universal De que maneira podemos confrontar nos com o inconsciente Esta é a questão colocada pela filosofia da Índia e de modo particular pelo budismo e pela filosofia do Zen Indiretamente porém é a questão fundamental na prática de todas as religiões e de todas as filosofias O inconsciente com efeito não é isto ou aquilo mas o desconhecimento do que nos afeta imediatamente Ele nos aparece como de natureza psíquica mas sobre sua verdadeira natureza sabemos tão pouco ou em linguagem otimista tanto quanto sabemos sobre a natureza da matéria Enquanto porém a Física tem consciência da natureza modelar de seus enunciados as filosofias religiosas se exprimem em termos metafísicos e hipostasiam suas imagens Quem ainda está preso a este último ponto de vista não pode entender a linguagem da Psicologia acusála de metafísica ou de materialista ou no mínimo de agnóstica quando não até mesmo de gnóstica Por isso tenho sido acusado por estes críticos ainda medievais ora como místico e gnóstico ora como ateu Devo apontar este malentendido como principal impedimento para uma reta compreensão do problema trata se de uma certa falta de cultura inteiramente ignorante de qualquer crítica histórica e que por isso mesmo ingenuamente acha que o mito ou deve ser historicamente verdadeiro ou do contrário não é coisíssima nenhuma Para tais pessoas a utilização de uma terminologia mitológica ou folclórica com referência a fatos psicológicos é inteiramente anticientífica Com este preconceito as pessoas barram o próprio acesso à Psicologia e o caminho para um ulterior desenvolvimento do homem interior cujo fracasso intelectual e moral é uma das mais dolorosas constatações de nossa época Quem tem alguma coisa a dizer fala em deveria ser ou em seria preciso sem reparar que lastimosa situação de desamparo está ele assim confessando Todos os meios que recomenda são justamente aqueles que fracassaram Em sua compreensão mais profunda a Psicologia é autoconhecimento Mas como este último não pode ser fotografado calculado contado pesado e medido é anticientífico Mas o homem psíquico ainda bastante desconhecido que se ocupa com a ciência é também anticientífico e por isso não é digno de posterior investigação Se o mito não caracteriza o homem psíquico então seria preciso negar o ninho ao pardal e o canto ao rouxinol Temos motivos suficientes para admitir que o homem em geral tem uma profunda aversão ao conhecer alguma coisa a mais sobre si mesmo e que é aí que se encontra a verdadeira causa de não haver avanço e melhoramento interior ao contrário do progresso exterior Complemento à edição inglesa das Obras Completas O método da imaginação ativa é o auxílio mais importante na produção dos conteúdos do inconsciente que situamse por assim dizer abaixo do limiar da consciência e que quando intensificados teriam maior probabilidade de irromper espontaneamente na consciência O método implica portanto riscos e quando possível não deveria ser aplicado sem supervisão médica Um risco menor consiste em que pode facilmente acontecer que ele não traga nenhum resultado na medida em que seu procedimento transita para a assim chamada livre associação de Freud fazendo com que o paciente recaia no ciclo estéril de seus complexos do qual ele de qualquer modo já não conseguia se libertar Outro risco em si inofensivo consiste em que sejam produzidos conteúdos autênticos pelos quais o paciente no entanto limitase a demonstrar um interesse exclusivamente estético o que faz com que ele permaneça enredado na fantasmagoria isso naturalmente não leva a nada pois o sentido e o valor dessas fantasias só se revelam em sua integração na personalidade global ou seja no momento em que a pessoa é confrontada com elas significativa e também moralmente Um terceiro risco por fim e dependendo das circunstâncias isso pode ser uma questão muito preocupante consiste em que os conteúdos subliminais já possuem uma voltagem tão alta que quando se lhes franqueia uma saída por meio da imaginação ativa subjugam a consciência e se apoderam da personalidade Isso dá origem a um estado que pelo menos temporariamente não se consegue distinguir de uma esquizofrenia e que pode assumir a forma de um autêntico intervalo psicótico Por essa razão esse método não é brincadeira de criança A subestimação do inconsciente que predomina de modo geral contribui consideravelmente para aumentar a periculosidade do método Em contrapartida porém ele representa um auxílio psicoterapêutico inestimável Küsnacht setembro de 1959 CG Jung A função transcendente 131 Por função transcendente não se deve entender algo de misterioso e por assim dizer suprassensível ou metafísico mas uma função que por sua natureza podese comparar com uma função matemática de igual denominação e é uma função de números reais e imaginários A função psicológica e transcendente resulta da união dos conteúdos conscientes e inconscientes 132 A experiência no campo da psicologia analítica nos tem mostrado abundantemente que o consciente e o inconsciente raramente estão de acordo no que se refere a seus conteúdos e tendências Esta falta de paralelismo como nos ensina a experiência não é meramente acidental ou sem propósito mas se deve ao fato de que o inconsciente se comporta de maneira compensatória ou complementar em relação à consciência Podemos inverter a formulação e dizer que a consciência se comporta de maneira compensatória com relação ao inconsciente A razão desta relação é que 1 os conteúdos do inconsciente possuem um valor liminar de sorte que todos os elementos por demais débeis permanecem no inconsciente 2 a consciência devido a suas funções dirigidas exerce uma inibição que Freud chama de censura sobre todo o material incompatível em consequência do que este material incompatível mergulha no inconsciente 3 a consciência é um processo momentâneo de adaptação ao passo que o inconsciente contém não só todo o material esquecido do passado individual mas todos os traços funcionais herdados que constituem a estrutura do espírito humano e 4 o inconsciente contém todas as combinações da fantasia que ainda não ultrapassaram a intensidade liminar e com o correr do tempo e em circunstâncias favoráveis entrarão no campo luminoso da consciência 133 A reunião destes fatos facilmente explica a atitude complementar do inconsciente com relação à consciência 134 A natureza determinada e dirigida dos conteúdos da consciência é uma qualidade que só foi adquirida relativamente tarde na história da humanidade e falta amplamente entre os primitivos de nossos dias Também esta qualidade é frequentemente prejudicada nos pacientes neuróticos que se distinguem dos indivíduos normais pelo fato de que o limiar da consciência é mais facilmente deslocável ou em outros termos a parede divisória situada entre a consciência e o inconsciente é muito mais permeável O psicótico por outro lado achase inteiramente sob o influxo direto do inconsciente 135 A natureza determinada e dirigida da consciência é uma aquisição extremamente importante que custou à humanidade os mais pesados sacrifícios mas que por seu lado prestou o mais alto serviço à humanidade Sem ela a ciência a técnica e a civilização seriam simplesmente impossíveis porque todas elas pressupõem persistência regularidade e intencionalidade fidedignas do processo psíquico Estas qualidades são absolutamente necessárias para todas as competências desde o funcionário mais altamente colocado até o médico o engenheiro e mesmo o simples boiafria A ausência de valor social cresce em geral à medida que estas qualidades são anuladas pelo inconsciente mas há também exceções como por exemplo as pessoas dotadas de qualidades criativas A vantagem de que tais pessoas gozam consiste precisamente na permeabilidade do muro divisório entre a consciência e o inconsciente Mas para aquelas organizações sociais que exigem justamente regularidade e fidedignidade estas pessoas excepcionais quase sempre pouco valor representam 136 Por isso não é apenas compreensível mas até mesmo necessário que em cada indivíduo este processo seja tão estável e definido quanto possível pois as exigências da vida o exigem Mas estas qualidades trazem consigo também uma grande desvantagem O fato de serem dirigidas para um fim encerra a inibição e ou o bloqueio de todos os elementos psíquicos que parecem ser ou realmente são incompatíveis com ele ou são capazes de mudar a direção preestabelecida e assim conduzir o processo a um fim não desejado Mas como se conhece que o material psíquico paralelo é incompatível Podemos conhecêlo por um ato de julgamento que determina a direção do caminho escolhido e desejado Este julgamento é parcial e preconcebido porque escolhe uma possibilidade particular à custa de todas as outras O julgamento se baseia por sua vez na experiência isto é naquilo que já é conhecido Via de regra ele nunca se baseia no que é novo no que é ainda desconhecido e no que sob certas circunstâncias poderia enriquecer consideravelmente o processo dirigido É evidente que não pode se basear pela simples razão de que os conteúdos inconscientes estão a priori excluídos da consciência 137 Por causa de tais atos de julgamento o processo dirigido se torna necessariamente unilateral mesmo que o julgamento racional pareça plurilateral e despreconcebido Por fim até a própria racionalidade do julgamento é um preconceito da pior espécie porque chamamos de racional aquilo que nos parece racional Aquilo portanto que nos parece irracional está de antemão fadado à exclusão justamente por causa de seu caráter irracional que pode ser realmente irracional mas pode igualmente apenas parecer irracional sem o ser em sentido mais alto 138 A unilateralidade é uma característica inevitável porque necessária do processo dirigido pois direção implica unilateralidade A unilateralidade é ao mesmo tempo uma vantagem e um inconveniente mesmo quando parece não haver um inconveniente exteriormente reconhecível existe contudo sempre uma contraposição igualmente pronunciada no inconsciente a não ser que se trate absolutamente de um caso ideal em que todas as componentes psíquicas tendem sem exceção para uma só e mesma direção É um caso cuja possibilidade não pode ser negada em teoria mas na prática raramente acontecerá A contraposição é inócua enquanto não contiver um valor energético maior Mas se a tensão dos opostos aumenta em consequência de uma unilateralidade demasiado grande a tendência oposta irrompe na consciência e isto quase sempre precisamente no momento em que é mais importante manter a direção consciente Assim um orador comete um deslize de linguagem precisamente quando maior é seu empenho em não dizer alguma estupidez Este momento é crítico porque apresenta o mais alto grau de tensão energética que pode facilmente explodir quando o inconsciente já está carregado e liberar o conteúdo inconsciente 139 Nossa vida civilizada exige uma atividade concentrada e dirigida da consciência acarretando deste modo o risco de um considerável distanciamento do inconsciente Quanto mais capazes formos de nos afastar do inconsciente por um funcionamento dirigido tanto maior é a possibilidade de surgir uma forte contraposição a qual quando irrompe pode ter consequências desagradáveis 140 A terapia analítica nos proporcionou uma profunda percepção da importância das influências inconscientes e com isto aprendemos tanto para a nossa vida prática que julgamos insensato esperar a eliminação ou a parada do inconsciente depois do chamado término do tratamento Muitos dos pacientes reconhecendo obscuramente este estado de coisas não se decidem a renunciar à análise ou só se decidem com grande dificuldade embora tanto o paciente quanto o médico achem importuno e incoerente o sentimento de dependência Muitos têm inclusive receio de o tentar e de se pôr sobre seus próprios pés porque sabem por experiência que o inconsciente pode intervir de maneira cada vez mais perturbadora e aparentemente imprevisível em suas vidas 141 Antigamente se admitia que os pacientes estariam preparados para enfrentar a vida normal quando tivessem adquirido suficiente autoconhecimento prático para poderem entender por exemplo seus próprios sonhos Mas a experiência nos tem mostrado que mesmo os analistas profissionais dos quais se espera que dominem a arte de interpretar os sonhos muitas vezes capitulam diante de seus próprios sonhos e têm de apelar para a ajuda de algum colega Se até mesmo aquele que pretende ser perito no método se mostra incapaz de interpretar satisfatoriamente seus próprios sonhos tanto menos se pode esperar isto da parte do paciente A esperança de Freud no sentido de que se poderia esgotar o inconsciente não se realizou A vida onírica e as instruções do inconsciente continuam mutatis mutandis desimpedidas 142 Há um preconceito generalizado segundo o qual a análise é uma espécie de cura a que alguém se submete por um determinado tempo e em seguida é mandado embora curado da doença Isto é um erro de leigos na matéria que nos vem dos primeiros tempos da psicanálise O tratamento analítico poderia ser considerado um reajustamento da atitude psicológica realizado com a ajuda do médico Naturalmente esta atitude recém adquirida que corresponde melhor às condições internas e externas pode perdurar por um considerável espaço de tempo mas são bem poucos os casos em que uma cura realizada só uma vez possa ter resultados duradouros como estes É verdade que o otimismo que nunca dispensou publicidade tem sido sempre capaz de relatar curas definitivas Mas não devemos nos deixar enganar pelo comportamento humano subumano do médico convém termos sempre presente que a vida do inconsciente prossegue o seu caminho e produz continuamente situações problemáticas Não precisamos ser pessimistas temos visto tantos e excelentes resultados conseguidos na base da sorte e através de trabalho consciencioso Mas isto não deve nos impedir de reconhecer que a análise não é uma cura que se pratica de uma vez para sempre mas antes do mais e tão somente um reajustamento mais ou menos completo Mas não há mudança que seja incondicional por um longo período de tempo A vida tem de ser conquistada sempre e de novo Existem é verdade atitudes coletivas extremamente duradouras que possibilitam a solução de conflitos típicos A atitude coletiva capacita o indivíduo a se ajustar sem atritos à sociedade desde que ela age sobre ele como qualquer outra condição da vida Mas a dificuldade do paciente consiste precisamente no fato de que um problema pessoal não pode se enquadrar em uma norma coletiva requerendo uma solução individual do conflito caso a totalidade da personalidade deva conservarse viável Nenhuma solução racional pode fazer justiça a esta tarefa e não existe absolutamente nenhuma norma coletiva que possa substituir uma solução individual sem perdas 143 A nova atitude adquirida no decurso da análise mais cedo ou mais tarde tende a se tornar inadequada sob qualquer aspecto e isto necessariamente por causa do contínuo fluxo da vida que requer sempre e cada vez mais nova adaptação pois nenhuma adaptação é definitiva Por certo podese exigir que o processo de tratamento seja conduzido de tal maneira que deixe margem a novas orientações também em época posterior da vida sem dificuldades de monta A experiência nos ensina que isto é verdade até certo ponto Frequentemente vemos que os pacientes que passaram por uma análise exaustiva têm consideravelmente menos dificuldade com novos reajustamentos em época posterior Mesmo assim entretanto tais dificuldades são bastante frequentes e por vezes assaz penosas Esta é a razão pela qual mesmo os pacientes que passaram por um tratamento rigoroso muitas vezes voltam a seu antigo médico pedindolhe ajuda em época posterior Comparativamente à prática médica em geral este fato não é assim tão incomum todavia contradiz tanto um certo entusiasmo despropositado da parte dos terapeutas quanto a opinião segundo a qual a análise constitui uma cura única Em conclusão é sumamente improvável que haja uma terapia que elimine todas as dificuldades O homem precisa de dificuldades elas são necessárias à sua saúde E somente a sua excessiva quantidade nos parece desnecessária 144 A questão fundamental para o terapeuta é não somente como eliminar a dificuldade momentânea mas como enfrentar com sucesso as dificuldades futuras A questão é esta que espécie de atitude espiritual e moral é necessário adotar frente às influências perturbadoras e como se pode comunicála ao paciente 145 A resposta evidentemente consiste em suprimir a separação vigente entre a consciência e o inconsciente Não se pode fazer isto condenando unilateralmente os conteúdos do inconsciente mas pelo contrário reconhecendo a sua importância para a compensação da unilateralidade da consciência e levando em conta esta importância A tendência do inconsciente e a da consciência são os dois fatores que formam a função transcendente É chamada transcendente porque torna possível organicamente a passagem de uma atitude para outra sem perda do inconsciente O método construtivo de tratamento pressupõe percepções que estão presentes pelo menos potencialmente no paciente e por isso é possível tornálas conscientes Se o médico nada sabe dessas potencialidades ele não pode ajudar o paciente a desenvolvêlas a não ser que o médico e o paciente dediquem conjuntamente um verdadeiro estudo a este problema o que em geral está fora de questão 146 Por isto na prática é o médico adequadamente treinado que faz de função transcendente para o paciente isto é ajuda o paciente a unir a consciência e o inconsciente e assim chegar a uma nova atitude Nesta função do médico está uma das muitas significações importantes da transferência por meio dela o paciente se agarra à pessoa que parece lhe prometer uma renovação da atitude com a transferência ele procura esta mudança que lhe é vital embora não tome consciência disto Para o paciente o médico tem o caráter de figura indispensável e absolutamente necessária para a vida Por mais infantil que esta dependência possa parecer ela exprime uma exigência de suma importância cujo malogro acarretará um ódio amargo contra a pessoa do analista Por isso o importante é saber o que é que esta exigência escondida na transferência tem em vista a tendência é considerála em sentido redutivo como uma fantasia infantil de natureza erótica Isto seria tomar esta fantasia que em geral se refere aos pais em sentido literal como se o paciente ou seu inconsciente tivesse ainda ou voltasse a ter aquelas expectativas que a criança outrora tinha em relação a seus pais Exteriormente ainda é aquela mesma esperança que a criança tem de ser ajudada e protegida pelos pais mas no entanto a criança se tornou um adulto e o que era normal na criança é impróprio para o adulto Tornou se expressão metafórica da necessidade de ajuda não percebida conscientemente em situação crítica Historicamente é correto explicar o caráter erótico da transferência situando sua origem no eros infantil mas procedendo desta maneira não entenderemos o significado e o objetivo da transferência e interpretála como fantasia sexual infantil nos desvia do verdadeiro problema A compreensão da transferência não deve ser procurada nos seus antecedentes históricos mas no seu objetivo A explicação unilateral e redutiva tornase absurda em especial quando dela não resulta absolutamente nada de novo exceto as redobradas resistências do paciente O tédio que surge então no decorrer do tratamento nada mais é do que a expressão da monotonia e da pobreza de ideias não do inconsciente como às vezes se supõe mas do analista que não entende que estas fantasias não devem ser tomadas meramente em sentido concretista e redutivo e sim em sentido construtivo Quando se toma consciência disto a situação de estagnação se modifica muitas vezes de um só golpe 147 O tratamento construtivo do inconsciente isto é a questão do seu significado e de sua finalidade fornecenos a base para a compreensão do processo que se chama função transcendente 148 Não me parece supérfluo tecer aqui algumas considerações acerca da objeção frequentemente ouvida de que o método construtivo é mera sugestão O método com efeito baseiase em apreciar o símbolo isto é a imagem onírica ou a fantasia não mais semioticamente como sinal por assim dizer de processos instintivos elementares mas simbolicamente no verdadeiro sentido entendendose símbolo como o termo que melhor traduz um fato complexo e ainda não claramente apreendido pela consciência A análise redutora desta expressão nos oferece unicamente uma visão mais clara daqueles elementos que a compunham originalmente Com isto não queremos negar que um conhecimento mais aprofundado destes elementos tenha suas vantagens até certo ponto mas ele foge da questão da finalidade Por isso a dissolução do símbolo neste estágio da análise é condenável Entretanto já de início o método utilizado para extrair o sentido sugerido pelo símbolo é o mesmo que se emprega na análise redutiva recolhemse as associações do paciente que de modo geral são suficientes para uma aplicação pelo método sintético Aqui mais uma vez esta aplicação não é feita em sentido semiótico mas simbólico A pergunta que aqui se põe é esta Qual o sentido indicado pelas associações A B C quando vistas em conexão com o conteúdo manifesto dos sonhos Fonte OC 8 131148 bem como o Prefácio Publicado em Geist und Werk estudo comemorativo do 75º aniversário de Daniel Brody RheinVerlag Zurique 1958 A autonomia do inconsciente 1 Parece que o propósito do fundador das Terry Lectures é o de proporcionar tanto aos representantes das Ciências Naturais quanto aos da Filosofia e de outros campos do saber humano a oportunidade de trazer sua contribuição para o esclarecimento do eterno problema da religião Tendo a Universidade de Yale me concedido o honroso encargo das Terry Lectures de 1937 considero minha tarefa mostrar o que a psicologia ou melhor o ramo da psicologia médica que represento tem a ver com a religião ou pode dizer sobre a mesma Visto que a religião constitui sem dúvida alguma uma das expressões mais antigas e universais da alma humana subentendese que todo o tipo de psicologia que se ocupa da estrutura psicológica da personalidade humana deve pelo menos constatar que a religião além de ser um fenômeno sociológico ou histórico é também um assunto importante para grande número de indivíduos 2 Embora me tenham chamado frequentemente de filósofo sou apenas um empírico e como tal me mantenho fiel ao ponto de vista fenomenológico Mas não acho que infringimos os princípios do empirismo científico se de vez em quando fazemos reflexões que ultrapassam o simples acúmulo e classificação do material proporcionado pela experiência Creio de fato que não há experiência possível sem uma consideração reflexiva porque a experiência constitui um processo de assimilação sem o qual não há compreensão alguma Daqui se deduz que abordo os fatos psicológicos não sob um ângulo filosófico mas de um ponto de vista científiconatural Na medida em que o fenômeno religioso apresenta um aspecto psicológico muito importante trato o tema dentro de uma perspectiva exclusivamente empírica limitome portanto a observar os fenômenos e me abstenho de qualquer abordagem metafísica ou filosófica Não nego a validade de outras abordagens mas não posso pretender a uma correta aplicação desses critérios 3 Sei muito bem que a maioria dos homens acredita estar a par de tudo o que se conhece a respeito da psicologia pois acham que esta é apenas o que sabem acerca de si mesmos Mas a psicologia na realidade é muito mais do que isto Guardando escassa vinculação com a filosofia ocupase muito mais com fatos empíricos dos quais uma boa parte é dificilmente acessível à experiência corrente Eu me proponho pelo menos a fornecer algumas noções do modo pelo qual a psicologia prática se defronta com o problema religioso É claro que a amplitude do problema exigiria bem mais do que três conferências visto que a discussão necessária dos detalhes concretos tomaria muito tempo impelindonos a um número considerável de esclarecimentos O primeiro capítulo deste estudo será uma espécie de introdução ao problema da psicologia prática e de suas relações com a religião O segundo se ocupará de fatos que evidenciam a existência de uma função religiosa no inconsciente O terceiro versará sobre o simbolismo religioso dos processos inconscientes 4 Visto que minhas explanações são de caráter bastante inusitado não deve pressupor que meus ouvintes estejam suficientemente familiarizados com o critério metodológico do tipo de psicologia que represento Tratase de um ponto de vista exclusivamente científico isto é tem como objeto certos fatos e dados da experiência Em resumo trata de acontecimentos concretos Sua verdade é um fato e não uma apreciação Quando a psicologia se refere por exemplo ao tema da concepção virginal só se ocupa da existência de tal ideia não cuidando de saber se ela é verdadeira ou falsa em qualquer sentido A ideia é psicologicamente verdadeira na medida em que existe A existência psicológica é subjetiva porquanto uma ideia só pode ocorrer num indivíduo Mas é objetiva na medida em que mediante um consensus gentium é partilhada por um grupo maior 5 Este ponto de vista é também o das Ciências Naturais A psicologia trata de ideias e de outros conteúdos espirituais do mesmo modo que por exemplo a zoologia se ocupa das diversas espécies animais Um elefante é verdadeiro porque existe O elefante não é uma conclusão lógica nem corresponde a uma asserção ou juízo subjetivo de um intelecto criador É simplesmente um fenômeno Mas estamos tão habituados com a ideia de que os acontecimentos psíquicos são produtos arbitrários do livrearbítrio e mesmo invenções de seu criador humano que dificilmente podemos nos libertar do preconceito de considerar a psique e seus conteúdos como simples invenções arbitrárias ou produtos mais ou menos ilusórios de conjeturas e opiniões O fato é que certas ideias ocorrem quase em toda a parte e em todas as épocas podendo formarse de um modo espontâneo independentemente da migração e da tradição Não são criadas pelo indivíduo mas lhe ocorrem simplesmente e mesmo irrompem por assim dizer na consciência individual O que acabo de dizer não é filosofia platônica mas psicologia empírica 6 Antes de falar da religião devo explicar o que entendo por este termo Religião é como diz o vocábulo latino religere uma acurada e conscienciosa observação daquilo que Rudolf Otto 1 acertadamente chamou de numinoso isto é uma existência ou um efeito dinâmico não causados por um ato arbitrário Pelo contrário o efeito se apodera e domina o sujeito humano mais sua vítima do que seu criador Qualquer que seja a sua causa o numinoso constitui uma condição do sujeito e é independente de sua vontade De qualquer modo tal como o consensus gentium a doutrina religiosa mostranos invariavelmente e em toda a parte que esta condição deve estar ligada a uma causa externa ao indivíduo O numinoso pode ser a propriedade de um objeto visível ou o influxo de uma presença invisível que produzem uma modificação especial na consciência Tal é pelo menos a regra universal 7 Mas logo que abordamos o problema da atuação prática ou do ritual deparamos com certas exceções Grande número de práticas rituais são executadas unicamente com a finalidade de provocar deliberadamente o efeito do numinoso mediante certos artifícios mágicos como por exemplo a invocação a encantação o sacrifício a meditação a prática do ioga mortificações voluntárias de diversos tipos etc Mas certa crença religiosa numa causa exterior e objetiva divina precede essas práticas rituais A Igreja Católica por exemplo administra os sacramentos aos crentes com a finalidade de conferirlhes os benefícios espirituais que comportam Mas como tal ato terminaria por forçar a presença da graça divina mediante um procedimento sem dúvida mágico podese assim arguir logicamente ninguém conseguiria forçar a graça divina a estar presente no ato sacramental mas ela se encontra inevitavelmente presente nele pois o sacramento é uma instituição divina que Deus não teria estabelecido se não tivesse a intenção de mantêla 2 8 Encaro a religião como uma atitude do espírito humano atitude que de acordo com o emprego originário do termo religio poderíamos qualificar a modo de uma consideração e observação cuidadosas de certos fatores dinâmicos concebidos como potências espíritos demônios deuses leis ideias ideais ou qualquer outra denominação dada pelo homem a tais fatores dentro de seu mundo próprio a experiência terlheia mostrado suficientemente poderosos perigosos ou mesmo úteis para merecerem respeitosa consideração ou suficientemente grandes belos e racionais para serem piedosamente adorados e amados Em inglês dizse de uma pessoa entusiasticamente interessada por uma empresa qualquer that he is almost religiously devoted to his cause William James por exemplo observa que um homem de ciência muitas vezes não tem fé embora seu temperamento seja religioso 3 9 Eu gostaria de deixar bem claro que com o termo religião 4 não me refiro a uma determinada profissão de fé religiosa A verdade porém é que toda confissão religiosa por um lado se funda originalmente na experiência do numinoso e por outro na pistis na fidelidade lealdade na fé e na confiança em relação a uma determinada experiência de caráter numinoso e na mudança de consciência que daí resulta Um dos exemplos mais frisantes neste sentido é a conversão de Paulo Poderíamos portanto dizer que o termo religião designa a atitude particular de uma consciência transformada pela experiência do numinoso 10 As confissões de fé são formas codificadas e dogmatizadas de experiências religiosas originárias 5 Os conteúdos da experiência foram sacralizados e em geral enrijeceram dentro de uma construção mental inflexível e frequentemente complexa O exercício e a repetição da experiência original transformaramse em rito e em instituição imutável Isto não significa necessariamente que se trata de uma petrificação sem vida Pelo contrário ela pode representar uma forma de experiência religiosa para inúmeras pessoas durante séculos sem que haja necessidade de modificála Embora muitas vezes se acuse a Igreja Católica por sua rigidez particular ela admite que o dogma é vivo e portanto sua formulação seria em certo sentido susceptível de modificação e evolução Nem mesmo o número de dogmas é limitado podendo aumentar com o decorrer do tempo O mesmo ocorre com o ritual De um modo ou de outro qualquer mudança ou desenvolvimento são determinados pelos marcos dos fatos originariamente experimentados através dos quais se estabelece um tipo particular de conteúdo dogmático e de valor afetivo Até mesmo o protestantismo que ao que parece se libertou quase totalmente da tradição dogmática e do ritual codificado desintegrandose assim em mais de quatrocentas denominações até mesmo o protestantismo repetimos é obrigado a ser pelo menos cristão e a expressarse dentro do quadro de que Deus se revelou em Cristo o qual padeceu pela humanidade Este é um quadro bemdeterminado com conteúdos precisos e não é possível ampliálo ou vinculálo a ideias e sentimentos budistas ou islâmicos No entanto sem dúvida alguma não só Buda Maomé Confúcio ou Zaratustra constituem fenômenos religiosos mas igualmente Mitra Cibele Átis Manes Hermes e muitas outras religiões exóticas O psicólogo que se coloca numa posição puramente científica não deve considerar a pretensão de todo credo religioso a de ser o possuidor da verdade exclusiva e eterna Uma vez que trata da experiência religiosa primordial deve concentrar sua atenção no aspecto humano do problema religioso abstraindo o que as confissões religiosas fizeram com ele 11 Como sou médico e especialista em doenças nervosas e mentais não tomo como ponto de partida qualquer credo religioso mas sim a psicologia do homo religiosus do homem que considera e observa cuidadosamente certos fatores que agem sobre ele e sobre seu estado geral É fácil a tarefa de denominar e definir tais fatores segundo a tradição histórica ou o saber etnológico mas é extremamente difícil fazêlo do ponto de vista da psicologia Minha contribuição relativa ao problema religioso provém exclusivamente da experiência prática com meus pacientes e com as pessoas ditas normais Visto que nossas experiências com os seres humanos dependem em grau considerável daquilo que fazemos com eles a única via de acesso para meu tema será a de proporcionar uma ideia geral do modo pelo qual procedo no meu trabalho profissional Referências CÍCERO MT De inventione rhetorica Pro coelio Beides in Opera omnia Lyon 1588 OTTO R Das Heilige Breslau 1917 PEARCY HR A Vindication of Paul Nova York 1936 JAMES W Pragmatism LondresNova York 1911 SCHOLZ H Die Religionsphilosophie des AlsOb Leipzig 1921 Fonte OC 111 111 1 OTTO R Das Heilige Breslau se 1917 2 A gratia adiuvans e a gratia sanctificans são os efeitos sacramentam ex opere operato O sacramento deve sua eficácia ao fato de ter sido instituído diretamente por Cristo A Igreja é incapaz de unir o rito à graça de forma que o actus sacramentalis produza a presença e o efeito da graça isto é a res et sacramentum Portanto o rito exercido pelo padre não é causa instrumentalis mas simplesmente causa ministerialis 3 But our esteem for facts has not neutralized in us ali religiousness It is itself almost religious Our scientific temper is devout Porém nosso respeito pelos fatos não neutralizou em nós toda religiosidade Ele mesmo é quase religioso Nossa disposição científica é piedosa Pragmatism 1911 p 14s 4 Religio est quae superioris cuiusdam naturae quam divinam vocant curam caeremoniamque affert Cicero De Inventione Rhetorica II p 147 Religião é aquilo que nos incute zelo e um sentimento de reverência por uma certa natureza de ordem superior que chamamos divina Religiose testimonium dicere ex jurisjurandi fide Cicero Pro Coelio 55 Prestar religiosamente um testemunho com um juramento de fé 5 SCHOLZ H Die Religionsphilosophie des AlsOb Leipzig se 1921 insiste num ponto de vista semelhante cf tb PEARCY HR A Vindication of Paul Nova York se 1936 II SIMBOLISMO RELIGIOSO Uma verdade só é válida a longo prazo quando se transforma e torna a trazer seu testemunho através de novas imagens em novas línguas como um novo vinho que é acondicionado em odres novos OC 5 553 Símbolo é para mim a expressão perceptível aos sentidos de uma vivência interior Cartas vol 1 A função dos símbolos religiosos 560 Ainda que a consciência civilizada já se tenha libertado dos instintos básicos estes não desapareceram perderam apenas seu contato com a consciência Por isso viramse forçados a manifestarse de modo indireto ou seja através do que Janet chamou de automatismos no caso de uma neurose através de sintomas e no caso normal através de incidentes de todo tipo como disposições inexplicáveis de humor esquecimento inesperado equívocos etc Estas manifestações realçam de maneira clara a autonomia do arquétipo É fácil achar que somos senhores em nossa própria casa mas enquanto não estivermos em condições de dominar nossos sentimentos e disposições de espírito ou de ter consciência das centenas de caminhos secretos onde se imiscuem pressupostos inconscientes em nossos arranjos e decisões não somos senhores Ao contrário temos tantos motivos de incerteza que faríamos bem em pensar duas vezes antes de agir 561 A pesquisa da consciência é impopular ainda que fosse muito necessária sobretudo em nosso tempo em que o homem está ameaçado por perigos mortais que ele mesmo criou e que lhe fogem ao controle Se considerarmos a humanidade como um indivíduo nossa situação atual se parece à de uma pessoa que é arrastada por forças inconscientes Pela cortina de ferro está dissociado como um neurótico O homem ocidental que até aqui representou a consciência autêntica percebe aos poucos a vontade agressiva de poder do lado oriental e se vê forçado a medidas incomuns Todos os seus vícios ainda que desmentidos oficialmente e encobertos pelas boas maneiras internacionais lhe são lançados em rosto de forma escandalosa e metódica pelo Oriente O que o Ocidente manobrou ainda que em segredo e escondeu com certa vergonha sob o manto de mentiras diplomáticas de manobras enganosas de distorções dos fatos e de ameaças veladas voltase agora contra ele e o confunde totalmente Um caso tipicamente neurótico O rosto de nossa própria sombra ri de nós através da cortina de ferro 562 Daí se explica o enorme sentimento de desamparo que atormenta a consciência ocidental Começamos a admitir que a natureza do conflito seja um problema moral e espiritual e nos esforçamos por encontrar alguma solução qualquer Aos poucos nos convencemos de que as armas nucleares são uma solução desesperadora e indesejável porque são uma espada de dois gumes Compreendemos que os recursos morais e espirituais poderiam ser mais eficazes uma vez que podem imunizarnos psiquicamente contra a infecção que se alastra sempre mais Mas todos esses esforços são e serão inúteis enquanto tentarmos convencer a nós mesmos e o mundo de que elas os nossos adversários estão completamente errados do ponto de vista moral e filosófico Esperamos que se arrependam e reconheçam seus erros em vez de fazermos um sério esforço de reconhecer nossas sombras e suas maquinações traiçoeiras Pudéssemos ver nossas sombras estaríamos imunizados contra qualquer infecção e qualquer infiltração moral e religiosa Mas enquanto isso não acontecer estamos expostos a todo tipo de contágio pois na prática fazemos o mesmo que eles só com a desvantagem suplementar de não vermos nem querermos ver o que praticamos sob o manto de nossas boas maneiras 563 O Oriente por sua vez tem um grande mito que nós em nossa vã esperança de que nosso critério superior o fará desaparecer chamamos de ilusão Este mito é o venerando e arquetípico sonho da época áurea ou do paraíso onde todos teriam tudo e onde um chefe supremo justo e sábio dirige o jardim de infância Este poderoso arquétipo em sua forma infantil tem seu encanto e nosso critério superior sozinho não o expulsará do cenário do mundo Ele não desaparece mas ao contrário alastrase cada vez mais porque nós o ajudamos a propagarse através de nossa infantilidade que não reconhece que nossa civilização está presa nas garras dos mesmos preconceitos míticos O Ocidente entregase às mesmas esperanças ideias e expectativas Acreditamos no Estado assistencialista na paz mundial mais ou menos na igualdade de direitos de todas as pessoas nos direitos humanos válidos para sempre na justiça e na verdade e falando baixinho no reino de Deus na Terra 564 Lamentavelmente é verdade que nosso mundo e vida consistem de opostos inexoráveis dia e noite bemestar e sofrimento nascimento e morte bem e mal E sequer temos certeza se um compensa o outro se o bem compensa o mal se a alegria compensa a dor A vida e o mundo são um campo de batalha sempre o foram e sempre o serão e se assim não fosse a existência logo teria um fim Um estado de perfeito equilíbrio não existe em lugar nenhum Esta é também a razão por que uma religião altamente desenvolvida como o cristianismo esperava o fim próximo desse mundo e por que o budismo lhe coloca realmente um fim voltando as costas para todos os desejos terrenos Estas soluções categóricas seriam simplesmente um suicídio não estivessem elas ligadas a certas ideias morais e religiosas que constituem o substrato dessas duas religiões 565 Lembro isso porque em nossa época há muitas pessoas que perderam sua fé em uma ou outra das religiões do mundo Já não reservam nenhum lugar para ela Enquanto a vida flui harmoniosamente sem ela a perda não é sentida Sobrevindo porém o sofrimento a situação muda às vezes drasticamente A pessoa procura então subterfúgios e começa a pensar sobre o sentido da vida e sobre as experiências acabrunhadoras que a acompanham Segundo uma estatística o médico é mais solicitado nesses casos por judeus e protestantes e menos por católicos Isto é assim porque a Igreja Católica se sente responsável pela cura animarun pela cura das almas Acreditase na ciência e por isso são colocadas hoje aos psiquiatras as questões que antigamente pertenciam ao campo do teólogo As pessoas têm a sensação de que faz ou faria grande diferença se tivessem uma fé firme num modo de vida com sentido ou em Deus e na imortalidade O fantasma da morte que paira ameaçador diante delas é muitas vezes uma força motriz bem forte nesses pensamentos Desde tempos imemoriais as pessoas criaram concepções de um ou mais seres superiores e de uma vida no além Só a época moderna acredita poder viver sem isso Pelo fato de não se poder ver com a ajuda do telescópio e do radar o céu com o trono de Deus e pelo fato de não se haver provado com certeza que os entes queridos ainda vagueiam por aí com um corpo mais ou menos visível supõese que essas concepções não sejam verdadeiras Enquanto concepções não são inclusive verdadeiras o bastante pois acompanharam a vida humana desde os tempos préhistóricos e ainda agora estão prontas a irromper na consciência na primeira oportunidade 566 É até lamentável a perda dessas convicções Tratandose de coisas invisíveis e irreconhecíveis Deus está além de qualquer compreensão humana e a imortalidade não se pode comprovar para que procurar testemunhos ou a verdade Suponhamos que nada soubéssemos sobre a necessidade do sal em nossa alimentação assim mesmo nos beneficiaríamos de seu uso Mesmo admitindo que o uso do sal devesse ser atribuído a uma ilusão de nosso paladar ou que ele procedesse de uma superstição ainda assim contribuiria para o nosso bemestar Por que brigar por convicções que se mostram úteis nas crises e que podem dar sentido à nossa existência Como saber se estas ideias não são verdadeiras Muitas pessoas concordariam comigo se eu estivesse convencido de que essas ideias são inverossímeis O que elas não sabem porém é que esta negação também é inverossímil A decisão cabe exclusivamente a cada um Somos totalmente livres para escolher nosso ponto de vista De qualquer forma será sempre arbitrário Por que nutrir ideias das quais sabemos que jamais poderão ser demonstradas O único argumento empírico que se pode aduzir a seu favor é que são úteis e que são usadas até certo ponto Dependemos realmente de ideias e convicções gerais porque são capazes de dar sentido à nossa existência A pessoa consegue suportar dificuldades inacreditáveis quando está convencida do significado delas e se sente derrotada quando tem de admitir que além de sua má sorte aquilo que faz não tem sentido algum 567 É finalidade e aspiração dos símbolos religiosos dar sentido à vida humana Quando os índios pueblo acreditam que são filhos do pai Sol então sua vida tem uma perspectiva e objetivo que ultrapassam sua existência individual e limitada Isto deixa um espaço precioso para o processo de desenvolvimento de sua personalidade e é incomparavelmente mais satisfatório do que a certeza de que se é e continua sendo um servente de bazar Se Paulo estivesse convencido de que não era mais que um fabricante itinerante de tapetes não teria sido ele mesmo O que deu realidade e sentido à sua vida foi a certeza de que era um mensageiro de Deus Poderíamos acusálo de megalomania mas este aspecto esmaece diante do testemunho da História e do consensus omnium consenso de todos O mito que se apoderou dele fez de Paulo alguém maior do que um simples artesão 568 O mito se compõe de símbolos que não foram inventados mas que simplesmente aconteceram Não foi o homem Jesus que criou o mito do homemdeus Este já existia há séculos Ao contrário ele mesmo foi tomado por esta ideia simbólica que segundo descreve Marcos o tirou da oficina de carpinteiro e da limitação espiritual de seu meio ambiente Os mitos provêm dos contadores primitivos de histórias e de seus sonhos de pessoas que eram estimuladas pelas noções de sua fantasia e que pouco se diferenciaram daquelas que mais tarde chamaríamos de poetas ou filósofos Os contadores primitivos de histórias nunca se perguntaram muito sobre a origem de suas fantasias Só bem mais tarde começouse a pensar sobre a procedência da história Já na Grécia Antiga o intelecto humano estava suficientemente desenvolvido para chegar à suposição de que as histórias que se contavam sobre os deuses nada mais eram do que tradições antigas e exageradas de reis da Antiguidade e de suas façanhas Já naquela época supunham que o mito não devia ser tomado literalmente por causa de seu absurdo óbvio Por isso tentaram reduzilo a uma fábula de compreensão geral É isso precisamente que nossa época tentou fazer com o simbolismo dos sonhos pressupõese que o sonho não signifique exatamente o que parece dizer mas algo conhecido e compreendido em geral que devido à sua qualidade inferior não é declarado abertamente Mas para quem se livrara de seus antolhos convencionais já não havia mistério Parecia certo que os sonhos não significavam exatamente aquilo que aparentavam dizer mas outra coisa 569 Esta suposição é no entanto completamente arbitrária Já o Talmude dizia com mais acerto O sonho é sua própria interpretação Por que deveria o sonho significar outra coisa e não aquilo que nele se manifesta Existe na natureza alguma coisa que seja diferente do que ela é O platípode por exemplo aquele monstro primitivo que nenhum zoólogo poderia ter inventado não é ele simplesmente o que é O sonho é um fenômeno normal e natural que certamente é apenas aquilo que é e nada mais significa do que isso Dizemos que seu conteúdo é simbólico não só porque ele evidentemente possui um significado mas porque aponta para várias direções e deve significar algo que é inconsciente ou que ao menos não é consciente em todos os seus aspectos 570 Para um intelecto científico fenômenos como as representações simbólicas são altamente irritantes porque não se deixam formular de maneira satisfatória à nossa inteligência e ao nosso modo lógico de pensar Elas não estão isoladas dentro da psicologia As dificuldades já começam com o fenômeno do afeto ou das emoções que foge a qualquer tentativa do psicólogo de traçarlhe os limites de um conceito mais preciso A causa da dificuldade é a mesma em ambos os casos é a intervenção do inconsciente Estou suficientemente familiarizado com o ponto de vista científico para entender que é sumamente desagradável ter de lidar com fatos que não conseguimos entender plenamente ou ao menos de modo satisfatório Em ambos os casos a dificuldade está em que nos vemos confrontados com fatos indiscutíveis mas que não podem ser expressos através de conceitos intelectuais Em lugar de particularidades observáveis e de características nitidamente distinguíveis é a própria vida que se manifesta em emoções e ideias simbólicas Em muitos casos elas são evidentemente as mesmas Não existe fórmula intelectual capaz de resolver esta tarefa impossível e expor satisfatoriamente algo tão complexo 571 O psicólogo acadêmico é perfeitamente livre em deixar de lado a emoção ou o inconsciente ou ambos mas a realidade persiste ao menos o psicólogo clínico deve darlhes muita atenção pois os conflitos emocionais e as interferências do inconsciente são características de sua ciência Ao tratar de um paciente ele será confrontado com tais coisas irracionais quer saiba formulálas intelectualmente quer não Ele deve reconhecer sua existência bastante incômoda Portanto é natural que alguém que não tenha sentido ou experimentado os fatos de que fala o psicólogo clínico possa não entender sua terminologia Quem não teve a oportunidade ou a infelicidade de passar por esta situação ou outra semelhante quase não está em condições de entender os fatos que começam a acontecer quando a psicologia deixa de ser uma ocupação de trabalho sereno e controlado e se torna uma verdadeira aventura da vida Tiro ao alvo num estande de tiro ainda não é uma batalha mas o médico tem que lidar com feridos numa verdadeira guerra Por isso tem que interessarse pelas realidades psíquicas mesmo que não consiga definilas com conceitos científicos Pode darlhes nomes mas sabe que os conceitos que usa para designar os fatores principais da vida real não pretendem ser mais do que nomes para fatos que devem ser experimentados em si porque não são reproduzíveis através de seus nomes Nomes são apenas palavras e palavras nunca equivalem aos fatos Nenhum manual pode ensinar verdadeiramente psicologia mas apenas a experiência real dos fatos Não basta aprender de cor palavras para obter algum conhecimento pois os símbolos são realidades vivas existenciais e não simples sinais de algo já conhecido 572 Na religião cristã a cruz é um símbolo muito significativo que exprime uma diversidade de aspectos representações e emoções mas uma cruz precedendo o nome de uma pessoa significa que ela já morreu O falo ou lingam serve na religião hindu de símbolo universal e mesmo que um garoto use um quadro desses para decorar um canto escuro isto significa simplesmente que tem interesse em seu pênis Na medida em que fantasias infantis e da adolescência penetram fundo na idade adulta ocorrem muitos sonhos que contêm indiscutíveis alusões sexuais Seria absurdo entendêlos de outra forma Mas quando um telhador fala de monges e freiras que devem ser colocados uns sobre os outros ou quando um serralheiro europeu fala de chaves masculinas e femininas seria absurdo supor que ele está se ocupando com fantasias de juventude Eles simplesmente pensam num tipo bem determinado de telhas ou chaves Esses objetos não são símbolos sexuais Apenas receberam nomes sugestivos Mas quando um hindu culto fala conosco sobre o lingam ouvimos coisas que jamais teríamos ligado ao pênis Inclusive é muito difícil adivinhar o que ele entende exatamente por este conceito e chegase à conclusão natural de que o lingam simboliza muitas coisas O lingam não é de forma alguma uma alusão obscena assim como a cruz não é apenas um sinal de morte mas também um símbolo para grande número de outras concepções Muito depende da maturidade do sonhador que produz tal quadro 573 A interpretação de sonhos e símbolos requer certa inteligência Não é possível mecanizála ou incutila em cabeças imbecis e sem fantasia Ela exige um conhecimento sempre maior da individualidade do sonhador bem como um autoconhecimento sempre maior por parte do intérprete Ninguém familiarizado com este campo negará que existem regras básicas que podem ser úteis mas devem ser usadas com cautela e inteligência Não é dado a todos dominar a técnica Podese seguir corretamente as regras andar pelo caminho seguro da ciência e assim mesmo incorrer no maior absurdo pelo fato de não ter levado em consideração um detalhe aparentemente sem importância que não teria escapado a uma inteligência mais aguçada Mesmo uma pessoa com inteligência altamente desenvolvida pode errar muito porque não aprendeu a usar sua intuição ou sentimento que podem inclusive estar num grau de desenvolvimento lastimavelmente baixo 574 Fato é que a tentativa de entender símbolos não se confronta só com o símbolo em si mas com a totalidade de um indivíduo que gera símbolos Se tivermos real aptidão podemos ter algum êxito Mas via de regra é necessário fazer um exame especial do indivíduo e de sua formação cultural Com isso podese aprender muita coisa e aproveitar a oportunidade de preencher as próprias lacunas culturais Tracei como norma para mim considerar todo caso como tarefa totalmente nova do qual não sei nada A rotina pode ser útil e de fato é enquanto estamos lidando com a superfície mas quando atingimos os problemas principais a própria vida toma o comando e então até as premissas teóricas mais brilhantes tornamse palavras ineficazes 575 Isto faz do ensino dos métodos e técnicas neste campo um grande problema Como falei acima o estudante precisa assimilar uma quantidade de conhecimentos específicos Isso lhe proporciona as ferramentas intelectuais necessárias mas o principal isto é o manejo delas ele só o aprende depois de submeterse a uma análise que lhe mostrará os seus próprios conflitos Para alguns indivíduos ditos normais mas sem fantasia isto pode ser uma tarefa penosa Eles são incapazes por exemplo de reconhecer o simples fato de que os acontecimentos psíquicos nos acometem espontaneamente Tais pessoas preferem aterse à ideia de que aquilo que sempre acontece é produzido por eles mesmos ou é patológico e deve ser curado por comprimidos ou injeções Esses casos mostram que a normalidade enfadonha está próxima da neurose Além do mais são também estas pessoas que mais rapidamente são vítimas de epidemias mentais 576 Em todos os graus mais elevados da ciência desempenha papel cada vez mais importante ao lado do puro intelecto e de sua formação e aplicabilidade a fantasia e a intuição Mesmo a física a mais estrita das ciências aplicadas depende em grau surpreendente da intuição que trabalha com a ajuda de processos inconscientes e conclusões não lógicas ainda que posteriormente se possa demonstrar que um processo lógico de pensar teria levado ao mesmo resultado 577 A intuição é quase indispensável na interpretação dos símbolos e pode trazer por parte do sonhador uma aceitação imediata Por mais convincente que seja subjetivamente essa feliz ideia é também perigosa pois pode conduzir alguém para um sentimento falso de certeza Pode até mesmo levar a que o intérprete e o sonhador transformem em costume esta forma de troca relativamente fácil o que pode terminar numa espécie de sonho comum O fundamento seguro de um conhecimento e compreensão intelectuais e morais genuínos se perde quando a gente se contenta com a vaga sensação de haver entendido Quando perguntamos a essas pessoas sobre as razões de sua assim chamada compreensão normalmente se verifica que não sabem dar nenhuma explicação Só podemos explicar e conhecer quando colocamos nossa intuição sobre a base segura de um conhecimento real dos fatos e de suas conexões lógicas Um pesquisador honesto há de concordar que isto não é possível em alguns casos pois seria desleal não levar em consideração tais casos Sendo o cientista uma simples pessoa humana é perfeitamente natural que odeie as coisas que não sabe explicar e caia na bemconhecida ilusão de que aquilo que hoje sabemos é o mais alto grau do conhecimento Nada é mais vulnerável e passageiro do que as teorias científicas que sempre são meros instrumentos e nunca verdades eternas Fonte OC 181 cap 6 560577 A cura da divisão 578 É sobretudo a psicologia clínica que se ocupa com o estudo dos símbolos por isso seu material consiste dos chamados símbolos naturais em oposição aos símbolos culturais Aqueles são derivados diretamente dos conteúdos inconscientes e apresentam por isso grande número de variantes de motivos individuais chamadas imagens arquetípicas Devem seu nome ao fato de poderem ser seguidas muitas vezes até suas raízes arcaicas isto é até documentos da mais antiga préhistória ou até às représentations collectives das sociedades primitivas A respeito disso gostaria de remeter o leitor a livros como o trabalho de Eliade sobre o xamanismo onde encontramos grande quantidade de exemplos esclarecedores 579 Os símbolos culturais ao contrário são os que expressam verdades eternas e ainda estão em uso em todas as religiões existentes Esses símbolos passaram por muitas transformações e por alguns processos maiores ou menores de aprimoramento tornandose assim as représentations collectives das sociedades civilizadas Conservaram em grande parte sua numinosidade original e funcionam como preconceitos no sentido positivo e negativo com os quais o psicólogo deve contar seriamente 580 Ninguém pode rejeitar essas coisas numinosas por motivos puramente racionais São partes importantes de nossa estrutura mental e não podem ser erradicadas sem uma grande perda pois participam como fatores vitais na construção da sociedade humana e isto desde tempos imemoriais Quando são reprimidas ou desprezadas sua energia específica desaparece no inconsciente com consequências imprevisíveis A energia aparentemente perdida revive e intensifica o que sempre está por cima no inconsciente isto é tendências que até então não tiveram oportunidade de manifestarse ou não puderam ter uma existência desinibida na consciência constituindo assim uma sombra sempre destrutiva Mesmo as tendências que poderiam exercer uma influência altamente benéfica transformamse em verdadeiros demônios quando são reprimidas Por isso muitas pessoas bem intencionadas têm razão em temer o inconsciente e também a psicologia 581 Nossa época demonstrou o que significa quando as portas do submundo psíquico são abertas Aconteceram coisas cuja monstruosidade não poderia ser imaginada pela inocência idílica da primeira década do nosso século O mundo foi revirado por elas e encontrase desde então num estado de esquizofrenia Não só a grande e civilizada Alemanha cuspiu seu primitivismo assustador mas também a Rússia foi por ele comandada e a África está em chamas Não admira que o mundo ocidental se sinta constrangido pois não sabe o quanto está implicado no submundo revolucionário e o que perdeu com a destruição do numinoso Perdeu seus valores espirituais normais em proporções desconhecidas e muito perigosas Sua tradição moral e espiritual foi ao diabo e deixou atrás de si uma desorientação e dissociação universais 582 Poderíamos ter aprendido há muito tempo do exemplo das sociedades primitivas o que significa a perda do numinoso elas perdem sua razão de ser o sentido de sua vida sua organização social e então se dissolvem e decaem Encontramonos agora na mesma situação Perdemos algo que nunca chegamos a entender direito Não podemos eximir nossos dirigentes espirituais da acusação de que estavam mais interessados em proteger sua organização do que em entender o mistério que o ser humano apresentava em seus símbolos A fé não exclui a razão na qual reside a maior força do ser humano Nossa fé teme a ciência e também a psicologia e desvia o olhar da realidade fundamental do numinoso que sempre guia o destino dos homens 583 As massas e seus líderes não reconhecem que há uma diferença essencial se tratamos o princípio universal de forma masculina e pai ou de forma feminina e mãe pai espírito mãe matéria É de somenos importância porque sabemos tão pouco de um quanto de outro Desde os inícios da mente humana ambos eram símbolos numinosos e sua importância estava em sua numinosidade e não em seu sexo ou em outros atributos casuais Tiramos de todas as coisas seu mistério e sua numinosidade e nada mais é sagrado Mas como a energia nunca desaparece também a energia emocional que se manifesta nos fenômenos numinosos não deixa de existir quando ela desaparece do mundo da consciência Como já afirmei ela reaparece em manifestações inconscientes em fatos simbólicos que compensam certos distúrbios da psique consciente Nossa psique está profundamente conturbada pela perda dos valores morais e espirituais Sofre de desorientação confusão e medo porque perdeu suas idées forces dominantes e que até agora mantiveram em ordem nossa vida Nossa consciência já não é capaz de integrar o afluxo natural dos epifenômenos instintivos que sustentam nossa atividade psíquica consciente Isto já não é possível como antigamente porque a própria consciência se privou dos órgãos pelos quais poderiam ser integradas as contribuições auxiliares dos instintos e do inconsciente Esses órgãos eram os símbolos numinosos considerados sagrados pelo consenso comum isto é pela fé 584 Um conceito como matéria física despido de sua conotação numinosa de Grande Mãe já não expressa o forte sentido emocional da Mãe Terra É um simples termo intelectual seco qual pó e totalmente inumano Da mesma forma o espírito identificado com o intelecto cessa de ser o Pai de tudo e degenera para a compreensão limitada das pessoas E a poderosa quantidade de energia emocional expressa na imagem de nosso Pai desaparece nas areias de um deserto intelectual 585 Por causa da mentalidade científica nosso mundo se desumanizou O homem está isolado no cosmos Já não está envolvido na natureza e perdeu sua participação emocional nos acontecimentos naturais que até então tinham um sentido simbólico para ele O trovão já não é a voz de Deus nem o raio seu projétil vingador Nenhum rio contém qualquer espírito nenhuma árvore significa uma vida humana nenhuma cobra incorpora a sabedoria e nenhuma montanha é ainda habitada por um grande demônio Também as coisas já não falam conosco nem nós com elas como as pedras fontes plantas e animais Já não temos uma alma da selva que nos identifica com algum animal selvagem Nossa comunicação direta com a natureza desapareceu no inconsciente junto com a fantástica energia emocional a ela ligada 586 Esta perda enorme é compensada pelos símbolos de nossos sonhos Eles trazem novamente à tona nossa natureza primitiva com seus instintos e modos próprios de pensar Infelizmente poderíamos dizer expressam seus conteúdos na linguagem da natureza que nos parece estranha e incompreensível Isto nos coloca a tarefa incomum de traduzir seu vocabulário para os conceitos e categorias racionais e compreensíveis de nossa linguagem atual que conseguiu libertarse de sua escória primitiva isto é de sua participação mística com as coisas Falar de espíritos e de outras figuras numinosas já não significa invocálos Já não acreditamos em fórmulas mágicas Já não restaram muitos tabus e restrições semelhantes Nosso mundo parece ter sido desinfetado de todos esses numes supersticiosos como bruxas feiticeiros e duendes para não falar de lobisomens vampiros almas da floresta e de todas as outras entidades estranhas e bizarras que povoam as matas virgens 587 Ao menos a superfície de nosso mundo parece estar purificada de toda superstição e componentes irracionais Outra questão é se o mundo realmente humano e não nossa ficção desejosa dele também está livre de todo primitivismo O número 13 não é ainda para muitas pessoas um tabu Não existem ainda muitos indivíduos tomados por estranhos preconceitos projeções e ilusões infantis Um quadro realista revela muitos traços e restos primitivos que ainda desempenham um papel como se nada tivesse acontecido nos últimos quinhentos anos O homem de hoje é realmente uma mistura curiosa de características que pertencem aos longos milênios de seu desenvolvimento mental Este é o ser humano com cujos símbolos temos que lidar e quando nos confrontamos com ele temos que examinar cuidadosamente seus produtos mentais Pontos de vista céticos e convicções científicas existem lado a lado com preconceitos ultrapassados modos de pensar e sentir superados interpretações erradas mas teimosas e ignorância cega 588 Assim são as pessoas que produzem os símbolos que examinamos em seus sonhos Para explicar os símbolos e seu significado é necessário descobrir se as representações a eles ligadas são as mesmas de sempre ou se foram escolhidas pelo sonho para seu objetivo determinado a partir de um estoque geral de conhecimentos conscientes Quando por exemplo estudamos um sonho onde aparece o número 13 surge a pergunta Será que o sonhador acredita habitualmente na natureza desfavorável desse número ou o sonho só alude a pessoas que ainda se entregam a tais superstições A resposta a esta pergunta é de grande importância para a interpretação No primeiro caso temos que contar com o fato de que o indivíduo ainda acredita no azar do número 13 sentindose portanto desconfortável num quarto número 13 ou à mesa com 13 pessoas No segundo caso o número 13 nada mais significa do que uma observação crítica ou desprezível No primeiro caso tratase de uma representação ainda numinosa no segundo está desprovido de sua emotividade original e assumiu o caráter inofensivo de um mensageiro indiferente 589 Pretendi demonstrar com isso como se apresentam os arquétipos na experiência prática No primeiro caso aparecem em sua forma original isto é são imagens e ao mesmo tempo emoções Só podemos falar de um arquétipo quando estão presentes esses dois aspectos ao mesmo tempo Estando presente apenas uma imagem ela é tão somente uma imagem de palavra como um corpúsculo sem carga elétrica Ela é por assim dizer inerte mera palavra e nada mais Mas se a imagem estiver carregada de numinosidade isto é de energia psíquica então ela é dinâmica e produzirá consequências Por isso é grande erro em todos os casos práticos tratar um arquétipo como simples nome palavra ou conceito E muito mais do que isso é um pedaço de vida enquanto é uma imagem que está ligada a um indivíduo vivo por meio da ponte do sentimento É um erro bastante difundido considerar os arquétipos como conceitos ou palavras e não ver que o arquétipo é ambas as coisas uma imagem e uma emoção A palavra sozinha é mera abstração uma moeda circulante no comércio intelectual Mas o arquétipo é algo vivo por assim dizer Ele não é cambiável ilimitadamente mas pertence sempre à economia psíquica do indivíduo vivo do qual não pode ser separado e usado arbitrariamente para outros fins Não pode ser explicado de qualquer forma apenas da forma indicada pelo respectivo indivíduo O símbolo da cruz por exemplo só pode ser interpretado no caso de um bom cristão de maneira cristã a não ser que o sonho traga razões bem fortes em contrário mas ainda assim é bom não perder de vista o sentido cristão Quando se tira das imagens arquetípicas sua carga emocional específica a vida foge delas e elas se tornam meras palavras E então é possível vinculálas a outras representações mitológicas e ao final ainda mostrar que tudo significa tudo Todos os cadáveres deste mundo são quimicamente iguais mas as pessoas vivas não o são 590 O simples uso de palavras é fértil quando não se sabe para que servem Isto vale principalmente para a psicologia onde se fala de arquétipos como anima e animus o velho sábio a grande mãe etc Podese conhecer todos os santos sábios profetas e outros homens de Deus e todas as grandes mães do mundo mas se permanecerem simples imagens cuja numinosidade nunca experimentamos é como falar em sonho pois não se sabe o que se está falando As palavras que empregamos são vazias e inúteis Elas só despertam para um sentido e para a vida quando tentamos experimentar sua numinosidade isto é sua relação com o indivíduo vivo Só então começamos a perceber que os nomes significam muito pouco mas a maneira como estão relacionados a alguém isto é de importância decisiva 591 A função geradora de símbolos de nossos sonhos é uma tentativa de trazer nossa mente original de volta à consciência onde ela nunca esteve antes e nunca se submeteu a uma autorreflexão crítica Nós fomos esta mente mas nunca a conhecemos Nós nos livramos dela antes mesmo de a compreendermos Ela brotou de seu berço e raspou suas características primitivas como se fossem cascas incômodas e inúteis Parece até que o inconsciente representou o depósito desses restos Os sonhos e seus símbolos referemse constantemente a eles como se pretendessem trazer de volta todas as coisas velhas e primitivas das quais a mente se livrou durante o curso de sua evolução ilusões fantasias infantis formas arcaicas de pensar e instintos primitivos Este é na verdade o caso e ele explica a resistência até mesmo o horror e medo de que alguém é tomado quando se aproxima dos conteúdos inconscientes Aqui a gente se choca menos com a primitividade do que com a emotividade dos conteúdos Este é realmente o fator perturbador esses conteúdos não são apenas neutros ou indiferentes mas são carregados de tal emoção que são mais do que simplesmente incômodos Produzem até mesmo pânico e quanto mais reprimidos forem mais perpassam toda a personalidade na forma de uma neurose 592 É sua carga emocional que lhes dá uma importância decisiva É como uma pessoa que tendo passado uma fase de sua vida em estado inconsciente de repente reconhece que existe uma lacuna em sua memória que se estende por um período onde aconteceram coisas importantes das quais não consegue lembrarse Admitindo que a psique é um assunto exclusivamente pessoal e esta é a suposição usual tentará reconduzir para a memória as recordações infantis aparentemente perdidas Mas as lacunas de memória em sua infância são meros sintomas de uma perda bem maior isto é a perda da psique primitiva a psique que teve funções vivas antes que fosse pensada pela consciência Assim como na evolução do corpo embrionário se repete sua préhistória também a mente humana percorre uma série de degraus préhistóricos em seu processo de maturação 593 Os sonhos parecem considerar sua tarefa principal trazer de volta uma espécie de recordação do mundo infantil e do mundo préhistórico até ao nível mais baixo dos instintos bem primitivos como se esta recordação fosse um tesouro valioso Estas recordações podem de fato ter um notável efeito curador em certos casos como Freud o notara há muito tempo Esta observação confirma o ponto de vista de que uma lacuna infantil na memória uma dita amnésia representa de fato uma perda e que a recuperação da memória significa um certo aumento de vitalidade e bemestar Uma vez que medimos a vida psíquica da criança pela escassez e simplicidade de seus conteúdos da consciência desconsideramos as grandes complicações da mente infantil que provêm de sua identidade original com a psique pré histórica Esta mente original está tão presente e atuante na criança quanto os graus de evolução no corpo embrionário Se o leitor se lembrar do que eu disse sobre os sonhos da criança acima referida terá uma boa ideia do que pretendo dizer 594 Na amnésia infantil encontramos uma mistura estranha de fragmentos mitológicos que muitas vezes aparecem também em psicoses posteriores Estas imagens são numinosas em alto grau e portanto de grande importância Quando essas recordações aparecem novamente na idade adulta podem causar as mais fortes emoções ou trazer curas admiráveis ou uma conversão religiosa Muitas vezes trazem de volta um pedaço da vida que faltou por muito tempo e que dá plenitude à vida humana 595 Trazer à tona lembranças infantis e modos arquetípicos da função psíquica produz um alargamento do horizonte da consciência supondose que a pessoa consiga assimilar e integrar os conteúdos perdidos e reencontrados Não sendo eles neutros sua assimilação vai provocar uma modificação em nossa personalidade assim como eles mesmos vão sofrer certas alterações necessárias Nesta fase do processo de individuação a interpretação dos símbolos tem um papel prático muito grande pois os símbolos são tentativas naturais de lançar uma ponte sobre o abismo muitas vezes profundo entre os opostos e de equilibrar as diferenças que se manifestam na natureza contraditória de muitos símbolos Seria um erro particularmente funesto nesse trabalho de assimilação se o intérprete considerasse apenas as recordações conscientes como verdadeiras e reais e relegasse os conteúdos arquetípicos como simples representações da fantasia Apesar de seu caráter fantasioso eles representam forças emocionais ou numinosidades Se tentarmos colocálos de lado haveremos de reprimilos e reconstituir o estado neurótico anterior O numinoso confere aos conteúdos um caráter autônomo Isto é um fato psicológico que não se pode negar Se apesar de tudo for negado seriam anulados os conteúdos reconquistados e toda tentativa de síntese seria em vão Como isso parece uma saída cômoda é muitas vezes escolhida 596 Não se nega apenas a existência dos arquétipos mas inclusive as pessoas que admitem sua existência os tratam normalmente como se fossem imagens e esquecem completamente que eles são entidades vivas que perfazem uma grande parte da psique humana Assim que o intérprete se livra de forma ilegítima do numinoso começa o processo de uma infindável substituição isto é passase sem empecilho de arquétipo para arquétipo tudo significando tudo e o processo todo foi levado ao absurdo É verdade que as formas dos arquétipos são intercambiáveis em proporção considerável mas a numinosidade deles é e permanece um fato Ela possui o valor de um acontecimento arquetípico O intérprete deve ter presente esse valor emocional e leválo em conta durante todo o processo intelectual de interpretação O risco de perdêlo é grande porque a oposição entre pensar e sentir é tão considerável que o pensar facilmente destrói valores do sentir e viceversa A psicologia é a única ciência que leva em consideração o fator de valor isto é o sentir pois é o elo entre os acontecimentos psíquicos por um lado e o sentido e a vida por outro lado 597 Nosso intelecto criou um novo mundo que domina a natureza e a povoa com máquinas monstruosas que se tornaram tão úteis e imprescindíveis que não vemos possibilidade de nos livrarmos delas ou de escaparmos de nossa subserviência odiosa a elas O homem nada mais pode do que levar adiante a exploração de seu espírito científico e inventivo e admirarse de suas brilhantes realizações mesmo que aos poucos tenha de reconhecer que seu gênio apresenta uma tendência terrível de inventar coisas cada vez mais perigosas porque são meios sempre mais eficazes para o suicídio coletivo Considerando a avalanche da população mundial em rápido crescimento procuramse meios e saídas para deter a torrente Mas a natureza poderia anteciparse a todas as nossas tentativas voltando contra o homem seu próprio espírito criativo cuja inspiração ele deve seguir pelo acionamento da bomba H ou de outra invenção igualmente catastrófica que poria um fim à superpopulação Apesar de nosso domínio orgulhoso da natureza ainda somos vítimas dela tanto quanto sempre o fomos e não aprendemos a controlar nossa própria natureza que devagar mas inevitavelmente contribui para a catástrofe 598 Não há mais deuses que pudéssemos invocar em auxílio As grandes religiões sofrem no mundo todo de crescente anemia porque os numes prestativos fugiram das matas rios montanhas e animais e os homensdeuses sumiram no submundo isto é no inconsciente E supomos que lá eles levem uma existência ignominiosa entre os restos de nosso passado enquanto nós continuamos dominados pela grande Déesse Raison que é nossa ilusão dominadora Com sua ajuda fazemos coisas louváveis por exemplo livramos da malária o mundo difundimos em toda parte a higiene com o resultado de que povos subdesenvolvidos aumentem em tal proporção que surgem problemas de alimentação Nós vencemos a natureza é apenas um slogan A chamada vitória sobre a natureza nos subjuga com o fato muito natural da superpopulação e faz com que nossas dificuldades se tornem mais ou menos insuperáveis devido à nossa incapacidade de chegar aos acordos políticos necessários Faz parte da natureza humana brigar lutar e tentar uma superioridade sobre os outros Até que ponto portanto vencemos a natureza 599 Como é necessário que toda transformação tenha início num determinado tempo e lugar será o indivíduo singular que a fará e a levará a término A transformação começa num indivíduo que talvez possa ser eu mesmo Ninguém pode darse o luxo de esperar que outro faça aquilo que ele só faria de mau grado Uma vez que ninguém sabe do que é capaz deveria ter a coragem de perguntar a si mesmo se por acaso o seu inconsciente não pode colaborar com algo de útil quando não há à disposição nenhuma resposta consciente que satisfaça As pessoas de hoje estão pesarosamente cientes de que nem as grandes religiões nem suas inúmeras filosofias parecem fornecerlhes aquelas ideias poderosas que lhes dariam a base confiável e segura de que necessitam diante da situação atual do mundo 600 Sei que os budistas diriam e realmente o dizem se as pessoas seguissem pelo menos o nobre caminho óctuplo do Dharma doutrina lei e tivessem uma visão verdadeira do simesmo ou os cristãos se as pessoas tivessem ao menos a verdadeira fé no Senhor ou os racionalistas se as pessoas fossem ao menos inteligentes e razoáveis então seria possível superar e resolver todos os problemas A dificuldade está em que não podem superar nem resolver esses problemas nem são capazes de ser razoáveis Os cristãos se perguntam por que Deus não fala com eles como parece ter feito outrora Quando ouço esse tipo de pergunta penso sempre naquele Rabi que quando perguntado por que Deus se mostrava nos tempos antigos e agora ninguém mais o via respondeu Hoje em dia já não existe ninguém que pudesse inclinarse tão profundamente diante dele 601 Esta resposta acerta em cheio a questão Estamos tão enrolados e sufocados em nossa consciência subjetiva que esquecemos o fato antiquíssimo de que Deus fala sobretudo através de sonhos e visões O budista rejeita o mundo das fantasias inconscientes como ilusões sem valor o cristão coloca sua Igreja e sua Bíblia entre ele e seu inconsciente e o intelectual racional não sabe ainda que sua consciência não é sua psique total e isto apesar de o inconsciente ter sido por mais de setenta anos ao menos um conceito científico indispensável para todo pesquisador sério de psicologia 602 Já não podemos ter a pretensão de julgar à semelhança de Deus sobre o valor e desvalor dos fenômenos naturais Não podemos basear nossa botânica numa classificação de plantas úteis e inúteis nem nossa zoologia numa classificação de animais inofensivos e perigosos Mas pressupomos ainda tacitamente que a consciência tem sentido e o inconsciente não o tem é como se estivéssemos tentando saber se os fenômenos naturais têm sentido Os micróbios têm sentido ou não Tais avaliações mostram simplesmente o estado lamentável de nossa mente que esconde sua ignorância e incompetência sob o manto da megalomania É certo que os micróbios são muito pequenos e em grande parte desprezíveis e detestáveis mas seria tolice não saber nada sobre eles 603 Qualquer que seja a constituição do inconsciente é um fenômeno natural que gera símbolos e estes mostram ter sentido Assim como não se pode esperar de alguém que nunca olhou através de um microscópio que seja uma autoridade no campo da microbiologia também não podemos considerar como juiz competente no assunto aquele que nunca fez um estudo sério dos símbolos naturais Mas a subestima geral da psique humana é tão grande que nem as grandes religiões nem as filosofias e nem o racionalismo científico lhe dão qualquer atenção Ainda que a Igreja Católica admita a ocorrência de sonhos enviados por Deus somnia a Deo missa a maioria de seus pensadores não faz nenhuma tentativa de entendêlos Duvido que haja algum tratado protestante sobre temas dogmáticos que descesse tanto a ponto de considerar que a vox Dei pudesse ser ouvida nos sonhos Se alguém acredita de fato em Deus qual a autoridade que tem para dizer que Deus é incapaz de falar por meio de sonhos Onde estão aqueles que realmente se dão ao trabalho de interrogar os seus sonhos ou de experimentar uma série de fatos fundamentais sobre os sonhos e seus símbolos 604 Passei mais de meio século pesquisando os símbolos naturais e cheguei à conclusão de que os sonhos e seus símbolos não são nenhum absurdo estúpido Ao contrário eles fornecem informações muito interessantes basta esforçarnos para entender os símbolos É verdade que os resultados pouco têm a ver com compra e venda ou seja com os nossos interesses terrenos Mas o sentido de nossa vida não se esgota em nossas atividades comerciais nem os anseios da alma humana são saciados pela conta bancária mesmo que nunca tenhamos ouvido falar de outra coisa 605 Numa época em que toda a energia disponível é empregada na pesquisa da natureza pouca atenção se dá ao essencial do ser humano isto é à sua psique ainda que haja muitas pesquisas sobre suas funções conscientes Mas sua parte realmente desconhecida que produz os símbolos continua sendo terra desconhecida E mesmo assim ela nos envia toda noite seus sinais A decifração dessas mensagens parece ser um trabalho odioso e poucas pessoas do mundo civilizado dela se ocupam Pouco tempo é dedicado ao principal instrumento da pessoa humana isto é sua psique quando não é desprezada e considerada suspeita É apenas psicológico significa não é nada 606 Não sei exatamente donde provém esse preconceito monstruoso Estamos tão ocupados com a questão o que pensamos que esquecemos completamente de refletir sobre o que a psique inconsciente pensa dentro e a respeito de nós Freud fez uma séria tentativa de mostrar por que o inconsciente não merece um melhor julgamento e sua teoria aumentou e fortificou sem querer o desprezo já existente pela psique Se até então ela foi apenas desconsiderada e negligenciada tornouse agora um buraco de lixo moral do qual se tem um medo indizível 607 Este ponto de vista moderno é sem dúvida unilateral e injusto Não corresponde à verdade dos fatos Nosso real conhecimento do inconsciente mostra que ele é um fenômeno natural e que tanto quanto a própria natureza é no mínimo neutro Ele abrange todos os aspectos da natureza humana luz e escuridão beleza e feiura bem e mal o profundo e o insensato O estudo do simbolismo individual bem como do coletivo é uma tarefa enorme que ainda não foi realizada mas que finalmente foi iniciada Os resultados obtidos até agora são animadores e parecem conter uma resposta às muitas perguntas da humanidade atual Fonte OC 181 cap 67 578 607 III PSICOTERAPIA E RELIGIÃO O problema da cura é um problema religioso OC 116 523 A Psiconeurose em última instância é um sofrimento de uma alma que não encontrou o seu sentido OC 116 497 Introdução à problemática da psicologia religiosa da alquimia Calamum quassatum non conteret et linum fumigans non extinguet Is 423 Ele não quebrará o caniço rachado e não apagará a mecha fumegante 1 Quem já estiver familiarizado com a psicologia dos complexos não terá necessidade alguma destas observações à guisa de introdução às investigações aqui apresentadas Creio no entanto que o leitor leigo e despreparado precisa deste esclarecimento inicial O conceito de processo de individuação por um lado e a alquimia por outro parecem muito distantes entre si e é quase impossível para a imaginação conceber uma ponte que os ligue A este tipo de leitor devo os esclarecimentos que se seguem mesmo porque no momento em que minhas conferências foram publicadas constatei uma certa perplexidade por parte de meus críticos 2 O que tenho a dizer acerca da natureza da alma está baseado em primeiro lugar em observações feitas sobre o homem Os argumentos contra tais observações levantavam o problema de que elas se referiam a experiências quase inacessíveis e até então desconhecidas É um fato curioso constatar a frequência com que todos até os menos aptos acham que sabem tudo sobre psicologia como se a psique fosse um domínio acessível ao conhecimento geral No entanto todo verdadeiro conhecedor da alma humana concordará comigo se eu disser que ela pertence às regiões mais obscuras e misteriosas da nossa experiência Nunca se sabe o bastante neste domínio Na minha atividade prática não passa um só dia sem que eu me defronte com algo de novo e inesperado É verdade que as minhas experiências não fazem parte das banalidades da vida cotidiana mas elas estão ao alcance de todos os psicoterapeutas que se ocupam deste campo particular Acho pois impertinente a acusação que me fazem no tocante ao caráter desconhecido das experiências por mim comunicadas Não me sinto responsável pela insuficiência dos leigos em matéria de psicologia 3 No processo analítico isto é no confronto dialético do consciente e do inconsciente constatase um desenvolvimento um progresso em direção a uma certa meta ou fim cuja natureza enigmática me ocupou durante anos a fio Os tratamentos psíquicos podem chegar a um fim em todos os estágios possíveis do desenvolvimento sem que por isso se tenha o sentimento de ter alcançado uma meta Certas soluções típicas e temporárias ocorrem 1 depois que o indivíduo recebeu um bom conselho 2 depois de uma confissão mais ou menos completa porém suficiente 3 depois de haver reconhecido um conteúdo essencial até então inconsciente cuja conscientização imprime um novo impulso à sua vida e às suas atividades 4 depois de libertarse da psique infantil após um longo trabalho efetuado 5 depois de conseguir uma nova adaptação racional a condições de vida talvez difíceis ou incomuns 6 depois do desaparecimento de sintomas dolorosos 7 depois de uma mudança positiva do destino tais como exames noivado casamento divórcio mudança de profissão etc 8 depois da redescoberta de pertencer a uma crença religiosa ou de uma conversão 9 depois de começar a erigir uma filosofia de vida filosofia no antigo sentido da palavra 4 Se bem que a esta enumeração possam ser introduzidas diversas modificações ela define de um modo geral as principais situações em que o processo analítico ou psicoterapêutico chega a um fim provisório ou às vezes definitivo A experiência porém mostra que há um número relativamente grande de pacientes para os quais a conclusão aparente do trabalho junto ao médico não significa de modo algum o fim do processo analítico Pelo contrário o confronto com o inconsciente continua do mesmo modo que no caso daqueles que não interromperam o trabalho junto ao médico Ocasionalmente ao encontrarmos tais pacientes anos depois não é raro que contem histórias interessantes de suas transformações posteriores ao tratamento Essas ocorrências fortaleceram inicialmente minha hipótese de que há na alma um processo que tende para um fim independentemente das condições exteriores essas mesmas ocorrências libertaramme da preocupação que eu pudesse ser a causa única de um processo psíquico inautêntico e portanto contrário à natureza Esse receio não era descabido uma vez que certos pacientes não são levados ao desfecho do trabalho analítico por nenhum dos argumentos mencionados nas nove categorias nem mesmo por uma conversão religiosa e nem pela mais espetacular liberação dos sintomas neuróticos Foram precisamente casos desta natureza que me convenceram de que o tratamento das neuroses se abre para um problema bem mais amplo além do campo exclusivamente médico e diante do qual a ciência médica é de todo insatisfatória 5 Lembrando os primórdios da análise há cerca de cinquenta anos com suas concepções pseudobiológicas e sua depreciação do processo de desenvolvimento anímico podemos constatar que ainda hoje se considera a persistência no trabalho analítico como fuga à vida transferência não resolvida autoerotismo etc No entanto como todas as coisas comportam dois pontos de vista uma apreciação negativa desse ficar pendente no sentido da vida só seria legítima se fosse provado que nada de positivo subjaz a ele A impaciência do médico aliás muito compreensível nada prova por si mesma E é preciso não esquecer que foi através da paciência indizível dos pesquisadores que a nova ciência conseguiu erigir um conhecimento mais profundo da natureza da alma certos resultados terapêuticos inesperados foram obtidos graças à perseverança abnegada do médico As opiniões negativas e injustificadas são levianas e às vezes também perniciosas não passando de um disfarce da ignorância ou melhor sendo uma tentativa de esquivarse à responsabilidade e ao confronto incondicional O trabalho analítico conduzirá mais cedo ou mais tarde ao confronto inevitável entre o eu e o tu e o tu e o eu muito além de qualquer pretexto humano assim pois é provável e mesmo necessário que tanto o paciente quanto o médico sintam o problema na própria pele Ninguém mexe com fogo ou veneno sem ser atingido em algum ponto vulnerável assim o verdadeiro médico não é aquele que fica ao lado mas sim dentro do processo 6 Tanto para o médico como para o paciente o ficar pendente ou a dependência pode tornarse algo indesejável incompreensível e até mesmo insuportável sem que isso signifique algo de negativo para a vida Pelo contrário pode até ser uma dependência um ficar pendente de caráter positivo se por um lado parece um obstáculo aparentemente insuperável por outro representa uma situação única exigindo um esforço máximo que compromete o homem total Podemos então dizer que de fato enquanto o paciente estiver firme e inconscientemente à procura da solução de um problema insolúvel a arte ou a técnica do médico consiste em fazer o possível para ajudálo nessa busca Ars totum requirit hominem a Arte requer o homem inteiro exclama um velho alquimista Justamente é este homo totus que se procura O esforço do médico bem como a busca do paciente perseguem esse homem total oculto e ainda não manifesto que é também o homem mais amplo e futuro No entanto o caminho correto que leva à totalidade é infelizmente feito de desvios e extravios do destino Tratase da longissima via que não é uma reta mas uma linha que serpenteia unindo os opostos à maneira do caduceu senda cujos meandros labirínticos não nos poupam do terror Nesta via ocorrem as experiências que se consideram de difícil acesso Poderíamos dizer que elas são inacessíveis por serem dispendiosas uma vez que exigem de nós o que mais tememos isto é a totalidade Aliás falamos constantemente sobre ela sua teorização é interminável mas a evitamos na vida real 1 Preferese geralmente cultivar a psicologia de compartimentos onde uma gaveta nada sabe do que a outra contém 7 Receio que a responsabilidade por este estado de coisas não deva ser apenas atribuída à inconsciência e impotência do indivíduo mas também à educação anímica geral do homem europeu Esta não depende só da competência das religiões dominantes mas também deriva da natureza delas somente as religiões ultrapassam os sistemas racionalistas referindo se tanto ao homem exterior quanto ao homem interior Podemos acusar o cristianismo de retrógrado a fim de desculpar nossas próprias falhas Não pretendo porém cometer o erro de atribuir à religião algo que em primeiro lugar é devido à incompetência humana Assim pois não me refiro a uma compreensão melhor e mais profunda do cristianismo mas a uma superficialidade e a um equívoco evidentes para todos nós A exigência da imitatio Christi isto é a exigência de seguir seu modelo tornandonos semelhantes a ele deveria conduzir o homem interior ao seu pleno desenvolvimento e exaltação Mas o fiel de mentalidade superficial e formalística transforma esse modelo num objeto externo de culto a veneração desse objeto o impede de atingir as profundezas da alma a fim de transformála naquela totalidade que corresponde ao modelo Dessa forma o mediador divino permanece do lado de fora como uma imagem enquanto o homem continua fragmentário intocado em sua natureza mais profunda Pois bem Cristo pode ser imitado até o ponto extremo da estigmatização sem que seu imitador chegue nem de longe ao modelo e seu significado Não se trata de uma simples imitação que não transforma o homem representando assim um mero artifício Pelo contrário tratase de realizar o modelo segundo os meios próprios de cada um Deo concedente na esfera da vida individual Em todo o caso não esqueçamos que uma imitação inautêntica supõe às vezes um tremendo esforço moral neste caso apesar da meta não ser atingida há o mérito da entrega total a um valor supremo embora este permaneça externo Não é impossível que pelo mérito do esforço total a pessoa possa ter o pressentimento de sua totalidade mediante o sentimento da graça peculiar a este tipo de vivência 8 A concepção inadequada da imitatio Christi apenas exterior é reforçada pelo preconceito europeu que distingue a atitude ocidental da oriental O homem ocidental sucumbe ao feitiço das dez mil coisas distingue o particular uma vez que está preso ao eu e ao objeto permanecendo insconsciente no que diz respeito às raízes profundas de todo o ser Inversamente o homem oriental vivencia o mundo das coisas particulares e o seu próprio eu como um sonho pelo fato de seu ser encontrarse enraizado no fundamento originário este o atrai de forma tão poderosa que relativiza sua relação com o mundo de um modo muitas vezes incompreensível para nós A atitude ocidental que dá ênfase ao objeto tende a relegar o modelo de Cristo a seu aspecto objetal roubandolhe a misteriosa relação com o homem interior Este preconceito faz com que por exemplo os exegetas protestantes interpretem ἐντὸζ ὑμῶν referindose ao Reino de Deus como entre vós e não dentro de vós Nada pretendo dizer sobre a validade da atitude ocidental já que estamos mais do que persuadidos de sua problematicidade Se nos confrontarmos porém com o homem oriental o que é tarefa do psicólogo tal confronto suscita dúvidas difíceis de serem resolvidas Quem tiver a pretensão de resolver essa questão cometerá uma violência pois mesmo sem saber estará se arrogando a ser um arbiter mundi No que me concerne prefiro o dom precioso da dúvida uma vez que esta não lesa a virgindade dos fenômenos incomensuráveis 9 Cristo enquanto modelo carregou os pecados do mundo Ora quando o modelo permanece totalmente exterior o mesmo se dá com os pecados do indivíduo o qual se torna mais fragmentário do que nunca o equívoco superficial em que incorre lhe abre o caminho fácil de jogar literalmente sobre Cristo seus pecados a fim de escapar a uma responsabilidade mais profunda e isto contradiz o espírito do cristianismo Esse formalismo e afrouxamento foram a causa da Reforma mas são também inerentes ao protestantismo No caso do valor supremo Cristo e o maior desvalor o pecado permanecerem do lado de fora a alma ficará esvaziada faltarlheá o mais baixo e o mais alto A atitude oriental principalmente a hindu representa o contrário dessa atitude o mais alto e o mais baixo estão dentro do sujeito transcendental Por este motivo o significado do atman do simesmo é elevado além de todos os limites No homem ocidental no entanto o valor do simesmo desce até o grau zero Isto explica a desvalorização generalizada da alma no Ocidente Quem quer que fale de realidade da alma será censurado por seu psicologismo e quando se fala em psicologia é neste tom é apenas psicológico A ideia de que há fatores psíquicos equivalentes a figuras divinas determina a desvalorização destas últimas É quase uma blasfêmia pensar que uma vivência religiosa possa ser um processo psíquico é então introduzido o argumento de que tal vivência não é apenas psicológica O psíquico é só natureza e por isso se pensa comumente que nada de religioso pode provir dele Tais críticos não hesitam no entanto em fazer todas as religiões derivarem da natureza da alma excetuando a que professam Julgo significativo o fato de que duas resenhas teológicas de meu livro Psicologia e religião uma católica e outra protestante silenciaram deliberadamente minha demonstração da origem psíquica dos fenômenos religiosos 10 Em face disto deverseia perguntar donde procede toda essa informação acerca da alma que permite dizer apenas anímico Pois é assim que fala e pensa o homem ocidental cuja alma pelo visto de nada vale Se tivesse valor falarseia dela com mais respeito Como não é este o caso concluise que não se dá nenhum valor a ela Isto não ocorre sempre e necessariamente em toda parte mas só quando não se põe nada dentro da alma deixando Deus do lado de fora Um pouco mais de Meister Eckhart não faria mal a ninguém 11 Uma projeção exclusivamente religiosa pode privar a alma de seus valores tornála incapaz de prosseguir em seu desenvolvimento por inanição retendoa num estado inconsciente Ela pode também cair vítima da ilusão de que a causa de todo o mal provém de fora sem que lhe ocorra indagar como e em que medida ela mesma contribui para isso A alma parece assim tão insignificante a ponto de ser considerada incapaz do mal e muito menos do bem Entretanto se a alma não desempenha papel algum a vida religiosa se congela em pura exterioridade e formalismo Como quer que imaginemos a relação entre Deus e a alma uma coisa é certa é impossível considerar a alma como nada mais do que Pelo contrário ela possui a dignidade de um ser que tem o dom da relação consciente com a divindade Mesmo que se tratasse apenas da relação de uma gota de água com o mar este último deixaria de existir sem a pluralidade das gotas A afirmação dogmática da imortalidade da alma a eleva acima da mortalidade do homem corporal fazendoa partícipe de uma qualidade sobrenatural Deste modo ela ultrapassa muito em significado ao homem mortal consciente e portanto seria vedado ao cristão considerar a alma como um nada mais do que 2 Assim como o olho corresponde ao sol a alma corresponde a Deus E pelo fato de nossa consciência não ser capaz de apreender a alma é ridículo falar acerca da mesma em tom condescendente ou depreciativo O próprio cristão que tem fé não conhece os caminhos secretos de Deus e deve permitir que este decida se quer agir sobre ele a partir de fora ou internamente através da alma O fiel não pode contestar o fato de que há somnia a Deo missa sonhos enviados por Deus e iluminações da alma impossíveis de serem remetidas a causas externas Seria uma blasfêmia afirmar que Deus pode manifestarse em toda a parte menos na alma humana Ora a intimidade da relação entre Deus e a alma exclui de antemão toda e qualquer depreciação desta última 3 Seria talvez excessivo falar de uma relação de parentesco mas de qualquer modo deve haver na alma uma possibilidade de relação isto é forçosamente ela deve ter em si algo que corresponda ao ser de Deus pois de outra forma jamais se estabeleceria uma conexão entre ambos 4 Esta correspondência formulada psicologicamente é o arquétipo da imagem de Deus 12 Todo arquétipo é capaz de uma diferenciação e de um desenvolvimento infinitos Daí o fato de poder ser mais ou menos desenvolvido Numa forma exterior de religião em que toda ênfase repousa na figura externa tratandose neste caso de uma projeção mais ou menos completa o arquétipo é idêntico às representações externas mas permanece inconsciente enquanto fator anímico Quando um conteúdo inconsciente é quase totalmente substituído por uma imagem projetada isso determina sua exclusão de qualquer influência e participação no tocante à consciência Sua própria vida é com isto profundamente prejudicada uma vez que é impedido de exercer sua função natural de formação da consciência mais ainda ele permanece inalterado em sua forma originária pois no inconsciente nada se transforma A partir de um certo ponto o conteúdo inconsciente pode apresentar até mesmo uma tendência à regressão a níveis mais profundos e arcaicos Pode acontecer que um cristão mesmo acreditando em todas as imagens sagradas permaneça indiferenciado e imutável no mais íntimo de sua alma porque seu Deus se encontra completamente fora e não é vivenciado em sua alma Seus motivos e interesses decisivos e determinantes bem como seus impulsos não provêm da esfera do cristianismo mas de uma alma inconsciente e indiferenciada que é como sempre pagã e arcaica Não só a vida individual mas a soma das vidas individuais que constituem um povo provam a verdade desta afirmação Os grandes acontecimentos do mundo planejados e realizados pelo homem não são inspirados pelo cristianismo mas por um paganismo indisfarçável Tal fato se origina de uma alma que permaneceu arcaica não tendo sido nem de longe tocada pelo cristianismo Como a Igreja supõe com razão o semel credidisse ter acreditado alguma vez deixa alguns vestígios entretanto nada transparece deles nos principais fatos em curso A cultura cristã mostrouse assustadoramente vazia nada mais do que um verniz externo porquanto o homem interior permaneceu intocado alheio à transformação Sua alma não corresponde às crenças exteriores O Cristo em sua alma não acompanhou o desenvolvimento exterior Sim exteriormente tudo aí está na imagem e na palavra na Igreja e na Bíblia mas o mesmo não se dá dentro No interior reinam os deuses arcaicos como nunca ou melhor a correspondência entre a imagem interna e externa de Deus não se desenvolveu por carência de cultura anímica ficando retida no paganismo A educação cristã fez o humanamente possível mas não bastou Poucos experimentaram a imagem divina como a qualidade mais íntima da própria alma Apenas travaram conhecimento com um Cristo exterior e nunca a partir do íntimo de sua alma este é o motivo pelo qual dentro dela reina ainda o mais obscuro paganismo E é o paganismo que inunda a chamada cultura cristã ora com indisfarçável clareza ora sob um disfarce gasto que não convence a ninguém 13 Com os meios utilizados até hoje foi impossível cristianizar a alma a fim de que as exigências mais elementares da ética cristã tivessem alguma influência substancial sobre os principais reclamos do europeu cristão É verdade que os missionários cristãos pregam o Evangelho aos pobres pagãos nus mas os pagãos interiores que povoam a Europa ainda não ouviram essa mensagem A cristandade deverá recomeçar necessariamente do início se quiser cumprir sua elevada tarefa educativa Enquanto a religião restringirse à fé e à forma exterior e a função religiosa não for uma experiência da própria alma nada de essencial poderá ocorrer Compreendamos ainda que o Mysterium Magnum não é apenas algo de existente por si mesmo mas também algo que se enraíza principalmente na alma humana Quem não sabe isto por experiência própria pode ser um doutor em teologia mas nada conhece de religião e ainda menos de educação humana 14 Todavia quando demonstro que a alma possui uma função religiosa natural 5 e quando reafirmo que a tarefa mais nobre de toda a educação do adulto é a de transpor para a consciência o arquétipo da imagem de Deus suas irradiações e efeitos são justamente os teólogos que me atacam e me acusam de psicologismo Se os valores supremos não estivessem depositados na alma tal como mostra a experiência sem eliminar o ἀντίμιμον πνεῦμα o espírito da contrafação que também nela está presente a psicologia não me interessaria absolutamente pois nesse caso a alma não passaria de um miserável vapor Sei porém através de centenas de experiências que não é este o caso Ela contém e corresponde a tudo quanto o dogma formulou a seu respeito e mais ainda aquilo que torna a alma capaz de ser um olho destinado a contemplar a luz Isto requer de sua parte uma extensão ilimitada e uma profundidade insondável Já fui acusado de deificar a alma Isto é falso não fui eu mas o próprio Deus quem a deificou Não fui eu que atribuí uma função religiosa à alma simplesmente apresentei os fatos que provam ser a alma naturaliter religiosa isto é dotada de uma função religiosa função esta que não inventei nem coloquei arbitrariamente nela mas que ela produz por si mesma sem ser influenciada por qualquer ideia ou sugestão Numa trágica cegueira esses teólogos ignoram que não se trata de provar a existência da luz e sim de que há cegos incapazes de saber que seus olhos poderiam enxergar Seria muito mais importante ensinar ao homem a arte de enxergar É óbvio que a maioria das pessoas é incapaz de estabelecer uma relação entre as imagens sagradas e sua própria alma isto é não conseguem perceber a que ponto tais imagens dormitam em seu próprio inconsciente Para tornar possível esta visão interior é preciso desimpedir o caminho que possibilita essa faculdade de ver Sinceramente não posso imaginar como isso seria exequível sem a psicologia isto é sem tocar a alma 6 15 Outro malentendido de consequências igualmente sérias consiste em atribuir à psicologia a intenção de ser uma nova doutrina talvez herética Quando um cego aprende a enxergar ninguém espera dele que descubra imediatamente novas verdades com um olhar poderoso de águia Já é algo promissor que ele veja alguma coisa podendo compreender até certo ponto o que está vendo Na psicologia tratase do ato de ver e não da construção de novas verdades religiosas quando as doutrinas existentes ainda não foram reconhecidas e compreendidas Em matéria de religião é sabido que não se pode entender o que não se experimentou interiormente Apenas na experiência interior se revela a relação da alma com aquilo que é apresentado e pregado exteriormente a modo de um parentesco ou correspondência de tipo sponsus sponsa Ao afirmar como psicólogo que Deus é um arquétipo eu me refiro ao tipo impresso na alma a origem da palavra tipo vem do grego τύποζ que significa batida algo que imprime Assim a própria palavra arquétipo já pressupõe alguma coisa que imprime A psicologia enquanto ciência da alma deve restringirse ao seu objeto e precaverse no sentido de não ultrapassar seus limites fazendo afirmações metafísicas ou não importa que profissão de fé Se a psicologia pretendesse pressupor um Deus como causa hipotética estaria reclamando implicitamente a possibilidade de uma prova de Deus Com isso extrapolaria seu campo de competência de um modo absolutamente inadmissível Ciência só pode ser ciência não há profissões de fé científicas nem contradictiones in adiecto contradições nos termos Ignoramos em última instância de onde se origina o arquétipo da mesma forma que ignoramos a origem da alma A competência da psicologia enquanto ciência empírica não vai além da possibilidade de constatar à base de uma pesquisa comparativa se o tipo encontrado na alma pode ou não ser designado como uma imagem de Deus Desta forma nada se afirma de positivo ou de negativo acerca de uma possível existência de Deus do mesmo modo que o arquétipo do herói não pressupõe a sua existência 16 As minhas pesquisas psicológicas provando a existência de certos tipos psíquicos bem como a sua analogia com representações religiosas conhecidas abrem uma possibilidade de acesso a conteúdos suscetíveis de serem experimentados os quais constituem incontestavelmente e de modo manifesto o fundamento empírico e palpável da experiência religiosa O homem religioso é livre de aceitar quaisquer explicações metafísicas sobre a origem destas imagens o mesmo não ocorre com o intelecto que deve se ater estritamente aos princípios da explicação científica evitando ultrapassar as possibilidades do conhecimento Ninguém pode evitar a fé em aceitar como causa primeira Deus Purusha Atman ou Tao eliminando assim a inquietude última do homem A ciência trabalha com escrúpulo e não pretende tomar o céu de assalto Se cedesse a uma tal extravagância já teria serrado o galho no qual se assenta 17 O fato é que o conhecimento e a experiência da presença de tais imagens interiores abre para a razão e para o sentimento uma via de acesso àquelas outras imagens que a doutrina religiosa oferece ao homem A psicologia faz portanto o contrário daquilo de que é acusada ela proporciona possibilidades para um melhor entendimento do que existe ela abre os olhos para a riqueza de sentido dos dogmas não destrói mas pelo contrário põe novos habitantes numa casa vazia Posso confirmálo através de múltiplas experiências pessoas dos mais variados credos que apostasiaram ou arrefeceram em sua fé encontraram uma nova via de acesso às suas antigas verdades entre eles não eram poucos os católicos Até mesmo um parsi encontrou o caminho de volta ao templo de fogo zoroastriano o que prova a objetividade do meu ponto de vista 18 É justamente por essa objetividade que mais críticas recebe minha psicologia o não optar por esta ou por aquela doutrina religiosa Sem antecipar minhas convicções subjetivas proponho a seguinte pergunta não é compreensível ser também uma opção o fato de não arvorarse em arbiter mundi e renunciar explicitamente a uma tal subjetividade acreditandose por exemplo que Deus se exprimiu em muitas linguagens e apareceu em múltiplas formas e que todas essas afirmações são verdadeiras A objeção apresentada particularmente por parte dos cristãos de que é impossível serem verdadeiras as afirmações mais contraditórias deve tolerar esta interpelação delicada um é igual a três Como três pode ser um De que modo pode uma mãe ser virgem E assim por diante Então ainda não se percebeu que todas as afirmações religiosas contêm contradições lógicas e alegações absurdas por princípio constituindo tal coisa a essência da asserção religiosa Corroborando este ponto de vista Tertuliano confessa Et mortuus est Dei filius prorsus credibile est quia ineptum est Et sepultus resurrexit certum est quia impossibile est E o Filho de Deus morreu e é isto fidedigno por ser absurdo E sepulto ressuscitou isto é certo porque é impossível 7 Se o cristianismo exige fé em tais contradições não pode condenar ao que me parece quem defende alguns paradoxos a mais Surpreendentemente o paradoxo pertence ao bem espiritual mais elevado O significado unívoco é um sinal de fraqueza Por isso a religião empobrece interiormente quando perde ou reduz seus paradoxos no entanto a multiplicação destes últimos a enriquece pois só o paradoxal é capaz de abranger aproximadamente a plenitude da vida A univocidade e a não contradição são unilaterais e portanto não se prestam para exprimir o inalcançável 19 Nem todos possuem a força espiritual de um Tertuliano o qual não só suportava o paradoxo como também o considerava a máxima certeza religiosa O número excessivo dos espiritualmente fracos torna o paradoxo ameaçador Enquanto este último permanece oculto como algo natural e portanto inquestionável sendo um aspecto habitual da vida não oferece perigo algum No entanto se uma mente pouco desenvolvida que como sabemos é sempre a mais segura de si mesma pretendesse fazer do paradoxo de uma profissão de fé o objeto de suas elucubrações tão graves quanto impotentes não demoraria a explodir numa gargalhada sarcástica e iconoclasta indicando as inépcias manifestas do mistério Desde o Iluminismo francês o desmoronamento foi rápido quando desperta essa mentalidade mesquinha que não suporta paradoxos não há sermão sobre a terra que a contenha Surge então uma nova tarefa erguer pouco a pouco essa mente não desenvolvida a um nível mais alto e multiplicar o número dos que pelo menos conseguem vislumbrar a amplidão de uma verdade paradoxal Se isto não for possível o acesso espiritual ao cristianismo pode ser praticamente obstruído Não se compreende mais o que os paradoxos do dogma pretendiam dizer quanto mais exteriormente forem concebidos mais nos escandalizaremos com sua forma irracional até se tornarem relíquias bizarras do passado totalmente obsoletas Quem passar por este processo não pode imaginar a extensão de sua perda espiritual pois jamais experimentou as imagens sagradas como interiormente suas isto é nunca soube do parentesco de tais imagens com sua própria estrutura anímica Mas a psicologia do inconsciente pode proporcionarlhe este conhecimento indispensável e sua objetividade científica é do maior valor no tocante a isso Se a psicologia estivesse ligada a alguma confissão religiosa não poderia nem deveria permitir essa liberdade de movimentos ao inconsciente do indivíduo que é uma condição prévia e indispensável à produção de arquétipos O que nos convence é justamente a espontaneidade dos conteúdos arquetípicos e a intervenção preconceituosa contra ela impede a experiência genuína Se o teólogo acredita realmente na onipotência de Deus por um lado e na validez dos dogmas por outro por que não confia então no fato de que Deus pode exprimirse também pela alma Por que esse medo da psicologia Ou então de modo inteiramente não dogmático deverá a alma ser considerada como o inferno a partir da qual só os demônios se manifestam Se fosse esse o caso tal realidade não seria menos convincente conforme sabemos a realidade do mal percebida com horror converteu pelo menos tantas pessoas quanto a experiência do bem 20 Os arquétipos do inconsciente são correspondentes aos dogmas religiosos fato que pode ser demonstrado empiricamente Na linguagem hermenêutica dos Padres a Igreja possui um tesouro de analogias com os produtos individuais espontâneos que encontramos na psicologia Aquilo que o inconsciente expressa não é arbitrário nem corresponde a uma opinião mas ocorre pelo fato de ser assim mesmo como em qualquer ser natural É óbvio que as expressões do inconsciente são naturais e não formuladas dogmaticamente como as alegorias patrísticas as quais atraem a totalidade da natureza para a órbita de suas amplificações Se estas produzem surpreendentes allegoriae Christi o mesmo acontece no que se refere à psicologia do inconsciente A diferença no entanto reside no fato de que a alegoria patrística ad Christum spectat se refere a Cristo ao passo que o arquétipo psíquico é apenas ele mesmo podendo ser interpretado segundo o tempo o lugar e o meio No Ocidente o arquétipo é preenchido pela imagem dogmática de Cristo no Oriente por Purusha Atman Hiranyagarbha Buda etc O ponto de vista religioso coloca obviamente a ênfase naquilo que imprime o impressor ao passo que a psicologia científica enfatiza o tipo τύποζ o impresso o qual é a única coisa que ela pode apreender O ponto de vista religioso interpreta o tipo como algo decorrente da ação do impressor o ponto de vista científico o interpreta como símbolo de um conteúdo desconhecido e inapreensível Uma vez que o tipo é menos definido mais complexo e multifacetado do que os pressupostos religiosos a psicologia com seu material empírico é obrigada a expressar o tipo mediante uma terminologia que independe de tempo lugar e meio Se por exemplo o tipo concordasse em todos os detalhes com a figura dogmática de Cristo sem conter algum determinante que a ultrapassasse teríamos pelo menos de considerar o tipo como uma cópia fiel da figura dogmática dandolhe um nome correspondente Neste caso o tipo coincidiria com o Cristo Empiricamente isto não ocorre pois o inconsciente do mesmo modo que nas alegorias dos Padres da Igreja produz muitos outros determinantes que não estão contidos de um modo explícito na fórmula dogmática ou melhor figuras não cristãs como as que acima mencionamos estão contidas no tipo Mas nem estas figuras satisfazem a indeterminação do arquétipo É impensável que qualquer figura determinada possa exprimir a indeterminação arquetípica Sentime impelido por isso a dar o nome psicológico de simesmo Selbst ao arquétipo correspondente suficientemente determinado para dar uma ideia da totalidade humana e insuficientemente determinado para exprimir o caráter indescritível e indefinível da totalidade Estas qualidades paradoxais do conceito correspondem ao fato de que a totalidade consiste por um lado do ser humano consciente e por outro do homem inconsciente Não se pode porém estabelecer os limites e as determinações deste último Por isso na linguagem científica o termo simesmo não se refere nem a Cristo nem a Buda mas à totalidade das formas que representam e cada uma dessas formas é um símbolo do simesmo Este modo de expressão é uma necessidade intelectual da psicologia científica e não significa de modo algum um preconceito transcendental Pelo contrário como dissemos acima este ponto de vista objetivo possibilita a alguns de se decidirem por Cristo e a outros por Buda etc Quem se escandalizar com esta objetividade deverá considerar que sem ela não há ciência possível Assim pois negando à psicologia o direito à objetividade estará tentando extinguir extemporaneamente a luz viva da ciência Mesmo que uma tal tentativa surtisse efeito seu resultado apenas contribuiria para aumentar a brecha catastrófica que já existe entre a compreensão secular por um lado e a Igreja e a religião por outro 21 Não só é compreensível como também representa uma raison dêtre absoluta para uma ciência poder concentrarse com relativa exclusividade no seu objeto Uma vez que o conceito do simesmo é de interesse central para a psicologia o pensamento desta última caminha obviamente em sentido inverso relativamente à teologia para a psicologia as figuras religiosas apontam para o simesmo enquanto que para a teologia o simesmo aponta para a sua própria representação central isto é o si mesmo psicológico poderia ser compreendido como uma allegoria Christi Esta oposição é irritante mas infelizmente inevitável a menos que se negue por completo à psicologia o direito de existir Prego portanto a tolerância o que não é difícil para a psicologia uma vez que esta como ciência não tem pretensões totalitárias 22 O símbolo de Cristo é da maior importância para a psicologia porquanto constitui ao lado da figura de Buda talvez o símbolo mais desenvolvido e diferenciado do simesmo Isto pode ser avaliado pela amplitude e pelo conteúdo dos predicados atribuídos ao Cristo que correspondem à fenomenologia psicológica do simesmo de um modo incomum apesar de não incluir todos os aspectos deste arquétipo A extensão incalculável do simesmo pode ser considerada negativa relativamente à determinação de uma figura religiosa Mas os juízos de valor não constituem de maneira alguma uma tarefa da ciência O simesmo não só é indefinido como também comporta paradoxalmente o caráter do definido e até mesmo da unicidade Provavelmente esta é uma das razões pela qual as religiões que foram fundadas por personalidades históricas se tornaram religiões universais como no caso do cristianismo budismo e islamismo A inclusão de uma personalidade humana única especialmente quando ligada à natureza divina indefinível corresponde ao individual absoluto do simesmo que liga o único ao eterno e o individual ao mais geral O simesmo é uma união dos opostos κατ ἐξοχήν Isto o distingue essencialmente do símbolo cristão A androginia de Cristo é a concessão máxima da Igreja à problemática dos opostos A oposição entre o luminoso e o bom por um lado e o escuro e mau por outro permaneceu em conflito aberto uma vez que Cristo representa só o bem e sua contrapartida o demônio o mal Esta oposição é o verdadeiro problema do mundo que até agora não foi resolvido O simesmo de qualquer modo é o paradoxo absoluto já que representa a tese a antítese e a síntese em todos os aspectos As provas psicológicas desta afirmação são abundantes No entanto não me é possível enumerálas aqui in extenso Remeto o conhecedor desta matéria ao simbolismo do mandala 23 Quando mediante a exploração do inconsciente a consciência se aproxima do arquétipo o indivíduo é confrontado com a contradição abissal da natureza humana o que lhe proporciona uma experiência imediata da luz e da treva do Cristo e do demônio Tratase aqui no melhor ou no pior dos casos de uma possibilidade e não de uma garantia experiências deste tipo não podem ser induzidas através de meios humanos Há fatores a serem levados em conta que não estão sob nosso controle A vivência dos opostos nada tem a ver com a visão intelectual nem com a empatia É mais aquilo a que poderíamos chamar de destino Tal vivência pode provar a uns a verdade de Cristo a outros a de Buda até à mais extrema evidência 24 Sem a vivência dos opostos não há experiência da totalidade e portanto também não há acesso interior às formas sagradas Por essa razão o cristianismo insiste na pecaminosidade e no pecado original com a intenção óbvia de abrir em cada um pelo menos a partir de fora o abismo da contradição do mundo Este método falha porém quando se trata de uma mente mais ou menos desperta já que não acredita mais nessa doutrina além de considerála absurda Um tal intelecto por ser unilateral fica paralisado diante da ineptia mysterii absurdo do mistério Na verdade encontrase a uma distância infinita das antinomias de Tertuliano o fato é que não consegue suportar o sofrimento implicado no problema dos opostos Sabese como os exercícios rigorosos e certas prédicas missionárias dos católicos assim como a educação protestante que sempre fareja o pecado causam danos psíquicos que não levam ao Reino dos Céus mas ao consultório médico Apesar de ser inevitável a visão problemática dos opostos praticamente poucos a suportam fato este que não escapou à experiência dos confessores Uma reação paliativa manifestouse no probabilismo moral que sofre os mais diversos ataques porquanto visa atenuar o efeito esmagador do pecado 8 O que quer que se pense sobre esse fenômeno uma coisa é certa nele além de outras coisas está contida uma grande dose de humanidade e de compreensão da fraqueza humana o que não deixa de compensar a tensão insuportável das antinomias O psicólogo compreenderá facilmente o grande paradoxo entre a insistência sobre o pecado original por um lado e a concessão do probabilismo por outro como uma decorrência necessária da problemática cristã dos opostos acima esboçada O bem e o mal se encontram tão próximos no Simesmo quanto dois gêmeos monovitelinos A realidade do mal e sua incompatibilidade com o bem provoca uma separação violenta dos opostos conduzindo inexoravelmente à crucifixão e à suspensão de tudo o que é vivo Uma vez que a alma é naturaliter christiana cristã por natureza tal consequência é inevitável como foi na vida de Jesus todos nós deveríamos ser crucificados com Cristo isto é suspensos num sofrimento moral equivalente à verdadeira crucifixão Na prática isto só é possível até certo ponto pois se trata de algo tão intolerável e hostil à vida que um ser humano comum apenas pode entrar em tal estado de vez em quando o menos possível Como poderia continuar a ser um homem comum dentro de um tal sofrimento Por isso uma atitude mais ou menos probabilística em relação ao problema do mal é inevitável Assim sendo a verdade do simesmo isto é a unidade inimaginável de bem e mal aparece concretamente no seguinte paradoxo o pecado é o que há de mais difícil e grave mas não a ponto de ser impossível livrarse dele numa perspectiva probabilística Este procedimento não é necessariamente frouxo ou frívolo mas simplesmente uma necessidade prática da vida Na confissão ocorre o mesmo que na própria vida esta se debate para não perecer numa oposição inconciliável Por outro lado permanece nota bene o conflito expressis verbis que corresponde de novo à antinomia do simesmo o qual é simultaneamente conflito e unidade 25 O mundo cristão transformou a antinomia entre o bem e o mal num problema universal erigindoa em princípio absoluto através da formulação dogmática dos contrários O cristão é atirado a este conflito ainda insolúvel como protagonista do bem e como um dos atores no drama do mundo Esta imitação de Cristo tomada em seu sentido mais profundo implica um sofrimento intolerável para a maioria dos homens Consequentemente o exemplo crístico só é seguido em parte ou não é seguido de modo algum e a prática pastoral da Igreja se vê obrigada a aliviar o jugo de Cristo Isto significa uma redução considerável da rigidez e severidade do conflito o que redunda praticamente numa relativização do bem e do mal O bem equivale à imitação incondicional de Cristo e o mal representa um obstáculo a isso A fraqueza e a inércia moral do homem são os obstáculos principais à imitação o probabilismo os encara com uma compreensão prática e corresponde talvez mais às virtudes cristãs da tolerância da benevolência e do amor ao próximo do que a atitude daqueles que veem no probabilismo mera frouxidão Apesar de podermos atribuir ao esforço probabilístico as principais virtudes cristãs não devemos ignorar o fato de que ele impede o sofrimento da imitação de Cristo subtraindo ao conflito do bem e do mal o seu rigor suavizandoo a proporções toleráveis Com isto nos aproximamos do arquétipo do simesmo no qual esta oposição aparece unificada aliás como já foi dito contrariamente ao simbolismo cristão que deixa o conflito em aberto Para este último o mundo é trincado por uma cisão a luz combate a noite e o superior o inferior Estas dualidades não são uma unidade como no arquétipo psíquico Ainda que o dogma tenha horror à ideia de que dois sejam um a prática religiosa possibilita como vimos a aplicação do símbolo psicológico natural a saber do simesmo unificado Por outro lado o dogma insiste em que três são um mas se recusa a reconhecer que os quatro sejam um Sabese que os números ímpares sempre foram masculinos não só para nós ocidentais como também para os chineses quanto aos números pares são femininos Assim a trindade é uma divindade explicitamente masculina para a qual a androginia de Cristo e a posição específica e elevação da mãe de Deus não oferecem um equivalente pleno 26 Com esta constatação que talvez pareça estranha ao leitor chegamos a um axioma central da alquimia ou seja ao aforisma de Maria Prophetissa Um tornase dois dois tornase três e do três provém o um que é o quarto Como o leitor já percebeu pelo título deste livro ocupase ele com o significado psicológico da alquimia e portanto com um problema que salvo raríssimas exceções tem escapado à pesquisa científica até o presente Até há bem pouco tempo a ciência se ocupava apenas com o aspecto que a alquimia desempenhava na história da química e em pequena medida com seu lado filosófico e históricoreligioso A importância da alquimia na história do desenvolvimento da química é evidente Seu significado para a história do espírito humano no entanto ainda é tão desconhecido que é quase impossível precisar em poucas palavras em que consiste Nesta introdução tentei representar a problemática histórico religiosa e psicológica na qual se insere o tema alquímico A alquimia constitui como que uma corrente subterrânea em relação ao cristianismo que reina na superfície A primeira se comporta em relação ao segundo como um sonho em relação à consciência e da mesma forma que o sonho compensa os conflitos do consciente assim o esforço da alquimia visa preencher as lacunas deixadas pela tensão dos opostos no cristianismo Isto se exprime de modo impressionante no axioma de Maria Prophetissa acima citado o qual percorre como um leitmotiv mais de dezessete séculos da alquimia Nesta os números ímpares da dogmática cristã são entremeados por números pares que significam o feminino a terra o subterrâneo e até mesmo o próprio mal Sua personificação é a serpens mercurii serpente mercurial o dragão que se gera e se destrói a si mesmo e a prima materia Esta ideia básica da alquimia remonta ao Tehom 9 a Tiamat com seu atributo de dragão e mediante eles ao mundo originário matriarcal que foi superado na teomaquia do mito de Marduk pelo mundo patriarcal e viril A transformação históricouniversal da consciência para o lado masculino é em primeiro lugar compensada pelo inconsciente ctônicofeminino Em certas religiões précristãs já ocorre uma diferenciação do masculino sob a forma da especificação paifilho transformação esta que atinge seu significado máximo no cristianismo Se o inconsciente fosse apenas complementar teria acompanhado essa transformação da consciência ressaltando as figuras de mãefilha e o material necessário para isto já se encontrava no mito de Demeter e Perséfone No entanto como a alquimia mostra o inconsciente preferiu o tipo CibeleÁtis sob a forma da prima materia e do filius macrocosmi provando com isto não ser ele complementar mas compensatório Isto ressalta o fato de o inconsciente não atuar meramente em oposição à consciência constituindo um parceiro ou adversário que a modifica em maior ou menor grau Não é uma imagem complementar de filha que o tipo do filho chama do inconsciente ctônico mas um outro filho Segundo todas as aparências este fato digno de nota está ligado à incarnação do deus puramente espiritual na natureza humana terrestre possibilitada pela concepção do Espírito Santo no útero da Beata Virgo Assim pois o superior espiritual masculino se inclina para o inferior terrestre feminino vindo ao encontro do masculino a mãe que precede o mundo do pai gera então um filho mediante o instrumento do espírito humano da Filosofia no sentido alquímico um filho que não é a antítese do Cristo mas sua contrapartida ctônica não um homemdeus mas um ser fabuloso conforme à natureza da mãe primordial Enquanto a tarefa do filho superior é a da salvação do homem do microcosmo a do filho inferior é a de um salvator macrocosmi 27 Eis de modo abreviado o drama que se desenrolou na obscuridade da alquimia É inútil dizer que esses dois filhos jamais se uniram a não ser talvez no espírito e na vivência mais íntima de poucos alquimistas especialmente dotados Mas não é difícil perceber a finalidade desse drama a encarnação de Deus sob a aparência de uma aproximação do princípio do mundo paterno masculino com o princípio do mundo materno feminino incitando este último a assimilar o primeiro Isto foi como que a tentativa de lançar uma ponte para compensar o conflito entre ambos 28 Não se escandalize o leitor se a minha digressão soa como um mito gnóstico Movemonos aqui no terreno psicológico em que está enraizada a gnose A mensagem do símbolo cristão é gnose e a compensação do inconsciente o é ainda mais O mitologema é a linguagem verdadeiramente originária de tais processos psíquicos e nenhuma formulação intelectual pode alcançar nem mesmo aproximadamente a plenitude e a força de expressão da imagem mítica Tratase de imagens originárias cuja melhor expressão é a imagística 29 O processo aqui descrito apresenta todos os traços característicos de uma compensação psicológica Sabese que a máscara do inconsciente não é rígida mas reflete o rosto que voltamos para ele A hostilidade conferelhe um aspecto ameaçador a benevolência suaviza seus traços Não se trata aqui de um mero reflexo ótico mas de uma resposta autônoma que revela a natureza independente daquele que responde Assim pois o filius philosophorum não é a mera imagem refletida do filho de Deus numa matéria imprópria esse filho de Tiamat apresenta os traços da imagem materna originária Embora seja nitidamente hermafrodita seu nome é masculino revelando a tendência ao compromisso do submundo ctônico rejeitado pelo espírito e identificado com o mal ele é indiscutivelmente uma concessão ao espiritual e ao masculino embora carregue o peso da terra e o caráter fabuloso de sua animalidade originária 30 Esta resposta do mundo materno mostra não ser intransponível o abismo que o separa do mundo paterno porquanto o inconsciente contém um germe da unidade de ambos A essência do consciente é a diferenciação para ampliar a consciência é preciso separar os opostos uns dos outros e isto contra naturam Na natureza os opostos se buscam les extrêmes se touchent o mesmo se dando no inconsciente sobretudo no arquétipo da unidade no simesmo Neste último como na divindade os opostos são abolidos Mas com a manifestação do inconsciente começa a cisão do mesmo modo que na Criação toda tomada de consciência é um ato criador e desta experiência psicológica derivam os múltiplos símbolos cosmogônicos 31 A alquimia trata principalmente do germe da unidade que está oculto no caos de Tiamat e que corresponde à contrapartida da unidade divina Como esta ela tem um caráter trinitário na alquimia de influência cristã e triádico na alquimia pagã Segundo outros testemunhos aquele germe corresponde à unidade dos quatro elementos constituindo uma quaternidade A grande maioria das descobertas psicológicas modernas alinhase ao lado deste último ponto de vista Os raros casos por mim observados que produziam o número três eram caracterizados por uma deficiência sistemática no campo da consciência ou seja pela inconsciência da função inferior O número três não é uma expressão natural da totalidade ao passo que o número quatro representa o mínimo dos determinantes de um juízo de totalidade É preciso ressaltar no entanto que ao lado da nítida tendência para a quaternidade da alquimia como também do inconsciente sempre há uma incerteza marcante entre o três e o quatro Já no axioma de Maria Prophetissa a quaternidade é encoberta e vaga Na alquimia falase tanto de quatro como de três regimina processos de três como de quatro cores Aliás sempre há quatro elementos mas frequentemente três são agrupados e um deles fica numa posição especial ora é a terra ora o fogo O mercúrio 10 é sem dúvida quadratus mas também uma serpente tricéfala ou simplesmente uma triunidade Esta insegurança indica que se trata de um caráter duplo isto é as representações centrais são tanto quaternárias quanto ternárias O psicólogo não pode deixar de mencionar o fato de que a psicologia do inconsciente também conhece uma perplexidade análoga A função menos diferenciada inferior está de tal modo contaminada pelo inconsciente coletivo que ao se tornar consciente traz consigo entre outros também o arquétipo do simesmo τὸ ἕν τέταρτονo um que nasce com o quatro como diz Maria O quatro significa o feminino o materno o físico o três o masculino o paterno o espiritual A incerteza entre o quatro e o três significa portanto o mesmo que a hesitação entre o espiritual e o físico um exemplo marcante de que toda verdade humana é apenas uma penúltima verdade 32 Nesta introdução parti da totalidade do homem como meta à qual conduz em última instância o desenvolvimento anímico no decurso do processo psicoterapêutico Esta questão ligase indissoluvelmente a pressupostos filosóficos e religiosos Mesmo que o paciente se julgue isento de preconceitos neste aspecto o que é um caso frequente os pressupostos de seu modo de vida seus pensamentos sua moral sua linguagem são historicamente condicionados até os mínimos detalhes muitas vezes este fato permanece inconsciente por falta de cultura ou de autocrítica A análise de sua situação porém conduz mais cedo ou mais tarde a um esclarecimento de seus pressupostos espirituais ultrapassando de longe os determinantes pessoais e trazendo à baila a problemática que tentei esboçar nas páginas precedentes Esta fase do processo é caracterizada pela produção de símbolos de unidade dos mandalas que aparecem quer nos sonhos quer no estado de vigília sob a forma de impressões visuais e que representam não raro uma nítida compensação das contradições e conflitos da situação consciente Talvez não seria correto afirmar que a responsabilidade desta situação se deva a uma fenda 11 Przywara aberta na ordem cristã do mundo na medida em que é fácil provar que o simbolismo cristão cura essa ferida ou pelo menos se esforça por fazêlo Sem dúvida seria mais acertado interpretar o fato do conflito permanecer aberto como um sintoma da situação psíquica do homem ocidental e de lastimar sua incapacidade de assimilar toda a amplitude do símbolo cristão Como médico não posso fazer exigência alguma ao paciente no tocante a esse ponto além disso faltamme os meios da graça da Igreja Confrontome portanto com a tarefa de enveredar pelo único caminho possível para mim isto é o da conscientização das imagens arquetípicas que de modo algum correspondem às representações dogmáticas Por isso devo deixar que o paciente decida de acordo com seus pressupostos com sua maturidade espiritual cultura origem e seu temperamento na medida em que isso for possível sem sérios conflitos Minha tarefa como médico é ajudar o paciente a tornarse apto para a vida Não posso ter a presunção de julgar suas decisões últimas pois sei por experiência que toda coerção desde a mais sutil sugestão ou conselho a quaisquer outros métodos de persuasão apenas produzem em última análise um obstáculo à vivência suprema e decisiva isto é o estar a sós com o Simesmo com a objetividade da alma ou como quer que a chamemos O paciente deve estar a sós para descobrir o que o suporta quando ele não está mais em condições de se suportar a si mesmo Somente essa experiência darlheá um alicerce indestrutível 33 Eu confiaria ao teólogo de bom grado essa tarefa que realmente não é fácil se muitos de meus pacientes não viessem justamente do teólogo Eles poderiam ter permanecido na comunidade eclesial mas o fato é que tombaram da grande árvore como folhas secas e se vincularam então ao tratamento Algo neles se agarra muitas vezes com a força do desespero como se eles ou algo neles estivesse na iminência de precipitarse no nada caso se soltassem Procuram um chão firme em que se apoiar Como nenhum apoio externo é adequado devem encontrálo em si mesmos Do ponto de vista da razão isto parece o que há de mais inverossímil não o sendo entretanto do ponto de vista do inconsciente O arquétipo da origem humilde do Salvador é um testemunho deste fato 34 O caminho para a meta a princípio é caótico e imprevisível e só aos poucos vão se multiplicando os sinais de uma direção a seguir O caminho não segue a linha reta mas é aparentemente cíclico Um conhecimento mais exato o define como uma espiral os temas do sonho sempre reaparecem depois de determinados intervalos sob certas formas que designam à sua maneira o centro Tratase de um ponto central ou de uma disposição centrada que em certos casos surge a partir dos primeiros sonhos Os sonhos enquanto manifestações dos processos inconscientes traçam um movimento de rotação ou de circumambulação em torno do centro dele se aproximando mediante amplificações cada vez mais nítidas e vastas Devido à diversidade do material simbólico é difícil a princípio reconhecer qualquer tipo de ordem De fato nada permite pressupor que as séries de sonhos estejam sujeitas a um princípio ordenador A uma observação mais acurada porém o processo de desenvolvimento revelase cíclico ou em espiral Poderíamos estabelecer um paralelo entre esses processos em espiral e o processo de crescimento das plantas o tema vegetal árvore flor etc também retorna frequentemente nesses sonhos e fantasias ou em desenhos espontâneos 12 Na alquimia a árvore é o símbolo da filosofia hermética Referências HAENDLER O Die Predigt Tiefenpsychologische Grundlagen und Grundfragen 2 ed Berlim Alfred Töpelmann 1949 HARNACK A von Lehrbuch der Dogmengeschichte 3 vols 5 ed Tübingen 1931 JUNG CG Psychologie und Religion Die TerryLectures gehalten an der Yale Universiry Zurique Rascher 1940 Reed 1942 1947 e Pb 1962 Ölten StA Walter 1971 GW 11 1963 e 1973 LANG JB Hat ein Gott die Welt erschaffen Francke Bern 1942 PRZYWARA E Deus semper maior Theologie der Exerzitien 3 vols Freiburg iBr 19381940 Realencyklopädie für protestantische Theologie und Kirche Ed Albert Hauck 3 ed 24 vols Leipzig 18961913 TERTULLIANUS Quintus Septimius Clemens De carne Christi Migne PL II col 151792 Apologeticus adversus Gentes pro Christianis Migne E L I col 257536 WILHELM R Das Geheimnis der Goldenen Blüte Ein chinesisches Lebensbuch Mit einem europäischen Kommentar von CG Jung Munique Dorn Verlag Ed Zurique Rascher 1938 Reed 1939 1944 1948 e 1957 Jungs Beitrag in GW 11 1963 ZÖCKLER O Probabilismus Cf Realencyklopädie XVI S 66ff Fonte OC 12 Excertos do cap 1 134 Foram selecionadas as partes referentes à problemática religiosa 1 É digno de nota que numa obra sobre homilética um teólogo protestante tenha a coragem de exigir a integridade ética do pregador e isto invocando a minha psicologia HÄNDLER Die Predigt 2 O dogma do homem à imagem e semelhança de Deus também tem a maior importância na avaliação do fator humano sem falar da encarnação de Deus 3 O fato de o diabo também poder possuir a alma não reduz a importância da mesma 4 Por esta razão é totalmente impensável do ponto de vista psicológico que Deus seja apenas o totalmente outro pois o totalmente outro não pode ser o íntimo mais íntimo da alma e Deus o é As únicas afirmações psicologicamente corretas acerca da imagem de Deus são os paradoxos ou as antonomias 5 TERTULIANO Anima naturaliter christiana A alma é naturalmente cristã Apologeticus XVII 6 Como aqui se trata da questão do esforço humano deixo de lado os atos da graça que fogem à alçada humana 7 De carne Christi V 8 Zöckler Probabilismus p 67 define da seguinte maneira Probabilismo em geral é o modo de pensar que se dá por satisfeito com um grau de probabilidade maior ou menor quando se trata de responder questões científicas O probabilismo moral o único que importa aqui consiste no princípio de orientar seus atos de liberdade moral não pela consciência mas pelo que é dado como provavelmente certo isto é pelo que é recomendado por uma doutrina ou uma autoridade qualquer que serve de modelo O probabilista Escobar em 1669 por exemplo é de opinião que se o penitente invocar como fundamento para seu modo de agir um parecer provável o confessor será obrigado a absolvêlo mesmo que não tenha a mesma convicção A pergunta de quantas vezes na vida somos obrigados a amar a Deus Escobar responde citando uma série de autoridades jesuíticas segundo uns amar a Deus uma única vez pouco antes da morte seria o bastante segundo outros uma vez por ano ou uma vez a cada três ou quatro anos Ele próprio chega à conclusão de que é suficiente amar a Deus uma vez ao despertar da razão depois uma vez a cada cinco anos e uma última vez na hora da morte Em sua opinião o grande número de doutrinas morais diferentes é a principal prova da bondade da providência divina pois isso torna o jugo de Cristo tão leve op cit p 68 Cf tb com VON HARNACK Lehrbuch der Dogmengeschichte III p 748s 9 Cf Gn 12 O leitor encontrará uma compilação dos temas míticos em LANG Hat ein Gott die Welt erschaffen Lamentavelmente a crítica filológica terá muitas reservas a fazer em relação a esse trabalho No entanto convém assinalálo devido a sua tendência gnóstica 10 O autor redigiu a seguinte nota para a edição inglesa 1953 Nas obras alquímicas o significado da palavra Mercurius é dos mais variados não designa apenas o elemento químico mercúrio Hg Mercurius Hermes o Deus e Mercúrio o planeta mas também e antes de mais nada a secreta substância transformadora que é ao mesmo tempo o espírito inerente a todas as criaturas vivas Estas diversas conotações aparecerão com maior clareza no decorrer do livro 11 PRZYWARA Deus semper maior I p 71s 12 Cf as ilustrações em WILHELM JUNG O segredo da flor de ouro Sobre a relação entre a psicoterapia e a direção espiritual 1 Senhoras e senhores 488 O desenvolvimento da Psicologia médica e da Psicoterapia deve se muito menos à curiosidade dos estudiosos do que propriamente aos problemas psíquicos urgentes impostos pelos doentes e ao impulso decisivo que deles deriva A ciência médica evitou muito tempo quase em oposição às necessidades dos doentes de tocar nos problemas propriamente psíquicos partindo da hipótese aliás não de todo desprovida de fundamento de que esse domínio é mais da alçada de outras Faculdades Mas da mesma forma que a unidade biológica do ser humano sempre obrigou a Medicina a tomar emprestado informações aos ramos mais variados do saber tais como a Química a Física a Biologia etc assim também viuse forçada a aceitar que a Psicologia experimental entrasse para a sua órbita 489 No decorrer desses empréstimos era natural que os domínios científicos incorporados sofressem uma refração característica em suas tendências em lugar de um trabalho de pesquisa que constituísse um fim em si mesmo a preocupação era a de aplicálos ao homem na prática Assim por exemplo a Psiquiatria hauriu abundantemente do tesouro e dos métodos da Psicologia experimental e inseriu esta última no edifício de muitos dédalos da Psicoterapia Esta nada mais é em última análise do que uma Psicologia dos fenômenos psíquicos complexos Suas origens se encontram de uma parte nas experiências acumuladas pela Psiquiatria entendida no sentido mais estrito deste termo e de outra parte nas experiências da Neurologia esta disciplina compreendia também inicialmente o domínio daquilo que se convencionou chamar de Neurologia psicogenética visão esta que continua até hoje nos meios acadêmicos Na prática porém abriuse um vasto abismo nas últimas décadas principalmente a partir da utilização da hipnose entre os especialistas em Neurologia e os psicoterapeutas Isto não poderia deixar de produzirse porque a Neurologia é a ciência das doenças orgânicas ao passo que as neuroses psicogênicas não constituem doenças orgânicas no sentido corrente do termo assim como não fazem parte do domínio do psiquiatra que limitou seu campo de atividade às psicoses Mas as neuroses psicogênicas também não constituem doenças mentais no sentido comum do termo elas formam um domínio sui generis e isolado com fronteiras maldefinidas apresentando inúmeras formas de transição que se lançam para ambos os lados o das doenças mentais e o das doenças nervosas 490 O caráter intrínseco e inegável das neuroses consiste no fato de que elas nascem de causas psíquicas e só podem ser curadas por meios exclusivamente psíquicos A delimitação e o estudo deste domínio particular empreendida tanto a partir do setor psiquiátrico quanto do setor neurológico conduziu a uma descoberta que foi para a Medicina a mais incômoda possível a descoberta da alma enquanto fator etiológico suscetível de provocar enfermidades no domínio humano A Medicina no decorrer do século XIX tornarase em seus métodos e teoria uma disciplina tributária das ciências naturais e se apoiava nos mesmos pressupostos filosóficos que estas últimas o causalismo e o materialismo A alma enquanto substância espiritual não existia por si da mesma maneira que a Psicologia experimental se esforçava ao máximo para elaborar uma Psicologia sem alma 491 O estudo das psiconeuroses mostrou incontestavelmente que o fator psíquico é o causador das perturbações isto é a causa principal da doença assim este fator psíquico foi colocado em paridade com as outras causas de doença já conhecidas tais como a hereditariedade a constituição a infecção bacteriana etc Todas as tentativas feitas no sentido de reduzir a natureza do fator psíquico a outros fatores orgânicos deram em nada Mas uma delas teve mais êxito a que procurou reduzir o fator psíquico à noção de instinto tomada de empréstimo à Biologia Os instintos como se sabe são necessidades fisiológicas facilmente perceptíveis baseados nas funções glandulares e que como mostra a experiência influenciam e até mesmo condicionam os processos psíquicos Qual seria a ideia imediata senão a de procurar a causa específica da psiconeurose não num conceito místico de alma mas num distúrbio dos instintos distúrbio este que em última análise podia esperarse curar graças a um tratamento orgânico glandular 492 Freud como se sabe na sua Teoria das Neuroses delineou este ponto de vista Sua teoria vai buscar um princípio explicativo fundamental nas perturbações do instinto sexual A concepção de Adler também extrai seu princípio explicativo do domínio dos impulsos sexuais e especificamente das perturbações do instinto de poder instinto este muito mais psíquico do que o impulso sexual fisiológico 493 A noção de instinto está longe de ter sido cientificamente esclarecida Ela diz respeito a um fenômeno biológico de monstruosa complexidade e representa no fundo um X isto é pura e simplesmente um conceitolimite cujo conteúdo é de imprecisão absoluta Não quero aqui dar início a uma crítica do conceito de instinto mas pelo contrário encarar a possibilidade de considerar o fator psíquico como por exemplo uma mera combinação de instintos que também repousariam por sua parte em funções glandulares Aliás é forçoso admitirmos como provável que tudo aquilo que chamamos de psíquico está incluído na totalidade dos instintos e que portanto o psiquismo outra coisa não é em última análise senão um instinto ou conglomerado de instintos ou seja uma função hormonal A psiconeurose seria assim uma enfermidade do aparelho glandular 494 Mas a prova desta hipótese não foi absolutamente estabelecida não se tendo encontrado até agora a secreção glandular que pudesse curar uma neurose Se por um lado sabemos depois de um semnúmero de fracassos que a terapia orgânica falhou em princípio nas neuroses por outro lado sabemos também que os meios psíquicos curam a neurose como se eles fossem extratos glandulares As neuroses segundo nossa experiência atual podem e devem ser influenciadas e curadas não a partir da função proximal do sistema endócrino mas de sua função distal ou seja do psiquismo em geral tudo se passando exatamente como se o psiquismo fosse uma substância Uma explicação apropriada ou uma palavra de consolo por exemplo podem obter um efeito de cura que em última análise estendese até mesmo às funções glandulares As palavras do médico nada mais são evidentemente do que vibrações do ar mas seu valor intrínseco decorre do estado psíquico particular do médico que as pronuncia As palavras não agem senão porque transmitem um sentido ou uma significação é justamente aí que reside o segredo de sua eficácia Ora o sentido é qualquer coisa de espiritual Concedo que se possa dizer que este sentido nada mais é do que uma ficção Mas não é menos verdade que graças à ficção podemos influenciar a doença de maneira muito mais eficaz do que por meio de produtos químicos e mais ainda que até mesmo influenciamos o processo biológico químico Que a ficção se produza em mim interiormente ou me atinja a partir do exterior por meio da linguagem pouco me importa tanto num caso como no outro ela pode me adoecer ou restituirme a saúde As ficções ilusões e opiniões são certamente as coisas menos tangíveis e menos reais que possamos imaginar e no entanto elas são psíquica e psicofisiologicamente as mais eficazes 495 Foi mediante este processo que a Medicina descobriu a alma Por honestidade a Medicina não pode mais negar a substancialidade do psíquico O instinto é reconhecido como sendo uma das condições do psíquico da mesma forma que o psíquico passou a ser considerado e com razão um dos condicionamentos dos instintos 496 Não se pode acusar as teorias freudianas e adlerianas de serem psicologias do instinto mas sim o de serem unilaterais Constituem psicologias sem alma indicadas para todos aqueles que acreditam não ter necessidades nem exigências espirituais Mas nesta abordagem tanto se engana o médico como o paciente embora estas teorias levem em conta a psicologia das neuroses em grau infinitamente mais elevado do que qualquer outra concepção médica préanalítica não é menos verdade que sua limitação ao instintual em nada satisfaz as necessidades mais profundas da alma enferma Sua concepção é demasiado científica parece demasiado axiomática fictícia ou imaginativa em uma palavra atribui ou coloca demasiado sentido onde este não existe Ora só o significativo traz a salvação 497 A razão cotidiana o bomsenso comum a ciência como corporificação do common sense sob forma concentrada certamente satisfazem por algum tempo e por uma etapa bem prolongada mas nunca vão além das fronteiras da realidade mais terra a terra ou de uma normalidade humana média No fundo não trazem qualquer solução aos problemas do sofrimento psíquico e de sua significação mais profunda A psiconeurose em última instância é um sofrimento de uma alma que não encontrou o seu sentido Do sofrimento da alma é que brota toda criação espiritual e nasce todo homem enquanto espírito ora o motivo do sofrimento é a estagnação espiritual a esterilidade da alma 498 Munido deste conhecimento o médico se aventura doravante num domínio do qual só se aproxima depois de muita hesitação Começará a enfrentar a necessidade de transmitir a ficção salutar a significação espiritual pois é isto precisamente o que o doente espera dele para além de tudo o que a razão pensante e a ciência lhe podem dar O enfermo procura aquilo que o empolgue e venha conferir enfim ao caos e à desordem de sua alma neurótica uma forma que tenha sentido 499 Estará o médico à altura desta tarefa Ele poderá encaminhar seu paciente antes de tudo a um teólogo ou filósofo ou abandonálo às incertezas e perplexidades de sua época Enquanto médico sua consciência profissional evidentemente não o obriga a abraçar uma determinada concepção do mundo Mas o que acontecerá quando perceber com inelutável clareza as causas do mal de que o seu paciente sofre isto é que ele é carente de amor e não possui senão a sexualidade que lhe falta a fé porque ele receia a cegueira que vive sem esperança porque a vida e o mundo o decepcionaram profundamente e que atravessa a existência mergulhado na ignorância porque não soube perceber sua própria significação 500 Numerosos pacientes cultos se recusam categoricamente a procurar um teólogo Quanto ao filósofo nem sequer querem ouvir falar a respeito A história da Filosofia os deixa frios e o intelectualismo em que vivem mergulhados se lhes afigura mais desolador do que um deserto Onde encontrar os grandes sábios da vida e do mundo que não apenas se limitem a falar do sentido da existência mas que também o possuam Aliás não se pode imaginar qualquer sistema ou verdade que tragam ao doente aquilo de que necessita para a vida a saber a crença a esperança o amor e o conhecimento 501 Estas quatro conquistas supremas do esforço e das aspirações humanas são outras tantas graças que não podem ser ensinadas nem aprendidas nem dadas ou tomadas nem retiradas ou adquiridas pois estão ligadas a uma condição irracional que foge ao arbítrio humano isto é à experiência viva que se teve Ora é completamente impossível fabricar tais experiências Elas ocorrem não de modo absoluto mas infelizmente de modo relativo Tudo o que podemos dentro de nossas limitações humanas é tentar um caminho de aproximação rumo a elas Há caminhos que nos conduzem à proximidade das experiências mas deveríamos evitar de dar a estas vias o nome de métodos pois isto age de maneira esterilizante sobre a vida e além disto a trilha que leva a uma experiência vivida não consiste em um artifício mas em uma empresa arriscada que exige o esforço incondicional de toda a personalidade 502 A necessidade terapêutica conduznos assim a uma questão e ao mesmo tempo a um obstáculo aparentemente insuperável Como poderemos ajudar a alma enferma a pôrse a caminho da experiência libertadora a partir da qual germinarão os quatro grandes carismas crença esperança amor e conhecimento que deverão curar a doença Pleno de boas intenções o médico talvez chegue a aconselhar ao doente Deverias ter o verdadeiro amor ou a verdadeira fé ou ainda empenharte em conhecerte a ti mesmo Mas onde vai o doente encontrar aquilo que precisamente só poderá receber depois do tratamento 503 Saulo não deve sua conversão nem ao amor verdadeiro nem à verdadeira fé nem a uma verdade qualquer só o seu ódio aos cristãos o fez pôrse a caminho de Damasco e o conduziu àquela experiência que devia tornarse decisiva para toda a sua vida Ele viveu o seu maior erro com convicção e foi isto precisamente que nele determinou a experiência vivida 504 Aqui se abre diante do psiquiatra um conjunto de problemas vitais que jamais poderá ser levado suficientemente a sério e aqui também se impõe ao médico da alma um problema que o coloca em estreito contato com o diretor espiritual 505 O problema do sofrimento da alma concerneria no fundo muito mais ao diretor espiritual do que ao médico Mas na maioria dos casos o doente consulta primeiro o médico porque pensa estar fisicamente enfermo e sabe que certos sintomas neuróticos poderão pelo menos ser aliviados por meio de medicamentos Por outro lado o diretor espiritual geralmente não possui os conhecimentos que o capacitem a penetrar nas trevas do pano de fundo psíquico dos doentes como também não possui a autoridade que lhe dê condições de convencer o doente de que seu sofrimento não é de natureza física mas psíquica 506 Há também certos doentes que conhecem a natureza espiritual de seu sofrimento mas se recusam a procurar um diretor espiritual justamente porque não acreditam que ele seja capaz de ajudálos realmente Esses mesmos doentes aliás sentem uma desconfiança análoga em relação aos médicos em geral desconfiança fundada porque de fato tanto o médico como o diretor espiritual se acham presentes mas de mãos vazias ou o que é pior capazes apenas de palavras ocas Que o médico afinal nada tenha a dizer a respeito das últimas questões da alma é de todo compreensível Aliás não é do médico mas do teólogo que o paciente deveria esperar este conhecimento Mas o pastor protestante se encontra algumas vezes confrontado com tarefas quase insolúveis uma vez que tem que lutar com dificuldades práticas das quais o sacerdote católico se acha impune Este último tem o respaldo sobretudo na autoridade da Igreja além disso encontrase numa situação social garantida e independente ao contrário do pastor protestante quase sempre casado tendo a pesarlhe sobre os ombros a responsabilidade de uma família e no pior dos casos sem um mosteiro ou uma colegiada para acolhêlo hospitaleiramente em suas necessidades Quanto ao sacerdote católico se for jesuíta gozará dos benefícios da formação psicológica mais moderna Assim por exemplo vim a saber que os meus trabalhos têm sido objeto em Roma de estudos sérios muito antes que algum teólogo protestante os tivesse honrado com um rápido olhar 507 Os problemas da hora são graves O abandono da Igreja protestante na Alemanha por numerosos fiéis não constitui senão um dos sintomas Muitos outros poderiam mostrar ao teólogo que apenas o recurso à fé ou um convite a uma atividade caritativa significam demasiado pouco para as expectativas e exigências do homem moderno O fato de muitos teólogos procurarem apoio psicológico ou uma ajuda prática na teoria sexual de Freud ou na teoria da vontade de poder de Adler representa ao que parece uma curiosa contradição pois estas duas concepções são no fundo inimigas de tudo o que há de espiritual no homem uma vez que se trata de psicologias sem alma São métodos racionalistas que precisamente impedem o pleno desabrochar da experiência espiritual Na sua imensa maioria os psicoterapeutas são adeptos de Freud ou de Adler Isto significa também que a maioria dos doentes se tornarão necessariamente estranhos às perspectivas espirituais Isto não pode deixar indiferente quem se interesse pelo destino da alma humana A vaga psicológica que inunda os países protestantes da Europa está longe de decrescer Ela avança paralelamente com o abandono em massa das Igrejas Cito aqui as palavras de um pastor protestante Hoje em dia as pessoas vão ao médico da alma ao invés de procurarem um diretor espiritual 508 Estou convencido de que esta afirmação só vale para o público culto Certamente não se aplica à grande massa Mas não nos esqueçamos de que aquilo que o homem culto pensa não levará mais do que vinte anos para tornarse objeto das preocupações da massa A obra célebre de Büchner Kraft und Stoff Força e matéria 2 por exemplo tornouse cerca de vinte anos depois de sua publicação quando já parecia praticamente abandonada pelos círculos cultos um dos livros mais lidos das bibliotecas populares da Alemanha Estou convencido de que as necessidades psicológicas dos homens cultos de hoje constituirão o centro de interesse popular de amanhã 509 Gostaria de apresentar aqui os seguintes fatos à reflexão dos meus leitores há trinta anos minha clientela provém um pouco de quase todos os países civilizados do mundo Várias centenas de doentes passaram pelas minhas mãos Em sua grande maioria eram protestantes havia uma minoria de judeus e não tratei mais do que cinco ou seis católicos praticantes De todos os meus pacientes que tinham ultrapassado o meio da vida isto é que contavam mais de trinta e cinco anos não houve um só cujo problema mais profundo não fosse o da atitude religiosa Aliás todos estavam doentes em última análise por terem perdido aquilo que as religiões vivas ofereciam em todos os tempos a seus adeptos e nenhum se curou realmente sem ter readquirido uma atitude religiosa própria o que evidentemente nada tinha a ver com a questão de confissão credo religioso ou com a pertença a uma determinada igreja 510 Aqui se abre um imenso domínio para o diretor espiritual Mas parece que quase ninguém o percebeu É improvável que o pastor protestante de hoje esteja suficientemente preparado para atender às fortes exigências da alma contemporânea Já está na hora de o diretor espiritual e o médico se darem as mãos para levar a bom termo esta ingente tarefa espiritual 511 Eu gostaria de mostrarlhes com um exemplo o quanto estes problemas são atuais Há pouco mais de um ano a Direção da Conferência dos Estudantes Cristãos de Aarau perguntoume por que as pessoas de hoje em casos de sofrimento moral dirigemse de preferência ao médico e não ao pastor Esta questão é direta e prática Até então eu constatara apenas que meus pacientes tinham procurado o médico e não o pastor Mas isto era um fato geral Tal coisa me parecia duvidosa em todo caso eu não dispunha de dados precisos sobre o problema Por isso promovi a este respeito uma pesquisa em círculos que me eram totalmente estranhos por meio de terceiros a ela responderam protestantes franceses alemães e suíços Paralelamente recebemos também um certo número de respostas de círculos católicos Os resultados desta pesquisa são muito interessantes De modo geral 57 de todos os protestantes e somente 25 dos católicos declaravam optar pelo médico nos casos de sofrimento moral Pelo pastor somente 8 dos protestantes contra 58 dos católicos Estas foram as opções claramente definidas O resto das respostas protestantes ou seja 35 ficou indeciso Do lado católico o número de indecisos não ultrapassou 17 512 E quais foram as razões principalmente alegadas para não se consultar o pastor Em 52 das respostas foi mencionada a falta de conhecimentos psicológicos e da compreensão daí decorrente 28 indicaram como motivo de sua abstenção que o pastor tem uma concepção preestabelecida e se acha muito preso a uma formação dogmática estreita e tradicional Notemos a título de curiosidade que até mesmo um pastor declarou optar pelo médico ao passo que outro me respondeu irritado A Teologia nada tem a ver com o tratamento de doentes Todos os membros de família dos teólogos que responderam à pesquisa de opinião se pronunciaram contra o pastor 513 Esta pesquisa evidentemente restrita a círculos cultos nada mais é do que uma sondagem de valor muito limitado Estou convencido de que certas camadas populares sem cultura reagiriam de modo diferente Mas minha tendência é a de admitir que pelo menos em relação aos meios que responderam a pesquisa possui um certo valor pois é fato bemconhecido que a indiferença pelas coisas da Igreja e da religião é muito grande e cresce cada vez mais nestes círculos E não esqueçamos quanto à psicologia das massas acima mencionada que os problemas ideológicos dos círculos cultos não levam mais do que vinte anos para atingir as classes populares sem cultura Quem teria previsto por exemplo há vinte ou mesmo há dez anos a imensa reviravolta espiritual que ocorreu na Espanha o mais católico de todos os países da Europa 3 E no entanto ele foi abalado repentinamente como que pela violência de uma catástrofe natural 514 Pareceme que paralelamente à decadência da vida religiosa o número de neuroses vai aumentando consideravelmente Entretanto não há qualquer estatística que ateste este crescimento Mas uma coisa me parece certa o estado de espírito geral do europeu mostra mais ou menos por toda parte uma ausência inquietante de equilíbrio Não se pode negar que vivemos em uma época de grande agitação de nervosismo de atividade mais ou menos desordenada e de notável desconcerto em tudo que se refere às concepções do mundo No seio de minha clientela que provém sem nenhuma exceção dos meios cultos figura um número considerável de pessoas que me consultaram não porque sofressem de uma neurose mas porque não encontravam um sentido para suas vidas ou porque se torturavam com problemas para os quais a filosofia e a religião não traziam qualquer solução Alguns pensavam que eu talvez possuísse alguma fórmula mágica mas tive prontamente de desenganálos e dizerlhes e isto nos leva aos problemas práticos que eu também não possuía qualquer resposta pronta 515 Tomemos por exemplo a mais frequente e a mais comum destas questões a do sentido da vida O homem moderno acredita saber à saciedade o que o pastor vai responder a esta interrogação e mesmo o que ele deve responder Do filósofo essas pessoas geralmente riem do médico de clínica geral não esperam muita coisa mas do especialista da alma que passa seu tempo a analisar o inconsciente quem sabe afinal de contas se não terá alguma coisa para dizer Talvez se possa esperar que ele tenha desenterrado dos subterrâneos obscuros da alma entre outras coisas também um sentido para a vida que poderíamos adquirir barato em troca do pagamento dos honorários Por isso constitui quase um alívio da consciência para qualquer pessoa séria saber que o próprio médico nada tem a dizer a priori sobre o assunto E assim a pessoa se consola sabendo que não errou o alvo que estava a seu alcance É muitas vezes por meio deste contato que se abre o caminho da confiança em relação ao médico 516 Descobri que há no homem moderno uma resistência invencível contra as opiniões préfabricadas e as verdades tradicionais que se pretende impor O homem moderno é como um bolchevista para o qual todas as formas e normas espirituais anteriores perderam de algum modo a validez e assim ele quer experimentar com o espírito o que o bolchevista faz com a economia Em face desta tendência do espírito moderno qualquer sistema da Igreja Católica ou protestante budista ou confucionista achase numa situação incômoda É inegável que entre os modernos existem naturezas destruidoras perversas tipos originais degenerados desequilibrados que não se sentem bem em parte alguma e que por conseguinte aderem a todos os novos experimentos e a todos os movimentos aliás com grande dano para estes últimos na esperança de descobrir aí enfim aquilo que possa atenuar as suas próprias deficiências Evidentemente por força de minha profissão conheço um grande número de pessoas de nossa época e consequentemente também os sujeitos patológicos assim como os normais Mas façamos abstração dos sujeitos patológicos Os indivíduos normais não são tipos originais doentios mas muitas vezes homens particularmente capazes bons e corajosos entretanto não é por maldade que rejeitam as verdades tradicionais e sim por motivos de correção e de honestidade Eles sentem globalmente que nossas verdades religiosas se tornaram de alguma forma ocas e vazias Ou não conseguem harmonizar sua concepção das coisas com as verdades religiosas ou então sentem que as verdades cristãs perderam sua autoridade e justificação psicológica As pessoas não se sentem mais salvas pela morte de Cristo e não conseguem mais crer Feliz por certo é aquele que pode crer em alguma coisa mas não se pode obter a fé pela força O pecado é qualquer coisa inteiramente relativa o que é mau para um é bom para o outro Por que Buda não teria tanta razão quanto Cristo 517 Creio que todos aqui conhecem estas questões e dúvidas tanto quanto eu A análise freudiana coloca todas estas coisas de lado declarando as impróprias porque na sua opinião tratase quanto ao essencial de recalques da sexualidade fatos encobertos por pretensos problemas filosóficos e religiosos Quando se estuda em sua realidade um caso individual em que surgem problemas desta natureza logo se constata efetivamente que o domínio sexual se acha perturbado de maneira muito singular de modo geral a esfera inteira dos instintos inconscientes Freud explica toda desordem psíquica partindo da existência dessa desordem sexual e se interessa unicamente pela causalidade dos sintomas psíquico sexuais Assim procedendo ignora completamente que existem casos em que as pretensas causas estavam presentes desde há muito mas não se manifestavam até que alguma perturbação da atitude consciente fizesse o indivíduo soçobrar na neurose Este procedimento é semelhante ao que aconteceria se num barco que fosse a pique por terse aberto um rombo no seu casco a tripulação se interessasse essencialmente pela composição da água que irrompesse no casco ao invés de esforçarse por tapar o buraco A perturbação da esfera sexual não é um fenômeno primário mas constitui como tal um fenômeno secundário A consciência perdeu seu sentido e sua esperança Tudo se passa como se um pânico tivesse irrompido comamos e bebamos porque amanhã estaremos mortos Este estado de alma nascido em seres que perderam o sentido de sua existência determina a perturbação do mundo subterrâneo e desencadeia os instintos domesticados a duras penas O motivo pelo qual alguém se torna neurótico está tanto no presente como no passado Só um motivo atualmente existente pode manter viva uma neurose Uma tuberculose existe hoje não porque há vinte anos houve uma infecção de bacilos tuberculosos mas porque o sujeito apresenta no momento focos bacilares em rápido desenvolvimento Onde e como teve lugar a infecção é de todo secundário Mesmo o mais exato conhecimento dos antecedentes do enfermo não o curaria da tuberculose A mesma coisa acontece com a neurose 518 É por esta razão que sempre levo a sério os problemas religiosos que um paciente me submeta e os considero como causas possíveis de uma neurose Mas se os levo a sério devo confessar a meu paciente Sim você tem razão podese sentir as coisas como você o faz Buda pode ter tanta razão quanto Cristo o pecado é relativo e não se vê realmente como e por que motivo deveríamos sentirnos salvos pela morte de Cristo Confirmar o doente nestas suas dúvidas é certamente muito fácil para mim enquanto médico mas é difícil para o pastor O paciente percebe a atitude do médico como resultante de uma compreensão ao passo que tomará as hesitações do pastor como o reflexo de um aprisionamento deste na história ou na tradição atitude que o separaria humanamente do enfermo E o paciente pensa consigo mesmo Se assim é o que acontecerá e o que irá dizer o pastor quando eu começar a falarlhe de todas aquelas coisas que perturbam minha vida instintiva Com toda razão o paciente esperará que o pastor esteja muito mais preso ainda aos seus conceitos morais do que os seus pontos de vista dogmáticos Podemos lembrar neste contexto a anedota deliciosa que se conta a respeito do lacônico Presidente Coolidge Num domingo pela manhã ele saiu e ao retornar sua mulher lhe perguntou Onde estiveste Na Igreja E o que disse o pastor Falou do pecado E o que disse ele sobre o pecado Ele foi contra 519 Dirmeão que o médico nesta perspectiva pode facilmente ser compreensivo Mas nós nos esquecemos de que entre os médicos também existem naturezas morais e que entre as confissões dos pacientes há algumas que o médico também tem certa dificuldade em digerir E no entanto o interlocutor não se sentirá aceito enquanto não for admitido aquilo que há de mais sombrio nele Ora nessa aceitação não se trata apenas de palavras e a ela se pode chegar em função da mentalidade de cada um e da atitude que se adota no confronto consigo próprio e com seu lado sombrio Se o médico quer conduzir a alma de alguém ou mesmo somente acompanhála é preciso pelo menos que esteja em contato com ela Este contato entretanto não se estabelecerá enquanto o médico mantiver uma atitude de condenação no que diz respeito à pessoa que lhe foi confiada Que nada diga acerca desta condenação ou que a exprima mais ou menos claramente isto em nada altera as consequências produzidas por sua atitude no paciente Mas também não adianta assumir a atitude inversa e dar sempre razão ao paciente em qualquer circunstância Este procedimento determinará o mesmo alheamento que uma condenação moral O contato com efeito só se estabelece graças a uma objetividade isenta de qualquer preconceito Esta afirmação tem um aspecto quase científico Alguém poderia confundir o meu pensamento com uma atitude puramente abstrata e intelectual Ora o que aqui estou dizendo é algo de inteiramente diverso tratase de uma atitude humana profundamente respeitosa em relação ao fato em relação ao homem que sofre esse fato e em relação ao enigma que a vida desse homem implica O homem autenticamente religioso assume precisamente tal atitude Ele sabe que Deus criou todas as espécies de estranhezas e coisas incompreensíveis e que procurará atingir o coração humano pelos caminhos mais obscuros possíveis É por isso que a alma religiosa sente a presença obscura da vontade divina em todas as coisas É esta atitude que pretendo designar quando falo de objetividade isenta de qualquer preconceito Ela constitui o desempenho moral do médico o qual não deve sentir repugnância pela enfermidade e pela podridão Não se pode mudar aquilo que interiormente não se aceitou A condenação moral não liberta ela oprime e sufoca A partir do momento em que condeno alguém não sou seu amigo e não compartilho de seus sofrimentos sou o seu opressor Isto não quer dizer evidentemente que nunca se deva condenar alguém Mas não se deve condenar ali onde se espera e se pode ajudar alguém a melhorar sem recorrer a essa condenação Se um médico quer ajudar um homem deve primeiramente aceitálo tal como é E não poderá fazer isso enquanto não se aceitar a si mesmo previamente tal como é em seu ser com todas as suas falhas 520 Isto talvez pareça muito simples Mas o que é simples em geral é sempre o mais difícil De fato a simplicidade constitui a arte suprema e assim a aceitação de si mesmo é a essência do problema moral e o centro de toda uma concepção do mundo Que eu faça um mendigo sentarse à minha mesa que eu perdoe àquele que me ofende e me esforce por amar inclusive o meu inimigo em nome de Cristo tudo isto naturalmente não deixa de ser uma grande virtude O que faço ao menor dos meus irmãos é ao próprio Cristo que faço Mas o que acontecerá se descubro porventura que o menor o mais miserável de todos o mais pobre dos mendigos o mais insolente dos meus caluniadores o meu inimigo reside dentro de mim sou eu mesmo e precisa da esmola da minha bondade e que eu mesmo sou o inimigo que é necessário amar Assistimos aqui a uma inversão total da verdade cristã pois já não temos mais amor nem paciência e somos nós próprios a dizer ao irmão que está dentro de nós Raca louco condenandonos dessa forma a nós próprios e irandonos contra nós mesmos Exteriormente dissimulamos aquilo de que somos feitos e negamos categoricamente haver encontrado à nossa frente esse miserável que habita dentro de nós e mesmo que o próprio Deus tivesse se aproximado de nós oculto sob estes traços repugnantes nós o teríamos rejeitado milhares de vezes muito antes que o galo cantasse 521 Quem quer que com a ajuda da Psicologia moderna tenha lançado um olhar não só por trás dos bastidores de seus pacientes mas também e principalmente por trás dos seus próprios bastidores e isto constitui uma necessidade para o psicoterapeuta moderno que não for um charlatão ingênuo reconhecerá que o mais difícil para não dizer o impossível é aceitarse tal como se é com sua miserável natureza Basta a simples alusão a esta necessidade para mergulhar o indivíduo em um suor de angústia e é por isso em geral que se prefere adotar com certa alegria e sem hesitação uma atitude mais complexa ou mais ambígua a saber a ignorância de si mesmo e o desvelo duvidoso em relação aos outros às dificuldades e aos pecados alheios É nesta atitude que está a demonstração das virtudes tangíveis graças às quais enganamos não só aos outros como a nós mesmos deixando a nossa consciência tranquila Com isto graças a Deus escapamos de nós mesmos Um semnúmero de pessoas puderam agir assim impunemente mas isto não acontece com todas e estas então mergulham em uma neurose na caminhada para Damasco Como pode o médico ajudar estes indivíduos se ele é um daqueles que se esquivou ao conhecimento de si mesmo e talvez tenha sido atingido pelo Morbus sacer mal sagrado da neurose Só possui uma objetividade isenta de preconceitos aquele que se aceitou tal como é Ora ninguém pode vangloriarse de o ter conseguido plenamente Poderíamos alegar o caso de Cristo que sacrificou sua encarnação histórica ao Deus que estava nele e viveu sua vida tal como ela era até o amargo fim sem levar em conta na verdade qualquer convenção humana ou o que pudesse parecer bom aos olhos dos fariseus 522 Nós os protestantes achamonos em melhores condições de abordar este problema Devemos compreender a imitação de Cristo no sentido de que se trataria de copiar a sua vida macaquear de algum modo os seus estigmas as suas chagas ou entendendoo em seu sentido mais profundo viver a nossa vida como Ele viveu a sua naquilo que Ele tinha de mais próprio e irredutível Imitar a vida de Cristo não é coisa fácil mas é indiscutivelmente mais difícil viver a própria vida no espírito em que Cristo viveu a sua Se alguém se esforçasse por conseguilo estaria correndo o risco de se chocar contra os próprios condicionamentos históricos e mesmo que atendesse às suas exigências ainda assim seria a seu modo ignorado desprezado escarnecido torturado e pregado numa cruz Com efeito tal homem seria uma espécie de bolchevista demente e não é sem motivo que o crucificariam Por isso é que se prefere a imitatio Christi imitação de Cristo coroada pela história e transfigurada pela santidade Eu jamais tentaria perturbar um monge que se esforçasse por realizar esta identificação com Cristo Acho que é digno de uma admiração especial Mas acontece que não sou monge e meus pacientes também não além do mais tenho a missão como médico de indicar a meus doentes o caminho segundo o qual poderão viver a sua vida sem se tornarem neuróticos A neurose é uma cisão interior uma discórdia íntima Tudo o que reforça esta discórdia agrava o mal tudo o que a reduz devolve a saúde Aquilo que provoca a discórdia é o pressentimento ou mesmo o conhecimento de que há dois seres no coração do mesmo sujeito e que eles se comportam de modo antagônico algo assim como o que diz Fausto Duas almas ai habitam em meu peito estes dois seres são o homem sensual e o homem espiritual o eu e sua sombra A neurose é uma cisão da personalidade 523 O problema da cura é um problema religioso Uma das imagens que ilustram o sofrimento neurótico no interior de cada um é a da guerra civil no plano das relações sociais que regulam a vida das nações É pela virtude cristã que nos impele a amar e a perdoar o inimigo que os homens curam o estado de sofrimento entre as pessoas Aquilo que por convicção cristã recomendamos exteriormente é preciso que o apliquemos internamente no plano da terapia das neuroses É por isso que os homens modernos não querem mais ouvir falar em culpa ou pecado Cada um já tem muito o que fazer com a própria consciência já bastante carregada e o que todos desejam saber e aprender é como conseguir reconciliarse com as próprias falhas como amar o inimigo que se tem dentro do próprio coração e como chamar de irmão ao lobo que nos quer devorar 524 O homem moderno também não está mais interessado em saber como poderia imitar a Cristo O que quer antes de tudo é saber como conseguir viver em função de seu próprio tipo vital por mais pobre ou banal que seja Tudo o que lhe lembra imitação se lhe afigura contrário ao impulso vital contrário à vida e é por isso que ele se rebela contra a história que gostaria de retêlo em caminhos previamente traçados Ora para ele todos esses caminhos conduzem ao erro Ele está mergulhado na ignorância mas se comporta como se sua vida individual constituísse a expressão de uma vontade particular divina que deveria ser cumprida antes e acima de tudo daí o seu egoísmo que é um dos defeitos mais perceptíveis do estado neurótico Mas quem disser ao homem moderno que ele é demasiado egoísta perdeu irremediavelmente a partida com ele O que se entende perfeitamente pois agindo assim não faz senão empurrálo cada vez mais para a neurose 525 É precisamente o egoísmo dos doentes que me impele em função de sua própria cura a reconhecer o profundo sentido de um tal egoísmo Há nele e para não o ver seria preciso que eu estivesse cego algo que se apresenta como uma autêntica vontade divina Quer dizer se o doente consegue impor seu egoísmo e eu devo ajudálo em tal sentido ele se tornará estranho aos demais repelilosá e assim tanto ele como os outros ficarão apenas consigo próprios Nada mais justo que isto lhes aconteça pois quiseram arrancálo do seu sagrado egoísmo Ora este deve serlhe deixado pois constitui sua força mais poderosa e mais sadia que é como acabo de dizer uma espécie de manifestação da autêntica vontade divina impelindoo na maioria das vezes a um isolamento total Por mais miserável que seja este isolamento ele não deixa de ser útil porque somente então é que o doente vai poder conhecerse a si próprio só então poderá aprender a medir o bem inestimável que reside no amor dos outros homens Além disso só no seio do abandono e da mais profunda solidão consigo mesmo podese experimentar os poderes benéficos que cada um traz dentro de si 526 Quando observamos em várias ocasiões evoluções desta natureza só pudemos reconhecer que aquilo que era mau tornouse um degrau para o bem e aquilo que parecia bom não fazia senão manter o mal em ação O demônio do egoísmo tornase assim a via régia para aquele silêncio que uma experiência religiosa exige Encontramos aqui a grande lei da vida que é a enantiodromia ou seja a conversão no contrário que pouco a pouco torna possível a unificação das duas componentes opostas da personalidade pondo um fim à guerra civil que nela se trava 527 Escolhi o egoísmo neurótico como exemplo por se tratar de um dos sintomas mais frequentes na vida do homem Mas poderia ter escolhido qualquer outro sintoma do caráter para demonstrar qual deve ser a atitude do psiquiatra em face das insuficiências de seus pacientes em outros termos para mostrar como utilizarse com proveito de atitudes negativas e do problema do mal que elas implicam 528 Talvez tudo isto pareça ainda muito simples Na realidade porém a aceitação do lado sombrio da natureza humana constitui algo que raia pelo impossível Basta pensar no que significa aceitarmos o irracional o insensato e o mau seu direito à existência Entretanto é a isto que o homem moderno aspira ele quer viver com aquilo que ele próprio é quer saber o que ele é e por esta razão é que rejeita a história Quer ser sem história para poder viver da forma experimental e constatar o que as coisas possuem de valor e de sentido em si mesmas independentemente daquilo que os preconceitos históricos afirmam a seu respeito A juventude moderna nos fornece exemplos surpreendentes em tal sentido Uma consulta feita a mim por uma sociedade alemã nos mostra até onde vai esta tendência Devese rejeitar o incesto E quais os fatos que podem ser alegados contra ele 529 Mas é difícil imaginar a que conflitos tais tendências poderão arrastar os homens Compreendo que se queira tentar o impossível para proteger os homens contemporâneos de tais aventuras Mas é estranho como nos parecem faltar os meios eficazes Todos os argumentos que atuavam contra a insensatez a ilusão e a imoralidade perderam em grande parte sua força de persuasão Colhemse agora os frutos da educação do século XIX Enquanto a Igreja pregava uma fé cega ao adolescente a universidade ensinava um intelectualismo racionalista e de tudo isto resultou que o argumento da fé e da razão acabaram se desgastando e perdendo a eficácia e capacidade de convencer O homem farto e cansado do choque de opiniões quer saber por si mesmo o que as coisas têm a lhe dizer em si mesmas E esta tendência que abre as portas é verdade às mais temíveis possibilidades constitui no entanto uma empresa corajosa à qual não podemos negar a nossa simpatia Este passo ousado do espírito moderno não é um empreendimento aventuroso e extravagante mas uma tentativa nascida da mais profunda necessidade psíquica de redescobrir graças a uma experiência original feita sem preconceitos a unidade da vida e de seu próprio sentido Certamente o medo e a pusilanimidade têm suas excelentes razões de ser mas é preciso encorajar e apoiar uma tentativa ao mesmo tempo audaciosa e séria que desafia e empenha o homem inteiro Lutar contra esta tentativa seria no fundo reprimir aquilo que o homem tem de melhor sua coragem suas altas aspirações e se se chegasse a este resultado terseia abortado aquela experiência infinitamente preciosa que é a única capaz de conferir um sentido à vida Que teria acontecido se São Paulo se desviasse de sua viagem a Damasco por qualquer razão sutil 530 É com este problema que o psicoterapeuta sério e consciencioso se deve confrontar Ele deve dizer em cada caso especial que está pronto em seu íntimo a prestar a sua orientação e ajuda a uma pessoa que se lança numa tentativa e numa busca ousada e incerta O médico em tal situação não deverá mais saber nem presumir que sabe o que é verdadeiro e o que não o é para nada excluir daquilo que compõe a plenitude da vida mas deverá concentrar sua atenção sobre aquilo que é verdadeiro Ora é verdadeiro aquilo que atua Se aquilo que me parece um erro é afinal de contas mais eficaz e mais poderoso do que uma pretensa verdade importa em primeiro lugar seguir este erro aparente pois é nele que residem a força e a vida que eu deixaria escapar se perseverasse naquilo que reputo como verdadeiro A luz necessita da obscuridade pois senão como poderia ela ser luz 531 A psicanálise de Freud se limita como se sabe a tornar consciente o mal e o mundo das sombras no interior do homem Ela simplesmente mostra a guerra civil latente até então no interior do indivíduo e aí termina sua tarefa É o próprio paciente que deve ver como poderá sair da situação Freud infelizmente ignorou por completo o fato de que o homem em momento algum da história esteve em condições de enfrentar sozinho as potências do mundo subterrâneo isto é de seu inconsciente Para isto ele sempre necessitou da ajuda espiritual que lhe proporcionava a religião do momento A abertura do inconsciente significava a explosão de um tremendo sofrimento da alma pois tudo se passa precisamente como se uma civilização florescente fosse submersa pela súbita invasão de uma horda de bárbaros ou como se campos férteis fossem abandonados à fúria avassaladora das águas depois de se terem rompido os diques de proteção A Primeira Guerra Mundial foi uma dessas explosões e ela nos mostrou melhor do que tudo como é frágil a barreira que separa um mundo aparentemente bemordenado do caos sempre pronto a submergilo É isto o que acontece em relação a cada indivíduo por trás de seu mundo racionalmente ordenado uma natureza espera ávida de vingança pelo momento em que ruirá a parede de separação para se expandir destruidoramente na existência consciente Desde os tempos mais recuados e mais primitivos o homem tem consciência deste perigo o perigo da alma e é por isso que ele criou ritos religiosos e mágicos para protegerse contra esta ameaça ou para curar as devastações psíquicas que daí decorrem É por isso que o curandeiro entre os povos primitivos é sempre e ao mesmo tempo o sacerdote o salvador tanto do corpo como da alma e que as religiões formam sistemas de cura dos sofrimentos da alma Isto se aplica de modo muito particular às duas maiores religiões da humanidade o cristianismo e o budismo O que alivia o homem não é o que ele próprio imagina mas somente uma verdade sobrehumana e revelada que o arranca de seu estado de sofrimento 532 Já fomos atingidos por uma vaga de destruição A alma sofreu danos e é por isso que os doentes exigem que o médico da alma assuma uma função sacerdotal porque esperam e exigem dele que os liberte de seus sofrimentos É por este motivo que nós médicos da alma devemos atualmente ocuparnos de problemas que a rigor compete à Faculdade de Teologia Mas não podemos pura e simplesmente abandonar tais problemas à Teologia pois cotidianamente somos desafiados pela miséria psíquica com que nos defrontamos de maneira direta Como entretanto todas as noções e tradições em geral se revelam inúteis é preciso antes de tudo trilhar a via da doença o labirinto de erros que agrava inicialmente ainda mais os conflitos e aumenta a solidão até tornála insustentável Mas há a esperança de que do fundo da alma de onde provêm todos os elementos destruidores nasçam igualmente os fatores de salvação 533 No começo de minha carreira quando decidi trilhar este caminho não sabia aonde ele me conduziria Ignorava o que as profundezas da alma encerravam e dissimulavam aquelas profundezas que desde então tenho definido como sendo o inconsciente coletivo e cujos conteúdos denomino de arquétipos Já nas épocas mais obscuras da préhistória e sem que isto tenha deixado de se repetir produziramse irrupções do inconsciente porque a consciência nem sempre existiu e deve terse formado nos primórdios da história da humanidade mais ou menos como se forma sempre de novo nos primeiros anos de nossa infância No começo a consciência é débil e facilmente sufocada pelo inconsciente É isto que deve ter acontecido na história psíquica da humanidade As lutas intestinas decorrentes destes fenômenos deixaram suas marcas Podemos dizer usando a linguagem das ciências naturais formaramse os mecanismos instintivos de defesa que intervêm automaticamente quando a miséria da alma atinge o seu ponto máximo Tais mecanismos surgem sob a forma de representações salutares de ideias inatas à alma humana inextirpáveis e que intervêm ativamente por si mesmas quando a desgraça o exige As ciências não podem senão constatar a existência destes fatores psíquicos e tentar explicálos racionalmente mas com isto simplesmente transfere a solução do enigma para um estágio anterior que continua hipotético sem chegar a um resultado satisfatório Encontramos aqui algumas questões finais De onde provém a consciência O que é propriamente a alma E aqui a ciência toca o seu limite 534 Tudo se passa como se no ponto culminante da doença os elementos destrutivos se transformassem em elementos de salvação Isto se produz graças ao fato daquilo que chamei arquétipos Estes despertam para uma vida independente assumindo a direção da personalidade psíquica em vez e no lugar do eu incapaz de suas volições e aspirações impotentes Um homem religioso diria que Deus toma a direção Diante do que conheço a respeito da maioria de meus pacientes devo evitar esta fórmula em si perfeitamente completa pois ela lembra demais aquilo que de início eles precisam rejeitar Devo exprimirme de modo mais modesto e dizer que a atividade autônoma da alma desperta formulação esta que leva mais em conta os fatos observados A grande inversão com efeito tem lugar no momento em que nos sonhos ou nas fantasias surgem conteúdos ou temas cuja origem não pode ser detectada na consciência O fato de o doente verse confrontado com algo estranho que brota do reino obscuro da alma mas que não se identifica com o eu e por isso se acha fora do arbítrio do eu é sentido como uma iluminação decisiva o sujeito reencontra o caminho de acesso para as fontes da vida da alma e isto constitui o início da cura 535 A fim de ilustrar este processo recorrerei a exemplos mas é quase impossível encontrar um caso individual ao mesmo tempo breve e convincente porque em geral tratase de evoluções extremamente sutis e complexas Muitas vezes é a impressão profunda que causa no paciente a maneira tipicamente independente com que os sonhos tratam de seus problemas Outras vezes será um tema decisivo que surge sob a forma de fantasmas e para o qual a consciência não está de modo algum preparada Mas na maior parte dos casos tratase de conteúdos ou conglomerados de conteúdos de natureza arquetípica que compreendidos ou não pela consciência e independentemente deste fato exercem por si mesmos um efeito considerável Às vezes a atividade autônoma da alma se exacerba a ponto de suscitar a percepção de uma voz interior ou de imagens visionárias e criar uma experiência que a rigor constitui uma experiência original da ação do espírito no homem 536 Experiências desta natureza facilmente conciliam os erros dolorosos do passado porque é a partir delas que se clarificará a desordem interior e mais ainda é a partir delas que o sujeito conseguirá reconciliarse também com seus antagonismos interiores e eliminar num nível superior de sua evolução o estado de dissolução doentia de que foi vítima 537 Em razão da importância e da amplidão das questões de princípio colocadas pela Psicoterapia moderna renuncio a entrar em detalhes por mais desejável que isto pareça em vista de uma melhor compreensão do tema tratado De qualquer forma espero ter conseguido descrever de modo claro a atitude que o médico da alma deve assumir perante seus doentes Espero igualmente que meu auditório tenha tirado mais proveito destas considerações do que de métodos e receitas que só conseguem agir como devem nas coisas da alma quando utilizados segundo o espírito que presidiu à sua elaboração A atitude do psicoterapeuta é infinitamente mais importante do que as suas teorias e os métodos psicológicos É por esta razão que me empenho sobretudo em levar ao conhecimento de meu público os problemas levantados por esta atitude Quero crer que lhes proporcionarei a este respeito informações honestas fornecendo a cada um dos presentes os meios para decidir em que medida e de que modo um pastor de almas pode se associar aos esforços empreendidos pela psicoterapia Longe de mim a pretensão da infalibilidade mas creio contudo que o quadro do estado do espírito moderno que acabo de esboçar é exato e corresponde à realidade Em todo caso aquilo que eu lhes disse em matéria de princípios a respeito dos problemas do tratamento das neuroses constitui a verdade sem retoques Nós médicos naturalmente nos sentiríamos gratificados se os esforços que fazemos para curar os sofrimentos da alma encontrassem uma certa compreensão e alguma simpatia por parte dos teólogos Por outro lado porém compreendemos as dificuldades insólitas ligadas à ordem dos princípios que se opõem a uma colaboração efetiva Embora minha posição no parlamento do espírito seja de extremaesquerda não deixo de ser o primeiro a prevenir contra uma generalização sem crítica de meus próprios pontos de vista Se bem que suíço e como tal visceralmente democrata devo reconhecer que a natureza é aristocrática e mais ainda é esotérica Quod licet Iovi non licet bovi o que é permitido a Júpiter não é permitido ao boi eis aí uma verdade que embora desagradável não é menos eterna Quem tem seus inúmeros pecados perdoados Aqueles que muito amaram ao passo que os que pouco amaram merecem o mínimo de perdão Estou inabalavelmente convencido de que um número imenso de homens pertencem ao grêmio da Igreja Católica e não a outro lugar pois é nela que encontram o acolhimento espiritual mais seguro e proveitoso como também estou convencido e isto em virtude de minha própria experiência de que uma religião primitiva convém infinitamente mais aos primitivos do que a imitação nauseante de um cristianismo que lhes é incompreensível e congenitamente estranho Por isso aliás creio que neste sentido deve haver protestantes que se elevem contra a Igreja Católica da mesma forma que protestantes que se elevem contra os próprios protestantes porque as manifestações do espírito são singulares e múltiplas como a própria criação 538 E um espírito vivo cresce e supera suas próprias formas anteriores procurando através de uma livreescolha os homens nos quais ele vivera e que o anunciarão Ao lado desta vida do espírito que se renova eternamente ao longo de toda a história da humanidade procurando atingir sua meta por vias múltiplas e muitas vezes incompreensíveis os nomes e as formas aos quais os homens se agarram com todas as forças representam muito pouca coisa pois nada mais são que frutos e folhas caducas do mesmo tronco da árvore eterna Fonte OC 116 488538 1 De acordo com uma exposição feita à Conferência Pastoral de Estrasburgo em maio de 1932 2 BÜCHNER L Kraft und Stoff oder Grundzge der natürlichen Weltordnung nebst einer darauf gebauten Moral oder Sittenlehre Leipzig se 1855 3 Esta conferência foi pronunciada durante a Segunda República da Espanha proclamada em 1931 e surpresa em 1936 Religião e psicologia uma resposta a Martin Buber 1499 Há algum tempo os leitores de sua revista tiveram a oportunidade de ler um artigo do Conde Keyserling 1 no qual fui classificado como um negador do espírito ungeistig E eis que agora no último número encontro um artigo de Martin Buber 2 que se preocupa igualmente com minha qualificação Sintome tanto mais no dever de agradecerlhe esta exposição pois ele me elevou da condição de negador do espírito na qual o Conde Keyserling me havia apresentado ao público de língua alemã à esfera da espiritualidade ainda que daquela espiritualidade do gnosticismo dos primórdios do cristianismo e que sempre foi encarada com desconfiança pelos teólogos O cômico é que esta apreciação coincide cronologicamente com a opinião provinda de fonte teológica autorizada e que me acusa de agnosticismo que é justamente o oposto do gnosticismo 1500 Ora se as opiniões divergem tanto umas das outras sobre uma determinada questão é porque segundo me parece existe a suposição bem fundada de que nenhuma delas é verdadeira isto é há um malentendido Por que se dedica tanta atenção ao problema de saber se sou gnóstico ou agnóstico Por que não dizer simplesmente que sou um psiquiatra cujo interesse principal é expor e interpretar o material colhido em suas experiências O que tento fazer é investigar os fatos concretos e tornálos acessíveis à inteligência A crítica não tem o direito de agir apressadamente atacando apenas afirmações isoladas e fora do contexto 1501 Para apoiar o seu diagnóstico Buber se utiliza até mesmo de um pecado que cometi em minha juventude há cerca de quarenta anos isto é o de perpetrar uma poesia 3 na qual eu expunha certos conhecimentos psicológicos em estilo gnóstico pois na época estava estudando os gnósticos com grande entusiasmo Este entusiasmo se baseava na constatação de que parecia terem sido eles os primeiros pensadores a se ocuparem a seu modo com os conteúdos do assim chamado inconsciente coletivo Mandei imprimir o poema sob pseudônimo e dei alguns exemplares de presente a determinados conhecidos sem suspeitar que um dia ele seria arrolado contra mim num processo de heresia 1502 Permitome lembrar aos meus críticos que fui considerado não só gnóstico e o contrário disso mas também teísta e ateu místico e materialista Em meio ao concerto de tantas e tão variadas opiniões não quero atribuir demasiada importância àquilo que eu próprio penso de mim mas citar apenas uma opinião expressa a meu respeito extraída de fonte aparentemente insuspeita um artigo publicado no British Medical Journal de 9 de fevereiro de 1952 Facts first and theories later is the keynote of Jungs work He is an empiricist first and last 4 Esta opinião tem todo o meu apoio 1503 Quem não conhece meus trabalhos certamente indagará qual o motivo determinante e a razão dessas opiniões tão conflitantes a respeito de um só e mesmo objeto A resposta é que todas elas sem exceção foram expressas por metafísicos isto é por pessoas que julgam saber acerca da existência de coisas incognoscíveis situadas no além Eu nunca ousei afirmar que tais coisas não existem mas também não tive a ousadia de pensar que alguma de minhas afirmações atinge de um modo ou de outro tais coisas ou que as exponha corretamente Eu duvido que nossas concepções a minha e a deles a respeito da natureza das coisas em si sejam idênticas e isto por razões evidentes de ordem científica 1504 Como porém as concepções e opiniões a respeito de determinados objetos metafísicos ou religiosos desempenham papel de grande importância na psicologia experimental 5 sou obrigado por razões de ordem prática a manejar conceitos correlatos Mas ao fazêlo doume plenamente conta de que estou lidando com noções antropomórficas e não com divindades ou anjos reais embora tais imagens arquetípicas se comportem com tal autonomia devido à sua energia específica a ponto de podermos denominálas metaforicamente de demônios psíquicos A realidade desta autonomia deve ser levada muito a sério primeiramente sob um ponto de vista teórico dado que ela expressa a dissociabilidade e a dissociação efetiva da psique e em segundo lugar sob um ponto de vista prático considerando que ela constitui a base da confrontação dialética entre o eu e o inconsciente que é um dos pontos principais do método psicoterapêutico Quem dispuser de algum conhecimento sobre a estrutura da neurose sabe que o conflito patogênico tem suas raízes na oposição entre o inconsciente e a consciência As chamadas forças do inconsciente não são conceitos abstratos que podemos manipular arbitrariamente mas antagonistas perigosos que às vezes provocam terríveis devastações na economia da personalidade Eles são o que de mais temível se possa esperar como contrapartida psíquica Mas para o leigo no assunto parece que se trata de uma doença orgânica de natureza obscura O teólogo imaginando que por detrás disto há a presença do diabo é quem mais próximo se acha da verdade psíquica 1505 Receio que Buber por compreensível desconhecimento da experiência psiquiátrica não entenda o que pretendo dizer por realidade da psique e pelo processo dialético da individuação O eu com efeito se contrapõe em primeiro lugar às forças psíquicas que trazem nomes consagrados desde os tempos antigos e foram por isso invariavelmente identificadas com seres metafísicos A análise do inconsciente demonstrou há muito tempo a existência de tais forças sob a forma de imagens arquetípicas que entretanto não se identificam com os conceitos abstratos correspondentes Talvez alguém acredite que os conceitos da consciência sejam representações diretas e corretas de seu objeto metafísico por virtude da inspiração do Espírito Santo Não há dúvida de que uma tal convicção só é possível para aquele que possui o carisma da fé Infelizmente não posso gloriarme dessa posse e por isso não penso que ao dizer alguma coisa sobre um arcanjo faça uma afirmação de caráter metafísico Pelo contrário o que expressei foi uma opinião a respeito de algo que pode ser experimentado ou seja a respeito de uma das forças do inconsciente que podemos sentir Estas forças são typi tipos numinosos ou conteúdos processos e dinamismos inconscientes Esses typi são se assim podemos dizer imanentes e transcendentes ao mesmo tempo Como meu único meio de conhecer as coisas é a experiência não tenho a possibilidade de ultrapassar este limite imaginando que minha descrição tenha reproduzido a imagem perfeita de um arcanjo metafísico real Apenas descrevi um fator psíquico que apesar de tudo exerce uma grande influência sobre a consciência Por causa de sua autonomia este fator representa um polo oposto do eu subjetivo na medida em que representa um segmento da psique objetiva É por isso que podemos denominálo tu Em favor de sua realidade temos o testemunho dos fatos diabólicos de nossa época os seis milhões de judeus assassinados as vítimas incontáveis do trabalho escravo na Rússia e a invenção da bomba atômica para dar apenas alguns exemplos do lado tenebroso da humanidade Em compensação tenho sido testemunha de tudo aquilo que pode ser expresso pelas palavras beleza bondade sabedoria e graça Estas experiências das profundezas e das alturas da natureza humana autorizamnos a usar o termo demônio em sentido metafórico 1506 Não se deve esquecer de que eu me ocupo com os fenômenos psíquicos que podem ser demonstrados empiricamente como fundamentos de conceitos metafísicos e de que ao pronunciar a palavra Deus por exemplo não posso referirme senão a paradigmas psíquicos demonstráveis mas que são de uma realidade tremenda Se alguém achar isto inacreditável eu o aconselho a fazer um giro de reflexão através de um manicômio 1507 A realidade da psique é minha hipótese de trabalho e minha atividade precípua consiste em coletar descrever e interpretar o material que os fatos me oferecem Não elaborei um sistema nem uma teoria geral Formulei apenas conceitos auxiliares que me servem de instrumentos de trabalho tal como se faz habitualmente nas ciências naturais Se Buber considera meu empirismo como gnosticismo então cabelhe o ônus de provar que os fatos por mim descritos nada mais são do que meras invenções Se ele conseguir isso através de material empírico é lícito concluir que sou gnóstico Mas neste caso ele se acharia na situação incômoda de concordar que todas as experiências religiosas não passam de autoilusões Atualmente minha opinião é a de que o julgamento de Buber bateu no endereço errado Isto se percebe sobretudo no fato de que aparentemente ele não é capaz de entender o modo pelo qual um conteúdo psíquico autônomo como a imagem de Deus possa contraporse ao eu não faltando vivacidade a essa relação Não há dúvida de que não é tarefa da ciência experimental verificar até que ponto um conteúdo psíquico desta natureza foi produzido e determinado pela existência de uma divindade metafísica Isto é da competência da teologia da revelação e da fé Parece que meu crítico não percebe que ele mesmo ao falar de Deus o faz partindo principalmente do que lhe diz sua consciência e depois de seus pressupostos inconscientes Não sei de que Deus metafísico ele fala Se é um judeu ortodoxo fala de uma divindade ainda não revelada por sua encarnação ocorrida no ano I de nossa era Se é cristão conhece a encarnação a respeito da qual Javé ainda não deixa entrever coisa alguma Não ponho em dúvida a convicção que ele tem de estar em relação viva com um tu divino mas como sempre acho que tal relação tem como objeto primeiramente um conteúdo psíquico autônomo definido de modo diferente por ele e pelo Papa Quanto a isto não me compete absolutamente julgar até que ponto aprouve ao Deus metafísico revelarse ao judeu fiel como o Deus anterior à encarnação aos padres da Igreja como o Deus trino posterior aos protestantes como o único Redentor sem Corredentora e ao Papa atual como Redentor com uma Corredemptrix Corredentora Ou devemos duvidar de que os representantes de outras religiões como o islã o budismo o hinduísmo e o taoismo não tenham também esta mesma relação vital com Deus com o Nirvana ou com o Tao tal como Buber com o seu próprio conceito de Deus 1508 É estranho que Buber se escandalize com a minha afirmação de que Deus não pode existir sem uma ligação com o homem e a considere como uma proposição de caráter transcendente Mas eu digo expressamente que tudo absolutamente tudo o que dizemos a respeito de Deus é uma afirmação humana isto é psíquica Mas será que a noção que temos ou formamos de Deus nunca está desligada do homem Poderá Buber informarme onde foi que Deus criou sua própria imagem sem ligação com o homem Como e por quem semelhante coisa pode ser constatada Vou especular ou fabular aqui excepcionalmente em termos transcendentes Deus na realidade formou uma imagem sua ao mesmo tempo incrivelmente esplêndida e sinistramente contraditória sem a ajuda do homem e a implantou no inconsciente do homem como um arquétipo um ἀρχέτυποὐ ῶζ não para que os teólogos de todos os tempos e de todas as religiões se digladiassem por causa dela mas sim para que o homem despretensioso pudesse olhar no silêncio de sua alma para dentro desta imagem que lhe é aparentada construída com a substância de sua própria psique encerrando tudo quanto ele viesse um dia a imaginar a respeito de seus deuses e das raízes de sua própria psique 1509 Este arquétipo cuja existência é atestada não somente pela história dos povos como também através da experiência psicológica com os indivíduos em particular satisfazme perfeitamente Ele é humanamente tão próximo e ao mesmo tempo tão estranho e diferente e como todos os arquétipos de atuação sumamente determinante sinal inequívoco de uma confrontação interior É por isso que a relação dialética com os conteúdos autônomos do inconsciente coletivo constitui parte essencial da terapia 1510 Buber enganase ao afirmar que eu elaboro enunciados metafísicos partindo de uma concepção fundamentalmente gnóstica Não é lícito tomar um resultado da experiência como pressuposto filosófico pois este resultado não foi obtido dedutivamente e sim através de material fornecido pela experiência clínica Eu recomendaria ao meu crítico que lesse as biografias de doentes mentais como as que se encontram por exemplo em John Custance Wisdom Madness and Folly Londres 1951 ou em Daniel Paul Schreber Denkwürdigkeiten eines Nervenkranken Leipzig 1903 que certamente não partiram de pressupostos gnósticos como eu também não ou a análise de um material mitológico como o que se encontra no excelente trabalho de seu vizinho de Tel Aviv o Dr Erich Neumann Apuleius Amor und Psyche Zurique 1952 Minha afirmação de que existe uma analogia e um parentesco muito próximo entre os produtos do inconsciente e certas representações metafísicas se baseia em minha experiência profissional Permitome neste contexto lembrar que conheço um grande número de abalizados teólogos tanto católicos como protestantes que não têm dificuldade de compreender meu ponto de vista empírico Por isso não vejo motivos para considerar minha maneira de expor tão errônea como se depreende das alusões de Buber 1511 Gostaria ainda de mencionar um equívoco que tenho constatado com muita frequência É o referente à estranha hipótese segundo a qual se as projeções fossem retiradas nada mais restaria do objeto O fato de eu corrigir minhas opiniões errôneas a respeito de uma determinada pessoa não significa que eu a renegue ou a faça desaparecer Pelo contrário agora é que a vejo de modo mais ou menos correto coisa que só poderá ser útil para uma determinada relação Mas o fato de considerar que todos os enunciados referentes a Deus provêm sobretudo da alma não implica a negação de Deus ou que se substitua Deus pelo homem Devo confessar que não me é nada simpático pensar necessariamente que todas as vezes que um pregador cita a Bíblia ou ventila suas opiniões religiosas é o próprio Deus metafísico que fala por meio dele Não há dúvida de que a fé quando a possuímos é algo de grandioso e que o conhecimento da fé é talvez muito mais perfeito do que tudo quanto conseguimos com nossa fatigante experiência de curto fôlego O edifício da dogmática cristã está por exemplo num patamar muito mais alto do que os philosophoumena agrestes dos gnósticos Os dogmas são estruturas pneumáticas de imensa beleza e de sentido admirável com os quais eu me tenho ocupado a meu modo A seu lado simplesmente se desvanecem as nossas tentativas científicas de estabelecer paradigmas da psique objetiva Elas estão presas à terra e à realidade são contraditórias incompletas lógica e esteticamente insatisfatórias As noções das ciências naturais e da psicologia clínica não derivam de princípios teóricos imaculados e irrepreensíveis mas do trabalho quotidiano realizado no terra a terra da existência humana e de seus males Os conceitos empíricos são de natureza irracional O filósofo que os critica como se fossem conceitos filosóficos trava uma batalha contra moinhos de vento e se envolve como Buber com seu conceito do simesmo nas maiores dificuldades Os conceitos empíricos são nomes que usamos para designar complexos de fatos reais e existentes Dado o caráter paradoxal de nossa existência é compreensível que o inconsciente encerre uma imagem de Deus também paradoxal que não se harmoniza com a beleza a sublimidade e a pureza do conceito dogmático de Deus O Deus de Jó e do Salmo 18 é porém um pouco mais realista e seu comportamento não conflita com a imagem de Deus do inconsciente Este último favorece a ideia da encarnação com seu simbolismo do anthropos Não me sinto responsável pelo fato de a história dos dogmas ter feito algum progresso depois do Antigo Testamento Não prego com isto uma nova religião pois para tanto precisaria apoiarme segundo o antigo costume pelo menos em uma revelação divina Sou um médico que se ocupa com a enfermidade do homem e de sua época voltado para aqueles meios terapêuticos que correspondam à realidade do mal Não somente Buber como qualquer um é livre para curar meus pacientes com a palavra de Deus evitando minha odiosa psicologia Acolherei de braços abertos esta sua tentativa Mas como a cura animarum espiritual nem sempre tem produzido os efeitos desejados é do modo acima indicado que deverão proceder por enquanto os médicos que não dispõem de coisa melhor do que a modesta gnose que a experiência lhes oferece Ou algum de meus críticos conhece algo melhor 1512 Como médico que sou encontrome numa situação aflitiva pois infelizmente não é possível fazer alguma coisa com a palavrinha deveria Não podemos exigir de nossos pacientes uma fé que eles próprios rejeitam porque nada entendem ou porque ela nada significa para eles mesmo que a possuíssem Temos sempre de contar com as possibilidades de cura encerradas na natureza do doente pouco importando que as concepções daí decorrentes estejam ou não de acordo com qualquer uma das confissões ou filosofias conhecidas O meu material empírico parece conter de tudo um pouco de primitivo ocidental e oriental Quase não se encontra um mitologema que não seja mencionado e nenhuma heresia que não misture aí alguma de suas singularidades É assim que deve ser constituída a camada coletiva das profundezas da alma humana O intelectualista e o racionalista contentes com a própria crença talvez se indignem contra isso e me acusem de ecletismo ímpio como se eu tivese inventado os fatos da natureza e da história humanas e preparado com eles uma beberagem teosófica intragável Ora quem tem uma crença ou prefere falar uma linguagem filosófica não precisa preocuparse com os fatos Mas um médico não pode deixar de encarar a realidade repugnante da natureza humana 1513 Os representantes dos sistemas tradicionais dificilmente entenderão as minhas formulações corretamente Um gnóstico por exemplo de maneira alguma estaria satisfeito comigo mas criticaria a ausência de uma cosmogonia bem como o desalinho de minha gnose em relação aos acontecimentos ocorridos no pleroma Um budista reclamaria contra o fato de eu me deixar cegar pela maya ilusão e um taoista criticaria meu caráter complicado Um cristão bem ortodoxo dificilmente deixaria de censurarme a despreocupação e a falta de respeito com que navego no céu das ideias dogmáticas Mas sou obrigado a pedir a meus críticos impiedosos que observem por bondade que parto de fatos buscando para eles uma interpretação Referências BUBER M Eclipse of God Studies in the Relation Between Religion and Philosophy Nova York 1952 Deutsch Gottesfinsternis Betrachtungen zur Beziehung zwischen Religion und Philosophie Zurique 1953 Enthält Religion und modernes Denken aus Merkur VI2 Stuttgart 1952 JUNG CG Erinnerungen Träume Gedanken Hg von Aniela Jaffé Zurique 1961 Septem sermones ad mortuos Privatdruck 1916 In Erinnerungen Träume Gedanken Von der 2 Auflage an Siehe dort KEYSERLING GH Begegnungen mit der Psychoanalyse In Merkur Deutsche Zeitschrift für europäisches Denken IV11 Stuttgart November 1950 p 11511168 SCHMALTZ G Östliche Weisheit und westliche Psychotherapie Stuttgart 1951 Fonte OC 182 14991513 Carta de 22 de fevereiro de 1952 ao editor publicada em Merkur VI5 maio de 1952 p 467473 Stuttgart 1 Hermann Keyserling 18801946 Begegnungen mit der Psychoanalyse Merkur IV11 novembro de 1950 p 11511168 Stuttgart 2 Religion und modernes Denken Merkur VI2 fevereiro de 1952 3 Sete sermões sobre os mortos de Basílides de Alexandria Escrito em 1916 A partir da 2ª edição em Erinnerungen Träume Gedanken org por Aniela Jaffé 4 Primeiro os fatos depois as teorias eis a tônica da obra de Jung Ele é em primeira e última análise um empírico A Great Thinker p 315 5 Cf a este respeito a exposição elucidativa de G Schmaltz Östliche Weisheit und westliche Psychotherapie Stuttgart se 1951 IV CAMINHOS ESPIRITUAIS E SABEDORIA ORIENTAL O objetivo da prática oriental é idêntico ao da mística ocidental deslocase o centro de gravidade do ego para o simesmo do homem para Deus o que quer dizer que o eu desaparece no simesmo e o homem em Deus OC 115 958 Em matéria de religião é sabido que não se pode entender o que não se experimentou interiormente OC 12 15 Comentário psicológico sobre o Livro Tibetano da Grande Libertação 1 1 Diferença existente entre o pensamento oriental e o pensamento ocidental 759 O Dr EvansWentz confioume a tarefa de escrever o comentário sobre um texto que contém uma apresentação muito importante da psicologia oriental O fato de que eu precise usar aspas já está indicando a problematicidade do emprego desse termo Talvez não seja fora de propósito lembrar que o Oriente não produziu algo de equivalente à nossa psicologia mas apenas uma metafísica A filosofia crítica que é a mãe da psicologia moderna é estranha tanto ao Oriente quanto à Europa medieval Por isso o termo espírito no sentido em que é empregado no Oriente tem uma conotação metafísica Nosso conceito ocidental de espírito perdeu este sentido depois da Idade Média e a palavra agora designa uma função psíquica Embora não saibamos nem pretendamos saber o que é a psique em si podemos entretanto ocuparnos com o fenômeno espírito Não afirmamos que o espírito seja uma entidade metafísica ou que exista alguma ligação entre o espírito individual e um espírito universal Universal Mind hipotético Por isso nossa psicologia é uma ciência dos fenômenos puros sem implicações metafísicas de qualquer ordem O desenvolvimento da filosofia ocidental nos dois últimos séculos teve como resultado o isolamento do espírito em sua própria esfera e a ruptura de sua unidade original com o universo O próprio homem deixou de ser o microcosmos e sua alma já não é mais a scintilla consubstancial ou uma centelha da anima mundi da alma do mundo 760 Em razão disto a psicologia trata todas as pretensões e afirmações metafísicas como fenômenos espirituais considerandoas como enunciados acerca do espírito e sua estrutura que em última análise decorre de certas disposições inconscientes A psicologia não os considera como possuidores de valor absoluto nem também lhes reconhece a capacidade de expressar uma verdade metafísica Não temos meios intelectuais que nos permitam verificar se uma tal colocação é correta ou errônea O que sabemos unicamente é que não há nem a certeza nem a possibilidade de demonstrar a validade de um postulado metafísico como por exemplo o de um espírito universal Mesmo que a inteligência nos garanta a existência de um espírito universal temos a convicção de que ela estabelece apenas uma afirmação Não acreditamos que tal afirmação demonstre a existência de um espírito universal Não há argumento contra essa consideração mas não há também certeza em relação à validade de nossa conclusão Ou dito em outras palavras é igualmente possível que nosso espírito não seja mais do que a manifestação de um espírito universal mas também quanto a isto não temos a possibilidade de saber se de fato é assim ou não Por isso a psicologia acha que o espírito não pode constatar nem demonstrar o que ultrapassa esses limites 761 Portanto ao reconhecermos os limites de nosso espírito estamos mostrando o nosso bomsenso Admito que constitui um sacrifício despedir se do mundo maravilhoso no qual vivem e se movimentam seres produzidos pelo nosso espírito Tratase do mundo do primitivo onde até mesmo objetos sem vida são dotados de uma força vital salvadora e mágica mediante a qual estes objetos tornamse parte integrante de nós mesmos Mais cedo ou mais tarde tivemos de compreender que seu poder no fundo era o nosso próprio poder e que seu significado era uma projeção de nós mesmos A teoria do conhecimento constitui apenas o último passo dado ao sairmos da juventude da humanidade ou seja daquele mundo em que figuras criadas pelo nosso espírito povoavam um céu e um inferno metafísico 762 Apesar da inevitável crítica da teoria do conhecimento permanecemos presos à concepção de que um órgão de fé capacita o homem a conhecer a Deus Foi assim que o Ocidente desenvolveu a nova enfermidade de um conflito entre a ciência e a religião A filosofia crítica da ciência tornouse por assim dizer metafisicamente negativa ou para dizer em outras palavras materialista partindo justamente de um julgamento errôneo Consideramos a matéria como uma realidade tangível e cognoscível Entretanto esta matéria é uma noção absolutamente metafísica hipostasiada por cérebros não críticos A matéria é uma hipótese Quando se fala em matéria está se criando no fundo um símbolo de algo que escapa ao conhecimento e que tanto pode ser o espírito como qualquer outra coisa pode ser inclusive o próprio Deus A crença religiosa por outro lado recusa se a abandonar sua concepção do mundo Contradizendo as palavras de Cristo os crentes tentam permanecer no estado de crianças Agarramse ao mundo da infância Um teólogo famoso confessa em sua autobiografia que Jesus era seu bom amigo desde a infância Jesus é precisamente o exemplo elucidativo de uma pessoa que pregava algo bem diverso da religião de seus pais Mas não parece que a imitatio Christi comporte o sacrifício espiritual e psíquico que Ele próprio teve de oferecer no início de sua carreira e sem o qual jamais terseia tornado um redentor 763 O conflito surgido entre ciência e religião no fundo não passa de um malentendido entre as duas O materialismo científico introduziu apenas uma nova hipótese e isto constitui um pecado intelectual Ele deu um nome novo ao princípio supremo da realidade pensando com isto haver criado algo de novo e destruído algo de antigo Designar o princípio do ser como Deus matéria energia ou o que quer que seja nada cria de novo Trocase apenas de símbolo O materialista é um metafísico malgré lui O crente por outro lado procura manterse em um estado espiritual primitivo por motivos meramente sentimentais Não se mostra disposto a abandonar a relação infantil primitiva relativamente às figuras criadas pelo espírito Prefere continuar gozando da segurança e confiança que lhe oferece um mundo em que pais poderosos responsáveis e bondosos exercem a vigilância A fé implica potencialmente um sacrificium intellectus desde que o intelecto exista para ser sacrificado mas nunca num sacrifício dos sentimentos Assim os crentes permanecem em estado infantil em vez de se tornarem como crianças e não encontram a sua vida porque não a perdem Acresce ainda que a fé entra em choque com a ciência recebendo deste modo a sua recompensa pois se nega a tomar parte na aventura espiritual de nossa época 764 Qualquer pensador honesto é obrigado a reconhecer a insegurança de todas as posições metafísicas em especial a insegurança de qualquer conhecimento de fé É também obrigado a reconhecer a natureza insustentável de quaisquer afirmações metafísicas e admitir que não existe uma possibilidade de provar que a inteligência humana é capaz de arrancar se a si mesma do tremedal puxandose pelos próprios cabelos Por isso é muito duvidoso saber se o espírito humano tem condições de provar a existência de algo transcendental 765 O materialismo é uma reação metafísica contra a intuição súbita de que o conhecimento é uma faculdade espiritual ou uma projeção quando seus limites ultrapassam os da esfera humana Esta reação era metafísica na medida em que o homem de formação filosófica mediana não podia encarar a hipóstase que daí resultaria necessariamente Não percebia que a matéria não passava de outro nome para designar o princípio supremo da existência Inversamente a atitude de fé mostranos como as pessoas resistem em acolher a crítica filosófica Mostranos também como é grande o temor de terem de abandonar a segurança da infância para se lançarem a um mundo estranho e desconhecido mundo regido por forças para as quais o homem é indiferente Fundamentalmente nada se altera nos dois casos o homem e o ambiente que o cerca permanecem idênticos O homem precisa apenas tomar consciência de que está contido na sua própria psique e que nem mesmo em estado de demência poderá ultrapassar estes limites Também deve reconhecer que a forma de manifestação de seu mundo ou de seus deuses depende em grande parte de sua própria constituição espiritual 766 Como já frisei anteriormente a estrutura do espírito é responsável sobretudo por nossas afirmações a respeito de objetos metafísicos Também ficamos sabendo que o intelecto não é um ens per se ou uma faculdade espiritual independente mas uma função psíquica e como tal depende da psique como um todo Um enunciado filosófico é o produto de uma determinada personalidade que vive em época bemdeterminada e num determinado lugar Não é fruto de um processo puramente lógico e impessoal Sob este aspecto o enunciado filosófico é antes de tudo subjetivo Que ele seja válido ou não subjetivamente depende do maior ou menor número de pessoas que pensem do mesmo modo O isolamento do homem no interior de sua própria psique como resultado da crítica da teoria do conhecimento conduziuo logicamente à crítica psicológica Esta espécie de crítica não goza de muita aceitação entre os filósofos porque estes consideram o intelecto filosófico como um instrumento da filosofia perfeito e livre de preconceitos Entretanto o intelecto é uma função que depende da psique individual e é determinado por condições subjetivas para não mencionarmos as influências do meio ambiente Na realidade já nos habituamos de tal modo com esta concepção que o espírito perdeu seu caráter universal Tornouse uma grandeza mais ou menos humanizada sem qualquer vestígio do aspecto cósmico ou metafísico de outrora quando era considerado como anima rationalis O espírito é considerado hoje como algo de subjetivo ou até mesmo arbitrário Depois que ficou demonstrado que as ideias universais hipostasiadas de outrora eram princípios espirituais passamos a compreender melhor que toda a nossa experiência da chamada realidade é psíquica cada pensamento cada sentimento e cada ato de percepção são formados de imagens psíquicas e o mundo só existe na medida em que formos capazes de produzir sua imagem Recebemos de tal modo a impressão profunda de nosso cativeiro e de nosso confinamento em nossa psique que nos sentimos propensos a admitir na psique a existência de coisas que desconhecemos e a que denominamos o inconsciente 767 A amplitude aparentemente universal e metafísica do espírito foi reduzida assim a um estreito círculo da consciência reflexa individual a qual se acha profundamente marcada por sua subjetividade quase sem limites e pela tendência infantil e arcaica à projeção e à ilusão desenfreadas Muitos pensadores científicos sacrificaram inclusive suas inclinações religiosas e filosóficas receosos de cair num subjetivismo incontrolado Para compensar a perda de um mundo que pulsava com o nosso sangue e respirava com o nosso sopro alimentamos um entusiasmo pelos fatos concretos por montanhas de fatos que o indivíduo jamais conseguirá abarcar com um só olhar Afagamos a doce esperança de que este acúmulo aleatório venha um dia a formar um todo pleno de sentido Mas ninguém tem certeza disto porque nenhum cérebro humano é capaz de abranger a gigantesca soma final deste saber produzido em massa Os fatos nos submergem e quem ousa especular deve pagar por isto com uma consciência má e não sem razão pois não tarda a tropeçar nos fatos reais 768 Para a psicologia ocidental o espírito é uma função da psique É a mentalidade de um indivíduo Na esfera da filosofia ainda é possível encontrar um espírito universal e impessoal que parece representar um resquício da alma humana primitiva Esta maneira de interpretar a concepção ocidental talvez pareça um tanto drástica mas no meu entender não está muito distante da verdade Em todo caso é esta a impressão que temos quando a comparamos com a mentalidade oriental No Oriente o espírito é um princípio cósmico a existência do ser em geral ao passo que no Ocidente chegamos à conclusão de que o espírito é a condição essencial para o conhecimento e por isso também para a existência do mundo enquanto representação e ideia No Oriente não existe um conflito entre a ciência e a religião porque a ciência não se baseia na paixão pelos fatos do mesmo modo que a religião não se baseia apenas na fé O que existe é um conhecimento religioso e uma religião cognoscitiva 2 Entre nós ocidentais o homem é infinitamente pequeno enquanto a graça de Deus é tudo No Oriente pelo contrário o homem é deus e se salva por si próprio Os deuses do budismo tibetano pertencem à esfera do ilusório sucederse das coisas e às projeções produzidas pelo espírito mas nem por isso deixam de ter existência entre nós porém uma ilusão continuará sempre uma ilusão e como tal não é coisa alguma É paradoxal mas ao mesmo tempo verdadeiro o fato de que para nós o pensamento não possui realidade em seu verdadeiro sentido Nós o tratamos como se fosse nada Embora o pensamento possa ser correto só admitimos sua existência devido a determinados fatos expressos por ele Podemos inventar certos objetos altamente destrutivos como por exemplo a bomba atômica com a ajuda desses fantásticos produtos de um pensamento que não existe na realidade pois achamos que é totalmente absurdo admitirse seriamente a realidade do pensamento em si 769 A realidade psíquica é um conceito discutível da mesma forma que a psique ou o espírito Alguns consideram estes últimos como sendo a consciência de seus conteúdos ao passo que outros admitem a existência de imagens obscuras e inconscientes Uns incluem os instintos na esfera do psíquico ao passo que outros os excluem daí A grande maioria dos autores considera a alma como o resultado de processos bioquímicos ocorridos nas células cerebrais Para poucos na psique reside a causa da função das células corticais Alguns identificam a vida com a psique Mas só uma minoria inexpressiva considera o fenômeno psíquico como uma categoria do ser enquanto tal tirando daí as consequências lógicas Na verdade é uma contradição considerar que a categoria do ser uma das condições essenciais de todo o existente ou seja da psique seja real apenas pela metade Na verdade o ser psíquico é a única categoria do ser da qual temos um conhecimento direto e imediato pois nenhuma coisa pode ser conhecida sem apresentarse como imagem psíquica A existência psíquica é a única que pode ser demonstrada diretamente Se o mundo não assume a forma de uma imagem psíquica é praticamente como se não existisse Este é um fato de que o Ocidente não se deu plenamente conta com raras exceções como por exemplo a filosofia de Schopenhauer Mas Schopenhauer como se sabe foi influenciado pelo budismo e pelos Upanishads 770 Até mesmo um conhecimento superficial é suficiente para mostrar que existe uma diferença fundamental entre o Oriente e o Ocidente O Oriente se baseia na realidade psíquica isto é na psique enquanto condição única e fundamental da existência A impressão que se tem é a de que este conhecimento é mais uma manifestação psicológica do que o resultado de um pensamento filosófico Tratase de um ponto de vista tipicamente introvertido ao contrário do ponto de vista ocidental que é tipicamente extrovertido 3 A introversão e a extroversão como se sabe são atitudes temperamentais ou mesmo constitucionais que jamais são intencionalmente assumidas em situações normais Excepcionalmente elas podem ser desenvolvidas de modo premeditado mas somente em condições muito especiais A introversão é se assim podemos nos exprimir o estilo do Oriente ou seja uma atitude habitual e coletiva ao passo que a extroversão é o estilo do Ocidente Neste a introversão é encarada como uma anomalia um caso patológico ou de qualquer maneira inadmissível Freud identificoua com uma atitude autoerótica do espírito Ele sustenta a mesma posição negativa da filosofia nazista da Alemanha moderna 4 filosofia que considera a introversão como um delito grave contra o sentimento comunitário No Oriente pelo contrário a extroversão que cultivamos com tanto carinho é considerada como um apetite ilusório e enganador como existência no Samsâra como o ser mais íntimo da cadeia dos nidanas que atinge seu ponto culminante na soma dos sofrimentos do mundo 5 Quem experimentou na prática o mútuo rebaixamento dos valores entre introvertidos e extrovertidos darseá bem conta do conflito emocional que existe entre o ponto de vista oriental e o ponto de vista ocidental A discussão acirrada acerca dos universalia que teve início com Platão oferece um exemplo instrutivo para quem é versado na história da filosofia na Europa Não quero examinar aqui todas as ramificações do conflito existente entre introvertidos e extrovertidos Devo porém mencionar os aspectos religiosos do problema O Ocidente cristão considera o homem inteiramente dependente da graça de Deus ou da Igreja na sua qualidade de instrumento terreno exclusivo da obra da redenção sancionado por Deus O Oriente pelo contrário sublinha o fato de que o homem é a única causa eficiente de sua própria evolução superior o Oriente com efeito acredita na autorredenção 771 O ponto de vista religioso representa sempre a atitude psicológica e seus preconceitos específicos mesmo para aquelas pessoas que esqueceram sua religião ou que dela nunca ouviram falar Em relação à psicologia o Ocidente é cristão em todos os sentidos apesar de tudo O anima naturaliter christiana de Tertuliano vale para todo o Ocidente não somente no sentido religioso como ele pensava mas também no sentido psicológico A graça provém de uma outra fonte de qualquer modo ela vem de fora Qualquer outra perspectiva é pura heresia Assim compreendese perfeitamente que a alma humana tenha complexos de inferioridade Quem ousa pensar em uma relação entre a alma e a ideia de Deus é logo acusado de psicologismo ou suspeito de misticismo doentio O Oriente pelo contrário tolera compassivamente estes graus espirituais inferiores em que o homem se ocupa com o pecado devido à sua ignorância cega a respeito do carma ou atormenta a sua imaginação com uma crença em deuses absolutos os quais se ele olhar um pouco mais profundamente perceberá que não passam de véus ilusórios tecidos pelo seu próprio espírito Por isso a psique é o elemento mais importante é o sopro que tudo penetra ou seja a natureza de Buda é o espírito de Buda o uno o DharmaKâya Toda vida jorra da psique e todas as suas diferentes formas de manifestação se reduzem a ela É a condição psicológica prévia e fundamental que impregna o homem oriental em todas as fases de seu ser determinando todos os seus pensamentos ações e sentimentos seja qual for a crença que professe 772 De modo análogo o homem ocidental é cristão independentemente da religião à qual pertença Para ele a criatura humana é algo de infinitamente pequeno um quase nada Acrescentase a isso o fato de que como diz Kierkegaard o homem está sempre em falta diante de Deus O homem procura conciliar os favores da grande potência mediante o temor a penitência as promessas a submissão autohumilhação as boas obras e os louvores A grande potência não é o homem mas um totaliter aliter o totalmente outro absolutamente perfeito e exterior a única realidade existente 6 Se modificarmos um pouco a fórmula e em lugar de Deus colocarmos outra grandeza como por exemplo o mundo o dinheiro teremos o quadro completo do homem ocidental zeloso temente a Deus piedoso humilde empreendedor cobiçoso ávido de acumular apaixonada e rapidamente toda espécie de bens deste mundo tais como riqueza saúde conhecimentos domínio técnico prosperidade pública bemestar poder político conquistas etc Quais são os grandes movimentos propulsores de nossa época Justamente as tentativas de nos apoderarmos do dinheiro ou dos bens dos outros e de defendermos o que é nosso A inteligência se ocupa principalmente em inventar ismos adequados para ocultar os seus verdadeiros motivos ou para conquistar o maior número possível de presas Não pretendo descrever o que sucederia a um oriental se se esquecesse do ideal de Buda Não quero colocar assim tão deslealmente e para nossa vantagem o preconceito ocidental Mas não posso deixar de propor a questão de saber se seria possível ou mesmo conveniente para ambos os lados imitar o ponto de vista do outro A diferença entre ambos é tão grande que não se vê uma possibilidade de imitálos e muito menos ainda a oportunidade de o fazer Não se pode misturar fogo com água A posição oriental idiotiza o homem ocidental e viceversa Não se pode ser ao mesmo tempo um bom cristão e seu próprio redentor do mesmo modo como não se pode ser ao mesmo tempo um budista e adorar a Deus Muito mais lógico é admitir o conflito pois se existe realmente uma solução só pode tratarse de uma solução irracional 773 Por inevitável desígnio do destino o homem ocidental tomou conhecimento da maneira de pensar do oriental É inútil querer depreciar esta maneira de pensar ou construir pontes falsas ou enganadoras por sobre abismos Em vez de aprender de cor as técnicas espirituais do Oriente e querer imitálas numa atitude forçada de maneira cristã imitatio Christi muito mais importante seria procurar ver se não existe no inconsciente uma tendência introvertida que se assemelhe ao princípio espiritual básico do Oriente Aí sim estaríamos em condições de construir com esperança em nosso próprio terreno e com nossos próprios métodos Se nos apropriarmos diretamente dessas coisas do Oriente teremos de ceder nossa capacidade ocidental de conquista E com isso estaríamos confirmando mais uma vez que tudo o que é bom vem de fora onde devemos buscálo e bombeálo para nossas almas estéreis 7 A meu ver teremos aprendido alguma coisa com o Oriente no dia em que entendermos que nossa alma possui em si riquezas suficientes que nos dispensam de fecundála com elementos tomados de fora e em que nos sentirmos capazes de desenvolvernos por nossos próprios meios com ou sem a graça de Deus Mas não poderemos entregarnos a esta tarefa ambiciosa sem antes aprender a agir sem arrogância espiritual e sem uma segurança blasfema A atitude oriental fere os valores especificamente cristãos e não adianta ignorar estas coisas Se quisermos que nossa atitude seja honesta isto é radicada em nossa própria história é preciso apropriarmonos desta atitude com plena consciência dos valores cristãos e conscientes do conflito que existe entre estes valores e a atitude introvertida do Oriente É a partir de dentro que devemos atingir os valores orientais e procurálos dentro de nós mesmos e não a partir de fora Devemos procurálos em nós próprios em nosso inconsciente Aí então descobriremos quão grande é o temor que temos do inconsciente e como são violentas as nossas resistências É justamente por causa destas resistências que pomos em dúvida aquilo que para o Oriente parece tão claro ou seja a capacidade de autolibertação própria da mentalidade introvertida 774 Este aspecto do espírito é por assim dizer desconhecido no Ocidente embora seja o componente mais importante do inconsciente Muitas pessoas negam de todo a existência do inconsciente ou afirmam que este é constituído apenas pelos instintos ou por conteúdos recalcados ou esquecidos que antes formavam parte da consciência Podemos admitir com toda a tranquilidade que a expressão oriental correspondente ao termo mind se aproxima bastante do nosso inconsciente ao passo que o termo espírito é mais ou menos idêntico à consciência reflexa Para nós ocidentais a consciência reflexa é impensável sem um eu Ela se equipara à relação dos conteúdos com o eu Se não existe o eu estará faltando alguém que possa se tornar consciente de alguma coisa O eu portanto é indispensável para o processo de conscientização O espírito oriental pelo contrário não sente dificuldade em conceber uma consciência sem o eu Admite que a existência é capaz de estenderse além do estágio do eu O eu chega mesmo a desaparecer neste estado superior Semelhante estado espiritual permaneceria inconsciente para nós pois simplesmente não haveria uma testemunha que o presenciasse Não ponho em dúvida a existência de estados espirituais que transcendam a consciência Mas a consciência reflexa diminui de intensidade à medida em que o referido estado a ultrapassa Não consigo imaginar um estado espiritual que não se ache relacionado com um sujeito isto é com um eu O seu poder não pode subtrairse ao eu O eu por exemplo não pode ser privado do seu sentimento corporal Pelo contrário enquanto houver capacidade de percepção deverá haver alguém presente que seja o sujeito da percepção É só de forma mediana e indireta que tomamos consciência de que existe um inconsciente Entre os doentes mentais podemos observar manifestações de fragmentos do inconsciente pessoal que se desligaram da consciência reflexa do paciente Mas não temos prova alguma de que os conteúdos inconscientes se achem em relação com um centro inconsciente análogo ao eu Antes pelo contrário existem bons motivos que nos fazem ver que um tal estado nem sequer é provável 775 O fato de o Oriente colocar de lado o eu com tanta facilidade parece indicar a existência de um pensamento que não podemos identificar com o nosso espírito No Oriente o eu desempenha certamente um papel menos egocêntrico que entre nós seus conteúdos parecem estar relacionados com um sujeito apenas frouxamente e os estados que pressupõem um eu debilitado parecem ser os mais importantes A impressão que se tem igualmente é de que a hathaioga serve antes de tudo para extinguir o eu pelo domínio de seus impulsos não domesticados Não há a menor dúvida de que as formas superiores da ioga ao procurar atingir o samâdhi têm como finalidade alcançar um estado espiritual em que o eu se ache praticamente dissolvido A consciência reflexa no sentido empregado por nós é considerada como algo inferior isto é como um estado de avidyâ ignorância ao passo que aquilo a que denominamos de pano de fundo obscuro da consciência reflexa é entendido no Oriente como consciência reflexa superior 8 O nosso conceito de inconsciente coletivo seria portanto o equivalente europeu do buddhi o espírito iluminado 776 Destas considerações podemos concluir que a forma oriental da sublimação consiste em retirar o centro de gravidade psíquico da consciência do eu que ocupa uma posição intermédia entre o corpo e os processos ideais da psique As camadas semifisiológicas inferiores da psique são dominadas pela prática da ascese isto é pela exercitação e assim mantidas sob controle Não são negadas ou reprimidas diretamente por um esforço supremo da vontade como acontece comumente no processo de sublimação ocidental Pelo contrário poderseia mesmo dizer que as camadas psíquicas inferiores são ajustadas e configuradas pela prática paciente da hathaioga até chegarem ao ponto de não perturbarem mais o desenvolvimento da consciência superior Este processo singular parece ser estimulado pela circunstância de que o eu e seus apetites são represados pelo fato de o Oriente atribuir maior importância ao fator subjetivo 9 A atitude introvertida caracterizase em geral pelos dados a priori da apercepção Como se sabe a apercepção é constituída de duas fases a primeira é a apreensão do objeto e a segunda a assimilação da apreensão à imagem previamente existente ou ao conceito mediante o qual o objeto é compreendido A psique não é uma não entidade desprovida de qualquer qualidade A psique constitui um sistema definido consistente de determinadas condições e que reage de maneira específica Qualquer representação nova seja ela uma apreensão ou uma ideia espontânea desperta associações que derivam do tesouro da memória Estas se projetam imediatamente na consciência e produzem a imagem complexa de uma impressão embora este fato já constitua em si uma espécie de interpretação Designa a disposição inconsciente da qual depende a qualidade da impressão que designo pelo nome de fator subjetivo Este merece o qualificativo de subjetivo porque é quase impossível que uma primeira impressão seja objetiva Em geral é preciso antes um processo cansativo de verificação análise e comparação para que se possa moderar e ajustar as reações imediatas do fator subjetivo 777 Apesar da propensão da atitude extrovertida a designar o fator subjetivo como apenas subjetivo a proeminência atribuída a este fator não indica necessariamente um subjetivismo de caráter pessoal A psique e sua natureza são bastante reais Como já assinalei elas convertem até mesmo os objetos materiais em imagens psíquicas Não captam as ondas sonoras em si mas o tom não captam os comprimentos das ondas luminosas mas as cores O ser é tal qual o vemos e entendemos Existe um número infinito de coisas que podem ser vistas sentidas e entendidas das mais diversas maneiras Abstração feita dos preconceitos puramente pessoais a psique assimila fatos exteriores de maneira própria que em última análise baseiase nas leis ou formas fundamentais da apercepção Estas formas não sofrem alteração embora recebam designações diferentes em épocas diferentes ou em partes diferentes do mundo Em nível primitivo o homem teme os magos e feiticeiros Modernamente observamos os micróbios com igual medo No primeiro caso todos acreditam em espíritos no segundo acreditase em vitaminas Antigamente as pessoas eram possuídas do demônio hoje elas o são e não menos por ideias etc 778 O fator subjetivo é constituído em última análise pelas formas eternas da atividade psíquica Por isto todo aquele que confia no fator subjetivo está se apoiando na realidade dos pressupostos psíquicos Se agindo assim ele consegue estender a sua consciência para baixo de sorte a poder tocar as leis fundamentais da vida psíquica estará em condições de entrar na posse da verdade que promana naturalmente da psique se esta não for então perturbada pelo mundo exterior não psíquico Em qualquer caso esta verdade compensará a soma dos conhecimentos que podem ser adquiridos através da pesquisa do mundo exterior Nós do Ocidente acreditamos que uma verdade só é convincente quando pode ser constatada através de fatos externos Acreditamos na observação e na pesquisa o mais exatas possíveis da natureza Nossa verdade deve concordar com o comportamento do mundo exterior pois do contrário esta verdade será meramente subjetiva Da mesma forma que o Oriente desvia o olhar da dança da prakrti physis natureza e das múltiplas formas aparentes da mâyâ assim também o Ocidente tem medo do inconsciente e de suas fantasias vãs O Oriente no entanto sabe muito bem haverse com o mundo apesar de sua atitude introvertida o Ocidente também sabe agir com a psique e suas exigências apesar de sua extroversão Ele possui uma instituição a Igreja que confere expressão à psique humana mediante seus ritos e dogmas As ciências naturais e a técnica não são também de modo algum invenções puramente ocidentais Seus equivalentes orientais parecem um pouco fora de moda ou mesmo primitivos mas o que temos para apresentar no tocante ao conhecimento espiritual e à técnica psicológica deve parecer tão atrasado comparado à ioga como a astrologia e a medicina orientais comparadas às ciências do Ocidente Não quero negar a eficácia da Igreja cristã mas se compararmos os Exercícios de Inácio de Loyola com a ioga compreendese o que quero dizer Existe uma diferença e uma diferença muito grande Passar diretamente deste nível para a ioga oriental é tão inoportuno quanto a súbita transformação dos asiáticos em europeus pela metade Os benefícios da civilização ocidental parecemme duvidosos e semelhante reparo tenho a fazer também quanto à adoção da mentalidade oriental por parte do Ocidente Mas estes mundos antitéticos se defrontaram um com o outro O Oriente está em pleno processo de transformação foi seriamente perturbado e de modo mais profundo e prenhe de consequências Até mesmo os métodos mais eficazes da arte bélica europeia foram imitados com sucesso pelo Oriente Quanto a nós a dificuldade parece mais de ordem psicológica Nossa fatalidade são as ideologias que correspondem ao Anticristo há tanto tempo esperado O nacionalsocialismo nazismo se assemelha tanto a um movimento religioso quanto qualquer outro movimento a partir de 622 dC O comunismo tem a pretensão de instaurar o paraíso na terra Estamos de fato mais protegidos contra as más colheitas e epidemias do que contra nossa miserável inferioridade espiritual que parece oferecer tão pouca resistência às epidemias psíquicas 779 O Ocidente é também extrovertido em sua atitude religiosa Hoje em dia soa como uma ofensa afirmar que o cristianismo possui um caráter hostil ou pelo menos uma atitude de indiferença em relação ao mundo e suas alegrias Pelo contrário o bom cristão é um cidadão jovial um homem de negócios empreendedor um excelente soldado o melhor em todas as profissões Os bens profanos são considerados muitas vezes como recompensa especial do comportamento cristão e o adjetivo ἐπιούσιοζ supersubstantialis 10 do Painosso que se referia ao pão foi abandonado há muito tempo pois o pão real é evidentemente muito mais importante Nada mais lógico portanto que uma extroversão tão ampla não pudesse conceder ao homem uma alma que encerrasse em si algo que não proviesse exteriormente do conhecimento humano ou que não fosse produzido pela graça divina Sob este ponto de vista a afirmação de que o homem traz em si a possibilidade da autorredenção é uma blasfêmia manifesta Em nossa religião não há nada que apoie a ideia de uma força de autolibertação do espírito Existe entretanto uma forma bastante moderna de psicologia a psicologia dita analítica ou complexa segundo a qual há a possibilidade de que no inconsciente ocorram determinados processos que compensam com o seu simbolismo as deficiências e os desnorteamentos da atitude consciente Quando as compensações inconscientes se tornam conscientes por meio da técnica analítica provocam uma mudança tão grande na atitude consciente que podemos falar de um novo nível de consciência Mas o método em si não é capaz de produzir o processo propriamente dito da compensação inconsciente Este depende inteiramente da psique inconsciente ou da graça divina o nome pouco importa Mas o processo inconsciente em si quase nunca atinge a consciência sem a ajuda da técnica Quando é trazido à tona revela conteúdos que formam um contraste notável com a orientação geral das ideias e dos sentimentos conscientes Se assim não fosse tais conteúdos não teriam efeito compensatório Mas o primeiro resultado em geral é um conflito pois a atitude consciente opõe resistência à penetração de tendências aparentemente incompatíveis e estranhas É nas esquizofrenias onde se veem os exemplos mais espantosos de semelhantes intrusões de conteúdos totalmente estranhos e inaceitáveis Nestes casos tratase naturalmente de deformações e aberrações patológicas e com o simples conhecimento do material moral é possível constatar a semelhança do esquema que está na base desses fenômenos Aliás são nossas próprias imagens que podem ser encontradas na mitologia e em outras formas arcaicas de pensamento 780 Em circunstâncias normais qualquer conflito impele a psique a agir no sentido de chegar a uma solução mais satisfatória Por via de regra vale dizer no Ocidente o ponto de vista consciente é que decide arbitrariamente contra o inconsciente porque tudo quanto procede do interior do homem é por preconceito considerado como algo de inferior ou não inteiramente correto Mas nos casos aqui mencionados todos os estudiosos são concordes em admitir que os conteúdos aparentemente incompatíveis e ininteligíveis não devem ser recalcados de novo e que é preciso também aceitar e suportar o conflito Em um primeiro momento parece impossível qualquer solução e este fato deve ser suportado com paciência A estase assim verificada constela o inconsciente ou em outras palavras o protelamento consciente provoca uma nova reação compensatória no inconsciente Esta reação que se manifesta geralmente nos sonhos é levada então ao plano da realização consciente A consciência se vê deste modo confrontada com um novo aspecto da psique e isto suscita um novo problema ou modifica inesperadamente os dados do problema já existente Este modo de proceder dura até o momento em que o conflito original é resolvido de maneira satisfatória Todo este processo é chamado de função transcendente Tratase ao mesmo tempo de um processo e de um método A produção de compensações inconscientes é um processo espontâneo ao passo que a realização consciente é um método A função é chamada transcendente 11 porque favorece a passagem de uma constituição psíquica para outra mediante a mútua confrontação dos opostos 781 Esta é uma descrição bastante esquemática da função transcendente Para os detalhes devo remeter o leitor às referências das notas de rodapé Mas não pude deixar de chamar a atenção para estas observações e para estes motivos de ordem psicológica porque eles nos indicam o caminho de acesso àquele espírito com o qual nosso texto se relaciona Tratase do espírito gerador de imagens da matriz de todas aquelas formas fundamentais que conferem à apercepção o seu caráter próprio Estas formas são exclusivas da psique inconsciente Estas constituem seus elementos estruturais e só elas podem explicar por que é que certos motivos mitológicos surgem com maior ou menor frequência por toda parte mesmo onde a migração é improvável como via de transmissão Os sonhos os fantasmas e as psicoses produzem imagens que se identificam aparentemente em todos os aspectos com os motivos mitológicos de que as pessoas implicadas não tinham conhecimento algum mesmo indiretamente graças a expressões de uso corrente ou por meio da linguagem simbólica da Bíblia 12 Não há dúvida de que tanto a psicopatologia da esquizofrenia quanto a psicologia do inconsciente revelam a presença de material arcaico Seja qual for a estrutura do inconsciente uma coisa é inteiramente certa ele contém um número determinado de motivos ou formas de caráter arcaico que no fundo identificamse com as ideias fundamentais da mitologia e formas análogas de pensamento 782 Pelo fato do inconsciente ser a matriz espiritual ele traz consigo a marca indelével do criador É o lugar onde se dá o nascimento das formas de pensamento como o é também o espírito universal sob o ponto de vista do nosso texto Como não podemos atribuir uma forma definida ao inconsciente a afirmação oriental segundo a qual o espírito universal não tem forma é arupaloka mesmo sendo o lugar de origem de todas as formas parece justificarse sob o ponto de vista psicológico Como as formas do inconsciente não estão ligadas a nenhuma época determinada e por isso parecem eternas causamnos a impressão singular e única de intemporalidade quando se realizam no plano da consciência Podemos constatar a mesma coisa na psicologia do primitivo a palavra australiana altjira 13 por exemplo significa ao mesmo tempo sonho país dos espíritos e tempo no qual os seus antepassados vivem e continuarão a viver É segundo dizem o tempo em que não havia tempo Isto nos parece uma concretização e projeção manifestas do inconsciente com todas as suas características suas manifestações oníricas suas formas originais de pensamento e sua intemporalidade 783 Por isso é que uma atitude introvertida na qual a tônica recai no fator subjetivo o pano de fundo da consciência e não no mundo exterior o mundo da consciência provoca necessariamente as manifestações características do inconsciente ou seja as formas arcaicas de pensamento impregnadas de sentimentos ancestrais ou históricos e também do sentimento de indeterminação de intemporalidade e de unidade O sentimento peculiar de unidade é uma experiência típica que ocorre em todas as formas de misticismo e é provável que provenha da contaminação geral dos conteúdos que se fortalecem com a debilitação da consciência reflexa abaissement du niveau mental A mistura quase sem limites das imagens nos sonhos e também nos produtos dos enfermos mentais nos atesta sua origem inconsciente Ao contrário da distinção e da diferença bem claras das formas no plano da consciência os conteúdos inconscientes são extremamente indeterminados e é por isso que podem misturarse com facilidade Se começassemos a imaginar um estado em que nada fosse claro certamente perceberíamos o todo como uno Por isso não é muito improvável que a sensação singular de unidade do conhecimento subliminar do complexo universal derive do inconsciente 784 Graças à função transcendente temos não só acesso ao espírito uno como aprendemos igualmente a entender as razões pelas quais o Oriente acredita na possibilidade da autolibertação Pareceme justo falarse em autolibertação se se consegue modificar o estado psíquico mediante a introspecção e a realização consciente das compensações inconscientes e assim chegar à solução dos conflitos dolorosos Mas como já indiquei acima não é tão fácil realizar a ambiciosa pretensão de autolibertação pois as compensações inconscientes não podem ser provocadas voluntariamente talvez seja preciso esperar que elas sejam produzidas Também não se pode mudar o caráter peculiar da compensação est aut non est ela é ou simplesmente não é É estranho que a filosofia oriental parece não ter prestado atenção a este fator de suma importância E é precisamente tal fato que justifica psicologicamente o ponto de vista ocidental Parece que a psique ocidental tem um conhecimento intuitivo da dependência do homem em relação a um poder obscuro que deve cooperar para que tudo corra bem Onde e quando o inconsciente não coopera o homem se vê embaraçado até mesmo em suas atitudes costumeiras Em tal situação pode tratarse de uma falha da memória da ação ou do interesse coordenados e da concentração e esta falha pode dar origem a inconvenientes sérios ou eventualmente também a um acidente fatal que pode levar à ruína tanto profissional como moral Antigamente em tais casos os homens diziam que os deuses haviam sido inclementes hoje falamos de neurose Sua causa nós a procuramos na falta de vitaminas nos distúrbios glandulares ou sexuais ou no excesso de trabalho Se cessa de repente a cooperação do inconsciente o que jamais consideramos como inteiramente natural então se trata de uma situação gravíssima 785 Comparativamente a outras raças como por exemplo a chinesa parece que o ponto fraco do europeu é o equilíbrio espiritual ou para dizêlo grosseiramente o cérebro É compreensível que queiramos distanciarnos o máximo possível de nossas fraquezas fato este que explica aquela espécie de extroversão com que se procura dominar o meio ambiente A extroversão caminha paralelamente à desconfiança em relação ao homem interior quando de alguma forma não nos damos conta dela Além disto todos nós tendemos a subestimar aquilo que tememos Nossa convicção absoluta de que nihil est in intellectu quod non antea fuerit in sensu de que no intelecto não se encontra nada que não tenha sido apreendido primeiramente pelos sentidos que constitui a divisa da extroversão ocidental deve ter um fundamento semelhante Mas como frisamos anteriormente esta extroversão se justifica psicologicamente pela razão essencial de que a compensação inconsciente escapa ao controle humano Sei que a ioga se orgulha de poder controlar até mesmo os processos inconscientes de sorte que nada há na psique que não seja dirigido por uma consciência suprema Não duvido absolutamente de que um tal estado seja mais ou menos possível mas só com uma condição de que o indivíduo se identifique com o inconsciente Esta identidade é o equivalente oriental de nossa idolatria ocidental da objetividade absoluta da orientação maquinal para um determinado fim para uma ideia ou objeto mesmo com o risco de perder todo o vestígio de vida interior Do ponto de vista oriental esta objetividade é apavorante é sinônimo da identidade completa com o samsâra para o Ocidente pelo contrário o samâdhi outra coisa não é senão um estado onírico sem importância No Oriente o homem interior sempre exerceu sobre o homem exterior um poder de tal natureza que o mundo nunca teve oportunidade de separálo de suas raízes profundas No Ocidente pelo contrário o homem exterior sempre esteve de tal modo no primeiro plano que se alienou de sua essência mais íntima O espírito único a unidade a indeterminação e a eternidade se achavam sempre unidas no Deus uno O homem tornouse pequeno um nada e fundamentalmente sempre num estado de má consciência 786 Creio que através de minha exposição tornouse claro que estes dois pontos de vista embora se contradigam mutuamente têm um fundamento psicológico Ambos são unilaterais porque não levam em conta os fatores que não se ajustam à sua atitude típica O primeiro subestima o mundo da consciência reflexa o segundo o mundo do espírito uno O resultado é que ambos com sua atitude extrema perdem metade do universo sua vida se acha separada da realidade total tornandose facilmente artificial e desumana O Ocidente tem a mania da objetividade seja a atitude ascética do cientista ou a atitude do corretor de Bolsa que esbanja a beleza e a universalidade da vida em troca de um objetivo mais ou menos ideal No Oriente o que se procura é a sabedoria a paz o desprendimento e imobilidade de uma psique que foi conduzida de volta às suas origens obscuras e deixou para trás todas as preocupações e alegrias da vida tal como ela é e provavelmente será Não é de admirar que esta unilateralidade em ambos os lados assuma formas muito semelhantes às do monaquismo É ela que garante ao eremita ao homem santo ao monge ou ao cientista uma concentração tranquila e sem distúrbios sobre um determinado objetivo Nada tenho a objetar contra semelhante unilateralidade É evidente que o homem o grande experimento da natureza ou seu próprio grande experimento achase autorizado a semelhantes empreendimentos se for capaz de os suportar Sem unilateralidade o espírito humano não poderia desenvolverse em seu caráter diferenciado Mas creio que não faz mal tentarmos compreender ambos os lados 787 A tendência extrovertida do Ocidente e a tendência introvertida do Oriente possuem um objetivo comum muito importante ambos fazem esforços desesperados por vencer aquilo que a vida tem de natural É a afirmação do espírito sobre a matéria o opus contra naturam indício da juventude do homem que se delicia toda a sua vida a usar da mais poderosa das armas jamais inventadas pela natureza o espírito consciente O entardecer da humanidade que se situa ainda num futuro longínquo pode suscitar um ideal diferente Com o passar do tempo talvez nem sequer se sonhe mais com conquistas Referências BÜTTNER H Meister Eckeharts Schriften und Predigten 2 vols Jena 1917 EVANSWENTZ WY Das tibetische Buch der grossen Befreiung Munique 1955 JUNG CG Psychologie und Alchemie Psychologische Abhandlungen V Zurique Rascher 1944 Rev Neuaufl 1952 GW 12 1972 31980 Symbole der Wandlung Analyse des Vorspiels zu einer Schizophrenie Zurique Rascher 1952 4 umgearbeitete Auflage von Wandlungen und Symbole der Libido 1912 GW 5 1973 31983 Psychologische Typen Zurique Rascher 1921 Neuaufl 1925 1930 1937 1940 1942 1947 e 1950 GW 6 1960 neunte rev Aufl 1967 zehnte rev Aufl I 41981 LÉVYBRUHL L Les Fonctions mentales dans les sociétiés inférieures 2 ed Paris 1912 MEIER CA Spontanmanifestationen des kollektiven Unbewussten In Zentralblatt für Psychotherapie XI Leipzig 1939 p 284303 NELKEN J Analytische Beobachtungen über Phantasien eines Schizophrenen In Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschung IV Viena e Leipzig 1912 OTTO R Das Gefühl des Überweltlichen Munique 1932 Das Heilige Breslau 1917 SAMYUTTANIKÄYA Übers von Wilhelm Geig 2 vols Munique 1930 SPIELREIN S Über den psychologischen Inhalt eines Falles von Schizophrenie In Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschung III Leipzig e Viena 1912 p 329400 Fonte OC 115 759787 1 Escrito em 1939 Apareceu pela primeira vez em inglês em The Tibetan Book of the Great Liberation organizado por WY EvansWentz 1954 Versão alemã publicada em 1955 2 Omito de propósito o Oriente modernizado 3 Cf em Psychologische Typen Tipos psicológicos as definições de extroversão e introversão OC 6 4 Este comentário foi redigido em 1939 5 Samyuttanikâya 12 Nidânasamyutta 6 OTTO R Das Heilige 1918 p 28 cf tb Das Gefühl des Überweltlichen 1932 p 212s 7 Quem não possui Deus desta maneira mas tem necessidade de buscálo todo fora não possui Deus de maneira nenhuma e então é fácil que algo o perturbe Meister Eckeharts Schriften und Predigten Organizado por H Büttner 1909 II p 8 8 A psicologia do Ocidente não classifica os conteúdos desta maneira isto é como julgamentos da consciência que distinguem entre a ideia de superior e de inferior Parece que o Oriente reconhece a existência de condições psíquicas subumanas uma verdadeira subconsciência que compreende os instintos e os psiquismos semifisiológicos mas é classificada de consciência superior 9 Tipos psicológicos 2011 OC 6 p 406s 10 O termo substantialis não corresponde ao verdadeiro correto sentido de ἐπιούσιοζ como mostraram pesquisas posteriores 11 Cf as definições em Tipos psicológicos OC 6 no verbete símbolo 12 Muitas pessoas acham que estas afirmações não merecem crédito mas ou não conhecem a psicologia do homem primitivo ou nada sabem a respeito dos resultados das pesquisas psicológicas Em minha obra Symbole der Wandlung Símbolos da transformação encontramse observações específicas como também em Psychologie und Alchemie Psicologia e alquimia e ainda em NELKEN J Analytische Beobachtungen über Phantasien eines Schizophrenen 1912 p 504s SPIELREIN S Über den psychologischen Inhalt eines Falles von Schizophrenie 1912 p 329s MEIER CA Spontanmanifestationen des kollektiven Unbewussten 13 LÉVYBRUHL L La Mythologie primitive 1935 p 23s A ioga e o Ocidente 1 859 Há pouco menos de um século o Ocidente adquiriu alguma noção da ioga Embora seja verdade que há mais de dois mil anos tenham chegado à Europa os mais variados tipos de narrativas maravilhosas provenientes da Índia fabulosa com seus sábios e céticos onfálicos contudo só mediante os primeiros contatos com os Upanishads trazidos ao Ocidente por Anquetil du Perron teve início um verdadeiro conhecimento da filosofia hindu e da prática filosófica da Índia Mas um conhecimento mais geral e mais aprofundado só foi possível graças ao trabalho de Max Müller Oxford e aos Sacred Books of East editados por ele Este conhecimento real no entanto restringiuse inicialmente aos indólogos e filósofos Mas o movimento teosófico desencadeado por Madame Blavatsky não tardou em apoderarse das tradições orientais e as colocou ao alcance do público Durante várias décadas o conhecimento da ioga foi cultivado no Ocidente de um lado como ciência estritamente acadêmica e de outro como algo que talvez possamos classificar de religião conquanto não se tenha desenvolvido a ponto de tornarse uma igreja organizada apesar dos esforços de Annie Besant e do fundador do ramo antroposófico Rudolf Steiner que por sua vez deriva de Madame Blavatsky 860 Dificilmente se pode comparar o caráter desta evolução com aquilo que a ioga significa para a Índia Ou seja no Ocidente as doutrinas orientais encontraram uma situação espiritual peculiar que a Índia pelo menos a Índia antiga desconhecia ou seja a rigorosa separação entre ciência e religião existente em maior ou menor grau há trezentos anos quando a doutrina da ioga começou pouco a pouco a tornarse conhecida no Ocidente Esta separação que é uma característica típica do Ocidente começou com o Renascimento no século IV época em que surgiu um interesse geral e apaixonado pela antiguidade clássica favorecido pela queda do Império Romano do Oriente que sucumbiu às investidas do Islamismo Pela primeira vez difundiuse o conhecimento da língua e da cultura gregas no Ocidente A esta irrupção da assim chamada filosofia pagã seguiuse imediatamente o grande Cisma da Igreja Romana ou seja o Protestantismo que em breve se alastrou por toda a Europa setentrional Mas esta renovação do Cristianismo já não era capaz de exorcizar os espíritos libertados 861 Começara a época das descobertas mundiais no sentido geográfico e científico do termo enquanto o pensamento ia se emancipando de forma crescente das cadeias opressivas da tradição religiosa As igrejas continuaram a existir mantidas pela necessidade estritamente religiosa do público mas perderam a liderança no plano cultural Enquanto a Igreja Romana continuou formando uma unidade graças à sua inexcedível forma de organização o protestantismo se esfacelou em cerca de quatrocentas denominações diferentes Isto revela de um lado a sua incapacidade intrínseca mas também o seu dinamismo a sua vitalidade religiosa que o impele sempre para diante para mais longe No decorrer do século XIX houve uma paulatina formação sincrética e a importação maciça de sentimentos religiosos exóticos como por exemplo a religião formada por Abdul Bahai as seitas sufistas a pregação de Ramakrishna o budismo etc Muitos destes sistemas como a teosofia por exemplo incorporaram elementos cristãos A imagem que daí resultou corresponde quase ao sincretismo helenístico dos séculos III e IV que chegou também à Índia pelo menos em seus resquícios 2 862 Mas todos estes sistemas se situam na linha religiosa e recrutam a maior parte de seus adeptos no seio do protestantismo No fundo tratase nada mais do que de seitas protestantes O protestantismo concentrava seus golpes contra a autoridade da Igreja abalando principalmente a fé nessa mesma Igreja enquanto transmissora e comunicadora da salvação divina Isso fez com que coubesse ao indivíduo o ônus da autoridade e consequentemente uma responsabilidade religiosa que até então não tivera O declínio da prática da confissão dos pecados e da absolvição agravou ainda mais o conflito moral interior do indivíduo sobrecarregandoo de uma série de problemas de que a Igreja outrora o poupara na medida em que seus sacramentos e em particular o sacrifício da missa garantiam a salvação ao fiel graças à realização da ação sagrada pelo ministério do sacerdote Para tanto o indivíduo devia contribuir apenas com a confissão pessoal dos pecados com o arrependimento e a penitência Com a eliminação da ação sagrada eficaz passou a faltar a resposta de Deus ao propósito do indivíduo São estas as lacunas que explicam o anseio e a busca de sistemas que prometessem essa resposta ou seja um gesto de complacência e aceitação por parte de outrem superiores diretores espirituais ou mesmo Deus 863 A ciência europeia não tomava na devida conta estas esperanças e expectativas Mantinhase distanciada e isolada das convicções e necessidades religiosas do grande público Este isolamento do espírito ocidental inevitável do ponto de vista histórico apoderouse também da doutrina da ioga na medida em que foi acolhida no Ocidente transformandoa de um lado em objeto de ciência e de outro saudandoa como processo terapêutico É verdade que não se pode negar a existência no seio deste movimento de toda uma série de tentativas no sentido de conciliar a ciência com a convicção religiosa e a prática como no caso da Christian Science a teosofia e antroposofia das quais notadamente a última gosta de se apresentar com laivos de ciência por isto a antroposofia do mesmo modo que a Christian Science invalida certos ambientes de cultura intelectual 864 Como o protestantismo não tem um caminho previamente traçado qualquer sistema que lhe permita um desenvolvimento adequado é por assim dizer bemvisto por ele No fundo deveria fazer tudo aquilo que a Igreja sempre fez como mediadora só que agora não sabe como fazêlo Tendo levado a sério as próprias necessidades religiosas também fez esforços inauditos para crer Mas a fé é um carisma um dom da graça e não um método E é justamente um método que faz falta aos protestantes a ponto de muitos deles terem se interessado seriamente pelos exercícios espirituais de Inácio de Loyola rigorosamente católicos Mas o que mais os perturba é a contradição entre a verdade religiosa e a verdade científica o conflito entre a fé e o saber que através do protestantismo afetou até mesmo o catolicismo Este conflito existe única e exclusivamente por causa da cisão histórica operada no pensamento europeu Se não houvesse de um lado um impulso psicológico inatural para crer e do outro uma fé igualmente inatural na ciência não haveria qualquer razão para este conflito Seria fácil então imaginar um estado em que o indivíduo simplesmente soubesse e ao mesmo tempo acreditasse naquilo que lhe parecesse provável por estas ou aquelas boas razões A rigor não há forçosamente uma razão para o conflito entre essas duas coisas Na verdade ambas são necessárias pois apenas o conhecimento assim como apenas a fé são sempre insuficientes para atender às necessidades religiosas do indivíduo 865 Por isso se se propuser algum método religioso como científico podese estar certo de contar com o público no Ocidente A ioga satisfaz a essa expectativa À parte o estímulo da novidade e o fascínio pela meia compreensão a ioga conquista muitos adeptos por boas razões ela propõe não só um método tão amplamente procurado como também uma filosofia de inaudita profundidade Oferece a possibilidade de uma experiência controlável satisfazendo com isto a necessidade científica de fatos e além disso graças à sua amplitude e profundeza à sua idade venerável à sua doutrina e metodologia que abarcam todos os domínios da vida promete insuspeitadas possibilidades que os pregadores da doutrina raramente deixaram de sublinhar 866 Silencio a importância que a ioga tem na Índia pois não me sinto autorizado a emitir um juízo a respeito de algo que não conheço por experiência própria Mas posso dizer alguma coisa sobre aquilo que ela significa para o Ocidente A ausência de métodos entre nós raia pela anarquia psíquica Por isso qualquer prática religiosa ou filosófica significa uma espécie de disciplinamento psicológico e consequentemente também um método de higiene mental As inúmeras formas de proceder da ioga de natureza puramente corporal significam também uma higiene fisiológica que pelo fato de estar subordinada à ginástica costumeira ou aos exercícios de controle da respiração é também de natureza filosófica e não apenas mecânica e científica De fato nestes exercícios ela liga o corpo à totalidade do espírito coisa que se pode ver claramente nos exercícios do prânayâma onde o prâna é ao mesmo tempo a respiração e a dinâmica universal do cosmos Como a ação do indivíduo é ao mesmo tempo um acontecimento cósmico o assenhoreamento do corpo inervação se associa ao assenhoreamento do espírito da ideia universal resultando daí uma totalidade viva que nenhuma técnica por mais científica que seja é capaz de produzir Sem as representações da ioga seria inconcebível e também ineficaz a prática da ioga Ela trabalha com o corporal e o espiritual unidos um ao outro de maneira raramente superada 867 No Oriente onde surgiram estas ideias e estas práticas e onde há quatro mil anos uma tradição ininterrupta criou todas as bases e os pressupostos espirituais necessários a ioga como é fácil de imaginar tornouse a expressão mais adequada e a metodologia mais apropriada para fundir o corpo e o espírito em uma unidade que dificilmente se pode negar gerando assim uma disposição psicológica que possibilita o surgimento de sentimentos e intuições que transcendem o plano da consciência A mentalidade histórica da Índia não tem em princípio qualquer dificuldade em trabalhar analogicamente com um conceito como o de prâna Mas o Ocidente com seu mau costume de querer crer de um lado e com a sua crítica de origem filosófica e científica do outro cai cegamente na armadilha da crença e engole conceitos e termos como prâna âtman châcra samâdhi etc Mas a própria crítica científica já tropeça contra o conceito de prâna e de purusha Por isso a cisão operada no espírito ocidental torna impossível de início uma adequada realização das intenções da ioga Ou esta é um assunto estritamente religioso ou um training como a mnemotécnica a ginástica respiratória a eurritmia etc Mas não se encontra o mínimo vestígio daquela unidade e dessa totalidade que é própria da ioga O hindu não consegue esquecer nem o corpo nem o espírito O europeu pelo contrário esquece sempre um ou outro Foi graças a esta capacidade que ele conquistou antecipadamente o mundo isso não ocorrendo com o hindu Este não somente conhece a sua natureza como também sabe até onde ele próprio é essa natureza O europeu pelo contrário tem uma ciência da natureza e sabe espantosamente muito pouco a respeito da natureza que está nele Para o hindu é um benefício conhecer um método que o ajude a vencer o poder supremo da natureza por dentro e por fora Para o europeu é um veneno reprimir totalmente a natureza já mutilada e transformála em robô obediente 868 Embora se afirme que a ioga é capaz de mover montanhas é difícil apresentar uma prova neste sentido O poder da ioga se situa dentro dos limites admissíveis para seu meio ambiente O europeu pelo contrário pode fazer montanhas saltarem pelos ares e a guerra mundial nos deu um antegosto amargo de tudo quanto ele é ainda capaz de fazer quando seu intelecto alienado da natureza se liberta de todos os freios Como europeu não posso desejar que o homem adquira ainda um maior controle e poder sobre a natureza tanto exterior como interiormente Sim devo confessar para vergonha minha que devo os meus melhores conhecimentos e entre eles há alguns que são inteiramente bons à circunstância de por assim dizer ter feito sempre o contrário do que nos dizem todas as regras da ioga Graças ao desenvolvimento histórico o europeu se distanciou de suas raízes e seu espírito terminou por cindirse entre fé e saber da mesma forma que qualquer excesso de natureza psicológica se dissolve nos pares opostos O europeu precisa retornar não à natureza à maneira de Rousseau mas à sua natureza Sua missão consiste em redescobrir o homem natural Em vez disso porém o que ele prefere são sistemas e métodos com os quais possa reprimir o homem natural que atravessa seu caminho onde quer que esteja Com toda certeza ele fará mau uso da ioga pois sua disposição psíquica é totalmente diversa da do homem oriental Sempre digo a quem posso Estude bem a ioga Você aprenderá um número infinito de coisas com ela mas não a utilize pois nós europeus não somos feitos para usar sem mais nem menos tais métodos Um guru hindu poderá explicarlhe tudo muito claramente e você poderá executar depois o que ele lhe tiver ensinado mas saberá você quem está se utilizando da ioga Em outras palavras Saberá você quem é você mesmo e de que modo é constituído 869 O poder da ciência e da técnica na Europa é tão grande e tão incontestável que é quase uma pura perda de tempo procurar saber o que se pode fazer e o que já se inventou Sentimonos tomados de pavor diante das imensas possibilidades do europeu E aqui uma questão inteiramente diferente começa a se delinear Quem emprega este poder Em mãos de quem se encontra esta capacidade de ação O Estado é ainda por algum tempo um instrumento preventivo que aparentemente protege o cidadão contra a massa incalculável de venenos e de outros meios infernais de destruição estes podem ser produzidos sempre a curtíssimo prazo e em toneladas O poder tornouse de tal modo perigoso que é cada vez mais premente a questão não tanto de saber o que ainda se pode fazer mas de que modo deveria ser constituído o homem ao qual se confia o controle deste poder ou de que maneira se poderia mudar a mentalidade do homem ocidental para que renunciasse a seu terrível poder Seria infinitamente mais importante tirarlhe a ilusão desse poder do que reforçálo na errônea convicção de que pode tudo quanto quer O slogan Querer é poder custou a vida a milhões de pessoas 870 O homem ocidental não necessita da superioridade sobre a natureza tanto dentro como fora pois dispõe de ambas as coisas de maneira perfeita e quase diabólica O que ele porém não tem é o reconhecimento consciente de sua própria inferioridade em relação à natureza tanto à volta como dentro de si O que deveria aprender é que não é como ele quer que ele pode Se não estiver consciente disto destruirá a própria natureza Desconhece sua própria alma que se rebela contra ele de maneira suicida 871 Como tem o poder de transformar tudo em técnica em princípio tudo quanto tem aparência de método é perigoso e está fadado ao insucesso Porque a ioga é também uma higiene é útil ao homem como qualquer outro sistema Mas entendida no sentido mais profundo do termo não é apenas isto O que ela pretende se não estou enganado é desprender libertar definitivamente a consciência de todas as amarras que a ligam ao objeto e ao sujeito Como porém não se pode libertar o indivíduo daquilo de que ele não está consciente o europeu deve primeiramente aprender a conhecer o sujeito que no Ocidente é chamado o consciente O método da ioga está voltado exclusivamente para a consciência e para a vontade consciente Um procedimento como este só é promissor se o inconsciente não possuir qualquer potencial digno de nota isto é se não encerrar grande parte da personalidade Se o empreende então todos os esforços conscientes serão baldados e o produto desta atitude de crispação é uma caricatura ou mesmo o oposto do que se esperaria como resultado natural 872 Uma parte considerável e importante do inconsciente se acha expressa através da rica metafísica e do rico simbolismo do Oriente reduzindo com isto o potencial desse mesmo inconsciente Quando o iogue fala em prâna tem em mente muito mais do que a simples respiração Na palavra prâna ele ouve ainda o eco de toda a componente metafísica e é como se realmente soubesse o que prâna significa também sob este aspecto Não o sabe pelo entendimento mas pelo coração pelo ventre e pelo sangue O europeu porém aprende de cor e imita conceitos e por isto não está em condições de exprimir sua realidade subjetiva através do conceito hindu Para mim é quase fora de dúvida que o europeu se pudesse ter as experiências que correspondem à sua índole dificilmente escolheria justamente um conceito como o de prâna para expressar esta experiência 873 Originariamente a ioga era um processo natural de introversão que se operava com todas as suas variantes individuais possíveis Tais introversões provocam estranhos processos internos que alteram a personalidade Estas introversões foramse organizando paulatinamente em métodos no curso dos milênios e isso das maneiras mais variadas possíveis A própria ioga hindu conheceu um semnúmero de formas estranhamente diversas O motivo foi a diversidade original das experiências individuais Com isto não queremos absolutamente dizer que qualquer um destes métodos se aplica à estrutura histórica específica do europeu Pelo contrário é provável que sua ioga natural derive de modelos históricos que o Oriente desconhece Na verdade as duas tendências culturais que no Ocidente mais ocuparamse praticamente com a alma isto é a medicina e a cura católica da alma geraram métodos que podemos muito bem comparar com a ioga Já mencionei os exercícios espirituais da Igreja Católica Quanto à medicina são precisamente alguns dos métodos psicoterapêuticos modernos os que mais se aproximam da ioga A psicanálise de Freud consiste em fazer com que a consciência do paciente remonte de um lado ao mundo interior das reminiscências infantis e de outro aos desejos e impulsos recalcados pela consciência Este processo é um desenvolvimento lógico e consequente da prática da confissão O seu intuito é provocar uma introversão a fim de tornar conscientes as componentes inconscientes do sujeito 874 Um método um pouco diferente é o chamado training autógeno proposto por JH Schultz 3 que adota de propósito o caminho da ioga Seu escopo principal é eliminar a atitude crispada de resistência da consciência e os recalques do inconsciente provocados por ela 875 A minha metodologia se baseia como a de Freud na prática da confissão Como ele também levo em conta os sonhos mas é na maneira de apreciar os sonhos que nossas concepções divergem Para ele o inconsciente é essencialmente um pequeno apêndice da consciência no qual estão reunidas todas as incompatibilidades Para mim o inconsciente é uma disposição psicológica coletiva de natureza criativa Dessa divergência radical decorre também uma maneira totalmente diversa de apreciar o simbolismo e seu método de interpretação Freud procede de maneira essencialmente analítica e redutiva Eu porém acrescento também um procedimento sintético que põe em relevo o caráter finalístico das tendências inconscientes em relação ao desenvolvimento da personalidade Este ramo da pesquisa trouxe à luz importantes paralelos com a ioga especialmente com a Kundaliniioga e com a simbólica tanto da ioga tântrica do lamaísmo quanto da ioga taoista da China Estas formas de ioga e seu rico simbolismo nos forneceram materiais comparativos preciosíssimos para a interpretação do inconsciente coletivo Mas em princípio não aplico todos os métodos da ioga porque nada deve ser imposto ao inconsciente no Ocidente O mais das vezes a consciência é de uma intensidade e de uma exiguidade convulsivas e por isto não convém acentuálas ainda mais Devemos pelo contrário tanto quanto possível ajudar o inconsciente a atingir a consciência para arrancála de seu entorpecimento Para este fim utilizo também uma espécie de método de imaginação ativa que consiste em um training especial de desligamento da consciência para ajudar os conteúdos inconscientes a se expandirem 876 Se procedo assim de forma tão acentuadamente crítica e negativa no confronto da ioga isto não significa de modo algum que eu não considere as aquisições espirituais do Oriente como o que de mais grandioso o espírito humano jamais criou Espero que de minha exposição resulte com suficiente clareza que minha crítica se volta única e exclusivamente contra a aplicação da ioga ao homem do Ocidente A evolução espiritual do Ocidente seguiu caminhos totalmente diversos dos do Oriente razão pela qual surgiram condições sumamente desfavoráveis para a aplicação da ioga A civilização ocidental tem pouco menos de mil anos de existência ela deve primeiramente libertarse de suas unilateralidades bárbaras Para isto é preciso uma percepção e uma visão mais profundas da natureza do homem Mas com a repressão e a dominação não se chega a conhecimento algum e menos ainda com a imitação de métodos que surgiram de condições psicológicas totalmente diversas Com o perpassar dos séculos o Ocidente irá formando sua própria ioga e isto se fará sobre a base criada pelo cristianismo Referência SCHULTZ JH Das autogene Training Berlim 1932 Fonte OC 115 859876 1 Aparecido em tradução inglesa em Prabuddha Bharata Calcutá fevereiro de 1936 2 Cf Apolônio de Tiana bem como as doutrinas dos mistérios órficos e pitagóricos e a gnose etc 3 Cf SCHULTZ JH Das autogene Training Berlim se 1932 Prefácio à obra de Suzuki A Grande Libertação 1 Aquele para quem o tempo é como a eternidade e a eternidade é como o tempo livre está de qualquer conflito1a Jakob Böhme 15751624 877 As obras de Daisetz Teitaro Suzuki sobre o zenbudismo constituem uma das melhores contribuições produzidas nos últimos decênios para o conhecimento do budismo vivo O próprio zen é talvez o fruto mais importante que surgiu dessa árvore cujas raízes são as coleções do Cânon Páli 2 Não podemos ser suficientemente gratos ao autor em primeiro lugar pelo fato de ter tornado o zen acessível à compreensão ocidental e em segundo lugar da maneira pela qual se desincumbiu da tarefa que se propôs As concepções religiosas do Oriente são em geral de tal forma diferentes das ocidentais que mesmo uma tradução puramente literal nos coloca diante das maiores dificuldades sem falar do sentido de certos termos que dependendo do contexto é até mesmo preferível deixar sem traduzir Cito apenas um exemplo o da palavra chinesa Tao para a qual até agora não foi possível encontrar nem mesmo aproximadamente uma tradução europeia Os próprios escritos budistas primitivos contêm pontos de vista e ideias quase inassimiláveis pelo europeu comum Não sei quais os pressupostos espirituais ou climáticos e a preparação necessários para que se possa ter uma ideia ou uma imagem suficientemente clara acerca da concepção budista primitiva do Kamma À luz do que sabemos a respeito da essência do zen tratase também aqui de uma concepção central de inigualável singularidade Essa estranha acepção é designada pelo termo satori e pode ser traduzida por iluminação Satori é a raison dêtre a razão de ser do zen e sem o satori não há zen afirma Suzuki 3 Creio que não é muito difícil para a mente ocidental captar o que um místico entende por iluminação ou o que é conhecido como tal na linguagem religiosa Satori designa uma forma e um caminho para a iluminação que é quase inacessível à compreensão do europeu Reportome aqui à iluminação de Hyakujo Pai Chang HuaiHai 724814 dC e à lenda de Kozankoku Huang ShanKu poeta e estadista confuciano tais como as descreve Suzuki na obra em questão 4 878 O que se segue também poderá servir de exemplo Certa vez um monge foi ter com Gensha desejando saber onde ficava a entrada do caminho que conduz à verdade Gensha perguntoulhe Estais ouvindo o murmúrio do regato Sim estou ouvindo respondeu o monge É lá que está a entrada ensinoulhe o mestre 879 Contentarmeei com estes poucos exemplos que ilustram suficientemente a opacidade da experiência vital do satori Mesmo que citássemos muitos outros exemplos acharíamos extremamente difícil saber como se chega a esta iluminação e em que ela consiste Ou em outras palavras saber o que nos ilumina e a respeito de que somos iluminados Kaiten Nukariya professor do colégio budista TöShü de Tóquio diznos falando da iluminação Uma vez libertados da falsa concepção de simesmo temos de despertar nossa mais íntima e pura sabedoria divina chamada pelos mestres do zen a mente de Buda Mind of Buddha ou Bodhi o conhecimento pelo qual o indivíduo experimenta a iluminação ou Prajnã suprema sabedoria É a luz divina o céu interior a chave de todos os tesouros do espírito o ponto central do pensamento e da consciência a fonte de onde brotam a força e o poder a sede da bondade da justiça da compaixão e da medida de todas as coisas Quando este conhecimento interior é plenamente despertado estamos aptos para compreender que cada um de nós se identifica em espírito essência e natureza com a vida universal ou Buda que cada um de nós recebe a graça transbordante do Santo Ser Buda que ele suscita nossas forças morais abre nossos olhos espirituais desenvolve nossas capacidades comunicanos uma missão e que a vida não é um mar de nascimentos de doenças de velhice e morte nem um vale de lágrimas e sim o templo santo de Buda a Terra Pura Sukhavati a terra da bemaventurança onde poderemos gozar as delícias do Nirvana Então nosso espírito será totalmente transformado Já não seremos perturbados pela cólera e pelo ódio nem feridos pela inveja e pela ambição nem incomodados pelas preocupações e cuidados ou atormentados pela tristeza e pelas dúvidas5 880 É desta maneira que um oriental e ainda por cima conhecedor do zen expressase sobre a essência da iluminação Temos de admitir que esta passagem necessitaria apenas de pequenas alterações para figurar tranquilamente em qualquer devocionário místico cristão Mas ela nos deixa insatisfeitos diante da tentativa de compreender a experiência vital do satori descrita nesta ampla dissertação É provável que Nukariya se dirija ao racionalismo ocidental do qual ele próprio sorveu uma boa dose e esta é a razão pela qual tudo soa tão banalmente edificante É preferível a abstrusa obscuridade das historietas do zen a esta adaptação ad usum Delphini Elas dizem pouco mas de certo modo transmitem muito mais do que dizem 881 O zen é tudo menos filosofia no sentido ocidental da palavra 6 Esta é também a opinião expressa por Rudolf Otto em sua introdução ao livro de Ohasama sobre o zen quando afirma que Nukariya identifica o mágico mundo oriental das ideias com nossas categorias filosóficas ocidentais confundindoas entre si Caso se invoque o paralelismo psicofísico que é a mais férrea das doutrinas para explicar esta intuição mística da não dualidade da unidade e da coincidentiaoppositorum seremos com certeza completamente expulsos da esfera do Kôan do Kwatsu e do Satori 7 É infinitamente preferível deixarse impregnar profundamente e de antemão pela estranha obscuridade das historietas do zen e ter sempre presente que o satori é um mysterium ineffabile como aliás pretendem os próprios mestres do zen Entre as historietas e a iluminação mística há em nosso entender um imenso abismo A possibilidade de transpôlo poderá quando muito ser indicada mas nunca será atingida na prática 8 O indivíduo tem aqui a impressão de tocar por assim dizer num verdadeiro mistério e não em algo apenas imaginado ou pretendido Isto é não se trata de um segredo mistificador e sim de uma experiência viva que bloqueia qualquer linguagem O satori nos atinge como algo de novo como algo que não esperávamos 882 Quando no seio do cristianismo surgem as visões da Santíssima Trindade da Mãe Santíssima do Crucificado ou do Santo Padroeiro depois de longa preparação espiritual temos a impressão de que tudo isto deve ser mais ou menos assim Também é compreensível que Jacob Böhme num relance de olhos tenha penetrado no centrum naturae coração da natureza através de um raio de sol refletido num disco de estanho Entretanto é mais difícil digerir a visão de Mestre Eckhart a respeito do garotinho nu 9 ou mesmo a visão de Swedenborg sobre o homem do manto vermelho que queria livrálo do vício da gula e a quem ele apesar disso ou talvez justamente por isso reconheceu como o Senhor Deus 10 Tais coisas são difíceis de aceitar pois se aproximam do grotesco Muitas das experiências do satori porém não somente raiam pelos limites do grotesco como são grotescas parecendo completamente sem sentido 883 Mas para alguém que se tenha dedicado com amor e compreensão e por tempo considerável ao estudo da natureza do espírito do longínquo Oriente muitas destas coisas surpreendentes que levam o europeu comum de perplexidade em perplexidade acabam por desaparecer O zen é na verdade uma das flores mais maravilhosas do espírito oriental 11 docilmente impregnada pelo imenso mundo do pensamento budista Por isso quem se esforçou por compreender a doutrina do Budismo até certo ponto ou seja renunciando a certos preconceitos ocidentais chegará a captar determinadas profundidades por sob o manto bizarro das experiências individuais do satori ou percebendo as inquietantes dificuldades que o Ocidente filosófico e religioso se acreditava até então autorizado a ignorar Como filósofo o indivíduo se ocupa exclusivamente com aquela preocupação que de sua parte nada tem a ver com a vida E como cristão nada tem a ver com o paganismo Senhor eu te dou graças porque não sou como aquele ali Lc 1811 Não há satori dentro destes limites ocidentais Esta é uma questão puramente oriental Mas será realmente assim Será que não temos realmente satori 884 Quando lemos atentamente os textos do zen não podemos fugir à impressão de que apesar de tudo o que neles parece bizarro o satori é de fato um acontecimento natural Tratase de uma coisa tão simples 12 que não podemos ver a floresta por causa das árvores e qualquer tentativa de explicálo nos leva sempre a uma confusão maior Nukariya tem razão portanto ao afirmar que toda tentativa de explicar ou analisar o conteúdo do zen ou iluminação seria inútil Mas ainda assim esse autor ousa dizer que a iluminação comporta uma percepção da natureza do simesmo 13 e é uma emancipação da consciência em relação à ilusória concepção do simesmo 14 A ilusão referente à natureza do simesmo é a habitual confusão que se faz entre o eu e o simesmo Pelo termo simesmo Nukariya compreende o Buda total isto é a totalidade pura e simples da consciência da vida Ele cita Pan Shan que dizia A lua do espírito mind encerra todo o universo em sua luz e acrescenta É a vida e o espírito spirit cósmicos e ao mesmo tempo a vida e o espírito spirit individuais 15 885 Qualquer que seja a definição do simesmo ele é algo que difere do eu E desde que uma compreensão mais elevada do eu nos conduz ao si mesmo este último deve ser algo de maior e mais amplo que engloba a experiência do eu e por isso mesmo ultrapassao Da mesma forma que o eu é uma certa experiência do meu próprio ser assim também o simesmo é uma experiência de mim próprio a qual entretanto já não é vivida sob a forma de um eu mais amplo ou mais alto e sim sob a forma de um não eu 886 Tais pensamentos são também familiares ao autor da Deutsche Theologie Teologia Alemã À medida que uma criatura se torna consciente desta sua perfeição ela perde por completo seu caráter de criatura sua índole de ser criado sua quidade sua ipseidade16 Quando considero que existe algo de bom em mim mesmo isto provém da ilusão de que sou bom Isto é sempre um sinal de imperfeição e de tolice Se estivesse consciente da verdade também estaria consciente de que não sou bom de que o bem não é meu nem provém de mim Por isso conclui o homem Que pobre tolo eu sou Estava iludido de que era bom mas eis que percebo que aquilo era e é realmente Deus17 887 O que acima foi dito já nos dá uma ideia bastante satisfatória do conteúdo da iluminação O processo do satori é formulado e interpretado como uma ruptura e uma passagem da consciência limitada na forma do eu para a forma do simesmo que não tem um eu Esta concepção corresponde ao zen bem como à mística do Mestre Eckhart O mestre diz no seu sermão sobre os beati pauperes spiritu bemaventurados os pobres de espírito Quando saí de Deus todas as coisas diziam Há um Deus Mas isto não pode fazerme bem aventurado pois juntamente com isso percebo que sou uma simples criatura Mas é na ruptura18 quando desejo permanecer pura e simplesmente na vontade de Deus e livre também da sua vontade de todas as suas obras e do próprio Deus então é que sou mais do que todas as criaturas pois não sou nem Deus nem criatura sou o que era e o que permanecerei sendo agora e para sempre Então recebo um impulso que me eleva acima dos anjos Este impulso me torna tão rico que Deus já não pode me satisfazer mesmo em face do que Ele é como Deus e de todas as suas obras divinas pois nessa ruptura percebo que eu e Deus somos uma e mesma coisa Eu sou então o que era19 pois nem cresço nem diminuo sou um ser imóvel que move todas as coisas Aqui Deus não habita mais no interior do homem pois o homem com sua pobreza alcançou novamente o que sempre foi e será eternamente20 888 Nesta passagem o mestre está realmente descrevendo uma experiência do satori uma substituição do eu pelo simesmo que possui a natureza de Buda ou seja a universalidade divina Por modéstia científica não pretendo fazer aqui uma afirmação metafísica e sim expressar a opinião de que uma mudança de consciência pode ser experimentada além do que considero o satori sobretudo como um problema psicológico Para aquele que não partilha ou não compreende este ponto de vista tal explicação se reduzirá a meras palavras incapazes de lhe oferecer portanto uma significação tangível Não estará apto então a fazer destas abstrações uma ponte que o leve até os fatos relatados ou melhor não está em condições de compreender de que modo o perfume do loureiro em flor 21 ou um nariz adornado de pincenê 22 poderiam provocar mudança tão grande na consciência A coisa mais simples seria naturalmente relegar todas estas estórias para o domínio dos divertidos contos de fada ou caso aceitemos os fatos tais como são considerálos pelo menos como exemplos de ilusão Seria preferível empregar aqui a expressão autossugestão este pobre traste jogado no arsenal dos conceitos espirituais inadequados Um estudo sério e responsável desse estranho fenômeno não pode passar tranquilamente ao largo do caráter real dos fatos Nunca estamos em condições de decidir definitivamente se uma pessoa foi realmente iluminada ou redimida ou se apenas imagina que o tenha sido Faltanos para isto qualquer critério Além disso sabemos muito bem que uma dor imaginária é muitas vezes mais dolorosa do que uma dor pretensamente real pois é acompanhada de um sofrimento moral sutil provocado por um sombrio e secreto sentimento de culpa pessoal Não se trata portanto de um fato concreto mas de uma realidade espiritual isto é de um acontecimento psíquico do processo conhecido por satori 889 Todo conhecimento espiritual é uma imagem e uma imaginação Se assim não fosse não haveria consciência nem fenomenalidade da ocorrência A própria imaginação é também um fato psíquico Por isso é inteiramente irrelevante dizerse que uma iluminação é real ou imaginária O iluminado ou o que alega sêlo julga em qualquer dos casos que o é A opinião dos outros nada significa para ele em relação à própria experiência Mesmo que esteja mentindo sua mentira seria um fato psicológico Sim ainda que todos os relatos religiosos nada mais fossem do que invenções e falsificações conscientes poderia ser escrito um tratado psicológico muito interessante a respeito de tais mentiras com o mesmo rigor científico apresentado pela psicopatologia das ilusões O fato de que exista um movimento religioso para o qual inúmeras e brilhantes capacidades trabalharam durante muitos séculos é motivo suficiente para fazerse pelo menos uma tentativa séria no sentido de trazer tais conhecimentos para a esfera da compreensão científica 890 Levantei acima a questão de saber se entre nós no Ocidente existe algo que se assemelhe ao satori Se excetuarmos o que disseram os místicos ocidentais a um exame superficial nada existe nem de longe que se possa comparar a tal processo Nosso modo de pensar não leva em consideração a possibilidade da existência de degraus no desenvolvimento da consciência A simples ideia de que há uma diferença tremenda entre a consciência da existência de um objeto e a consciência da consciência de um objeto já toca as raias de uma sutileza que mal se pode justificar Dificilmente alguém se atreveria a tomar este problema tão a sério percebendo plenamente as condições psicológicas que estão na base de tais problemas Característico é o fato de que a formulação desta e de outras questões semelhantes não são devidas em geral a uma necessidade psicológica mas ocorrem quase sempre quando se acham enraizadas em uma prática originariamente religiosa Na Índia foi a ioga e na China o Budismo que proporcionaram a força propulsora para a tentativa de se desprender dos liames de um estado de consciência considerado imperfeito Quanto ao que sabemos da mística ocidental seus textos estão cheios de instruções indicando como o homem poderá e deverá libertarse do sentido da egoidade de sua consciência de modo que mediante o conhecimento de seu próprio ser possa elevarse acima dele e alcançar o homem interior divinizado Ruysbroeck faz uso de uma imagem que a filosofia hindu também conhece isto é da árvore que tem as raízes em cima e a copa embaixo 23 Ele deve subir na árvore da fé que cresce para baixo pois tem as raízes fincadas na divindade 24 Ruysbroeck também se expressa como a ioga O homem deve ser livre e sem imagens Livre de tudo o que o liga aos outros e vazio de todas as criaturas 25 Não deve ser perturbado pela luxúria e pelo sofrimento pelo lucro e pelas perdas pelas ascensões e pelas quedas pelas preocupações em relação aos outros pelos prazeres e pelo temor e não deve apegarse a qualquer criatura 26 É daí que resulta a unidade do ser e esta unidade significa um estarvoltadoparadentrodesi O estar voltado para dentro de si significa que o homem está orientado para dentro de si mesmo para dentro do próprio coração de modo que pode sentir e compreender a ação interior e as palavras íntimas de Deus 27 Esta nova disposição da consciência surgida da prática religiosa não se caracteriza pelo fato de que as coisas exteriores não afetam mais a consciência da egoidade da qual se originara uma recíproca vinculação mas sim pela circunstância de que uma consciência vazia permanece aberta a uma outra influência Esta outra influência não é mais sentida como uma atividade própria e sim como a atuação de um não eu que tem a consciência como seu objeto 28 É por conseguinte como se o caráter subjetivo do eu fosse transferido ou assumido por outro sujeito que tomasse o lugar do eu 29 Temos aqui a conhecida experiência religiosa já formulada por Paulo 30 É fora de dúvida que se trata da descrição de um novo estado de consciência separado do primeiro por um processo de profunda transformação religiosa 891 Podese objetar que a consciência em si não mudou mas somente a consciência de alguma coisa É como se tivéssemos virado a página de um livro e agora víssemos com os mesmos olhos uma figura diferente Receio que este modo de considerar não seja mais do que uma interpretação arbitrária pois não leva em conta a realidade dos fatos A verdade é que o texto não descreve apenas uma imagem ou um objeto mas sim a experiência de uma transformação que ocorre muitas vezes sob as mais violentas convulsões A extinção de uma imagem e sua substituição por outro é um fato muito cotidiano que nunca revela as qualidades de uma experiência de transformação Não se trata de estar vendo outra coisa É o indivíduo que vê de outro modo É como se o ato espacial de ver fosse alterado por uma nova dimensão Quando o mestre pergunta Estás ouvindo o murmúrio do regato certamente está se referindo a uma audição inteiramente diversa da ordinária 31 A consciência é algo semelhante à percepção e como esta também está sujeita a condições e a limites Podemos por exemplo estar conscientes a diversos níveis em uma esfera mais ou menos ampla mais superficial ou mais profunda Estas diferenças de grau são muitas vezes diferenças de modos de ser pois dependem do desenvolvimento da personalidade em seu todo isto é da condição do sujeito que percebe 892 O intelecto não se interessa pela condição do sujeito que percebe na medida em que este pensa logicamente O intelecto se ocupa por sua própria natureza com a assimilação dos conteúdos da consciência e talvez também com os métodos assimilativos Tornase necessária uma paixão filosófica para forçar a tentativa de subjugar o intelecto e avançar até o conhecimento daquele que é o sujeito da percepção Tal paixão dificilmente se distingue das forças religiosas propulsoras e por isso todo esse problema faz parte do processo de transformação religiosa que é incomensurável ao intelecto A filosofia antiga está indubitavelmente e em larga escala a serviço do processo de transformação o que não se pode afirmar amplamente acerca da filosofia moderna Schopenhauer ainda se acha condicionado até certo ponto pelo pensamento antigo O Zaratustra de Nietzsche já não é mais filosofia e sim um processo dramático de transformação que engoliu completamente o intelecto Não se trata mais de um modo de pensar e sim do pensador do pensamento no mais alto sentido e é isto o que transparece em cada página do livro um novo homem um homem completamente transformado deve aparecer em cena um ser que quebrasse as cascas do homem velho e não olhasse apenas para um novo céu e uma nova terra mas fosse ele mesmo quem os criasse Angelus Silesius exprimiu este fato por certo mais modestamente do que Zaratustra Meu corpo é uma casca na qual um pintainho será chocado pelo Espírito da eternidade32 893 No âmbito cristão o satori corresponde a uma experiência religiosa de transformação Como existem entretanto diversos graus e tipos desta experiência não seria supérfluo designar com maior precisão a categoria que mais corresponde à experiência do zen Tratase sem a menor dúvida de uma experiência mística que se distingue de outras similares pelo fato de sua preparação consistir em um deixar correr em um esvaziarse de imagens e coisas semelhantes E isto em contraste com experiências religiosas que se baseiam como os Exercícios de Inácio de Loyola na exercitação e na imaginação de imagens sagradas Eu gostaria de concluir também nesta última categoria a transformação que se realiza no Protestantismo mediante a fé a oração e a experiência comunitária pois tratase aqui não de uma vacuidade ou de uma libertação mas de uma suposição claramente definida A definição característica da libertação Deus é um nada parece incompatível em princípio com a contemplação da paixão da fé e da expectativa da comunidade 894 Desta forma a analogia do satori com a experiência ocidental se circunscreve àqueles poucos místicos cristãos cujos ditos pelo amor do paradoxo tocam as fronteiras da heterodoxia ou até mesmo a ultrapassam Foi esta a qualidade que como se sabe determinou a condenação por parte da Igreja das obras de Mestre Eckhart Fosse o Budismo uma igreja no sentido em que usamos esta palavra o movimento zen por certo teria sido um fardo intolerável para ela A razão disto é a forma extremamente pessoal que se conferiu ao método bem como à atitude iconoclasta de muitos de seus mestres 33 Assim como é o zen um movimento formas coletivas têm sido modeladas no decurso dos séculos tal como se pode ver no trabalho a respeito da formação dos monges zenbudistas 34 Mas quanto à forma e ao conteúdo elas se referem apenas ao exterior À parte a característica do estilo de vida o processo de formação e educação dos discípulos parece consistir no método do koan Por koan se entende uma questão paradoxal uma expressão ou ação do mestre Pela descrição de Suzuki parece que se trata principalmente de perguntas dos mestres transmitidas sob a forma de historietas Estas são propostas por um instrutor à meditação de seu discípulo Um exemplo clássico é a estória do Wu e do Mu Certa vez um monge perguntou ao mestre O cão possui também a natureza de Buda Ao que o mestre respondeu Wu Como observa Suzuki este Wu significa simplesmente wu isto é o mesmo que o próprio cão teria dito em resposta à questão 35 895 À primeira vista parece que a proposta desta questão como objeto de meditação já é uma antecipação do resultado final e que o conteúdo da experiência estaria assim determinado à semelhança dos exercícios jesuíticos ou de certas meditações cujo objeto é definido por uma tarefa indicada pelo mestre Os koans entretanto são de tão grande variedade de tal ambiguidade e além do mais tão tremendamente paradoxais que mesmo um bom conhecedor do assunto não logrará atinar com aquilo que poderia emergir como solução adequada Além disso as descrições da experiência final são de tal modo obscuras que em nenhum caso o indivíduo conseguiria perceber sem objeções uma conexão racional entre o koan e a experiência Visto ser impossível provar qualquer sucessão lógica é de suporse que o método do koan não coloca obstáculo algum à liberdade das ocorrências psíquicas e que o resultado portanto não decorre senão da disposição individual do iniciando A completa destruição do intelecto racional visada na formação do monge cria uma falta de pressuposto quase absoluta da consciência Mas por mais que se exclua este pressuposto não se elimina o pressuposto inconsciente a disposição psicológica existente mas não percebida é tudo menos um vazio e uma falta de pressuposto Tratase de um fator natural e quando ele responde coisa que acontece evidentemente na experiência do satori é uma resposta da natureza que consegue canalizar diretamente a sua reação para a consciência 36 O que a natureza inconsciente do discípulo opõe ao mestre ou ao koan como resposta é obviamente satori É este pelo menos o ponto de vista que me parece exprimir mais ou menos adequadamente a essência do satori de acordo com o que nos dizem as descrições Esta concepção se apoia também no fato de que a visão da própria natureza o homem original e a profundeza do ser constituem em muitos casos para o mestre do zen uma aspiração toda especial 37 896 O zen difere de todas as outras práticas filosóficas e religiosas de meditação pela ausência radical de pressupostos O próprio Buda muitas vezes é severamente rejeitado e até mesmo quase blasfemicamente menosprezado muito embora ou talvez precisamente pelo fato de poder ser apresentado como o exemplo mais frisante de um pressuposto espiritual à prática da ascese Ele é também uma imagem e portanto deve ser rejeitado Nada deve existir a não ser o que realmente aí se encontra tal é o homem com sua completa e inconsciente pressuposição espiritual da qual não pode libertarse precisamente por ser inconsciente Por isso a resposta que parece surgir do vazio isto é a luz que brilha do seio das trevas mais densas sempre tem sido sentida como uma iluminação maravilhosa e beatificante 897 O mundo da consciência é inevitavelmente um mundo cheio de limitações e de muros que bloqueiam os caminhos Ele é por natureza sempre unilateral e esta unilateralidade resulta da essência mesma da consciência Nenhuma consciência pode abrigar mais do que um número diminuto de representações simultâneas O restante deve ficar na sombra e subtraído à vista Aumentar os conteúdos simultâneos provoca de imediato um obscurecimento da consciência ou até mesmo uma perturbação que pode chegar à desorientação A consciência em si pela própria essência não só exige mas é uma delimitação rigorosa a um círculo diminuto e portanto bemdefinido de conteúdos Devemos nossa orientação geral única e exclusivamente à circunstância de podermos pôr em andamento uma série de imagens comparativamente rápidas graças à nossa atenção Esta porém representa um esforço que não somos capazes de sustentar por muito tempo Por isso temos de nos arranjar por assim dizer com um mínimo de representações simultâneas e séries de imagens Excluise portanto constantemente um grande campo de representações possíveis ficando a consciência sempre limitada a um estreitíssimo círculo Por isso é absolutamente impossível imaginar o que aconteceria se uma consciência individual conseguisse abarcar de um só relance o quadro simultâneo de tudo quanto se possa imaginar Se o homem já conseguiu construir o edifício do mundo com as poucas coisas claras e definidas que foi capaz de imaginar simultaneamente que espetáculo divino descortinaria se pudesse imaginar ao mesmo tempo e com clareza uma multidão de coisas Esta pergunta só se aplica às representações possíveis para nós Se acrescentarmos a estas os conteúdos inconscientes isto é aqueles que ainda não estão em condições ou não são mais capazes de atingir a consciência e tentarmos então imaginar o espetáculo global não o conseguiremos Até mesmo a mais ousada fantasia fracassará Esta incapacidade de imaginar é naturalmente impossível na forma consciente mas é um fato na forma inconsciente dado que tudo quanto está situado na zona subliminar é sempre virtualmente representável O inconsciente é a totalidade não passível de observação direta de todos os fatores psíquicos subliminares um espetáculo total de natureza potencial Ele constitui a disposição total da qual a consciência só retira pequenos fragmentos de cada vez 898 Quando a consciência é esvaziada tanto quanto possível de seus conteúdos estes cairão também em um estado de inconsciência pelo menos transitório Este recalque via de regra produzse no zen subtraindose aos conteúdos a energia da consciência e transferindoa ou para o conceito do vazio ou para o koan Como estes dois últimos devem ser estáveis a sucessão de imagens é abolida e consequentemente também a energia que alimenta o dinamismo da consciência A quantidade de energia economizada é absorvida pelo inconsciente reforçando a sua carga natural até um certo valor máximo Isto aumenta a facilidade com que os conteúdos inconscientes irrompem na consciência Como o esvaziamento e o fechamento da consciência não são tarefas fáceis requerse um treinamento training especial e um período indefinidamente longo 38 para produzir aquele máximo de tensão que levará à eclosão final dos conteúdos inconscientes no âmbito da consciência 899 Os conteúdos que irrompem na consciência não são absolutamente destituídos de sentido A experiência psiquiátrica com doentes mentais mostranos que há relações peculiares entre os conteúdos da consciência e os delírios e ilusões que nela irrompem Tratase das mesmas relações que existem entre os sonhos e a consciência de um homem normal em estado de vigília A conexão é em substância uma relação compensatória 39 Os conteúdos do inconsciente com efeito trazem à superfície tudo aquilo que é necessário 40 no sentido mais amplo do termo para a totalização isto é para a totalidade da orientação consciente Se o indivíduo conseguir enquadrar harmonicamente na vida da consciência os fragmentos oferecidos ou forçados pelo inconsciente resultará então uma forma de existência psíquica que corresponde melhor à personalidade individual e por isso também elimina os conflitos entre a personalidade consciente e inconsciente É neste princípio que se baseia a moderna psicoterapia na medida em que pôde se libertar do preconceito histórico segundo o qual o inconsciente só abriga conteúdos infantis e inferiores Nele existe certamente um recanto inferior um quarto de despejo de segredos impublicáveis que não são propriamente inconscientes mas dissimulados e apenas semiesquecidos Mas isto tem tanto a ver com o conteúdo tomado como um todo quanto por exemplo um dente cariado com a personalidade total O inconsciente é a matriz de todas as afirmações metafísicas de toda a mitologia de toda a filosofia desde que esta não seja meramente crítica e de todas as formas de vida que se baseiam em pressupostos psicológicos 900 Cada irrupção do inconsciente na consciência é uma resposta a uma situação bemdefinida da consciência e esta resposta promana das possibilidades reais de representação isto é da disposição global que como foi explicado acima é uma imagem simultânea in potentia potencial da existência psíquica em geral A dissociação em unidades isoladas seu caráter unilateral e fragmentário se radicam na própria essência da consciência A reação proveniente da disposição tem sempre o caráter de totalidade pois reflete uma natureza que não foi dividida por uma consciência discriminativa 41 Daí o seu efeito avassalador É a resposta inesperada abrangente totalmente elucidativa que atua como iluminação e como revelação quando a consciência foi parar num beco sem saída 42 901 Quando depois de muitos anos da mais dura ascese e da mais enérgica e impiedosa devastação da compreensão racional o devoto do zen recebe uma resposta a única verdadeira da própria natureza podese compreender tudo o que foi dito a respeito de satori Como qualquer um pode ver o que transparece na maioria das estórias do zen é a naturalidade das respostas Sim compreendemos com certa satisfação interior e primitiva a história do discípulo iluminado que desejou uma surra do mestre como recompensa 43 Quanta sabedoria encerra a monossilábica resposta wu do mestre à pergunta sob a natureza búdica do cão É preciso porém ter bem presente um semnúmero de pessoas que não sabem distinguir entre uma anedota espirituosa e um disparate mas que são muitos também os que estão convencidos de sua inteligência e capacidade a ponto de acreditarem só haver encontrado em suas vidas cabeças ocas e estúpidas 902 Embora o valor do zenbudismo seja grande para a compreensão do processo de transformação religiosa duvidase de sua aplicabilidade aos povos do Ocidente Faltam ao local os prérequisitos espirituais para o zen Quem dentre nós confiariase incondicionalmente à superioridade de um mestre e a seus métodos incompreensíveis Este respeito e consideração por uma grande personalidade humana só se encontram no Oriente Quem poderia se vangloriar de que acredita na possibilidade da experiência de uma transformação sumamente paradoxal a tal ponto que estaria disposto a sacrificar muitos anos da sua vida na busca fatigante e monótona de tal objetivo E por fim quem ousaria tomar sobre si a autoridade de uma transformação e de uma experiência tão heterodoxas A menos que seja um homem que não mereça a menor fé alguém que talvez por razões patológicas vivesse a proferir fanfarronadas Um homem como esse não se queixaria entre nós de falta de seguidores Mas se um mestre impõe uma tarefa mais árdua que exige mais do que um mero papaguear então o europeu começa a duvidar pois a senda íngreme do autodesenvolvimento parecelhe tão melancólica e sombria como o próprio inferno 903 Não tenho dúvidas de que a experiência do satori ocorra também no Ocidente pois entre nós existem igualmente pessoas que entreveem finalidades últimas e não recuam diante de nenhuma fadiga ou trabalho para se aproximarem delas Mas se calam a respeito das próprias experiências não por pudor mas porque estão conscientes de que é inútil qualquer tentativa de comunicálas aos outros De fato em nossa civilização nada há que estimule e secunde estas aspirações nem mesmo da parte da Igreja a guardiã dos valores religiosos Aliás a raison dêtre desta sua função é opor se a todas as experiências originais pois elas não podem ser senão heterodoxas O único movimento no âmbito de nossa civilização que tem ou deveria ter de algum modo certa compreensão destas aspirações é a psicoterapia Por isto não é mero acaso que seja precisamente um terapeuta a escrever esta introdução 904 No fundo a psicoterapia é uma relação dialética entre o médico e o paciente É uma discussão entre duas totalidades psíquicas uma disputa na qual o conhecimento é apenas um utensílio O objetivo é a transformação não algo predeterminado mas uma mudança de caráter indefinível cujo único critério é o desaparecimento do senso da egoidade Nenhum esforço da parte do médico é capaz de forçar esta experiência O máximo que pode é aplainar o caminho para ajudar o paciente a conseguir uma atitude que oponha a mínima resistência possível à experiência decisiva O papel de primeiro plano que o conhecimento desempenha em nosso comportamento ocidental corresponde em não menor grau à importância que se atribui à tradicional atmosfera espiritual do zen O zen e sua técnica só puderam germinar no solo da cultura espiritual do Budismo e é esta que constitui o seu pressuposto permanente Não se pode destruir um intelecto racionalista que jamais existiu O adepto do zen não é um fruto da ignorância e da incultura Daí ocorre que entre nós com certa frequência um eu consciente e uma compreensão também consciente e cultivada têm de ser produzidos primeiramente por uma certa terapia antes de pensarse em eliminar o sentido da egoidade ou o racionalismo Além disso a psicoterapia não trata de pessoas que por amor à verdade estão como os monges do zen prontas a fazer qualquer sacrifício e sim na maioria das vezes dos mais obstinados dos europeus Deste modo as tarefas da psicoterapia são naturalmente muito mais variadas e as fases individuais do longo processo muito mais contraditórias do que no zen 905 Por esta e muitas outras razões não é recomendável e nem mesmo possível uma transplantação direta do zen para as condições ocidentais Mas o terapeuta que se ocupa seriamente com a questão dos resultados de sua terapia não pode permanecer insensível à finalidade na qual se empenha o método oriental da cura psíquica isto é a edificação de um todo harmônico Como se sabe no Oriente este problema vem ocupando intensamente os mais arrojados espíritos há mais de dois mil anos assim foram desenvolvidos métodos e doutrinas que simplesmente deixam na sombra todas as tentativas ocidentais da mesma natureza Nossas tentativas têm parado com poucas exceções ou na magia culto dos mistérios entre os quais se deve incluir também o cristianismo ou no intelectualismo a filosofia desde Pitágoras até Schopenhauer Somente as tragédias espirituais do Fausto de Goethe e do Zaratustra de Nietzsche marcam a primeira irrupção apenas pressentida de uma experiência da totalidade em nosso hemisfério ocidental 44 E ainda não sabemos o que significam esses produtos do espírito europeu os mais promissores de todos tão sobrecarregados se acham da materialidade e da concretude de nossa mentalidade moldada pelo pensamento grego 45 Embora nosso intelecto tenha desenvolvido quase até à perfeição a capacidade da ave de rapina de enxergar das maiores alturas o menor ratinho a força de gravidade da terra dele se apodera e os sâmsaras o envolvem em um mundo de imagens confusas e perturbadoras a partir do momento em que ele cessa de buscar a presa e volta seu olhar para dentro de si tentando encontrar a quem busca Então sim o indivíduo é precipitado nas dores de um parto infernal cercado de terrores e perigos desconhecidos que estão a espreitálo ameaçado por miragens enganadoras e por labirintos que o conduzem ao erro O pior de todos os destinos paira ameaçadoramente sobre o aventureiro a muda e abissal solidão precisamente no tempo que ele considera seu O que sabemos a respeito dos motivos mais profundos da principal ocupação como Goethe chamou o Fausto ou do estremecimento da Experiência de Dioniso Precisamos ler o Bardo Thödol o Livro Tibetano dos Mortos 46 do fim para o começo conforme sugeri para encontrar um paralelo oriental dos tormentos e catástrofes que povoam o caminho da libertação que conduz à totalidade É disto que se trata e não de boas intenções de imitações inteligentes ou mesmo de acrobacias intelectuais E é isto o que se apresenta seja sob a forma de insinuações seja em fragmentos menores ou maiores ao psicoterapeuta que se libertou das opiniões doutrinárias demasiado apressadas ou de horizontes limitados Se ele for escravo de seu credo quase biológico tentará sempre reduzir o que vê e observa algo de banal e consequentemente a um denominador racionalístico que só satisfará aos indivíduos que se contentam com ilusões A principal de todas as ilusões consiste em admitir que alguma coisa pode satisfazer alguém Esta ilusão está por trás de tudo o que é intolerável e na frente de todo e qualquer progresso E uma das coisas mais difíceis é superar tudo isso Caso o psicoterapeuta ainda encontre tempo à margem de sua benéfica atividade para alguma reflexão ou se por força das circunstâncias enxergar através de suas próprias ilusões perceberá pouco a pouco como são vazias insípidas e contrárias à vida todas as reduções racionalísticas quando elas se chocam com algo que é vivo e procura desenvolverse E se ele acompanhar o movimento vital logo perceberá o que significa arrombar as portas diante das quais todos preferem se esgueirar 47 906 Não gostaria de modo algum que meus leitores pensassem diante do exposto que estou querendo fazer alguma recomendação ou dar algum conselho Mas a partir do momento em que no Ocidente se começa a falar no zen considero minha obrigação mostrar também aos europeus onde fica a entrada da mais longa de todas as entradas que conduzem ao satori e quais as dificuldades de que está semeado o caminho somente trilhado entre nós por alguns poucos grandes homens faróis brilhando no alto de uma montanha para dentro de um futuro nebuloso Seria um erro funesto pensar que o satori ou o samâdi pudessem ser encontrados em qualquer lugar abaixo dessa altura Para uma experiência da totalidade nada menos nem de menor valor do que o próprio todo O sentido psicológico deste fato pode ser compreendido mediante a simples reflexão de que a consciência de cada indivíduo é apenas uma parte do psíquico em geral e que ela portanto nunca será capaz de atingir a totalidade para isto será mister ainda uma expansão indefinida do inconsciente Mas este último não se deixa captar por fórmulas engenhosas nem se exorcizar mediante dogmas científicos pois existe algo do destino inerente a ele ou até mesmo algumas vezes é o próprio grande destino como Fausto e Zaratustra o mostram sobejamente A consecução da totalidade requer o emprego do todo Ninguém está em condições de satisfazer a esta exigência e por isso não há condições fáceis nem substitutivos ou compromissos Como porém Fausto e Zaratustra são duas obras que apesar de seu alto conceito estão no limite do que é compreensível para o europeu dificilmente poderíamos esperar que um público culto mas que somente há pouco começou a ouvir falar do obscuro mundo da alma estivesse apto para formar uma ideia adequada da condição espiritual de um homem que caiu nas malhas confusas do processo de individuação designo a este processo como a via de tornarse um todo As pessoas recorrem então ao vocabulário da patologia e se contentam em citar termos como neurose e psicose ou falam sussurrando o mistério criador Mas o que poderá criar um indivíduo que porventura não seja poeta Por causa deste equívoco muitas pessoas nos tempos modernos intitularamse artistas por sua própria conta e risco Como se a arte nada tivesse a ver com a capacidade Talvez quando não tenhamos mais nada a criar criemosnos a nós mesmos 907 O zen mostranos o quanto o processo de tornarse um todo a integralização significa para o Oriente Ocuparse com os enigmas do zen poderá talvez fortalecer a espinha dorsal de algum europeu pusilâmine e sem fibra ou proporcionarlhe um par de óculos para a sua miopia a fim de que ele possa através do obscuro orifício da parede ter pelo menos uma rápida visão do mundo da experiência psíquica até então envolto em denso nevoeiro Certamente isto não terminará mal pois aqueles que se atemorizam demais estão eficazmente protegidos contra uma deterioração mais grave bem como de qualquer outro incidente através da ideia salvadora da autossugestão 48 Entretanto eu gostaria de advertir o leitor atento e interessado que não subestime a profundidade que caracteriza o espírito do Oriente nem suponha que o zen não encerra valor algum 49 A atitude zelosamente cultivada no Ocidente de uma credibilidade verbal no confronto com o tesouro do pensamento oriental representa neste caso um perigo menor porque no zen afortunadamente não há palavras maravilhosamente incompreensíveis como no hinduísmo O zen também não trabalha com técnicas complicadas como as de hathaioga 50 que acenam para o europeu acostumado a pensar em termos de fisiologia com a enganosa esperança de poder afinal adquirir o espírito à força de sentarse e fazer exercícios de respiração Pelo contrário o zen requer inteligência e força de vontade como todas as coisas grandes que desejam tornarse reais Referências ANGELUS SILESIUS Johann Scheffler Cherubinischer Wandersmann Sämtl poet Werke III Hg von HL Held Munique 1924 BÜTTNER H Meister Eckeharts Schriften und Predigten 2 vols Jena 1917 Das Büchlein vom vollkommenen Leben Jena 1907 Ed HB EVANSWENTZ WY Das tibetanische Totenbuch 6 ed Zurique 1960 Ed EW KATHAUPANISHAD Siehe Sacred Books of the East XV RUYSBROECK J The Adornment of the Spiritual Marriage usw Übers von CA Wynschenk Dom Londres 1916 Sacred Books of the East 50 vols Oxford 18791910 Ed Max Müller SUZUKI DT An Introduction to ZenBuddhism Londres e Nova York 1949 Die grosse Befreiung Zurique 1958 Essays in Zen Buddhism 3 vols Londres 19271934 The Training of the Zen Buddhist Monk Kyoto 1934 OHAZAMA S Ohasama Schuej Zen Der lebendige Buddhismus in Japan Übers von August Faust Gotha e Stuttgart 1925 PERCIVAL MA William Blakes Circle of Destiny Nova York 1938 SPAMER A Texte aus der deutschen Mystik des 14 und 15 Jahrhunderts Jena 1912 Ed AS Fonte OC 115 877907 1 SUZUKI DT Die Grosse Befreiung Einführung in den ZenBuddhismus 1939 Nova edição 1958 Edição brasileira Introdução ao ZenBudismo Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1961 1a Wem Zeit ist wie Ewigkeit Und Ewigkeit wie die Zeit Der ist befreit Von allen Streit 2 A origem do zen é como indicam os próprios autores orientais o Sermão da Flor pregado por Buda que certa vez apresentou silenciosamente uma flor aos discípulos reunidos em assembleia Somente Kasyapa o entendeu Shuei Ohasama Zen Der lebendige Buddhismus in Japan O zenbudismo no Japão 1925 p 3 3 SUZUKI DT Die Grosse Befreiung Op cit p 133 4 Ibid p 124 e 128s 5 NUKARIYA K The Religion of the Samurai 1913 p 133 6 O Zen não é psicologia nem filosofia SUZUKI DT Essays in Zen Buddhism II op cit p 84 7 OTTO R In OHASAMA Zen p VIII 8 Embora eu tente apesar de tudo dar explicações nas páginas que se seguem estou plenamente cônscio de que tudo o que eu disser é destituído de valor no sentido do satori Devo entretanto tentar manobrar nossa compreensão ocidental visando pelo menos obter um entendimento aproximado tarefa esta de tal modo difícil que nos torna réus de alguns crimes contra o espírito do zen 9 Cf Texte aus der deutschen Mystik des 14 und 15 Jahrhunderts Org por Adolf Spamer 1912 p 143 10 WHITE W Emanuel Swedenborg 1867 I p 243 11 Não há dúvida de que o zen é um dos mais preciosos e sob muitos aspectos um dos mais notáveis dons com que o homem oriental foi abençoado SUZUKI DT Essays I op cit p 249 12 Um mestre ensinava Antes de alguém estudar o zen as montanhas são para ele montanhas e as águas são águas Quando porém conseguir uma percepção da verdade do zen mediante as instruções ministradas por um bom mestre as montanhas não são para ele mais montanhas nem as águas são águas Mais tarde quando tiver alcançado o local do repouso isto é quando tiver atingido o satori as montanhas serão novamente montanhas para ele e as águas serão novamente águas Ibid p 12 13 Em The Religion of the Samurai p 123 14 Ibid p 124 A iluminação inclui uma visão da natureza do simesmo E uma libertação do espírito mind de toda ilusão a respeito do simesmo 15 Ibid p 132 16 Das Büchlein von vollkommenen Leben Org por H Büttner 1907 p 4 17 Op cit p 8 18 Há uma imagem semelhante no zen quando perguntaram a um mestre em que consistia o budato estado búdico ele respondeu O fundo do jarro está quebrado SUZUKI DT Essays I op cit p 217 Outra semelhança é a da ruptura rasgão do saco Ibid p 100 19 Cf ibid p 220 241 O Zen é um relance de olhos na natureza original do homem ou o conhecimento do homem original Cf tb SUZUKI DT Die Grosse Befreiung Op cit p 144 20 Meister Eckeharts Schriften und Predigten Op cit p 176s 21 SUZUKI DT Die Grosse Befreiung p 129 22 Ibid p 124 23 Há uma velha árvore cujas raízes crescem para cima e os ramos para baixo Chamase Brama e somente ela é imortal KathaUpanishad II Adhyâya 6 Vallî I 24 RUYSBROECK J The Adornment of the Spiritual Marriage 1916 p 47 Certamente não se pode dizer que o místico flamengo nascido em 1273 tenha tomado emprestada esta imagem por exemplo dos textos hindus 25 Ibid p 51 26 Ibid p 57 27 Ibid p 62 Ó 28 Ó Senhor instruíme na vossa doutrina que tem suas raízes na natureza da ipseidade do espírito self nature of mind Instruíme na doutrina do não eu etc Cit extraída do Lankâvatârasûtra SUZUKI DT Essays I op cit p 78 29 Diz um mestre do zen O Buda nada mais é do que o espírito mind ou melhor aquele que anseia por ver este espírito Ibid p 104 30 Gl 220 Eu vivo mas já não sou eu mas o Cristo que vive em mim 31 Suzuki diz a respeito dessa mudança A forma anterior de contemplação é abandonada e o mundo ganha um novo sentido Alguns deles os iluminados afirmam que viveram na ilusão ou que seu ser primitivo caiu no esquecimento outros reconhecem que até àquele momento nada haviam imaginado a respeito da nova beleza do vento refrescante ou do brilho da pedra preciosa Essays I op cit p 235 Cf tb SUZUKI DT Die Grosse Befreiung Op cit p 122s 32 Mein Leib ist eine Schal in dem ein Küchelein vom Geist der Ewigkeit will ausgebrütet sein Des Angelus Silesius Cherubinischer Wandersmann 33 Satori é a mais íntima de todas as experiências individuais SUZUKI DT Essays I op cit p 247 Um mestre dizia a seu discípulo Na realidade eu não comuniquei nada e mesmo que o tentasse fazer eu te daria o ensejo de zombar de mim mais tarde Além disso tudo o que te posso ensinar me pertence e nunca se tornará teu Ibid p 227 Um monge dizia a seu mestre Procurei o Buda mas não sei como devo continuar minha indagação É o mesmo que procurares a vaca em que estás montado Ibid II p 59 Um mestre dizia Buda é o intelecto que não entende Não existe outro Ibid II p 57 34 SUZUKI DT The Training of the ZenBuddhist Monk 35 SUZUKI DT Essays II op cit p 74 36 SUZUKI DT Ibid p 46 diz textualmente a consciência do zen deve desenvolverse até atingir a maturidade Quando se tornar madura com certeza irromperá na forma do satori que é uma mirada do inconsciente 37 A quarta máxima do zen diz Ver a própria natureza é alcançar o budato estado búdico Ibid p 7 e 204s Certa vez um monge pediu a Huinêng que o instruísse e o mestre respondeu Mostrame a tua face original a que tinhas antes de nascer Ibid I p 210 Diz um livro japonês a respeito do Zen Se queres o Buda olha para dentro de tua própria natureza pois esta natureza é o próprio Buda Ibid I p 219 Uma experiência do satori revela o homem original ao mestre Ibid I p 241 Huinêng dizia Não penses no bem não penses no mal mas considera no momento presente qual era o aspecto original que já possuías antes de nascer Ibid II p 28 38 Bodhidharma o fundador do zen na China diz A incomparável doutrina de Buda só pode ser compreendida depois de uma longa e dura prática depois de suportar as coisas mais difíceis de serem suportadas e de exercer as coisas mais difíceis de serem exercidas Os que não têm muita força e sabedoria nada conseguem entender a seu respeito Todo o esforço de pessoas como estas fracassará inevitavelmente Ibid I p 176 39 Mais provável do que uma relação meramente complementar 40 Esta necessidade é uma hipótese de trabalho As pessoas têm ou podem ter opiniões diferentes a este respeito Assim perguntase por exemplo se as concepções religiosas são necessárias Só o curso da vida individual é que decidirá isto é só as experiências do indivíduo é que contarão Não temos critérios abstratos neste sentido 41 Quando o espírito mind discrimina surge então a variedade das coisas quando não discrimina ele vê a natureza real das coisas Cit extraída do Lankâvatârasûtra SUZUKI DT Essays I op cit p 88 42 HsüanTse dizia Vosso espírito deve ser como o espaço mas não pode fixarse na ideia do vazio Neste caso a verdade se expandirá com todo o seu vigor e sem nenhum empecilho Cada movimento de vossa vontade brota de um coração inocente e vosso comportamento será igual tanto para com o ignorante como para com o sábio Ibid I p 209 43 Cf SUZUKI DT Die Grosse Befreiung Op cit p 130 44 Neste contexto convém lembrar também o nome do místico inglês William Blake cf a excelente apresentação de Milton O Percival em William Blakes Circle of Destiny de 1938 45 O Gênio da mitologia grega significa uma irrupção da consciência na materialidade do mundo privandoa assim de seu caráter onírico original 46 EVANSWENTZ WY Das Tibetanische Totenbuch Cf 844s deste volume 47 Fausto I primeira cena verso 710 48 Cf SUZUKI DT Die Grosse Befreiung Op cit p 131s 49 O Zen não é um passatempo é a mais séria de todas as tarefas da vida Nenhuma cabeça oca jamais se arriscará a abordálo SUZUKI DT Essays I op cit p 16 cf tb Die Grosse Befreiung Op cit p 76 50 Se queres alcançar o budato permanecendo sentado de pernas cruzadas matáloás Enquanto não te libertares deste modo de sentar não chegarás à verdade diz um mestre a seu discípulo SUZUKI DT Essays I op cit p 222 Considerações em torno da psicologia da meditação oriental 1 908 Em seu livro intitulado Kunstform und Yoga 2 As formas da arte e a ioga meu amigo Heinrich Zimmer cujo falecimento foi lamentavelmente prematuro realçou a profunda conexão que existe entre a arquitetura hierática da Índia e a ioga Quem viu alguma vez o Borobudur ou as estupas de Barhut e de Shândi dificilmente consegue subtrairse à impressão de que nestes monumentos está presente uma atitude espiritual caso já não o tenha percebido através de milhares de outras impressões pela vida indiana Nas inumeráveis facetas da transbordante espiritualidade hindu se reflete uma concepção interior da alma que num primeiro momento parece exótica e inacessível à compreensão europeia formada na escola do pensamento grego Nosso intelecto contempla as coisas exteriores nosso olhar bebe como diz Gottfried Keller aquilo que nossos cílios captam e bebem da superabundância dourada do mundo e é a partir da multidão das impressões exteriores que concluímos que existe um mundo interior Assim até mesmo seus conteúdos nós os deduzimos a partir das coisas exteriores segundo a sentença Nada existe no intelecto que não tenha antes passado pelos sentidos Esta máxima parece não ter validade na Índia O pensamento e as formas de arte hindus se manifestam no mundo dos sentidos mas não podemos deduzilos a partir destes últimos Apesar de seu aspecto sensual quase importuno esse pensamento e essas formas nada têm de sensual em sua natureza mais íntima pelo contrário são suprassensuais Não é o mundo dos sentidos dos corpos das cores e dos sons das paixões humanas que a capacidade artística da alma hindu reproduz sob uma forma transfigurada ou num modo de sentir realista É um mundo inferior ou superior de natureza metafísica de onde irrompem figurações estranhas no interior da conhecida visão terrena do mundo Quem observar atentamente as formas impressionantes sob as quais os dançarinos do kathakáli do sul da Índia representam seus deuses não descobrirá aí um só gesto natural Tudo é bizarro e situado abaixo ou acima do nível humano comum Eles não se movem como seres humanos mas deslizam não pensam com a cabeça mas com as mãos Até mesmo os rostos humanos desaparecem por trás das máscaras artificiais esmaltadas de azul Nosso mundo habitual nada nos oferece que se possa comparar nem de longe com esta magnificência grotesca O indivíduo é como que lançado em uma espécie de sonho à vista de tal espetáculo e sua impressão é a de que jamais deparou com algo de semelhante Não são espectros noturnos com que nos defrontamos nos espetáculos do Kathakáli dos templos e sim figuras de profundo e tenso dinamismo formas elaboradas segundo rigorosas leis até nos mínimos detalhes ou organicamente desenvolvidas Não são fantasmas ou meras cópias de realidades únicas e irrepetíveis mas sim realidades que ainda não tiveram existência realidades potenciais que podem transpor a cada momento o limiar do existir 909 Quem se entrega plenamente a tais impressões não demorará a perceber que estas formas nada têm de onírico para o hindu mas são reais para ele do mesmo modo que tocam algo dentro de nós com uma intensidade quase assustadora algo para o qual não temos uma linguagem adequada Mas observamos também que o nosso mundo dos sentidos se transforma em sonho à medida que estas formas penetram cada vez mais profundamente em nós e então despertamos em um mundo povoado de deuses da mais imediata realidade 910 O que o europeu percebe na Índia em primeiro lugar é o seu aspecto corporal físico contemplado do exterior Mas isto não é a Índia como o hindu a vê não é a sua realidade A realidade como se vê pela palavra alemã Wirklichkeit é algo que atua realmente wirkt Para nós o conceito real por excelência se acha ligado ao mundo dos fenômenos do que aparece exteriormente Para o hindu porém este conceito está ligado à alma Para ele o mundo é aparência e sua realidade se aproxima daquilo que nós chamaríamos de sonho 911 Este estranho contraste com o Ocidente se expressa sobretudo na prática religiosa Nós falamos em edificação e elevação religiosas Deus é o Senhor de todas as coisas Temos uma religião do amor ao próximo Em nossas igrejas que se lançam às alturas existe um altarmor situado em lugar elevado Hochaltar enquanto a Índia fala de dhyâna concentração meditação e imersão a divindade se acha no interior de todas as coisas O indivíduo se volta do exterior para o interior Nos antigos templos hindus o altar está colocado a dois ou três metros abaixo do rés do chão e aquilo que nós velamos com o máximo recato é para o hindu o mais sagrado dos símbolos Nós cremos na ação o hindu crê no ser imóvel A prática de nossa religião consiste na adoração na veneração e no louvor Para o hindu pelo contrário a prática mais importante é a ioga a imersão em um estado que chamaríamos de inconsciente mas ele considera como o mais alto grau de consciência A ioga é de um lado a expressão mais eloquente do espírito hindu e do outro o instrumento de que o indivíduo se utiliza sempre para provocar esse singular estado de espírito 912 Que é então a ioga Literalmente ioga significa imposição de um jugo isto é disciplinamento das forças instintivas da alma designadas em sânscrito pelo termo Kleças A imposição do jugo tem por escopo domar aquelas forças que mantêm o homem preso ao mundo Na linguagem de Agostinho as Kleças correspondem à superbia e à concupiscentia Existe uma grande variedade de formas de ioga mas todas elas visam sempre ao mesmo fim Não pretendo citar aqui o nome de todas e sim lembrar que ao lado de práticas e exercícios de caráter meramente psíquico existe também a chamada hathaioga que consiste numa espécie de ginástica corporal e principalmente em exercícios respiratórios e atitudes corporais específicas No presente estudo eu me proponho a comentar um texto da ioga que nos oferece uma visão profunda da mesma Tratase de um texto budista pouco conhecido transmitido em língua chinesa que é a tradução de um original sânscrito Data do ano 424 dC Intitulase Amitâyurdhyânasûtra isto é Tratado da Meditação de Amitâbha 3 Este sûtra tratado é altamente apreciado sobretudo no Japão e pertence ao âmbito do chamado budismo teísta que conserva a doutrina do Âdhibuddha ou Mahâbuddha o Buda original do qual provêm as cinco dhyâni de Buda ou as dhyâni de Bodhisattva Uma destas cinco dhyâni é Amitâbha o Buda do sol poente da luz incomensurável o Senhor de Sukhâvati a terra da felicidade É o protetor do período atual do mundo da mesma forma que Çâkyamuni o Buda histórico é o seu mestre Um fato digno de nota no culto de Amitâbha é uma espécie de celebração eucarística com pão consagrado Amitâbha é representado com um vaso na mão no qual está contido o alimento da imortalidade que nos dá a vida ou às vezes também com o vaso da água sagrada 913 O texto em questão começa com uma narrativa de enquadramento cujo conteúdo não nos interessa aqui Um príncipe herdeiro atenta contra a vida de seus pais A rainha pede socorro a Buda em sua aflição suplicando que lhe mande os seus dois discípulos Maudgalyâyana e Ânanda Buda atende a seu desejo e os dois lhe aparecem imediatamente O próprio Çâkyamuni isto é Buda também aparece diante dela e lhe mostra na visão os dez mundos e a manda escolher aquele no qual ela deseja renascer Ela escolhe o reino terreno de Amitâbha Buda ensinalhe então a ioga que a deve preparar para o reino de Amitâbha Depois de várias prescrições de ordem moral ele lhe comunica o seguinte 914 Tu e todos os outros seres isto é os que têm a mesma intenção deveis procurar a percepção do reino terreno concentrando os pensamentos Talvez me perguntes como se pode conseguir esta percepção Vou explicarte a maneira Todos os seres desde que não sejam cegos de nascença têm o sentido da visão e podem ver o sol poente Deves colocarte na posição correta e dirigir o olhar para o poente Prepara então teus pensamentos para a meditação concentrandote sobre o sol Fixa tua consciência firmemente no sol de modo a teres uma percepção dele sem a mínima perturbação concentrada exclusivamente nele Olha firmemente para ele no momento em que vai pôrse quando parece um tambor dependurado Depois de teres visto o sol desta maneira conserva esta imagem fixa e clara estejas ou não de olhos fechados Esta é a chamada percepção do sol e é a primeira meditação 915 Já vimos que o sol poente é uma alegoria de Amitâbha o dispensador da imortalidade O texto continua Em seguida procurarás ter a percepção da água Fixa o teu olhar na água pura e clara e mantém esse olhar claro e imutável dentro de ti Não permitas que teus pensamentos se dissipem e se percam 916 Como já indiquei Amitâbha é também o dispensador da água da imortalidade 917 Depois de teres visto a água desta maneira procurarás ter a percepção do gelo Vêloás luminoso e transparente Também imaginarás a aparição do lápislazúli lazurita Depois que o conseguires verás o chão como se fosse substituído de lápislazúli transparente e luminoso tanto por dentro como por fora Debaixo deste chão de lápislazúli verás o estandarte de ouro ornado de sete joias isto é de diamantes e de outras pedras preciosas que sustentam o solo Este estandarte se estende nas oito direções da rosa dos ventos ocupando assim inteiramente os oito ângulos dos alicerces Cada lado das oito mencionadas direções é constituído de 100 joias cada uma das quais tem 1000 raios e cada raio 84000 cores que refletindose no chão de lápislazúli têm o aspecto de um bilhão de sóis e dificilmente se pode vêlos separados uns dos outros Na superfície do solo de lápislazúli estendemse cabos de ouro ligados entre si em forma de cruz e suas partes são constituídas de fios ornados cada um de sete joias e cada uma destas partes é clara e distinta Quando tiveres realizado esta percepção meditarás sucessivamente sobre cada uma de suas partes constitutivas E farás com que as imagens apareçam o mais claramente possível de modo que nunca se dissipem nem se percam estejas ou não de olhos abertos À parte o tempo em que estiveres dormindo deverás conservar estas imagens sempre diante de teus olhos interiores Não há dúvida de que aquele que tiver alcançado este estado do qual estamos falando viverá na terra da suprema felicidade Sukhâvati Quem entretanto alcançar o estado de samâdhi estará capacitado a ver essa terra clara e distintamente Este estado não pode ser explicado de modo perfeito É a percepção da terra e é a terceira meditação 918 Samâdhi é a absorção total isto é o estado em que todas as conexões cósmicas foram absorvidas no interior do indivíduo O samâdhi é a oitava das oito sendas 919 Depois disto vem a meditação sobre as árvores das joias do país de Amitâbha à qual se segue a meditação sobre a água No país da suprema felicidade a água está distribuída em oito lagos A água de cada um destes lagos é constituída de sete joias suaves e flexíveis A fonte que as alimenta provém do rei das joias Cintâmani a Pérola dos Desejos No centro de cada lago há 60 milhões de flores de loto cada uma das quais constituída de sete joias Todas as flores são perfeitamente redondas e exatamente do mesmo tamanho A água que circula entre as flores produz sons melodiosos e agradáveis que expressam todas as virtudes perfeitas bem como o sofrimento a não existência a transitoriedade das coisas e o não ego Estes sons expressam também o louvor dos sinais da perfeição e dos sinais interiores da excelência de todos os budas Do rei das joias Cintâmani partem raios de extrema beleza cujo brilho se transforma em pássaros que possuem as cores de 100 joias e emitem sons maviosos de louvor à memória de Buda e também à memória da comunidade por ele formada Esta é a percepção da água das oito boas qualidades e também a quinta meditação 920 Buda instrui a rainha a respeito da meditação do próprio Amitâbha da seguinte maneira Procura ter a percepção de uma flor de loto no país das sete joias A flor possui 84000 pétalas cada folha possui 84000 nervuras e cada nervura 84000 raios cada um dos quais pode ser visto com clareza 921 Depois disto deves ter a percepção do próprio Buda Perguntas de que modo Cada Buda Tathâgata o perfeito é alguém cujo corpo aeriforme é o princípio da natureza DharmadhâtuKâya dhâtu elemento constituído de tal modo que pode penetrar na consciência de todos os seres Por isso desde o momento em que tiveres a percepção de Buda tua consciência possuirá verdadeiramente esses sinais da perfeição bem como os 80 sinais inferiores das excelências que percebes em Buda Por fim tua consciência se transformará em Buda ou melhor tua consciência será o próprio Buda O oceano do conhecimento verdadeiro e universal de todos os budas tem sua origem na nossa própria consciência e no nosso próprio pensamento Por isso deves voltar teu pensamento com toda a atenção para uma cuidadosa meditação sobre esse Buda Tathâgata o Arhat isto é o Santo e perfeito iluminado Se queres ter a percepção deste Buda deverás primeiramente ter a percepção de sua imagem estejas de olhos abertos ou fechados Fitao atentamente como um ídolo de ouro do jâmbûnada seiva que escorre da árvore do jambo que está sentado sobre a flor de loto4 Quando tiveres visto a figura sentada na flor tua visão espiritual se tornará clara e estarás capacitada para perceber com toda nitidez a beleza do país de Buda Ao veres estas coisas faze com que elas se tornem bem claras e firmes para ti tão claras como a palma de tuas mãos Ao passares por esta experiência verás também todos os budas dos dez mundos Afirmase que aqueles que praticaram esta meditação viram o corpo de todos os budas Por haverem meditado sobre o corpo de Buda tiveram também a percepção do espírito de Buda Tratase da grande compaixão conhecida como espírito de Buda Graças a esta compaixão universal o contemplativo tem a percepção de todos os seres Aqueles que praticarem esta meditação renascerão depois da morte em um outro país na presença de Buda e alcançarão o espírito de renúncia graças ao qual enfrentarão todas as consequências que virão depois disto É por isso que todos aqueles que possuem a sabedoria deveriam concentrar seu pensamento em uma cuidadosa meditação sobre este Buda Amitâyus 922 Dizse que aqueles que praticam esta meditação não viverão mais em um estado embrionário mas terão acesso a essas regiões maravilhosas e magníficas dos budas 923 Quando tiveres atingido esta percepção deverás imaginarte a ti mesma renascendo no mundo da suprema felicidade a região do Oriente e sentada de pernas cruzadas na flor de loto Em seguida imaginarás que esta flor te contém dentro de si e logo depois se abrindo Quando a flor volta a se abrir teu corpo estará envolvido por 500 raios coloridos Teus olhos serão abertos e verás os budas e os bodhisattvas enchendo todo o céu Escutarás o rumor das águas e das árvores o canto dos pássaros e a voz dos muitos budas 924 Em seguida Buda disse a Ânanda e à Vaidehi a rainha Os que desejam renascer na região oriental mediante seu puro pensamento deveriam primeiramente meditar sobre uma imagem de Buda de 16 côvados de altura sentada na flor de loto em meio às águas do lago Como já foi dito anteriormente o verdadeiro corpo e seu tamanho são ilimitados e incompreensíveis ao intelecto comum Mas graças à ação eficaz da antiga oração desse Tathâgata todos os que pensam e se lembram dele atingirão com toda a certeza o fim que se propõem 925 O texto prossegue Quando Buda terminou este sermão a Rainha Vaidehi guiada pelas palavras de Buda pôde contemplar juntamente com suas 500 companheiras o espetáculo do país da felicidade suprema que se estende a perder de vista e pôde ver também o corpo de Buda bem como o corpo dos dois bodhisattvas Seu espírito estava repleto de alegria Ela os louvava dizendo Jamais vi coisa tão maravilhosa Logo em seguida foi totalmente iluminada e alcançou o espírito de renúncia e daí por diante esteve sempre pronta a sofrer todas as consequências possíveis e imagináveis daí decorrentes Suas 500 companheiras também se alegraram pelo fato de terem adquirido daí por diante o conhecimento supremo e perfeito e desejaram renascer no país de Buda Aquele que é venerado em todo o mundo predisse que todas haveriam de renascer nesse país e estavam aptas para alcançar o samâdhi a tranquilidade sobrenatural da presença de muitos budas 926 Em um excurso sobre o destino do não iluminado diz Buda resumindo a prática da ioga Mas por se achar atormentado de dores ele não encontrará tempo para pensar em Buda Neste caso um bom amigo lhe dirá Embora não possas praticar o exercício da memória de Buda pelo menos poderás pronunciar o nome de Buda Amitâyus Poderá dizer isto com voz firme e de coração puro Poderá pensar constantemente em Buda repetindo até dez vezes Namo A mitâyushe Buddhâya Honra e louvor a Buda Amitâyus A cada repetição do nome de Buda exterminará seus pecados que de outra forma o envolveriam na hora do nascimento e da morte durante 80 milhões de Kalpas períodos compreendidos entre duas criações sucessivas Ao morrer verá um loto de ouro semelhante ao disco do sol brilhando diante de seus olhos e renascerá em um instante em Sukhâvati o mundo da suprema felicidade 927 São estes os conteúdos essenciais da ioga que aqui nos interessam O texto se divide em 16 meditações das quais destaco apenas algumas passagens Creio no entanto que elas são suficientes para dar uma ideia do que será a meditação que nos eleva até o samâdhi o supremo arrebatamento e a suprema iluminação 928 Este exercício começa com a concentração sobre o sol poente A intensidade dos raios do sol poente na latitude sul é ainda tão forte que basta contemplálo por alguns instantes para que se produza uma imagem duradoura e intensa do sol na retina Vêse então o sol poente por um espaço considerável mesmo que os olhos estejam fechados Um dos métodos hipnóticos como se sabe consiste em fitar um objeto luminoso e brilhante um diamante ou um cristal por exemplo Podemos supor que o ato de fitar o sol tem por escopo produzir um efeito de natureza semelhante Mas não deve produzir sonolência porque a fixação deve vir associada a uma meditação a respeito do sol Essa meditação é a reflexão em torno do sol uma compreensão e uma percepção clara daquilo que o sol é em si de sua forma de suas qualidades e de seus significados Como o elemento redondo desempenha um papel importante nas passagens subsequentes podemos também supor que o disco redondo do sol deve servir de modelo para as figuras redondas da fantasia que se seguirão Também tem por finalidade preparar as visões luminosas subsequentes É deste modo que deve provocar a percepção tal como diz o texto 929 A meditação seguinte a da água não se baseia mais em uma impressão dos sentidos mas produz graças à imaginação ativa a imagem de uma superfície aquosa refletora que como sabemos pela experiência reflete perfeitamente a luz solar Nesse momento é preciso imaginar que a água se converte em gelo luminoso e transparente Com este procedimento a luz imaterial da imagem duradoura do sol na retina se materializa na água que por sua vez solidificase em gelo O que se pretende com isto é evidentemente uma concretização e uma materialização da visão do que resulta a materialidade da criação de fantasias que vêm substituir a natureza física ou seja este mundo que conhecemos Criase uma outra realidade por assim dizer com material psíquico O gelo que por sua natureza tem uma tonalidade azulada transformase em lápislazúli um composto de natureza pétrea que por sua vez convertese em chão mas um chão luminoso e transparente Com este chão se forma um alicerce imutável e por assim dizer real em todos os sentidos Este chão azul e transparente é como um lago de vidro através de cujas camadas transparentes o olhar penetra nas profundezas 930 Destas profundezas brilha então o assim denominado estandarte de ouro Importa observar aqui que o termo sânscrito dhvaja designativo de estandarte significa em geral sinal e símbolo Por isso poderíamos dizer que se trata do aparecimento de um símbolo O fato de o símbolo se estender nas oito direções da rosa dos ventos indica que o fundamento representa um sistema de oito raios Como diz o texto os oito cantos do fundamento se acham inteiramente ocupados pelo estandarte O sistema brilha como 1000 milhões de sóis A imagem persistente do sol adquiriu portanto bastante energia e aumentou a ponto de transformarse em força luminosa de intensidade infinita A estranha ideia das amarras de ouro que se estende por todo o sistema parece querer indicar que as partes deste sistema se acham solidamente interligadas de modo que é impossível desfazêlo Infelizmente o texto não fala da possibilidade de o método vir a falhar nem dos sintomas de degeneração que poderiam advir em decorrência de um erro qualquer Mas tais perturbações em um processo imaginativo não contêm nada de estranho para um conhecedor do assunto pelo contrário constituem uma ocorrência normal Por isso não é de espantar que na visão da ioga esteja prevista uma espécie de solidificação interior da imagem por meio de amarras de ouro 931 Embora o texto não o diga expressamente o sistema de oito raios já é o país de Amitâbha Nele brotam e crescem árvores maravilhosas como convém a um paraíso A água do país de Amitâbha tem uma importância toda especial Ela se encontra sob a forma de oito lagos correspondentes ao octógono A fonte é uma joia central Cintâmani a Pérola dos Desejos símbolo do objeto difícil de conseguir e também do valor supremo 5 Na arte chinesa é aquela figura lunar que muitas vezes aparece associada ao dragão 6 Os sons maravilhosos emitidos pelas águas são constituídos de dois pares de opostos que expressam as verdades fundamentais do budismo como o sofrimento e o não ser a transitoriedade das coisas e a anulação de si e isto quer dizer que todo ser é cheio de sofrimentos e tudo o que se refere ao eu é passageiro e caduco É destes erros que o não ser e o nãoser eu nos libertam A água que produz esses sons é portanto algo como a doutrina de Buda em geral uma água salvadora da sabedoria uma aqua doctrinae água da doutrina para usarmos uma expressão de Orígines A fonte desta água a pérola sem igual é o Tathâgata o Buda em pessoa Resulta daí a reconstituição imaginativa da figura de Buda e a percepção desta constituição leva ao conhecimento de que Buda a rigor outra coisa não é senão a psique do iogue em ação durante a meditação a psique daquele mesmo que medita Não é somente a forma de Buda que brota da própria consciência e dos próprios pensamentos a alma que produz estas imagens e estes pensamentos é o próprio Buda 932 A figura de Buda está sentada em uma flor redonda de loto no centro do país octogonal de Amitâbha Buda se destaca pela grande compaixão com a qual acolhe todos os seus e consequentemente também o meditador isto é o ser mais íntimo que é o próprio Buda e que aparece na visão como o verdadeiro simesmo do meditador Este se sente como o único existente como a consciência suprema que é realmente o próprio Buda Para atingir esta meta final ele precisou percorrer todo o caminho da penosa reconstituição espiritual libertandose da consciência cega do ego sobre a qual pesa a culpa da ilusão do mundo para chegar ao outro polo da alma no qual o mundo é abolido como ilusório 933 Nosso texto não é apenas uma peça literária de museu pois vive sob esta e muitas outras formas na alma do hindu impregnandolhe a vida e o pensamento até os mínimos detalhes tão singularmente estranho aos olhos de um europeu Não é o budismo por exemplo que forma e educa a alma do hindu mas a ioga O budismo em si é um fruto do espírito da ioga que é mais antiga e universal do que a reforma de Buda É com este espírito que deve familiarizarse quer queira ou não aquele que aspira a entender a arte a filosofia e a ética hindus a partir de dentro Nossa maneira habitual de entender sempre a partir de fora falha nesta tarefa porque é absolutamente inadequada à natureza da espiritualidade hindu Eu gostaria de prevenir o leitor de modo particular contra as imitações e tentativas tantas vezes repetidas de sentir e assimilar certas práticas orientais que nos são estranhas Em geral o que daí resulta nada mais é do que um embrutecimento sumamente artificial de nossa inteligência ocidental De fato se alguém conseguisse renunciar à Europa sob todos os aspectos e tornarse realmente um perfeito iogue com todas as consequências éticas e práticas daí decorrentes passando todo o seu tempo em posição de loto sentado em uma pele de gazela debaixo de uma árvore poeirenta de banian figueira sagrada e terminando os seus dias numa não existência obscura e sem nome eu seria o primeiro a reconhecer que ele compreendeu a ioga como um hindu Mas quem não o conseguir também não deverá portarse como se tivesse compreendido a ioga Não pode nem deve renunciar à sua inteligência ocidental Pelo contrário deve pôla a funcionar para compreender honestamente a respeito da ioga tudo quanto esteja ao alcance da nossa capacidade de compreensão sem a preocupação tola de querer imitar e sentir aquilo que não corresponde à sua índole Como os segredos da ioga têm para o hindu tanta ou maior importância do que os mistérios da fé cristã para nós deveríamos evitar todo e qualquer exotismo que colocasse em ridículo nosso mysterium fidei mistério da fé sem com isso subestimar as representações e as práticas estranhas dos hindus considerandoas como erros absurdos Com isto estaríamos barrando a nós mesmos a via de acesso a uma compreensão analógica desses fatos Mas já fomos bastante longe sob este aspecto pois os conteúdos espirituais do dogma cristão se reduziram para nós a um nevoeiro racionalista e iluminista numa medida que já se tornou perigosa e é muito fácil menosprezar o que não conhecemos nem entendemos 934 Se quisermos de fato entender a ioga só poderemos fazêlo à maneira europeia É verdade que entendemos muita coisa com o coração mas também nesse caso nossa mente tem dificuldade em acompanhar de perto a formulação intelectual e exprimir adequadamente aquilo que entende Não há dúvida de que há uma maneira de compreender com o cérebro e em particular com o intelecto científico Mas neste caso muitas vezes o coração fica de fora Por isso é que devemos deixar ora isto ora aquilo à benévola colaboração do público Procuremos portanto em primeiro lugar compreender ou construir com o cérebro aquela ponte oculta que nos levará da ioga à compreensão ocidental 935 Para isto devemos nos reportar mais uma vez ainda à série de símbolos de que já tratamos mas desta vez levando em conta o seu significado O sol que encabeça a série é a fonte do calor e da luz e o centro inegável de nosso mundo visível Por isso como dispensador dá vida ele tem sido por assim dizer em todos os tempos e em todos os lugares ou a divindade em pessoa ou pelo menos uma de suas imagens Até mesmo no universo das representações cristãs é uma alegoria muito difundida de Cristo Uma segunda fonte da vida é particularmente nos países meridionais a água que como se sabe desempenha um papel de importância na alegoria cristã como por exemplo na figura dos quatro rios do paraíso e da fonte que jorra ao lado do monte do templo Esta última foi comparada com o sangue que saiu da chaga do lado de Cristo na cruz Neste contexto quero lembrar o diálogo de Cristo com a samaritana junto ao poço de Jacó bem como os rios de água viva que haveriam de brotar do lado de Cristo Jo 738 Uma meditação sobre o sol e a água evocará estas e outras relações de sentido que levarão o contemplador gradualmente do plano inicial das aparências externas para o plano de fundo das realidades ou em outras palavras para o sentido espiritual dos objetos de sua meditação que se acha por trás dessas aparências Com isto ele se transfere para a esfera do psíquico onde o sol e a água são despidos de sua objetividade física e consequentemente transformados em símbolos de certos conteúdos psíquicos ou em imagens da fonte da vida dentro da própria alma Nossa consciência não se cria a si mesma mas emana de profundezas desconhecidas Desperta gradualmente na criança e cada manhã ao longo da existência desperta das profundezas do sono saindo de um estado de inconsciência É como uma criança que nasce diariamente das profundezas do inconsciente materno Sim um estudo mais acurado da consciência nos mostra claramente que ela não é somente influenciada pelo inconsciente como também emana constantemente do abismo do inconsciente sob a forma de inúmeras ideias espontâneas Por isso a meditação sobre o significado do sol e da água é como uma espécie de descida à fonte psíquica ou em outras palavras ao nosso próprio inconsciente 936 Mas encontramos aqui uma diferença sensível entre o espírito oriental e o ocidental Tratase da mesma diferença que já constatamos ou seja a que existe entre o altarmor altar em posição elevada e o altar construído abaixo do nível do solo O homem ocidental procura sempre a exaltação e o oriental a imersão ou o aprofundamento Parece que a realidade exterior com a sua corporeidade e seu peso domina o espírito europeu com muito mais força e maior intensidade do que o faz com o hindu Por isso o primeiro procura elevarse acima do mundo enquanto o segundo retorna de preferência às profundezas da mãenatureza 937 Mas da mesma forma pela qual a contemplação cristã procura por exemplo nos Exercitia Spiritualia de Inácio de Loyola captar com todos os sentidos do corpo a forma sagrada o mais concretamente possível assim também o iogue procura dar solidez à água que contempla primeiro através da solidez do gelo e em seguida do lápislazúli formando assim o chão firme como ele próprio o denomina Cria por assim dizer um corpo sólido para a sua própria visão e confere assim ao elemento interior isto é às formas de seu mundo psíquico uma realidade concreta que substitui o mundo exterior Não há dúvida de que inicialmente ele não vê senão uma superfície refletora azul como por exemplo a de um lago ou do mar que é também um símbolo corrente do inconsciente em nossos sonhos De fato sob a superfície refletora da água escondemse profundezas desconhecidas obscuras e misteriosas 938 Como nos diz o texto a pedra azul é transparente dandonos a entender com isto que o olhar do contemplador pode penetrar as profundezas do mistério da alma onde enxerga o que antes não podia ser visto isto é aquilo que se achava mergulhado num estado de inconsciência Da mesma forma que o sol e a água são fontes da vida física assim também exprimem como símbolos o mistério essencial da vida do inconsciente No estandarte símbolo que ele vê através do chão de lápislazúli o iogue contempla como que uma imagem da fonte da consciência anteriormente invisível e aparentemente sem forma definida Por meio da dhyâna isto é da imersão e do aprofundamento da contemplação parece que o inconsciente assume uma forma definida É como se a luz da consciência que cessara de iluminar os objetos do mundo dos sentidos exteriores iluminasse daí por diante as trevas do inconsciente Quando se extinguem por completo o mundo dos sentidos e do pensamento o elemento interior surge com toda a nitidez 939 Neste ponto o texto oriental passa por cima de um fenômeno psíquico que se converte para o europeu em uma fonte inesgotável de dificuldades Se ele procurar esconjurar as representações do mundo exterior esvaziando seu espírito de tudo o que é exterior tornarseá presa primeiramente de suas próprias fantasias subjetivas que nada têm a ver com os conteúdos de nosso texto As fantasias não gozam de boa fama são ordinárias e destituídas de valor e por isso rejeitadas como inúteis e destituídas de sentido Tratase das Kleças daquelas forças desordenadas e caóticas dos instintos que a ioga pretende justamente subjugar Esse objetivo é perseguido também pelos referidos Exercitia Spiritualia e tanto um método como o outro procura chegar ao mesmo resultado fornecendo o objeto da contemplação àquele que medita isto é propondolhe a imagem sobre a qual deve concentrarse para impedir o acesso das chamadas fantasias carentes de valor Ambos os métodos tanto o oriental como o ocidental procuram chegar ao mesmo fim por via direta Não pretendo pôr em dúvida a prática da meditação quando levada a efeito dentro de um quadro eclesiástico significativo Fora deste contexto porém a coisa em geral não funciona ou conduz até mesmo a resultados deploráveis Em outros termos com o esclarecimento do inconsciente caise sobretudo na esfera do inconsciente pessoal e caótico onde se acha tudo quanto se gostaria de esquecer ou não se desejaria confessar ou admitir nem para si nem para os outros em qualquer circunstância Por isto crêse que a melhor maneira de evitálo é não olhar para este canto escuro Mas quem procede desta maneira não consegue evitar este canto e nunca chegará a perceber o menor traço daquilo que a ioga promete Só aquele que atravessar estas trevas poderá ter a esperança de avançar mais alguns passos É por isto que em princípio sou contra a adoção das práticas da ioga por parte dos europeus de forma indiscriminada e sem senso crítico pois sei perfeitamente que o que se espera com isto é evitar seu canto escuro Mas tal início é inteiramente desprovido de sentido e de valor 940 É aqui que reside a razão mais profunda pela qual nós homens do Ocidente não desenvolvemos coisa alguma que possa se comparar com a ioga exceção feita do emprego bastante limitado dos exercícios inacianos Temos um receio profundo de encarar de frente o lado abominável de nosso inconsciente pessoal É por isso que o europeu prefere dizer aos outros de que modo devem proceder Não entra em nossa cabeça que a correção do conjunto deve começar pelo próprio indivíduo ou mais exatamente por mim mesmo Muitos pensam inclusive que é patológico olhar às vezes para dentro de si e que isto nos torna melancólicos como até mesmo um teólogo me garantiu certa vez 941 Disse há pouco que no Ocidente não desenvolvemos nada que se possa comparar com a ioga Mas isto não é de todo exato Entre nós desenvolveuse como corresponde à mente preconceituosa do europeu uma psicologia médica que se ocupa especialmente com as Kleças Chamamola de psicologia do inconsciente A tendência inaugurada por Freud reconheceu o lado sombrio do homem e sua influência sobre a consciência e assumiu totalmente este problema Essa psicologia se ocupa com aquilo que o texto em questão pressupõe como resolvido A ioga conhece muito bem o mundo das Kleças mas o caráter naturalista de sua religiosidade desconhece o conflito moral que as Kleças representam para nós ocidentais Um dilema ético nos separa de nossa sombra O espírito da Índia brota diretamente da natureza Nosso espírito pelo contrário opõese à natureza 942 O chão lápislazúli é opaco para nós porque o problema do mal deve ser resolvido antes de tudo no plano da natureza Esta questão pode ser resolvida mas não certamente com argumentos racionalistas superficiais ou com um palavrório intelectual oco A responsabilidade ética do indivíduo pode dar uma resposta válida Mas não há receitas e formulários pré fabricados e sim apenas o pagamento até o último centavo Só então é que o chão de lápislazúli pode tornarse transparente Nosso sutra pressupõe portanto que o mundo sombrio de nossas fantasias isto é de nosso inconsciente pessoal foi percorrido pelo contemplativo e passa então a descrever uma forma simbólica que à primeira vista nos parece estranha Tratase de uma figura geométrica radial dividida em oito segmentos formando a assim chamada ogdóade No centro desta figura vêse um loto no qual Buda está sentado A experiência decisiva consiste afinal em saber que Buda é o próprio contemplativo e com isto parece desfeito o nó fatal dado pela narrativa do quadro O símbolo de estrutura simétrica expressa obviamente uma concentração máxima a que só se pode chegar levandose ao extremo não só o distanciamento e a transição do interesse em relação às impressões do mundo dos sentidos e das representações ligadas aos objetos externos como também o voltarse decisivamente para aquilo que constitui o pano de fundo da consciência O mundo da consciência com suas ligações com o objeto e mesmo o próprio centro da consciência isto é o ego extinguemse e em seu lugar surge o mundo de Amitâbha com seu brilho que aumenta e se intensifica indefinidamente 943 Psicologicamente isto quer dizer que por trás e debaixo do mundo das fantasias surge uma camada ainda mais profunda do inconsciente que ao contrário da desordem caótica das Kleças é de uma ordem e de uma harmonia insuperáveis e que ao invés da multiplicidade daquelas representa a unidade universal do mandala do bodhi o círculo mágico da iluminação 944 Mas o que tem nossa psicologia a dizer a respeito desta descoberta hindu de um inconsciente suprapessoal e universal que surge de algum modo quando as trevas do inconsciente pessoal se tornam transparentes Nossa psicologia sabe que o inconsciente pessoal nada mais é do que uma camada superposta que se assenta em uma base de natureza inteiramente diversa Esta base é o que chamamos de inconsciente coletivo A razão desta denominação está na circunstância de que ao contrário do inconsciente pessoal e de seus conteúdos meramente pessoais as imagens do inconsciente mais profundo são de natureza nitidamente mitológica Isto significa que essas imagens coincidem quanto à forma e ao conteúdo com as representações primitivas universais que se encontram na raiz dos mitos Elas não são mais de natureza pessoal mas são puramente suprapessoais e consequentemente comuns a todos os homens Por isso é possível constatar sua presença nos mitos e nas fábulas de qualquer povo e de qualquer época bem como em indivíduos que não têm o menor conhecimento consciente de mitologia 945 Nossa psicologia ocidental avançou realmente tanto quanto a ioga pela circunstância de estar em condições de constatar cientificamente a existência de uma camada do inconsciente comum a todos os indivíduos Os temas mitológicos cuja existência foi demonstrada pela investigação do inconsciente constituem a rigor uma multiplicidade mas esta multiplicidade culmina em um arranjo concêntrico e radial que constitui verdadeiramente o centro ou a essência do inconsciente coletivo Dada a coincidência notável dos resultados da pesquisa psicológica com os conhecimentos da ioga escolhi o termo sânscrito mandala que significa círculo para designar este símbolo central 946 Alguém poderá perguntarme Mas de que modo a ciência universal chega a semelhantes resultados Para isto há dois caminhos O primeiro é a via histórica Se estudarmos o método introspectivo da filosofia natural da Idade Média por exemplo verificaremos que ele se serviu constantemente do círculo em particular do círculo dividido em quatro segmentos para simbolizar o princípio central inspirandose para isto claramente na alegoria da quaternidade usada correntemente na Igreja como por exemplo as numerosas representações do rex gloriae rei da glória cercado pelos quatro evangelistas os quatro rios do paraíso os quatro ventos etc 947 A segunda via é a da psicologia empírica A um determinado estágio do tratamento psíquico os pacientes desenham às vezes espontaneamente esses mandalas seja porque sonharam com eles seja porque sentem de súbito a necessidade de compensar sua desordem psíquica com a representação de um conjunto ordenado Foi um processo desta natureza que nosso santo nacional o bemaventurado Nicolau de Flüe percorreu e cujo estágio final podemos ver ainda no quadro da visão da Trindade pintado na Igreja Matriz de Sachseln Nosso santo fixou sua visão aterradora que o abalou até o mais profundo de seu ser mediante desenhos de forma circular no livrinho de um místico alemão 7 948 Mas o que diz nossa psicologia empírica a respeito do Buda sentado na flor de loto A rigor o Cristo deveria estar sentado em um trono nos mandalas ocidentais ocupando o centro da figura Foi isto o que aconteceu durante a Idade Média como já ficou dito em outro lugar Mas nossos mandalas modernos cujo surgimento espontâneo observamos em um grande número de indivíduos sem pressupostos ou intromissões de caráter exterior não contêm nenhuma figura de Cristo e menos ainda a de um Buda sentado na posição de loto Pelo contrário o que ocorre não raras vezes é a cruz isósceles ou mesmo uma alusão clara à suástica Não pretendo discutir aqui este fato estranho que em si mesmo é do máximo interesse 8 949 Existe uma diferença muito sutil mas enorme entre o mandala cristão e o mandala budista O cristão jamais dirá em sua contemplação Eu sou Cristo pelo contrário confessará como Paulo Eu vivo mas já não sou eu é Cristo que vive em mim Gl 220 Mas nosso sûtra afirma Saberás que tu é que és Buda No fundo estas duas confissões são idênticas visto que o budista atinge este conhecimento quando se torna anâtman isto é sem o simesmo mas há uma grande diferença na formulação o cristão alcança a sua meta em Cristo ao passo que o budista se reconhece como Buda O cristão parte justamente do mundo transitório do eu enquanto o budista se apoia ainda no fundamento eterno da natureza interior cuja união com a divindade ou com a essência universal encontramos também em outras confissões hindus Referências JUNG CG Psychologie und Alchemie Psychologische Abhandlungen V Zurique Rascher 1944 Rev Neuaufl 1952 GW 12 1972 31980 Symbolik des Geistes Studien über psychische Phänomenologie mit einem Beitrag von Riwkah Schärf Psychologische Abhandlungen VI Zurique Rascher 1948 Neuaufl 1953 Jungs Beiträge GW 91 1976 51983 und GW 13 1978 31982 und in diesem Band d h GW 11 Symbole der Wandlung Analyse des Vorspiels zu einer Schizophrenie Zurique Rascher 1952 4 umgearbeitete Auflage von Wandlungen und Symbole der Libido 1912 GW 5 1973 31983 Wandlungen und Symbole der Libido Viena 1912 Siehe Symbole der Wandlung Sacred Books of the East 50 vols Oxford 18791910 Ed Max Müller STÖCKLI A Die Visionen des seligen Bruder Klaus Einsiedeln 1933 ZIMMER H Kunstform und Yoga im indischen Kultbild Berlim 1926 Fonte OC 115 908949 1 Surgido pela primeira vez em Mitteilungen der Schweizerischen Gesellschaft der Freunde ostasiatischer Kultur V 1943 e publicado a seguir em Symbolik des Geistes 1948 2 Kunstform und Yoga im indischen Kultbild Berlim se 1926 3 Sacred Books of the East Vol XLIX Parte II p 161s Traduzidos por Takakusu 4 Jambunadi rio formado do suco do fruto do jambeiro e que corre em torno do monte Meru retornando depois à árvore de origem 5 Cf Wandlungen und Symbole der Libido 1912 p 161 ou a nova edição de 1952 Symbole der Wandlung p 279 e no lugar citado Símbolos da transformação 6 Cf Psychologie und Alchemie seção 61 Psicologia e alquimia 7 Cf Die Visionen des Seligen Bruder Klaus de P Alban Stöckli OFM Cap Cf tb 474s deste volume 8 O leitor encontrará as necessárias indicações em Psychologie und Religion Psicologia e religião Petrópolis Vozes 2011 136s Prefácio ao I Ging 1 964 É com a maior satisfação que atendo ao desejo manifestado pela tradutora da edição de I Ging de Wilhelm no sentido de escrever de próprio punho um prefácio para esta obra podendo cumprir desta maneira um ato de piedade para com meu falecido amigo Richard Wilhelm Da mesma forma que ele estava consciente da importância histórica e cultural de sua versão e apresentação do I Ging sem igual no Ocidente assim também me sinto na obrigação de transmitir esta obra da melhor maneira possível ao mundo da língua inglesa 965 Se o Livro das Transmutações 1a fosse uma obra popular não precisaria de uma introdução Mas ele é tudo menos popular Pelo contrário suspeitase que ele constitui uma velha coleção de sentenças mágicas sendo portanto de um lado uma obra difícil de entender e do outro destituída de qualquer valor A tradução de Legges publicada na série dos Sacred Books of the East dirigida por Max Müller pouco contribuiu para pôr o livro ao alcance da mentalidade ocidental 2 Isto foi uma razão a mais para que Wilhelm se esforçasse por abrir uma via de acesso à simbologia muitas vezes obscura do texto em questão ele estava capacitado para isso e com a maior facilidade se considerarmos que se ocupara por vários anos praticamente com a estranha técnica deste livro de oráculo o que naturalmente lhe proporcionou a possibilidade de desenvolver uma sensibilidade muito fina para o conteúdo vivo do texto em forma inteiramente diversa da que se poderia esperar apenas de uma tradução mais ou menos literal 966 Devo a Wilhelm as mais valiosas informações sobre o complicado problema do I Ging bem como sobre a maneira prática de avaliar os resultados obtidos Eu mesmo me ocupei há mais de vinte anos atrás com a técnica destes oráculos que me pareciam de grande interesse sob o ponto de vista psicológico e já conhecia bastante bem o I Ging quando me encontrei pela primeira vez com Wilhelm no início da década de 1920 Mesmo assim foi uma experiência notável ver Wilhelm entregue à sua obra e poder observar com meus próprios olhos a maneira pela qual ele analisava praticamente os resultados Para grande satisfação minha pude constatar que os meus conhecimentos de psicologia eram de grandíssima utilidade 967 Naturalmente como não entendesse o chinês só podia abordar o I Ging pelo lado prático Minha única dúvida era a respeito da funcionalidade do método e de sua utilidade Dada a minha ignorância em questões de sinologia o simbolismo abstrato dessas fórmulas mágicas pouco teria podido me interessar Eu não podia me preocupar com as dificuldades de caráter filosófico mas única e exclusivamente com a exploração psicológica do método utilizado no I Ging 968 Na época em que Wilhelm esteve comigo em Zurique pedilhe que elaborasse um hexagrama a respeito da situação de nossa sociedade psicológica Eu conhecia a situação mas ele não O diagnóstico foi espantosamente correto como o foi também o prognóstico que descrevia um fato só ocorrido posteriormente e que eu mesmo não havia previsto Mas este resultado não era assim tão espantoso uma vez que eu já havia feito anteriormente uma série de experiências notáveis com o método No começo empregava a técnica mais complicada das cinquenta varinhas de milefólio 3 mais tarde quando já conseguira uma visão de conjunto do funcionamento do método bastavame o denominado oráculo das moedas que em seguida usei abundantemente Com o decorrer do tempo verifiquei que havia certas conexões por assim dizer regulares entre a situação vigente e o conteúdo dos hexagramas Este fato é inegavelmente singular e segundo nossos pressupostos comuns não deveria ocorrer descontados os assim chamados golpes do acaso Mas é preciso notar que apesar da crença na regularidade das leis da natureza nós nos comportamos muito liberalmente em relação ao conceito de acaso Quantos fenômenos psíquicos qualificamos de casuais quando na realidade vemos que nada têm a ver com uma casualidade Lembremos apenas os casos de lapsos de linguagem erros de leitura e esquecimentos que Freud já declarava nada possuírem de acidental Por isso sintome inclinado a uma posição de ceticismo em relação às chamadas coincidências do I Ging Pareceme inclusive que o percentual de acertos supera de muito qualquer probabilidade Acredito mesmo que não se trata de acaso mas de regularidade 969 Com isto chegamos à questão de saber como se deveria demonstrar esta pretensa regularidade Aqui sou obrigado a decepcionar o leitor Esta demonstração é sumamente difícil se não de todo impossível aspecto este que tenho como o mais provável Esta constatação deverá parecer demasiado catastrófica para quem a encara de um ponto de vista racionalista e devo contar desde já com a possibilidade de ser acusado de fazer afirmações levianas falando em regularidade da coincidência da situação com a resposta do hexagrama Na realidade eu deveria fazer tais acusações contra mim mesmo se não soubesse por uma longa experiência prática o quanto é difícil para não dizer impossível aduzir provas quando se trata de questões de psicologia Quando deparamos com certos fatos bastante complicados na vida prática resolvemos o problema à base de conceitos sentimentos afetos intuições convicções etc para cuja explicação e aplicabilidade é impossível encontrar até mesmo uma demonstração científica no entanto os interessados poderão se dar por satisfeitos com a solução encontrada As situações que se apresentam na prática são de uma tal complexidade que é impossível analisálas de maneira satisfatoriamente científica Quando muito o que se consegue é um certo grau de probabilidade E mesmo assim só quando os interessados forem não só perfeitamente sinceros como também e sobretudo de boafé Entretanto só podemos chegar a um grau maior de sinceridade e de boafé dentro dos limites de nossa consciência Ora aquilo que somos em nosso inconsciente escapa ao nosso controle em outras palavras a nossa consciência acredita que é honesta e de boafé mas nosso inconsciente talvez saiba que para além disto nossa aparente sinceridade e boafé nada mais são do que uma fachada por trás da qual se oculta o contrário Devido ao inconsciente é impossível descrever e compreender uma pessoa e uma situação psicológica e por isso é também impossível demonstrar se tais coisas existem na realidade Quando muito conseguimos mostrar baseados estatisticamente em uma grande massa de material empírico recolhido que certos fenômenos psíquicos perfeitamente definidos são prováveis e nada mais do que isto 4 Mas em situações psicológicas individuais altamente complicadas nada se pode provar porque por sua própria natureza tais situações nada oferecem que possa ser submetido a repetições experimentais Os oráculos do I Ging se situam entre estas situações singulares impossíveis de repetir Como sempre nelas acontece o indivíduo não é capaz de discernir se uma coisa é provável ou não Suponhamos por exemplo que alguém depois de longa preparação resolva pôr em prática um plano elaborado e perceba de repente que este seu passo poderá prejudicar os interesses de outras pessoas Nesta expectativa digamos que ele consulte o oráculo recebendo talvez entre outras a seguinte resposta hexagrama 41 Irse embora depressa quando houver terminado os trabalhos não é nenhuma desonra mas é preciso pensar bem até onde isto pode prejudicar os outros 970 Ora é absolutamente impossível provar que esta frase apesar de sua inegável correspondência tenha algo a ver com a situação psicológica do consultor Este tem só três possibilidades diante de si ou se espantar com o fato de a frase do hexagrama concordar tão perfeitamente com sua situação ou considerar esta aparente concordância como um acaso ridículo ou simplesmente negála Na primeira hipótese ele se dirigirá ao segundo verso do mesmo hexagrama que diz Empreender alguma coisa é motivo de infortúnio Sem se prejudicar a si mesmo É possível ajudar os outros a crescer 971 Ele talvez reconheça a sabedoria desta conclusão ou a considere simplesmente sem importância No primeiro caso acha impossível tratarse de um acaso e no segundo acha que só pode tratarse de um acaso numa terceira hipótese considera que tudo isso nada significa Mas neste caso não se pode provar coisa alguma Por isso escrevo este prefácio somente para aqueles que se acham inclinados a conceder algum crédito a este estranho método 972 Embora tais coincidências verbais não sejam muito raras não representam a maioria dos casos Muitas vezes as conexões são bastante vagas ou mesmo indiretas exigindo então maior crédito Isto acontece principalmente quando a situação psicológica inicial não é muito nítida mas nebulosa ou só foi apreendida de maneira unilateral Nestas circunstâncias dãose casos em que se o consultante mostrar disposições de considerar sua situação sob uma luz diferente é possível discernir uma relação mais ou menos simbólica com o hexagrama Expressome de propósito com cautela porque não gostaria de sugerir que é preciso criar uma conexão à tout prix a todo custo Tais artificialismos não compensam e só levam a especulações doentias É por isso que o método se presta ao abuso Por esta razão não serve para indivíduos imaturos infantis e propensos a brincadeiras nem convém a temperamentos intelectualistas e racionalistas endereçase a pessoas capazes de meditar e refletir e que gostem de pensar naquilo que fazem e sobre o que lhes acontece casos estes que nada têm a ver com o ensimesmamento hipocondríaco Este último é um exemplo do abuso da reflexão mórbida O I Ging não se recomenda à base de demonstrações e resultados positivos não faz alarde de si nem vem espontaneamente ao nosso encontro Qual uma obra da natureza espera que alguém o descubra Não oferece conhecimentos e habilitações mas parece ser o livro certo para os que amam o autoconhecimento e a sabedoria no tocante ao pensar e ao agir se é que existem Ele nada promete por isso não precisa sustentar coisa alguma e em hipótese alguma é culpado de que alguém chegue a conclusões erradas O método deve ser manipulado com certa inteligência A estupidez como se sabe não é uma arte 973 Suponhamos então que não sejam absurdas as coisas contidas no livro nem mera autossugestão e interpretação dada pelo consultante mesmo assim o espírito ocidental formado na filosofia e nas ciências da natureza vêse obrigado a encarar o fato desagradável de que uma situação psicológica pode acharse expressa na divisão fortuita das quarenta e nove varinhas de milefólio ou na queda igualmente fortuita ou mais fortuita ainda das moedas e isto de tal modo que se distingue até mesmo uma relação de sentido Esta coerência é inesperada para a mentalidade ocidental que tem hábitos de pensar inteiramente diversos Por isto entendese perfeitamente que nosso espírito rejeite tais coisas como se fossem inteiramente impossíveis Em caso de evidência ainda se poderia pensar que um profundo conhecedor dos hexagramas pegasse as varinhas inconscientemente com tanta destreza que elas se distribuíssem de maneira correspondente Ora no oráculo das moedas falta esta possibilidade tenuíssima pois aqui são tantas as condições externas qualidade da superfície em que são jogadas o rolar das moedas etc que entram em jogo que uma tendência psíquica pelo menos segundo nossa maneira de pensar não conseguiria se impor Se alguma coisa no método dá certo então é forçoso admitir que existe um paralelismo insólito entre o evento psíquico e o evento físico Esta conclusão é shocking chocante mas não de todo nova pois constitui a única hipótese plausível da Astrologia e de modo particular da moderna horoscopia embora esta última esteja voltada mais para o tempo em si mesmo do que para a posição momentânea dos astros pois o tempo é também determinado e medido com instrumentos da Física Se a leitura do caráter pela horoscopia em geral fosse exata e há alguma probabilidade em seu favor ela não seria mais admirável do que a capacidade de um bom conhecedor de vinho que baseado na qualidade deste determina com segurança qual a região a situação local vinhedo e o ano da produção do mesmo coisa que à primeira vista parece duvidosa para um não conhecedor Ora um bom astrólogo pode dizerme em cima da buxa os signos do zodíaco em que o sol e a lua se achavam no dia de meu nascimento e qual é o meu ascendente Por conseguinte o paralelismo psicofísico que seria preciso admitir como base do oráculo do I Ging representaria um outro aspecto do processo que se deve pôr à base da astrologia se atribuirse alguma significação à leitura do caráter pela astrologia Não há dúvida de que é grande o número de pessoas que se ocupam com a astrologia como também são indivíduos de índole comprovadamente reflexiva e interessados por coisas de psicologia que extraem desta ocupação múltiplas espécies de conhecimento Aqui também é evidente a possibilidade de abusos 974 Eu estaria exorbitando os limites de minha competência científica se quisesse responder aqui à questão abordada Só posso afirmar que todos os que consultam o mencionado oráculo agem como se houvesse de fato um paralelismo entre o evento exterior e o interior entre o psíquico e o físico e que mesmo não conferindo qualquer significado ao resultado de sua consulta declaramse a favor de uma tal possibilidade Minha atitude diante de tais fatos é pragmática e a psicoterapia e a psicologia médica foram as grandes mestras que me ensinaram este comportamento prático e útil Em parte alguma se deve esperar algo de mais desconhecido do que neste setor e em domínio algum nos habituamos a empregar o que é mais atuante sem perceber às vezes quais são as razões pelas quais esse fator atua Assistimos a curas inesperadas obtidas com terapias duvidosas e a fracassos inesperados mediante métodos pretensamente seguros Quem se dedica à pesquisa do inconsciente depara com coisas insólitas que um racionalista evita com horror afirmando depois nada ter visto O lado irracional da vida ensinou me a não rejeitar o que quer que seja mesmo que isto vá de encontro a todas as nossas teorias aliás de vida tão curta ou pareça por outro lado momentaneamente inexplicável Isto nos deixa inquietos não temos plena certeza de que a bússola esteja apontando na direção verdadeira mas não é na segurança na certeza e na tranquilidade que se fazem descobertas O mesmo acontece com este método chinês de adivinhação Aquilo a que ele visa evidentemente é o autoconhecimento ainda que em todos os tempos tenha sido usado paralelamente de forma supersticiosa Só os indivíduos estúpidos e inferiores acham que o autoconhecimento é prejudicial Ninguém os abalará nesta convicção Mas pessoas mais inteligentes podem jogar tranquilamente com a possibilidade de colher algumas experiências talvez ricas de ensinamento por meio deste método 975 O método em si é simples e fácil A dificuldade porém começa como já disse com a apreciação dos resultados Antes de mais nada não é nada fácil compreender a simbologia dessa obra mesmo com o apoio dos excelentes comentários de Wilhelm Quanto mais conhecimentos de psicologia do inconsciente o leitor possuir tanto mais fácil se tornará seu trabalho Mas uma dificuldade diferente e mais decisiva consiste na ignorância generalizada da própria sombra isto é do aspecto inferior da própria personalidade que é constituída em grande parte de complexos reprimidos Acontece muitas vezes que a personalidade consciente se volta com todas as suas forças contra tais conteúdos descarregandoos sob a forma de projeções sobre os seus semelhantes Só vemos perfeitamente o argueiro que está no olho do nosso irmão e não enxergamos a trave que está no nosso próprio olho O fato de muitas vezes sermos acometidos por uma cegueira sistemática em relação aos nossos próprios defeitos revelase extremamente prejudicial dificultando o estudo e a compreensão do I Ging Poderseia quase dizer que aquele que depois de usar o método numerosas vezes afirmar não ter encontrado nele nada de compreensível sofre com toda a probabilidade de elevado grau de cegueira Talvez valesse a pena escrever um comentário sob o ponto de vista da moderna psicologia a respeito de cada um dos sinais tal como Confúcio o fez em seu tempo Mas este trabalho exigiria um espaço quatro vezes maior do que o de um simples prefácio como este e seria uma tarefa sumamente pretensiosa Por este motivo tive de decidirme por outra maneira de proceder Referências I Ging Siehe Wilhelm RHINE JB The Reach of the Mind Londres e Nova York 1948 Sacred Books of the East 50 vols Oxford 18791910 Ed Max Müller WILHELM R I Ging Das Buch der Wandlungen Aus dem Chinesischen verdeutscht und erläutert von R W Jena 1923 und Neuausgaben Fonte OC 115 964975 1 Escrito em 1948 para a versão inglesa de I Ging O Livro das Transformações aparecido em 1950 Traduzido por Mrs CF Baynes A tradução inglesa deste prefácio se diferencia amplamente da presente versão que é a original Por isso a numeração dos parágrafos neste trabalho nem sempre coincide com a da edição inglesa Convém observar também que o título desta obra tem sido grafado de diversas maneiras I Ging pronúncia i Idingi como no presente prefácio IChing Yi King IKing Y King etc Na tradução deste prefácio conservamos a forma do original alemão NT 1a Existe uma tradução brasileira da análise e da versão inglesa de John Blofeld sob o título de I Ching O Livro das Transformações 2 ed Rio de JaneiroSão Paulo Record 1971 NT 2 Legge faz a seguinte observação a respeito dos textos que explicam cada linha dos hexagramas According to our notions a framer of emblems should be a good deal of a poet but those of the Yi only make us think of a dryasdust Out of more than 350 the greater number are only grotesque Sacred Books of the EastVol XVI p 22 Este mesmo autor diz falando das lessons dos hexagramas But why it may be asked why should they be conveyed to us by such an array of lineal figures and in such a farrago of emblematic representations Ibid p 25 Mas não encontramos qualquer passagem em que Legge demonstre ter experimentado praticamente o método 3 As varinhas são de Ptarmica Sibirica que Legge ainda viu crescer sobre o túmulo de Confúcio 4 Os trabalhos de JB Rhines poderiam ser de grande utilidade neste ponto Cf ExtraSensory Perception Boston se 1934 e New Frontiers of the Mind Nova York se 1937 V REALIDADE E TRANSCENDÊNCIA DA PSIQUE O passo que conduz a uma consciência mais alta deixanos sem qualquer segurança com a retaguarda desguarnecida OC 13 25 Deus quer vir a ser na chama cada vez mais intensa da consciência humana Cartas 1 O real e o suprarreal 742 Não conheço nada a respeito de uma suprarrealidade A realidade contém tudo o que podemos saber pois aquilo que age que atua é real Se não age não podemos nos dar conta de sua presença e por conseguinte não conhecemos nada a seu respeito Por isto eu só posso falar de coisas reais e nunca de coisas irreais suprarreais ou subreais a menos que alguém naturalmente tivesse a ideia de limitar o conceito de realidade de tal maneira que o atributo real só se aplicasse a um determinado segmento da realidade Esta limitação à chamada realidade material ou concreta dos objetos percebidos pelos sentidos é um produto do modo de pensar subjacente ao chamado senso comum e à linguagem ordinária Este modo de pensar procede em conformidade com o célebre princípio Nihil est in intellectu quod non antea fuerit in sensu nada existe no intelecto que antes não tenha passado pelos sentidos e isto a despeito do fato de haver uma imensidade de coisas na mente que não derivam dos dados dos sentidos Sob este aspecto é real tudo o que provém ou pelo menos parece provir direta ou indiretamente do mundo revelado pelos sentidos 743 Esta limitação da imagem do mundo é reflexo da unilateralidade do homem ocidental da qual muitas vezes se tem inculpado mas injustamente o espírito grego A limitação do conhecimento à realidade material arranca um pedaço excessivamente grande ainda que fragmentário da realidade total substituindoo por uma zona de penumbra que poderíamos chamar de irreal ou suprarreal A visão oriental do mundo desconhece esta perspectiva por demais estreita e por isto não tem necessidade de uma suprarrealidade filosófica Nossa realidade arbitrariamente circunscrita achase continuamente ameaçada pelo suprassensível pelo supranatural pelo suprahumano e outras coisas semelhantes A realidade oriental evidentemente inclui tudo isto Entre nós a zona de perturbação começa já com o conceito de psíquico Em nossa realidade o psíquico não pode exprimir senão um efeito de terceira mão produzido originariamente por causas físicas uma secreção do cérebro ou alguma outra coisa igualmente saborosa Ao mesmo tempo atribuise a este apêndice do mundo material a capacidade de superar e conhecer não só os mistérios do mundo físico mas também a si próprio sob a forma de mente e tudo isto sem que lhe seja reconhecida apenas como uma realidade indireta 744 O pensamento é real Provavelmente segundo este modo de pensar na medida em que se refere a algo que pode ser percebido pelos sentidos Se não puder será considerado irreal imaginário e fantástico e deste modo declarado como não existente Isto acontece praticamente de maneira incessante embora seja uma monstruosidade filosófica O pensamento existiu e existe mesmo que não se refira a uma realidade palpável e produz inclusive efeitos exteriores pois do contrário ninguém o perceberia Mas como a palavra existe se refere segundo o nosso modo de pensar a algo de material o pensamento irreal devese contentar com a existência de uma suprarrealidade nebulosa que equivale praticamente à irrealidade E no entanto o pensamento tem deixado indícios indubitáveis atrás de si talvez tenhamos especulado com eles e com isto aberto um doloroso rombo em nossa conta bancária mental 745 Nosso conceito prático de realidade parece portanto que precisa de revisão e tanto é assim que a literatura comum e diária começa a incluir os conceitos de super e supra em seu horizonte mental Estou de pleno acordo com isto porque nossa imagem do mundo contém alguma coisa que não está inteiramente certa ou seja na teoria nos recordamos muito pouco e na prática por assim dizer quase nunca de que a consciência não tem uma relação direta com qualquer objeto material Percebemos apenas as imagens que nos são transmitidas indiretamente através de um aparato nervoso complicado Entre os terminais dos nervos dos órgãos dos sentidos e a imagem que aparece na consciência se intercala um processo inconsciente que transforma o fato psíquico da luz por exemplo em uma luzimagem Sem este complicado processo inconsciente de transformação a consciência é incapaz de perceber qualquer coisa material 746 A consequência disto é que aquilo que nos parece como uma realidade imediata consiste em imagens cuidadosamente elaboradas e que por conseguinte nós só vivemos diretamente em um mundo de imagens Para determinar ainda que só aproximadamente a natureza real das coisas materiais precisamos da aparelhagem e dos métodos complicados da Física e da Química Com efeito estas disciplinas são instrumentos que ajudam o intelecto humano a ver um pouco a realidade não física por trás dos véus enganosos do mundo das imagens 747 Longe portanto de ser um mundo material esta realidade é um mundo psíquico que só nos permite tirar conclusões indiretas e hipotéticas acerca da verdadeira natureza da matéria Só o psíquico possui uma realidade imediata que abrange todas as formas do psíquico inclusive as ideias e os pensamentos irreais que não se referem a nada de exterior Podemos chamálas de imaginação ou ilusão isto não lhes tira nada de sua realidade De fato não existe nenhum pensamento real que às vezes não possa ser posto de lado por um pensamento irreal que assim mostrase mais poderoso e mais eficiente do que o primeiro Maiores do que todos os perigos físicos são os efeitos tremendos das ideias ilusórias às quais nossa consciência mundana nega qualquer realidade Nossa tão decantada razão e nossa vontade desmedidamente superestimada às vezes são impotentes diante do pensamento irreal As potências cósmicas que regem os destinos de toda a humanidade tanto para o bem como para o mal são fatores psíquicos inconscientes e são elas também que produzem a consciência criando assim a conditio sine qua non para a existência de um mundo em geral Nós somos subjugados por um mundo que foi criado por nossa psique 748 Isto nos permite julgar as proporções do erro que nossa consciência ocidental comete ao atribuir apenas uma realidade derivada de causas materiais O Oriente é mais sábio porque encontra a essência de todas as coisas fundadas na psique A realidade do psíquico isto é a realidade psíquica aquela única realidade que podemos experimentar diretamente achase entre as essências desconhecidas do espírito e da matéria Fonte OC 82 742748 Publicado em Querschnitt Vol XII 1933 Sobre a sincronicidade 1 959 Talvez fosse indicado começar minha exposição definindo o conceito do qual ela trata Mas eu gostaria mais de seguir o caminho inverso e vos dar primeiramente uma breve descrição dos fatos que devem ser entendidos sob a noção de sincronicidade Como nos mostra sua etimologia esse termo tem alguma coisa a ver com o tempo ou para sermos mais exatos com uma espécie de simultaneidade Em vez de simultaneidade poderíamos usar também o conceito de coincidência significativa de dois ou mais acontecimentos em que se trata de algo mais do que uma probabilidade de acasos Casual é a ocorrência estatística isto é provável de acontecimentos como a duplicação de casos por exemplo conhecida nos hospitais Grupos desta espécie podem ser constituídos de qualquer número de membros sem sair do âmbito da probabilidade e do racionalmente possível Assim pode ocorrer que alguém casualmente tenha a sua atenção despertada pelo número do bilhete do metrô ou do trem Chegando a casa ele recebe um telefonema e a pessoa do outro lado da linha diz um número igual ao do bilhete À noite ele compra um bilhete de entrada para o teatro contendo esse mesmo número Os três acontecimentos formam um grupo casual que embora não seja frequente não excede os limites da probabilidade Eu gostaria de vos falar do seguinte grupo casual tomado de minha experiência pessoal e constituído de não menos de seis termos 960 Na manhã do dia primeiro de abril de 1949 eu transcrevera uma inscrição referente a uma figura que era metade homem metade peixe No almoço houve peixe Alguém nos lembrou o costume do Peixe de Abril primeiro de abril De tarde uma antiga paciente minha que eu já não via por vários meses mostroume algumas figuras impressionantes de peixe À noite alguém me mostrou uma peça de bordado representando um monstro marinho Na manhã seguinte bem cedo eu vi outra antiga paciente que veio me visitar pela primeira vez depois de dez anos Na noite anterior ela sonhara com um grande peixe Alguns meses depois ao empregar esta série em um trabalho maior e tendo encerrado justamente a sua redação eu me dirigi a um local à beira do lago em frente à minha casa onde já estivera diversas vezes naquela mesma manhã Desta vez encontrei um peixe morto mais ou menos de um pé de comprimento cerca de 30cm sobre a amurada do lago Como ninguém pôde estar lá não tenho ideia de como o peixe foi parar ali 961 Quando as coincidências se acumulam desta forma é impossível que não fiquemos impressionados com isto pois quanto maior é o número dos termos de uma série desta espécie e quanto mais extraordinário é o seu caráter tanto menos provável ela se torna Por certas razões que mencionei em outra parte e que não quero discutir aqui admito que se trate de um grupo casual Mas também devo reconhecer que é mais improvável do que por exemplo uma mera duplicação 962 No caso do bilhete do metrô acima mencionado eu disse que o observador percebeu casualmente o número e o gravou na memória o que ordinariamente ele jamais fazia Isto nos forneceu os elementos para concluir que se trata de uma série de acasos mas ignoro o que o levou a fixar a sua atenção nos números Pareceme que um fator de incerteza entra no julgamento de uma série desta natureza e reclama certa atenção Observei coisa semelhante em outros casos sem contudo ser capaz de tirar as conclusões que mereçam fé Entretanto às vezes é difícil evitar a impressão de que há uma espécie de precognição de acontecimentos futuros Este sentimento se torna irresistível nos casos em que como acontece mais ou menos frequentemente temos a impressão de nos encontrar com um velho conhecido mas para nosso desapontamento logo verificamos que se trata de um estranho Então vamos até a esquina próxima e topamos com o próprio em pessoa Casos desta natureza acontecem de todas as formas possíveis e com bastante frequência mas geralmente bem depressa nos esquecemos deles passados os primeiros momentos de espanto 963 Ora quanto mais se acumulam os detalhes previstos de um acontecimento tanto mais clara é a impressão de que há uma precognição e por isto tanto mais improvável se torna o acaso Lembrome da história de um amigo estudante ao qual o pai prometera uma viagem à Espanha se passasse satisfatoriamente nos exames finais Este meu amigo sonhou então que estava andando em uma cidade espanhola A rua conduzia a uma praça onde havia uma catedral gótica Assim que chegou lá dobrou a esquina à direita entrando noutra rua Aí ele encontrou uma carruagem elegante puxada por dois cavalos baios Nesse momento ele despertou Contounos ele o sonho enquanto estávamos sentados em torno de uma mesa de bar Pouco depois tendo sido bemsucedido nos exames viajou à Espanha e aí em uma das ruas reconheceu a cidade de seu sonho Encontrou a praça e viu a igreja que correspondia exatamente à imagem que vira no sonho Primeiramente ele queria ir diretamente à igreja mas se lembrou de que no sonho ele dobrava a esquina à direita entrando noutra rua Estava curioso por verificar se seu sonho seria confirmado outra vez Mal tinha dobrado a esquina quando viu na realidade a carruagem com os dois cavalos baios 964 O sentimento do déjàvu sensação do já visto baseiase como tive oportunidade de verificar em numerosos casos em uma precognição do sonho mas vimos que esta precognição ocorre também no estado de vigília Nestes casos o puro acaso se torna extremamente improvável porque a coincidência é conhecida de antemão Deste modo ela perde seu caráter casual não só psicológica e subjetivamente mas também objetivamente porque a acumulação dos detalhes coincidentes aumenta desmedidamente a improbabilidade Dariex e Flammarion calcularam as probabilidades de 14 milhões a 1800 milhões para mortes corretamente previstas Por isto em tais casos seria inadequado falar de acasos Do contrário tratase de coincidências significativas Comumente os casos deste gênero são explicados pela precognição isto é pelo conhecimento prévio Também se fala de clarividência de telepatia etc sem contudo saberse explicar em que consistem estas faculdades ou que meio de transmissão elas empregam para tornar acontecimentos distantes no espaço e no tempo acessíveis à nossa percepção Todas estas ideias são meros nomina nomes não são conceitos científicos que possam ser considerados como afirmações de princípio Até hoje ninguém conseguiu construir uma ponte causal entre os elementos constitutivos de uma coincidência significativa 965 Coube a JB Rhine o grande mérito de haver estabelecido bases confiáveis para o trabalho no vasto campo destes fenômenos com seus experimentos sobre a ESP extrasensoryperception Ele usou um baralho de vinte e cinco cartas divididas em cinco grupos de cinco cada um dos quais com um desenho próprio estrela retângulo círculo cruz duas linhas onduladas A experiência era efetuada da seguinte maneira em cada série de experimentos retiravamse aleatoriamente as cartas do baralho 800 vezes seguidas mas de modo que o sujeito ou pessoa testada não pudesse ver as cartas que iam sendo retiradas Sua tarefa era adivinhar o desenho de cada uma das cartas retiradas A probabilidade de acerto é de 15 O resultado médio obtido com um número muito grande de cartas foi de 65 acertos A probabilidade de um desvio casual de 15 é só de 1250000 Alguns indivíduos alcançaram o dobro ou mais de acertos Uma vez todas as 25 cartas foram adivinhadas corretamente em nova série o que dá uma probabilidade de 1289023223876953125 A distância espacial entre o experimentador e a pessoa testada foi aumentada de uns poucos metros até 4000 léguas sem afetar o resultado 966 Uma segunda forma de experimentação consistia no seguinte mandavase o sujeito adivinhar previamente a carta que iria ser retirada no futuro próximo ou distante A distância no tempo foi aumentada de alguns minutos até duas semanas O resultado desta experiência apresentou uma probabilidade de 1400000 967 Numa terceira forma de experimentação o sujeito deveria procurar influenciar a movimentação de dados lançados por um mecanismo escolhendo um determinado número Os resultados deste experimento dito psicocinético PK de psychokinesis foram tanto mais positivos quanto maior era o número de dados que se usavam de cada vez 968 O experimento espacial mostra com bastante certeza que a psique pode eliminar o fator espaço até certo ponto A experimentação com o tempo nos mostra que o fator tempo pelo menos na dimensão do futuro pode ser relativizado psiquicamente A experimentação com os dados nos indica que os corpos em movimento podem ser influenciados também psiquicamente como se pode prever a partir da relatividade psíquica do espaço e do tempo 969 O postulado da energia é inaplicável no experimento de Rhine Isto exclui a ideia de transmissão de força Também não se aplica a lei da causalidade circunstância esta que eu indicara há trinta anos Com efeito é impossível imaginar como um acontecimento futuro seja capaz de influir num outro acontecimento já no presente Como atualmente é impossível qualquer explicação causal forçoso é admitir a título provisório que houve acasos improváveis ou coincidências significativas de natureza acausal 970 Uma das condições deste resultado notável que é preciso levar em conta é o fato descoberto por Rhine as primeiras séries de experiência apresentam sempre resultados melhores do que as posteriores A diminuição dos números de acerto está ligada às disposições do sujeito da experimentação As disposições iniciais de um sujeito crente e otimista ocasionam bons resultados O ceticismo e a resistência produzem o contrário isto é criam disposições desfavoráveis no sujeito Como o ponto de vista energético é praticamente inaplicável nestes experimentos a única importância do fator afetivo reside no fato de ele ser uma das condições com base nas quais o fenômeno pode mas não deve acontecer Contudo de acordo com os resultados obtidos por Rhine podemos esperar 65 acertos em vez de apenas 5 Todavia é impossível prever quando haverá acerto Se isto fosse possível estaríamos diante de uma lei o que contraria totalmente a natureza do fenômeno que tem as características de um acaso improvável cuja frequência é mais ou menos provável e geralmente depende de algum estado afetivo 971 Esta observação que foi sempre confirmada mostranos que o fator psíquico que modifica ou elimina os princípios da explicação física do mundo está ligado à afetividade do sujeito da experimentação Embora a fenomenologia do experimento da ESP e da PK possa enriquecerse notavelmente com outras experiências do tipo apresentado esquematicamente acima uma pesquisa mais profunda das bases teria necessariamente de se ocupar com a natureza da afetividade Por isto eu concentrei minha atenção sobre certas observações e experiências que posso muito bem dizêlo impuseramse com frequência no decurso de minha já longa atividade de médico Elas se referem a coincidências significativas espontâneas de alto grau de improbabilidade e que consequentemente parecem inacreditáveis Por isto eu gostaria de vos descrever um caso desta natureza para dar um exemplo que é característico de toda uma categoria de fenômenos Pouco importa se vos recusais a acreditar em um único caso ou se tendes uma explicação qualquer para ele Eu poderia também vos apresentar uma série de histórias como esta que em princípio não são mais estranhas ou menos dignas de crédito do que os resultados irrefutáveis de Rhine e não demoraríeis a ver que cada caso exige uma explicação própria Mas a explicação causal cientificamente possível fracassa por causa da relativização psíquica do espaço e do tempo que são duas condições absolutamente indispensáveis para que haja conexão entre a causa e o efeito 972 O exemplo que vos proponho é o de uma jovem paciente que se mostrava inacessível psicologicamente falando apesar das tentativas de parte a parte neste sentido A dificuldade residia no fato de ela pretender saber sempre melhor as coisas do que os outros Sua excelente formação lhe fornecia uma arma adequada para isto a saber um racionalismo cartesiano aguçadíssimo acompanhado de uma concepção geometricamente impecável da realidade Após algumas tentativas de atenuar o seu racionalismo com um pensamento mais humano tive de me limitar à esperança de que algo inesperado e irracional acontecesse algo que fosse capaz de despedaçar a retorta intelectual em que ela se encerrara Assim certo dia eu estava sentado diante dela de costas para a janela a fim de escutar a sua torrente de eloquência Na noite anterior ela havia tido um sonho impressionante no qual alguém lhe dava um escaravelho de ouro uma joia preciosa de presente Enquanto ela me contava o sonho eu ouvi que alguma coisa batia de leve na janela por trás de mim Volteime e vi que se tratava de um inseto alado de certo tamanho que se chocou com a vidraça pelo lado de fora evidentemente com a intenção de entrar no aposento escuro Isto me pareceu estranho Abri imediatamente a janela e apanhei o animalzinho em pleno voo no ar Era um escarabeídeo da espécie da Cetonia aurata o besouro rosa comum cuja cor verdedourada tornao muito semelhante a um escaravelho de ouro Estendilhe o besouro dizendolhe Está aqui o seu escaravelho Este acontecimento abriu a brecha desejada no seu racionalismo e com isto rompeuse o gelo de sua resistência intelectual O tratamento pôde então ser conduzido com êxito 973 Esta história destinase apenas a servir de paradigma para os casos inumeráveis de coincidência significativa observados não somente por mim mas por muitos outros e registrados parcialmente em grandes coleções Elas incluem tudo o que figura sob os nomes de clarividência telepatia etc desde a visão significativamente atestada do grande incêndio de Estocolmo tida por Swedenborg até os relatos mais recentes do marechal do ar Sir Victor Goddard a respeito do sonho de um oficial desconhecido que previra o desastre subsequente do avião de Goddard 974 Todos os fenômenos a que me referi podem ser agrupados em três categorias 1 Coincidência de um estado psíquico do observador com um acontecimento objetivo externo e simultâneo que corresponde ao estado ou conteúdo psíquico por exemplo o escaravelho onde não há nenhuma evidência de uma conexão causal entre o estado psíquico e o acontecimento externo e onde considerandose a relativização psíquica do espaço e do tempo acima constatada tal conexão é simplesmente inconcebível 2 Coincidência de um estado psíquico com um acontecimento exterior correspondente mais ou menos simultâneo que tem lugar fora do campo de percepção do observador ou seja especialmente distante e só se pode verificar posteriormente como por exemplo o incêndio de Estocolmo 3 Coincidência de um estado psíquico com um acontecimento futuro portanto distante no tempo e ainda não presente e que só pode ser verificado também posteriormente 975 Nos casos dois e três os acontecimentos coincidentes ainda não estão presentes no campo de percepção do observador mas foram antecipados no tempo na medida em que só podem ser verificados posteriormente Por este motivo digo que semelhantes acontecimentos são sincronísticos o que não deve ser confundido com sincrônicos 976 Esta visão de conjunto deste vasto campo de observação seria incompleta se não considerássemos aqui também os chamados métodos mânticos O manticismo tem a pretensão senão de produzir realmente acontecimentos sincronísticos pelo menos de fazêlos servir a seus objetivos Um exemplo bem ilustrativo neste sentido é o método oracular do I Ging que o Dr Helmut Wilhelm descreveu detalhadamente neste encontro O I Ging pressupõe que há uma correspondência sincronística entre o estado psíquico do interrogador e o hexagrama que responde O hexagrama é formado seja pela divisão puramente aleatória de 49 varinhas de milefólio seja pelo lançamento igualmente aleatório de três moedas O resultado deste método é incontestavelmente muito interessante mas até onde posso ver não proporciona um instrumento adequado para uma determinação objetiva dos fatos isto é para avaliação estatística porque o estado psíquico em questão é demasiadamente indeterminado e indefinível O mesmo se pode dizer do experimento geomântico que se baseia sobre princípios similares Fonte OC 83 959976 1 Publicado pela primeira vez no EranosJahrbuch XX 1951 Tratavase originariamente de uma conferência que o autor pronunciou perante o Círculo Eranos de 1951 em Ascona na Suíça A alma e a morte 796 Muitas vezes me tem sido perguntado o que é que eu penso a respeito da morte desse fim não problemático da existência humana individual A morte nos é conhecida simplesmente como um fim e nada mais E o pontofinal que se coloca muitas vezes antes mesmo de encerrarse o período e depois dela só existem recordações e efeitos subsequentes nos outros Mas para o interessado a areia escoouse na ampulheta a pedra que rolava chegou ao estado de repouso Em confronto com a morte a vida nos parece sempre como um fluir constante como a marcha de um relógio a que se deu corda e cuja parada afinal é automaticamente esperada Nunca estamos tão convencidos desta marcha inexorável do que quando vemos uma vida humana chegar ao fim e nunca a questão do sentido e do valor da vida se torna mais premente e mais dolorosa do que quando vemos o último alento abandonar um corpo que ainda há pouco vivia Quão diferente nos parece o significado da vida quando vemos um jovem a lutar por objetivos distantes e a construir um futuro em comparação com um doente incurável ou um ancião que descem relutantes e impotentes à sepultura A juventude tem aparentemente um objetivo um futuro um significado e um valor enquanto a marcha para um fim é apenas uma cessação sem sentido Se alguém tem medo do mundo da vida e do futuro todos consideram isto como lamentável irracional e neurótico o jovem é visto como um poltrão covarde Mas se o homem que envelhece sente um pavor secreto ou mesmo um temor mortal ao pensamento de que suas expectativas razoáveis de vida agora são apenas de tantos e tantos anos então nos lembramos penosamente de certos sentimentos que trazemos dentro de nosso próprio peito desviamos talvez o olhar para outro lado e encaminhamos a conversa para outro assunto O otimismo com que julgamos a juventude fracassa nessa hora Temos naturalmente um repertório de conceitos apropriados a respeito da vida que ocasionalmente ministramos aos outros tais como Todo mundo um dia vai morrer ninguém é eterno etc mas quando estamos sozinhos e é noite e a escuridão e o silêncio são tão densos que não escutamos e não vemos senão os pensamentos que somam e subtraem os anos da vida e a longa série daqueles fatos desagradáveis que impiedosamente nos mostram até onde os ponteiros do relógio já chegaram e a aproximação lenta e irresistível do muro de trevas que finalmente tragarão tudo o que eu amo desejo possuo espero e procuro então toda a nossa sabedoria de vida se esgueirará para um esconderijo impossível de descobrir e o medo envolverá o insone como um cobertor sufocante 797 Assim como existe um grande número de jovens que no fundo tem um medo assustador da vida que eles ao mesmo tempo desejam ardentemente também existe um número talvez ainda maior de pessoas idosas que tem o mesmo medo em relação à morte Tenho observado que aqueles que mais temem a vida quando jovens são justamente os que mais têm medo da morte quando envelhecem Quando são jovens dizemos que eles opõem uma resistência infantil as exigências normais da vida mas deveríamos dizer a mesma coisa quando são velhos ou seja que eles têm medo também das exigências normais da vida mas estamos tão convencidos de que a morte não é senão o fim de um processo que ordinariamente não nos ocorre conceber a morte como uma meta e uma consumação como o fazemos sem hesitação com respeito aos objetivos e às intenções da vida jovem em ascensão 798 A vida é um processo energético como qualquer outro mas em princípio todo processo energético é irreversível e por isto é orientado univocamente para um objetivo E este objetivo é o estado de repouso No fundo todo processo nada mais é do que por assim dizer a perturbação inicial de um estado de repouso perpétuo que procura restabelecerse sempre A vida é teleológica par excellence é a própria persecução de um determinado fim e o organismo nada mais é do que um sistema de objetivos prefixados que se procura alcançar O termo de cada processo é o seu objetivo Todo processo energético se assemelha a um corredor que procura alcançar sua meta com o máximo esforço e o maior dispêndio possível de forças A ânsia do jovem pelo mundo e pela vida o desejo de consumar altas esperanças e objetivos distantes constituem o impulso teleológico manifesto da vida que se converte em medo da vida em resistências neuróticas depressões e fobias se fica preso ao passado sob algum aspecto ou recua diante de certos riscos sem os quais não se podem atingir as metas prefixadas Mas o impulso teleológico da vida não cessa quando se atinge o amadurecimento e o zênite da vida biológica A vida desce agora montanha abaixo com a mesma intensidade e a mesma irresistibilidade com que a subia antes da meiaidade porque a meta não está no cume mas no vale onde a subida começou A curva da vida é como a parábola de um projétil que retorna ao estado de repouso depois de ter sido perturbado no seu estado de repouso inicial 799 A curva psicológica da vida entretanto recusase a se conformar com estas leis da natureza A discordância às vezes começa já antes na subida Biologicamente o projétil sobe mas psicologicamente retarda Ficamos parados por trás de nossos anos agarrados à nossa infância como se não pudéssemos nos arrancar do chão Paramos os ponteiros do relógio e imaginamos que o tempo se deteve Se alcançamos finalmente o cume mesmo com algum atraso psicologicamente nos sentamos aí para descansar e embora nos sintamos deslizar montanha abaixo agarramonos ainda que somente com olhares nostálgicos ao pico que outrora alcançamos o medo que antigamente nos paralisava diante da vida agora nos paralisa diante da morte E embora admitamos que foi o medo da vida que retardou nossa subida contudo exigimos maior direito ainda de nos determos no cume que acabamos de galgar justamente por causa desse atraso Embora se torne evidente que a vida se afirmou apesar de todas as nossas resistências agora profundamente lamentadas não levamos este fato em conta e tentamos deter o curso da vida Com isto nossa psicologia perde a sua base natural Nossa consciência paira suspensa no ar enquanto embaixo a parábola da vida desce cada vez mais rapidamente 800 A vida natural é o solo em que se nutre a alma Quem não consegue acompanhar essa vida permanece enrijecido e parado em pleno ar É por isto que muitas pessoas se petrificam na idade madura olham para trás e se agarram ao passado com um medo secreto da morte no coração Subtraemse ao processo vital pelo menos psicologicamente e por isto ficam paradas como colunas nostálgicas com recordações muito vívidas do seu tempo de juventude mas sem nenhuma relação vital com o presente Do meio da vida em diante só aquele que se dispõe a morrer conserva a vitalidade porque na hora secreta do meiodia da vida se inverte a parábola e nasce a morte A segunda metade da vida não significa subida expansão crescimento exuberância mas morte porque o seu alvo é o seu término A recusa em aceitar a plenitude da vida equivale a não aceitar o seu fim Tanto uma coisa como a outra significam não querer viver E não querer viver é sinônimo de não querer morrer A ascensão e o declínio formam uma só curva 801 Sempre que possível nossa consciência recusase a aceitar esta verdade inegável Ordinariamente nos apegamos ao nosso passado e ficamos presos à ilusão de nossa juventude A velhice é sumamente impopular Parece que ninguém considera que a incapacidade de envelhecer é tão absurda quanto a incapacidade de abandonar os sapatos de criança que traz nos pés O homem de trinta anos ainda com espírito infantil é certamente digno de lástima mas um septuagenário jovem não é delicioso E no entanto ambos são pervertidos desprovidos de estilo verdadeiras monstruosidades psicológicas Um jovem que não luta nem triunfa perdeu o melhor de sua juventude e um velho que não sabe escutar os segredos dos riachos que descem dos cumes das montanhas para os vales não tem sentido é uma múmia espiritual e não passa de uma relíquia petrificada do passado Está situado à margem da vida repetindose mecanicamente até à última banalidade Pobre cultura aquela que necessita de tais fantasmas 802 Nossa longevidade comprovada pelas estatísticas atuais é um produto da civilização Entre os primitivos só excepcionalmente se chega a uma idade avançada Assim quando visitei as tribos primitivas da África Oriental vi pouquíssimos homens de cabelos brancos que poderiam ter estimativamente mais de sessenta anos Mas eram realmente velhos e parecia que tinham sido sempre velhos tão plenamente se haviam identificado com sua idade avançada Eram exatamente o que eram sob todos os aspectos ao passo que nós somos sempre apenas mais ou menos aquilo que realmente somos É como se nossa consciência tivesse deslizado um pouco de suas bases naturais e não soubesse mais como se orientar pelo tempo natural Dir seia que sofremos de uma hybris da consciência que nos induz a acreditar que o tempo de nossa vida é mera ilusão que pode ser alterada a nosso bel prazer Perguntase de onde a consciência tira a sua capacidade de ser tão contrária à natureza e o que pode significar tal arbitrariedade 803 Da mesma forma que a trajetória de um projétil termina quando ele atinge o alvo assim também a vida termina na morte que é portanto o alvo para o qual tende a vida inteira Mesmo sua ascensão e seu zênite são apenas etapas e meios através dos quais se alcança o alvo que é a morte Esta fórmula paradoxal nada mais é do que a conclusão lógica do fato de que nossa vida é teleológica e determinada por um objetivo Não acredito que eu seja culpado de estar brincando aqui com silogismos Se atribuímos uma finalidade e um sentido à ascensão da vida por que não atribuímos também ao seu declínio Se o nascimento do homem é prenhe de significação por que é que a sua morte também não o é O jovem é preparado durante vinte anos ou mais para a plena expansão de sua existência individual Por que não deve ser preparado também durante vinte anos ou mais para o seu fim Por certo com o zênite a pessoa alcança obviamente este fim é este fim e o possui O que se alcança com a morte 804 No momento em que talvez se poderia esperar eu não gostaria de tirar uma fé subitamente de meu bolso e convidar meus leitores a fazer justamente aquilo que ninguém pode fazer isto é a acreditar em alguma coisa Devo confessar que eu também jamais poderia fazêlo Por isto certamente eu não afirmarei agora que é preciso crer que a morte é um segundo nascimento que nos leva a uma sobrevida no além Mas posso pelo menos mencionar que o consensus gentium consenso universal tem concepções claras sobre a morte que se acham expressas de maneira inequívoca nas grandes religiões do mundo Podese mesmo afirmar que a maioria destas religiões é um complicado sistema de preparações para a morte de tal modo que a vida de acordo com a minha fórmula paradoxal acima expressa realmente nada mais é do que uma preparação para o fim derradeiro que é a morte Para as duas maiores religiões vivas o cristianismo e o budismo o significado da existência se consuma com o seu término 805 Desde a época do Iluminismo desenvolveuse uma opinião a respeito da natureza da religião que embora seja uma concepção errada tipicamente racionalista merece ser mencionada por causa de sua grande difusão De acordo com este ponto de vista todas as religiões constituem uma espécie de sistemas filosóficos forjados pela cabeça dos homens Um dia alguém inventou um Deus e outros dogmas e passou a zombar da humanidade com esta fantasia própria para satisfazer desejos Esta opinião é contraditada pelo fato psicológico de que a cabeça é um órgão inteiramente inadequado quando se trata de conceber símbolos religiosos Estes não provêm da cabeça mas de algum outro lugar talvez do coração certamente de alguma camada profunda da psique pouco semelhante à consciência que é sempre apenas uma camada superficial É por isto que os símbolos religiosos têm um pronunciado caráter de revelação e em geral são produtos espontâneos da atividade inconsciente da psique São tudo menos coisa imaginada Pelo contrário eles se desenvolveram progressivamente à semelhança de plantas como revelações naturais da psique humana no decurso dos séculos Ainda hoje podemos observar em certos indivíduos o aparecimento espontâneo de autênticos e genuínos símbolos religiosos que brotam do inconsciente quais flores de espécie estranha enquanto a consciência se mantém perplexa de lado sem saber realmente o que fazer com semelhantes criações Não é muito difícil constatar que esses símbolos individuais provêm tanto em seu conteúdo quanto em sua forma do mesmo espírito inconsciente ou que outro nome tenha que as grandes religiões da humanidade Em qualquer caso a experiência nos mostra que as religiões não são elaborações conscientes mas provêm da vida natural da psique inconsciente dandolhe adequada expressão Isso explica a sua disseminação universal e sua imensa influência sobre a humanidade através da história Esta influência seria incompreensível se os símbolos religiosos não fossem ao menos verdades psicológicas naturais 806 Sei que muitas pessoas têm dificuldades com a palavra psicológico Para tranquilizar estes críticos eu gostaria portanto de acrescentar que ninguém sabe o que é a psique como ninguém sabe até onde a natureza da psique se estende Uma verdade psicológica é portanto uma coisa tão boa e respeitável quanto uma verdade física que se limita à matéria como aquela à psique 807 O consensus gentium que se expressa nas religiões está em consonância com a minha fórmula paradoxal acima referida Por isto parece me que considerar a morte como a realização plena do sentido da vida e sua verdadeira meta em vez de uma mera cessão sem sentido corresponde melhor à psique coletiva da humanidade Quem professa uma opinião racionalista a este respeito isolouse psicologicamente e está em oposição com sua própria natureza humana básica 808 Esta última frase contém uma verdade fundamental a respeito de todas as neuroses pois as perturbações nervosas consistem primariamente em uma alienação dos instintos em uma separação da consciência em relação a certos fatos fundamentais da psique por isto as opiniões racionalistas se aproximam inesperadamente dos sintomas neuróticos Como este elas consistem em um pensamento dissimulado que ocupa o lugar do pensamento psicologicamente correto Este último mantém sempre sua vinculação com o coração com as profundezas da alma com a raizmestra de nosso ser porque Iluminismo ou não iluminismo consciência ou não consciência a natureza nos prepara para a morte Se pudéssemos observar diretamente e registrar os pensamentos de um jovem caso ele tivesse tempo e vagar para sonhar em pleno dia descobriríamos ao lado de imagens da memória fantasias que se ocupam sobretudo com o futuro Realmente a maioria das fantasias é constituída de antecipações Em geral as fantasias são atos preparatórios ou mesmo exercícios psíquicos para lidar com certas realidades futuras Se pudéssemos fazer a mesma experiência com uma pessoa que envelhece naturalmente sem o seu conhecimento encontraríamos um número maior de imagens da memória do que no jovem por causa da tendência do idoso a olhar para trás mas em compensação encontraríamos também um número espantosamente grande de antecipações do futuro inclusive da morte Com o andar dos anos acumulamse assustadoramente os pensamentos sobre a morte O homem que envelhece quer queira quer não preparase para a morte Por isto eu penso que a própria natureza se prepara para o fim Objetivamente é indiferente saber o que a consciência individual pensa a respeito disto Subjetivamente porém há uma imensa diferença quanto a saber se a consciência acompanha passo a passo a psique ou se ela se apega a opiniões que o coração desconhece De fato é tão neurótico não se orientar na velhice para a morte como um fim quanto reprimir na juventude fantasias que se ocupam com o futuro 809 Na minha experiência bastante longa fiz uma série de observações com pessoas cuja atividade psíquica inconsciente eu pude seguir até imediatamente antes da morte Geralmente a aproximação do fim era indicada através daqueles símbolos que na vida normal denotavam mudanças no estado psicológico símbolos de renascimento tais como mudanças de localidade viagens e semelhantes Muitas vezes pude acompanhar até acima de um ano antes os indícios de aproximação da morte inclusive naqueles casos em que a situação externa não permitia tais pensamentos O processo tanatológico começara portanto muito antes da morte real Aliás observase isto frequentemente também na mudança peculiar de caráter que precede de muito a morte Globalmente falando eu me espantava de ver o pouco caso que a psique inconsciente fazia da morte Pareceria que a morte era alguma coisa relativamente sem importância ou talvez nossa psique não se preocupasse com o que eventualmente acontecia ao indivíduo Por isto parece que o inconsciente se interessa tanto mais por saber como se morre ou seja se a atitude da consciência está em conformidade ou não com o processo de morrer Assim uma vez tive de tratar de uma mulher de 62 anos ainda vigorosa e sofrivelmente inteligente Não era portanto por falta de dotes que ela se mostrava incapaz de compreender os próprios sonhos Infelizmente era por demais evidente que ela não queria entendêlos Seus sonhos eram muito claros mas também desagradáveis Ela metera na própria cabeça que era uma mãe perfeita para os filhos mas os filhos não partilhavam desta opinião e os seus próprios sonhos revelavam uma convicção bastante contrária Fui obrigado a interromper o tratamento depois de algumas semanas de esforços infrutíferos por ter sido convocado para o serviço militar era durante a guerra Entrementes a paciente foi acometida de um mal incurável que depois de alguns meses levoua a um estado agônico o qual a cada momento podia significar o fim Na maior parte do tempo ela se achava mergulhada numa espécie de delírio ou sonambulismo e nesta curiosa situação mental ela espontaneamente retomou o trabalho de análise antes interrompido Voltou a falar de seus sonhos e confessava a si própria tudo o que me havia negado antes com toda a obstinação possível e mais uma porção de outras coisas O trabalho de autoanálise se prolongava por várias horas ao dia durante seis semanas No final deste período ela havia se acalmado como uma paciente num tratamento normal e então morreu 810 Desta e de numerosas outras experiências do mesmo gênero devo concluir que nossa alma não é indiferente pelo menos ao morrer do indivíduo A tendência compulsiva que os moribundos frequentemente revelam de querer corrigir ainda tudo o que é errado deve apontar na mesma direção 811 Saber de que modo se deve afinal interpretar estas experiências é um problema que supera a competência de uma ciência empírica e ultrapassa nossas capacidades intelectuais pois para se chegar a uma conclusão é preciso que se tenha necessariamente também a experiência real da morte Este acontecimento infelizmente coloca o observador numa situação que lhe torna impossível transmitir uma informação objetiva de sua experiência e das conclusões daí resultantes 812 A consciência se move dentro de estreitos limites dentro do curto espaço de tempo entre seu começo e seu fim encurtado ainda mais em cerca de um terço por períodos de sono A vida do corpo dura um pouco mais começa sempre mais cedo e muitas vezes só cessa depois da consciência Começo e fim são aspectos inevitáveis de todos os processos Todavia se examinarmos de perto verificamos que é extremamente difícil indicar onde começa e onde termina um processo porque os acontecimentos e os processos os começos e os fins constituem no fundo um contínuo indivisível Distinguimos os processos uns dos outros com o fim de defini los e conhecêlos melhor mas no fundo sabemos que toda divisão é arbitrária e convencional Este procedimento não interfere no contínuo do processo mundano porque começo e fim são antes e acima de tudo necessidades do processo de conhecimento consciente Podemos certamente afirmar com bastante certeza que uma consciência individual chegou ao fim enquanto relacionada conosco Mas não é de todo certo se isto interrompe a continuidade do processo psíquico porque hoje em dia não se pode afirmar a ligação da psique com o cérebro com tanta certeza quanto há cinquenta anos Primeiro que tudo a Psicologia precisa ainda de digerir certos fatos parapsicológicos o que não fez até agora 813 Quer dizer parece que a psique inconsciente possui qualidades que projetam uma luz inteiramente singular sobre sua relação com o espaço e o tempo Refirome aos fenômenos telepáticos espaciais e temporais que como sabemos é mais fácil ignorar do que explicar Sob este aspecto a ciência até agora escolheu com bem poucas exceções o caminho mais cômodo que é o de ignorálos Devo porém confessar que as chamadas capacidades telepáticas me causaram muita dor de cabeça porque a palavra chave telepatia longe está de explicar o que quer que seja A limitação da consciência no tempo e no espaço é uma realidade tão avassaladora que qualquer desvio desta verdade fundamental é um acontecimento da mais alta significação teórica pois provaria que a limitação no tempo e no espaço é uma determinante que pode ser anulada O fator anulador seria a psique porque o atributo espaçotempo se ligaria a ela consequentemente no máximo como qualidade relativa e condicionada Em determinadas circunstâncias contudo ela poderia romper a barreira do tempo e do espaço precisamente por causa de uma qualidade que lhe é essencial ou seja sua natureza transespacial e transtemporal Esta possibilidade de transcender o tempo e o espaço que me parece muito lógica é de tão grande alcance que estimularia o espírito de pesquisa ao maior esforço possível O desenvolvimento atual de nossa consciência contudo está tão atrasado as exceções confirmam a regra que em geral faltanos ainda o instrumental científico e intelectual para avaliar adequadamente os fatos da telepatia quanto à sua importância para o conhecimento da natureza da psique Refiro me a este grupo de fenômenos simplesmente para indicar que a ligação da psique com o cérebro isto é sua limitação no espaço e no tempo não é tão evidente nem tão indiscutível como até agora nos têm feito acreditar 814 Quem conhece um mínimo que seja o material parapsicológico já existente e suficientemente testado sabe muito bem que os chamados fenômenos telepáticos são fatos inegáveis Um exame crítico e objetivo dos dados disponíveis nos permite verificar que algumas dessas percepções ocorrem de tal maneira como se não existisse o fator espaço e outras como se não houvesse o fator tempo Naturalmente não podemos tirar daí a conclusão metafísica de que no mundo das coisas em si não há espaço nem tempo e que consequentemente a mente humana se acha implicada na categoria espaçotempo como em uma ilusão nebulosa Pelo contrário verificase que o espaço e o tempo são não apenas as certezas mais imediatas e mais primitivas para nós como são também empiricamente observáveis porque tudo o que é perceptível acontece como se estivesse no tempo e no espaço Em vista desta certeza avassaladora é compreensível que a razão sinta a maior dificuldade em admitir a validade da natureza peculiar dos fenômenos telepáticos Mas quem fizer justiça aos fatos não pode deixar de admitir que sua aparente independência em relação ao espaço e ao tempo é sua qualidade mais essencial Em suma nossas percepções ingênuas e nossas certezas mais imediatas não são estritamente falando mais do que evidências de uma forma de intuição psicológica a priori que exclui qualquer outra forma O fato de sermos totalmente incapazes de imaginar uma forma de existir independente do tempo e do espaço não prova absolutamente que tal existência seja impossível E da mesma forma como de uma aparente independência em relação ao espaço e ao tempo não podemos tirar a conclusão absoluta quanto à realidade de uma forma de existência independente do espaço e do tempo assim também não nos é permitido concluir a partir do caráter aparentemente espacial e temporal de nossas percepções que uma existência independente em relação ao espaço e ao tempo é impossível Em vista dos dados fornecidos pela experiência não somente nos é permitido mas é imperioso duvidar da validez de nossa percepção espacialtemporal A possibilidade hipotética de que a psique toque também em uma forma de existência independente em relação ao espaço e ao tempo constitui um ponto de interrogação que deve ser levado a sério pelo menos por enquanto As ideias e as dúvidas de nossos físicos modernos devem aconselhar aos psicólogos a serem prudentes porque o que significa filosoficamente falando a limitação do espaço senão uma relativização da categoria espaço Algo de semelhante pode facilmente acontecer com a categoria tempo como também com a causalidade As dúvidas a este respeito hoje em dia têm menos fundamento do que as de outrora 815 A natureza da psique mergulha em obscuridades para além dos limites de nossas categorias intelectuais A alma encerra tantos mistérios quanto o mundo com seus sistemas de galáxias diante de cujas majestosas configurações só um espírito desprovido de imaginação é capaz de negar suas próprias insuficiências Esta extrema incerteza da compreensão humana nos mostra que o estardalhaço iluminista é não somente ridículo como também lamentavelmente estúpido Se alguém portanto extraísse da necessidade do próprio coração ou da concordância com as lições da antiga sabedoria da humanidade ou do fato psicológico de que ocorrem percepções telepáticas a conclusão de que a psique participa em suas camadas mais profundas de uma forma de existência transespacial e transtemporal e que por consequência pertence àquilo que inadequada e simbolicamente é designado pelo nome de eternidade o único argumento que a razão crítica lhe poderia opor seria o non liquet não está provado da ciência Tal pessoa além disso possuiria a inestimável vantagem de estar de acordo com uma inclinação presente na psique humana desde tempos imemoriais e universalmente existente Quem por ceticismo rebeldia contra a tradição falta de coragem ou insuficiente experiência psicológica ou ignorância cega não extrai esta conclusão tem muito pouca chance estatisticamente falando de ser um pioneiro do espírito embora esteja firmemente certo de entrar em conflito com as verdades do próprio sangue No fundo jamais conseguiremos provar que tais verdades sejam ou não absolutas É suficiente porém que elas existam como inclinações da psique e sabemos demais o que seja entrar levianamente em choque com essas verdades Equivale à negação consciente dos instintos isto é a um desenraizamento a uma desorientação à falta de sentido da existência ou que outros nomes possam ter estes sintomas de inferioridade Um dos erros sociológicos e psicológicos mais fatais de que nossa época é tão rica foi o de pensar muitas vezes que alguma coisa pode mudar de um momento para outro por exemplo que a natureza do homem pode mudar radicalmente ou que podemos descobrir uma fórmula ou uma verdade que seja um começo inteiramente novo etc Qualquer mudança essencial ou mesmo uma simples melhoria significa um milagre O distanciamento das verdades do sangue produz uma agitação neurótica cujos exemplos abundam em nossos dias Esta agitação por sua vez gera a falta de sentido da existência falta esta que é uma enfermidade psíquica cuja amplidão e alcance total nossa época ainda não percebeu Fonte OC 82 796815 Publicado pela primeira vez em Europäische Revue Vol X 1934 a seguir em Wirklichkeit der Seele Tratados psicológicos Vol IV 1934 Sobre o renascimento Observações preliminares Os textos seguintes reproduzem os conteúdos essenciais de duas conferências improvisadas Elas foram estenografadas e pude utilizar essas anotações na elaboração do presente trabalho Alguns trechos tiveram que ser deixados de lado principalmente porque as exigências de um texto impresso são diferentes das exigências da palavra falada No entanto levei a cabo tanto quanto possível minha primeira intenção de resumir o conteúdo de minhas conferências sobre o tema renascimento esforceime também no sentido de reproduzir minha análise da décima oitava sura do Corão como exemplo de um mistério de renascimento em seus principais aspectos Acrescentei uma série de fontes bibliográficas que o leitor eventualmente poderá consultar O resumo feito não pretende ser mais do que um apanhado geral de um campo do conhecimento passível de ser iluminado apenas superficialmente no contexto de uma conferência 199 O conceito de renascimento nem sempre é usado num sentido unívoco Uma vez que esse conceito comporta vários aspectos tentei reunir aqui os seus principais significados Ressalto cinco aspectos diversos que provavelmente poderiam ser multiplicados se nos aprofundássemos parece me porém que com essas definições abrangemos os principais significados Na primeira parte da minha dissertação apresento um breve sumário das várias formas de renascimento ao passo que na segunda parte trato de seus diferentes aspectos psicológicos Na terceira parte o processo de transformação é ilustrado através do exemplo de uma série de símbolos 1 Formas do renascimento 200 α Metempsicose Como podemos ver pelo exposto o conceito de renascimento é multifacetado Em primeiro lugar destaco a metempsicose a transmigração da alma Tratase da ideia de uma vida que se estende no tempo passando por vários corpos ou da sequência de uma vida interrompida por diversas reencarnações O budismo especialmente centrado nessa doutrina o próprio Buda vivenciou uma longa série de renascimentos não tem certeza se a continuidade da personalidade é assegurada ou não em outras palavras pode tratarse apenas de uma continuidade do karma Os discípulos perguntaram ao mestre quando ele ainda era vivo acerca desta questão mas Buda nunca deu uma resposta definitiva sobre a existência ou não da continuidade da personalidade 1 201 β Reencarnação A segunda forma é a reencarnação que contém eo ipso o conceito de continuidade pessoal Neste caso a personalidade humana é considerada suscetível de continuidade e memória ao reencarnar ou renascer temos por assim dizer potencialmente a condição de lembrar nos de novo das vidas anteriores que nos pertenceram possuindo a mesma forma do eu da vida presente Na reencarnação tratase em geral de um renascimento em corpos humanos 202 γ Ressurreição resurrectio Uma terceira forma é a ressurreição pensada como um ressurgir da existência humana após a morte Há aqui outro matiz o da mutação da transmutação ou transformação do ser Esta pode ser entendida no sentido essencial isto é o ser ressurrecto é um outro ser ou a mutação não é essencial no sentido de que somente as condições gerais mudaram como quando nos encontramos em outro lugar ou em um corpo diferentemente constituído Pode tratarse de um corpo carnal como na crença cristã de que o corpo ressurge Em nível superior este processo não é compreendido no sentido material grosseiro mas se considera que a ressurreição dos mortos é um ressurgir do corpus glorificationis do subtle body corpo sutil no estado de incorruptibilidade 203 δ Renascimento renovatio A quarta forma diz respeito ao renascimento sensu strictiori em outras palavras ao renascimento durante a vida individual A palavra inglesa rebirth é o equivalente exato da palavra alemã Wiedergeburt renascimento e parece não existir no francês um termo que possua o sentido peculiar do renascimento Essa palavra tem um matiz específico Possui uma conotação que indica a ideia de renovatio da renovação ou mesmo do aperfeiçoamento por meios mágicos O renascimento pode ser uma renovatio sem modificação do ser na medida em que a personalidade renovada não é alterada em sua essência mas apenas em suas funções partes da personalidade que podem ser curadas fortalecidas ou melhoradas Estados de doença corporal também podem ser curados através de cerimônias de renascimento 204 Outra forma ainda é uma mutação propriamente dita ou seja o renascimento total do indivíduo Neste caso a renovação implica mudança da essência que podemos chamar de transmutação Tratase da transformação do ser mortal em um ser imortal do ser corporal no ser espiritual do ser humano num ser divino Um exemplo muito conhecido é o da transfiguração miraculosa de Cristo ou a subida ao céu da Mãe de Deus com seu corpo após a morte Representações semelhantes podem ser encontradas no Fausto segunda parte isto é a transfornação de Fausto no Menino e depois no Dr Mariano 205 ε Participação no processo da transformação A quinta forma finalmente é o renascimento indireto Neste caso a transformação não ocorre diretamente pelo fato de o homem passar por morte e renascimento mas indiretamente pela participação em um processo de transformação como se este se desse fora do indivíduo Tratase de uma participação ou presença em um rito de transformação Pode ser uma cerimônia como a missa por exemplo em que se opera uma transubstanciação Pela presença no ritual o indivíduo recebe a graça Nos mistérios pagãos também existem transformações semelhantes em que o neófito também recebe a graça tal como sabemos acerca dos mistérios de Elêusis Lembrome da profissão de fé do neófito eleusino que enaltece o efeito da graça sob a forma da certeza da imortalidade 2 2 Psicologia do renascimento 206 O renascimento não é um processo de algum modo observável Não podemos medilo pesar ou fotografálo ele escapa totalmente aos nossos sentidos Lidamos aqui com uma realidade puramente psíquica que só nos é transmitida indiretamente através de relatos Falamos de renascimento professamos o renascimento estamos plenos de renascimento e esta verdade nos basta Não nos preocupamos aqui com a questão de saber se o renascimento é um processo de algum modo palpável Devemos contentarnos com a realidade psíquica No entanto é preciso acrescentar que não estamos nos referindo à opinião vulgar acerca do psíquico que o considera um nada absoluto ou algo menos do que um gás Muito pelo contrário a meu modo de ver a psique é a realidade mais prodigiosa do mundo humano Sim ela é a mãe de todos os fatos humanos da cultura e da guerra assassina Tudo isso é primeiramente psíquico e invisível Enquanto permanece unicamente psíquico não é possível experimentálo pelos sentidos mas apesar disso tratase indiscutivelmente de algo real O fato de as pessoas falarem de renascimento e de simplesmente haver um tal conceito significa que também existe uma realidade psíquica assim designada Como essa realidade é constituída só o podemos deduzir a partir de depoimentos Se quisermos descobrir o significado do renascimento devemos interrogar a história para saber quais as acepções que esta lhe dá 207 O renascimento é uma das proposições mais originárias da humanidade Esse tipo de proposição baseiase no que denomino arquétipo Todas as proposições referentes ao sobrenatural transcendente e metafísico são em última análise determinadas pelo arquétipo e por isso não surpreende que encontremos afirmações concordantes sobre o renascimento nos povos mais diversos Um acontecimento psíquico deve subjazer a tais proposições À psicologia cabe discutir o seu significado sem entrar em qualquer conjetura metafísica e filosófica Para obtermos uma visão abrangente da fenomenologia das vivências de transformação é necessário delimitar essa área com mais precisão Podemos distinguir principalmente dois tipos de vivência primeiro a vivência da transcendência da vida e segundo a de sua própria transformação A A experiência da transcendência da vida 208 α Vivências mediadas pelo rito sagrado Pelo conceito de transcendência da vida entendo as experiências acima mencionadas feitas pelo neófito através de sua participação em um rito sagrado que lhe revela a perpetuidade da vida através de transformações e renovações Nos dramas de mistérios a transcendência da vida é representada em face de suas formas concretas e constantes de manifestação geralmente através do destino de morte e renascimento de um deus ou herói divino O neófito é pois simples testemunha do processo ou um participante ativo do mesmo ou um possuído pelo drama divino ou ainda se identifica com o deus através do ritual O decisivo neste caso é que a substância a existência ou forma da vida objetiva em um processo que transcorre por si mesmo se transforma ritualmente sendo que o neófito recebe a graça é influenciado impressionado ou consagrado por sua simples presença ou participação O processo da transformação não ocorre no neófito mas fora dele apesar de este encontrarse envolvido no processo O neófito participa ritualmente da morte do despedaçamento e da dispersão do corpo de Osíris por exemplo e logo em seguida de sua ressurreição Ele faz assim a experiência da permanência e continuidade da vida que ultrapassa todas as modificações das formas manifestadas e sempre ressurge como fênix das próprias cinzas Desta participação no evento ritual pode surgir como efeito aquela esperança de imortalidade característica do neófito de Elêusis 209 Um exemplo vivo do drama do mistério que representa a permanência e a transformação da vida é a missa Se observarmos os fiéis durante o ofício litúrgico podemos notar todos os graus de participação da simples presença indiferente até a mais profunda compenetração emocionada Os grupos masculinos que se aglomeram à porta da saída conversando sobre coisas mundanas fazendo o sinal da cruz e se ajoelhando mecanicamente partilham do ritual sagrado apesar de sua dispersão pela simples presença no espaço cheio de graça Na missa Cristo é sacrificado através de um ato exterior ao mundo e atemporal ressurgindo novamente na substância transformada pela consagração A morte sacrifical no rito não é uma repetição do evento histórico mas um ato eterno que ocorre por primeira e única vez A vivência da missa é pois participação em uma transcendência da vida que ultrapassa todas as barreiras de espaço e tempo É um momento de eternidade no tempo 3 210 β Experiências diretas Tudo o que o drama dos mistérios representa e produz no espectador também pode ocorrer sob a forma de uma experiência espontânea extática ou visionária sem qualquer ritual A visão do meiodia de Nietzsche é um exemplo clássico disso 4 Nietzsche como é sabido substitui o mistério cristão pelo mito de DionisoZagreu que foi desmembrado e retornou à vida inteiramente abraçado pelo generoso amor da videira e escondido de si mesmo Sua experiência tem portanto um caráter dionisíaco da natureza a divindade aparece nas vestes da antiga natureza é o momento da eternidade a hora do meiodia consagrada a Pan Acaso o tempo passou Porventura estou caindo Não cairia acaso no poço da eternidade O próprio aro de ouro o anel do retorno aparece a ele como uma promessa de ressurreição e vida 5 É como se Nietzsche tivesse estado presente numa celebração de mistérios 211 Muitas vivências místicas têm um caráter semelhante representam uma ação em que o espectador fica envolvido embora sua natureza não mude necessariamente Do mesmo modo muitas vezes os sonhos mais belos e impactantes não têm efeito duradouro ou transformador sobre o sonhador Este pode sentirse impressionado sem contudo ver nisso obrigatoriamente um problema Neste caso o sucedido permanece do lado de fora como uma ação ritual executada por outros Tais formas mais estéticas de vivência devem ser cuidadosamente destacadas das que indubitavelmente envolvem mudanças na natureza da pessoa B Transformação subjetiva 212 Transformações da personalidade não são ocorrências raras Na realidade elas desempenham um papel considerável na psicopatologia embora sejam diversas das vivências místicas que acabamos de descrever e às quais a investigação psicológica não tem acesso fácil No entanto os fenômenos que a seguir examinaremos pertencem a uma esfera bastante familiar à psicologia 213 α Diminuição da personalidade Um exemplo da alteração da personalidade no sentido da diminuição énos dado por aquilo que a psicologia primitiva conhece como lost of soul perda de alma A condição peculiar implícita neste termo corresponde na mente do primitivo à suposição de que a alma se foi tal como um cachorro que foge à noite de seu dono A tarefa do xamã é então capturar a fugitiva e trazêla de volta Muitas vezes a perda ocorre subitamente e se manifesta através de um malestar geral O fenômeno se conecta estreitamente com a natureza da consciência primitiva desprovida da firme coerência da nossa própria consciência Possuímos controle sobre o nosso poder voluntário mas o primitivo não o tem São necessários exercícios complicados para que ele possa concentrar se em qualquer atividade consciente e intencional que não seja apenas emocional e instintiva Nossa consciência é mais segura e confiável neste aspecto No entanto algo semelhante pode ocorrer ocasionalmente com o homem civilizado só que não o descrevemos como uma lost of soul mas como um abaissement du niveau mental termo que Janet designou para este fenômeno 6 Tratase de um relaxamento da tensão da consciência que pode ser comparada com uma baixa leitura barométrica pressagiando mau tempo O tônus cedeu o que é sentido subjetivamente como peso morosidade e depressão Não se tem mais nenhum desejo ou coragem de enfrentar as tarefas do dia A pessoa se sente como chumbo porque nenhuma parte do corpo parece disposta a moverse e isso é devido ao fato de não haver mais qualquer energia disponível 7 Este fenômeno bem conhecido corresponde à lost of soul do primitivo O estado de desânimo e paralisação da vontade pode aumentar a ponto de a personalidade desmoronar por assim dizer desaparecendo a unidade da consciência as partes isoladas da personalidade tornamse autônomas e através disso perdese o controle da consciência Criamse assim por exemplo campos anestesiados ou amnésia sistemática Esta última é um fenômeno histérico de perda Esta expressão médica corresponde à lost of soul 214 O abaissement pode ser consequência de um cansaço físico e psíquico de doenças somáticas de emoções e choques violentos cujo efeito é especialmente deletério sobre a autossegurança da personalidade O abaissement sempre tem uma influência limitadora sobre a personalidade global Diminui a autoconfiança e a iniciativa e limita o horizonte espiritual através de um egocentrismo crescente Pode levar finalmente ao desenvolvimento de uma personalidade essencialmente negativa que representa uma falsificação em relação à personalidade originária 215 β Transformação no sentido da ampliação A personalidade no início é raramente aquilo que será mais tarde Por isso existe pelo menos na primeira metade da vida a possibilidade de ampliação ou modificação da mesma Ela pode ocorrer por influência exterior e isso através de novos conteúdos vitais que afluem e são assimilados Neste caminho podese fazer a experiência de um acréscimo essencial da personalidade Por isso é frequente supor que tal ampliação venha exclusivamente de fora e nisto se baseia o preconceito de que nos tornamos uma personalidade na medida em que recolhermos maximamente as experiências Quanto mais seguirmos esta receita pensando que todo acréscimo só vem de fora tanto mais empobrecemos interiormente Assim pois se formos tocados por uma grande ideia de fora devemos compreender que ela só nos toca porque há algo em nós que lhe corresponde e vai ao seu encontro Possuir disponibilidade anímica significa riqueza não o acúmulo de coisas conquistadas Só nos apropriamos verdadeiramente de tudo o que vem de fora para dentro como também tudo o que emerge de dentro se formos capazes de uma amplitude interna correspondente à grandeza do conteúdo que vem de fora ou de dentro A verdadeira ampliação da personalidade é a conscientização de um alargamento que emana de fontes internas Sem amplitude anímica jamais será possível referirse à magnitude do objeto Por isso dizse com razão que o homem cresce com a grandeza de sua tarefa Mas ele deve ter dentro de si a capacidade de crescer senão nem a mais árdua tarefa servirlheá de alguma coisa No máximo ela o destruirá 216 O encontro de Nietzsche com Zaratustra que transformou o aforista crítico no poeta trágico e profético é um exemplo clássico dessa ampliação Paulo é um exemplo semelhante Cristo veio de repente ao seu encontro na estrada de Damasco Embora o Cristo que apareceu a Paulo não fosse possível sem o Jesus histórico o aparecimento de Cristo a Paulo não proveio do Jesus histórico mas sim do seu inconsciente 217 Num ponto culminante da vida em que o botão se abre em flor e do menor surge o maior um tornase dois e a figura maior que sempre fomos mas permanecia invisível comparece diante do homem que fomos até então com a força da revelação O verdadeiramente pequeno e sem esperança sempre reduz à sua pequenez a revelação do grande e jamais compreenderá que o Juízo Final também despontou para a sua pequenez O ser humano intimamente grande sabe porém que o amigo da alma pelo qual há tanto ansiava o imortal chegou enfim de fato para levar cativo seu cativeiro 8 aquele que sempre trouxe em si aprisionado a fim de capturálo permitindo que a sua vida desembocasse em sua própria vida um momento de perigo mortal A visão profética de Nietzsche ao deparar com o bailarino na corda bamba 9 desvela o perigo ameaçador da atitude do equilibrista diante de um acontecimento a que Paulo deu o nome máximo de que foi capaz 218 O próprio Cristo é o símbolo supremo do imortal que está oculto no homem mortal 10 Habitualmente este problema é representado por um motivo dual por exemplo pelos Dioscuros um dos quais é mortal e o outro imortal Um paralelo indiano é o do par de amigos Dois amigos unidos esvoaçantes Abraçam juntos a mesma árvore Um deles come a frutinha doce O outro olha para baixo sem comer O Espírito sobre essa árvore pairando Sofre em sua impotência aflito delirante mas quando louva e contempla a onipotência e majestade do outro Vê sua dor se esvaindo11 219 Um paralelo digno de nota é a lenda islâmica do encontro de Moisés com Chidr ou al Chadir 12 ao qual voltarei mais adiante Naturalmente não podemos ver a transformação da personalidade no sentido da multiplicação apenas sob a forma de tais vivências significativas Existe também uma casuística trivial que pode ser compilada facilmente a partir dos casos clínicos e do processo de cura de pacientes nervosos Todos os casos finalmente em que o reconhecimento de algo maior rebenta um anel de ferro que oprime o coração pertencem a esta categoria 13 220 γ Modificação da estrutura interior Neste caso não se trata de ampliação nem de diminuição mas de uma modificação estrutural da personalidade Menciono como forma principal o fenômeno da possessão o qual consiste no fato de um conteúdo qualquer pensamento ou parte da personalidade dominar o indivíduo por algum motivo Os conteúdos da possessão aparecem como convicções singulares idiossincrasias planos obstinados etc Em geral eles não são suscetíveis de correção Temos de ser um amigo muito especial do possuído disposto a arcar com as penosas consequências se quisermos enfrentar uma tal situação Recusome a traçar uma linha divisória absoluta entre possessão e paranoia A possessão pode ser formulada como uma identificação da personalidade do eu com um complexo 14 221 Um caso frequente é a identificação com a persona que é o sistema da adaptação ou estilo de nossa relação com o mundo Assim sendo quase todas as profissões têm a sua persona característica Tais coisas são fáceis de estudar atualmente uma vez que as pessoas públicas aparecem fotografadas frequentemente na imprensa O mundo exige um certo tipo de comportamento e os profissionais se esforçam por corresponder a tal expectativa O único perigo é identificarse com a persona como por exemplo o professor com o seu manual o tenor com sua voz daí a desgraça É que então se vive apenas em sua própria biografia não se é mais capaz de executar uma atividade simples de modo natural Pois já está escrito e então ele foi para cá ou para lá disse isso ou aquilo etc A túnica de Dejanira colouse à pele de Héracles e nela se enraizou É preciso a determinação desesperada de um Héracles para arrancar do corpo a túnica de Nesso e entrar no fogo da imortalidade a fim de transformarse naquilo que verdadeiramente é 15 Exagerando um pouco poderíamos até dizer que a persona é o que não se é realmente mas sim aquilo que os outros e a própria pessoa acham que se é Em todo caso a tentação de ser o que se aparenta é grande porque a persona frequentemente recebe seu pagamento à vista 222 Há também outros fatores que podem obcecar o indivíduo de forma decisiva Entre eles especialmente importante é a função inferior Este não é o lugar adequado para tratar detalhadamente desta problemática 16 Só quero ressaltar que a função inferior coincide com o lado obscuro da personalidade humana O obscuro que adere a cada personalidade é a porta de entrada para o inconsciente o pórtico dos sonhos Dele saem aquelas duas figuras crepusculares a sombra e a anima para entrar na parte noturna do sonho nas visões oníricas ou permanecendo invisíveis tomam posse da consciência do eu Um ser humano possuído por sua sombra está postado em sua própria luz caindo em suas próprias armadilhas Sempre que possível ele prefere exercer uma impressão desfavorável sobre os outros Em geral não tem sorte porque vive abaixo de si mesmo e no máximo alcança o que não lhe convém Onde não há soleira na qual possa tropeçar ele a constrói imaginando ter feito algo útil 223 A possessão provocada pela anima ou animus apresenta entretanto uma outra imagem Em primeiro lugar ao darse a transformação da personalidade evidenciamse os traços do sexo oposto no homem o feminino e na mulher o masculino No estado de possessão ambas as figuras perdem seu encanto e seus valores que só possuem em estado de despreocupação em relação ao mundo introversão isto é quando constroem uma ponte para o inconsciente Voltada para fora a anima é volúvel desmedida caprichosa descontrolada emocional às vezes demoniacamente intuitiva indelicada perversa mentirosa bruxa e mística 17 O animus pelo contrário é rígido cheio de princípios legalista dogmático reformador do mundo teórico emaranhandose em argumentos polêmico despótico 18 Ambos têm mau gosto a anima é cercada de indivíduos medíocres e o animus se presta a pensamentos medíocres 224 Outro caso de modificação estrutural diz respeito a algumas raras observações sobre as quais só posso externarme com a maior reserva Trata se de estados de possessão em que esta é desencadeada por algo que poderíamos designar mais adequadamente por alma ancestral e precisamente como uma determinada alma ancestral São casos de identificação visível com pessoas falecidas Os fenômenos de identificação ocorrem naturalmente após a morte do ancestral Léon Daudet foi o primeiro a chamar minha atenção para tais possibilidades através do seu livro confuso mas genial LHérédo Ele supõe que na estrutura da personalidade existem elementos ancestrais que repentinamente podem irromper sob certas condições Através disso o indivíduo pode precipitarse subitamente em um papel ancestral Agora sabemos que este papel tem um grande significado para o primitivo Não há unicamente a suposição de que os espíritos ancestrais reencarnem nas crianças mas tentase também transferilos às crianças dandolhes os nomes correspondentes Da mesma forma os primitivos procuram transformarse a si próprios ritualmente nos ancestrais Remeto a ideia australiana da altjirangamitijna 19 das almas ancestrais meio animais cuja revivificação através do culto tem o maior significado funcional para a vida da tribo Essas ideias da idade da pedra eram amplamente difundidas o que se pode reconhecer ainda através de numerosos vestígios em outros lugares Por este motivo não é improvável que tais formas primordiais da vivência ainda se repitam hoje como identificações com almas ancestrais e acredito mesmo ter visto casos semelhantes 225 δ Identificação com um grupo Passemos agora ao comentário de outra forma de transformação que chamaremos de identificação com um grupo Tratase mais exatamente da identificação de um indivíduo com um certo número de pessoas que têm uma vivência de transformação coletiva É uma situação psicológica especial que não deve ser confundida com a participação em um ritual de transformação o qual é realizado de fato diante de um público mas não depende de forma alguma de uma identidade de grupo nem gera necessariamente uma tal identidade É algo bem diferente vivenciar a transformação no grupo do que em si mesmo Em um grupo maior de pessoas ligadas e identificadas entre si por um estado de ânimo peculiar criase uma vivência de transformação que tem apenas uma vaga semelhança com uma transformação individual Uma vivência grupal ocorre em um nível inferior de consciência em relação à vivência individual É um fato que quando muitas pessoas se reúnem para partilhar de uma emoção comum emerge uma alma conjunta que fica abaixo do nível de consciência de cada um Quando um grupo é muito grande criase um tipo de alma animal coletiva Por esse motivo a moral de grandes organizações é sempre duvidosa É inevitável gue a psicologia de um amontoado de pessoas desça ao nível da plebe 20 Por isso se eu tiver no grupo o que se chama uma vivência comunitária coletiva esta ocorre em um nível de consciência relativamente inferior por este motivo a vivência grupal é muito mais frequente do que uma vivência de transformação individual É também muito mais fácil alcançar a primeira pois o encontro de muitas pessoas tem uma grande força sugestiva O indivíduo na multidão tornase facilmente uma vítima de sua sugestionabilidade Só é necessário que algo aconteça por exemplo uma proposta apoiada por todos para que cada um concorde mesmo que se trate de algo imoral Na massa não se sente nenhuma responsabilidade mas também nenhum medo 226 A identificação com o grupo é pois um caminho simples e mais fácil mas a vivência grupal não vai mais fundo do que o nível em que cada um está Algo se modifica em cada um mas essa mudança não perdura Pelo contrário a pessoa depende continuamente da embriaguez da massa a fim de consolidar a vivência e poder acreditar nela Quando não está mais na multidão a pessoa tornase outro ser incapaz de reproduzir o estado anterior Na massa predomina a participation mystique que nada mais é do que uma identidade inconsciente Por exemplo quando se vai ao teatro os olhares encontram imediatamente os olhares que se ligam uns aos outros cada um olha como o outro olha e todos ficam presos à rede invisível da relação recíproca inconsciente Se esta condição se intensifica cada um sentese arrastado pela onda coletiva de identificação com os outros Pode até mesmo ser uma sensação agradável uma ovelha entre dez mil ovelhas E se percebemos que essa multidão é uma grande e maravilhosa unidade tornamonos heróis exaltados pelo grupo Voltando depois a nós mesmos descobrimos que meu nome civil é este ou aquele que moro nesta ou naquela rua no terceiro andar e que aquela história no fundo foi muito prazerosa e esperamos que amanhã ela se repita a fim de que eu possa me sentir de novo como um povo inteiro o que é bem melhor do que ser apenas o cidadão x ou y Como este é um caminho fácil e conveniente de ascensão a outros níveis de personalidade o ser humano sempre formou grupos que possibilitassem vivências de transformação coletiva frequentemente sob a forma de estados extáticos A identificação regressiva com estados de consciência inferiores e mais primitivos é sempre ligada a um maior sentido de vida donde o efeito vivificante das identificações regressivas com os ancestrais meio teriomórficos da Idade da Pedra 21 227 A inevitável regressão psicológica dentro do grupo é parcialmente suprimida pelo ritual isto é pela cerimônia do culto que coloca no centro da atividade grupal a representação solene dos eventos sagrados impedindo que a multidão caia numa instintividade inconsciente Ao exigir a atenção e o interesse de cada indivíduo a cerimônia do culto possibilita que o mesmo tenha uma vivência relativamente individual dentro do grupo mantendose assim mais ou menos consciente No entanto se faltar a relação com um centro que expresse o inconsciente através de seu simbolismo a alma da massa tornase inevitavelmente o ponto focal de fascínio atraindo cada um com seu feitiço Por isso as multidões humanas são sempre incubadoras de epidemias psíquicas 22 sendo os acontecimentos na Alemanha nazista o evento clássico desse fenômeno 228 Contra esta avaliação da psicologia das massas essencialmente negativa objetarseá que há também experiências positivas como por exemplo um entusiasmo saudável que incentiva o indivíduo a ações nobres ou um sentimento igualmente positivo de solidariedade humana Fatos deste tipo não devem ser negados A comunidade pode conferir ao indivíduo coragem decisão e dignidade que ele perderia facilmente no isolamento Ela pode despertar nele a lembrança de ser um homem entre homens Mas isso não impede que algo lhe seja acrescentado algo que não possuiria como indivíduo Tais presentes muitas vezes imerecidos significam no momento uma graça especial mas a longo prazo há o perigo de o presente transformarse em perda uma vez que a natureza humana tem a debilidade de julgar que é indiscutivelmente sua tal dádiva por isso num momento de necessidade passa a exigir esse presente como um direito seu em vez de obtêlo mediante o próprio esforço Infelizmente constatamos isso com grande clareza na tendência de exigir tudo do Estado sem refletir sobre o fato de que este é constituído por sua vez pelos mesmos indivíduos que fazem tais exigências O desenvolvimento lógico desta tendência leva ao comunismo no qual cada indivíduo escraviza a coletividade e esta última é representada por um ditador isto é um senhor de escravos Todas as tribos primitivas cuja ordem social é comunista também têm um chefe com poderes ilimitados sobre elas O estado comunista nada mais é do que uma monarquia absoluta em que não há súditos mas apenas servos 229 ε Identificação com o herói do culto Para a vivência da transformação também é importante a identificação com o deus ou herói que se transforma durante o ritual sagrado Muitas cerimônias de culto têm por finalidade criar essa identificação Na Metamorfose de Apuleio encontramos um bom exemplo disso o neófito que é um ser humano comum é escolhido para ser Hélio coroado de palmas coberto com um manto místico venerado pela multidão A sugestão da comunidade produz a identificação com o deus A participação da comunidade também pode ocorrer sem a apoteose do neófito mas o ofício sagrado é recitado e através dele ocorrem gradualmente mudanças psíquicas individuais nos participantes através de um longo período de tempo Exemplo disso é o culto de Osíris Inicialmente somente o faraó participava do deus da transformação na medida em que apenas ele tinha um Osíris Mais tarde os nobres do reino obtiveram também um Osíris e finalmente o cristianismo coroou esse desenvolvimento reconhecendo que todos têm uma alma imortal e participação direta na divindade No cristianismo a evolução continuou no sentido do Deus ou Cristo exterior transformarse pouco a pouco no Cristo interior do indivíduo e embora presente em muitos permanece sempre um e o mesmo uma verdade que já fora antecipada na psicologia do totem em que durante as refeições o animal totêmico era morto e comido em muitos pedaços e no entanto era sempre único tal como existe só um Menino Jesus e um Papai Noel 230 Através da participação do destino do deus nos mistérios o indivíduo transformase indiretamente No cristianismo eclesial a vivência da transformação é indireta na medida em que ocorre através da participação no ritual oficiado ou recitado O ritual oficiado dromenon é uma das formas e o recitado ou a Palavra ou ainda a Mensagem é a outra A primeira é característica do culto ricamente elaborado da Igreja Católica A segunda forma é o anúncio da Palavra no protestantismo 231 ζ Procedimentos mágicos Outra forma de transformação é alcançada através de um rito usado para este fim Em vez de se vivenciar a experiência de transformação mediante uma participação o ritual é intencionalmente usado para produzir uma transformação Este tornase assim de certa forma uma técnica à qual nos submetemos Por exemplo um homem está doente e deveria ser renovado por isso A renovação deveria ocorrerlhe e para que ocorra ele é puxado através de um buraco feito na parede na cabeceira de seu leito e assim renasce Ou então recebe um outro nome e com este uma nova alma Desse modo os demônios não o reconhecem mais ou ainda deve passar por uma morte figurada ou então é puxado grotescamente através de uma vaca de couro que o devora pela boca e o expele por trás Ou ainda passa por uma ablução ou banho batismal transformandose em um ser semidivino com um novo caráter e um destino metafísico transformado 232 η Transformação técnica Além da utilização mágica do ritual existem ainda técnicas especiais que atraem além da graça correspondente ao ritual também o esforço do iniciado para alcançar a meta Tratase aqui de uma vivência de transformação produzida por meios técnicos Pertencem a este contexto os exercícios denominados ioga no Oriente e exercitia spiritualia no Ocidente Tratase de uma técnica determinada prescrita com maior ou menor precisão a fim de atingir um efeito psíquico determinado ou pelo menos tentar atingilo É o caso tanto na yoga mental como nos métodos ocidentais correspondentes 23 São técnicas no pleno sentido da palavra derivadas da reelaboração de processos e transformações naturais Outrora quando não existiam pressupostos históricos havia transformações espontâneas de certo modo naturais e agora elas são utilizadas em suas sequências na técnica a fim de alcançar a transformação O modo pelo qual tais métodos devem ter surgido originalmente pode ser esclarecido sob a forma da seguinte lenda 233 Era uma vez um velho estranho Ele vivia numa caverna na qual se refugiara fugindo ao ruído das aldeias Tinha a fama de mago e por isso possuía alunos que esperavam aprender com ele a arte da magia Ele porém não cogitava disso Só procurava saber o que não sabia mas tinha a certeza do que sempre ocorria Tendo meditado muito tempo sobre o que nossa meditação não alcança não teve outra saída para sua situação precária a não ser pegar uma argila vermelha e fazer todo tipo de desenhos nas paredes de sua caverna a fim de descobrir como aquilo que ele não sabia poderia ser Depois de muitas tentativas chegou ao círculo Isto está certo achou ele e mais um quadrilátero dentro e assim ficou melhor Os alunos estavam curiosos mas sabiam apenas que algo acontecia com o velho eles teriam gostado demais de descobrir o que realmente ele fazia Perguntaramlhe O que fazes lá dentro Mas o velho não dava nenhuma informação Descobriram então os desenhos na parede e disseram Ah É isso e copiaram os desenhos Mas assim sem perceber inverteram todo o processo anteciparam o resultado esperando com isso forçar o processo que havia conduzido àquele resultado Assim acontecia outrora e ainda acontece hoje 234 θ Transformação natural Já mencionei antes que além dos processos de transformação técnicos há transformações naturais Todas as ideias acerca do renascimento fundamentamse neste fato A própria natureza exige morte e renascimento O velho alquimista Demócrito diz A natureza alegrase com a natureza a natureza abraça a natureza e a natureza vence a natureza 24 Há processos naturais de transformação que nos ocorrem quer queiramos ou não saibamos ou não Tais processos produzem consideráveis efeitos psíquicos que bastariam para que se indagasse reflexivamente o que realmente se produziu Como o velho da nossa história ele desenhará mandalas entrará em seu círculo protetor e na perplexidade e angústia da prisão por ele mesmo escolhida à guisa de refúgio se transformará em um ser semelhante aos deuses Os mandalas são lugares de nascimento ou melhor conchas de nascimento flores de lótus das quais nasce o Buda O iogue sentado em flor de lótus vêse transformado em uma figura imortal 235 Os processos naturais de transformação são anunciados principalmente no sonho Em outra parte apresentei uma série de símbolos oníricos do processo de individuação 25 Eram sonhos que usavam sem exceção o simbolismo do renascimento Em todo o caso tratase de um processo demorado de transformação interna e do renascimento em um outro ser Este outro ser é o outro em nós a personalidade futura mais ampla com a qual já travamos conhecimento como um amigo interno da alma Por isso é algo confortante para nós ao encontrarmos o amigo e companheiro reproduzido num ritual sagrado como por exemplo naquela relação de amizade entre Mitra e o deus Sol o que para a mente ilustrada representa um mistério porquanto esta última costuma olhar para essas coisas sem empatia No entanto se ele levasse em conta o sentimento descobriria que é o amigo o qual o Sol leva consigo em seu carro tal como se vê nos monumentos É a representação de uma amizade masculina imagem externa de um fato interno tratase da representação da relação com o amigo interno da alma no qual a própria natureza gostaria de nos transmutar naquele outro que também somos e que nunca chegamos a alcançar plenamente O homem é o par de um Dioscuro em que um é mortal e o outro imortal sempre estão juntos e apesar disso nunca se transformam inteiramente num só Os processos de transformação pretendem aproximar ambos a consciência porém resiste a isso porque o outro lhe parece de início como algo estranho e inquietante e não podemos nos acostumar à ideia de não sermos senhores absolutos na própria casa Sempre preferiríamos ser eu e mais nada Mas confrontamonos com o amigo ou inimigo interior e de nós depende ele ser um ou outro 236 Não precisamos ser doentes mentais para ouvir a sua voz Muito pelo contrário ouvila é a coisa mais simples e natural Podemos por exemplo fazer uma pergunta à qual ele responde O fluxo das ideias continua como em uma conversa comum Podemos chamála uma mera associação ou um solilóquio ou uma meditação dos antigos alquimistas que designavam o parceiro do diálogo como aliquem alium internum como um outro interior 26 Esta forma de colóquio com o amigo da alma foi até mesmo admitida por Inácio de Loyola no método dos Exercitia spiritualia 27 com a limitação porém de que só o meditador fala mas a resposta interna é omitida Esta seria repudiada por provir supostamente apenas do homem e assim continua até hoje O preconceito não é moral ou metafísico mas o que é pior sua natureza é intelectual A voz é explicada como uma associação tola que prossegue de um modo sem sentido ou propósito como um mecanismo de relógio que saiu do eixo Ou então pensamos tratase apenas de meus pensamentos mesmo que um exame mais acurado revele que se trata de pensamentos rejeitados ou jamais admitidos conscientemente como se tudo o que fosse psíquico pertencesse à alçada do eu Esta hybris cumpre o ofício útil da manutenção e supremacia da consciência que deve ser protegida da dissolução no inconsciente Mas ela sucumbe quando o inconsciente resolve tornar obsessivos alguns pensamentos insensatos ou gerar outros sintomas psicógenos pelos quais não queremos assumir responsabilidade alguma 237 Nossa opinião sobre a voz interior movese entre dois extremos ou a vemos como um desvario total ou então como a voz de Deus A ninguém ocorre que possa haver um meiotermo valioso O outro que responde deve ser tão unilateral por seu lado quanto o eu Do conflito entre ambos pode surgir verdade e sentido mas isto só no caso de que o eu esteja disposto a conceder a personalidade que cabe ao outro Este último tem uma personalidade própria sem dúvida tanto quanto as vozes dos doentes mentais porém um colóquio verdadeiro só se torna possível quando o eu reconhece a existência de um interlocutor Este reconhecimento não é comum entre as pessoas pois nem todos se prestam aos Exercitia spiritualia Não se trata naturalmente de uma conversa quando somente um dirige a palavra ao outro como faz George Sand em suas conversas com seu amigo espiritual 28 só ele fala nas trinta páginas em questão e ficamos esperando inutilmente a resposta do outro Ao colóquio dos Exercitia seguese talvez a graça silenciosa na qual o cético moderno não acredita Mas como seria se Cristo com o qual falamos desse uma resposta imediata através das palavras de um coração humano pecador Que terríveis abismos de dúvida se abririam então Que loucura temeríamos Compreendese que é melhor a mudez das imagens divinas e que a consciência do eu acredite em sua supremacia em vez de prosseguir em suas associações Compreendese que o amigo interno apareça tantas vezes como inimigo e por estar tão longe sua voz é fraca Quem está próximo dele está próximo do fogo 29 238 Talvez esse alquimista estivesse pensando em algo parecido quando disse Escolhe para ti aquela pedra mediante a qual os reis são venerados em suas coroas e os médicos curam seus doentes porque ela está próxima do fogo 30 Os alquimistas projetam os acontecimentos internos em formas externas e assim o amigo interno neles aparece sob a forma da pedra da qual o Tractatus aureus diz Entendei ó filhos dos sábios o que clama a pedra protegeme e eu te protegerei dáme o que é meu a fim de que eu te ajude 31 Um escoliasta acrescenta 32 O pesquisador da verdade ouve a pedra e o filósofo como se ambos falassem por uma só boca O filósofo é Hermes e a pedra idêntica a Mercúrio corresponde justamente ao Hermes latino 33 Desde os tempos mais remotos Hermes é o mistagogo e o psicopompo dos alquimistas seu amigo e conselheiro 34 que os conduz à meta da obra Ele é tanquam praeceptor intermedius inter lapidem et discipulum 35 A outros porém o amigo aparece sob a figura de Cristo ou do Chadir ou de um guru visível ou invisível Ele também pode aparecer na figura de qualquer dirigente pessoal ou social Neste caso o colóquio é decididamente unilateral Não há diálogo interior pois a resposta possível aparece como ação do outro isto é como acontecimento externo Tal resposta ao alquimista se manifestava através da transformação da matéria química Quando um deles buscava a transformação a descobria fora na matéria e a transformação da mesma clamava Eu sou a transformação alguns eram tão lúcidos que sabiam é a minha transformação mas não pessoal e sim a transformação de algo mortal em algo imortal em mim que se liberta do seu invólucro mortal o qual sou eu e desperta agora para sua própria vida entra na Barca solar que talvez me leve 36 239 Tratase de um pensamento muito antigo Estive no Alto Egito na região de Assuan e entrei numa sepultura do Egito Antigo recentemente aberta Atrás da porta da entrada havia uma cestinha de caniço com o cadáver seco de um recémnascido envolto em trapos Pelo visto a mulher de um trabalhador havia colocado furtivamente o recémnascido morto dentro da sepultura de um nobre a fim de que a criança participasse da salvação do nobre quando este entrasse na Barca solar para o nascer de um novo dia a criança alcançaria a graça divina por ter sido enterrada em um lugar sagrado Referências A Sammlungen alchemistischer Traktate verschiedener Autoren Ars Chemica quod sit licita exercentibus probationes doctissimorum iurisconsultorum Strassburg 1566 I Septem tractatus seu capitula Hermetis Trismegisti aurei p 731 Tractatus aureus Artis Auriferae quam chemiam vocant usw 2 vols Basel 1593 Band I I Allegoriae super librum Turbae p 139145 II Aurora consurgens quae dicitur aurea hora p 185246 nur Teil II III Rosinus ad Sarratantam episcopum p 277319 IV Liber secretorum alchemiae compositus per Calid filium Iazichi p 325 351 V Tractatus Aristotelis de practica lapidis philosophici p 361373 VI Rachaidibi Veradiani Rhodiani et Kanidis philosophorum régis Persarum De materia philosophici lapidis acutissime colloquentium fragmentum p 397404 VII Liber de arte chimica incerti authoris p 575631 Band II VIII Rosarium philosophorum p 204384 enthält eine zweite Fassung der Visio Arislei p 246ss Eine andere Ausgabe von Anis auriferae in diesem Bande gelegentlich zitiert erschien 1572 in Basel und enthält den Tractatus aureus p 641ss Bibliotheca Chemica Curiosa seu rerum ad alchemiam pertinentium thésaurus instructissimus 2 vols Genf 1702 Ed Johannes Jacobus Mangetus Band I I Hermes Trismegistus Tractatus aureus de lapidis physici secreto p 400 445 II Morienus Liber de compositione alchemiae p 509519 Band II III Sendivogius Epistola XIII p 496 Theatrum Chemicum praecipuos selectorum auctorum tractatus continens Vols IIII Ursel 1602 Vol IV Strassburg 1613 Vol V 1622 Vol VI 1661 B Allgemeine Bibliographie ALDROVANDUS U Dendrologiae naturalis scilicet arborum historiae libri Frankfurt 1671 BERTHELOT M La Chimie au moyen âge 3 vols Histoire des Sciences Paris 1893 Collection des anciens alchimistes grecs Paris 18871888 DE JONG KHE Das antike Mysterienwesen in religionsgeschichtlicher ethnologischer und psychologischer Beleuchtung Leiden 1909 DEUSSEN P Sechzig Upanishads des Veda Aus dem Sanskrit übersetzt und mit Einleitungen und Anmerkungen versehen 3 ed Leipzig 1938 FIERZDAVID L Der Liebestraum des Poliphilo Ein Beitrag zur Psychologie der Renaissance und der Moderne Zürich 1947 HornefFer Emst Nietzsches Lehre von der Ewigen Wiederkunft und deren bisherige Veröffentlichung Leipzig RheinVerlag 1900 IZQUIERDO S Alcarazense Societatis Iesu Praxis exercitiorum spiritualium PNS Ignatii Roma 1695 JANET P Les Névroses Bibliothèque de philosophie scientifique Paris 1919 erstmals 1909 JUNG CG Der Geist Mercurius In EranosJahrbuch 1942 Zurique RheinVerlag 1943 Erweiterte Neuausgabe in Symbolik des Geistes Siehe dort Gestaltungen des Unbewussten Psychologische Abhandlungen VII Zurique Rascher 1950 Jungs Beiträge in diesem Band sowie GW 15 1971 Psychologie und Alchemie Psychologische Abhandlungen V Zurique Rascher 1944 Revidierte Neuauflage 1952 GW 12 1972 Psychologische Typen Zurique Rascher 1921 Neuauflagen 1925 1930 1937 1940 1942 1947 e 1950 GW 6 1960 und 1967 Symbolik des Geistes Studien über psychische Phänomenologie mit einem Beitrag von Dr phil Riwkah Schärf Psycholog Abhandlungen VI Zurique Rascher 1948 1953 Jungs Beiträge in diesem Band sowie in GW 11 1963 und 1973 und GW 13 Versuch einer psychologischen Deutung des Trinitätsdogmas In Symbolik des Geistes Siehe dort GW 11 1963 e 1973 Das Wandlungssymbol in der Messe In Eranos Jahrbuch 19401941 Zurique Rascher 1942 Erweitert in Von den Wurzeln des Bewusstseins Siehe dort GW 11 1963 e 1973 Von den Wurzeln des Bewusstseins Studien über den Archetypus Psychologische Abhandlungen IX Zurique Rascher 1954 Drei Abhandlungen in diesem Band die übrigen in GW 8 1967 e 1977 GW 11 1963 e 1973 e GW 13 1978 Zur Psychologie östlicher Meditation In Mitteilungen der Schweizerischen Gesellschaft der Freunde Ostasiatischer Kultur V Berna 1943 p 3353 Später in Symbolik des Geistes Siehe dort Ferner in Bewusstes und Unbewusstes Beiträge zur Psychologie Bücher des Wissens TB Frankfurt a M Fischer e Hamburgo 1957 GW 11 1963 e 1973 Zur Psychologie und Pathologie sogenannter occulter Phänomene Eine psychiatrische Studie Dissertation Oswald Mutze Leipzig 1902 GW 1 1966 JUNG E Ein Beitrag zum Problem des Animus In JUNG CG Wirklichkeit der Seele Anwendungen und Fortschritte der neueren Psychologie Psychologische Abhandlungen IV Zurique Rascher 1934 Neuauflagen 1939 und 1947 Der Aufsatz ist zusammen mit Die Anima als Naturwesen Beitrag zur Festschrift Studien zur Analytischen Psychologie CG Jungs II Zurique Rascher 1955 unter dem Titel Animus und Anima gesondert als Pb bei Rascher Zürich 1967 erschienen KEYSERLING GH Südamerikanische Meditationen Stuttgart 1932 LE BON G Psychologie der Massen Übersetzun Philosophisch soziologische Bücherei II 2 verbesserte Aufl Leipzig 1902 LEVYBRUHL L La Mythologie primitive Le monde mythique des Australiens et des Papous Travaux de lannee sociologique 2 ed Paris 1935 NIETZSCHE F Werke 16 vols Leipzig 18991911 Also sprach Zarathustra Ein Buch für Alle und Keinen In Vol VI REITZENSTEIN R Poimandres Studien zur griechischägyptischen und frühchristlichen Literatur Leipzig 1904 RUHLANDUS M Lexicon alchemiae sive dictionarium alchemisticum Frankfurt 1612 SAMYUTTANIKÄYA Die in Gruppen geordnete Sammlung aus dem PäliKanon der Buddhisten zum ersten Mal ins Deutsche übertragen von Wilhelm Geiger Vol I München Neubiberg 1930 SCHOPENHAUER A Aphorismen zur Lebensweisheit In Parerga und Paralipomena Leine philosophische Schriften 2 vols in cinem Berlim 1891 SPENCER B GILLEN FJ The Northern Tribes of Central Australia Londres 1904 TONQUÉDEC J de Les Maladies nerveuses ou mentales et les manifestations diaboliques Précédé dune lettre de SE le Cardinal Verdier 3 ed Paris 1938 WELLS HG The War of the Worlds Londres 1896 Fonte OC 91 199239 Publicado pela primeira vez sob o título Os diversos aspectos do renascimento em EranosJahrbuch 1939 RheinVerlag Zurique 1940 revisto e ampliado sob o título acima em Gestaltungen des Unbewussten Phsychologische Abhandlungen VII Rascher Zurique 1950 1 Cf SamyuttaNikaya 1612 KassapaSamyutta Sutta 12 Após a morte p 286 2 Cf versos 480482 do Demeterhymnus Hino a Deméter DE JONG Das antike Mysterienwesen in religionsgeschichtlicher ethnologischer und psychologischer Bedeutung p 14 Bemaventurado aquele que os viu nos habitantes da Terra Mas não participou dos santos rituais Sorte diversa o aguarda na escuridão cega da morte Em um epitáfio de Elêusis op cit lêse Em verdade os deuses bemaventurados anunciam um belo segredo Aos mortais não é maldição a morte e sim bênção 3 Cf JUNG O símbolo da transformação na missa 4 Also sprach Zarathustra p 400s 5 HORNEFFER Nietzsches Lehre von der Ewigen Wiederkunft 6 Les Névroses p 358 7 O fenômenogana descrito pelo conde Keyserling Südamerikanische Meditationen pertence a este domínio 8 Ef 48 tradução de Lutero 9 Also sprach Zarathustra p 21s Tua alma morrerá mais depressa do que teu corpo 10 Cf mais pormenores in JUNG Tentativa de uma interpretação psicológica do dogma da Trindade 226s 11 Çvetâçvatara Upanishad IV 6 7 9 in DEUSSEN Sechzig Upanishads des Veda p 301 12 O Corão 18ª Sura 13 Em minha dissertação inaugural Sobre a psicologia e patologia dos fenômenos chamados ocultos 1902 descrevi um caso desse tipo de ampliação da personalidade 14 A respeito do conceito da Igreja de possessão cf DE TONQUÉDEC Les Maladies nerveuses ou mentales et les manifestations diaboliques prefaciado pelo Cardeal Verdier 15 Nesse contexto pode ser útil ler Aphorismen zur Lebensweisheit de Schopenhauer Parerga und Paralipomena I cap II Sobre o que se é e cap IV Sobre o que se representa 16 Este problema importante foi tratado com minúcias no cap V de Tipos psicológicos 17 Cf descrição excelente da anima em Ulysses Aldrovandus Dendrologiae libri duo p 146 Ela aparecia simultaneamente como muito suave e muito dura e embora mostrasse há quase dois mil anos as caras mais variáveis a modo de um Proteu cumulava de preocupações inquietudes e aflições o amor Suscitado certamente do caos isto é da confusão agatônica do antigo cidadão bolonhês Lucius Agatho Priscus Descrição semelhante encontrase também na Hypnerotomachia de Poliphilo Cf LINDA FIERZDAVID Der Liebestraum des Poliphilo p 205s 18 Cf EMMA JUNG Ein Beitrag zum Problem des Animus 19 Cf o resumo em LÉVYBRUHL La Mythologie primitive 20 Cf LE BON Psychologie der Massen 21 O altjirangamitijna Cf os rituais das tribos australianas SPENCER GILLEN The Northern Tribes of Central Australia bem como LÉVYBRUHL Op cit 22 Lembrome do pânico catastrófico ocorrido em Nova York pouco antes da última guerra mundial depois da emissão radiofônica de uma história fantástica de HG Wells War of the Worlds e que se repetiu recentemente em Quito 23 Cf JUNG Considerações em torno da psicologia da meditação oriental OC 115 24 BERTHELOT Collection des anciens alchimistes grecs II I 3 p 43 45 25 EranosJahrbuch 1935 Este material encontrase ampliado e reelaborado em Psicologia e alquimia 26 RULANDUS Lexicon alchemiae p 327 verbete meditatio 27 IZQUIERDO Praxis Exercitiorum spiritualium p 10 Colloquium aliud non est quam familiariter loqui cum Christo Domino etc O Colóquio nada mais é do que conversar intimamente com Cristo o Senhor 28 Presumivelmente Entretiens journaliers avec le très docte et très habiledocteur Piffoël etc 29Neutestamentliche Apokryphen p 35 30 Um PseudoAristóteles in Rosarium philosophorum 1550 fol Q 31 Largiri vis mihi meum Tu queres darme o que é meu é o modo comum de ler tanto na primeira edição de 1566 in Ars chemica sob o título Septem tractatus seu capitula Hermetis Trismegisti aurei como in Theatr chem 1613 IV e MANGET Bibliotheca chemica curiosa I 400s No Rosarium philosophorum 1550 fol E IV encontrase uma outra versão Largire mihi ins meum ut te adiuvem Dáme o meu direito a fim de que eu te ajude o que representa uma das arbitrariedades interpretativas do anônimo do Rosarium importante porém para a interpretação da alquimia 32 MANGET Op cit p 430b 33 Comprovantes minuciosos in Psicologia e alquimia 84s e O Espírito de Mercúrio 278s e 289 34 Cf a bela oração do Astrampsychos Ἐλϑέ μοι κύριε Ἐρμῆ onde se lê no final Eu sou tu e tu és eu REITZENSTEIN Poimandres p 21 35 MANGET Op cit Semelhante ao professor mediador entre a pedra e o aluno 36 A pedra e sua transformação é representada como a ressurreição do homo philosophicus do segundo Adão Aurora consurgens quae dicitur Aurea hora in Artis auriferae I p 185s como alma humana livro de Krates in BERTHELOT La Chimie ao Moyen Âge III 50 como ser subordinado e superordenado ao ser humano Hic lapis est subtus te quantum ad obedientiam supra te quo ad dominium ergo a te quantum ad scientiam circa te quantum ad aequales Esta pedra está abaixo de ti para obedecer acima de ti para mandar portanto dentro de ti para reconhecer e em torno de ti como igual a ti Rosinus ad Sarratantam in Art aurif I p 310 como vida sanguis est anima et anima est vita et vita lapis noster est o sangue é a alma e a alma é a vida e a vida é nossa pedra Tractatus Aristotelis in Art aurif I p 347 bem como Rachaidib fragmentum in Art Aurif I p 398 e 401 como Maria virgo De arte chimica in Art aurif I p 582 como o próprio homem tu es eius minera et de te extrahitur et in te inseparabiliter manet tu és seu mineral e de ti ele é extraído e em ti ele permanece inseparável Rosinus ad Sarratantam in Art aurif I p 311 Textos de capa Contracapa A imagem de mundo e do ser humano presente na Psicologia Analítica de CG Jung evidencia a especial importância de que se revestem a espiritualidade e a transcendência Em uma carta assim escreve Jung A pergunta decisiva para o ser humano é se ele tem o Infinito como referência E este é o critério de sua vida No seu entendimento o processo terapêutico também está estreitamente ligado com a espiritualidade O problema da cura é um problema religioso A psicanalista junguiana Brigitte Dorst reúne neste volume uma seleção dos escritos mais importantes de CG Jung sobre o tema espiritualidade e transcendência e mostra a grande importância da dimensão espiritual vista pela ótica da Psicologia Analítica Orelhas Durante toda a sua vida CG Jung se ocupou intesamente e de forma crítica com a temática religiosa e espiritual Seu interesse voltouse para o âmbito das experiências espirituais situadas para além de diferentes denominações e confissões igrejas e tradições religiosas A experiência espiritual independentemente da religião era para Jung um fenômeno evidente e presente na alma e desse modo também um fenômeno psíquico A convicção de Jung era esta A meu ver as religiões com tudo o que são e representam têm uma proximidade tão grande da alma humana que a psicologia de modo algum pode ignorálas Em sua Psicologia Analítica Jung procura apresentar uma compreensão da psique como espaço de experiência do numinoso permitindo novos modos de ver fenômenos e experiências religiosas que até aquele momento não haviam sido tratados na Psicologia da Religião como escreve Brigitte Dorst A presente seleção de textos feita por ela e a extensa introdução evidenciam a importância da espiritualidade na Psicologia Analítica e mostram como é grande o leque dos temas espirituais e das tradições religiosas com que Jung se ocupou Brigitte Dorst é professora de Psicologia psicanalista e psicoterapeuta junguiana com consultório em Münster Alemanha É coordenadora científica da Sociedade Internacional de Psicologia Profunda Entre seus trabalhos mais intensos estão os temas da espiritualidade da psicologia dos símbolos da identidade e da velhice Há muitos anos dirige cursos de aprofundamento em Psicologia Analítica bem como um centro de meditação Jogos de poder Fexeus Henrik 9788532653574 280 páginas Compre agora e leia Este livro inclinará a balança ao seu favor Não importa se você for vendedor advogado garçom professor cuidador gerente estratégico estudante ou encantador de cães a meta é ajudálo a dominar a arte de conseguir o que quer e não o que os outros querem Deixeos envolvidos em aulas e pesquisas Atividades assim podem ser interessantes e divertidas mas não são realmente necessárias Mais fácil é parar de ser um seguidor e tornarse um líder Compre agora e leia A linguagem corporal dos lideres Kinsey Goman Carol 9788532648686 304 páginas Compre agora e leia A linguagem corporal é a administração do tempo do espaço da aparência da postura do gesto da prosódia vocal do toque do cheiro da expressão facial e do contato visual A mais recente pesquisa na neurociência e psicologia provou que a linguagem corporal é crucial para a eficácia da liderança e este livro vai mostrar a você exatamente como ela impacta a capacidade dos líderes em negociar administrar a mudança estabelecer a confiança projetar o carisma e promover a colaboração Compre agora e leia Sobre sentimentos e a sombra Jung C G 9788532649249 80 páginas Compre agora e leia Nos anos de 1957 e 1959 CG Jung respondeu em um círculo familiar de forma simples e bastante informal a perguntas referentes ao seu pensamento As exposições realizadas em suíçoalemão foram registradas em fita magnética por um dos participantes Posteriormente essas gravações foram transpostas para linguagem escrita da forma mais fiel e literal possível com o objetivo de tornálas acessíveis ao público não familiarizado com o alemão de Jung e assim surgiu esta obra Compre agora e leia Eu não sou meu cérebro Gabriel Markus 9788532657602 320 páginas Compre agora e leia Este livro visa de maneira universalmente compreensível e a partir de intelecções Einsicht antigas abrir novas perspectivas para a filosofia do espírito O autoconhecimento já se encontra afinal há muito tempo no centro da filosofia e a sua história prévia ajuda a compreender melhor de onde vêm tanto os verdadeiros quanto os aparentes problemas com os quais nos ocupamos até hoje Em que medida deveríamos adequar nossa imagem do ser humano ao progresso tecnológico Para que seja possível lidar de algum modo com questões como essa de maneira sensata devemos examinar de modo mais preciso do que estamos habituados a fazer no nosso dia a dia conceitos de nosso autorretrato tais como consciência espírito Eu pensamento ou liberdade Compre agora e leia Sociedade do cansaço Han ByungChul 9788532650832 80 páginas Compre agora e leia Os efeitos colaterais do discurso motivacional O mercado de palestras e livros motivacionais está crescendo desde o início do século XXI e não mostra sinais de desaquecimento Religiões tradicionais estão perdendo adeptos para novas igrejas que trocam o discurso do pecado pelo encorajamento e autoajuda As instituições políticas e empresariais mudaram o sistema de punição hierarquia e combate ao concorrente pelas positividades do estímulo eficiência e reconhecimento social pela superação das próprias limitações ByungChul Han mostra que a sociedade disciplinar e repressora do século XX descrita por Michel Foucault perde espaço para uma nova forma de organização coercitiva a violência neuronal As pessoas se cobram cada vez mais para apresentar resultados tornando elas mesmas vigilantes e carrascas de suas ações Em uma época onde poderíamos trabalhar menos e ganhar mais a ideologia da positividade opera uma inversão perversa nos submetemos a trabalhar mais e a receber menos Essa onda do eu consigo e do yes we can tem gerado um aumento significativo de doenças como depressão transtornos de personalidade síndromes como hiperatividade e burnout Este livro transcende o campo filosófico e pode ajudar educadores psicólogos e gestores a entender os novos problemas do século XXI Compre agora e leia Table of Contents Folha de rosto Ficha catalográfica Copyright Nota do editor Introdução I As dimensões da Psique O inconsciente pessoal e o inconsciente suprapessoal ou coletivo A função transcendente A autonomia do inconsciente II Simbolismo religioso A função dos símbolos religiosos A cura da divisão III Psicoterapia e religião Introdução à problemática da psicologia religiosa da alquimia Sobre a relação entre a psicoterapia e a direção espiritual Religião e psicologia uma resposta a Martin Buber IV Caminhos Espirituais e Sabedoria Oriental Comentário psicológico sobre o Livro Tibetano da Grande Libertação A ioga e o Ocidente Prefácio à obra de Suzuki A Grande Libertação Considerações em torno da psicologia da meditação oriental Prefácio ao I Ging V Realidade e Transcendência da Psique O real e o suprarreal Sobre a sincronicidade A alma e a morte Sobre o renascimento Textos de capa
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Jung CG 18751961 Espiritualidade e transcendência CG Jung seleção e edição de Brigitte Dorst tradução da introdução de Nélio Schneider Petrópolis RJ Vozes 2015 Título original Schriften zu Spiritualität und Transzendenz ISBN 9788532651242 Edição digital 1 Espiritualidade 2 Jung Carl Gustav 18751961 3 Psicologia transpessoal 4 Psicoterapia I Dorst Brigitte II Tìtulo 1503165CDD1501954 Índices para catálogo sistemático 1 Espiritualidade e transcendência Psicologia junguiana 1501954 2007 Foundation of the Works of CG Jung Zurich Título original alemão Schriften zu Spiritualität und Transzendenz Direitos de publicação em língua portuguesa 2015 Editora Vozes Ltda Rua Frei Luís 100 25689900 Petrópolis RJ wwwvozescombr Brasil Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma eou quaisquer meios eletrônico ou mecânico incluindo fotocópia e gravação ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da editora Diretor editorial Frei Antônio Moser Editores Aline dos Santos Carneiro José Maria da Silva Lídio Peretti Marilac Loraine Oleniki Secretário executivo João Batista Kreuch Diagramação Sheilandre Desenv Gráfico Capa Idée Arte e Comunicação Ilustrações de capa Pinturas da Senhora X paciente de Jung retratando a evolução do processo de individuação In JUNG CG Os arquétipos e o inconsciente coletivo 11 ed Petrópolis Vozes 2014 OC 91 caderno iconográfico quadros 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 ISBN 9788532651242 edição brasileira digital ISBN 9783843602228 edição suíça impressa Editado conforme o novo acordo ortográfico Nota do editor Os números que constam no início dos parágrafos do livro indicam os parágrafos em que se encontram os excertos de textos em seu respectivo volume nas Obras Completas de CG Jung As referências a fontes e as notas entre chaves são de Brigitte Dorst Complementações entre colchetes correspondem ao texto original e provêm em regra das editoras e dos editores do respectivo volume das Obras Completas Sumário Introdução I As dimensões da Psique O inconsciente pessoal e o inconsciente suprapessoal ou coletivo A função transcendente A autonomia do inconsciente II Simbolismo religioso A função dos símbolos religiosos A cura da divisão III Psicoterapia e religião Introdução à problemática da psicologia religiosa da alquimia Sobre a relação entre a psicoterapia e a direção espiritual Religião e psicologia uma resposta a Martin Buber IV Caminhos Espirituais e Sabedoria Oriental Comentário psicológico sobre o Livro Tibetano da Grande Libertação A ioga e o Ocidente Prefácio à obra de Suzuki A Grande Libertação Considerações em torno da psicologia da meditação oriental Prefácio ao I Ging V Realidade e Transcendência da Psique O real e o suprarreal Sobre a sincronicidade A alma e a morte Sobre o renascimento Textos de capa Introdução Brigitte Dorst Tradução de Nélio Schneider Nas últimas décadas na passagem para o século XXI uma quantidade imensa de temas religiosos penetrou na consciência coletiva Nesse processo um novo conceito começou a se impor espiritualidade Por trás dele afloraram as velhas perguntas da humanidade De onde viemos Para onde vamos Qual é o sentido da nossa existência Quem ou o que nós humanos somos neste cosmo No campo da psicologia houve nova abertura e disposição para reconhecer religiosidade e espiritualidade como temas importantes Ocorreu uma inversão de tendências uma mudança de paradigmas tendo como ponto de partida a América do Norte desenvolveuse a assim chamada Psicologia Transpessoal espiritualidade e consciência se converteram num importante campo de investigação e análise A Psicologia Transpessoal que foi edificada sobre as bases da Psicologia Humanista caracterizase por uma abertura especial para os conhecimentos psicológicos filosóficos e espirituais de todas as tradições religiosas Nela confluem diversos caminhos do conhecimento de forma interdisciplinar psicologia e psicoterapia tradições espirituais e conhecimento místico adquirido pela experiência história da religião e antropologia xamanismo e outras terapias alternativas doutrinas sapienciais orientais pesquisa da consciência conhecimentos ecológicos e ciências naturais modernas Uma autodefinição mais recente diz O objeto da Psicologia Transpessoal é a exploração do potencial máximo da humanidade bem como o conhecimento a compreensão e a realização de estados de consciência unificadores espirituais e transcendentes 1 As imagens de mundo e ser humano da Psicologia Transpessoal só são compreensíveis sobre o pano de fundo da nova imagem do mundo desenvolvida nas últimas décadas com base nos conhecimentos da física Fundamentais para a nova imagem do mundo são sobretudo os conhecimentos da Física moderna entre outros a Teoria da Relatividade e a Teoria Quântica a Teoria da Autoorganização e da Autopoiese a Teoria da Evolução a Teoria dos Sistemas a Teoria dos Campos Morfogenéticos e a Teoria do Holograma Cada ente humano como parte dos processos descritos nessas teorias constitui um ponto nodal num sistema de constante troca de informações em todos os seus processos vitais ele está alojado no ecossistema ser humanouniverso enquanto processo total unificado O conceito central da Psicologia Transpessoal é o da consciência A consciência transpessoal pode ser circunscrita com conceitos como presença integral permeabilidade amplitude aberta emocionarse sentirse profundamente tocado por energias numinosas vivência da unidade universal experiências místicas de convergência do Simesmo individual com o absoluto a experiência do que há de mais baixo e de mais elevado na alma humana tratase portanto de experiências que em regra são associadas com os conceitos espiritualidade e mística De acordo com a concepção de diversos pesquisadores de tendências a espiritualidade se converteu num movimento mundial David Tacey fala de uma revolução espiritual 2 sendo a espiritualidade entendida sobretudo como conexão e relação formas de sentirse unido a uma totalidade maior bem como um transcender do ego e do individualismo 3 O último ponto vale especialmente para as culturas ocidentais Ao mesmo tempo criticase uma psicologia desalmada que teria tabulizado todas as questões e experiências religiosas em sua imagem do ser humano Pesquisadores e cientistas que se ocupam com experiências espirituais como formas da realidade psíquica valemse de métodos consagrados para investigálas Temse chegado a resultados impressionantes nas pesquisas sobre a conexão entre espiritualidade e saúde como por exemplo nas áreas da redução do estresse da expectativa de vida da redução de doenças cardíacas e circulatórias e do incremento do bemestar Tendo como fundamento um paradigma pósmoderno os físicos e pesquisadores do cérebro igualmente participam de projetos de pesquisa transpessoais Nesse meiotempo a Psicologia Transpessoal também está sendo mais respeitada mesmo que a postura de certos céticos às vezes lembre a seguinte breve parábola sufista Que absurdo disse a moscadeumdia quando ouviu pela primeira vez a palavra semana Não são poucos os especialistas para os quais uma psicologia que se orienta na espiritualidade ainda é suspeita de esoterismo Em círculos psicanalíticos ela às vezes é tida como regressão mórbida à infância Essa suspeita recai com frequência ainda maior no âmbito da psicologia acadêmica sobre a Psicologia Analítica de CG Jung que pode ser entendido como precursor da Psicologia Transpessoal As análises feitas por Jung a respeito de questões e temas espirituais são uma antecipação do que já está estabelecido hoje na segunda década do século XXI em termos de concepções novas e integradoras há ligações com a espiritualidade em segmentos da psicoterapia bem como na área da psicologia da saúde na medicina no acompanhamento de pessoas com enfermidades que ameaçam a vida no trabalho de albergagem e acompanhamento a moribundos 4 Espiritualidade e transcendência hoje Espiritualidade é um termo carregado de significados Etimologicamente esse conceito está ligado ao termo latino spiritus espírito e significa cheio de espírito ou inspiradoanimado como orientação ou práxis vital intelectualespiritual A espiritualidade se refere a todas as formas de religiosidade independentemente de confissões e igrejas e é tida hoje como o conceito superior que abrange uma pluralidade de fenômenos religiosos Sínteses e associações novas orientais e ocidentais surgem em muitos lugares Para Raimon Panikkar a palavra espiritualidade é uma reação branda à calcificação das religiões 5 No extremo oposto de uma espiritualidade ou então religiosidade modificada e aberta para o mundo observase o enrijecimento das aspirações fundamentalistas como expressão de uma resistência a mudanças e inovações motivada pelo medo A espiritualidade abarca as religiões e independe das tradições remetendo desse modo às dimensões profundas da experiência que não são mais perceptíveis em muitas formas de religião Um importante mestre espiritual do nosso tempo o mestre zen e monge beneditino Willigis Jäger descreve isso assim Um número cada vez maior de pessoas está perguntando hoje pelo sentido de sua existência e as religiões tradicionais praticamente não conseguem mais oferecerlhes respostas dignas de crédito A crença em Deus dá lugar hoje ao anseio por uma experiência espiritual com essa realidade última 6 Jäger prossegue A religiosidade é um traço básico da nossa natureza humana Tratase da tendência profundamente enraizada em nós de abrirnos para a totalidade e a unidade Compartilhamos essa tendência com todos os seres vivos pois ela é a força motriz da evolução Até agora ela se manifestou nas multiformes religiões do mundo pois fora das religiões durante milênios não houve separação entre religião e espiritualidade Agora porém presenciamos como essa força religiosa está se desvinculando das religiões tradicionais Encontro cada vez mais pessoas que são religiosas sem confessar o credo de nenhuma religião Identifico nisso um vestígio da evolução progressiva da consciência 7 A espiritualidade como fenômeno universal que comprovadamente deixou suas marcas no mundo todo nos últimos 30000 anos de história é uma constante antropológica em múltiplas formas de manifestação Dentre o leque de significados da espiritualidade Anton A Bucher fala dela como conexão e unidade connectedness conectividade como relação com Deus ou com um ser superior como conexão com a natureza como relação com outros como relação com o Simesmo como formas de práxis específica oração e meditação como capacidades e experiências paranormais p ex experiências de quase morte e como autotranscendência 8 Hoje em dia é muito natural que a práxis espiritual faça parte da vida cotidiana de muitas pessoas Exercícios meditativos são vias trilhadas por toda a vida e que conduzem o ser humano para dentro de si para outros espaços da consciência e para um maior conhecimento de si Tratase de chegar à realidade por trás da realidade de fazer experiências num espaço transpessoal da consciência experiências que não se consegue captar nem com os conceitos de nossa linguagem cotidiana nem com os conceitos da ratio O interesse disseminado pela espiritualidade e o anseio por experiências próprias pode ser reconhecido também no número crescente de grupos de meditação e ofertas de meditação Em quase todas as cidades há ofertas muito variadas de ioga cursos de meditação e contemplação exercícios espirituais cristãos bem como sesshins zen retiros de meditação zen ou recitação de mantras hinduístas Cresce constantemente o número de pessoas que com toda naturalidade programam momentos de quietude de recolhimento e de meditação na sua rotina diária Toda a área da formação contínua e de atualização incluindo as atividades de supervisão e coaching treinamento de administradores também oferece hoje com toda naturalidade exercícios de Qigong treinamento de atenção ou percepção plena e meditação budista A pluralidade e a diversidade desses grupos de meditação e dessas ofertas também deixam claro que as pessoas de hoje têm uma grande carência de experiências espirituais e não de ofertas de crença e que as tradições místicas do Oriente e do Ocidente se tornam herdeiras coletivas da humanidade independentemente da educação religiosa recebida ou do entorno cultural Isso vale sobretudo para as pessoas do hemisfério ocidental Nessa compreensão de espiritualidade nós seres humanos somos uma forma da consciência encarnada capaz de se orientar para fora e para dentro de si mesma No espaço transpessoal da consciência o ser humano se percebe conectado como parte de uma totalidade maior Isso corresponde também aos conhecimentos das ciências naturais atuais A palavrachave transcendência aparece na maioria das publicações como um subaspecto da espiritualidade Etimologicamente transcendência está ligada às expressões latinas trans por cima além de e scandere ascendergalgar escalar isto é tratase de transpor um limite Mas sob o conceito da transcendência entendese também o absoluto o divino a realidade primeira propriamente Na teologia e na filosofia transcendência se refere ao âmbito situado além da experiência sensual O par de conceitos complementar imanência e transcendência remete à diferença fundamental entre os dois âmbitos o do aquém e o do além que foi objeto de análises reiteradas desde a teoria platônica das ideias na Antiguidade passando pelos Padres da Igreja e os filósofos medievais até chegar aos pensadores da Era Moderna como por exemplo Kant Hegel Scheler e Jaspers As representações metafísicas de uma transcendência de Deus foram substituídas no decorrer da história por uma concepção antropológica de transcendência como anseio humano de ir além de si mesmo Na Pósmodernidade deplorase uma perda da transcendência como perda de sentido como crise espiritual como perda da sensação de acolhimento e segurança na vida Na compreensão atual bastante ampliada a transcendência referese também à transposição das fronteiras do Eu a formas de referência como por exemplo à conexão íntima com uma pessoa que se ama mas também ao modo de ocuparse com o inconsciente Transcender tem muito a ver com sermos capazes de renunciar ao nosso Eu e não obstante conseguirmos viver plenamente seguros de nós mesmos Abrimonos para uma totalidade maior para o mundo para o semelhante para o inconsciente 9 Espiritualidade e transcendência em CG Jung O título do volume de textos selecionados das Obras Completas de CG Jung apresentado aqui é Espiritualidade e transcendência Entretanto quem procura pela palavrachave espiritualidade em passagens das Obras de CG Jung não encontra muita coisa A palavra espiritualidade como é usada hoje em dia não era usual na época de Jung Religião e religiosidade eram as designações estabelecidas A convicção de Jung é esta Minha opinião é que as religiões se acham tão próximas da alma humana com tudo quanto elas são e exprimem que a psicologia de maneira alguma pode ignorálas OC 112 172 Ele se preocupou em desenvolver uma psicologia da experiência religiosa Jung ocupase portanto com a experiência religiosa que para ele é um fenômeno psíquico Ele diz Deus nunca falou com o ser humano senão pela alma e a alma o entende e nós percebemos isso como algo psíquico Quem chama a isso de psicologizar renega o olho que vê o sol 10 Jung sustenta uma compreensão da psique como espaço de experiência do numinoso defendendo novos modos de ver fenômenos e experiências religiosos que até aquele momento não haviam ocorrido na psicologia da religião Esses fenômenos e experiências se revestem de grande importância para ele Por isso ele diz Se tentarmos definir a estrutura psicológica da experiência religiosa isto é da experiência integradora curadora salvadora e abrangente parece que a fórmula mais simples que podemos encontrar é a seguinte na experiência religiosa o homem se depara com um outro ser espiritual superpoderoso OC 104 655 As experiências espirituais põem as pessoas em contato com âmbitos situados além da consciência cotidiana Jung fala às vezes do transcendenteempírico O próprio Jung precisou lutar por muitos anos com a religião e imagens de Deus como forças eficazes Testemunha dessa luta é também o assim chamado Livro Vermelho o documento de um autoexperimento especial de Jung e de suas explorações do inconsciente O conceito da transcendência possui diversos significados em Jung A descrição do que ele caracteriza como a função transcendente psicológica trata da união de conteúdos conscientes e inconscientes Ele enfatiza que isso não deve ser entendido como algo de misterioso e por assim dizer suprassenssível ou metafísico mas uma função psicológica que por sua natureza podese comparar com uma função matemática de igual denominação OC 82 131 O que se pretende com isso é abolir a separação entre a consciência e o inconsciente para compensar as unilateralidades da consciência Ele enfatiza que com transcendente não quer designar nenhuma qualidade metafísica mas o fato de que por meio dessa função é criada uma transição de uma mentalidade para outra OC 6 833 Na função transcendente Jung descreve por conseguinte a capacidade fundante da transposição da fronteira entre as porções conscientes e as inconscientes da psique 11 A transcendência da psique da qual ele fala em outras passagens referese a experiências espirituais de conexão com o divino com o absoluto a ter como referência algo mais abrangente maior às possibilidades de experiência que transcendem a consciência cotidiana à transposição das fronteiras entre imanência e transcendência Que o mundo tanto por fora como por dentro é sustentado por bases transcendentais é algo tão certo quanto nossa própria existência OC 14II 442 A transcendência da psique permite experimentar outra realidade por trás da realidade Jung se interessou por demonstrar isso reiteradamente Tratase do conhecimento de que tudo o mundo físico e psíquico corpo e espírito o que pode ser apreendido e percebido com os sentidos e o mundo invisível do inconsciente faz parte de uma totalidade indivisível perfazendo um campo da realidade una chamada por Jung de unus mundus Como mostra o conjunto de sua obra Jung ocupouse durante toda a sua vida com questões espirituais transculturais e transpessoais Seu interesse voltouse para o âmbito das experiências espirituais situadas além de confissões igrejas e tradições religiosas Em sua biografia Memórias sonhos e reflexões ele descreve sua atitude espiritual básica Jung diz ali a seu respeito Constato que todos os meus pensamentos giram em torno de Deus como os planetas em torno do sol e como estes são atraídos irresistivelmente para Ele como um sol Eu sentiria como o maior dos pecados se tivesse que oferecer resistência a esse poder 12 E ele confessa A natureza a alma e a vida se manifestam a mim como a divindade revelada 13 MarieLouise von Franz que por muitos anos cooperou com Jung também o descreve como uma pessoa que com paixão e sofrimento extremos pugnava sem cessar com o problema de Deus Ele relacionava com Deus tudo o que acontecia com ele e no mundo e indagava dele o porquê e o para quê 14 Sua postura também ganha expressão nas seguintes sentenças Tudo que tem vida sofre mudança Não deveríamos nos contentar com tradições imutáveis OC 1811 1652 Como se sabe em questões religiosas não é possível entender o que não foi interiormente experimentado OC 12 15 O passo na direção de uma consciência mais elevada leva a abandonar todas as coberturas e seguranças OC 13 25 Encontro com CG Jung Os textos selecionados para este volume que surgiram em épocas bastante diferentes do processo produtivo de Jung visam mostrar sobretudo isto o modo como Jung pesquisou por noções e conhecimentos num vasto campo de questões e temas religiosos e psicológicos e como ele entendeu a si mesmo como alguém empenhado num processo de busca aberto e inconcluso Em muitas coisas Jung estava à frente do seu tempo intuindo e pesquisando Algumas coisas talvez só possam mesmo ser entendidas reconhecidas e aceitas agora com o atual estado de consciência Sua obra é um gigantesco filão de conhecimentos psicológicos pensamentos filosóficos saber antropológico e sabedoria de vida Nela abrangentes estudos empíricos psicológicos antropológicos etnológicos e de ciência das religiões estão associados com material tratando de casos clínicos Desse modo ele reuniu as bases da Psicologia Analítica e sua terapia Jung não foi nenhum sistemático e não gostava de conceitos abstratos mas estava constantemente em busca de novas maneiras de descrever o que para ele eram fenômenos psíquicos básicos Suas ideias estavam em constante evolução rodeando o tema seguidamente se aproximando dele por meio de formulações às vezes paradoxais Jung deixa o leitor participar de suas intuições de seus conhecimentos dos resultados de suas pesquisas das experiências cotidianas dos seus sentimentos e pensamentos Há coisas que estão sujeitas à limitação da temporalidade em correspondência à sua frase Todo o entender está sujeito à categoria da temporalidade OC 14I 207 Hoje algumas das formulações de Jung soam estranhas e parecem antiquadas às vezes não é fácil captar o sentido do que está sendo dito Naturalmente também há algumas coisas no pensamento de Jung que hoje estão ultrapassadas e não se sustentam mais onde se vê que Jung foi filho do seu tempo como por exemplo em relação à polaridade dos sexos Evoluções das ideias e dos conhecimentos de Jung podem ser encontradas em representantes posteriores da Psicologia Analítica como por exemplo Verena Kast Ingrid Riedel ou Murray Stein Portanto quem encontraremos neste livro Entre outras coisas o Jung tateando em busca de compreensão e lutando por ela o pensador crítico da cultura o Jung profético o cientista pesquisador o sábio experimentado As dimensões espirituais da Psicologia Analítica Na imagem de ser humano de Jung o transcendente como ponto de referência constitui o aspecto decisivo da vida humana A pergunta decisiva para o ser humano é esta tens o infinito como referência Este é o critério de sua vida Quando alguém entende e sente que está conectado ao ilimitado já nesta vida modificamse seus desejos e sua atitude No final das contas só valemos algo por causa do essencial e quando não se tem isto a vida foi desperdiçada 15 O próprio Jung confessa O interesse principal do meu trabalho não reside no tratamento de neuroses mas na aproximação ao numinoso 16 Ele se defende da acusação de ter construído uma psicologia que injustificadamente conectaria a alma com temas e dimensões religiosas Não fui eu que inventei uma função religiosa para a alma o que eu fiz foi apresentar fatos comprovando que a alma é naturaliter por natureza religiosa OC 12 14 E em outra passagem ele escreve isto A imagem de Deus não é uma invenção que se achega ao ser humano sua sponte espontaneamente do que se pode ter suficiente ciência quando não se prefere trocar a verdade pela ofuscação advinda de preconceitos ideológicos OC 9II 303 Todas as contribuições de Jung à psicologia da religião devem ser vistas como construídas sobre a base de sua tese inicial a necessidade psíquica da religio da religação a algo maior a algo inteiro Seguidamente ele se empenha por delimitar a problemática psicológica em relação à problemática teológica Ele recusa a pergunta pela existência de um Deus transcendente e não obstante acercase desse tema insistentemente Ele ressalta que ele próprio na condição de psicólogo nada pode dizer sobre Deus em si mas somente alguma coisa sobre imagens e símbolos de Deus e nada mais Todavia justamente estes podem transmitir experiência espiritual dado que elas têm conteúdos que transcendem a consciência Símbolos são imagens significativas Eles surgem quando algo exterior é associado com um conteúdo espiritual um significado ou um sentido Símbolos não são signos visíveis de uma realidade não visível Na compreensão da Psicologia Analítica de CG Jung os símbolos transportam conteúdos psíquicos inconscientes até a consciência Eles têm um efeito integral sobre o pensar e o sentir sobre a percepção a fantasia e a intuição Eles unem os lados conscientes e inconscientes da psique Símbolos sempre são mais do que meros signos Eles estão altamente carregados de energia e por vezes têm efeitos misteriosos Quem se envolve com símbolos abandona o superficial e se põe a caminho das profundezas Os símbolos arquetípicos e assim também as imagens de Deus do simbolismo religioso possuem caráter numinoso e são chaves para as camadas profundas da existência humana 17 Enunciados sobre o divino são para Jung portanto descrições de possibilidades de experiências espirituais da psique humana eles não são enunciados teológicos mas enunciados psicológicos A formulação psicológica da questão dirige o foco para o que se passa na alma e para o que lhe é próprio No entanto Jung chega ao ponto de dizer Em todo caso a alma precisa ter dentro de si uma possibilidade de relação ou seja uma correspondência com a essência de Deus senão jamais poderia estabelecer se uma conexão Essa correspondência é em termos psicológicos o arquétipo da imagem de Deus OC 12 11 O encontro com os campos de força dos arquétipos e com suas simbolizações também é para Jung uma experiência numinosa Ele adverte Sempre que se tratar de configurações arquetípicas tentativas de explicação personalistas induzem a erro OC 10 646 Para ele a ampliação da consciência Jung a chama de elevação da consciência que também pode acontecer no confronto com conteúdos arquetípicos é destinação humana Decerto é por isso que a vida terrena tem um significado tão grande e aquilo que uma pessoa leva para o além na hora de morrer se reveste de tão grande importância só aqui na vida terrena onde se dá o embate dos opostos podese elevar a consciência universal Essa parece ser a tarefa metafísica do ser humano 18 O desenvolvimento da consciência humana tem para Jung um significado cósmico porque nele o universo reconhece a si mesmo o ser humano existe para que o Criador se torne consciente de sua criação e o ser humano de si mesmo 19 O conceito de Simesmo da Psicologia Analítica O conceito de Simesmo Selbst da Psicologia Analítica constitui um conceito central que abrange dimensões espirituais e se diferencia bastante do conceito de Simesmo de outras correntes psicológicas O Simesmo junguiano é uma expressão abrangente para a totalidade e integralidade do potencial psíquico de um ser humano Os enunciados sobre o Simesmo por um lado devem ser obtidos mediante o procedimento empírico e por outro lado esse conceito transcende as possibilidades racionais de descrição O Simesmo não é só o ponto central mas também o perímetro que engloba a consciência e as coisas inconscientes OC 12 44 Ao mesmo tempo ele é o centro do qual procedem todos os impulsos vitais criativos Na interação entre o Eu o centro da consciência e o Si mesmo efetuase o processo da vida como autorrealização como processo de individuação O conceito de individuação de Jung o coração da Psicologia Analítica pode ser reduzido a esta fórmula Tornate quem és Temse em mente com isso um processo de desdobramento progressivo da personalidade no confronto entre o Eu e o Simesmo entre o consciente e o inconsciente como um processo de amadurecimento humano criativo arquetipicamente determinado O Simesmo determina e estrutura todos os processos psíquicos de desenvolvimento e nesse sentido pode ser visto em última análise como o transcendente numinoso e conceitualmente inapreensível A centralização no Simesmo como ponto central próprio e misterioso da pessoa o deslocamento do centro de gravidade para o eixo EuSimesmo no processo de individuação sobretudo na segunda metade da vida pode levar a mudanças de grande alcance na compreensão do Simesmo e do mundo No Simesmo são possíveis experiências de unidade o despontar de uma unidade universal na qual foi abolida a cisão entre sujeito e objeto individual e coletivo pessoal e suprapessoal Temas espirituais e perguntas pelo sentido em tempos de crise Temas espirituais emergem com frequência quando os padrões costumeiros da vida são rompidos e a vida se torna questionável Isso pode ser desencadeado por diversas formas de crises e acontecimentos que mudam a vida experiências que transcendem a consciência cotidiana ou também uma insatisfação crescente a experiência de carência uma inquietação cada vez maior e a sensação de que falta algo essencial na vida Quando isso acontece algumas pessoas saem à procura é um movimento de busca na profundeza na esfera da religiosidade e transcendência A espiritualidade também se expressa em tais desejos por mais profundidade e autoconhecimento mais abrangente No campo da saúde a espiritualidade adquire importância crescente Doença e saúde atingem todos os níveis do ser É verdade que as ciências da saúde em boa parte ainda encontram dificuldades para estabelecer uma relação entre espiritualidade e saúde que seja relevante também para a pesquisa Mas tornaramse fluidas as fronteiras entre ofertas de saúde de bemestar e de terapia entre abordagens orientadas em recursos entre curas alternativas e concepções de tratamento médico ocidentais tradicionais Já em 1995 em um posicionamento da Organização Mundial da Saúde OMS a qualidade de vida foi descrita como multidimensional e pelo menos quatro categorias foram amplamente detalhadas as dimensões física psíquica social e espiritual A dimensão espiritual em um paradigma contemporâneo de saúde é elaborada especificamente também por Ralph M Steinmann no estudo Espiritualidade a quarta dimensão da saúde 20 Sobretudo a bibliografia especializada norteamericana entrementes oferece pesquisas abrangentes sobre a importância da espiritualidade para a saúde Os efeitos da práxis espiritual e da orientação de vida espiritual sobre a saúde podem ser provados empiricamente como por exemplo redução do estresse diminuição de enfermidades cardíacas e circulatórias fortalecimento da imunidade redução de riscos de infarto menor necessidade de medicamentos internações mais raras em hospitais amenização de depressões bem como prolongamento da vida 21 Também já há numerosas investigações sobre a relação entre espiritualidade e o histórico de doenças cancerosas 22 Cada vez mais pessoas demandam acompanhamento e apoio em seu processo de enfermidade Num estudo norteamericano mais recente para o qual foram consultadas pacientes com câncer em estado avançado 72 se queixaram de total falta de apoio e atenção ou de apoio e atenção apenas mínimos para suas necessidades espirituais por parte do pessoal clínico 23 Para muitas pessoas contudo espiritualidade e religiosidade são recursos importantes e isso especialmente em conexão com a superação de doenças o envelhecimento e o acompanhamento a moribundos Uma enfermidade que ameaça a vida como por exemplo o câncer leva muitos atingidos a submeter sua vida a um exame A doença impõe limites à possibilidade de planejar sua própria vida muda prioridades Ela pode ser entendida como um chamado especial da vida para mudar a valoração do que é importante e do que não é importante e levar a pessoa a perguntar criticamente pelo sentido do seu próprio modo de viver Tal enfermidade é para muitas pessoas um memento mori lembrese de que terá de morrer que as confronta com a vulnerabilidade e finitude da vida Justamente em crises da vida nas situações de transição e nas rupturas da vida em perdas repentinas de uma pessoa querida ou no diagnóstico de doenças que ameaçam a vida irrompe a pergunta pelo sentido As crises andam de mãos dadas com sentimentos de abandono existencial impotência e ameaça Golpes do destino e acontecimentos que mudam repentinamente a vida bem como a incapacidade de dar conta deles com seus próprios recursos frequentemente constituem o motivo pelo qual as pessoas buscam auxílio e acompanhamento terapêuticos 24 Na análise e na terapia também afloram temas religiosos e perguntas pelo sentido O trabalho terapêutico toca a esfera das perguntas existenciais básicas e por conseguinte exige de ambos terapeuta e paciente que se envolvam com essas questões É o que enfatiza Ingrid Riedel O que distingue a psicologia junguiana de todas as demais correntes e caracteriza o lugar especial que ela ocupa na psicologia profunda é o fato de ter seu centro de gravidade onde se trata da busca de sentido e da pergunta pelo sentido 25 A temática religiosa esse sempre foi o entendimento de Jung é inerente ao processo de análise e ao processo de individuação terapeuticamente acompanhado 26 Quando se trata de cura na terapia quando se trata de recuperar a saúde do ser humano inteiro o espaço de experiência da terapia precisa estar aberto para o numinoso para a busca de sentido e para todas as questões espirituais e religiosas que são parte inseparável de sua existência humana Não é por acaso que Heil salvação heilen curar e heilig santo provêm do mesmo radical Psicoterapia e medicina não podem reduzir o ser humano nem somaticamente nem psiquicamente Elas precisam aceitálo e tratálo como unidade de corpo espírito e alma dotada do anseio e da capacidade para a transcendência Para Jung a individuação significa sempre também o confronto com o sentido e a falta de sentido Pessoas que vivem conscientemente não são poupadas desse confronto O processo de individuação é um esforço vitalício visando à tomada de consciência e à inteireza psíquica Nesse sentido a via da individuação também é uma quest isto é uma jornada de busca espiritual A busca por sentido por uma base de sustentação é entendida na Psicologia Analítica como uma profunda necessidade a priori do ser humano Para CG Jung enfermidades psíquicas eram expressão de perda de sentido e do Simesmo um sofrimento da alma que não encontrou seu sentido OC 11 497 Para ele a perda de sentido e a falta de sentido na vida têm importância decisiva na etiologia das neuroses Isso vale também para as pessoas de hoje A nova intransparência do mundo 27 como diz Jürgen Habermas leva à insegurança à perda de orientação e ao isolamento A sociedade do quem pode mais chora menos com suas assim chamadas agências egotistas e a mudança e perda de valores ligadas a esses processos de mudança social lançam muitos em um vácuo existencial incluindo os que aparentemente têm tudo do que se vive mas pouco ou nada do para quê vale a pena viver Jung enfatiza Como o corpo carece do alimento e não de um alimento qualquer mas daquele que lhe apetece assim a psique precisa do sentido do seu ser OC 13 476 Por conseguinte experiências de sentido diz a psicanalista junguiana Ursula Wirtz muitas vezes têm o caráter das vivências numinosas que nos tocam profundamente e permitem que nos conscientizemos da existência de outra realidade que transcende nossa consciência cotidiana e ainda assim tornase experimentável como pertencente a nós Assim o sentido pode ser percebido como um chegar em casa ou um chegar ao destino uma descoberta daquilo que sempre já fomos Na Psicologia Analítica esse nível transpessoal e a pergunta pelo sentido fazem parte da base de sustentação da práxis terapêutica 28 Sobre este volume de textos selecionados A intenção desta seleção de textos é oferecer ideias básicas sobre a temática espiritualidade e transcendência a partir da extensa obra completa de CG Jung O livro só permitirá um vislumbre da multiplicidade dos temas espirituais com os quais Jung se ocupou ou mais precisamente dos temas que se apossaram dele Tendo em vista que Jung frequentemente aborda questões fundamentais de espiritualidade e transcendência que se encontram dispersas por toda a sua obra seria de antemão inviável querer levar em conta todos os textos relativos ao tema A seleção já não pôde ser exaustiva porque o espaço disponível para a publicação impossibilitou o acolhimento de alguns trabalhos como por exemplo o escrito bastante extenso Resposta a Jó OC 114 553758 A compilação não se baseou em aspectos cronológicos mas em pontos de vista de conteúdo Surgiu um mosaico possível e multifacetado sobre o tema espiritualidade e transcendência Renunciei conscientemente a reunir os highlights destaques aforísticos meu interesse foi antes possibilitar às leitoras e aos leitores o acompanhamento com base nos textos escolhidos das linhas de pensamento das ponderações e dos processos cognitivos de Jung Essa seleção de textos destinase a pessoas que se preocupam com o desenvolvimento e a autorrealização dos seus potenciais que escutam no seu íntimo o chamado Tornate quem és Ele se dirige a leitoras e leitores que com franca curiosidade gostariam de entender mais daquilo que CG Jung chamou de a realidade da alma OC 12 9 e que estão dispostos a acompanhar os processos de busca de Jung e deixarse interpelar e inspirar por ele Não se trata da indicação de um caminho seguro mas de um perguntar aprofundado Tratase de um encorajamento para que se ouse adentrar o espaço interior da sua própria psique e avançar em consonância com as ideias de Jung Tratase de um encontro com Jung como alguém que foi dominado pelo mistério da alma A leitura dos escritos de Jung pode transmitir um saber norteador no campo da psicologia da religião da história da religião e da cultura inclusive no tocante às atuais perguntas pelo sentido Numa entrevista Ingrid Riedel que com suas numerosas publicações possibilitou que muitas pessoas tivessem acesso à Psicologia Analítica formulou isso assim Pois tratase em última análise da pergunta pelo sentido e da localização na realidade atual Muitas vezes dispomos de uma ciência muito exata dos fatos em contextos isolados mas o que falta é a visão mais abrangente Nesse tocante a psicologia junguiana pode proporcionar acessos e ela não deve ser compreendida como esoterismo mas pode ser fundamentada comunicada compartilhada e desse modo está aberta para todo o horizonte da experiência do jeito que este hoje está sendo buscado incluindo a espiritualidade e a religião Isso é algo que atrai amplos círculos mesmo que na atividade científica oficial esteja se disseminando a mera racionalidade que prefere se fechar para as perguntas pelo sentido 29 Os textos de Jung podem estimular acima de tudo a entrar em diálogo interior consigo mesmo envolverse com questões da espiritualidade e da transcendência encontrar um horizonte ampliado mergulhar mais profundamente em dimensões da nossa própria psique Exatamente a isso ele encoraja É preciso ocuparse consigo mesmo senão não há como tornarse alguém senão nem é possível desenvolverse OC 18II 1813 O objetivo do diálogo interior consigo mesmo é em última análise este Quanto mais alguém se torna consciente de si mesmo mediante o autoconhecimento e o agir correspondente tanto mais desaparece aquela camada do inconsciente pessoal acumulada sobre o inconsciente coletivo Por essa via surge uma consciência que não está mais enredada no mundo mesquinho e pessoalmente sensível do Eu mas que participa de um mundo mais amplo do objeto Essa consciência ampliada não é mais aquele emaranhado sensível e egoísta de desejos temores esperanças e ambições pessoais que precisa ser compensado ou então também corrigido por tendências contrárias pessoais e inconscientes mas é uma função relacional vinculada ao objeto ao mundo a qual transfere o indivíduo para dentro de uma comunhão incondicional compromissiva e indissolúvel com o mundo OC 7 275 Fogo e vento Quando eu tiver me tornado póstumo tudo o que antes era fogo e vento será conservado em álcool e convertido em preparados sem vida Assim os deuses são sepultados em ouro e mármore e os mortais comuns como eu em papel 30 Jung endereçou estas palavras certa vez com o senso de humor que lhe era peculiar à Baronesa von der Heydt A intenção desta seleção de textos é permitir que se experimente algo do fogo e vento espirituais que impulsionaram Jung em toda a sua vida buscando investigando e lutando por conhecimento Para as leitoras e os leitores que se deixarem contagiar pelo entusiasmo de Jung eles serão testemunhos vivos e não preparados sem vida Referências BALBONI TA et al Religiousness and Spiritual Support Among Advanced Cancer Patients and Associations with EndofLife Treatment Preferences and Quality of Life Journal of Clinical Oncology vol 25 n 5 2007 p 555560 BISCHOF I DELLA CHIESA M Gespräch mit Ingrid Riedel ein Lebensrückblick Konstanz am 9 September 2011 Analytische Psychologie vol 168 n 2 2012 p 238255 BUCHER AA Psychologie der Spiritualität Handbuch Weinheim Beltz 2007 DORST B Lebenskrisen Die Seele stärken durch Bilder Geschichten und Symbole Mannheim Walter 2010 Therapeutischer Umgang mit Schicksals und Sinnfragen Zum Verhältnis von Psychotherapie und Spiritualität In NEUEN C RIEDEL I WIEDEMANN HG eds Freiheit und Schicksal Vom therapeutischen Umgang mit Zeit und Lebensgeschichte 3511 p 2008 Düsseldorf Walter Therapeutisches Arbeiten mit Symbolen Wege in die innere Bilderwelt Stuttgart Kohlhammer 2007 CG Jung und die Transpersonale Psychologie JungJournal Forum für Analytische Psychologie vol 1112 2004 p 2229 GALUSKA J Einführung In GALUSKA J ed Den Horizont erweitern Die transpersonale Dimension in der Psychotherapie Berlim Leutner 2003 HABERMAS J Die neue Unübersichtlichkeit 7 ed Frankfurt am Main Suhrkamp Kleine politische Schriften V JÄGER W Die schönsten Texte von Willigis Jäger Perlen der Weisheit Freiburg im Breisgau Herder 2010 Ed por C Quarch e E Walcher JUNG CG Briefe 3 vols Ölten Walter 19721973 Ed por A Jaffé em colaboração com G Adler Erinnerungen Träume Gedanken SolothurnDüsseldorf Walter 1971 Anotado e ed por A Jaffé Ed Esp Gesammelte Werke GW 20 vols ÖltenDüsseldorf Walter 1971 Ed por L JungMerker et al KAST V Die Transzendenz der Psyche In EGNER H ed Psyche und Transzendenz im gesellschaftlichen Spannungsfeld heute Düsseldorf Walter 2000 p 3355 PANIKKAR R Vorwort In JÄGER W Westöstliche Weisheit Visionen einer integralen Spiritualität Stuttgart Theseus 2007 RIEDEL I Die Welt von innen sehen Gelebte Spiritualität Düsseldorf Patmos 2005 STEFANEK M McDONALD PG HESS SA Religion spirituality and cancer Current Status and methodological challenges Psycho Oncology vol 14 2004 p 450463 STEINMANN RM Spiritualität die vierte Dimension der Gesundheit Berlim LIT 2008 TACEY D The Spiritual Revolution The Emergence of Contemporary Spirituality Nova York BrunnerRoutledge 2004 VON FRANZ ML CG Jung Leben Werk und Visionen Krummwisch bei Kiel Königsfurt 2001 WIRTZ U ZÖBELI J Hunger nach Sinn Menschen in Grenzsituationen Grenzen der Psychotherapie Stuttgart Kreuz 1995 1 LAJOIE SHAPIRO apud GALUSKA Einführung p 8 2 TACEY The Spiritual Revolution 3 Cf BUCHER Psychologie der Spiritualität p 3 4 Cf DORST Jung und die Transpersonale Psychologie 5 PANIKKAR Vorwort p 8 6 JÄGER Westöstliche Weisheit p 80 7 JÄGER Die schönsten Texte p 131 8 Cf BUCHER Psychologie der Spiritualität p 2434 9 KAST Transzendenz der Psyche p 45 10 JUNG Briefe I p 132 11 Tendo em vista a centralidade desse tema para a Psicologia Analítica e para a imagem de ser humano de Jung uma contribuição sobre ele foi acolhida também nesta seleção de textos JUNG CG Erinnerungen Träume Gedanken SolothurnDüsseldorf Walter 1971 Anotado e ed por A Jaffé Ed Esp Ed bras Rio de Janeiro Nova Fronteira 1986 NT A partir daqui citado como JUNG Erinnerungen 12 JUNG Erinnerungen p 6 13 Ibid p 280 14 VON FRANZ CG Jung p 169 15 JUNG Erinnerungen p 327s 16 JUNG Briefe I p 465 17 Cf DORST Therapeutisches Arbeiten mit Symbolen p 1734 18 JUNG Erinnerungen p 314 19 Ibid p 341 20 STEINMANN Spiritualität die vierte Dimension der Gesundheit 21 Cf BUCHER Psychologie der Spiritualität p 100142 22 Cf STEFANEK McDONALD HESS Religion spirituality and cancer p 450463 23 Cf BALBONI et al Religiousness und Spiritual Support p 555560 24 Cf DORST Lebenskrisen p 2129 25 RIEDEL Die Welt von innen sehen p 168 26 Cf DORST Therapeutischer Umgang mit Schicksals und Sinnfragen 27 HABERMAS Die neue Unübersichtlichkeit 28 WIRTZ ZÖBELI Hunger nach Sinn p 224 310 29 Ingrid Riedel In BISCHOF DELLA CHIESA Gespräch mit Ingrid Riedel p 251 30 JUNG Briefe III p 211 I AS DIMENSÕES DA PSIQUE O autoconhecimento é uma aventura que conduz a amplidões e profundezas inesperadas OC 142 398 Mas o homem não pode avançar por conta própria se não possuir um conhecimento mais apurado a respeito de sua própria natureza OC 114 746 O inconsciente pessoal e o inconsciente suprapessoal ou coletivo 97 Neste ponto se inicia uma nova etapa no processo do conhecimento de si A dissolução analítica das fantasias de transferência infantis tinha prosseguido até o momento em que o próprio paciente reconheceu claramente que para ele o médico tinha sido pai mãe tio tutor professor ou outra das formas usuais de autoridade paterna No entanto a experiência tem mostrado insistentemente o aparecimento de outro tipo de fantasia o médico fica investido das funções de salvador ou ente com características divinas contrariando frontalmente a razão sadia da consciência Pode acontecer também que esses atributos divinos não se limitem ao quadro cristão em que fomos criados e adotem por exemplo formas pagãs teriomórficas formas animais 98 A transferência em si nada mais é do que uma projeção de conteúdos inconscientes Primeiro são projetados os conteúdos chamados superficiais do inconsciente reconhecidos através de sonhos sintomas e fantasias Neste estado o médico interessa como um amante eventual mais ou menos como o rapaz italiano daquele caso A seguir aparece preponderantemente como pai pai bondoso ou furibundo conforme as qualidades que o pai verdadeiro tinha para o paciente Uma vez ou outra o médico também recebe atributos maternos o que já pode parecer estranho mas ainda está dentro dos limites do possível Todas essas projeções de fantasias são calcadas em reminiscências pessoais 99 Finalmente podem surgir fantasias de caráter exaltado Nestes casos o médico fica dotado de propriedades sobrenaturais Tornase um bruxo um criminoso demoníaco ou então o bem correspondente um verdadeiro salvador Também pode aparecer como uma mistura de ambos Entendase bem tudo isso não se passa necessariamente no consciente do paciente São fantasias que surgem e representam o médico sob essas formas Muitas vezes não entra na cabeça de tais pacientes que na realidade essas fantasias provêm deles mesmos e nada ou muito pouco têm a ver com o caráter do médico Este engano ocorre por não existirem bases de reminiscências pessoais para este tipo de projeção Ocasionalmente podemos provar que em determinado momento de sua infância tiveram fantasias semelhantes em relação ao pai e à mãe sem que os mesmos tivessem realmente dado motivo para isso 100 Freud demonstrou num pequeno trabalho 1 como a vida de Leonardo da Vinci tinha sido influenciada pelo fato de ele ter tido duas mães O fato das duas mães ou da dupla filiação era real na vida de Leonardo Embora imaginária outros artistas também sofreram a influência da dupla filiação Benvenuto Cellini por exemplo teve fantasias a respeito dessa dupla filiação Aliás este é um tema mitológico Muitos heróis legendários tiveram duas mães A fantasia não vem do fato de os heróis terem duas mães mas de uma imagem universal primordial pertencente aos segredos da história do espírito humano e não à esfera da reminiscência pessoal 101 Afora as recordações pessoais existem em cada indivíduo as grandes imagens primordiais como foram designadas acertadamente por Jakob Burckhardt ou seja a aptidão hereditária da imaginação humana de ser como era nos primórdios Essa hereditariedade explica o fenômeno no fundo surpreendente de alguns temas e motivos de lendas se repetirem no mundo inteiro e em formas idênticas além de explicar por que os nossos doentes mentais podem reproduzir exatamente as mesmas imagens e associações que conhecemos dos textos antigos Meu livro Wandlungen und Symbole der Libido 2 contém alguns exemplos Isso não quer dizer em absoluto que as imaginações sejam hereditárias hereditária é apenas a capacidade de ter tais imagens o que é bem diferente 102 Logo neste estágio mais adiantado do tratamento em que as fantasias não repousam mais sobre reminiscências pessoais tratase da manifestação da camada mais profunda do inconsciente onde jazem adormecidas as imagens humanas universais e originárias Essas imagens ou motivos denomineios arquétipos 3 ou então dominantes 103 Essa descoberta significa mais um passo à frente na interpretação a saber a caracterização de duas camadas no inconsciente Temos que distinguir o inconsciente pessoal do inconsciente impessoal ou suprapessoal Chamamos este último de inconsciente coletivo 4 porque é desligado do inconsciente pessoal e por ser totalmente universal e também porque seus conteúdos podem ser encontrados em toda parte o que obviamente não é o caso dos conteúdos pessoais O inconsciente pessoal contém lembranças perdidas reprimidas propositalmente esquecidas evocações dolorosas percepções que por assim dizer não ultrapassaram o limiar da consciência subliminais isto é percepções dos sentidos que por falta de intensidade não atingiram a consciência e conteúdos que ainda não amadureceram para a consciência Corresponde à figura da sombra 5 que frequentemente aparece nos sonhos 104 As imagens primordiais são as formas mais antigas e universais da imaginação humana São simultaneamente sentimento e pensamento Têm como que vida própria independente mais ou menos como a das almas parciais 6 fáceis de serem encontradas nos sistemas filosóficos ou gnósticos apoiados nas percepções do inconsciente como fonte de conhecimento A ideia dos anjos e arcanjos dos tronos e potestades de Paulo dos arcontes dos gnósticos das hierarquias celestiais em Dionysius Areopagita etc derivam da percepção da relativa autonomia dos arquétipos 105 Assim também encontramos o objeto que a libido escolhe quando se vê liberada da forma de transferência pessoal e infantil A libido segue sua inclinação até as profundezas do inconsciente e lá vivifica o que até então jazia adormecido É a descoberta do tesouro oculto a fonte inesgotável onde a humanidade sempre buscou seus deuses e demônios e todas as ideias suas mais fortes e poderosas ideias sem as quais o ser humano deixa de ser humano 106 Vejamos por exemplo um dos maiores pensamentos do século XIX a ideia da conservação da energia Robert Mayer é o verdadeiro criador dessa ideia Ele era médico e não físico ou filósofo da natureza como seria de se esperar Mas o importante é saber que a ideia de Mayer não foi propriamente criada Também não foi produto da confluência das ideias ou das hipóteses científicas da época ela foi crescendo dentro do seu criador como uma planta Mayer escreveu o seguinte numa carta a Griesinger 1844 A teoria não foi chocada em escrivaninha A seguir informa sobre certas observações fisiológicas feitas em 18401841 como médico da Marinha Se quisermos esclarecer certos pontos da fisiologia prossegue em sua carta é indispensável conhecer os processos físicos isto se a matéria não for trabalhada de preferência do ponto de vista da metafísica o que me desagrada profundamente Ativeme portanto à física e lanceime no assunto com tal paixão que pouco me interessavam as paragens exóticas que percorríamos o que muitos vão achar ridículo e preferia ficar a bordo onde podia trabalhar ininterruptamente e me sentia como que inspirado durante horas a fio Não me lembro de ter vivido momentos semelhantes nem antes nem depois Rápidos clarões perpassavam meu pensamento isso foi no ancoradouro de Surabaja eram captados e imediata e avidamente perseguidos levando por sua vez a novos objetos Esses tempos passaram Mas o exame calmo do que emergiu em mim naquela ocasião confirmou que se tratava de uma verdade Não só uma verdade subjetiva mas uma verdade que também pode ser provada objetivamente Se isso pode acontecer a um homem tão pouco versado em física como eu é uma questão que tenho que deixar em suspenso7 107 Em sua Energetik Helm diz que o novo pensamento de Robert Mayer não se desenvolveu pouco a pouco a partir do aprofundamento das ideias tradicionais existentes sobre energia mas pertence à ordem das ideias captadas intuitivamente provindas de outras esferas de trabalho espiritual que também assaltam o pensamento exigindo que os conceitos tradicionais se transformem de acordo com elas8 108 A questão agora é a seguinte de onde surgiu a ideia nova essa ideia que se impôs à consciência com tão elementar violência De onde tirou a sua força essa força que se apoderou da consciência de modo a tornála insensível às inúmeras atrações de uma primeira viagem aos trópicos A resposta não é fácil Mas se a nossa teoria for aplicada ao presente caso a explicação deve ser a seguinte a ideia da energia e de sua conservação deve ser uma imagem primordial adormecida no inconsciente coletivo Semelhante conclusão nos obriga evidentemente a provar que tais imagens primordiais existiram efetivamente na história do espírito humano e que foram ativas durante milhares e milhares de anos Esta prova pode ser realmente fornecida sem maiores dificuldades As religiões mais primitivas nas regiões mais variadas do mundo são fundadas nessa imagem São as chamadas religiões dinamísticas Seu pensamento único e decisivo é que há uma força universal mágica 9 e que tudo gira em torno dessa força Tanto Taylor o conhecido cientista inglês como Frazer interpretaram essa ideia como animismo erroneamente Na realidade os povos primitivos não se referem a almas ou espíritos nesse seu conceito de energia mas a algo que o cientista americano Lovejoy 10 qualificou acertadamente como primitive energetics A este conceito corresponde a ideia de alma espírito deus saúde força corporal fertilidade poder mágico influência poder respeito remédio bem como certos estados de ânimo caracterizados pela liberação de afetos Mulungu precisamente este conceito primitivo de energia significa para certos polinésios espírito alma ser demoníaco poder mágico respeito e quando acontece algo assombroso as pessoas exclamam mulungu Este conceito de energia também é a primeira versão do conceito de deus entre os primitivos A imagem desenvolveuse em variações sempre novas no decurso da história No Antigo Testamento a força mágica resplandece na sarça que arde em chamas diante de Moisés No Evangelho manifestase pela descida do Espírito Santo em forma de línguas de fogo vindas do céu Em Heráclito aparece como energia universal como o fogo eternamente vivo Entre os persas é a viva luz do fogo do haoma da graça divina para os estoicos é o calor primordial a força do destino Na legenda medieval aparece como a aura a auréola dos santos desprendendo se em forma de chamas do telhado da cabana onde o santo jaz em êxtase Nas faces dos santos essa força é vista como sol e plenitude da luz Segundo uma interpretação antiga a própria alma é essa energia a ideia de sua imortalidade é a de sua conservação e na acepção budista e primitiva da metempsicose transmigração da alma reside a sua capacidade ilimitada de transformação e perene conservação 109 Há milênios o cérebro humano está impregnado dessa ideia por isso jaz no inconsciente de todos à disposição de qualquer um Apenas requer certas condições para vir à tona Pelo visto essas condições foram preenchidas no caso de Robert Mayer Os maiores e melhores pensamentos da humanidade são moldados sobre imagens primordiais como sobre a planta de um projeto Muitas vezes já me perguntaram de onde provêm esses arquétipos ou imagens primordiais Suponho que sejam sedimentos de experiências constantemente revividas pela humanidade Parece que a explicação não pode ser outra Uma das experiências mais comuns e ao mesmo tempo mais impressionantes é o trajeto que o sol parece percorrer todos os dias Enquanto o encararmos como esse processo físico conhecido o nosso inconsciente nada nos revela a respeito No entanto encontramos o mito heroico do sol nas suas mais variadas versões É este mito e não o processo físico que configura o arquétipo solar O mesmo podemos dizer das fases da lua O arquétipo é uma espécie de aptidão para reproduzir constantemente as mesmas ideias míticas se não as mesmas pelo menos parecidas Parece portanto que aquilo que se impregna no inconsciente é exclusivamente a ideia da fantasia subjetiva provocada pelo processo físico Logo é possível supor que os arquétipos sejam as impressões gravadas pela repetição e reações subjetivas 11 É óbvio que tal suposição só posterga a solução do problema Nada nos impede de supor que certos arquétipos já estejam presentes nos animais pertençam ao sistema da própria vida e por conseguinte sejam pura expressão da vida cujo modo de ser dispensa qualquer outra explicação Ao que parece os arquétipos não são apenas impregnações de experiências típicas incessantemente repetidas mas também se comportam empiricamente como forças ou tendências à repetição das mesmas experiências Cada vez que um arquétipo aparece em sonho na fantasia ou na vida ele traz consigo uma influência específica ou uma força que lhe confere um efeito numinoso e fascinante ou que impele à ação 110 Após este comentário sobre a formação de novas ideias a partir do tesouro das imagens primordiais voltemos ao processo da transferência Vimos que a libido captou seu novo objeto justamente nas fantasias extravagantes e aparentemente sem nexo a saber os conteúdos do inconsciente coletivo Como já dizia a projeção das imagens primordiais no médico é um perigo que não pode ser subestimado no prosseguimento do tratamento Essas imagens contêm não só o que há de mais belo e grandioso no pensamento e sentimento humanos mas também as piores infâmias e os atos mais diabólicos que a humanidade foi capaz de cometer Graças à sua energia específica pois comportamse como centros autônomos carregados de energia exercem um efeito fascinante e comovente sobre o consciente e consequentemente podem provocar grandes alterações no sujeito Isso é constatado nas conversões religiosas em influências por sugestão e muito especialmente na eclosão de certas formas de esquizofrenia 12 Se o paciente não conseguir distinguir a personalidade do médico dessas projeções perdemse todas as possibilidades de entendimento e a relação humana tornase impossível Se o paciente evitar este perigo mas cair na introjeção dessas imagens isto é se atribuir essas qualidades não mais ao médico mas a si mesmo corre um perigo tão grave quanto o anterior Na projeção ele oscila entre um endeusamento doentio e exagerado e um desprezo carregado de ódio em relação ao médico Na introjeção passa de um autoendeusamento ridículo para uma autodilaceração moral O erro cometido em ambos os casos consiste em atribuir os conteúdos do inconsciente coletivo a uma determinada pessoa Assim ele próprio ou a outra pessoa se transforma em deus ou no diabo Esta é a manifestação característica do arquétipo uma espécie de força primordial se apodera da psique e a impele a transpor os limites do humano dando origem aos excessos à presunção inflação à compulsão à ilusão ou à comoção tanto no bem como no mal Aí está a razão por que os homens sempre precisaram dos demônios e nunca puderam prescindir dos deuses Todos os homens exceto alguns espécimes recentes do homo occidentalis particularmente dotados de inteligência super homens cujo Deus está morto razão por que eles mesmos se transformam em deuses isto é deuses enlatados com crânios de paredes espessas e coração frio O conceito de Deus é simplesmente uma função psicológica necessária de natureza irracional que absolutamente nada tem a ver com a questão da existência de Deus O intelecto humano jamais encontrará uma resposta para esta questão Muito menos pode haver qualquer prova da existência de Deus o que aliás é supérfluo A ideia de um ser todopoderoso divino existe em toda parte Quando não é consciente é inconsciente porque seu fundamento é arquetípico Há alguma coisa em nossa alma que tem um poder superior não sendo um deus conscientemente então é pelo menos o estômago no dizer de Paulo Por isso acho mais sábio reconhecer conscientemente a ideia de Deus caso contrário outra coisa fica em seu lugar em geral uma coisa sem importância ou uma asneira qualquer invenções de consciências esclarecidas Nosso intelecto sabe perfeitamente que não tem capacidade para pensar Deus e muito menos para imaginar que Ele existe realmente e como Ele é A questão da existência de Deus não tem resposta possível Mas o consensus gentium o consenso dos povos fala dos deuses há milênios e dentro de milênios ainda deles falará O homem tem o direito de achar sua razão bela e perfeita mas nunca em hipótese alguma ela deixará de ser apenas uma das funções espirituais possíveis e só cobrirá o lado dos fenômenos do mundo que lhe diz respeito A razão porém é rodeada de todos os lados pelo irracional por aquilo que não concorda com ela Essa irracionalidade também é uma função psíquica o inconsciente coletivo enquanto a razão é essencialmente ligada ao consciente A consciência precisa da razão para descobrir uma ordem no caos do universo dos casos individuais para depois também criála pelo menos na circunscrição humana Fazemos o esforço louvável e útil de extirpar na medida do possível o caos da irracionalidade dentro e fora de nós Ao que tudo indica já estamos bastante avançados neste processo Um doente mental me disse outro dia Doutor hoje à noite desinfetei o céu inteiro com cloreto mercúrico mas não descobri deus nenhum Foi mais ou menos o que nos aconteceu 111 O velho Heráclito que era realmente um grande sábio descobriu a mais fantástica de todas as leis da psicologia a função reguladora dos contrários Deulhe o nome de enantiodromia correr em direção contrária advertindo que um dia tudo reverte em seu contrário Lembro aqui o caso do empresário americano que ilustra claramente isso A cultura racional dirigese necessariamente para o seu contrário ou seja para o aniquilamento irracional da cultura 13 Não devemos nos identificar com a própria razão pois o homem não é apenas racional não pode e nunca vai sêlo Todos os mestres da cultura deveriam ficar cientes disso O irracional não deve e não pode ser extirpado Os deuses não podem e não devem morrer Há pouco dizia que sempre parece haver algo como um poder superior na alma humana Se não é a ideia de Deus é o estômago para empregar a expressão de Paulo Com isso pretendo deixar expresso o fato de sempre haver um impulso ou um complexo qualquer que concentra em si a maior parcela da energia psíquica obrigando o eu a colocarse a seu serviço Habitualmente é tão intensa a força de atração exercida por esse foco de energia sobre o eu que este se identifica com ele passando a acreditar que fora e além dele não existe outro desejo ou necessidade É assim que se forma uma mania monomania possessão ou uma tremenda unilateralidade que compromete gravemente o equilíbrio psíquico O poder de concentrar toda a capacidade num único ponto é sem dúvida alguma o segredo de certos êxitos razão por que a civilização se esforça ao máximo em cultivar especializações A paixão ou seja a acumulação de energia em torno de uma monomania é o que os antigos chamavam de deus E mesmo na linguagem atual isso ainda persiste As pessoas dizem Fulano endeusou isso ou aquilo Estamos certos de que ainda podemos querer ou escolher e não percebemos que já estamos possessos que o nosso interesse já é senhor e usurpou todo o poder Esses interesses são como deuses quando reconhecidos e aceitos por muitos pouco a pouco formam uma igreja agrupando ao seu redor todo um rebanho de fiéis Chamamos a isso organização Seguese a reação desorganizadora que pretende expulsar o demônio com Belzebu A enantiodromia ameaça inevitável de qualquer movimento que alcança uma indiscutível superioridade não é a solução do problema porque em sua desorganização é tão cega quanto em sua organização 112 Só escapa à crueldade da lei da enantiodromia quem é capaz de diferenciarse do inconsciente Não através da repressão do mesmo pois assim haveria simplesmente um ataque pelas costas mas colocandoo ostensivamente à sua frente como algo à parte distinto de si 113 Só mediante este trabalho preparatório será possível solucionar o dilema a que aludi anteriormente O paciente precisa aprender a distinguir o eu do não eu isto é da psique coletiva Assim adquire o material com que vai ter que se haver daí em diante e por muito tempo ainda A energia antes aplicada de forma inaproveitável patológica encontra seu campo apropriado Para diferenciar o eu do nãoeu é indispensável que o homem na função de eu se conserve em terra firme isto é cumpra seu dever em relação à vida e em todos os sentidos manifeste sua vitalidade como membro ativo da sociedade humana Tudo quanto deixar de fazer nesse sentido cairá no inconsciente e reforçará a posição do mesmo E ainda por cima ele se arrisca a ser engolido pelo inconsciente Essa infração porém é severamente punida O velho Synesius insinua que a alma espiritualizada πνευματικὴ ψυχή se torna deus e demônio e sofre neste estado a punição divina o estado de estraçalhamento do Zagreu o estado pelo qual Nietzsche passou no início de sua doença mental A enantiodromia é o estar dilacerado nos pares contrários Estes são próprios do deus e portanto do homem divinizado que deve sua semelhança a Deus à vitória sobre seus deuses Assim que começamos a falar do inconsciente coletivo nós nos colocamos numa esfera numa etapa do problema que não pode ser levada em conta no início da análise prática de jovens ou de pessoas que ficaram por demasiado tempo no estágio infantil Quando as imagens de pai e mãe ainda têm que ser superadas e quando ainda tem que ser conquistada uma parcela de experiência da vida exterior que o homem comum possui naturalmente é melhor nem falar de inconsciente coletivo nem do problema dos contrários Mas assim que as coisas transmitidas pelos pais e as ilusões juvenis estiverem superadas ou pelo menos a ponto de serem superadas está na hora de falar do problema dos contrários e do inconsciente coletivo Neste ponto já nos encontramos fora do alcance das reduções freudianas e adlerianas O que preocupa não é mais a questão de como desembaraçarse de todos os empecilhos ao exercício de uma profissão ao casamento ou a fazer qualquer coisa que signifique expansão de vida Estamos diante do problema de encontrar o sentido que possibilite o prosseguimento da vida entendendose por vida algo mais do que simples resignação e saudosismo 114 Nossa vida comparase à trajetória do sol De manhã o sol vai adquirindo cada vez mais força até atingir o brilho e o calor do apogeu do meiodia Depois vem a enantiodromia Seu avançar constante não significa mais aumento e sim diminuição de força Sendo assim nosso papel junto ao jovem difere do que exercemos junto a uma pessoa mais amadurecida No que se refere ao primeiro basta afastar todos os obstáculos que dificultam sua expansão e ascensão Quanto à última porém temos que incentivar tudo quanto sustente sua descida Um jovem inexperiente pode pensar que os velhos podem ser abandonados pois já não prestam para nada uma vez que sua vida ficou para trás e só servem como escoras petrificadas do passado É enorme o engano de supor que o sentido da vida esteja esgotado depois da fase juvenil de expansão que uma mulher esteja liquidada ao entrar na menopausa O entardecer da vida humana é tão cheio de significação quanto o período da manhã Só diferem quanto ao sentido e intenção 14 O homem tem dois tipos de objetivo O primeiro é o objetivo natural a procriação dos filhos e todos os serviços referentes à proteção da prole para tanto é necessário ganhar dinheiro e posição social Alcançado esse objetivo começa a outra fase a do objetivo cultural Para atingir o primeiro objetivo a natureza ajuda e além dela a educação Para o segundo objetivo contamos com pouca ou nenhuma ajuda Frequentemente reina um falso orgulho que nos faz acreditar que o velho tem que ser como o moço ou pelo menos fingir que o é apesar de no íntimo não estar convencido disso É por isso que a passagem da fase natural para a fase cultural é tão tremendamente difícil e amarga para tanta gente agarramse às ilusões da juventude ou a seus filhos para assim salvar um resquício de juventude Podese notar isso principalmente nas mães que põem nos filhos o único sentido da vida e acreditam cair num abismo sem fundo se tiverem que renunciar a eles Não é de admirar que muitas neuroses graves se manifestem no início do outono da vida É uma espécie de segunda puberdade ou segundo período de impetuosidade não raro acompanhado de todos os tumultos da paixão idade perigosa Mas as antigas receitas não servem mais para resolver os problemas que se colocam nessa idade Tal relógio não permite girar os ponteiros para trás O que a juventude encontrou e precisa encontrar fora o homem no entardecer da vida tem que encontrar dentro de si Estamos diante de novos problemas e não são poucas as dores de cabeça que o médico tem por causa disso 115 A passagem da manhã para a tarde é uma inversão dos antigos valores É imperiosa a necessidade de se reconhecer o valor oposto aos antigos ideais de perceber o engano das convicções defendidas até então de reconhecer e sentir a inverdade das verdades aceitas até o momento de reconhecer e sentir toda a resistência e mesmo a inimizade do que até então julgávamos ser amor Não são poucos os que vendose envolvidos no conflito dos contrários se desvencilham de tudo quanto lhes parecera bom e desejável tentando viver no polo oposto ao seu eu anterior Mudanças de profissão divórcios conversões religiosas apostasias de todo tipo são sintomas desse mergulho no contrário A desvantagem da conversão radical ao seu contrário é a repressão da vida passada o que produz um estado de desequilíbrio tão grande quanto o anterior quando os contrários correspondentes às virtudes e valores conscientes ainda eram recalcados e inconscientes Às perturbações neuróticas anteriores determinadas pela inconsciência das fantasias antagônicas correspondem agora novas perturbações provocadas pela repressão dos ídolos antigos Cometemos um erro grosseiro ao acreditar que o reconhecimento do desvalor num valor ou da inverdade numa verdade impliquem na supressão desses valores ou verdades O que acontece é que se tornam relativos Tudo o que é humano é relativo porque repousa numa oposição interior de contrários constituindo um fenômeno energético A energia porém é produzida necessariamente a partir de uma oposição que lhe é anterior e sem a qual simplesmente não pode haver energia Sempre é preciso haver o alto e o baixo o quente e o frio etc para poder realizarse o processo da compensação que é a própria energia Portanto a tendência a renegar todos os valores anteriores para favorecer o seu contrário é tão exagerada quanto a unilateralidade anterior Mas quando se descartam os valores incontestáveis e universalmente reconhecidos o prejuízo é fatal Quem age desta forma perdese juntamente com os seus valores como Nietzsche já dissera 116 Não se trata de uma conversão no seu contrário mas de uma conservação dos antigos valores acrescidos de um reconhecimento do seu contrário Isto significa conflito e ruptura consigo mesmo É compreensível que assuste tanto filosófica como moralmente por isso é mais frequente procurar a solução no enrijecimento convulsivo dos pontos de vista defendidos até então do que numa conversão no seu contrário É preciso reconhecer que esse fenômeno aliás extremamente antipático em homens de certa idade encobre um mérito considerável pelo menos não se transformam em apóstatas mantêmse de pé e não caem na indefinição e na lama Não se transformam em falidos mas apenas em árvores que definham testemunhas do passado para falarmos com um pouco mais de cortesia Mas os sintomas concomitantes rigidez petrificação bitolamento incapacidade de evoluir dos laudatores temporis acti são desagradáveis e até prejudiciais pois a maneira de representar uma verdade ou outro valor qualquer é tão rígida e violenta que a rudeza tem mais força de repulsão do que o valor possui força de atração e com isso se obtém o contrário do que se desejava No fundo o motivo do enrijecimento é o medo do problema dos contrários O sinistro irmão de Medardo é pressentido e secretamente temido Por isso é que só pode existir uma verdade e uma norma de conduta e esta tem que ser absoluta Caso contrário não há proteção contra a ameaça da derrocada pressentida em toda parte menos em si mesmo Mas o mais perigoso revolucionário está dentro de nós mesmos Quem quiser transferir se são e salvo para a segunda metade da vida tem que saber disso No entanto a aparente segurança de que gozávamos até então é substituída por um estado de insegurança ruptura e convicções contraditórias O pior deste estado é que aparentemente não há saída Tertium non datur diz a lógica não existe terceiro 117 As necessidades práticas do tratamento dos doentes obrigaram me a buscar meios e caminhos que me guiassem para fora desse estado inaceitável Cada vez que o homem se encontra diante de um obstáculo aparentemente intransponível ele recua faz uma regressão para usar a expressão técnica Recua ao tempo em que se encontrava numa situação parecida e tentará empregar novamente os meios que outrora lhe haviam servido Mas o que ajudava na juventude já não tem eficácia De que serviu ao empresário americano voltar ao antigo trabalho Simplesmente não adiantava mais A regressão continua até a infância por isso muitos neuróticos velhos se infantilizam e finalmente até o tempo anterior à infância Isto soa como uma aventura na realidade porém tratase de algo que não só é lógico mas também possível 118 Mencionamos anteriormente o fato de o inconsciente conter como que duas camadas uma pessoal e outra coletiva A camada pessoal termina com as recordações infantis mais remotas o inconsciente coletivo porém contém o tempo préinfantil isto é os restos da vida dos antepassados As imagens das recordações do inconsciente coletivo são imagens não preenchidas por serem formas não vividas pessoalmente pelo indivíduo Quando porém a regressão da energia psíquica ultrapassa o próprio tempo da primeira infância penetrando nas pegadas ou na herança da vida ancestral aí despertam os quadros mitológicos os arquétipos 15 Abrese então um mundo espiritual interior de cuja existência nem sequer suspeitávamos Aparecem conteúdos que talvez contrastem violentamente com as convicções que até então eram nossas É tal a intensidade desses quadros que nos parece inteiramente compreensível que milhões de pessoas cultas tenham aderido à teosofia ou à antropossofia pois esses sistemas gnósticos modernos vêm ao encontro da necessidade de exprimir e formular os indizíveis acontecimentos interiores As outras formas de religião cristã existentes inclusive o catolicismo não o conseguiram apesar de este ser capaz de exprimir muito melhor do que o protestantismo tais realidades interiores através de simbolismos dogmáticos e rituais Mas mesmo assim nem no passado nem no presente atingiu a plenitude do simbolismo pagão da Antiguidade É esta a razão por que o paganismo permaneceu ainda por muitos séculos na era cristã transformandose pouco a pouco em correntes subterrâneas Estas nunca perderam totalmente sua energia vital desde a Baixa Idade Média até a Idade Moderna Na realidade desapareceram da superfície no entanto transfiguradas voltam para compensar a unilateralidade da orientação da consciência moderna 16 Nossa consciência está impregnada de cristianismo e é quase inteiramente por ele formada por isso a posição inconsciente dos contrários não pode ser aceita simplesmente porque parece excessiva a contradição com as concepções fundamentais dominantes Quanto mais unilateral rígida e incondicional for a defesa de um ponto de vista tanto mais agressivo hostil e incompatível se tornará o outro de modo que a princípio a reconciliação tem poucas perspectivas de sucesso Mas se o consciente pelo menos reconhecer a relativa validade de todas as opiniões humanas o contrário também perde algo de sua incompatibilidade Entretanto esse contrário procura uma expressão adequada por exemplo nas religiões orientais no budismo no hinduísmo e no taoísmo O sincretismo mistura e combinação da teosofia vem amplamente ao encontro dessa necessidade e explica o seu elevado número de adeptos 119 Através da ocupação ligada ao tratamento analítico surgem experiências de natureza arquetípica à procura de expressão e forma Evidentemente não é esta a única maneira de se experimentar coisas desse tipo Não raro se produzem experiências arquetípicas espontâneas não apenas em pessoas com um espírito psicológico Muitas vezes fiquei sabendo de sonhos e visões extraordinários de pessoas de cuja saúde mental nem o próprio especialista podia duvidar A experiência do arquétipo é frequentemente guardada como o segredo mais íntimo visto que nos atinge no âmago É uma espécie de experiência primordial do não eu da alma de um confronto interior um verdadeiro desafio É compreensível que se procure socorro em imagens paralelas o acontecimento original poderá ser reinterpretado de acordo com imagens alheias com a maior facilidade Um caso típico desses é a visão da Trindade do Irmão Niklaus von der Flüe 17 Outro exemplo é a visão da cobra de múltiplos olhos de Inácio de Loyola que a princípio foi interpretada como sendo uma visão divina e depois como uma visão diabólica Através de reinterpretações desse tipo a experiência original é substituída por imagens e palavras emprestadas de fontes estranhas e por interpretações ideias e formas que não nasceram necessariamente no nosso chão e sobretudo não estão ligadas ao nosso coração mas apenas à cabeça E a cabeça nem mesmo é capaz de as pensar claramente porque jamais as teria inventado São um bem roubado que não prospera O sucedâneo transforma as pessoas em sombras tornandoas irreais Colocam letras mortas no lugar de realidades vivas e assim vão se livrando do sofrimento das oposições e vão se esgueirando para um mundo fantasmagórico pálido bidimensional onde murcha e morre tudo o que é criativo e vivo 120 Os acontecimentos indizíveis provocados pela regressão ao tempo préinfantil não exigem sucedâneos mas uma realização individual na vida e na obra de cada um Aquelas imagens se formaram a partir da vida do sofrimento e da alegria dos antepassados e querem voltar de novo à vida com experiência e como ação Mas por causa de sua oposição à consciência não podem ser traduzidas imediatamente para o nosso mundo mas é preciso achar um caminho intermediário conciliatório entre a realidade consciente e a inconsciente Referências FRANZ ML von Die Visionen des Niklaus von Flüe Zurique 1959 FREUD S Eine Kindheitserinnerung des Leonardo da Vinci Ges Schriften Bd IX Leipzig e Viena 1925 HELM GF Die Energetik nach ihrer geschichtlichen Entwicklung Leipzig 1898 JUNG CG Allgemeines zur Komplextheorie In Psychische Energetik und das Wesen der Träume 1948 GW 8 1967 vollst rev 1976 41982 Bruder Klaus In Neue Schweizer Rundschau August 1933 GW 11 1963 vollst rev 51988 Kommentar zu Das Geheimnis der Goldenen Blüte GW 13 1978 21982 Die Lebenswende In Seelenprobleme der Gegenwart 5 ed 1950 GW 8 1967 vollst rev 1976 41982 Paracelsus als geistige Erscheinung Paracelsica 1942 GW 15 1971 31979 Psychologie und Alchemie 2 ed 1952 GW 12 1972 31980 Die psychologischen Aspekte des MutterArchetypus In Von den Wurzeln des Bewusstseins 1954 GW 91 1976 51983 Psychologische Typen 1315 Tausend 1950 GW 6 1960 9 ed rev 1967 10 ed rev 141981 Die Struktur der Seele In Seelenprobleme der Gegenwart 5 ed 1950 GW 8 1967 vollst rev 1976 41982 Symbole der Wandlung 4 umgearbeitete Auflage von Wandlungen und Symbole der Libido 1952 GW 5 1973 31983 Uber den Archetypus mit besonderer Berücksichtigung des Animabegriffes In Von den Wurzeln des Bewusstseins 1954 GW 91 1976 51983 Uber den Begriff des kollektiven Unbewussten Als The Concept of the Collective Unconscious Barrholomews Hospital Journal XLIV 3 und 4 Dez 1936 und Jan 1937 GW 91 1976 51983 Uber die Archetypen des kollektiven Unbewussten In Von den Wurzeln des Bewusstseins 1954 GW 91 1976 51983 Über psychische Energetik und das Wesen der Träume 2 ed 1948 GW 8 1967 vollst rev 1976 41982 Zum psychologischen Aspekt der KoreFigur In Kerenyi und Jung Einfuhrung in das Wesen der Mythologie GW 91 1976 51983 Zur Psychologie des KindArchetypus In Kerenyi und Jung Einfuhrung in das Wesen der Mythologie GW 91 1976 51983 KERENYI K JUNG CG Einführung in das Wesen der Mythologie 4 ed Zurique 1951 Jungs Beiträge in GW 91 LOVEJOY AO The Fundamental Concept of the Primitive Philosophy In The Monist XVI 1906 MAYER R Kleinere Schriften und Briefe Stuttgart 1893 NELKEN J Analytische Beobachtungen über Phantasien eines Schizophrenen In Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen Bd IV 1 Hälfte Leipzig e Viena 1912 SÖDERBLOM N Das Werden des Gottesglaubens Leipzig 1916 WOLFF T Einführung in die Grundlagen der Komplexen Psychologie In Die kulturelle Bedeutung der Komplexen Psychologie Festschrift zum 60 Geburtstag von CG Jung Berli 1935 Neuaufl In Studien zu CG Jungs Psychologie Zurique 1959 Fonte OC 71 capítulo 5 97120 1 Eine Kindheitserinnerung des Leonardo da Vinci sl se 1910 2 Nova edição Symbole der Wandlung Op cit OC 5 Cf tb Über den Begriff des Kolletktiven Unbewussten OC 9 3 Para esclarecer esse conceito posso indicar os seguintes trabalhos dos quais se depreende o desenvolvimento posterior do conceito Symbole der Wandlung OC 5 Psychologische Typen Op cit p 567s OC 6 759s Cf tb Von den Wurzeln des Bewusstseins 1954 os ensaios Über die Archetypen des Kollektiven Unbewussten p 3s Über den Archetypus mit Besonderer Berücksichtigung des Animabegriffs p 57s Die psychologischen Aspekte des MutterArchetypus p 87s OC 91 JUNG CG KERÉNYI K Einführung in das Wesen der Mythologie Das göttliche KindDas göttliche Mädchen Zurique RheinVerlag 1951 p 103s Zum psychologischen Aspekt der KoreFigur p 215s OC 91 Comentário sobre WILHELM R Das Geheimnis der goldenen Blüte 1928 OC 13 4 O inconsciente coletivo representa a parte objetiva do psiquismo o inconsciente pessoal a parte subjetiva 5 Sombra é para mim a parte negativa da personalidade isto é a soma das propriedades ocultas e desfavoráveis das funções maldesenvolvidas e dos conteúdos do inconsciente pessoal T Wolff resumiu o conceito em Einführung in die Grundlagen der komplexen Psychologie In WOLFF T Studium zu CG Jungs Psychologie Zurique RheinVerlag 1959 p 151ss 6 Para aprofundar este conceito cf Allgemeines zur Komplextheorie In JUNG CG Über psychische Energetik und das Wesen der Träume Op cit OC 8 7 MAYER R Kleinere Schriften und Briefe Stuttgart se 1893 p 213 Cartas a Wilhelm Griesinger 16 de junho de 1844 8 HELM GF Die Energetik nach ihrer geschichtlichen Entwicklung Leipzig se 1898 p 20 9 O chamado Mana Cf SOEDERBLOM N Das Werden des Gottesglaubens sl se 1916 10 LOVEJOY AO The Fundamental Concept of the Primitive Philosophy The Monist vol XVI 1906 p 361 11 Cf Die Struktur der Seele In JUNG CG Seelenprobleme der Gegenwart Zurique se 1931 1950 p 127 OC 8 12 Um caso analisado em profundidade em Symbole der Wandlung Op cit OC 5 bem como em NELKEN J Analytische Beobachtungen über Phantasien eines Schizophrenen Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen IV1 1912 p 504 LeipzigViena 13 Esta frase foi escrita durante a Primeira Guerra Mundial Deixeia tal qual pois contém uma verdade que vai ser confirmada mais de uma vez no decorrer da história escrita em 1925 Como se vê pelos acontecimentos atuais esta confirmação não tardou muito Quem é afinal que quer essa destruição cega Mas todos ajudam o demônio com o maior espírito de sacrifício ó sancta simplicitas acrescentado em 1942 14 Confrontar essas considerações com Die Lebenswende In JUNG CG Seelenprobleme der Gegenwart Op cit p 220s OC 8 15 O leitor verá que aqui se insere um elemento novo no conceito de arquétipo que não tinha sido mencionado antes Essa mistura não significa uma falta de clareza involuntária mas uma ampliação intencional do arquétipo através do importantíssimo fator do carma da filosofia indiana O aspecto do carma é indispensável à compreensão mais profunda da natureza de um arquétipo Sem entrar aqui em maiores detalhes sobre esse fator queria ao menos mencionar a sua existência Fui muito combatido pela crítica por causa da ideia do arquétipo Não hesito em concordar que a ideia é controversa e causa perplexidade Mas sempre tive a curiosidade de saber que conceitos os meus críticos teriam usado para exprimir o material experimental em questão 16 Cf o meu estudo Paracelsus als geistige Erscheinung OC 13 e Psychologie und Alchemie OC 12 17 Cf meu ensaio Bruder Klaus OC 2 E ainda FRANZ ML von Die Visionen des Niklaus von Flüe Zurique se 1959 Estudos do CG JungInstitut 9 A função transcendente Prefácio Este ensaio foi escrito em 1916 Recentemente foi descoberto por estudantes do Instituto CG Jung de Zurique e impresso como edição privada em sua versão original provisória porém traduzida para o inglês A fim de preparar o manuscrito para a impressão definitiva retoqueio estilisticamente respeitandolhe porém a ordem principal das ideias e a inevitável limitação de seu horizonte Depois de 22 anos o problema nada perdeu de sua atualidade embora sua apresentação precise de ser complementada ainda em muitos pontos como bem o pode ver qualquer um que conheça a matéria Infortunadamente minha idade avançada não me permite assumir esta considerável tarefa Portanto o ensaio poderá ficar com todas as suas imperfeições como um documento histórico Pode dar ao leitor alguma ideia dos esforços de compreensão exigidos pelas primeiras tentativas de se chegar a uma visão sintética do processo psíquico no tratamento analítico Como suas considerações básicas ainda são válidas pelo menos no momento presente ele poderá estimular o leitor a uma compreensão mais ampla e mais aprofundada do problema E este problema se identifica com a questão universal De que maneira podemos confrontar nos com o inconsciente Esta é a questão colocada pela filosofia da Índia e de modo particular pelo budismo e pela filosofia do Zen Indiretamente porém é a questão fundamental na prática de todas as religiões e de todas as filosofias O inconsciente com efeito não é isto ou aquilo mas o desconhecimento do que nos afeta imediatamente Ele nos aparece como de natureza psíquica mas sobre sua verdadeira natureza sabemos tão pouco ou em linguagem otimista tanto quanto sabemos sobre a natureza da matéria Enquanto porém a Física tem consciência da natureza modelar de seus enunciados as filosofias religiosas se exprimem em termos metafísicos e hipostasiam suas imagens Quem ainda está preso a este último ponto de vista não pode entender a linguagem da Psicologia acusála de metafísica ou de materialista ou no mínimo de agnóstica quando não até mesmo de gnóstica Por isso tenho sido acusado por estes críticos ainda medievais ora como místico e gnóstico ora como ateu Devo apontar este malentendido como principal impedimento para uma reta compreensão do problema trata se de uma certa falta de cultura inteiramente ignorante de qualquer crítica histórica e que por isso mesmo ingenuamente acha que o mito ou deve ser historicamente verdadeiro ou do contrário não é coisíssima nenhuma Para tais pessoas a utilização de uma terminologia mitológica ou folclórica com referência a fatos psicológicos é inteiramente anticientífica Com este preconceito as pessoas barram o próprio acesso à Psicologia e o caminho para um ulterior desenvolvimento do homem interior cujo fracasso intelectual e moral é uma das mais dolorosas constatações de nossa época Quem tem alguma coisa a dizer fala em deveria ser ou em seria preciso sem reparar que lastimosa situação de desamparo está ele assim confessando Todos os meios que recomenda são justamente aqueles que fracassaram Em sua compreensão mais profunda a Psicologia é autoconhecimento Mas como este último não pode ser fotografado calculado contado pesado e medido é anticientífico Mas o homem psíquico ainda bastante desconhecido que se ocupa com a ciência é também anticientífico e por isso não é digno de posterior investigação Se o mito não caracteriza o homem psíquico então seria preciso negar o ninho ao pardal e o canto ao rouxinol Temos motivos suficientes para admitir que o homem em geral tem uma profunda aversão ao conhecer alguma coisa a mais sobre si mesmo e que é aí que se encontra a verdadeira causa de não haver avanço e melhoramento interior ao contrário do progresso exterior Complemento à edição inglesa das Obras Completas O método da imaginação ativa é o auxílio mais importante na produção dos conteúdos do inconsciente que situamse por assim dizer abaixo do limiar da consciência e que quando intensificados teriam maior probabilidade de irromper espontaneamente na consciência O método implica portanto riscos e quando possível não deveria ser aplicado sem supervisão médica Um risco menor consiste em que pode facilmente acontecer que ele não traga nenhum resultado na medida em que seu procedimento transita para a assim chamada livre associação de Freud fazendo com que o paciente recaia no ciclo estéril de seus complexos do qual ele de qualquer modo já não conseguia se libertar Outro risco em si inofensivo consiste em que sejam produzidos conteúdos autênticos pelos quais o paciente no entanto limitase a demonstrar um interesse exclusivamente estético o que faz com que ele permaneça enredado na fantasmagoria isso naturalmente não leva a nada pois o sentido e o valor dessas fantasias só se revelam em sua integração na personalidade global ou seja no momento em que a pessoa é confrontada com elas significativa e também moralmente Um terceiro risco por fim e dependendo das circunstâncias isso pode ser uma questão muito preocupante consiste em que os conteúdos subliminais já possuem uma voltagem tão alta que quando se lhes franqueia uma saída por meio da imaginação ativa subjugam a consciência e se apoderam da personalidade Isso dá origem a um estado que pelo menos temporariamente não se consegue distinguir de uma esquizofrenia e que pode assumir a forma de um autêntico intervalo psicótico Por essa razão esse método não é brincadeira de criança A subestimação do inconsciente que predomina de modo geral contribui consideravelmente para aumentar a periculosidade do método Em contrapartida porém ele representa um auxílio psicoterapêutico inestimável Küsnacht setembro de 1959 CG Jung A função transcendente 131 Por função transcendente não se deve entender algo de misterioso e por assim dizer suprassensível ou metafísico mas uma função que por sua natureza podese comparar com uma função matemática de igual denominação e é uma função de números reais e imaginários A função psicológica e transcendente resulta da união dos conteúdos conscientes e inconscientes 132 A experiência no campo da psicologia analítica nos tem mostrado abundantemente que o consciente e o inconsciente raramente estão de acordo no que se refere a seus conteúdos e tendências Esta falta de paralelismo como nos ensina a experiência não é meramente acidental ou sem propósito mas se deve ao fato de que o inconsciente se comporta de maneira compensatória ou complementar em relação à consciência Podemos inverter a formulação e dizer que a consciência se comporta de maneira compensatória com relação ao inconsciente A razão desta relação é que 1 os conteúdos do inconsciente possuem um valor liminar de sorte que todos os elementos por demais débeis permanecem no inconsciente 2 a consciência devido a suas funções dirigidas exerce uma inibição que Freud chama de censura sobre todo o material incompatível em consequência do que este material incompatível mergulha no inconsciente 3 a consciência é um processo momentâneo de adaptação ao passo que o inconsciente contém não só todo o material esquecido do passado individual mas todos os traços funcionais herdados que constituem a estrutura do espírito humano e 4 o inconsciente contém todas as combinações da fantasia que ainda não ultrapassaram a intensidade liminar e com o correr do tempo e em circunstâncias favoráveis entrarão no campo luminoso da consciência 133 A reunião destes fatos facilmente explica a atitude complementar do inconsciente com relação à consciência 134 A natureza determinada e dirigida dos conteúdos da consciência é uma qualidade que só foi adquirida relativamente tarde na história da humanidade e falta amplamente entre os primitivos de nossos dias Também esta qualidade é frequentemente prejudicada nos pacientes neuróticos que se distinguem dos indivíduos normais pelo fato de que o limiar da consciência é mais facilmente deslocável ou em outros termos a parede divisória situada entre a consciência e o inconsciente é muito mais permeável O psicótico por outro lado achase inteiramente sob o influxo direto do inconsciente 135 A natureza determinada e dirigida da consciência é uma aquisição extremamente importante que custou à humanidade os mais pesados sacrifícios mas que por seu lado prestou o mais alto serviço à humanidade Sem ela a ciência a técnica e a civilização seriam simplesmente impossíveis porque todas elas pressupõem persistência regularidade e intencionalidade fidedignas do processo psíquico Estas qualidades são absolutamente necessárias para todas as competências desde o funcionário mais altamente colocado até o médico o engenheiro e mesmo o simples boiafria A ausência de valor social cresce em geral à medida que estas qualidades são anuladas pelo inconsciente mas há também exceções como por exemplo as pessoas dotadas de qualidades criativas A vantagem de que tais pessoas gozam consiste precisamente na permeabilidade do muro divisório entre a consciência e o inconsciente Mas para aquelas organizações sociais que exigem justamente regularidade e fidedignidade estas pessoas excepcionais quase sempre pouco valor representam 136 Por isso não é apenas compreensível mas até mesmo necessário que em cada indivíduo este processo seja tão estável e definido quanto possível pois as exigências da vida o exigem Mas estas qualidades trazem consigo também uma grande desvantagem O fato de serem dirigidas para um fim encerra a inibição e ou o bloqueio de todos os elementos psíquicos que parecem ser ou realmente são incompatíveis com ele ou são capazes de mudar a direção preestabelecida e assim conduzir o processo a um fim não desejado Mas como se conhece que o material psíquico paralelo é incompatível Podemos conhecêlo por um ato de julgamento que determina a direção do caminho escolhido e desejado Este julgamento é parcial e preconcebido porque escolhe uma possibilidade particular à custa de todas as outras O julgamento se baseia por sua vez na experiência isto é naquilo que já é conhecido Via de regra ele nunca se baseia no que é novo no que é ainda desconhecido e no que sob certas circunstâncias poderia enriquecer consideravelmente o processo dirigido É evidente que não pode se basear pela simples razão de que os conteúdos inconscientes estão a priori excluídos da consciência 137 Por causa de tais atos de julgamento o processo dirigido se torna necessariamente unilateral mesmo que o julgamento racional pareça plurilateral e despreconcebido Por fim até a própria racionalidade do julgamento é um preconceito da pior espécie porque chamamos de racional aquilo que nos parece racional Aquilo portanto que nos parece irracional está de antemão fadado à exclusão justamente por causa de seu caráter irracional que pode ser realmente irracional mas pode igualmente apenas parecer irracional sem o ser em sentido mais alto 138 A unilateralidade é uma característica inevitável porque necessária do processo dirigido pois direção implica unilateralidade A unilateralidade é ao mesmo tempo uma vantagem e um inconveniente mesmo quando parece não haver um inconveniente exteriormente reconhecível existe contudo sempre uma contraposição igualmente pronunciada no inconsciente a não ser que se trate absolutamente de um caso ideal em que todas as componentes psíquicas tendem sem exceção para uma só e mesma direção É um caso cuja possibilidade não pode ser negada em teoria mas na prática raramente acontecerá A contraposição é inócua enquanto não contiver um valor energético maior Mas se a tensão dos opostos aumenta em consequência de uma unilateralidade demasiado grande a tendência oposta irrompe na consciência e isto quase sempre precisamente no momento em que é mais importante manter a direção consciente Assim um orador comete um deslize de linguagem precisamente quando maior é seu empenho em não dizer alguma estupidez Este momento é crítico porque apresenta o mais alto grau de tensão energética que pode facilmente explodir quando o inconsciente já está carregado e liberar o conteúdo inconsciente 139 Nossa vida civilizada exige uma atividade concentrada e dirigida da consciência acarretando deste modo o risco de um considerável distanciamento do inconsciente Quanto mais capazes formos de nos afastar do inconsciente por um funcionamento dirigido tanto maior é a possibilidade de surgir uma forte contraposição a qual quando irrompe pode ter consequências desagradáveis 140 A terapia analítica nos proporcionou uma profunda percepção da importância das influências inconscientes e com isto aprendemos tanto para a nossa vida prática que julgamos insensato esperar a eliminação ou a parada do inconsciente depois do chamado término do tratamento Muitos dos pacientes reconhecendo obscuramente este estado de coisas não se decidem a renunciar à análise ou só se decidem com grande dificuldade embora tanto o paciente quanto o médico achem importuno e incoerente o sentimento de dependência Muitos têm inclusive receio de o tentar e de se pôr sobre seus próprios pés porque sabem por experiência que o inconsciente pode intervir de maneira cada vez mais perturbadora e aparentemente imprevisível em suas vidas 141 Antigamente se admitia que os pacientes estariam preparados para enfrentar a vida normal quando tivessem adquirido suficiente autoconhecimento prático para poderem entender por exemplo seus próprios sonhos Mas a experiência nos tem mostrado que mesmo os analistas profissionais dos quais se espera que dominem a arte de interpretar os sonhos muitas vezes capitulam diante de seus próprios sonhos e têm de apelar para a ajuda de algum colega Se até mesmo aquele que pretende ser perito no método se mostra incapaz de interpretar satisfatoriamente seus próprios sonhos tanto menos se pode esperar isto da parte do paciente A esperança de Freud no sentido de que se poderia esgotar o inconsciente não se realizou A vida onírica e as instruções do inconsciente continuam mutatis mutandis desimpedidas 142 Há um preconceito generalizado segundo o qual a análise é uma espécie de cura a que alguém se submete por um determinado tempo e em seguida é mandado embora curado da doença Isto é um erro de leigos na matéria que nos vem dos primeiros tempos da psicanálise O tratamento analítico poderia ser considerado um reajustamento da atitude psicológica realizado com a ajuda do médico Naturalmente esta atitude recém adquirida que corresponde melhor às condições internas e externas pode perdurar por um considerável espaço de tempo mas são bem poucos os casos em que uma cura realizada só uma vez possa ter resultados duradouros como estes É verdade que o otimismo que nunca dispensou publicidade tem sido sempre capaz de relatar curas definitivas Mas não devemos nos deixar enganar pelo comportamento humano subumano do médico convém termos sempre presente que a vida do inconsciente prossegue o seu caminho e produz continuamente situações problemáticas Não precisamos ser pessimistas temos visto tantos e excelentes resultados conseguidos na base da sorte e através de trabalho consciencioso Mas isto não deve nos impedir de reconhecer que a análise não é uma cura que se pratica de uma vez para sempre mas antes do mais e tão somente um reajustamento mais ou menos completo Mas não há mudança que seja incondicional por um longo período de tempo A vida tem de ser conquistada sempre e de novo Existem é verdade atitudes coletivas extremamente duradouras que possibilitam a solução de conflitos típicos A atitude coletiva capacita o indivíduo a se ajustar sem atritos à sociedade desde que ela age sobre ele como qualquer outra condição da vida Mas a dificuldade do paciente consiste precisamente no fato de que um problema pessoal não pode se enquadrar em uma norma coletiva requerendo uma solução individual do conflito caso a totalidade da personalidade deva conservarse viável Nenhuma solução racional pode fazer justiça a esta tarefa e não existe absolutamente nenhuma norma coletiva que possa substituir uma solução individual sem perdas 143 A nova atitude adquirida no decurso da análise mais cedo ou mais tarde tende a se tornar inadequada sob qualquer aspecto e isto necessariamente por causa do contínuo fluxo da vida que requer sempre e cada vez mais nova adaptação pois nenhuma adaptação é definitiva Por certo podese exigir que o processo de tratamento seja conduzido de tal maneira que deixe margem a novas orientações também em época posterior da vida sem dificuldades de monta A experiência nos ensina que isto é verdade até certo ponto Frequentemente vemos que os pacientes que passaram por uma análise exaustiva têm consideravelmente menos dificuldade com novos reajustamentos em época posterior Mesmo assim entretanto tais dificuldades são bastante frequentes e por vezes assaz penosas Esta é a razão pela qual mesmo os pacientes que passaram por um tratamento rigoroso muitas vezes voltam a seu antigo médico pedindolhe ajuda em época posterior Comparativamente à prática médica em geral este fato não é assim tão incomum todavia contradiz tanto um certo entusiasmo despropositado da parte dos terapeutas quanto a opinião segundo a qual a análise constitui uma cura única Em conclusão é sumamente improvável que haja uma terapia que elimine todas as dificuldades O homem precisa de dificuldades elas são necessárias à sua saúde E somente a sua excessiva quantidade nos parece desnecessária 144 A questão fundamental para o terapeuta é não somente como eliminar a dificuldade momentânea mas como enfrentar com sucesso as dificuldades futuras A questão é esta que espécie de atitude espiritual e moral é necessário adotar frente às influências perturbadoras e como se pode comunicála ao paciente 145 A resposta evidentemente consiste em suprimir a separação vigente entre a consciência e o inconsciente Não se pode fazer isto condenando unilateralmente os conteúdos do inconsciente mas pelo contrário reconhecendo a sua importância para a compensação da unilateralidade da consciência e levando em conta esta importância A tendência do inconsciente e a da consciência são os dois fatores que formam a função transcendente É chamada transcendente porque torna possível organicamente a passagem de uma atitude para outra sem perda do inconsciente O método construtivo de tratamento pressupõe percepções que estão presentes pelo menos potencialmente no paciente e por isso é possível tornálas conscientes Se o médico nada sabe dessas potencialidades ele não pode ajudar o paciente a desenvolvêlas a não ser que o médico e o paciente dediquem conjuntamente um verdadeiro estudo a este problema o que em geral está fora de questão 146 Por isto na prática é o médico adequadamente treinado que faz de função transcendente para o paciente isto é ajuda o paciente a unir a consciência e o inconsciente e assim chegar a uma nova atitude Nesta função do médico está uma das muitas significações importantes da transferência por meio dela o paciente se agarra à pessoa que parece lhe prometer uma renovação da atitude com a transferência ele procura esta mudança que lhe é vital embora não tome consciência disto Para o paciente o médico tem o caráter de figura indispensável e absolutamente necessária para a vida Por mais infantil que esta dependência possa parecer ela exprime uma exigência de suma importância cujo malogro acarretará um ódio amargo contra a pessoa do analista Por isso o importante é saber o que é que esta exigência escondida na transferência tem em vista a tendência é considerála em sentido redutivo como uma fantasia infantil de natureza erótica Isto seria tomar esta fantasia que em geral se refere aos pais em sentido literal como se o paciente ou seu inconsciente tivesse ainda ou voltasse a ter aquelas expectativas que a criança outrora tinha em relação a seus pais Exteriormente ainda é aquela mesma esperança que a criança tem de ser ajudada e protegida pelos pais mas no entanto a criança se tornou um adulto e o que era normal na criança é impróprio para o adulto Tornou se expressão metafórica da necessidade de ajuda não percebida conscientemente em situação crítica Historicamente é correto explicar o caráter erótico da transferência situando sua origem no eros infantil mas procedendo desta maneira não entenderemos o significado e o objetivo da transferência e interpretála como fantasia sexual infantil nos desvia do verdadeiro problema A compreensão da transferência não deve ser procurada nos seus antecedentes históricos mas no seu objetivo A explicação unilateral e redutiva tornase absurda em especial quando dela não resulta absolutamente nada de novo exceto as redobradas resistências do paciente O tédio que surge então no decorrer do tratamento nada mais é do que a expressão da monotonia e da pobreza de ideias não do inconsciente como às vezes se supõe mas do analista que não entende que estas fantasias não devem ser tomadas meramente em sentido concretista e redutivo e sim em sentido construtivo Quando se toma consciência disto a situação de estagnação se modifica muitas vezes de um só golpe 147 O tratamento construtivo do inconsciente isto é a questão do seu significado e de sua finalidade fornecenos a base para a compreensão do processo que se chama função transcendente 148 Não me parece supérfluo tecer aqui algumas considerações acerca da objeção frequentemente ouvida de que o método construtivo é mera sugestão O método com efeito baseiase em apreciar o símbolo isto é a imagem onírica ou a fantasia não mais semioticamente como sinal por assim dizer de processos instintivos elementares mas simbolicamente no verdadeiro sentido entendendose símbolo como o termo que melhor traduz um fato complexo e ainda não claramente apreendido pela consciência A análise redutora desta expressão nos oferece unicamente uma visão mais clara daqueles elementos que a compunham originalmente Com isto não queremos negar que um conhecimento mais aprofundado destes elementos tenha suas vantagens até certo ponto mas ele foge da questão da finalidade Por isso a dissolução do símbolo neste estágio da análise é condenável Entretanto já de início o método utilizado para extrair o sentido sugerido pelo símbolo é o mesmo que se emprega na análise redutiva recolhemse as associações do paciente que de modo geral são suficientes para uma aplicação pelo método sintético Aqui mais uma vez esta aplicação não é feita em sentido semiótico mas simbólico A pergunta que aqui se põe é esta Qual o sentido indicado pelas associações A B C quando vistas em conexão com o conteúdo manifesto dos sonhos Fonte OC 8 131148 bem como o Prefácio Publicado em Geist und Werk estudo comemorativo do 75º aniversário de Daniel Brody RheinVerlag Zurique 1958 A autonomia do inconsciente 1 Parece que o propósito do fundador das Terry Lectures é o de proporcionar tanto aos representantes das Ciências Naturais quanto aos da Filosofia e de outros campos do saber humano a oportunidade de trazer sua contribuição para o esclarecimento do eterno problema da religião Tendo a Universidade de Yale me concedido o honroso encargo das Terry Lectures de 1937 considero minha tarefa mostrar o que a psicologia ou melhor o ramo da psicologia médica que represento tem a ver com a religião ou pode dizer sobre a mesma Visto que a religião constitui sem dúvida alguma uma das expressões mais antigas e universais da alma humana subentendese que todo o tipo de psicologia que se ocupa da estrutura psicológica da personalidade humana deve pelo menos constatar que a religião além de ser um fenômeno sociológico ou histórico é também um assunto importante para grande número de indivíduos 2 Embora me tenham chamado frequentemente de filósofo sou apenas um empírico e como tal me mantenho fiel ao ponto de vista fenomenológico Mas não acho que infringimos os princípios do empirismo científico se de vez em quando fazemos reflexões que ultrapassam o simples acúmulo e classificação do material proporcionado pela experiência Creio de fato que não há experiência possível sem uma consideração reflexiva porque a experiência constitui um processo de assimilação sem o qual não há compreensão alguma Daqui se deduz que abordo os fatos psicológicos não sob um ângulo filosófico mas de um ponto de vista científiconatural Na medida em que o fenômeno religioso apresenta um aspecto psicológico muito importante trato o tema dentro de uma perspectiva exclusivamente empírica limitome portanto a observar os fenômenos e me abstenho de qualquer abordagem metafísica ou filosófica Não nego a validade de outras abordagens mas não posso pretender a uma correta aplicação desses critérios 3 Sei muito bem que a maioria dos homens acredita estar a par de tudo o que se conhece a respeito da psicologia pois acham que esta é apenas o que sabem acerca de si mesmos Mas a psicologia na realidade é muito mais do que isto Guardando escassa vinculação com a filosofia ocupase muito mais com fatos empíricos dos quais uma boa parte é dificilmente acessível à experiência corrente Eu me proponho pelo menos a fornecer algumas noções do modo pelo qual a psicologia prática se defronta com o problema religioso É claro que a amplitude do problema exigiria bem mais do que três conferências visto que a discussão necessária dos detalhes concretos tomaria muito tempo impelindonos a um número considerável de esclarecimentos O primeiro capítulo deste estudo será uma espécie de introdução ao problema da psicologia prática e de suas relações com a religião O segundo se ocupará de fatos que evidenciam a existência de uma função religiosa no inconsciente O terceiro versará sobre o simbolismo religioso dos processos inconscientes 4 Visto que minhas explanações são de caráter bastante inusitado não deve pressupor que meus ouvintes estejam suficientemente familiarizados com o critério metodológico do tipo de psicologia que represento Tratase de um ponto de vista exclusivamente científico isto é tem como objeto certos fatos e dados da experiência Em resumo trata de acontecimentos concretos Sua verdade é um fato e não uma apreciação Quando a psicologia se refere por exemplo ao tema da concepção virginal só se ocupa da existência de tal ideia não cuidando de saber se ela é verdadeira ou falsa em qualquer sentido A ideia é psicologicamente verdadeira na medida em que existe A existência psicológica é subjetiva porquanto uma ideia só pode ocorrer num indivíduo Mas é objetiva na medida em que mediante um consensus gentium é partilhada por um grupo maior 5 Este ponto de vista é também o das Ciências Naturais A psicologia trata de ideias e de outros conteúdos espirituais do mesmo modo que por exemplo a zoologia se ocupa das diversas espécies animais Um elefante é verdadeiro porque existe O elefante não é uma conclusão lógica nem corresponde a uma asserção ou juízo subjetivo de um intelecto criador É simplesmente um fenômeno Mas estamos tão habituados com a ideia de que os acontecimentos psíquicos são produtos arbitrários do livrearbítrio e mesmo invenções de seu criador humano que dificilmente podemos nos libertar do preconceito de considerar a psique e seus conteúdos como simples invenções arbitrárias ou produtos mais ou menos ilusórios de conjeturas e opiniões O fato é que certas ideias ocorrem quase em toda a parte e em todas as épocas podendo formarse de um modo espontâneo independentemente da migração e da tradição Não são criadas pelo indivíduo mas lhe ocorrem simplesmente e mesmo irrompem por assim dizer na consciência individual O que acabo de dizer não é filosofia platônica mas psicologia empírica 6 Antes de falar da religião devo explicar o que entendo por este termo Religião é como diz o vocábulo latino religere uma acurada e conscienciosa observação daquilo que Rudolf Otto 1 acertadamente chamou de numinoso isto é uma existência ou um efeito dinâmico não causados por um ato arbitrário Pelo contrário o efeito se apodera e domina o sujeito humano mais sua vítima do que seu criador Qualquer que seja a sua causa o numinoso constitui uma condição do sujeito e é independente de sua vontade De qualquer modo tal como o consensus gentium a doutrina religiosa mostranos invariavelmente e em toda a parte que esta condição deve estar ligada a uma causa externa ao indivíduo O numinoso pode ser a propriedade de um objeto visível ou o influxo de uma presença invisível que produzem uma modificação especial na consciência Tal é pelo menos a regra universal 7 Mas logo que abordamos o problema da atuação prática ou do ritual deparamos com certas exceções Grande número de práticas rituais são executadas unicamente com a finalidade de provocar deliberadamente o efeito do numinoso mediante certos artifícios mágicos como por exemplo a invocação a encantação o sacrifício a meditação a prática do ioga mortificações voluntárias de diversos tipos etc Mas certa crença religiosa numa causa exterior e objetiva divina precede essas práticas rituais A Igreja Católica por exemplo administra os sacramentos aos crentes com a finalidade de conferirlhes os benefícios espirituais que comportam Mas como tal ato terminaria por forçar a presença da graça divina mediante um procedimento sem dúvida mágico podese assim arguir logicamente ninguém conseguiria forçar a graça divina a estar presente no ato sacramental mas ela se encontra inevitavelmente presente nele pois o sacramento é uma instituição divina que Deus não teria estabelecido se não tivesse a intenção de mantêla 2 8 Encaro a religião como uma atitude do espírito humano atitude que de acordo com o emprego originário do termo religio poderíamos qualificar a modo de uma consideração e observação cuidadosas de certos fatores dinâmicos concebidos como potências espíritos demônios deuses leis ideias ideais ou qualquer outra denominação dada pelo homem a tais fatores dentro de seu mundo próprio a experiência terlheia mostrado suficientemente poderosos perigosos ou mesmo úteis para merecerem respeitosa consideração ou suficientemente grandes belos e racionais para serem piedosamente adorados e amados Em inglês dizse de uma pessoa entusiasticamente interessada por uma empresa qualquer that he is almost religiously devoted to his cause William James por exemplo observa que um homem de ciência muitas vezes não tem fé embora seu temperamento seja religioso 3 9 Eu gostaria de deixar bem claro que com o termo religião 4 não me refiro a uma determinada profissão de fé religiosa A verdade porém é que toda confissão religiosa por um lado se funda originalmente na experiência do numinoso e por outro na pistis na fidelidade lealdade na fé e na confiança em relação a uma determinada experiência de caráter numinoso e na mudança de consciência que daí resulta Um dos exemplos mais frisantes neste sentido é a conversão de Paulo Poderíamos portanto dizer que o termo religião designa a atitude particular de uma consciência transformada pela experiência do numinoso 10 As confissões de fé são formas codificadas e dogmatizadas de experiências religiosas originárias 5 Os conteúdos da experiência foram sacralizados e em geral enrijeceram dentro de uma construção mental inflexível e frequentemente complexa O exercício e a repetição da experiência original transformaramse em rito e em instituição imutável Isto não significa necessariamente que se trata de uma petrificação sem vida Pelo contrário ela pode representar uma forma de experiência religiosa para inúmeras pessoas durante séculos sem que haja necessidade de modificála Embora muitas vezes se acuse a Igreja Católica por sua rigidez particular ela admite que o dogma é vivo e portanto sua formulação seria em certo sentido susceptível de modificação e evolução Nem mesmo o número de dogmas é limitado podendo aumentar com o decorrer do tempo O mesmo ocorre com o ritual De um modo ou de outro qualquer mudança ou desenvolvimento são determinados pelos marcos dos fatos originariamente experimentados através dos quais se estabelece um tipo particular de conteúdo dogmático e de valor afetivo Até mesmo o protestantismo que ao que parece se libertou quase totalmente da tradição dogmática e do ritual codificado desintegrandose assim em mais de quatrocentas denominações até mesmo o protestantismo repetimos é obrigado a ser pelo menos cristão e a expressarse dentro do quadro de que Deus se revelou em Cristo o qual padeceu pela humanidade Este é um quadro bemdeterminado com conteúdos precisos e não é possível ampliálo ou vinculálo a ideias e sentimentos budistas ou islâmicos No entanto sem dúvida alguma não só Buda Maomé Confúcio ou Zaratustra constituem fenômenos religiosos mas igualmente Mitra Cibele Átis Manes Hermes e muitas outras religiões exóticas O psicólogo que se coloca numa posição puramente científica não deve considerar a pretensão de todo credo religioso a de ser o possuidor da verdade exclusiva e eterna Uma vez que trata da experiência religiosa primordial deve concentrar sua atenção no aspecto humano do problema religioso abstraindo o que as confissões religiosas fizeram com ele 11 Como sou médico e especialista em doenças nervosas e mentais não tomo como ponto de partida qualquer credo religioso mas sim a psicologia do homo religiosus do homem que considera e observa cuidadosamente certos fatores que agem sobre ele e sobre seu estado geral É fácil a tarefa de denominar e definir tais fatores segundo a tradição histórica ou o saber etnológico mas é extremamente difícil fazêlo do ponto de vista da psicologia Minha contribuição relativa ao problema religioso provém exclusivamente da experiência prática com meus pacientes e com as pessoas ditas normais Visto que nossas experiências com os seres humanos dependem em grau considerável daquilo que fazemos com eles a única via de acesso para meu tema será a de proporcionar uma ideia geral do modo pelo qual procedo no meu trabalho profissional Referências CÍCERO MT De inventione rhetorica Pro coelio Beides in Opera omnia Lyon 1588 OTTO R Das Heilige Breslau 1917 PEARCY HR A Vindication of Paul Nova York 1936 JAMES W Pragmatism LondresNova York 1911 SCHOLZ H Die Religionsphilosophie des AlsOb Leipzig 1921 Fonte OC 111 111 1 OTTO R Das Heilige Breslau se 1917 2 A gratia adiuvans e a gratia sanctificans são os efeitos sacramentam ex opere operato O sacramento deve sua eficácia ao fato de ter sido instituído diretamente por Cristo A Igreja é incapaz de unir o rito à graça de forma que o actus sacramentalis produza a presença e o efeito da graça isto é a res et sacramentum Portanto o rito exercido pelo padre não é causa instrumentalis mas simplesmente causa ministerialis 3 But our esteem for facts has not neutralized in us ali religiousness It is itself almost religious Our scientific temper is devout Porém nosso respeito pelos fatos não neutralizou em nós toda religiosidade Ele mesmo é quase religioso Nossa disposição científica é piedosa Pragmatism 1911 p 14s 4 Religio est quae superioris cuiusdam naturae quam divinam vocant curam caeremoniamque affert Cicero De Inventione Rhetorica II p 147 Religião é aquilo que nos incute zelo e um sentimento de reverência por uma certa natureza de ordem superior que chamamos divina Religiose testimonium dicere ex jurisjurandi fide Cicero Pro Coelio 55 Prestar religiosamente um testemunho com um juramento de fé 5 SCHOLZ H Die Religionsphilosophie des AlsOb Leipzig se 1921 insiste num ponto de vista semelhante cf tb PEARCY HR A Vindication of Paul Nova York se 1936 II SIMBOLISMO RELIGIOSO Uma verdade só é válida a longo prazo quando se transforma e torna a trazer seu testemunho através de novas imagens em novas línguas como um novo vinho que é acondicionado em odres novos OC 5 553 Símbolo é para mim a expressão perceptível aos sentidos de uma vivência interior Cartas vol 1 A função dos símbolos religiosos 560 Ainda que a consciência civilizada já se tenha libertado dos instintos básicos estes não desapareceram perderam apenas seu contato com a consciência Por isso viramse forçados a manifestarse de modo indireto ou seja através do que Janet chamou de automatismos no caso de uma neurose através de sintomas e no caso normal através de incidentes de todo tipo como disposições inexplicáveis de humor esquecimento inesperado equívocos etc Estas manifestações realçam de maneira clara a autonomia do arquétipo É fácil achar que somos senhores em nossa própria casa mas enquanto não estivermos em condições de dominar nossos sentimentos e disposições de espírito ou de ter consciência das centenas de caminhos secretos onde se imiscuem pressupostos inconscientes em nossos arranjos e decisões não somos senhores Ao contrário temos tantos motivos de incerteza que faríamos bem em pensar duas vezes antes de agir 561 A pesquisa da consciência é impopular ainda que fosse muito necessária sobretudo em nosso tempo em que o homem está ameaçado por perigos mortais que ele mesmo criou e que lhe fogem ao controle Se considerarmos a humanidade como um indivíduo nossa situação atual se parece à de uma pessoa que é arrastada por forças inconscientes Pela cortina de ferro está dissociado como um neurótico O homem ocidental que até aqui representou a consciência autêntica percebe aos poucos a vontade agressiva de poder do lado oriental e se vê forçado a medidas incomuns Todos os seus vícios ainda que desmentidos oficialmente e encobertos pelas boas maneiras internacionais lhe são lançados em rosto de forma escandalosa e metódica pelo Oriente O que o Ocidente manobrou ainda que em segredo e escondeu com certa vergonha sob o manto de mentiras diplomáticas de manobras enganosas de distorções dos fatos e de ameaças veladas voltase agora contra ele e o confunde totalmente Um caso tipicamente neurótico O rosto de nossa própria sombra ri de nós através da cortina de ferro 562 Daí se explica o enorme sentimento de desamparo que atormenta a consciência ocidental Começamos a admitir que a natureza do conflito seja um problema moral e espiritual e nos esforçamos por encontrar alguma solução qualquer Aos poucos nos convencemos de que as armas nucleares são uma solução desesperadora e indesejável porque são uma espada de dois gumes Compreendemos que os recursos morais e espirituais poderiam ser mais eficazes uma vez que podem imunizarnos psiquicamente contra a infecção que se alastra sempre mais Mas todos esses esforços são e serão inúteis enquanto tentarmos convencer a nós mesmos e o mundo de que elas os nossos adversários estão completamente errados do ponto de vista moral e filosófico Esperamos que se arrependam e reconheçam seus erros em vez de fazermos um sério esforço de reconhecer nossas sombras e suas maquinações traiçoeiras Pudéssemos ver nossas sombras estaríamos imunizados contra qualquer infecção e qualquer infiltração moral e religiosa Mas enquanto isso não acontecer estamos expostos a todo tipo de contágio pois na prática fazemos o mesmo que eles só com a desvantagem suplementar de não vermos nem querermos ver o que praticamos sob o manto de nossas boas maneiras 563 O Oriente por sua vez tem um grande mito que nós em nossa vã esperança de que nosso critério superior o fará desaparecer chamamos de ilusão Este mito é o venerando e arquetípico sonho da época áurea ou do paraíso onde todos teriam tudo e onde um chefe supremo justo e sábio dirige o jardim de infância Este poderoso arquétipo em sua forma infantil tem seu encanto e nosso critério superior sozinho não o expulsará do cenário do mundo Ele não desaparece mas ao contrário alastrase cada vez mais porque nós o ajudamos a propagarse através de nossa infantilidade que não reconhece que nossa civilização está presa nas garras dos mesmos preconceitos míticos O Ocidente entregase às mesmas esperanças ideias e expectativas Acreditamos no Estado assistencialista na paz mundial mais ou menos na igualdade de direitos de todas as pessoas nos direitos humanos válidos para sempre na justiça e na verdade e falando baixinho no reino de Deus na Terra 564 Lamentavelmente é verdade que nosso mundo e vida consistem de opostos inexoráveis dia e noite bemestar e sofrimento nascimento e morte bem e mal E sequer temos certeza se um compensa o outro se o bem compensa o mal se a alegria compensa a dor A vida e o mundo são um campo de batalha sempre o foram e sempre o serão e se assim não fosse a existência logo teria um fim Um estado de perfeito equilíbrio não existe em lugar nenhum Esta é também a razão por que uma religião altamente desenvolvida como o cristianismo esperava o fim próximo desse mundo e por que o budismo lhe coloca realmente um fim voltando as costas para todos os desejos terrenos Estas soluções categóricas seriam simplesmente um suicídio não estivessem elas ligadas a certas ideias morais e religiosas que constituem o substrato dessas duas religiões 565 Lembro isso porque em nossa época há muitas pessoas que perderam sua fé em uma ou outra das religiões do mundo Já não reservam nenhum lugar para ela Enquanto a vida flui harmoniosamente sem ela a perda não é sentida Sobrevindo porém o sofrimento a situação muda às vezes drasticamente A pessoa procura então subterfúgios e começa a pensar sobre o sentido da vida e sobre as experiências acabrunhadoras que a acompanham Segundo uma estatística o médico é mais solicitado nesses casos por judeus e protestantes e menos por católicos Isto é assim porque a Igreja Católica se sente responsável pela cura animarun pela cura das almas Acreditase na ciência e por isso são colocadas hoje aos psiquiatras as questões que antigamente pertenciam ao campo do teólogo As pessoas têm a sensação de que faz ou faria grande diferença se tivessem uma fé firme num modo de vida com sentido ou em Deus e na imortalidade O fantasma da morte que paira ameaçador diante delas é muitas vezes uma força motriz bem forte nesses pensamentos Desde tempos imemoriais as pessoas criaram concepções de um ou mais seres superiores e de uma vida no além Só a época moderna acredita poder viver sem isso Pelo fato de não se poder ver com a ajuda do telescópio e do radar o céu com o trono de Deus e pelo fato de não se haver provado com certeza que os entes queridos ainda vagueiam por aí com um corpo mais ou menos visível supõese que essas concepções não sejam verdadeiras Enquanto concepções não são inclusive verdadeiras o bastante pois acompanharam a vida humana desde os tempos préhistóricos e ainda agora estão prontas a irromper na consciência na primeira oportunidade 566 É até lamentável a perda dessas convicções Tratandose de coisas invisíveis e irreconhecíveis Deus está além de qualquer compreensão humana e a imortalidade não se pode comprovar para que procurar testemunhos ou a verdade Suponhamos que nada soubéssemos sobre a necessidade do sal em nossa alimentação assim mesmo nos beneficiaríamos de seu uso Mesmo admitindo que o uso do sal devesse ser atribuído a uma ilusão de nosso paladar ou que ele procedesse de uma superstição ainda assim contribuiria para o nosso bemestar Por que brigar por convicções que se mostram úteis nas crises e que podem dar sentido à nossa existência Como saber se estas ideias não são verdadeiras Muitas pessoas concordariam comigo se eu estivesse convencido de que essas ideias são inverossímeis O que elas não sabem porém é que esta negação também é inverossímil A decisão cabe exclusivamente a cada um Somos totalmente livres para escolher nosso ponto de vista De qualquer forma será sempre arbitrário Por que nutrir ideias das quais sabemos que jamais poderão ser demonstradas O único argumento empírico que se pode aduzir a seu favor é que são úteis e que são usadas até certo ponto Dependemos realmente de ideias e convicções gerais porque são capazes de dar sentido à nossa existência A pessoa consegue suportar dificuldades inacreditáveis quando está convencida do significado delas e se sente derrotada quando tem de admitir que além de sua má sorte aquilo que faz não tem sentido algum 567 É finalidade e aspiração dos símbolos religiosos dar sentido à vida humana Quando os índios pueblo acreditam que são filhos do pai Sol então sua vida tem uma perspectiva e objetivo que ultrapassam sua existência individual e limitada Isto deixa um espaço precioso para o processo de desenvolvimento de sua personalidade e é incomparavelmente mais satisfatório do que a certeza de que se é e continua sendo um servente de bazar Se Paulo estivesse convencido de que não era mais que um fabricante itinerante de tapetes não teria sido ele mesmo O que deu realidade e sentido à sua vida foi a certeza de que era um mensageiro de Deus Poderíamos acusálo de megalomania mas este aspecto esmaece diante do testemunho da História e do consensus omnium consenso de todos O mito que se apoderou dele fez de Paulo alguém maior do que um simples artesão 568 O mito se compõe de símbolos que não foram inventados mas que simplesmente aconteceram Não foi o homem Jesus que criou o mito do homemdeus Este já existia há séculos Ao contrário ele mesmo foi tomado por esta ideia simbólica que segundo descreve Marcos o tirou da oficina de carpinteiro e da limitação espiritual de seu meio ambiente Os mitos provêm dos contadores primitivos de histórias e de seus sonhos de pessoas que eram estimuladas pelas noções de sua fantasia e que pouco se diferenciaram daquelas que mais tarde chamaríamos de poetas ou filósofos Os contadores primitivos de histórias nunca se perguntaram muito sobre a origem de suas fantasias Só bem mais tarde começouse a pensar sobre a procedência da história Já na Grécia Antiga o intelecto humano estava suficientemente desenvolvido para chegar à suposição de que as histórias que se contavam sobre os deuses nada mais eram do que tradições antigas e exageradas de reis da Antiguidade e de suas façanhas Já naquela época supunham que o mito não devia ser tomado literalmente por causa de seu absurdo óbvio Por isso tentaram reduzilo a uma fábula de compreensão geral É isso precisamente que nossa época tentou fazer com o simbolismo dos sonhos pressupõese que o sonho não signifique exatamente o que parece dizer mas algo conhecido e compreendido em geral que devido à sua qualidade inferior não é declarado abertamente Mas para quem se livrara de seus antolhos convencionais já não havia mistério Parecia certo que os sonhos não significavam exatamente aquilo que aparentavam dizer mas outra coisa 569 Esta suposição é no entanto completamente arbitrária Já o Talmude dizia com mais acerto O sonho é sua própria interpretação Por que deveria o sonho significar outra coisa e não aquilo que nele se manifesta Existe na natureza alguma coisa que seja diferente do que ela é O platípode por exemplo aquele monstro primitivo que nenhum zoólogo poderia ter inventado não é ele simplesmente o que é O sonho é um fenômeno normal e natural que certamente é apenas aquilo que é e nada mais significa do que isso Dizemos que seu conteúdo é simbólico não só porque ele evidentemente possui um significado mas porque aponta para várias direções e deve significar algo que é inconsciente ou que ao menos não é consciente em todos os seus aspectos 570 Para um intelecto científico fenômenos como as representações simbólicas são altamente irritantes porque não se deixam formular de maneira satisfatória à nossa inteligência e ao nosso modo lógico de pensar Elas não estão isoladas dentro da psicologia As dificuldades já começam com o fenômeno do afeto ou das emoções que foge a qualquer tentativa do psicólogo de traçarlhe os limites de um conceito mais preciso A causa da dificuldade é a mesma em ambos os casos é a intervenção do inconsciente Estou suficientemente familiarizado com o ponto de vista científico para entender que é sumamente desagradável ter de lidar com fatos que não conseguimos entender plenamente ou ao menos de modo satisfatório Em ambos os casos a dificuldade está em que nos vemos confrontados com fatos indiscutíveis mas que não podem ser expressos através de conceitos intelectuais Em lugar de particularidades observáveis e de características nitidamente distinguíveis é a própria vida que se manifesta em emoções e ideias simbólicas Em muitos casos elas são evidentemente as mesmas Não existe fórmula intelectual capaz de resolver esta tarefa impossível e expor satisfatoriamente algo tão complexo 571 O psicólogo acadêmico é perfeitamente livre em deixar de lado a emoção ou o inconsciente ou ambos mas a realidade persiste ao menos o psicólogo clínico deve darlhes muita atenção pois os conflitos emocionais e as interferências do inconsciente são características de sua ciência Ao tratar de um paciente ele será confrontado com tais coisas irracionais quer saiba formulálas intelectualmente quer não Ele deve reconhecer sua existência bastante incômoda Portanto é natural que alguém que não tenha sentido ou experimentado os fatos de que fala o psicólogo clínico possa não entender sua terminologia Quem não teve a oportunidade ou a infelicidade de passar por esta situação ou outra semelhante quase não está em condições de entender os fatos que começam a acontecer quando a psicologia deixa de ser uma ocupação de trabalho sereno e controlado e se torna uma verdadeira aventura da vida Tiro ao alvo num estande de tiro ainda não é uma batalha mas o médico tem que lidar com feridos numa verdadeira guerra Por isso tem que interessarse pelas realidades psíquicas mesmo que não consiga definilas com conceitos científicos Pode darlhes nomes mas sabe que os conceitos que usa para designar os fatores principais da vida real não pretendem ser mais do que nomes para fatos que devem ser experimentados em si porque não são reproduzíveis através de seus nomes Nomes são apenas palavras e palavras nunca equivalem aos fatos Nenhum manual pode ensinar verdadeiramente psicologia mas apenas a experiência real dos fatos Não basta aprender de cor palavras para obter algum conhecimento pois os símbolos são realidades vivas existenciais e não simples sinais de algo já conhecido 572 Na religião cristã a cruz é um símbolo muito significativo que exprime uma diversidade de aspectos representações e emoções mas uma cruz precedendo o nome de uma pessoa significa que ela já morreu O falo ou lingam serve na religião hindu de símbolo universal e mesmo que um garoto use um quadro desses para decorar um canto escuro isto significa simplesmente que tem interesse em seu pênis Na medida em que fantasias infantis e da adolescência penetram fundo na idade adulta ocorrem muitos sonhos que contêm indiscutíveis alusões sexuais Seria absurdo entendêlos de outra forma Mas quando um telhador fala de monges e freiras que devem ser colocados uns sobre os outros ou quando um serralheiro europeu fala de chaves masculinas e femininas seria absurdo supor que ele está se ocupando com fantasias de juventude Eles simplesmente pensam num tipo bem determinado de telhas ou chaves Esses objetos não são símbolos sexuais Apenas receberam nomes sugestivos Mas quando um hindu culto fala conosco sobre o lingam ouvimos coisas que jamais teríamos ligado ao pênis Inclusive é muito difícil adivinhar o que ele entende exatamente por este conceito e chegase à conclusão natural de que o lingam simboliza muitas coisas O lingam não é de forma alguma uma alusão obscena assim como a cruz não é apenas um sinal de morte mas também um símbolo para grande número de outras concepções Muito depende da maturidade do sonhador que produz tal quadro 573 A interpretação de sonhos e símbolos requer certa inteligência Não é possível mecanizála ou incutila em cabeças imbecis e sem fantasia Ela exige um conhecimento sempre maior da individualidade do sonhador bem como um autoconhecimento sempre maior por parte do intérprete Ninguém familiarizado com este campo negará que existem regras básicas que podem ser úteis mas devem ser usadas com cautela e inteligência Não é dado a todos dominar a técnica Podese seguir corretamente as regras andar pelo caminho seguro da ciência e assim mesmo incorrer no maior absurdo pelo fato de não ter levado em consideração um detalhe aparentemente sem importância que não teria escapado a uma inteligência mais aguçada Mesmo uma pessoa com inteligência altamente desenvolvida pode errar muito porque não aprendeu a usar sua intuição ou sentimento que podem inclusive estar num grau de desenvolvimento lastimavelmente baixo 574 Fato é que a tentativa de entender símbolos não se confronta só com o símbolo em si mas com a totalidade de um indivíduo que gera símbolos Se tivermos real aptidão podemos ter algum êxito Mas via de regra é necessário fazer um exame especial do indivíduo e de sua formação cultural Com isso podese aprender muita coisa e aproveitar a oportunidade de preencher as próprias lacunas culturais Tracei como norma para mim considerar todo caso como tarefa totalmente nova do qual não sei nada A rotina pode ser útil e de fato é enquanto estamos lidando com a superfície mas quando atingimos os problemas principais a própria vida toma o comando e então até as premissas teóricas mais brilhantes tornamse palavras ineficazes 575 Isto faz do ensino dos métodos e técnicas neste campo um grande problema Como falei acima o estudante precisa assimilar uma quantidade de conhecimentos específicos Isso lhe proporciona as ferramentas intelectuais necessárias mas o principal isto é o manejo delas ele só o aprende depois de submeterse a uma análise que lhe mostrará os seus próprios conflitos Para alguns indivíduos ditos normais mas sem fantasia isto pode ser uma tarefa penosa Eles são incapazes por exemplo de reconhecer o simples fato de que os acontecimentos psíquicos nos acometem espontaneamente Tais pessoas preferem aterse à ideia de que aquilo que sempre acontece é produzido por eles mesmos ou é patológico e deve ser curado por comprimidos ou injeções Esses casos mostram que a normalidade enfadonha está próxima da neurose Além do mais são também estas pessoas que mais rapidamente são vítimas de epidemias mentais 576 Em todos os graus mais elevados da ciência desempenha papel cada vez mais importante ao lado do puro intelecto e de sua formação e aplicabilidade a fantasia e a intuição Mesmo a física a mais estrita das ciências aplicadas depende em grau surpreendente da intuição que trabalha com a ajuda de processos inconscientes e conclusões não lógicas ainda que posteriormente se possa demonstrar que um processo lógico de pensar teria levado ao mesmo resultado 577 A intuição é quase indispensável na interpretação dos símbolos e pode trazer por parte do sonhador uma aceitação imediata Por mais convincente que seja subjetivamente essa feliz ideia é também perigosa pois pode conduzir alguém para um sentimento falso de certeza Pode até mesmo levar a que o intérprete e o sonhador transformem em costume esta forma de troca relativamente fácil o que pode terminar numa espécie de sonho comum O fundamento seguro de um conhecimento e compreensão intelectuais e morais genuínos se perde quando a gente se contenta com a vaga sensação de haver entendido Quando perguntamos a essas pessoas sobre as razões de sua assim chamada compreensão normalmente se verifica que não sabem dar nenhuma explicação Só podemos explicar e conhecer quando colocamos nossa intuição sobre a base segura de um conhecimento real dos fatos e de suas conexões lógicas Um pesquisador honesto há de concordar que isto não é possível em alguns casos pois seria desleal não levar em consideração tais casos Sendo o cientista uma simples pessoa humana é perfeitamente natural que odeie as coisas que não sabe explicar e caia na bemconhecida ilusão de que aquilo que hoje sabemos é o mais alto grau do conhecimento Nada é mais vulnerável e passageiro do que as teorias científicas que sempre são meros instrumentos e nunca verdades eternas Fonte OC 181 cap 6 560577 A cura da divisão 578 É sobretudo a psicologia clínica que se ocupa com o estudo dos símbolos por isso seu material consiste dos chamados símbolos naturais em oposição aos símbolos culturais Aqueles são derivados diretamente dos conteúdos inconscientes e apresentam por isso grande número de variantes de motivos individuais chamadas imagens arquetípicas Devem seu nome ao fato de poderem ser seguidas muitas vezes até suas raízes arcaicas isto é até documentos da mais antiga préhistória ou até às représentations collectives das sociedades primitivas A respeito disso gostaria de remeter o leitor a livros como o trabalho de Eliade sobre o xamanismo onde encontramos grande quantidade de exemplos esclarecedores 579 Os símbolos culturais ao contrário são os que expressam verdades eternas e ainda estão em uso em todas as religiões existentes Esses símbolos passaram por muitas transformações e por alguns processos maiores ou menores de aprimoramento tornandose assim as représentations collectives das sociedades civilizadas Conservaram em grande parte sua numinosidade original e funcionam como preconceitos no sentido positivo e negativo com os quais o psicólogo deve contar seriamente 580 Ninguém pode rejeitar essas coisas numinosas por motivos puramente racionais São partes importantes de nossa estrutura mental e não podem ser erradicadas sem uma grande perda pois participam como fatores vitais na construção da sociedade humana e isto desde tempos imemoriais Quando são reprimidas ou desprezadas sua energia específica desaparece no inconsciente com consequências imprevisíveis A energia aparentemente perdida revive e intensifica o que sempre está por cima no inconsciente isto é tendências que até então não tiveram oportunidade de manifestarse ou não puderam ter uma existência desinibida na consciência constituindo assim uma sombra sempre destrutiva Mesmo as tendências que poderiam exercer uma influência altamente benéfica transformamse em verdadeiros demônios quando são reprimidas Por isso muitas pessoas bem intencionadas têm razão em temer o inconsciente e também a psicologia 581 Nossa época demonstrou o que significa quando as portas do submundo psíquico são abertas Aconteceram coisas cuja monstruosidade não poderia ser imaginada pela inocência idílica da primeira década do nosso século O mundo foi revirado por elas e encontrase desde então num estado de esquizofrenia Não só a grande e civilizada Alemanha cuspiu seu primitivismo assustador mas também a Rússia foi por ele comandada e a África está em chamas Não admira que o mundo ocidental se sinta constrangido pois não sabe o quanto está implicado no submundo revolucionário e o que perdeu com a destruição do numinoso Perdeu seus valores espirituais normais em proporções desconhecidas e muito perigosas Sua tradição moral e espiritual foi ao diabo e deixou atrás de si uma desorientação e dissociação universais 582 Poderíamos ter aprendido há muito tempo do exemplo das sociedades primitivas o que significa a perda do numinoso elas perdem sua razão de ser o sentido de sua vida sua organização social e então se dissolvem e decaem Encontramonos agora na mesma situação Perdemos algo que nunca chegamos a entender direito Não podemos eximir nossos dirigentes espirituais da acusação de que estavam mais interessados em proteger sua organização do que em entender o mistério que o ser humano apresentava em seus símbolos A fé não exclui a razão na qual reside a maior força do ser humano Nossa fé teme a ciência e também a psicologia e desvia o olhar da realidade fundamental do numinoso que sempre guia o destino dos homens 583 As massas e seus líderes não reconhecem que há uma diferença essencial se tratamos o princípio universal de forma masculina e pai ou de forma feminina e mãe pai espírito mãe matéria É de somenos importância porque sabemos tão pouco de um quanto de outro Desde os inícios da mente humana ambos eram símbolos numinosos e sua importância estava em sua numinosidade e não em seu sexo ou em outros atributos casuais Tiramos de todas as coisas seu mistério e sua numinosidade e nada mais é sagrado Mas como a energia nunca desaparece também a energia emocional que se manifesta nos fenômenos numinosos não deixa de existir quando ela desaparece do mundo da consciência Como já afirmei ela reaparece em manifestações inconscientes em fatos simbólicos que compensam certos distúrbios da psique consciente Nossa psique está profundamente conturbada pela perda dos valores morais e espirituais Sofre de desorientação confusão e medo porque perdeu suas idées forces dominantes e que até agora mantiveram em ordem nossa vida Nossa consciência já não é capaz de integrar o afluxo natural dos epifenômenos instintivos que sustentam nossa atividade psíquica consciente Isto já não é possível como antigamente porque a própria consciência se privou dos órgãos pelos quais poderiam ser integradas as contribuições auxiliares dos instintos e do inconsciente Esses órgãos eram os símbolos numinosos considerados sagrados pelo consenso comum isto é pela fé 584 Um conceito como matéria física despido de sua conotação numinosa de Grande Mãe já não expressa o forte sentido emocional da Mãe Terra É um simples termo intelectual seco qual pó e totalmente inumano Da mesma forma o espírito identificado com o intelecto cessa de ser o Pai de tudo e degenera para a compreensão limitada das pessoas E a poderosa quantidade de energia emocional expressa na imagem de nosso Pai desaparece nas areias de um deserto intelectual 585 Por causa da mentalidade científica nosso mundo se desumanizou O homem está isolado no cosmos Já não está envolvido na natureza e perdeu sua participação emocional nos acontecimentos naturais que até então tinham um sentido simbólico para ele O trovão já não é a voz de Deus nem o raio seu projétil vingador Nenhum rio contém qualquer espírito nenhuma árvore significa uma vida humana nenhuma cobra incorpora a sabedoria e nenhuma montanha é ainda habitada por um grande demônio Também as coisas já não falam conosco nem nós com elas como as pedras fontes plantas e animais Já não temos uma alma da selva que nos identifica com algum animal selvagem Nossa comunicação direta com a natureza desapareceu no inconsciente junto com a fantástica energia emocional a ela ligada 586 Esta perda enorme é compensada pelos símbolos de nossos sonhos Eles trazem novamente à tona nossa natureza primitiva com seus instintos e modos próprios de pensar Infelizmente poderíamos dizer expressam seus conteúdos na linguagem da natureza que nos parece estranha e incompreensível Isto nos coloca a tarefa incomum de traduzir seu vocabulário para os conceitos e categorias racionais e compreensíveis de nossa linguagem atual que conseguiu libertarse de sua escória primitiva isto é de sua participação mística com as coisas Falar de espíritos e de outras figuras numinosas já não significa invocálos Já não acreditamos em fórmulas mágicas Já não restaram muitos tabus e restrições semelhantes Nosso mundo parece ter sido desinfetado de todos esses numes supersticiosos como bruxas feiticeiros e duendes para não falar de lobisomens vampiros almas da floresta e de todas as outras entidades estranhas e bizarras que povoam as matas virgens 587 Ao menos a superfície de nosso mundo parece estar purificada de toda superstição e componentes irracionais Outra questão é se o mundo realmente humano e não nossa ficção desejosa dele também está livre de todo primitivismo O número 13 não é ainda para muitas pessoas um tabu Não existem ainda muitos indivíduos tomados por estranhos preconceitos projeções e ilusões infantis Um quadro realista revela muitos traços e restos primitivos que ainda desempenham um papel como se nada tivesse acontecido nos últimos quinhentos anos O homem de hoje é realmente uma mistura curiosa de características que pertencem aos longos milênios de seu desenvolvimento mental Este é o ser humano com cujos símbolos temos que lidar e quando nos confrontamos com ele temos que examinar cuidadosamente seus produtos mentais Pontos de vista céticos e convicções científicas existem lado a lado com preconceitos ultrapassados modos de pensar e sentir superados interpretações erradas mas teimosas e ignorância cega 588 Assim são as pessoas que produzem os símbolos que examinamos em seus sonhos Para explicar os símbolos e seu significado é necessário descobrir se as representações a eles ligadas são as mesmas de sempre ou se foram escolhidas pelo sonho para seu objetivo determinado a partir de um estoque geral de conhecimentos conscientes Quando por exemplo estudamos um sonho onde aparece o número 13 surge a pergunta Será que o sonhador acredita habitualmente na natureza desfavorável desse número ou o sonho só alude a pessoas que ainda se entregam a tais superstições A resposta a esta pergunta é de grande importância para a interpretação No primeiro caso temos que contar com o fato de que o indivíduo ainda acredita no azar do número 13 sentindose portanto desconfortável num quarto número 13 ou à mesa com 13 pessoas No segundo caso o número 13 nada mais significa do que uma observação crítica ou desprezível No primeiro caso tratase de uma representação ainda numinosa no segundo está desprovido de sua emotividade original e assumiu o caráter inofensivo de um mensageiro indiferente 589 Pretendi demonstrar com isso como se apresentam os arquétipos na experiência prática No primeiro caso aparecem em sua forma original isto é são imagens e ao mesmo tempo emoções Só podemos falar de um arquétipo quando estão presentes esses dois aspectos ao mesmo tempo Estando presente apenas uma imagem ela é tão somente uma imagem de palavra como um corpúsculo sem carga elétrica Ela é por assim dizer inerte mera palavra e nada mais Mas se a imagem estiver carregada de numinosidade isto é de energia psíquica então ela é dinâmica e produzirá consequências Por isso é grande erro em todos os casos práticos tratar um arquétipo como simples nome palavra ou conceito E muito mais do que isso é um pedaço de vida enquanto é uma imagem que está ligada a um indivíduo vivo por meio da ponte do sentimento É um erro bastante difundido considerar os arquétipos como conceitos ou palavras e não ver que o arquétipo é ambas as coisas uma imagem e uma emoção A palavra sozinha é mera abstração uma moeda circulante no comércio intelectual Mas o arquétipo é algo vivo por assim dizer Ele não é cambiável ilimitadamente mas pertence sempre à economia psíquica do indivíduo vivo do qual não pode ser separado e usado arbitrariamente para outros fins Não pode ser explicado de qualquer forma apenas da forma indicada pelo respectivo indivíduo O símbolo da cruz por exemplo só pode ser interpretado no caso de um bom cristão de maneira cristã a não ser que o sonho traga razões bem fortes em contrário mas ainda assim é bom não perder de vista o sentido cristão Quando se tira das imagens arquetípicas sua carga emocional específica a vida foge delas e elas se tornam meras palavras E então é possível vinculálas a outras representações mitológicas e ao final ainda mostrar que tudo significa tudo Todos os cadáveres deste mundo são quimicamente iguais mas as pessoas vivas não o são 590 O simples uso de palavras é fértil quando não se sabe para que servem Isto vale principalmente para a psicologia onde se fala de arquétipos como anima e animus o velho sábio a grande mãe etc Podese conhecer todos os santos sábios profetas e outros homens de Deus e todas as grandes mães do mundo mas se permanecerem simples imagens cuja numinosidade nunca experimentamos é como falar em sonho pois não se sabe o que se está falando As palavras que empregamos são vazias e inúteis Elas só despertam para um sentido e para a vida quando tentamos experimentar sua numinosidade isto é sua relação com o indivíduo vivo Só então começamos a perceber que os nomes significam muito pouco mas a maneira como estão relacionados a alguém isto é de importância decisiva 591 A função geradora de símbolos de nossos sonhos é uma tentativa de trazer nossa mente original de volta à consciência onde ela nunca esteve antes e nunca se submeteu a uma autorreflexão crítica Nós fomos esta mente mas nunca a conhecemos Nós nos livramos dela antes mesmo de a compreendermos Ela brotou de seu berço e raspou suas características primitivas como se fossem cascas incômodas e inúteis Parece até que o inconsciente representou o depósito desses restos Os sonhos e seus símbolos referemse constantemente a eles como se pretendessem trazer de volta todas as coisas velhas e primitivas das quais a mente se livrou durante o curso de sua evolução ilusões fantasias infantis formas arcaicas de pensar e instintos primitivos Este é na verdade o caso e ele explica a resistência até mesmo o horror e medo de que alguém é tomado quando se aproxima dos conteúdos inconscientes Aqui a gente se choca menos com a primitividade do que com a emotividade dos conteúdos Este é realmente o fator perturbador esses conteúdos não são apenas neutros ou indiferentes mas são carregados de tal emoção que são mais do que simplesmente incômodos Produzem até mesmo pânico e quanto mais reprimidos forem mais perpassam toda a personalidade na forma de uma neurose 592 É sua carga emocional que lhes dá uma importância decisiva É como uma pessoa que tendo passado uma fase de sua vida em estado inconsciente de repente reconhece que existe uma lacuna em sua memória que se estende por um período onde aconteceram coisas importantes das quais não consegue lembrarse Admitindo que a psique é um assunto exclusivamente pessoal e esta é a suposição usual tentará reconduzir para a memória as recordações infantis aparentemente perdidas Mas as lacunas de memória em sua infância são meros sintomas de uma perda bem maior isto é a perda da psique primitiva a psique que teve funções vivas antes que fosse pensada pela consciência Assim como na evolução do corpo embrionário se repete sua préhistória também a mente humana percorre uma série de degraus préhistóricos em seu processo de maturação 593 Os sonhos parecem considerar sua tarefa principal trazer de volta uma espécie de recordação do mundo infantil e do mundo préhistórico até ao nível mais baixo dos instintos bem primitivos como se esta recordação fosse um tesouro valioso Estas recordações podem de fato ter um notável efeito curador em certos casos como Freud o notara há muito tempo Esta observação confirma o ponto de vista de que uma lacuna infantil na memória uma dita amnésia representa de fato uma perda e que a recuperação da memória significa um certo aumento de vitalidade e bemestar Uma vez que medimos a vida psíquica da criança pela escassez e simplicidade de seus conteúdos da consciência desconsideramos as grandes complicações da mente infantil que provêm de sua identidade original com a psique pré histórica Esta mente original está tão presente e atuante na criança quanto os graus de evolução no corpo embrionário Se o leitor se lembrar do que eu disse sobre os sonhos da criança acima referida terá uma boa ideia do que pretendo dizer 594 Na amnésia infantil encontramos uma mistura estranha de fragmentos mitológicos que muitas vezes aparecem também em psicoses posteriores Estas imagens são numinosas em alto grau e portanto de grande importância Quando essas recordações aparecem novamente na idade adulta podem causar as mais fortes emoções ou trazer curas admiráveis ou uma conversão religiosa Muitas vezes trazem de volta um pedaço da vida que faltou por muito tempo e que dá plenitude à vida humana 595 Trazer à tona lembranças infantis e modos arquetípicos da função psíquica produz um alargamento do horizonte da consciência supondose que a pessoa consiga assimilar e integrar os conteúdos perdidos e reencontrados Não sendo eles neutros sua assimilação vai provocar uma modificação em nossa personalidade assim como eles mesmos vão sofrer certas alterações necessárias Nesta fase do processo de individuação a interpretação dos símbolos tem um papel prático muito grande pois os símbolos são tentativas naturais de lançar uma ponte sobre o abismo muitas vezes profundo entre os opostos e de equilibrar as diferenças que se manifestam na natureza contraditória de muitos símbolos Seria um erro particularmente funesto nesse trabalho de assimilação se o intérprete considerasse apenas as recordações conscientes como verdadeiras e reais e relegasse os conteúdos arquetípicos como simples representações da fantasia Apesar de seu caráter fantasioso eles representam forças emocionais ou numinosidades Se tentarmos colocálos de lado haveremos de reprimilos e reconstituir o estado neurótico anterior O numinoso confere aos conteúdos um caráter autônomo Isto é um fato psicológico que não se pode negar Se apesar de tudo for negado seriam anulados os conteúdos reconquistados e toda tentativa de síntese seria em vão Como isso parece uma saída cômoda é muitas vezes escolhida 596 Não se nega apenas a existência dos arquétipos mas inclusive as pessoas que admitem sua existência os tratam normalmente como se fossem imagens e esquecem completamente que eles são entidades vivas que perfazem uma grande parte da psique humana Assim que o intérprete se livra de forma ilegítima do numinoso começa o processo de uma infindável substituição isto é passase sem empecilho de arquétipo para arquétipo tudo significando tudo e o processo todo foi levado ao absurdo É verdade que as formas dos arquétipos são intercambiáveis em proporção considerável mas a numinosidade deles é e permanece um fato Ela possui o valor de um acontecimento arquetípico O intérprete deve ter presente esse valor emocional e leválo em conta durante todo o processo intelectual de interpretação O risco de perdêlo é grande porque a oposição entre pensar e sentir é tão considerável que o pensar facilmente destrói valores do sentir e viceversa A psicologia é a única ciência que leva em consideração o fator de valor isto é o sentir pois é o elo entre os acontecimentos psíquicos por um lado e o sentido e a vida por outro lado 597 Nosso intelecto criou um novo mundo que domina a natureza e a povoa com máquinas monstruosas que se tornaram tão úteis e imprescindíveis que não vemos possibilidade de nos livrarmos delas ou de escaparmos de nossa subserviência odiosa a elas O homem nada mais pode do que levar adiante a exploração de seu espírito científico e inventivo e admirarse de suas brilhantes realizações mesmo que aos poucos tenha de reconhecer que seu gênio apresenta uma tendência terrível de inventar coisas cada vez mais perigosas porque são meios sempre mais eficazes para o suicídio coletivo Considerando a avalanche da população mundial em rápido crescimento procuramse meios e saídas para deter a torrente Mas a natureza poderia anteciparse a todas as nossas tentativas voltando contra o homem seu próprio espírito criativo cuja inspiração ele deve seguir pelo acionamento da bomba H ou de outra invenção igualmente catastrófica que poria um fim à superpopulação Apesar de nosso domínio orgulhoso da natureza ainda somos vítimas dela tanto quanto sempre o fomos e não aprendemos a controlar nossa própria natureza que devagar mas inevitavelmente contribui para a catástrofe 598 Não há mais deuses que pudéssemos invocar em auxílio As grandes religiões sofrem no mundo todo de crescente anemia porque os numes prestativos fugiram das matas rios montanhas e animais e os homensdeuses sumiram no submundo isto é no inconsciente E supomos que lá eles levem uma existência ignominiosa entre os restos de nosso passado enquanto nós continuamos dominados pela grande Déesse Raison que é nossa ilusão dominadora Com sua ajuda fazemos coisas louváveis por exemplo livramos da malária o mundo difundimos em toda parte a higiene com o resultado de que povos subdesenvolvidos aumentem em tal proporção que surgem problemas de alimentação Nós vencemos a natureza é apenas um slogan A chamada vitória sobre a natureza nos subjuga com o fato muito natural da superpopulação e faz com que nossas dificuldades se tornem mais ou menos insuperáveis devido à nossa incapacidade de chegar aos acordos políticos necessários Faz parte da natureza humana brigar lutar e tentar uma superioridade sobre os outros Até que ponto portanto vencemos a natureza 599 Como é necessário que toda transformação tenha início num determinado tempo e lugar será o indivíduo singular que a fará e a levará a término A transformação começa num indivíduo que talvez possa ser eu mesmo Ninguém pode darse o luxo de esperar que outro faça aquilo que ele só faria de mau grado Uma vez que ninguém sabe do que é capaz deveria ter a coragem de perguntar a si mesmo se por acaso o seu inconsciente não pode colaborar com algo de útil quando não há à disposição nenhuma resposta consciente que satisfaça As pessoas de hoje estão pesarosamente cientes de que nem as grandes religiões nem suas inúmeras filosofias parecem fornecerlhes aquelas ideias poderosas que lhes dariam a base confiável e segura de que necessitam diante da situação atual do mundo 600 Sei que os budistas diriam e realmente o dizem se as pessoas seguissem pelo menos o nobre caminho óctuplo do Dharma doutrina lei e tivessem uma visão verdadeira do simesmo ou os cristãos se as pessoas tivessem ao menos a verdadeira fé no Senhor ou os racionalistas se as pessoas fossem ao menos inteligentes e razoáveis então seria possível superar e resolver todos os problemas A dificuldade está em que não podem superar nem resolver esses problemas nem são capazes de ser razoáveis Os cristãos se perguntam por que Deus não fala com eles como parece ter feito outrora Quando ouço esse tipo de pergunta penso sempre naquele Rabi que quando perguntado por que Deus se mostrava nos tempos antigos e agora ninguém mais o via respondeu Hoje em dia já não existe ninguém que pudesse inclinarse tão profundamente diante dele 601 Esta resposta acerta em cheio a questão Estamos tão enrolados e sufocados em nossa consciência subjetiva que esquecemos o fato antiquíssimo de que Deus fala sobretudo através de sonhos e visões O budista rejeita o mundo das fantasias inconscientes como ilusões sem valor o cristão coloca sua Igreja e sua Bíblia entre ele e seu inconsciente e o intelectual racional não sabe ainda que sua consciência não é sua psique total e isto apesar de o inconsciente ter sido por mais de setenta anos ao menos um conceito científico indispensável para todo pesquisador sério de psicologia 602 Já não podemos ter a pretensão de julgar à semelhança de Deus sobre o valor e desvalor dos fenômenos naturais Não podemos basear nossa botânica numa classificação de plantas úteis e inúteis nem nossa zoologia numa classificação de animais inofensivos e perigosos Mas pressupomos ainda tacitamente que a consciência tem sentido e o inconsciente não o tem é como se estivéssemos tentando saber se os fenômenos naturais têm sentido Os micróbios têm sentido ou não Tais avaliações mostram simplesmente o estado lamentável de nossa mente que esconde sua ignorância e incompetência sob o manto da megalomania É certo que os micróbios são muito pequenos e em grande parte desprezíveis e detestáveis mas seria tolice não saber nada sobre eles 603 Qualquer que seja a constituição do inconsciente é um fenômeno natural que gera símbolos e estes mostram ter sentido Assim como não se pode esperar de alguém que nunca olhou através de um microscópio que seja uma autoridade no campo da microbiologia também não podemos considerar como juiz competente no assunto aquele que nunca fez um estudo sério dos símbolos naturais Mas a subestima geral da psique humana é tão grande que nem as grandes religiões nem as filosofias e nem o racionalismo científico lhe dão qualquer atenção Ainda que a Igreja Católica admita a ocorrência de sonhos enviados por Deus somnia a Deo missa a maioria de seus pensadores não faz nenhuma tentativa de entendêlos Duvido que haja algum tratado protestante sobre temas dogmáticos que descesse tanto a ponto de considerar que a vox Dei pudesse ser ouvida nos sonhos Se alguém acredita de fato em Deus qual a autoridade que tem para dizer que Deus é incapaz de falar por meio de sonhos Onde estão aqueles que realmente se dão ao trabalho de interrogar os seus sonhos ou de experimentar uma série de fatos fundamentais sobre os sonhos e seus símbolos 604 Passei mais de meio século pesquisando os símbolos naturais e cheguei à conclusão de que os sonhos e seus símbolos não são nenhum absurdo estúpido Ao contrário eles fornecem informações muito interessantes basta esforçarnos para entender os símbolos É verdade que os resultados pouco têm a ver com compra e venda ou seja com os nossos interesses terrenos Mas o sentido de nossa vida não se esgota em nossas atividades comerciais nem os anseios da alma humana são saciados pela conta bancária mesmo que nunca tenhamos ouvido falar de outra coisa 605 Numa época em que toda a energia disponível é empregada na pesquisa da natureza pouca atenção se dá ao essencial do ser humano isto é à sua psique ainda que haja muitas pesquisas sobre suas funções conscientes Mas sua parte realmente desconhecida que produz os símbolos continua sendo terra desconhecida E mesmo assim ela nos envia toda noite seus sinais A decifração dessas mensagens parece ser um trabalho odioso e poucas pessoas do mundo civilizado dela se ocupam Pouco tempo é dedicado ao principal instrumento da pessoa humana isto é sua psique quando não é desprezada e considerada suspeita É apenas psicológico significa não é nada 606 Não sei exatamente donde provém esse preconceito monstruoso Estamos tão ocupados com a questão o que pensamos que esquecemos completamente de refletir sobre o que a psique inconsciente pensa dentro e a respeito de nós Freud fez uma séria tentativa de mostrar por que o inconsciente não merece um melhor julgamento e sua teoria aumentou e fortificou sem querer o desprezo já existente pela psique Se até então ela foi apenas desconsiderada e negligenciada tornouse agora um buraco de lixo moral do qual se tem um medo indizível 607 Este ponto de vista moderno é sem dúvida unilateral e injusto Não corresponde à verdade dos fatos Nosso real conhecimento do inconsciente mostra que ele é um fenômeno natural e que tanto quanto a própria natureza é no mínimo neutro Ele abrange todos os aspectos da natureza humana luz e escuridão beleza e feiura bem e mal o profundo e o insensato O estudo do simbolismo individual bem como do coletivo é uma tarefa enorme que ainda não foi realizada mas que finalmente foi iniciada Os resultados obtidos até agora são animadores e parecem conter uma resposta às muitas perguntas da humanidade atual Fonte OC 181 cap 67 578 607 III PSICOTERAPIA E RELIGIÃO O problema da cura é um problema religioso OC 116 523 A Psiconeurose em última instância é um sofrimento de uma alma que não encontrou o seu sentido OC 116 497 Introdução à problemática da psicologia religiosa da alquimia Calamum quassatum non conteret et linum fumigans non extinguet Is 423 Ele não quebrará o caniço rachado e não apagará a mecha fumegante 1 Quem já estiver familiarizado com a psicologia dos complexos não terá necessidade alguma destas observações à guisa de introdução às investigações aqui apresentadas Creio no entanto que o leitor leigo e despreparado precisa deste esclarecimento inicial O conceito de processo de individuação por um lado e a alquimia por outro parecem muito distantes entre si e é quase impossível para a imaginação conceber uma ponte que os ligue A este tipo de leitor devo os esclarecimentos que se seguem mesmo porque no momento em que minhas conferências foram publicadas constatei uma certa perplexidade por parte de meus críticos 2 O que tenho a dizer acerca da natureza da alma está baseado em primeiro lugar em observações feitas sobre o homem Os argumentos contra tais observações levantavam o problema de que elas se referiam a experiências quase inacessíveis e até então desconhecidas É um fato curioso constatar a frequência com que todos até os menos aptos acham que sabem tudo sobre psicologia como se a psique fosse um domínio acessível ao conhecimento geral No entanto todo verdadeiro conhecedor da alma humana concordará comigo se eu disser que ela pertence às regiões mais obscuras e misteriosas da nossa experiência Nunca se sabe o bastante neste domínio Na minha atividade prática não passa um só dia sem que eu me defronte com algo de novo e inesperado É verdade que as minhas experiências não fazem parte das banalidades da vida cotidiana mas elas estão ao alcance de todos os psicoterapeutas que se ocupam deste campo particular Acho pois impertinente a acusação que me fazem no tocante ao caráter desconhecido das experiências por mim comunicadas Não me sinto responsável pela insuficiência dos leigos em matéria de psicologia 3 No processo analítico isto é no confronto dialético do consciente e do inconsciente constatase um desenvolvimento um progresso em direção a uma certa meta ou fim cuja natureza enigmática me ocupou durante anos a fio Os tratamentos psíquicos podem chegar a um fim em todos os estágios possíveis do desenvolvimento sem que por isso se tenha o sentimento de ter alcançado uma meta Certas soluções típicas e temporárias ocorrem 1 depois que o indivíduo recebeu um bom conselho 2 depois de uma confissão mais ou menos completa porém suficiente 3 depois de haver reconhecido um conteúdo essencial até então inconsciente cuja conscientização imprime um novo impulso à sua vida e às suas atividades 4 depois de libertarse da psique infantil após um longo trabalho efetuado 5 depois de conseguir uma nova adaptação racional a condições de vida talvez difíceis ou incomuns 6 depois do desaparecimento de sintomas dolorosos 7 depois de uma mudança positiva do destino tais como exames noivado casamento divórcio mudança de profissão etc 8 depois da redescoberta de pertencer a uma crença religiosa ou de uma conversão 9 depois de começar a erigir uma filosofia de vida filosofia no antigo sentido da palavra 4 Se bem que a esta enumeração possam ser introduzidas diversas modificações ela define de um modo geral as principais situações em que o processo analítico ou psicoterapêutico chega a um fim provisório ou às vezes definitivo A experiência porém mostra que há um número relativamente grande de pacientes para os quais a conclusão aparente do trabalho junto ao médico não significa de modo algum o fim do processo analítico Pelo contrário o confronto com o inconsciente continua do mesmo modo que no caso daqueles que não interromperam o trabalho junto ao médico Ocasionalmente ao encontrarmos tais pacientes anos depois não é raro que contem histórias interessantes de suas transformações posteriores ao tratamento Essas ocorrências fortaleceram inicialmente minha hipótese de que há na alma um processo que tende para um fim independentemente das condições exteriores essas mesmas ocorrências libertaramme da preocupação que eu pudesse ser a causa única de um processo psíquico inautêntico e portanto contrário à natureza Esse receio não era descabido uma vez que certos pacientes não são levados ao desfecho do trabalho analítico por nenhum dos argumentos mencionados nas nove categorias nem mesmo por uma conversão religiosa e nem pela mais espetacular liberação dos sintomas neuróticos Foram precisamente casos desta natureza que me convenceram de que o tratamento das neuroses se abre para um problema bem mais amplo além do campo exclusivamente médico e diante do qual a ciência médica é de todo insatisfatória 5 Lembrando os primórdios da análise há cerca de cinquenta anos com suas concepções pseudobiológicas e sua depreciação do processo de desenvolvimento anímico podemos constatar que ainda hoje se considera a persistência no trabalho analítico como fuga à vida transferência não resolvida autoerotismo etc No entanto como todas as coisas comportam dois pontos de vista uma apreciação negativa desse ficar pendente no sentido da vida só seria legítima se fosse provado que nada de positivo subjaz a ele A impaciência do médico aliás muito compreensível nada prova por si mesma E é preciso não esquecer que foi através da paciência indizível dos pesquisadores que a nova ciência conseguiu erigir um conhecimento mais profundo da natureza da alma certos resultados terapêuticos inesperados foram obtidos graças à perseverança abnegada do médico As opiniões negativas e injustificadas são levianas e às vezes também perniciosas não passando de um disfarce da ignorância ou melhor sendo uma tentativa de esquivarse à responsabilidade e ao confronto incondicional O trabalho analítico conduzirá mais cedo ou mais tarde ao confronto inevitável entre o eu e o tu e o tu e o eu muito além de qualquer pretexto humano assim pois é provável e mesmo necessário que tanto o paciente quanto o médico sintam o problema na própria pele Ninguém mexe com fogo ou veneno sem ser atingido em algum ponto vulnerável assim o verdadeiro médico não é aquele que fica ao lado mas sim dentro do processo 6 Tanto para o médico como para o paciente o ficar pendente ou a dependência pode tornarse algo indesejável incompreensível e até mesmo insuportável sem que isso signifique algo de negativo para a vida Pelo contrário pode até ser uma dependência um ficar pendente de caráter positivo se por um lado parece um obstáculo aparentemente insuperável por outro representa uma situação única exigindo um esforço máximo que compromete o homem total Podemos então dizer que de fato enquanto o paciente estiver firme e inconscientemente à procura da solução de um problema insolúvel a arte ou a técnica do médico consiste em fazer o possível para ajudálo nessa busca Ars totum requirit hominem a Arte requer o homem inteiro exclama um velho alquimista Justamente é este homo totus que se procura O esforço do médico bem como a busca do paciente perseguem esse homem total oculto e ainda não manifesto que é também o homem mais amplo e futuro No entanto o caminho correto que leva à totalidade é infelizmente feito de desvios e extravios do destino Tratase da longissima via que não é uma reta mas uma linha que serpenteia unindo os opostos à maneira do caduceu senda cujos meandros labirínticos não nos poupam do terror Nesta via ocorrem as experiências que se consideram de difícil acesso Poderíamos dizer que elas são inacessíveis por serem dispendiosas uma vez que exigem de nós o que mais tememos isto é a totalidade Aliás falamos constantemente sobre ela sua teorização é interminável mas a evitamos na vida real 1 Preferese geralmente cultivar a psicologia de compartimentos onde uma gaveta nada sabe do que a outra contém 7 Receio que a responsabilidade por este estado de coisas não deva ser apenas atribuída à inconsciência e impotência do indivíduo mas também à educação anímica geral do homem europeu Esta não depende só da competência das religiões dominantes mas também deriva da natureza delas somente as religiões ultrapassam os sistemas racionalistas referindo se tanto ao homem exterior quanto ao homem interior Podemos acusar o cristianismo de retrógrado a fim de desculpar nossas próprias falhas Não pretendo porém cometer o erro de atribuir à religião algo que em primeiro lugar é devido à incompetência humana Assim pois não me refiro a uma compreensão melhor e mais profunda do cristianismo mas a uma superficialidade e a um equívoco evidentes para todos nós A exigência da imitatio Christi isto é a exigência de seguir seu modelo tornandonos semelhantes a ele deveria conduzir o homem interior ao seu pleno desenvolvimento e exaltação Mas o fiel de mentalidade superficial e formalística transforma esse modelo num objeto externo de culto a veneração desse objeto o impede de atingir as profundezas da alma a fim de transformála naquela totalidade que corresponde ao modelo Dessa forma o mediador divino permanece do lado de fora como uma imagem enquanto o homem continua fragmentário intocado em sua natureza mais profunda Pois bem Cristo pode ser imitado até o ponto extremo da estigmatização sem que seu imitador chegue nem de longe ao modelo e seu significado Não se trata de uma simples imitação que não transforma o homem representando assim um mero artifício Pelo contrário tratase de realizar o modelo segundo os meios próprios de cada um Deo concedente na esfera da vida individual Em todo o caso não esqueçamos que uma imitação inautêntica supõe às vezes um tremendo esforço moral neste caso apesar da meta não ser atingida há o mérito da entrega total a um valor supremo embora este permaneça externo Não é impossível que pelo mérito do esforço total a pessoa possa ter o pressentimento de sua totalidade mediante o sentimento da graça peculiar a este tipo de vivência 8 A concepção inadequada da imitatio Christi apenas exterior é reforçada pelo preconceito europeu que distingue a atitude ocidental da oriental O homem ocidental sucumbe ao feitiço das dez mil coisas distingue o particular uma vez que está preso ao eu e ao objeto permanecendo insconsciente no que diz respeito às raízes profundas de todo o ser Inversamente o homem oriental vivencia o mundo das coisas particulares e o seu próprio eu como um sonho pelo fato de seu ser encontrarse enraizado no fundamento originário este o atrai de forma tão poderosa que relativiza sua relação com o mundo de um modo muitas vezes incompreensível para nós A atitude ocidental que dá ênfase ao objeto tende a relegar o modelo de Cristo a seu aspecto objetal roubandolhe a misteriosa relação com o homem interior Este preconceito faz com que por exemplo os exegetas protestantes interpretem ἐντὸζ ὑμῶν referindose ao Reino de Deus como entre vós e não dentro de vós Nada pretendo dizer sobre a validade da atitude ocidental já que estamos mais do que persuadidos de sua problematicidade Se nos confrontarmos porém com o homem oriental o que é tarefa do psicólogo tal confronto suscita dúvidas difíceis de serem resolvidas Quem tiver a pretensão de resolver essa questão cometerá uma violência pois mesmo sem saber estará se arrogando a ser um arbiter mundi No que me concerne prefiro o dom precioso da dúvida uma vez que esta não lesa a virgindade dos fenômenos incomensuráveis 9 Cristo enquanto modelo carregou os pecados do mundo Ora quando o modelo permanece totalmente exterior o mesmo se dá com os pecados do indivíduo o qual se torna mais fragmentário do que nunca o equívoco superficial em que incorre lhe abre o caminho fácil de jogar literalmente sobre Cristo seus pecados a fim de escapar a uma responsabilidade mais profunda e isto contradiz o espírito do cristianismo Esse formalismo e afrouxamento foram a causa da Reforma mas são também inerentes ao protestantismo No caso do valor supremo Cristo e o maior desvalor o pecado permanecerem do lado de fora a alma ficará esvaziada faltarlheá o mais baixo e o mais alto A atitude oriental principalmente a hindu representa o contrário dessa atitude o mais alto e o mais baixo estão dentro do sujeito transcendental Por este motivo o significado do atman do simesmo é elevado além de todos os limites No homem ocidental no entanto o valor do simesmo desce até o grau zero Isto explica a desvalorização generalizada da alma no Ocidente Quem quer que fale de realidade da alma será censurado por seu psicologismo e quando se fala em psicologia é neste tom é apenas psicológico A ideia de que há fatores psíquicos equivalentes a figuras divinas determina a desvalorização destas últimas É quase uma blasfêmia pensar que uma vivência religiosa possa ser um processo psíquico é então introduzido o argumento de que tal vivência não é apenas psicológica O psíquico é só natureza e por isso se pensa comumente que nada de religioso pode provir dele Tais críticos não hesitam no entanto em fazer todas as religiões derivarem da natureza da alma excetuando a que professam Julgo significativo o fato de que duas resenhas teológicas de meu livro Psicologia e religião uma católica e outra protestante silenciaram deliberadamente minha demonstração da origem psíquica dos fenômenos religiosos 10 Em face disto deverseia perguntar donde procede toda essa informação acerca da alma que permite dizer apenas anímico Pois é assim que fala e pensa o homem ocidental cuja alma pelo visto de nada vale Se tivesse valor falarseia dela com mais respeito Como não é este o caso concluise que não se dá nenhum valor a ela Isto não ocorre sempre e necessariamente em toda parte mas só quando não se põe nada dentro da alma deixando Deus do lado de fora Um pouco mais de Meister Eckhart não faria mal a ninguém 11 Uma projeção exclusivamente religiosa pode privar a alma de seus valores tornála incapaz de prosseguir em seu desenvolvimento por inanição retendoa num estado inconsciente Ela pode também cair vítima da ilusão de que a causa de todo o mal provém de fora sem que lhe ocorra indagar como e em que medida ela mesma contribui para isso A alma parece assim tão insignificante a ponto de ser considerada incapaz do mal e muito menos do bem Entretanto se a alma não desempenha papel algum a vida religiosa se congela em pura exterioridade e formalismo Como quer que imaginemos a relação entre Deus e a alma uma coisa é certa é impossível considerar a alma como nada mais do que Pelo contrário ela possui a dignidade de um ser que tem o dom da relação consciente com a divindade Mesmo que se tratasse apenas da relação de uma gota de água com o mar este último deixaria de existir sem a pluralidade das gotas A afirmação dogmática da imortalidade da alma a eleva acima da mortalidade do homem corporal fazendoa partícipe de uma qualidade sobrenatural Deste modo ela ultrapassa muito em significado ao homem mortal consciente e portanto seria vedado ao cristão considerar a alma como um nada mais do que 2 Assim como o olho corresponde ao sol a alma corresponde a Deus E pelo fato de nossa consciência não ser capaz de apreender a alma é ridículo falar acerca da mesma em tom condescendente ou depreciativo O próprio cristão que tem fé não conhece os caminhos secretos de Deus e deve permitir que este decida se quer agir sobre ele a partir de fora ou internamente através da alma O fiel não pode contestar o fato de que há somnia a Deo missa sonhos enviados por Deus e iluminações da alma impossíveis de serem remetidas a causas externas Seria uma blasfêmia afirmar que Deus pode manifestarse em toda a parte menos na alma humana Ora a intimidade da relação entre Deus e a alma exclui de antemão toda e qualquer depreciação desta última 3 Seria talvez excessivo falar de uma relação de parentesco mas de qualquer modo deve haver na alma uma possibilidade de relação isto é forçosamente ela deve ter em si algo que corresponda ao ser de Deus pois de outra forma jamais se estabeleceria uma conexão entre ambos 4 Esta correspondência formulada psicologicamente é o arquétipo da imagem de Deus 12 Todo arquétipo é capaz de uma diferenciação e de um desenvolvimento infinitos Daí o fato de poder ser mais ou menos desenvolvido Numa forma exterior de religião em que toda ênfase repousa na figura externa tratandose neste caso de uma projeção mais ou menos completa o arquétipo é idêntico às representações externas mas permanece inconsciente enquanto fator anímico Quando um conteúdo inconsciente é quase totalmente substituído por uma imagem projetada isso determina sua exclusão de qualquer influência e participação no tocante à consciência Sua própria vida é com isto profundamente prejudicada uma vez que é impedido de exercer sua função natural de formação da consciência mais ainda ele permanece inalterado em sua forma originária pois no inconsciente nada se transforma A partir de um certo ponto o conteúdo inconsciente pode apresentar até mesmo uma tendência à regressão a níveis mais profundos e arcaicos Pode acontecer que um cristão mesmo acreditando em todas as imagens sagradas permaneça indiferenciado e imutável no mais íntimo de sua alma porque seu Deus se encontra completamente fora e não é vivenciado em sua alma Seus motivos e interesses decisivos e determinantes bem como seus impulsos não provêm da esfera do cristianismo mas de uma alma inconsciente e indiferenciada que é como sempre pagã e arcaica Não só a vida individual mas a soma das vidas individuais que constituem um povo provam a verdade desta afirmação Os grandes acontecimentos do mundo planejados e realizados pelo homem não são inspirados pelo cristianismo mas por um paganismo indisfarçável Tal fato se origina de uma alma que permaneceu arcaica não tendo sido nem de longe tocada pelo cristianismo Como a Igreja supõe com razão o semel credidisse ter acreditado alguma vez deixa alguns vestígios entretanto nada transparece deles nos principais fatos em curso A cultura cristã mostrouse assustadoramente vazia nada mais do que um verniz externo porquanto o homem interior permaneceu intocado alheio à transformação Sua alma não corresponde às crenças exteriores O Cristo em sua alma não acompanhou o desenvolvimento exterior Sim exteriormente tudo aí está na imagem e na palavra na Igreja e na Bíblia mas o mesmo não se dá dentro No interior reinam os deuses arcaicos como nunca ou melhor a correspondência entre a imagem interna e externa de Deus não se desenvolveu por carência de cultura anímica ficando retida no paganismo A educação cristã fez o humanamente possível mas não bastou Poucos experimentaram a imagem divina como a qualidade mais íntima da própria alma Apenas travaram conhecimento com um Cristo exterior e nunca a partir do íntimo de sua alma este é o motivo pelo qual dentro dela reina ainda o mais obscuro paganismo E é o paganismo que inunda a chamada cultura cristã ora com indisfarçável clareza ora sob um disfarce gasto que não convence a ninguém 13 Com os meios utilizados até hoje foi impossível cristianizar a alma a fim de que as exigências mais elementares da ética cristã tivessem alguma influência substancial sobre os principais reclamos do europeu cristão É verdade que os missionários cristãos pregam o Evangelho aos pobres pagãos nus mas os pagãos interiores que povoam a Europa ainda não ouviram essa mensagem A cristandade deverá recomeçar necessariamente do início se quiser cumprir sua elevada tarefa educativa Enquanto a religião restringirse à fé e à forma exterior e a função religiosa não for uma experiência da própria alma nada de essencial poderá ocorrer Compreendamos ainda que o Mysterium Magnum não é apenas algo de existente por si mesmo mas também algo que se enraíza principalmente na alma humana Quem não sabe isto por experiência própria pode ser um doutor em teologia mas nada conhece de religião e ainda menos de educação humana 14 Todavia quando demonstro que a alma possui uma função religiosa natural 5 e quando reafirmo que a tarefa mais nobre de toda a educação do adulto é a de transpor para a consciência o arquétipo da imagem de Deus suas irradiações e efeitos são justamente os teólogos que me atacam e me acusam de psicologismo Se os valores supremos não estivessem depositados na alma tal como mostra a experiência sem eliminar o ἀντίμιμον πνεῦμα o espírito da contrafação que também nela está presente a psicologia não me interessaria absolutamente pois nesse caso a alma não passaria de um miserável vapor Sei porém através de centenas de experiências que não é este o caso Ela contém e corresponde a tudo quanto o dogma formulou a seu respeito e mais ainda aquilo que torna a alma capaz de ser um olho destinado a contemplar a luz Isto requer de sua parte uma extensão ilimitada e uma profundidade insondável Já fui acusado de deificar a alma Isto é falso não fui eu mas o próprio Deus quem a deificou Não fui eu que atribuí uma função religiosa à alma simplesmente apresentei os fatos que provam ser a alma naturaliter religiosa isto é dotada de uma função religiosa função esta que não inventei nem coloquei arbitrariamente nela mas que ela produz por si mesma sem ser influenciada por qualquer ideia ou sugestão Numa trágica cegueira esses teólogos ignoram que não se trata de provar a existência da luz e sim de que há cegos incapazes de saber que seus olhos poderiam enxergar Seria muito mais importante ensinar ao homem a arte de enxergar É óbvio que a maioria das pessoas é incapaz de estabelecer uma relação entre as imagens sagradas e sua própria alma isto é não conseguem perceber a que ponto tais imagens dormitam em seu próprio inconsciente Para tornar possível esta visão interior é preciso desimpedir o caminho que possibilita essa faculdade de ver Sinceramente não posso imaginar como isso seria exequível sem a psicologia isto é sem tocar a alma 6 15 Outro malentendido de consequências igualmente sérias consiste em atribuir à psicologia a intenção de ser uma nova doutrina talvez herética Quando um cego aprende a enxergar ninguém espera dele que descubra imediatamente novas verdades com um olhar poderoso de águia Já é algo promissor que ele veja alguma coisa podendo compreender até certo ponto o que está vendo Na psicologia tratase do ato de ver e não da construção de novas verdades religiosas quando as doutrinas existentes ainda não foram reconhecidas e compreendidas Em matéria de religião é sabido que não se pode entender o que não se experimentou interiormente Apenas na experiência interior se revela a relação da alma com aquilo que é apresentado e pregado exteriormente a modo de um parentesco ou correspondência de tipo sponsus sponsa Ao afirmar como psicólogo que Deus é um arquétipo eu me refiro ao tipo impresso na alma a origem da palavra tipo vem do grego τύποζ que significa batida algo que imprime Assim a própria palavra arquétipo já pressupõe alguma coisa que imprime A psicologia enquanto ciência da alma deve restringirse ao seu objeto e precaverse no sentido de não ultrapassar seus limites fazendo afirmações metafísicas ou não importa que profissão de fé Se a psicologia pretendesse pressupor um Deus como causa hipotética estaria reclamando implicitamente a possibilidade de uma prova de Deus Com isso extrapolaria seu campo de competência de um modo absolutamente inadmissível Ciência só pode ser ciência não há profissões de fé científicas nem contradictiones in adiecto contradições nos termos Ignoramos em última instância de onde se origina o arquétipo da mesma forma que ignoramos a origem da alma A competência da psicologia enquanto ciência empírica não vai além da possibilidade de constatar à base de uma pesquisa comparativa se o tipo encontrado na alma pode ou não ser designado como uma imagem de Deus Desta forma nada se afirma de positivo ou de negativo acerca de uma possível existência de Deus do mesmo modo que o arquétipo do herói não pressupõe a sua existência 16 As minhas pesquisas psicológicas provando a existência de certos tipos psíquicos bem como a sua analogia com representações religiosas conhecidas abrem uma possibilidade de acesso a conteúdos suscetíveis de serem experimentados os quais constituem incontestavelmente e de modo manifesto o fundamento empírico e palpável da experiência religiosa O homem religioso é livre de aceitar quaisquer explicações metafísicas sobre a origem destas imagens o mesmo não ocorre com o intelecto que deve se ater estritamente aos princípios da explicação científica evitando ultrapassar as possibilidades do conhecimento Ninguém pode evitar a fé em aceitar como causa primeira Deus Purusha Atman ou Tao eliminando assim a inquietude última do homem A ciência trabalha com escrúpulo e não pretende tomar o céu de assalto Se cedesse a uma tal extravagância já teria serrado o galho no qual se assenta 17 O fato é que o conhecimento e a experiência da presença de tais imagens interiores abre para a razão e para o sentimento uma via de acesso àquelas outras imagens que a doutrina religiosa oferece ao homem A psicologia faz portanto o contrário daquilo de que é acusada ela proporciona possibilidades para um melhor entendimento do que existe ela abre os olhos para a riqueza de sentido dos dogmas não destrói mas pelo contrário põe novos habitantes numa casa vazia Posso confirmálo através de múltiplas experiências pessoas dos mais variados credos que apostasiaram ou arrefeceram em sua fé encontraram uma nova via de acesso às suas antigas verdades entre eles não eram poucos os católicos Até mesmo um parsi encontrou o caminho de volta ao templo de fogo zoroastriano o que prova a objetividade do meu ponto de vista 18 É justamente por essa objetividade que mais críticas recebe minha psicologia o não optar por esta ou por aquela doutrina religiosa Sem antecipar minhas convicções subjetivas proponho a seguinte pergunta não é compreensível ser também uma opção o fato de não arvorarse em arbiter mundi e renunciar explicitamente a uma tal subjetividade acreditandose por exemplo que Deus se exprimiu em muitas linguagens e apareceu em múltiplas formas e que todas essas afirmações são verdadeiras A objeção apresentada particularmente por parte dos cristãos de que é impossível serem verdadeiras as afirmações mais contraditórias deve tolerar esta interpelação delicada um é igual a três Como três pode ser um De que modo pode uma mãe ser virgem E assim por diante Então ainda não se percebeu que todas as afirmações religiosas contêm contradições lógicas e alegações absurdas por princípio constituindo tal coisa a essência da asserção religiosa Corroborando este ponto de vista Tertuliano confessa Et mortuus est Dei filius prorsus credibile est quia ineptum est Et sepultus resurrexit certum est quia impossibile est E o Filho de Deus morreu e é isto fidedigno por ser absurdo E sepulto ressuscitou isto é certo porque é impossível 7 Se o cristianismo exige fé em tais contradições não pode condenar ao que me parece quem defende alguns paradoxos a mais Surpreendentemente o paradoxo pertence ao bem espiritual mais elevado O significado unívoco é um sinal de fraqueza Por isso a religião empobrece interiormente quando perde ou reduz seus paradoxos no entanto a multiplicação destes últimos a enriquece pois só o paradoxal é capaz de abranger aproximadamente a plenitude da vida A univocidade e a não contradição são unilaterais e portanto não se prestam para exprimir o inalcançável 19 Nem todos possuem a força espiritual de um Tertuliano o qual não só suportava o paradoxo como também o considerava a máxima certeza religiosa O número excessivo dos espiritualmente fracos torna o paradoxo ameaçador Enquanto este último permanece oculto como algo natural e portanto inquestionável sendo um aspecto habitual da vida não oferece perigo algum No entanto se uma mente pouco desenvolvida que como sabemos é sempre a mais segura de si mesma pretendesse fazer do paradoxo de uma profissão de fé o objeto de suas elucubrações tão graves quanto impotentes não demoraria a explodir numa gargalhada sarcástica e iconoclasta indicando as inépcias manifestas do mistério Desde o Iluminismo francês o desmoronamento foi rápido quando desperta essa mentalidade mesquinha que não suporta paradoxos não há sermão sobre a terra que a contenha Surge então uma nova tarefa erguer pouco a pouco essa mente não desenvolvida a um nível mais alto e multiplicar o número dos que pelo menos conseguem vislumbrar a amplidão de uma verdade paradoxal Se isto não for possível o acesso espiritual ao cristianismo pode ser praticamente obstruído Não se compreende mais o que os paradoxos do dogma pretendiam dizer quanto mais exteriormente forem concebidos mais nos escandalizaremos com sua forma irracional até se tornarem relíquias bizarras do passado totalmente obsoletas Quem passar por este processo não pode imaginar a extensão de sua perda espiritual pois jamais experimentou as imagens sagradas como interiormente suas isto é nunca soube do parentesco de tais imagens com sua própria estrutura anímica Mas a psicologia do inconsciente pode proporcionarlhe este conhecimento indispensável e sua objetividade científica é do maior valor no tocante a isso Se a psicologia estivesse ligada a alguma confissão religiosa não poderia nem deveria permitir essa liberdade de movimentos ao inconsciente do indivíduo que é uma condição prévia e indispensável à produção de arquétipos O que nos convence é justamente a espontaneidade dos conteúdos arquetípicos e a intervenção preconceituosa contra ela impede a experiência genuína Se o teólogo acredita realmente na onipotência de Deus por um lado e na validez dos dogmas por outro por que não confia então no fato de que Deus pode exprimirse também pela alma Por que esse medo da psicologia Ou então de modo inteiramente não dogmático deverá a alma ser considerada como o inferno a partir da qual só os demônios se manifestam Se fosse esse o caso tal realidade não seria menos convincente conforme sabemos a realidade do mal percebida com horror converteu pelo menos tantas pessoas quanto a experiência do bem 20 Os arquétipos do inconsciente são correspondentes aos dogmas religiosos fato que pode ser demonstrado empiricamente Na linguagem hermenêutica dos Padres a Igreja possui um tesouro de analogias com os produtos individuais espontâneos que encontramos na psicologia Aquilo que o inconsciente expressa não é arbitrário nem corresponde a uma opinião mas ocorre pelo fato de ser assim mesmo como em qualquer ser natural É óbvio que as expressões do inconsciente são naturais e não formuladas dogmaticamente como as alegorias patrísticas as quais atraem a totalidade da natureza para a órbita de suas amplificações Se estas produzem surpreendentes allegoriae Christi o mesmo acontece no que se refere à psicologia do inconsciente A diferença no entanto reside no fato de que a alegoria patrística ad Christum spectat se refere a Cristo ao passo que o arquétipo psíquico é apenas ele mesmo podendo ser interpretado segundo o tempo o lugar e o meio No Ocidente o arquétipo é preenchido pela imagem dogmática de Cristo no Oriente por Purusha Atman Hiranyagarbha Buda etc O ponto de vista religioso coloca obviamente a ênfase naquilo que imprime o impressor ao passo que a psicologia científica enfatiza o tipo τύποζ o impresso o qual é a única coisa que ela pode apreender O ponto de vista religioso interpreta o tipo como algo decorrente da ação do impressor o ponto de vista científico o interpreta como símbolo de um conteúdo desconhecido e inapreensível Uma vez que o tipo é menos definido mais complexo e multifacetado do que os pressupostos religiosos a psicologia com seu material empírico é obrigada a expressar o tipo mediante uma terminologia que independe de tempo lugar e meio Se por exemplo o tipo concordasse em todos os detalhes com a figura dogmática de Cristo sem conter algum determinante que a ultrapassasse teríamos pelo menos de considerar o tipo como uma cópia fiel da figura dogmática dandolhe um nome correspondente Neste caso o tipo coincidiria com o Cristo Empiricamente isto não ocorre pois o inconsciente do mesmo modo que nas alegorias dos Padres da Igreja produz muitos outros determinantes que não estão contidos de um modo explícito na fórmula dogmática ou melhor figuras não cristãs como as que acima mencionamos estão contidas no tipo Mas nem estas figuras satisfazem a indeterminação do arquétipo É impensável que qualquer figura determinada possa exprimir a indeterminação arquetípica Sentime impelido por isso a dar o nome psicológico de simesmo Selbst ao arquétipo correspondente suficientemente determinado para dar uma ideia da totalidade humana e insuficientemente determinado para exprimir o caráter indescritível e indefinível da totalidade Estas qualidades paradoxais do conceito correspondem ao fato de que a totalidade consiste por um lado do ser humano consciente e por outro do homem inconsciente Não se pode porém estabelecer os limites e as determinações deste último Por isso na linguagem científica o termo simesmo não se refere nem a Cristo nem a Buda mas à totalidade das formas que representam e cada uma dessas formas é um símbolo do simesmo Este modo de expressão é uma necessidade intelectual da psicologia científica e não significa de modo algum um preconceito transcendental Pelo contrário como dissemos acima este ponto de vista objetivo possibilita a alguns de se decidirem por Cristo e a outros por Buda etc Quem se escandalizar com esta objetividade deverá considerar que sem ela não há ciência possível Assim pois negando à psicologia o direito à objetividade estará tentando extinguir extemporaneamente a luz viva da ciência Mesmo que uma tal tentativa surtisse efeito seu resultado apenas contribuiria para aumentar a brecha catastrófica que já existe entre a compreensão secular por um lado e a Igreja e a religião por outro 21 Não só é compreensível como também representa uma raison dêtre absoluta para uma ciência poder concentrarse com relativa exclusividade no seu objeto Uma vez que o conceito do simesmo é de interesse central para a psicologia o pensamento desta última caminha obviamente em sentido inverso relativamente à teologia para a psicologia as figuras religiosas apontam para o simesmo enquanto que para a teologia o simesmo aponta para a sua própria representação central isto é o si mesmo psicológico poderia ser compreendido como uma allegoria Christi Esta oposição é irritante mas infelizmente inevitável a menos que se negue por completo à psicologia o direito de existir Prego portanto a tolerância o que não é difícil para a psicologia uma vez que esta como ciência não tem pretensões totalitárias 22 O símbolo de Cristo é da maior importância para a psicologia porquanto constitui ao lado da figura de Buda talvez o símbolo mais desenvolvido e diferenciado do simesmo Isto pode ser avaliado pela amplitude e pelo conteúdo dos predicados atribuídos ao Cristo que correspondem à fenomenologia psicológica do simesmo de um modo incomum apesar de não incluir todos os aspectos deste arquétipo A extensão incalculável do simesmo pode ser considerada negativa relativamente à determinação de uma figura religiosa Mas os juízos de valor não constituem de maneira alguma uma tarefa da ciência O simesmo não só é indefinido como também comporta paradoxalmente o caráter do definido e até mesmo da unicidade Provavelmente esta é uma das razões pela qual as religiões que foram fundadas por personalidades históricas se tornaram religiões universais como no caso do cristianismo budismo e islamismo A inclusão de uma personalidade humana única especialmente quando ligada à natureza divina indefinível corresponde ao individual absoluto do simesmo que liga o único ao eterno e o individual ao mais geral O simesmo é uma união dos opostos κατ ἐξοχήν Isto o distingue essencialmente do símbolo cristão A androginia de Cristo é a concessão máxima da Igreja à problemática dos opostos A oposição entre o luminoso e o bom por um lado e o escuro e mau por outro permaneceu em conflito aberto uma vez que Cristo representa só o bem e sua contrapartida o demônio o mal Esta oposição é o verdadeiro problema do mundo que até agora não foi resolvido O simesmo de qualquer modo é o paradoxo absoluto já que representa a tese a antítese e a síntese em todos os aspectos As provas psicológicas desta afirmação são abundantes No entanto não me é possível enumerálas aqui in extenso Remeto o conhecedor desta matéria ao simbolismo do mandala 23 Quando mediante a exploração do inconsciente a consciência se aproxima do arquétipo o indivíduo é confrontado com a contradição abissal da natureza humana o que lhe proporciona uma experiência imediata da luz e da treva do Cristo e do demônio Tratase aqui no melhor ou no pior dos casos de uma possibilidade e não de uma garantia experiências deste tipo não podem ser induzidas através de meios humanos Há fatores a serem levados em conta que não estão sob nosso controle A vivência dos opostos nada tem a ver com a visão intelectual nem com a empatia É mais aquilo a que poderíamos chamar de destino Tal vivência pode provar a uns a verdade de Cristo a outros a de Buda até à mais extrema evidência 24 Sem a vivência dos opostos não há experiência da totalidade e portanto também não há acesso interior às formas sagradas Por essa razão o cristianismo insiste na pecaminosidade e no pecado original com a intenção óbvia de abrir em cada um pelo menos a partir de fora o abismo da contradição do mundo Este método falha porém quando se trata de uma mente mais ou menos desperta já que não acredita mais nessa doutrina além de considerála absurda Um tal intelecto por ser unilateral fica paralisado diante da ineptia mysterii absurdo do mistério Na verdade encontrase a uma distância infinita das antinomias de Tertuliano o fato é que não consegue suportar o sofrimento implicado no problema dos opostos Sabese como os exercícios rigorosos e certas prédicas missionárias dos católicos assim como a educação protestante que sempre fareja o pecado causam danos psíquicos que não levam ao Reino dos Céus mas ao consultório médico Apesar de ser inevitável a visão problemática dos opostos praticamente poucos a suportam fato este que não escapou à experiência dos confessores Uma reação paliativa manifestouse no probabilismo moral que sofre os mais diversos ataques porquanto visa atenuar o efeito esmagador do pecado 8 O que quer que se pense sobre esse fenômeno uma coisa é certa nele além de outras coisas está contida uma grande dose de humanidade e de compreensão da fraqueza humana o que não deixa de compensar a tensão insuportável das antinomias O psicólogo compreenderá facilmente o grande paradoxo entre a insistência sobre o pecado original por um lado e a concessão do probabilismo por outro como uma decorrência necessária da problemática cristã dos opostos acima esboçada O bem e o mal se encontram tão próximos no Simesmo quanto dois gêmeos monovitelinos A realidade do mal e sua incompatibilidade com o bem provoca uma separação violenta dos opostos conduzindo inexoravelmente à crucifixão e à suspensão de tudo o que é vivo Uma vez que a alma é naturaliter christiana cristã por natureza tal consequência é inevitável como foi na vida de Jesus todos nós deveríamos ser crucificados com Cristo isto é suspensos num sofrimento moral equivalente à verdadeira crucifixão Na prática isto só é possível até certo ponto pois se trata de algo tão intolerável e hostil à vida que um ser humano comum apenas pode entrar em tal estado de vez em quando o menos possível Como poderia continuar a ser um homem comum dentro de um tal sofrimento Por isso uma atitude mais ou menos probabilística em relação ao problema do mal é inevitável Assim sendo a verdade do simesmo isto é a unidade inimaginável de bem e mal aparece concretamente no seguinte paradoxo o pecado é o que há de mais difícil e grave mas não a ponto de ser impossível livrarse dele numa perspectiva probabilística Este procedimento não é necessariamente frouxo ou frívolo mas simplesmente uma necessidade prática da vida Na confissão ocorre o mesmo que na própria vida esta se debate para não perecer numa oposição inconciliável Por outro lado permanece nota bene o conflito expressis verbis que corresponde de novo à antinomia do simesmo o qual é simultaneamente conflito e unidade 25 O mundo cristão transformou a antinomia entre o bem e o mal num problema universal erigindoa em princípio absoluto através da formulação dogmática dos contrários O cristão é atirado a este conflito ainda insolúvel como protagonista do bem e como um dos atores no drama do mundo Esta imitação de Cristo tomada em seu sentido mais profundo implica um sofrimento intolerável para a maioria dos homens Consequentemente o exemplo crístico só é seguido em parte ou não é seguido de modo algum e a prática pastoral da Igreja se vê obrigada a aliviar o jugo de Cristo Isto significa uma redução considerável da rigidez e severidade do conflito o que redunda praticamente numa relativização do bem e do mal O bem equivale à imitação incondicional de Cristo e o mal representa um obstáculo a isso A fraqueza e a inércia moral do homem são os obstáculos principais à imitação o probabilismo os encara com uma compreensão prática e corresponde talvez mais às virtudes cristãs da tolerância da benevolência e do amor ao próximo do que a atitude daqueles que veem no probabilismo mera frouxidão Apesar de podermos atribuir ao esforço probabilístico as principais virtudes cristãs não devemos ignorar o fato de que ele impede o sofrimento da imitação de Cristo subtraindo ao conflito do bem e do mal o seu rigor suavizandoo a proporções toleráveis Com isto nos aproximamos do arquétipo do simesmo no qual esta oposição aparece unificada aliás como já foi dito contrariamente ao simbolismo cristão que deixa o conflito em aberto Para este último o mundo é trincado por uma cisão a luz combate a noite e o superior o inferior Estas dualidades não são uma unidade como no arquétipo psíquico Ainda que o dogma tenha horror à ideia de que dois sejam um a prática religiosa possibilita como vimos a aplicação do símbolo psicológico natural a saber do simesmo unificado Por outro lado o dogma insiste em que três são um mas se recusa a reconhecer que os quatro sejam um Sabese que os números ímpares sempre foram masculinos não só para nós ocidentais como também para os chineses quanto aos números pares são femininos Assim a trindade é uma divindade explicitamente masculina para a qual a androginia de Cristo e a posição específica e elevação da mãe de Deus não oferecem um equivalente pleno 26 Com esta constatação que talvez pareça estranha ao leitor chegamos a um axioma central da alquimia ou seja ao aforisma de Maria Prophetissa Um tornase dois dois tornase três e do três provém o um que é o quarto Como o leitor já percebeu pelo título deste livro ocupase ele com o significado psicológico da alquimia e portanto com um problema que salvo raríssimas exceções tem escapado à pesquisa científica até o presente Até há bem pouco tempo a ciência se ocupava apenas com o aspecto que a alquimia desempenhava na história da química e em pequena medida com seu lado filosófico e históricoreligioso A importância da alquimia na história do desenvolvimento da química é evidente Seu significado para a história do espírito humano no entanto ainda é tão desconhecido que é quase impossível precisar em poucas palavras em que consiste Nesta introdução tentei representar a problemática histórico religiosa e psicológica na qual se insere o tema alquímico A alquimia constitui como que uma corrente subterrânea em relação ao cristianismo que reina na superfície A primeira se comporta em relação ao segundo como um sonho em relação à consciência e da mesma forma que o sonho compensa os conflitos do consciente assim o esforço da alquimia visa preencher as lacunas deixadas pela tensão dos opostos no cristianismo Isto se exprime de modo impressionante no axioma de Maria Prophetissa acima citado o qual percorre como um leitmotiv mais de dezessete séculos da alquimia Nesta os números ímpares da dogmática cristã são entremeados por números pares que significam o feminino a terra o subterrâneo e até mesmo o próprio mal Sua personificação é a serpens mercurii serpente mercurial o dragão que se gera e se destrói a si mesmo e a prima materia Esta ideia básica da alquimia remonta ao Tehom 9 a Tiamat com seu atributo de dragão e mediante eles ao mundo originário matriarcal que foi superado na teomaquia do mito de Marduk pelo mundo patriarcal e viril A transformação históricouniversal da consciência para o lado masculino é em primeiro lugar compensada pelo inconsciente ctônicofeminino Em certas religiões précristãs já ocorre uma diferenciação do masculino sob a forma da especificação paifilho transformação esta que atinge seu significado máximo no cristianismo Se o inconsciente fosse apenas complementar teria acompanhado essa transformação da consciência ressaltando as figuras de mãefilha e o material necessário para isto já se encontrava no mito de Demeter e Perséfone No entanto como a alquimia mostra o inconsciente preferiu o tipo CibeleÁtis sob a forma da prima materia e do filius macrocosmi provando com isto não ser ele complementar mas compensatório Isto ressalta o fato de o inconsciente não atuar meramente em oposição à consciência constituindo um parceiro ou adversário que a modifica em maior ou menor grau Não é uma imagem complementar de filha que o tipo do filho chama do inconsciente ctônico mas um outro filho Segundo todas as aparências este fato digno de nota está ligado à incarnação do deus puramente espiritual na natureza humana terrestre possibilitada pela concepção do Espírito Santo no útero da Beata Virgo Assim pois o superior espiritual masculino se inclina para o inferior terrestre feminino vindo ao encontro do masculino a mãe que precede o mundo do pai gera então um filho mediante o instrumento do espírito humano da Filosofia no sentido alquímico um filho que não é a antítese do Cristo mas sua contrapartida ctônica não um homemdeus mas um ser fabuloso conforme à natureza da mãe primordial Enquanto a tarefa do filho superior é a da salvação do homem do microcosmo a do filho inferior é a de um salvator macrocosmi 27 Eis de modo abreviado o drama que se desenrolou na obscuridade da alquimia É inútil dizer que esses dois filhos jamais se uniram a não ser talvez no espírito e na vivência mais íntima de poucos alquimistas especialmente dotados Mas não é difícil perceber a finalidade desse drama a encarnação de Deus sob a aparência de uma aproximação do princípio do mundo paterno masculino com o princípio do mundo materno feminino incitando este último a assimilar o primeiro Isto foi como que a tentativa de lançar uma ponte para compensar o conflito entre ambos 28 Não se escandalize o leitor se a minha digressão soa como um mito gnóstico Movemonos aqui no terreno psicológico em que está enraizada a gnose A mensagem do símbolo cristão é gnose e a compensação do inconsciente o é ainda mais O mitologema é a linguagem verdadeiramente originária de tais processos psíquicos e nenhuma formulação intelectual pode alcançar nem mesmo aproximadamente a plenitude e a força de expressão da imagem mítica Tratase de imagens originárias cuja melhor expressão é a imagística 29 O processo aqui descrito apresenta todos os traços característicos de uma compensação psicológica Sabese que a máscara do inconsciente não é rígida mas reflete o rosto que voltamos para ele A hostilidade conferelhe um aspecto ameaçador a benevolência suaviza seus traços Não se trata aqui de um mero reflexo ótico mas de uma resposta autônoma que revela a natureza independente daquele que responde Assim pois o filius philosophorum não é a mera imagem refletida do filho de Deus numa matéria imprópria esse filho de Tiamat apresenta os traços da imagem materna originária Embora seja nitidamente hermafrodita seu nome é masculino revelando a tendência ao compromisso do submundo ctônico rejeitado pelo espírito e identificado com o mal ele é indiscutivelmente uma concessão ao espiritual e ao masculino embora carregue o peso da terra e o caráter fabuloso de sua animalidade originária 30 Esta resposta do mundo materno mostra não ser intransponível o abismo que o separa do mundo paterno porquanto o inconsciente contém um germe da unidade de ambos A essência do consciente é a diferenciação para ampliar a consciência é preciso separar os opostos uns dos outros e isto contra naturam Na natureza os opostos se buscam les extrêmes se touchent o mesmo se dando no inconsciente sobretudo no arquétipo da unidade no simesmo Neste último como na divindade os opostos são abolidos Mas com a manifestação do inconsciente começa a cisão do mesmo modo que na Criação toda tomada de consciência é um ato criador e desta experiência psicológica derivam os múltiplos símbolos cosmogônicos 31 A alquimia trata principalmente do germe da unidade que está oculto no caos de Tiamat e que corresponde à contrapartida da unidade divina Como esta ela tem um caráter trinitário na alquimia de influência cristã e triádico na alquimia pagã Segundo outros testemunhos aquele germe corresponde à unidade dos quatro elementos constituindo uma quaternidade A grande maioria das descobertas psicológicas modernas alinhase ao lado deste último ponto de vista Os raros casos por mim observados que produziam o número três eram caracterizados por uma deficiência sistemática no campo da consciência ou seja pela inconsciência da função inferior O número três não é uma expressão natural da totalidade ao passo que o número quatro representa o mínimo dos determinantes de um juízo de totalidade É preciso ressaltar no entanto que ao lado da nítida tendência para a quaternidade da alquimia como também do inconsciente sempre há uma incerteza marcante entre o três e o quatro Já no axioma de Maria Prophetissa a quaternidade é encoberta e vaga Na alquimia falase tanto de quatro como de três regimina processos de três como de quatro cores Aliás sempre há quatro elementos mas frequentemente três são agrupados e um deles fica numa posição especial ora é a terra ora o fogo O mercúrio 10 é sem dúvida quadratus mas também uma serpente tricéfala ou simplesmente uma triunidade Esta insegurança indica que se trata de um caráter duplo isto é as representações centrais são tanto quaternárias quanto ternárias O psicólogo não pode deixar de mencionar o fato de que a psicologia do inconsciente também conhece uma perplexidade análoga A função menos diferenciada inferior está de tal modo contaminada pelo inconsciente coletivo que ao se tornar consciente traz consigo entre outros também o arquétipo do simesmo τὸ ἕν τέταρτονo um que nasce com o quatro como diz Maria O quatro significa o feminino o materno o físico o três o masculino o paterno o espiritual A incerteza entre o quatro e o três significa portanto o mesmo que a hesitação entre o espiritual e o físico um exemplo marcante de que toda verdade humana é apenas uma penúltima verdade 32 Nesta introdução parti da totalidade do homem como meta à qual conduz em última instância o desenvolvimento anímico no decurso do processo psicoterapêutico Esta questão ligase indissoluvelmente a pressupostos filosóficos e religiosos Mesmo que o paciente se julgue isento de preconceitos neste aspecto o que é um caso frequente os pressupostos de seu modo de vida seus pensamentos sua moral sua linguagem são historicamente condicionados até os mínimos detalhes muitas vezes este fato permanece inconsciente por falta de cultura ou de autocrítica A análise de sua situação porém conduz mais cedo ou mais tarde a um esclarecimento de seus pressupostos espirituais ultrapassando de longe os determinantes pessoais e trazendo à baila a problemática que tentei esboçar nas páginas precedentes Esta fase do processo é caracterizada pela produção de símbolos de unidade dos mandalas que aparecem quer nos sonhos quer no estado de vigília sob a forma de impressões visuais e que representam não raro uma nítida compensação das contradições e conflitos da situação consciente Talvez não seria correto afirmar que a responsabilidade desta situação se deva a uma fenda 11 Przywara aberta na ordem cristã do mundo na medida em que é fácil provar que o simbolismo cristão cura essa ferida ou pelo menos se esforça por fazêlo Sem dúvida seria mais acertado interpretar o fato do conflito permanecer aberto como um sintoma da situação psíquica do homem ocidental e de lastimar sua incapacidade de assimilar toda a amplitude do símbolo cristão Como médico não posso fazer exigência alguma ao paciente no tocante a esse ponto além disso faltamme os meios da graça da Igreja Confrontome portanto com a tarefa de enveredar pelo único caminho possível para mim isto é o da conscientização das imagens arquetípicas que de modo algum correspondem às representações dogmáticas Por isso devo deixar que o paciente decida de acordo com seus pressupostos com sua maturidade espiritual cultura origem e seu temperamento na medida em que isso for possível sem sérios conflitos Minha tarefa como médico é ajudar o paciente a tornarse apto para a vida Não posso ter a presunção de julgar suas decisões últimas pois sei por experiência que toda coerção desde a mais sutil sugestão ou conselho a quaisquer outros métodos de persuasão apenas produzem em última análise um obstáculo à vivência suprema e decisiva isto é o estar a sós com o Simesmo com a objetividade da alma ou como quer que a chamemos O paciente deve estar a sós para descobrir o que o suporta quando ele não está mais em condições de se suportar a si mesmo Somente essa experiência darlheá um alicerce indestrutível 33 Eu confiaria ao teólogo de bom grado essa tarefa que realmente não é fácil se muitos de meus pacientes não viessem justamente do teólogo Eles poderiam ter permanecido na comunidade eclesial mas o fato é que tombaram da grande árvore como folhas secas e se vincularam então ao tratamento Algo neles se agarra muitas vezes com a força do desespero como se eles ou algo neles estivesse na iminência de precipitarse no nada caso se soltassem Procuram um chão firme em que se apoiar Como nenhum apoio externo é adequado devem encontrálo em si mesmos Do ponto de vista da razão isto parece o que há de mais inverossímil não o sendo entretanto do ponto de vista do inconsciente O arquétipo da origem humilde do Salvador é um testemunho deste fato 34 O caminho para a meta a princípio é caótico e imprevisível e só aos poucos vão se multiplicando os sinais de uma direção a seguir O caminho não segue a linha reta mas é aparentemente cíclico Um conhecimento mais exato o define como uma espiral os temas do sonho sempre reaparecem depois de determinados intervalos sob certas formas que designam à sua maneira o centro Tratase de um ponto central ou de uma disposição centrada que em certos casos surge a partir dos primeiros sonhos Os sonhos enquanto manifestações dos processos inconscientes traçam um movimento de rotação ou de circumambulação em torno do centro dele se aproximando mediante amplificações cada vez mais nítidas e vastas Devido à diversidade do material simbólico é difícil a princípio reconhecer qualquer tipo de ordem De fato nada permite pressupor que as séries de sonhos estejam sujeitas a um princípio ordenador A uma observação mais acurada porém o processo de desenvolvimento revelase cíclico ou em espiral Poderíamos estabelecer um paralelo entre esses processos em espiral e o processo de crescimento das plantas o tema vegetal árvore flor etc também retorna frequentemente nesses sonhos e fantasias ou em desenhos espontâneos 12 Na alquimia a árvore é o símbolo da filosofia hermética Referências HAENDLER O Die Predigt Tiefenpsychologische Grundlagen und Grundfragen 2 ed Berlim Alfred Töpelmann 1949 HARNACK A von Lehrbuch der Dogmengeschichte 3 vols 5 ed Tübingen 1931 JUNG CG Psychologie und Religion Die TerryLectures gehalten an der Yale Universiry Zurique Rascher 1940 Reed 1942 1947 e Pb 1962 Ölten StA Walter 1971 GW 11 1963 e 1973 LANG JB Hat ein Gott die Welt erschaffen Francke Bern 1942 PRZYWARA E Deus semper maior Theologie der Exerzitien 3 vols Freiburg iBr 19381940 Realencyklopädie für protestantische Theologie und Kirche Ed Albert Hauck 3 ed 24 vols Leipzig 18961913 TERTULLIANUS Quintus Septimius Clemens De carne Christi Migne PL II col 151792 Apologeticus adversus Gentes pro Christianis Migne E L I col 257536 WILHELM R Das Geheimnis der Goldenen Blüte Ein chinesisches Lebensbuch Mit einem europäischen Kommentar von CG Jung Munique Dorn Verlag Ed Zurique Rascher 1938 Reed 1939 1944 1948 e 1957 Jungs Beitrag in GW 11 1963 ZÖCKLER O Probabilismus Cf Realencyklopädie XVI S 66ff Fonte OC 12 Excertos do cap 1 134 Foram selecionadas as partes referentes à problemática religiosa 1 É digno de nota que numa obra sobre homilética um teólogo protestante tenha a coragem de exigir a integridade ética do pregador e isto invocando a minha psicologia HÄNDLER Die Predigt 2 O dogma do homem à imagem e semelhança de Deus também tem a maior importância na avaliação do fator humano sem falar da encarnação de Deus 3 O fato de o diabo também poder possuir a alma não reduz a importância da mesma 4 Por esta razão é totalmente impensável do ponto de vista psicológico que Deus seja apenas o totalmente outro pois o totalmente outro não pode ser o íntimo mais íntimo da alma e Deus o é As únicas afirmações psicologicamente corretas acerca da imagem de Deus são os paradoxos ou as antonomias 5 TERTULIANO Anima naturaliter christiana A alma é naturalmente cristã Apologeticus XVII 6 Como aqui se trata da questão do esforço humano deixo de lado os atos da graça que fogem à alçada humana 7 De carne Christi V 8 Zöckler Probabilismus p 67 define da seguinte maneira Probabilismo em geral é o modo de pensar que se dá por satisfeito com um grau de probabilidade maior ou menor quando se trata de responder questões científicas O probabilismo moral o único que importa aqui consiste no princípio de orientar seus atos de liberdade moral não pela consciência mas pelo que é dado como provavelmente certo isto é pelo que é recomendado por uma doutrina ou uma autoridade qualquer que serve de modelo O probabilista Escobar em 1669 por exemplo é de opinião que se o penitente invocar como fundamento para seu modo de agir um parecer provável o confessor será obrigado a absolvêlo mesmo que não tenha a mesma convicção A pergunta de quantas vezes na vida somos obrigados a amar a Deus Escobar responde citando uma série de autoridades jesuíticas segundo uns amar a Deus uma única vez pouco antes da morte seria o bastante segundo outros uma vez por ano ou uma vez a cada três ou quatro anos Ele próprio chega à conclusão de que é suficiente amar a Deus uma vez ao despertar da razão depois uma vez a cada cinco anos e uma última vez na hora da morte Em sua opinião o grande número de doutrinas morais diferentes é a principal prova da bondade da providência divina pois isso torna o jugo de Cristo tão leve op cit p 68 Cf tb com VON HARNACK Lehrbuch der Dogmengeschichte III p 748s 9 Cf Gn 12 O leitor encontrará uma compilação dos temas míticos em LANG Hat ein Gott die Welt erschaffen Lamentavelmente a crítica filológica terá muitas reservas a fazer em relação a esse trabalho No entanto convém assinalálo devido a sua tendência gnóstica 10 O autor redigiu a seguinte nota para a edição inglesa 1953 Nas obras alquímicas o significado da palavra Mercurius é dos mais variados não designa apenas o elemento químico mercúrio Hg Mercurius Hermes o Deus e Mercúrio o planeta mas também e antes de mais nada a secreta substância transformadora que é ao mesmo tempo o espírito inerente a todas as criaturas vivas Estas diversas conotações aparecerão com maior clareza no decorrer do livro 11 PRZYWARA Deus semper maior I p 71s 12 Cf as ilustrações em WILHELM JUNG O segredo da flor de ouro Sobre a relação entre a psicoterapia e a direção espiritual 1 Senhoras e senhores 488 O desenvolvimento da Psicologia médica e da Psicoterapia deve se muito menos à curiosidade dos estudiosos do que propriamente aos problemas psíquicos urgentes impostos pelos doentes e ao impulso decisivo que deles deriva A ciência médica evitou muito tempo quase em oposição às necessidades dos doentes de tocar nos problemas propriamente psíquicos partindo da hipótese aliás não de todo desprovida de fundamento de que esse domínio é mais da alçada de outras Faculdades Mas da mesma forma que a unidade biológica do ser humano sempre obrigou a Medicina a tomar emprestado informações aos ramos mais variados do saber tais como a Química a Física a Biologia etc assim também viuse forçada a aceitar que a Psicologia experimental entrasse para a sua órbita 489 No decorrer desses empréstimos era natural que os domínios científicos incorporados sofressem uma refração característica em suas tendências em lugar de um trabalho de pesquisa que constituísse um fim em si mesmo a preocupação era a de aplicálos ao homem na prática Assim por exemplo a Psiquiatria hauriu abundantemente do tesouro e dos métodos da Psicologia experimental e inseriu esta última no edifício de muitos dédalos da Psicoterapia Esta nada mais é em última análise do que uma Psicologia dos fenômenos psíquicos complexos Suas origens se encontram de uma parte nas experiências acumuladas pela Psiquiatria entendida no sentido mais estrito deste termo e de outra parte nas experiências da Neurologia esta disciplina compreendia também inicialmente o domínio daquilo que se convencionou chamar de Neurologia psicogenética visão esta que continua até hoje nos meios acadêmicos Na prática porém abriuse um vasto abismo nas últimas décadas principalmente a partir da utilização da hipnose entre os especialistas em Neurologia e os psicoterapeutas Isto não poderia deixar de produzirse porque a Neurologia é a ciência das doenças orgânicas ao passo que as neuroses psicogênicas não constituem doenças orgânicas no sentido corrente do termo assim como não fazem parte do domínio do psiquiatra que limitou seu campo de atividade às psicoses Mas as neuroses psicogênicas também não constituem doenças mentais no sentido comum do termo elas formam um domínio sui generis e isolado com fronteiras maldefinidas apresentando inúmeras formas de transição que se lançam para ambos os lados o das doenças mentais e o das doenças nervosas 490 O caráter intrínseco e inegável das neuroses consiste no fato de que elas nascem de causas psíquicas e só podem ser curadas por meios exclusivamente psíquicos A delimitação e o estudo deste domínio particular empreendida tanto a partir do setor psiquiátrico quanto do setor neurológico conduziu a uma descoberta que foi para a Medicina a mais incômoda possível a descoberta da alma enquanto fator etiológico suscetível de provocar enfermidades no domínio humano A Medicina no decorrer do século XIX tornarase em seus métodos e teoria uma disciplina tributária das ciências naturais e se apoiava nos mesmos pressupostos filosóficos que estas últimas o causalismo e o materialismo A alma enquanto substância espiritual não existia por si da mesma maneira que a Psicologia experimental se esforçava ao máximo para elaborar uma Psicologia sem alma 491 O estudo das psiconeuroses mostrou incontestavelmente que o fator psíquico é o causador das perturbações isto é a causa principal da doença assim este fator psíquico foi colocado em paridade com as outras causas de doença já conhecidas tais como a hereditariedade a constituição a infecção bacteriana etc Todas as tentativas feitas no sentido de reduzir a natureza do fator psíquico a outros fatores orgânicos deram em nada Mas uma delas teve mais êxito a que procurou reduzir o fator psíquico à noção de instinto tomada de empréstimo à Biologia Os instintos como se sabe são necessidades fisiológicas facilmente perceptíveis baseados nas funções glandulares e que como mostra a experiência influenciam e até mesmo condicionam os processos psíquicos Qual seria a ideia imediata senão a de procurar a causa específica da psiconeurose não num conceito místico de alma mas num distúrbio dos instintos distúrbio este que em última análise podia esperarse curar graças a um tratamento orgânico glandular 492 Freud como se sabe na sua Teoria das Neuroses delineou este ponto de vista Sua teoria vai buscar um princípio explicativo fundamental nas perturbações do instinto sexual A concepção de Adler também extrai seu princípio explicativo do domínio dos impulsos sexuais e especificamente das perturbações do instinto de poder instinto este muito mais psíquico do que o impulso sexual fisiológico 493 A noção de instinto está longe de ter sido cientificamente esclarecida Ela diz respeito a um fenômeno biológico de monstruosa complexidade e representa no fundo um X isto é pura e simplesmente um conceitolimite cujo conteúdo é de imprecisão absoluta Não quero aqui dar início a uma crítica do conceito de instinto mas pelo contrário encarar a possibilidade de considerar o fator psíquico como por exemplo uma mera combinação de instintos que também repousariam por sua parte em funções glandulares Aliás é forçoso admitirmos como provável que tudo aquilo que chamamos de psíquico está incluído na totalidade dos instintos e que portanto o psiquismo outra coisa não é em última análise senão um instinto ou conglomerado de instintos ou seja uma função hormonal A psiconeurose seria assim uma enfermidade do aparelho glandular 494 Mas a prova desta hipótese não foi absolutamente estabelecida não se tendo encontrado até agora a secreção glandular que pudesse curar uma neurose Se por um lado sabemos depois de um semnúmero de fracassos que a terapia orgânica falhou em princípio nas neuroses por outro lado sabemos também que os meios psíquicos curam a neurose como se eles fossem extratos glandulares As neuroses segundo nossa experiência atual podem e devem ser influenciadas e curadas não a partir da função proximal do sistema endócrino mas de sua função distal ou seja do psiquismo em geral tudo se passando exatamente como se o psiquismo fosse uma substância Uma explicação apropriada ou uma palavra de consolo por exemplo podem obter um efeito de cura que em última análise estendese até mesmo às funções glandulares As palavras do médico nada mais são evidentemente do que vibrações do ar mas seu valor intrínseco decorre do estado psíquico particular do médico que as pronuncia As palavras não agem senão porque transmitem um sentido ou uma significação é justamente aí que reside o segredo de sua eficácia Ora o sentido é qualquer coisa de espiritual Concedo que se possa dizer que este sentido nada mais é do que uma ficção Mas não é menos verdade que graças à ficção podemos influenciar a doença de maneira muito mais eficaz do que por meio de produtos químicos e mais ainda que até mesmo influenciamos o processo biológico químico Que a ficção se produza em mim interiormente ou me atinja a partir do exterior por meio da linguagem pouco me importa tanto num caso como no outro ela pode me adoecer ou restituirme a saúde As ficções ilusões e opiniões são certamente as coisas menos tangíveis e menos reais que possamos imaginar e no entanto elas são psíquica e psicofisiologicamente as mais eficazes 495 Foi mediante este processo que a Medicina descobriu a alma Por honestidade a Medicina não pode mais negar a substancialidade do psíquico O instinto é reconhecido como sendo uma das condições do psíquico da mesma forma que o psíquico passou a ser considerado e com razão um dos condicionamentos dos instintos 496 Não se pode acusar as teorias freudianas e adlerianas de serem psicologias do instinto mas sim o de serem unilaterais Constituem psicologias sem alma indicadas para todos aqueles que acreditam não ter necessidades nem exigências espirituais Mas nesta abordagem tanto se engana o médico como o paciente embora estas teorias levem em conta a psicologia das neuroses em grau infinitamente mais elevado do que qualquer outra concepção médica préanalítica não é menos verdade que sua limitação ao instintual em nada satisfaz as necessidades mais profundas da alma enferma Sua concepção é demasiado científica parece demasiado axiomática fictícia ou imaginativa em uma palavra atribui ou coloca demasiado sentido onde este não existe Ora só o significativo traz a salvação 497 A razão cotidiana o bomsenso comum a ciência como corporificação do common sense sob forma concentrada certamente satisfazem por algum tempo e por uma etapa bem prolongada mas nunca vão além das fronteiras da realidade mais terra a terra ou de uma normalidade humana média No fundo não trazem qualquer solução aos problemas do sofrimento psíquico e de sua significação mais profunda A psiconeurose em última instância é um sofrimento de uma alma que não encontrou o seu sentido Do sofrimento da alma é que brota toda criação espiritual e nasce todo homem enquanto espírito ora o motivo do sofrimento é a estagnação espiritual a esterilidade da alma 498 Munido deste conhecimento o médico se aventura doravante num domínio do qual só se aproxima depois de muita hesitação Começará a enfrentar a necessidade de transmitir a ficção salutar a significação espiritual pois é isto precisamente o que o doente espera dele para além de tudo o que a razão pensante e a ciência lhe podem dar O enfermo procura aquilo que o empolgue e venha conferir enfim ao caos e à desordem de sua alma neurótica uma forma que tenha sentido 499 Estará o médico à altura desta tarefa Ele poderá encaminhar seu paciente antes de tudo a um teólogo ou filósofo ou abandonálo às incertezas e perplexidades de sua época Enquanto médico sua consciência profissional evidentemente não o obriga a abraçar uma determinada concepção do mundo Mas o que acontecerá quando perceber com inelutável clareza as causas do mal de que o seu paciente sofre isto é que ele é carente de amor e não possui senão a sexualidade que lhe falta a fé porque ele receia a cegueira que vive sem esperança porque a vida e o mundo o decepcionaram profundamente e que atravessa a existência mergulhado na ignorância porque não soube perceber sua própria significação 500 Numerosos pacientes cultos se recusam categoricamente a procurar um teólogo Quanto ao filósofo nem sequer querem ouvir falar a respeito A história da Filosofia os deixa frios e o intelectualismo em que vivem mergulhados se lhes afigura mais desolador do que um deserto Onde encontrar os grandes sábios da vida e do mundo que não apenas se limitem a falar do sentido da existência mas que também o possuam Aliás não se pode imaginar qualquer sistema ou verdade que tragam ao doente aquilo de que necessita para a vida a saber a crença a esperança o amor e o conhecimento 501 Estas quatro conquistas supremas do esforço e das aspirações humanas são outras tantas graças que não podem ser ensinadas nem aprendidas nem dadas ou tomadas nem retiradas ou adquiridas pois estão ligadas a uma condição irracional que foge ao arbítrio humano isto é à experiência viva que se teve Ora é completamente impossível fabricar tais experiências Elas ocorrem não de modo absoluto mas infelizmente de modo relativo Tudo o que podemos dentro de nossas limitações humanas é tentar um caminho de aproximação rumo a elas Há caminhos que nos conduzem à proximidade das experiências mas deveríamos evitar de dar a estas vias o nome de métodos pois isto age de maneira esterilizante sobre a vida e além disto a trilha que leva a uma experiência vivida não consiste em um artifício mas em uma empresa arriscada que exige o esforço incondicional de toda a personalidade 502 A necessidade terapêutica conduznos assim a uma questão e ao mesmo tempo a um obstáculo aparentemente insuperável Como poderemos ajudar a alma enferma a pôrse a caminho da experiência libertadora a partir da qual germinarão os quatro grandes carismas crença esperança amor e conhecimento que deverão curar a doença Pleno de boas intenções o médico talvez chegue a aconselhar ao doente Deverias ter o verdadeiro amor ou a verdadeira fé ou ainda empenharte em conhecerte a ti mesmo Mas onde vai o doente encontrar aquilo que precisamente só poderá receber depois do tratamento 503 Saulo não deve sua conversão nem ao amor verdadeiro nem à verdadeira fé nem a uma verdade qualquer só o seu ódio aos cristãos o fez pôrse a caminho de Damasco e o conduziu àquela experiência que devia tornarse decisiva para toda a sua vida Ele viveu o seu maior erro com convicção e foi isto precisamente que nele determinou a experiência vivida 504 Aqui se abre diante do psiquiatra um conjunto de problemas vitais que jamais poderá ser levado suficientemente a sério e aqui também se impõe ao médico da alma um problema que o coloca em estreito contato com o diretor espiritual 505 O problema do sofrimento da alma concerneria no fundo muito mais ao diretor espiritual do que ao médico Mas na maioria dos casos o doente consulta primeiro o médico porque pensa estar fisicamente enfermo e sabe que certos sintomas neuróticos poderão pelo menos ser aliviados por meio de medicamentos Por outro lado o diretor espiritual geralmente não possui os conhecimentos que o capacitem a penetrar nas trevas do pano de fundo psíquico dos doentes como também não possui a autoridade que lhe dê condições de convencer o doente de que seu sofrimento não é de natureza física mas psíquica 506 Há também certos doentes que conhecem a natureza espiritual de seu sofrimento mas se recusam a procurar um diretor espiritual justamente porque não acreditam que ele seja capaz de ajudálos realmente Esses mesmos doentes aliás sentem uma desconfiança análoga em relação aos médicos em geral desconfiança fundada porque de fato tanto o médico como o diretor espiritual se acham presentes mas de mãos vazias ou o que é pior capazes apenas de palavras ocas Que o médico afinal nada tenha a dizer a respeito das últimas questões da alma é de todo compreensível Aliás não é do médico mas do teólogo que o paciente deveria esperar este conhecimento Mas o pastor protestante se encontra algumas vezes confrontado com tarefas quase insolúveis uma vez que tem que lutar com dificuldades práticas das quais o sacerdote católico se acha impune Este último tem o respaldo sobretudo na autoridade da Igreja além disso encontrase numa situação social garantida e independente ao contrário do pastor protestante quase sempre casado tendo a pesarlhe sobre os ombros a responsabilidade de uma família e no pior dos casos sem um mosteiro ou uma colegiada para acolhêlo hospitaleiramente em suas necessidades Quanto ao sacerdote católico se for jesuíta gozará dos benefícios da formação psicológica mais moderna Assim por exemplo vim a saber que os meus trabalhos têm sido objeto em Roma de estudos sérios muito antes que algum teólogo protestante os tivesse honrado com um rápido olhar 507 Os problemas da hora são graves O abandono da Igreja protestante na Alemanha por numerosos fiéis não constitui senão um dos sintomas Muitos outros poderiam mostrar ao teólogo que apenas o recurso à fé ou um convite a uma atividade caritativa significam demasiado pouco para as expectativas e exigências do homem moderno O fato de muitos teólogos procurarem apoio psicológico ou uma ajuda prática na teoria sexual de Freud ou na teoria da vontade de poder de Adler representa ao que parece uma curiosa contradição pois estas duas concepções são no fundo inimigas de tudo o que há de espiritual no homem uma vez que se trata de psicologias sem alma São métodos racionalistas que precisamente impedem o pleno desabrochar da experiência espiritual Na sua imensa maioria os psicoterapeutas são adeptos de Freud ou de Adler Isto significa também que a maioria dos doentes se tornarão necessariamente estranhos às perspectivas espirituais Isto não pode deixar indiferente quem se interesse pelo destino da alma humana A vaga psicológica que inunda os países protestantes da Europa está longe de decrescer Ela avança paralelamente com o abandono em massa das Igrejas Cito aqui as palavras de um pastor protestante Hoje em dia as pessoas vão ao médico da alma ao invés de procurarem um diretor espiritual 508 Estou convencido de que esta afirmação só vale para o público culto Certamente não se aplica à grande massa Mas não nos esqueçamos de que aquilo que o homem culto pensa não levará mais do que vinte anos para tornarse objeto das preocupações da massa A obra célebre de Büchner Kraft und Stoff Força e matéria 2 por exemplo tornouse cerca de vinte anos depois de sua publicação quando já parecia praticamente abandonada pelos círculos cultos um dos livros mais lidos das bibliotecas populares da Alemanha Estou convencido de que as necessidades psicológicas dos homens cultos de hoje constituirão o centro de interesse popular de amanhã 509 Gostaria de apresentar aqui os seguintes fatos à reflexão dos meus leitores há trinta anos minha clientela provém um pouco de quase todos os países civilizados do mundo Várias centenas de doentes passaram pelas minhas mãos Em sua grande maioria eram protestantes havia uma minoria de judeus e não tratei mais do que cinco ou seis católicos praticantes De todos os meus pacientes que tinham ultrapassado o meio da vida isto é que contavam mais de trinta e cinco anos não houve um só cujo problema mais profundo não fosse o da atitude religiosa Aliás todos estavam doentes em última análise por terem perdido aquilo que as religiões vivas ofereciam em todos os tempos a seus adeptos e nenhum se curou realmente sem ter readquirido uma atitude religiosa própria o que evidentemente nada tinha a ver com a questão de confissão credo religioso ou com a pertença a uma determinada igreja 510 Aqui se abre um imenso domínio para o diretor espiritual Mas parece que quase ninguém o percebeu É improvável que o pastor protestante de hoje esteja suficientemente preparado para atender às fortes exigências da alma contemporânea Já está na hora de o diretor espiritual e o médico se darem as mãos para levar a bom termo esta ingente tarefa espiritual 511 Eu gostaria de mostrarlhes com um exemplo o quanto estes problemas são atuais Há pouco mais de um ano a Direção da Conferência dos Estudantes Cristãos de Aarau perguntoume por que as pessoas de hoje em casos de sofrimento moral dirigemse de preferência ao médico e não ao pastor Esta questão é direta e prática Até então eu constatara apenas que meus pacientes tinham procurado o médico e não o pastor Mas isto era um fato geral Tal coisa me parecia duvidosa em todo caso eu não dispunha de dados precisos sobre o problema Por isso promovi a este respeito uma pesquisa em círculos que me eram totalmente estranhos por meio de terceiros a ela responderam protestantes franceses alemães e suíços Paralelamente recebemos também um certo número de respostas de círculos católicos Os resultados desta pesquisa são muito interessantes De modo geral 57 de todos os protestantes e somente 25 dos católicos declaravam optar pelo médico nos casos de sofrimento moral Pelo pastor somente 8 dos protestantes contra 58 dos católicos Estas foram as opções claramente definidas O resto das respostas protestantes ou seja 35 ficou indeciso Do lado católico o número de indecisos não ultrapassou 17 512 E quais foram as razões principalmente alegadas para não se consultar o pastor Em 52 das respostas foi mencionada a falta de conhecimentos psicológicos e da compreensão daí decorrente 28 indicaram como motivo de sua abstenção que o pastor tem uma concepção preestabelecida e se acha muito preso a uma formação dogmática estreita e tradicional Notemos a título de curiosidade que até mesmo um pastor declarou optar pelo médico ao passo que outro me respondeu irritado A Teologia nada tem a ver com o tratamento de doentes Todos os membros de família dos teólogos que responderam à pesquisa de opinião se pronunciaram contra o pastor 513 Esta pesquisa evidentemente restrita a círculos cultos nada mais é do que uma sondagem de valor muito limitado Estou convencido de que certas camadas populares sem cultura reagiriam de modo diferente Mas minha tendência é a de admitir que pelo menos em relação aos meios que responderam a pesquisa possui um certo valor pois é fato bemconhecido que a indiferença pelas coisas da Igreja e da religião é muito grande e cresce cada vez mais nestes círculos E não esqueçamos quanto à psicologia das massas acima mencionada que os problemas ideológicos dos círculos cultos não levam mais do que vinte anos para atingir as classes populares sem cultura Quem teria previsto por exemplo há vinte ou mesmo há dez anos a imensa reviravolta espiritual que ocorreu na Espanha o mais católico de todos os países da Europa 3 E no entanto ele foi abalado repentinamente como que pela violência de uma catástrofe natural 514 Pareceme que paralelamente à decadência da vida religiosa o número de neuroses vai aumentando consideravelmente Entretanto não há qualquer estatística que ateste este crescimento Mas uma coisa me parece certa o estado de espírito geral do europeu mostra mais ou menos por toda parte uma ausência inquietante de equilíbrio Não se pode negar que vivemos em uma época de grande agitação de nervosismo de atividade mais ou menos desordenada e de notável desconcerto em tudo que se refere às concepções do mundo No seio de minha clientela que provém sem nenhuma exceção dos meios cultos figura um número considerável de pessoas que me consultaram não porque sofressem de uma neurose mas porque não encontravam um sentido para suas vidas ou porque se torturavam com problemas para os quais a filosofia e a religião não traziam qualquer solução Alguns pensavam que eu talvez possuísse alguma fórmula mágica mas tive prontamente de desenganálos e dizerlhes e isto nos leva aos problemas práticos que eu também não possuía qualquer resposta pronta 515 Tomemos por exemplo a mais frequente e a mais comum destas questões a do sentido da vida O homem moderno acredita saber à saciedade o que o pastor vai responder a esta interrogação e mesmo o que ele deve responder Do filósofo essas pessoas geralmente riem do médico de clínica geral não esperam muita coisa mas do especialista da alma que passa seu tempo a analisar o inconsciente quem sabe afinal de contas se não terá alguma coisa para dizer Talvez se possa esperar que ele tenha desenterrado dos subterrâneos obscuros da alma entre outras coisas também um sentido para a vida que poderíamos adquirir barato em troca do pagamento dos honorários Por isso constitui quase um alívio da consciência para qualquer pessoa séria saber que o próprio médico nada tem a dizer a priori sobre o assunto E assim a pessoa se consola sabendo que não errou o alvo que estava a seu alcance É muitas vezes por meio deste contato que se abre o caminho da confiança em relação ao médico 516 Descobri que há no homem moderno uma resistência invencível contra as opiniões préfabricadas e as verdades tradicionais que se pretende impor O homem moderno é como um bolchevista para o qual todas as formas e normas espirituais anteriores perderam de algum modo a validez e assim ele quer experimentar com o espírito o que o bolchevista faz com a economia Em face desta tendência do espírito moderno qualquer sistema da Igreja Católica ou protestante budista ou confucionista achase numa situação incômoda É inegável que entre os modernos existem naturezas destruidoras perversas tipos originais degenerados desequilibrados que não se sentem bem em parte alguma e que por conseguinte aderem a todos os novos experimentos e a todos os movimentos aliás com grande dano para estes últimos na esperança de descobrir aí enfim aquilo que possa atenuar as suas próprias deficiências Evidentemente por força de minha profissão conheço um grande número de pessoas de nossa época e consequentemente também os sujeitos patológicos assim como os normais Mas façamos abstração dos sujeitos patológicos Os indivíduos normais não são tipos originais doentios mas muitas vezes homens particularmente capazes bons e corajosos entretanto não é por maldade que rejeitam as verdades tradicionais e sim por motivos de correção e de honestidade Eles sentem globalmente que nossas verdades religiosas se tornaram de alguma forma ocas e vazias Ou não conseguem harmonizar sua concepção das coisas com as verdades religiosas ou então sentem que as verdades cristãs perderam sua autoridade e justificação psicológica As pessoas não se sentem mais salvas pela morte de Cristo e não conseguem mais crer Feliz por certo é aquele que pode crer em alguma coisa mas não se pode obter a fé pela força O pecado é qualquer coisa inteiramente relativa o que é mau para um é bom para o outro Por que Buda não teria tanta razão quanto Cristo 517 Creio que todos aqui conhecem estas questões e dúvidas tanto quanto eu A análise freudiana coloca todas estas coisas de lado declarando as impróprias porque na sua opinião tratase quanto ao essencial de recalques da sexualidade fatos encobertos por pretensos problemas filosóficos e religiosos Quando se estuda em sua realidade um caso individual em que surgem problemas desta natureza logo se constata efetivamente que o domínio sexual se acha perturbado de maneira muito singular de modo geral a esfera inteira dos instintos inconscientes Freud explica toda desordem psíquica partindo da existência dessa desordem sexual e se interessa unicamente pela causalidade dos sintomas psíquico sexuais Assim procedendo ignora completamente que existem casos em que as pretensas causas estavam presentes desde há muito mas não se manifestavam até que alguma perturbação da atitude consciente fizesse o indivíduo soçobrar na neurose Este procedimento é semelhante ao que aconteceria se num barco que fosse a pique por terse aberto um rombo no seu casco a tripulação se interessasse essencialmente pela composição da água que irrompesse no casco ao invés de esforçarse por tapar o buraco A perturbação da esfera sexual não é um fenômeno primário mas constitui como tal um fenômeno secundário A consciência perdeu seu sentido e sua esperança Tudo se passa como se um pânico tivesse irrompido comamos e bebamos porque amanhã estaremos mortos Este estado de alma nascido em seres que perderam o sentido de sua existência determina a perturbação do mundo subterrâneo e desencadeia os instintos domesticados a duras penas O motivo pelo qual alguém se torna neurótico está tanto no presente como no passado Só um motivo atualmente existente pode manter viva uma neurose Uma tuberculose existe hoje não porque há vinte anos houve uma infecção de bacilos tuberculosos mas porque o sujeito apresenta no momento focos bacilares em rápido desenvolvimento Onde e como teve lugar a infecção é de todo secundário Mesmo o mais exato conhecimento dos antecedentes do enfermo não o curaria da tuberculose A mesma coisa acontece com a neurose 518 É por esta razão que sempre levo a sério os problemas religiosos que um paciente me submeta e os considero como causas possíveis de uma neurose Mas se os levo a sério devo confessar a meu paciente Sim você tem razão podese sentir as coisas como você o faz Buda pode ter tanta razão quanto Cristo o pecado é relativo e não se vê realmente como e por que motivo deveríamos sentirnos salvos pela morte de Cristo Confirmar o doente nestas suas dúvidas é certamente muito fácil para mim enquanto médico mas é difícil para o pastor O paciente percebe a atitude do médico como resultante de uma compreensão ao passo que tomará as hesitações do pastor como o reflexo de um aprisionamento deste na história ou na tradição atitude que o separaria humanamente do enfermo E o paciente pensa consigo mesmo Se assim é o que acontecerá e o que irá dizer o pastor quando eu começar a falarlhe de todas aquelas coisas que perturbam minha vida instintiva Com toda razão o paciente esperará que o pastor esteja muito mais preso ainda aos seus conceitos morais do que os seus pontos de vista dogmáticos Podemos lembrar neste contexto a anedota deliciosa que se conta a respeito do lacônico Presidente Coolidge Num domingo pela manhã ele saiu e ao retornar sua mulher lhe perguntou Onde estiveste Na Igreja E o que disse o pastor Falou do pecado E o que disse ele sobre o pecado Ele foi contra 519 Dirmeão que o médico nesta perspectiva pode facilmente ser compreensivo Mas nós nos esquecemos de que entre os médicos também existem naturezas morais e que entre as confissões dos pacientes há algumas que o médico também tem certa dificuldade em digerir E no entanto o interlocutor não se sentirá aceito enquanto não for admitido aquilo que há de mais sombrio nele Ora nessa aceitação não se trata apenas de palavras e a ela se pode chegar em função da mentalidade de cada um e da atitude que se adota no confronto consigo próprio e com seu lado sombrio Se o médico quer conduzir a alma de alguém ou mesmo somente acompanhála é preciso pelo menos que esteja em contato com ela Este contato entretanto não se estabelecerá enquanto o médico mantiver uma atitude de condenação no que diz respeito à pessoa que lhe foi confiada Que nada diga acerca desta condenação ou que a exprima mais ou menos claramente isto em nada altera as consequências produzidas por sua atitude no paciente Mas também não adianta assumir a atitude inversa e dar sempre razão ao paciente em qualquer circunstância Este procedimento determinará o mesmo alheamento que uma condenação moral O contato com efeito só se estabelece graças a uma objetividade isenta de qualquer preconceito Esta afirmação tem um aspecto quase científico Alguém poderia confundir o meu pensamento com uma atitude puramente abstrata e intelectual Ora o que aqui estou dizendo é algo de inteiramente diverso tratase de uma atitude humana profundamente respeitosa em relação ao fato em relação ao homem que sofre esse fato e em relação ao enigma que a vida desse homem implica O homem autenticamente religioso assume precisamente tal atitude Ele sabe que Deus criou todas as espécies de estranhezas e coisas incompreensíveis e que procurará atingir o coração humano pelos caminhos mais obscuros possíveis É por isso que a alma religiosa sente a presença obscura da vontade divina em todas as coisas É esta atitude que pretendo designar quando falo de objetividade isenta de qualquer preconceito Ela constitui o desempenho moral do médico o qual não deve sentir repugnância pela enfermidade e pela podridão Não se pode mudar aquilo que interiormente não se aceitou A condenação moral não liberta ela oprime e sufoca A partir do momento em que condeno alguém não sou seu amigo e não compartilho de seus sofrimentos sou o seu opressor Isto não quer dizer evidentemente que nunca se deva condenar alguém Mas não se deve condenar ali onde se espera e se pode ajudar alguém a melhorar sem recorrer a essa condenação Se um médico quer ajudar um homem deve primeiramente aceitálo tal como é E não poderá fazer isso enquanto não se aceitar a si mesmo previamente tal como é em seu ser com todas as suas falhas 520 Isto talvez pareça muito simples Mas o que é simples em geral é sempre o mais difícil De fato a simplicidade constitui a arte suprema e assim a aceitação de si mesmo é a essência do problema moral e o centro de toda uma concepção do mundo Que eu faça um mendigo sentarse à minha mesa que eu perdoe àquele que me ofende e me esforce por amar inclusive o meu inimigo em nome de Cristo tudo isto naturalmente não deixa de ser uma grande virtude O que faço ao menor dos meus irmãos é ao próprio Cristo que faço Mas o que acontecerá se descubro porventura que o menor o mais miserável de todos o mais pobre dos mendigos o mais insolente dos meus caluniadores o meu inimigo reside dentro de mim sou eu mesmo e precisa da esmola da minha bondade e que eu mesmo sou o inimigo que é necessário amar Assistimos aqui a uma inversão total da verdade cristã pois já não temos mais amor nem paciência e somos nós próprios a dizer ao irmão que está dentro de nós Raca louco condenandonos dessa forma a nós próprios e irandonos contra nós mesmos Exteriormente dissimulamos aquilo de que somos feitos e negamos categoricamente haver encontrado à nossa frente esse miserável que habita dentro de nós e mesmo que o próprio Deus tivesse se aproximado de nós oculto sob estes traços repugnantes nós o teríamos rejeitado milhares de vezes muito antes que o galo cantasse 521 Quem quer que com a ajuda da Psicologia moderna tenha lançado um olhar não só por trás dos bastidores de seus pacientes mas também e principalmente por trás dos seus próprios bastidores e isto constitui uma necessidade para o psicoterapeuta moderno que não for um charlatão ingênuo reconhecerá que o mais difícil para não dizer o impossível é aceitarse tal como se é com sua miserável natureza Basta a simples alusão a esta necessidade para mergulhar o indivíduo em um suor de angústia e é por isso em geral que se prefere adotar com certa alegria e sem hesitação uma atitude mais complexa ou mais ambígua a saber a ignorância de si mesmo e o desvelo duvidoso em relação aos outros às dificuldades e aos pecados alheios É nesta atitude que está a demonstração das virtudes tangíveis graças às quais enganamos não só aos outros como a nós mesmos deixando a nossa consciência tranquila Com isto graças a Deus escapamos de nós mesmos Um semnúmero de pessoas puderam agir assim impunemente mas isto não acontece com todas e estas então mergulham em uma neurose na caminhada para Damasco Como pode o médico ajudar estes indivíduos se ele é um daqueles que se esquivou ao conhecimento de si mesmo e talvez tenha sido atingido pelo Morbus sacer mal sagrado da neurose Só possui uma objetividade isenta de preconceitos aquele que se aceitou tal como é Ora ninguém pode vangloriarse de o ter conseguido plenamente Poderíamos alegar o caso de Cristo que sacrificou sua encarnação histórica ao Deus que estava nele e viveu sua vida tal como ela era até o amargo fim sem levar em conta na verdade qualquer convenção humana ou o que pudesse parecer bom aos olhos dos fariseus 522 Nós os protestantes achamonos em melhores condições de abordar este problema Devemos compreender a imitação de Cristo no sentido de que se trataria de copiar a sua vida macaquear de algum modo os seus estigmas as suas chagas ou entendendoo em seu sentido mais profundo viver a nossa vida como Ele viveu a sua naquilo que Ele tinha de mais próprio e irredutível Imitar a vida de Cristo não é coisa fácil mas é indiscutivelmente mais difícil viver a própria vida no espírito em que Cristo viveu a sua Se alguém se esforçasse por conseguilo estaria correndo o risco de se chocar contra os próprios condicionamentos históricos e mesmo que atendesse às suas exigências ainda assim seria a seu modo ignorado desprezado escarnecido torturado e pregado numa cruz Com efeito tal homem seria uma espécie de bolchevista demente e não é sem motivo que o crucificariam Por isso é que se prefere a imitatio Christi imitação de Cristo coroada pela história e transfigurada pela santidade Eu jamais tentaria perturbar um monge que se esforçasse por realizar esta identificação com Cristo Acho que é digno de uma admiração especial Mas acontece que não sou monge e meus pacientes também não além do mais tenho a missão como médico de indicar a meus doentes o caminho segundo o qual poderão viver a sua vida sem se tornarem neuróticos A neurose é uma cisão interior uma discórdia íntima Tudo o que reforça esta discórdia agrava o mal tudo o que a reduz devolve a saúde Aquilo que provoca a discórdia é o pressentimento ou mesmo o conhecimento de que há dois seres no coração do mesmo sujeito e que eles se comportam de modo antagônico algo assim como o que diz Fausto Duas almas ai habitam em meu peito estes dois seres são o homem sensual e o homem espiritual o eu e sua sombra A neurose é uma cisão da personalidade 523 O problema da cura é um problema religioso Uma das imagens que ilustram o sofrimento neurótico no interior de cada um é a da guerra civil no plano das relações sociais que regulam a vida das nações É pela virtude cristã que nos impele a amar e a perdoar o inimigo que os homens curam o estado de sofrimento entre as pessoas Aquilo que por convicção cristã recomendamos exteriormente é preciso que o apliquemos internamente no plano da terapia das neuroses É por isso que os homens modernos não querem mais ouvir falar em culpa ou pecado Cada um já tem muito o que fazer com a própria consciência já bastante carregada e o que todos desejam saber e aprender é como conseguir reconciliarse com as próprias falhas como amar o inimigo que se tem dentro do próprio coração e como chamar de irmão ao lobo que nos quer devorar 524 O homem moderno também não está mais interessado em saber como poderia imitar a Cristo O que quer antes de tudo é saber como conseguir viver em função de seu próprio tipo vital por mais pobre ou banal que seja Tudo o que lhe lembra imitação se lhe afigura contrário ao impulso vital contrário à vida e é por isso que ele se rebela contra a história que gostaria de retêlo em caminhos previamente traçados Ora para ele todos esses caminhos conduzem ao erro Ele está mergulhado na ignorância mas se comporta como se sua vida individual constituísse a expressão de uma vontade particular divina que deveria ser cumprida antes e acima de tudo daí o seu egoísmo que é um dos defeitos mais perceptíveis do estado neurótico Mas quem disser ao homem moderno que ele é demasiado egoísta perdeu irremediavelmente a partida com ele O que se entende perfeitamente pois agindo assim não faz senão empurrálo cada vez mais para a neurose 525 É precisamente o egoísmo dos doentes que me impele em função de sua própria cura a reconhecer o profundo sentido de um tal egoísmo Há nele e para não o ver seria preciso que eu estivesse cego algo que se apresenta como uma autêntica vontade divina Quer dizer se o doente consegue impor seu egoísmo e eu devo ajudálo em tal sentido ele se tornará estranho aos demais repelilosá e assim tanto ele como os outros ficarão apenas consigo próprios Nada mais justo que isto lhes aconteça pois quiseram arrancálo do seu sagrado egoísmo Ora este deve serlhe deixado pois constitui sua força mais poderosa e mais sadia que é como acabo de dizer uma espécie de manifestação da autêntica vontade divina impelindoo na maioria das vezes a um isolamento total Por mais miserável que seja este isolamento ele não deixa de ser útil porque somente então é que o doente vai poder conhecerse a si próprio só então poderá aprender a medir o bem inestimável que reside no amor dos outros homens Além disso só no seio do abandono e da mais profunda solidão consigo mesmo podese experimentar os poderes benéficos que cada um traz dentro de si 526 Quando observamos em várias ocasiões evoluções desta natureza só pudemos reconhecer que aquilo que era mau tornouse um degrau para o bem e aquilo que parecia bom não fazia senão manter o mal em ação O demônio do egoísmo tornase assim a via régia para aquele silêncio que uma experiência religiosa exige Encontramos aqui a grande lei da vida que é a enantiodromia ou seja a conversão no contrário que pouco a pouco torna possível a unificação das duas componentes opostas da personalidade pondo um fim à guerra civil que nela se trava 527 Escolhi o egoísmo neurótico como exemplo por se tratar de um dos sintomas mais frequentes na vida do homem Mas poderia ter escolhido qualquer outro sintoma do caráter para demonstrar qual deve ser a atitude do psiquiatra em face das insuficiências de seus pacientes em outros termos para mostrar como utilizarse com proveito de atitudes negativas e do problema do mal que elas implicam 528 Talvez tudo isto pareça ainda muito simples Na realidade porém a aceitação do lado sombrio da natureza humana constitui algo que raia pelo impossível Basta pensar no que significa aceitarmos o irracional o insensato e o mau seu direito à existência Entretanto é a isto que o homem moderno aspira ele quer viver com aquilo que ele próprio é quer saber o que ele é e por esta razão é que rejeita a história Quer ser sem história para poder viver da forma experimental e constatar o que as coisas possuem de valor e de sentido em si mesmas independentemente daquilo que os preconceitos históricos afirmam a seu respeito A juventude moderna nos fornece exemplos surpreendentes em tal sentido Uma consulta feita a mim por uma sociedade alemã nos mostra até onde vai esta tendência Devese rejeitar o incesto E quais os fatos que podem ser alegados contra ele 529 Mas é difícil imaginar a que conflitos tais tendências poderão arrastar os homens Compreendo que se queira tentar o impossível para proteger os homens contemporâneos de tais aventuras Mas é estranho como nos parecem faltar os meios eficazes Todos os argumentos que atuavam contra a insensatez a ilusão e a imoralidade perderam em grande parte sua força de persuasão Colhemse agora os frutos da educação do século XIX Enquanto a Igreja pregava uma fé cega ao adolescente a universidade ensinava um intelectualismo racionalista e de tudo isto resultou que o argumento da fé e da razão acabaram se desgastando e perdendo a eficácia e capacidade de convencer O homem farto e cansado do choque de opiniões quer saber por si mesmo o que as coisas têm a lhe dizer em si mesmas E esta tendência que abre as portas é verdade às mais temíveis possibilidades constitui no entanto uma empresa corajosa à qual não podemos negar a nossa simpatia Este passo ousado do espírito moderno não é um empreendimento aventuroso e extravagante mas uma tentativa nascida da mais profunda necessidade psíquica de redescobrir graças a uma experiência original feita sem preconceitos a unidade da vida e de seu próprio sentido Certamente o medo e a pusilanimidade têm suas excelentes razões de ser mas é preciso encorajar e apoiar uma tentativa ao mesmo tempo audaciosa e séria que desafia e empenha o homem inteiro Lutar contra esta tentativa seria no fundo reprimir aquilo que o homem tem de melhor sua coragem suas altas aspirações e se se chegasse a este resultado terseia abortado aquela experiência infinitamente preciosa que é a única capaz de conferir um sentido à vida Que teria acontecido se São Paulo se desviasse de sua viagem a Damasco por qualquer razão sutil 530 É com este problema que o psicoterapeuta sério e consciencioso se deve confrontar Ele deve dizer em cada caso especial que está pronto em seu íntimo a prestar a sua orientação e ajuda a uma pessoa que se lança numa tentativa e numa busca ousada e incerta O médico em tal situação não deverá mais saber nem presumir que sabe o que é verdadeiro e o que não o é para nada excluir daquilo que compõe a plenitude da vida mas deverá concentrar sua atenção sobre aquilo que é verdadeiro Ora é verdadeiro aquilo que atua Se aquilo que me parece um erro é afinal de contas mais eficaz e mais poderoso do que uma pretensa verdade importa em primeiro lugar seguir este erro aparente pois é nele que residem a força e a vida que eu deixaria escapar se perseverasse naquilo que reputo como verdadeiro A luz necessita da obscuridade pois senão como poderia ela ser luz 531 A psicanálise de Freud se limita como se sabe a tornar consciente o mal e o mundo das sombras no interior do homem Ela simplesmente mostra a guerra civil latente até então no interior do indivíduo e aí termina sua tarefa É o próprio paciente que deve ver como poderá sair da situação Freud infelizmente ignorou por completo o fato de que o homem em momento algum da história esteve em condições de enfrentar sozinho as potências do mundo subterrâneo isto é de seu inconsciente Para isto ele sempre necessitou da ajuda espiritual que lhe proporcionava a religião do momento A abertura do inconsciente significava a explosão de um tremendo sofrimento da alma pois tudo se passa precisamente como se uma civilização florescente fosse submersa pela súbita invasão de uma horda de bárbaros ou como se campos férteis fossem abandonados à fúria avassaladora das águas depois de se terem rompido os diques de proteção A Primeira Guerra Mundial foi uma dessas explosões e ela nos mostrou melhor do que tudo como é frágil a barreira que separa um mundo aparentemente bemordenado do caos sempre pronto a submergilo É isto o que acontece em relação a cada indivíduo por trás de seu mundo racionalmente ordenado uma natureza espera ávida de vingança pelo momento em que ruirá a parede de separação para se expandir destruidoramente na existência consciente Desde os tempos mais recuados e mais primitivos o homem tem consciência deste perigo o perigo da alma e é por isso que ele criou ritos religiosos e mágicos para protegerse contra esta ameaça ou para curar as devastações psíquicas que daí decorrem É por isso que o curandeiro entre os povos primitivos é sempre e ao mesmo tempo o sacerdote o salvador tanto do corpo como da alma e que as religiões formam sistemas de cura dos sofrimentos da alma Isto se aplica de modo muito particular às duas maiores religiões da humanidade o cristianismo e o budismo O que alivia o homem não é o que ele próprio imagina mas somente uma verdade sobrehumana e revelada que o arranca de seu estado de sofrimento 532 Já fomos atingidos por uma vaga de destruição A alma sofreu danos e é por isso que os doentes exigem que o médico da alma assuma uma função sacerdotal porque esperam e exigem dele que os liberte de seus sofrimentos É por este motivo que nós médicos da alma devemos atualmente ocuparnos de problemas que a rigor compete à Faculdade de Teologia Mas não podemos pura e simplesmente abandonar tais problemas à Teologia pois cotidianamente somos desafiados pela miséria psíquica com que nos defrontamos de maneira direta Como entretanto todas as noções e tradições em geral se revelam inúteis é preciso antes de tudo trilhar a via da doença o labirinto de erros que agrava inicialmente ainda mais os conflitos e aumenta a solidão até tornála insustentável Mas há a esperança de que do fundo da alma de onde provêm todos os elementos destruidores nasçam igualmente os fatores de salvação 533 No começo de minha carreira quando decidi trilhar este caminho não sabia aonde ele me conduziria Ignorava o que as profundezas da alma encerravam e dissimulavam aquelas profundezas que desde então tenho definido como sendo o inconsciente coletivo e cujos conteúdos denomino de arquétipos Já nas épocas mais obscuras da préhistória e sem que isto tenha deixado de se repetir produziramse irrupções do inconsciente porque a consciência nem sempre existiu e deve terse formado nos primórdios da história da humanidade mais ou menos como se forma sempre de novo nos primeiros anos de nossa infância No começo a consciência é débil e facilmente sufocada pelo inconsciente É isto que deve ter acontecido na história psíquica da humanidade As lutas intestinas decorrentes destes fenômenos deixaram suas marcas Podemos dizer usando a linguagem das ciências naturais formaramse os mecanismos instintivos de defesa que intervêm automaticamente quando a miséria da alma atinge o seu ponto máximo Tais mecanismos surgem sob a forma de representações salutares de ideias inatas à alma humana inextirpáveis e que intervêm ativamente por si mesmas quando a desgraça o exige As ciências não podem senão constatar a existência destes fatores psíquicos e tentar explicálos racionalmente mas com isto simplesmente transfere a solução do enigma para um estágio anterior que continua hipotético sem chegar a um resultado satisfatório Encontramos aqui algumas questões finais De onde provém a consciência O que é propriamente a alma E aqui a ciência toca o seu limite 534 Tudo se passa como se no ponto culminante da doença os elementos destrutivos se transformassem em elementos de salvação Isto se produz graças ao fato daquilo que chamei arquétipos Estes despertam para uma vida independente assumindo a direção da personalidade psíquica em vez e no lugar do eu incapaz de suas volições e aspirações impotentes Um homem religioso diria que Deus toma a direção Diante do que conheço a respeito da maioria de meus pacientes devo evitar esta fórmula em si perfeitamente completa pois ela lembra demais aquilo que de início eles precisam rejeitar Devo exprimirme de modo mais modesto e dizer que a atividade autônoma da alma desperta formulação esta que leva mais em conta os fatos observados A grande inversão com efeito tem lugar no momento em que nos sonhos ou nas fantasias surgem conteúdos ou temas cuja origem não pode ser detectada na consciência O fato de o doente verse confrontado com algo estranho que brota do reino obscuro da alma mas que não se identifica com o eu e por isso se acha fora do arbítrio do eu é sentido como uma iluminação decisiva o sujeito reencontra o caminho de acesso para as fontes da vida da alma e isto constitui o início da cura 535 A fim de ilustrar este processo recorrerei a exemplos mas é quase impossível encontrar um caso individual ao mesmo tempo breve e convincente porque em geral tratase de evoluções extremamente sutis e complexas Muitas vezes é a impressão profunda que causa no paciente a maneira tipicamente independente com que os sonhos tratam de seus problemas Outras vezes será um tema decisivo que surge sob a forma de fantasmas e para o qual a consciência não está de modo algum preparada Mas na maior parte dos casos tratase de conteúdos ou conglomerados de conteúdos de natureza arquetípica que compreendidos ou não pela consciência e independentemente deste fato exercem por si mesmos um efeito considerável Às vezes a atividade autônoma da alma se exacerba a ponto de suscitar a percepção de uma voz interior ou de imagens visionárias e criar uma experiência que a rigor constitui uma experiência original da ação do espírito no homem 536 Experiências desta natureza facilmente conciliam os erros dolorosos do passado porque é a partir delas que se clarificará a desordem interior e mais ainda é a partir delas que o sujeito conseguirá reconciliarse também com seus antagonismos interiores e eliminar num nível superior de sua evolução o estado de dissolução doentia de que foi vítima 537 Em razão da importância e da amplidão das questões de princípio colocadas pela Psicoterapia moderna renuncio a entrar em detalhes por mais desejável que isto pareça em vista de uma melhor compreensão do tema tratado De qualquer forma espero ter conseguido descrever de modo claro a atitude que o médico da alma deve assumir perante seus doentes Espero igualmente que meu auditório tenha tirado mais proveito destas considerações do que de métodos e receitas que só conseguem agir como devem nas coisas da alma quando utilizados segundo o espírito que presidiu à sua elaboração A atitude do psicoterapeuta é infinitamente mais importante do que as suas teorias e os métodos psicológicos É por esta razão que me empenho sobretudo em levar ao conhecimento de meu público os problemas levantados por esta atitude Quero crer que lhes proporcionarei a este respeito informações honestas fornecendo a cada um dos presentes os meios para decidir em que medida e de que modo um pastor de almas pode se associar aos esforços empreendidos pela psicoterapia Longe de mim a pretensão da infalibilidade mas creio contudo que o quadro do estado do espírito moderno que acabo de esboçar é exato e corresponde à realidade Em todo caso aquilo que eu lhes disse em matéria de princípios a respeito dos problemas do tratamento das neuroses constitui a verdade sem retoques Nós médicos naturalmente nos sentiríamos gratificados se os esforços que fazemos para curar os sofrimentos da alma encontrassem uma certa compreensão e alguma simpatia por parte dos teólogos Por outro lado porém compreendemos as dificuldades insólitas ligadas à ordem dos princípios que se opõem a uma colaboração efetiva Embora minha posição no parlamento do espírito seja de extremaesquerda não deixo de ser o primeiro a prevenir contra uma generalização sem crítica de meus próprios pontos de vista Se bem que suíço e como tal visceralmente democrata devo reconhecer que a natureza é aristocrática e mais ainda é esotérica Quod licet Iovi non licet bovi o que é permitido a Júpiter não é permitido ao boi eis aí uma verdade que embora desagradável não é menos eterna Quem tem seus inúmeros pecados perdoados Aqueles que muito amaram ao passo que os que pouco amaram merecem o mínimo de perdão Estou inabalavelmente convencido de que um número imenso de homens pertencem ao grêmio da Igreja Católica e não a outro lugar pois é nela que encontram o acolhimento espiritual mais seguro e proveitoso como também estou convencido e isto em virtude de minha própria experiência de que uma religião primitiva convém infinitamente mais aos primitivos do que a imitação nauseante de um cristianismo que lhes é incompreensível e congenitamente estranho Por isso aliás creio que neste sentido deve haver protestantes que se elevem contra a Igreja Católica da mesma forma que protestantes que se elevem contra os próprios protestantes porque as manifestações do espírito são singulares e múltiplas como a própria criação 538 E um espírito vivo cresce e supera suas próprias formas anteriores procurando através de uma livreescolha os homens nos quais ele vivera e que o anunciarão Ao lado desta vida do espírito que se renova eternamente ao longo de toda a história da humanidade procurando atingir sua meta por vias múltiplas e muitas vezes incompreensíveis os nomes e as formas aos quais os homens se agarram com todas as forças representam muito pouca coisa pois nada mais são que frutos e folhas caducas do mesmo tronco da árvore eterna Fonte OC 116 488538 1 De acordo com uma exposição feita à Conferência Pastoral de Estrasburgo em maio de 1932 2 BÜCHNER L Kraft und Stoff oder Grundzge der natürlichen Weltordnung nebst einer darauf gebauten Moral oder Sittenlehre Leipzig se 1855 3 Esta conferência foi pronunciada durante a Segunda República da Espanha proclamada em 1931 e surpresa em 1936 Religião e psicologia uma resposta a Martin Buber 1499 Há algum tempo os leitores de sua revista tiveram a oportunidade de ler um artigo do Conde Keyserling 1 no qual fui classificado como um negador do espírito ungeistig E eis que agora no último número encontro um artigo de Martin Buber 2 que se preocupa igualmente com minha qualificação Sintome tanto mais no dever de agradecerlhe esta exposição pois ele me elevou da condição de negador do espírito na qual o Conde Keyserling me havia apresentado ao público de língua alemã à esfera da espiritualidade ainda que daquela espiritualidade do gnosticismo dos primórdios do cristianismo e que sempre foi encarada com desconfiança pelos teólogos O cômico é que esta apreciação coincide cronologicamente com a opinião provinda de fonte teológica autorizada e que me acusa de agnosticismo que é justamente o oposto do gnosticismo 1500 Ora se as opiniões divergem tanto umas das outras sobre uma determinada questão é porque segundo me parece existe a suposição bem fundada de que nenhuma delas é verdadeira isto é há um malentendido Por que se dedica tanta atenção ao problema de saber se sou gnóstico ou agnóstico Por que não dizer simplesmente que sou um psiquiatra cujo interesse principal é expor e interpretar o material colhido em suas experiências O que tento fazer é investigar os fatos concretos e tornálos acessíveis à inteligência A crítica não tem o direito de agir apressadamente atacando apenas afirmações isoladas e fora do contexto 1501 Para apoiar o seu diagnóstico Buber se utiliza até mesmo de um pecado que cometi em minha juventude há cerca de quarenta anos isto é o de perpetrar uma poesia 3 na qual eu expunha certos conhecimentos psicológicos em estilo gnóstico pois na época estava estudando os gnósticos com grande entusiasmo Este entusiasmo se baseava na constatação de que parecia terem sido eles os primeiros pensadores a se ocuparem a seu modo com os conteúdos do assim chamado inconsciente coletivo Mandei imprimir o poema sob pseudônimo e dei alguns exemplares de presente a determinados conhecidos sem suspeitar que um dia ele seria arrolado contra mim num processo de heresia 1502 Permitome lembrar aos meus críticos que fui considerado não só gnóstico e o contrário disso mas também teísta e ateu místico e materialista Em meio ao concerto de tantas e tão variadas opiniões não quero atribuir demasiada importância àquilo que eu próprio penso de mim mas citar apenas uma opinião expressa a meu respeito extraída de fonte aparentemente insuspeita um artigo publicado no British Medical Journal de 9 de fevereiro de 1952 Facts first and theories later is the keynote of Jungs work He is an empiricist first and last 4 Esta opinião tem todo o meu apoio 1503 Quem não conhece meus trabalhos certamente indagará qual o motivo determinante e a razão dessas opiniões tão conflitantes a respeito de um só e mesmo objeto A resposta é que todas elas sem exceção foram expressas por metafísicos isto é por pessoas que julgam saber acerca da existência de coisas incognoscíveis situadas no além Eu nunca ousei afirmar que tais coisas não existem mas também não tive a ousadia de pensar que alguma de minhas afirmações atinge de um modo ou de outro tais coisas ou que as exponha corretamente Eu duvido que nossas concepções a minha e a deles a respeito da natureza das coisas em si sejam idênticas e isto por razões evidentes de ordem científica 1504 Como porém as concepções e opiniões a respeito de determinados objetos metafísicos ou religiosos desempenham papel de grande importância na psicologia experimental 5 sou obrigado por razões de ordem prática a manejar conceitos correlatos Mas ao fazêlo doume plenamente conta de que estou lidando com noções antropomórficas e não com divindades ou anjos reais embora tais imagens arquetípicas se comportem com tal autonomia devido à sua energia específica a ponto de podermos denominálas metaforicamente de demônios psíquicos A realidade desta autonomia deve ser levada muito a sério primeiramente sob um ponto de vista teórico dado que ela expressa a dissociabilidade e a dissociação efetiva da psique e em segundo lugar sob um ponto de vista prático considerando que ela constitui a base da confrontação dialética entre o eu e o inconsciente que é um dos pontos principais do método psicoterapêutico Quem dispuser de algum conhecimento sobre a estrutura da neurose sabe que o conflito patogênico tem suas raízes na oposição entre o inconsciente e a consciência As chamadas forças do inconsciente não são conceitos abstratos que podemos manipular arbitrariamente mas antagonistas perigosos que às vezes provocam terríveis devastações na economia da personalidade Eles são o que de mais temível se possa esperar como contrapartida psíquica Mas para o leigo no assunto parece que se trata de uma doença orgânica de natureza obscura O teólogo imaginando que por detrás disto há a presença do diabo é quem mais próximo se acha da verdade psíquica 1505 Receio que Buber por compreensível desconhecimento da experiência psiquiátrica não entenda o que pretendo dizer por realidade da psique e pelo processo dialético da individuação O eu com efeito se contrapõe em primeiro lugar às forças psíquicas que trazem nomes consagrados desde os tempos antigos e foram por isso invariavelmente identificadas com seres metafísicos A análise do inconsciente demonstrou há muito tempo a existência de tais forças sob a forma de imagens arquetípicas que entretanto não se identificam com os conceitos abstratos correspondentes Talvez alguém acredite que os conceitos da consciência sejam representações diretas e corretas de seu objeto metafísico por virtude da inspiração do Espírito Santo Não há dúvida de que uma tal convicção só é possível para aquele que possui o carisma da fé Infelizmente não posso gloriarme dessa posse e por isso não penso que ao dizer alguma coisa sobre um arcanjo faça uma afirmação de caráter metafísico Pelo contrário o que expressei foi uma opinião a respeito de algo que pode ser experimentado ou seja a respeito de uma das forças do inconsciente que podemos sentir Estas forças são typi tipos numinosos ou conteúdos processos e dinamismos inconscientes Esses typi são se assim podemos dizer imanentes e transcendentes ao mesmo tempo Como meu único meio de conhecer as coisas é a experiência não tenho a possibilidade de ultrapassar este limite imaginando que minha descrição tenha reproduzido a imagem perfeita de um arcanjo metafísico real Apenas descrevi um fator psíquico que apesar de tudo exerce uma grande influência sobre a consciência Por causa de sua autonomia este fator representa um polo oposto do eu subjetivo na medida em que representa um segmento da psique objetiva É por isso que podemos denominálo tu Em favor de sua realidade temos o testemunho dos fatos diabólicos de nossa época os seis milhões de judeus assassinados as vítimas incontáveis do trabalho escravo na Rússia e a invenção da bomba atômica para dar apenas alguns exemplos do lado tenebroso da humanidade Em compensação tenho sido testemunha de tudo aquilo que pode ser expresso pelas palavras beleza bondade sabedoria e graça Estas experiências das profundezas e das alturas da natureza humana autorizamnos a usar o termo demônio em sentido metafórico 1506 Não se deve esquecer de que eu me ocupo com os fenômenos psíquicos que podem ser demonstrados empiricamente como fundamentos de conceitos metafísicos e de que ao pronunciar a palavra Deus por exemplo não posso referirme senão a paradigmas psíquicos demonstráveis mas que são de uma realidade tremenda Se alguém achar isto inacreditável eu o aconselho a fazer um giro de reflexão através de um manicômio 1507 A realidade da psique é minha hipótese de trabalho e minha atividade precípua consiste em coletar descrever e interpretar o material que os fatos me oferecem Não elaborei um sistema nem uma teoria geral Formulei apenas conceitos auxiliares que me servem de instrumentos de trabalho tal como se faz habitualmente nas ciências naturais Se Buber considera meu empirismo como gnosticismo então cabelhe o ônus de provar que os fatos por mim descritos nada mais são do que meras invenções Se ele conseguir isso através de material empírico é lícito concluir que sou gnóstico Mas neste caso ele se acharia na situação incômoda de concordar que todas as experiências religiosas não passam de autoilusões Atualmente minha opinião é a de que o julgamento de Buber bateu no endereço errado Isto se percebe sobretudo no fato de que aparentemente ele não é capaz de entender o modo pelo qual um conteúdo psíquico autônomo como a imagem de Deus possa contraporse ao eu não faltando vivacidade a essa relação Não há dúvida de que não é tarefa da ciência experimental verificar até que ponto um conteúdo psíquico desta natureza foi produzido e determinado pela existência de uma divindade metafísica Isto é da competência da teologia da revelação e da fé Parece que meu crítico não percebe que ele mesmo ao falar de Deus o faz partindo principalmente do que lhe diz sua consciência e depois de seus pressupostos inconscientes Não sei de que Deus metafísico ele fala Se é um judeu ortodoxo fala de uma divindade ainda não revelada por sua encarnação ocorrida no ano I de nossa era Se é cristão conhece a encarnação a respeito da qual Javé ainda não deixa entrever coisa alguma Não ponho em dúvida a convicção que ele tem de estar em relação viva com um tu divino mas como sempre acho que tal relação tem como objeto primeiramente um conteúdo psíquico autônomo definido de modo diferente por ele e pelo Papa Quanto a isto não me compete absolutamente julgar até que ponto aprouve ao Deus metafísico revelarse ao judeu fiel como o Deus anterior à encarnação aos padres da Igreja como o Deus trino posterior aos protestantes como o único Redentor sem Corredentora e ao Papa atual como Redentor com uma Corredemptrix Corredentora Ou devemos duvidar de que os representantes de outras religiões como o islã o budismo o hinduísmo e o taoismo não tenham também esta mesma relação vital com Deus com o Nirvana ou com o Tao tal como Buber com o seu próprio conceito de Deus 1508 É estranho que Buber se escandalize com a minha afirmação de que Deus não pode existir sem uma ligação com o homem e a considere como uma proposição de caráter transcendente Mas eu digo expressamente que tudo absolutamente tudo o que dizemos a respeito de Deus é uma afirmação humana isto é psíquica Mas será que a noção que temos ou formamos de Deus nunca está desligada do homem Poderá Buber informarme onde foi que Deus criou sua própria imagem sem ligação com o homem Como e por quem semelhante coisa pode ser constatada Vou especular ou fabular aqui excepcionalmente em termos transcendentes Deus na realidade formou uma imagem sua ao mesmo tempo incrivelmente esplêndida e sinistramente contraditória sem a ajuda do homem e a implantou no inconsciente do homem como um arquétipo um ἀρχέτυποὐ ῶζ não para que os teólogos de todos os tempos e de todas as religiões se digladiassem por causa dela mas sim para que o homem despretensioso pudesse olhar no silêncio de sua alma para dentro desta imagem que lhe é aparentada construída com a substância de sua própria psique encerrando tudo quanto ele viesse um dia a imaginar a respeito de seus deuses e das raízes de sua própria psique 1509 Este arquétipo cuja existência é atestada não somente pela história dos povos como também através da experiência psicológica com os indivíduos em particular satisfazme perfeitamente Ele é humanamente tão próximo e ao mesmo tempo tão estranho e diferente e como todos os arquétipos de atuação sumamente determinante sinal inequívoco de uma confrontação interior É por isso que a relação dialética com os conteúdos autônomos do inconsciente coletivo constitui parte essencial da terapia 1510 Buber enganase ao afirmar que eu elaboro enunciados metafísicos partindo de uma concepção fundamentalmente gnóstica Não é lícito tomar um resultado da experiência como pressuposto filosófico pois este resultado não foi obtido dedutivamente e sim através de material fornecido pela experiência clínica Eu recomendaria ao meu crítico que lesse as biografias de doentes mentais como as que se encontram por exemplo em John Custance Wisdom Madness and Folly Londres 1951 ou em Daniel Paul Schreber Denkwürdigkeiten eines Nervenkranken Leipzig 1903 que certamente não partiram de pressupostos gnósticos como eu também não ou a análise de um material mitológico como o que se encontra no excelente trabalho de seu vizinho de Tel Aviv o Dr Erich Neumann Apuleius Amor und Psyche Zurique 1952 Minha afirmação de que existe uma analogia e um parentesco muito próximo entre os produtos do inconsciente e certas representações metafísicas se baseia em minha experiência profissional Permitome neste contexto lembrar que conheço um grande número de abalizados teólogos tanto católicos como protestantes que não têm dificuldade de compreender meu ponto de vista empírico Por isso não vejo motivos para considerar minha maneira de expor tão errônea como se depreende das alusões de Buber 1511 Gostaria ainda de mencionar um equívoco que tenho constatado com muita frequência É o referente à estranha hipótese segundo a qual se as projeções fossem retiradas nada mais restaria do objeto O fato de eu corrigir minhas opiniões errôneas a respeito de uma determinada pessoa não significa que eu a renegue ou a faça desaparecer Pelo contrário agora é que a vejo de modo mais ou menos correto coisa que só poderá ser útil para uma determinada relação Mas o fato de considerar que todos os enunciados referentes a Deus provêm sobretudo da alma não implica a negação de Deus ou que se substitua Deus pelo homem Devo confessar que não me é nada simpático pensar necessariamente que todas as vezes que um pregador cita a Bíblia ou ventila suas opiniões religiosas é o próprio Deus metafísico que fala por meio dele Não há dúvida de que a fé quando a possuímos é algo de grandioso e que o conhecimento da fé é talvez muito mais perfeito do que tudo quanto conseguimos com nossa fatigante experiência de curto fôlego O edifício da dogmática cristã está por exemplo num patamar muito mais alto do que os philosophoumena agrestes dos gnósticos Os dogmas são estruturas pneumáticas de imensa beleza e de sentido admirável com os quais eu me tenho ocupado a meu modo A seu lado simplesmente se desvanecem as nossas tentativas científicas de estabelecer paradigmas da psique objetiva Elas estão presas à terra e à realidade são contraditórias incompletas lógica e esteticamente insatisfatórias As noções das ciências naturais e da psicologia clínica não derivam de princípios teóricos imaculados e irrepreensíveis mas do trabalho quotidiano realizado no terra a terra da existência humana e de seus males Os conceitos empíricos são de natureza irracional O filósofo que os critica como se fossem conceitos filosóficos trava uma batalha contra moinhos de vento e se envolve como Buber com seu conceito do simesmo nas maiores dificuldades Os conceitos empíricos são nomes que usamos para designar complexos de fatos reais e existentes Dado o caráter paradoxal de nossa existência é compreensível que o inconsciente encerre uma imagem de Deus também paradoxal que não se harmoniza com a beleza a sublimidade e a pureza do conceito dogmático de Deus O Deus de Jó e do Salmo 18 é porém um pouco mais realista e seu comportamento não conflita com a imagem de Deus do inconsciente Este último favorece a ideia da encarnação com seu simbolismo do anthropos Não me sinto responsável pelo fato de a história dos dogmas ter feito algum progresso depois do Antigo Testamento Não prego com isto uma nova religião pois para tanto precisaria apoiarme segundo o antigo costume pelo menos em uma revelação divina Sou um médico que se ocupa com a enfermidade do homem e de sua época voltado para aqueles meios terapêuticos que correspondam à realidade do mal Não somente Buber como qualquer um é livre para curar meus pacientes com a palavra de Deus evitando minha odiosa psicologia Acolherei de braços abertos esta sua tentativa Mas como a cura animarum espiritual nem sempre tem produzido os efeitos desejados é do modo acima indicado que deverão proceder por enquanto os médicos que não dispõem de coisa melhor do que a modesta gnose que a experiência lhes oferece Ou algum de meus críticos conhece algo melhor 1512 Como médico que sou encontrome numa situação aflitiva pois infelizmente não é possível fazer alguma coisa com a palavrinha deveria Não podemos exigir de nossos pacientes uma fé que eles próprios rejeitam porque nada entendem ou porque ela nada significa para eles mesmo que a possuíssem Temos sempre de contar com as possibilidades de cura encerradas na natureza do doente pouco importando que as concepções daí decorrentes estejam ou não de acordo com qualquer uma das confissões ou filosofias conhecidas O meu material empírico parece conter de tudo um pouco de primitivo ocidental e oriental Quase não se encontra um mitologema que não seja mencionado e nenhuma heresia que não misture aí alguma de suas singularidades É assim que deve ser constituída a camada coletiva das profundezas da alma humana O intelectualista e o racionalista contentes com a própria crença talvez se indignem contra isso e me acusem de ecletismo ímpio como se eu tivese inventado os fatos da natureza e da história humanas e preparado com eles uma beberagem teosófica intragável Ora quem tem uma crença ou prefere falar uma linguagem filosófica não precisa preocuparse com os fatos Mas um médico não pode deixar de encarar a realidade repugnante da natureza humana 1513 Os representantes dos sistemas tradicionais dificilmente entenderão as minhas formulações corretamente Um gnóstico por exemplo de maneira alguma estaria satisfeito comigo mas criticaria a ausência de uma cosmogonia bem como o desalinho de minha gnose em relação aos acontecimentos ocorridos no pleroma Um budista reclamaria contra o fato de eu me deixar cegar pela maya ilusão e um taoista criticaria meu caráter complicado Um cristão bem ortodoxo dificilmente deixaria de censurarme a despreocupação e a falta de respeito com que navego no céu das ideias dogmáticas Mas sou obrigado a pedir a meus críticos impiedosos que observem por bondade que parto de fatos buscando para eles uma interpretação Referências BUBER M Eclipse of God Studies in the Relation Between Religion and Philosophy Nova York 1952 Deutsch Gottesfinsternis Betrachtungen zur Beziehung zwischen Religion und Philosophie Zurique 1953 Enthält Religion und modernes Denken aus Merkur VI2 Stuttgart 1952 JUNG CG Erinnerungen Träume Gedanken Hg von Aniela Jaffé Zurique 1961 Septem sermones ad mortuos Privatdruck 1916 In Erinnerungen Träume Gedanken Von der 2 Auflage an Siehe dort KEYSERLING GH Begegnungen mit der Psychoanalyse In Merkur Deutsche Zeitschrift für europäisches Denken IV11 Stuttgart November 1950 p 11511168 SCHMALTZ G Östliche Weisheit und westliche Psychotherapie Stuttgart 1951 Fonte OC 182 14991513 Carta de 22 de fevereiro de 1952 ao editor publicada em Merkur VI5 maio de 1952 p 467473 Stuttgart 1 Hermann Keyserling 18801946 Begegnungen mit der Psychoanalyse Merkur IV11 novembro de 1950 p 11511168 Stuttgart 2 Religion und modernes Denken Merkur VI2 fevereiro de 1952 3 Sete sermões sobre os mortos de Basílides de Alexandria Escrito em 1916 A partir da 2ª edição em Erinnerungen Träume Gedanken org por Aniela Jaffé 4 Primeiro os fatos depois as teorias eis a tônica da obra de Jung Ele é em primeira e última análise um empírico A Great Thinker p 315 5 Cf a este respeito a exposição elucidativa de G Schmaltz Östliche Weisheit und westliche Psychotherapie Stuttgart se 1951 IV CAMINHOS ESPIRITUAIS E SABEDORIA ORIENTAL O objetivo da prática oriental é idêntico ao da mística ocidental deslocase o centro de gravidade do ego para o simesmo do homem para Deus o que quer dizer que o eu desaparece no simesmo e o homem em Deus OC 115 958 Em matéria de religião é sabido que não se pode entender o que não se experimentou interiormente OC 12 15 Comentário psicológico sobre o Livro Tibetano da Grande Libertação 1 1 Diferença existente entre o pensamento oriental e o pensamento ocidental 759 O Dr EvansWentz confioume a tarefa de escrever o comentário sobre um texto que contém uma apresentação muito importante da psicologia oriental O fato de que eu precise usar aspas já está indicando a problematicidade do emprego desse termo Talvez não seja fora de propósito lembrar que o Oriente não produziu algo de equivalente à nossa psicologia mas apenas uma metafísica A filosofia crítica que é a mãe da psicologia moderna é estranha tanto ao Oriente quanto à Europa medieval Por isso o termo espírito no sentido em que é empregado no Oriente tem uma conotação metafísica Nosso conceito ocidental de espírito perdeu este sentido depois da Idade Média e a palavra agora designa uma função psíquica Embora não saibamos nem pretendamos saber o que é a psique em si podemos entretanto ocuparnos com o fenômeno espírito Não afirmamos que o espírito seja uma entidade metafísica ou que exista alguma ligação entre o espírito individual e um espírito universal Universal Mind hipotético Por isso nossa psicologia é uma ciência dos fenômenos puros sem implicações metafísicas de qualquer ordem O desenvolvimento da filosofia ocidental nos dois últimos séculos teve como resultado o isolamento do espírito em sua própria esfera e a ruptura de sua unidade original com o universo O próprio homem deixou de ser o microcosmos e sua alma já não é mais a scintilla consubstancial ou uma centelha da anima mundi da alma do mundo 760 Em razão disto a psicologia trata todas as pretensões e afirmações metafísicas como fenômenos espirituais considerandoas como enunciados acerca do espírito e sua estrutura que em última análise decorre de certas disposições inconscientes A psicologia não os considera como possuidores de valor absoluto nem também lhes reconhece a capacidade de expressar uma verdade metafísica Não temos meios intelectuais que nos permitam verificar se uma tal colocação é correta ou errônea O que sabemos unicamente é que não há nem a certeza nem a possibilidade de demonstrar a validade de um postulado metafísico como por exemplo o de um espírito universal Mesmo que a inteligência nos garanta a existência de um espírito universal temos a convicção de que ela estabelece apenas uma afirmação Não acreditamos que tal afirmação demonstre a existência de um espírito universal Não há argumento contra essa consideração mas não há também certeza em relação à validade de nossa conclusão Ou dito em outras palavras é igualmente possível que nosso espírito não seja mais do que a manifestação de um espírito universal mas também quanto a isto não temos a possibilidade de saber se de fato é assim ou não Por isso a psicologia acha que o espírito não pode constatar nem demonstrar o que ultrapassa esses limites 761 Portanto ao reconhecermos os limites de nosso espírito estamos mostrando o nosso bomsenso Admito que constitui um sacrifício despedir se do mundo maravilhoso no qual vivem e se movimentam seres produzidos pelo nosso espírito Tratase do mundo do primitivo onde até mesmo objetos sem vida são dotados de uma força vital salvadora e mágica mediante a qual estes objetos tornamse parte integrante de nós mesmos Mais cedo ou mais tarde tivemos de compreender que seu poder no fundo era o nosso próprio poder e que seu significado era uma projeção de nós mesmos A teoria do conhecimento constitui apenas o último passo dado ao sairmos da juventude da humanidade ou seja daquele mundo em que figuras criadas pelo nosso espírito povoavam um céu e um inferno metafísico 762 Apesar da inevitável crítica da teoria do conhecimento permanecemos presos à concepção de que um órgão de fé capacita o homem a conhecer a Deus Foi assim que o Ocidente desenvolveu a nova enfermidade de um conflito entre a ciência e a religião A filosofia crítica da ciência tornouse por assim dizer metafisicamente negativa ou para dizer em outras palavras materialista partindo justamente de um julgamento errôneo Consideramos a matéria como uma realidade tangível e cognoscível Entretanto esta matéria é uma noção absolutamente metafísica hipostasiada por cérebros não críticos A matéria é uma hipótese Quando se fala em matéria está se criando no fundo um símbolo de algo que escapa ao conhecimento e que tanto pode ser o espírito como qualquer outra coisa pode ser inclusive o próprio Deus A crença religiosa por outro lado recusa se a abandonar sua concepção do mundo Contradizendo as palavras de Cristo os crentes tentam permanecer no estado de crianças Agarramse ao mundo da infância Um teólogo famoso confessa em sua autobiografia que Jesus era seu bom amigo desde a infância Jesus é precisamente o exemplo elucidativo de uma pessoa que pregava algo bem diverso da religião de seus pais Mas não parece que a imitatio Christi comporte o sacrifício espiritual e psíquico que Ele próprio teve de oferecer no início de sua carreira e sem o qual jamais terseia tornado um redentor 763 O conflito surgido entre ciência e religião no fundo não passa de um malentendido entre as duas O materialismo científico introduziu apenas uma nova hipótese e isto constitui um pecado intelectual Ele deu um nome novo ao princípio supremo da realidade pensando com isto haver criado algo de novo e destruído algo de antigo Designar o princípio do ser como Deus matéria energia ou o que quer que seja nada cria de novo Trocase apenas de símbolo O materialista é um metafísico malgré lui O crente por outro lado procura manterse em um estado espiritual primitivo por motivos meramente sentimentais Não se mostra disposto a abandonar a relação infantil primitiva relativamente às figuras criadas pelo espírito Prefere continuar gozando da segurança e confiança que lhe oferece um mundo em que pais poderosos responsáveis e bondosos exercem a vigilância A fé implica potencialmente um sacrificium intellectus desde que o intelecto exista para ser sacrificado mas nunca num sacrifício dos sentimentos Assim os crentes permanecem em estado infantil em vez de se tornarem como crianças e não encontram a sua vida porque não a perdem Acresce ainda que a fé entra em choque com a ciência recebendo deste modo a sua recompensa pois se nega a tomar parte na aventura espiritual de nossa época 764 Qualquer pensador honesto é obrigado a reconhecer a insegurança de todas as posições metafísicas em especial a insegurança de qualquer conhecimento de fé É também obrigado a reconhecer a natureza insustentável de quaisquer afirmações metafísicas e admitir que não existe uma possibilidade de provar que a inteligência humana é capaz de arrancar se a si mesma do tremedal puxandose pelos próprios cabelos Por isso é muito duvidoso saber se o espírito humano tem condições de provar a existência de algo transcendental 765 O materialismo é uma reação metafísica contra a intuição súbita de que o conhecimento é uma faculdade espiritual ou uma projeção quando seus limites ultrapassam os da esfera humana Esta reação era metafísica na medida em que o homem de formação filosófica mediana não podia encarar a hipóstase que daí resultaria necessariamente Não percebia que a matéria não passava de outro nome para designar o princípio supremo da existência Inversamente a atitude de fé mostranos como as pessoas resistem em acolher a crítica filosófica Mostranos também como é grande o temor de terem de abandonar a segurança da infância para se lançarem a um mundo estranho e desconhecido mundo regido por forças para as quais o homem é indiferente Fundamentalmente nada se altera nos dois casos o homem e o ambiente que o cerca permanecem idênticos O homem precisa apenas tomar consciência de que está contido na sua própria psique e que nem mesmo em estado de demência poderá ultrapassar estes limites Também deve reconhecer que a forma de manifestação de seu mundo ou de seus deuses depende em grande parte de sua própria constituição espiritual 766 Como já frisei anteriormente a estrutura do espírito é responsável sobretudo por nossas afirmações a respeito de objetos metafísicos Também ficamos sabendo que o intelecto não é um ens per se ou uma faculdade espiritual independente mas uma função psíquica e como tal depende da psique como um todo Um enunciado filosófico é o produto de uma determinada personalidade que vive em época bemdeterminada e num determinado lugar Não é fruto de um processo puramente lógico e impessoal Sob este aspecto o enunciado filosófico é antes de tudo subjetivo Que ele seja válido ou não subjetivamente depende do maior ou menor número de pessoas que pensem do mesmo modo O isolamento do homem no interior de sua própria psique como resultado da crítica da teoria do conhecimento conduziuo logicamente à crítica psicológica Esta espécie de crítica não goza de muita aceitação entre os filósofos porque estes consideram o intelecto filosófico como um instrumento da filosofia perfeito e livre de preconceitos Entretanto o intelecto é uma função que depende da psique individual e é determinado por condições subjetivas para não mencionarmos as influências do meio ambiente Na realidade já nos habituamos de tal modo com esta concepção que o espírito perdeu seu caráter universal Tornouse uma grandeza mais ou menos humanizada sem qualquer vestígio do aspecto cósmico ou metafísico de outrora quando era considerado como anima rationalis O espírito é considerado hoje como algo de subjetivo ou até mesmo arbitrário Depois que ficou demonstrado que as ideias universais hipostasiadas de outrora eram princípios espirituais passamos a compreender melhor que toda a nossa experiência da chamada realidade é psíquica cada pensamento cada sentimento e cada ato de percepção são formados de imagens psíquicas e o mundo só existe na medida em que formos capazes de produzir sua imagem Recebemos de tal modo a impressão profunda de nosso cativeiro e de nosso confinamento em nossa psique que nos sentimos propensos a admitir na psique a existência de coisas que desconhecemos e a que denominamos o inconsciente 767 A amplitude aparentemente universal e metafísica do espírito foi reduzida assim a um estreito círculo da consciência reflexa individual a qual se acha profundamente marcada por sua subjetividade quase sem limites e pela tendência infantil e arcaica à projeção e à ilusão desenfreadas Muitos pensadores científicos sacrificaram inclusive suas inclinações religiosas e filosóficas receosos de cair num subjetivismo incontrolado Para compensar a perda de um mundo que pulsava com o nosso sangue e respirava com o nosso sopro alimentamos um entusiasmo pelos fatos concretos por montanhas de fatos que o indivíduo jamais conseguirá abarcar com um só olhar Afagamos a doce esperança de que este acúmulo aleatório venha um dia a formar um todo pleno de sentido Mas ninguém tem certeza disto porque nenhum cérebro humano é capaz de abranger a gigantesca soma final deste saber produzido em massa Os fatos nos submergem e quem ousa especular deve pagar por isto com uma consciência má e não sem razão pois não tarda a tropeçar nos fatos reais 768 Para a psicologia ocidental o espírito é uma função da psique É a mentalidade de um indivíduo Na esfera da filosofia ainda é possível encontrar um espírito universal e impessoal que parece representar um resquício da alma humana primitiva Esta maneira de interpretar a concepção ocidental talvez pareça um tanto drástica mas no meu entender não está muito distante da verdade Em todo caso é esta a impressão que temos quando a comparamos com a mentalidade oriental No Oriente o espírito é um princípio cósmico a existência do ser em geral ao passo que no Ocidente chegamos à conclusão de que o espírito é a condição essencial para o conhecimento e por isso também para a existência do mundo enquanto representação e ideia No Oriente não existe um conflito entre a ciência e a religião porque a ciência não se baseia na paixão pelos fatos do mesmo modo que a religião não se baseia apenas na fé O que existe é um conhecimento religioso e uma religião cognoscitiva 2 Entre nós ocidentais o homem é infinitamente pequeno enquanto a graça de Deus é tudo No Oriente pelo contrário o homem é deus e se salva por si próprio Os deuses do budismo tibetano pertencem à esfera do ilusório sucederse das coisas e às projeções produzidas pelo espírito mas nem por isso deixam de ter existência entre nós porém uma ilusão continuará sempre uma ilusão e como tal não é coisa alguma É paradoxal mas ao mesmo tempo verdadeiro o fato de que para nós o pensamento não possui realidade em seu verdadeiro sentido Nós o tratamos como se fosse nada Embora o pensamento possa ser correto só admitimos sua existência devido a determinados fatos expressos por ele Podemos inventar certos objetos altamente destrutivos como por exemplo a bomba atômica com a ajuda desses fantásticos produtos de um pensamento que não existe na realidade pois achamos que é totalmente absurdo admitirse seriamente a realidade do pensamento em si 769 A realidade psíquica é um conceito discutível da mesma forma que a psique ou o espírito Alguns consideram estes últimos como sendo a consciência de seus conteúdos ao passo que outros admitem a existência de imagens obscuras e inconscientes Uns incluem os instintos na esfera do psíquico ao passo que outros os excluem daí A grande maioria dos autores considera a alma como o resultado de processos bioquímicos ocorridos nas células cerebrais Para poucos na psique reside a causa da função das células corticais Alguns identificam a vida com a psique Mas só uma minoria inexpressiva considera o fenômeno psíquico como uma categoria do ser enquanto tal tirando daí as consequências lógicas Na verdade é uma contradição considerar que a categoria do ser uma das condições essenciais de todo o existente ou seja da psique seja real apenas pela metade Na verdade o ser psíquico é a única categoria do ser da qual temos um conhecimento direto e imediato pois nenhuma coisa pode ser conhecida sem apresentarse como imagem psíquica A existência psíquica é a única que pode ser demonstrada diretamente Se o mundo não assume a forma de uma imagem psíquica é praticamente como se não existisse Este é um fato de que o Ocidente não se deu plenamente conta com raras exceções como por exemplo a filosofia de Schopenhauer Mas Schopenhauer como se sabe foi influenciado pelo budismo e pelos Upanishads 770 Até mesmo um conhecimento superficial é suficiente para mostrar que existe uma diferença fundamental entre o Oriente e o Ocidente O Oriente se baseia na realidade psíquica isto é na psique enquanto condição única e fundamental da existência A impressão que se tem é a de que este conhecimento é mais uma manifestação psicológica do que o resultado de um pensamento filosófico Tratase de um ponto de vista tipicamente introvertido ao contrário do ponto de vista ocidental que é tipicamente extrovertido 3 A introversão e a extroversão como se sabe são atitudes temperamentais ou mesmo constitucionais que jamais são intencionalmente assumidas em situações normais Excepcionalmente elas podem ser desenvolvidas de modo premeditado mas somente em condições muito especiais A introversão é se assim podemos nos exprimir o estilo do Oriente ou seja uma atitude habitual e coletiva ao passo que a extroversão é o estilo do Ocidente Neste a introversão é encarada como uma anomalia um caso patológico ou de qualquer maneira inadmissível Freud identificoua com uma atitude autoerótica do espírito Ele sustenta a mesma posição negativa da filosofia nazista da Alemanha moderna 4 filosofia que considera a introversão como um delito grave contra o sentimento comunitário No Oriente pelo contrário a extroversão que cultivamos com tanto carinho é considerada como um apetite ilusório e enganador como existência no Samsâra como o ser mais íntimo da cadeia dos nidanas que atinge seu ponto culminante na soma dos sofrimentos do mundo 5 Quem experimentou na prática o mútuo rebaixamento dos valores entre introvertidos e extrovertidos darseá bem conta do conflito emocional que existe entre o ponto de vista oriental e o ponto de vista ocidental A discussão acirrada acerca dos universalia que teve início com Platão oferece um exemplo instrutivo para quem é versado na história da filosofia na Europa Não quero examinar aqui todas as ramificações do conflito existente entre introvertidos e extrovertidos Devo porém mencionar os aspectos religiosos do problema O Ocidente cristão considera o homem inteiramente dependente da graça de Deus ou da Igreja na sua qualidade de instrumento terreno exclusivo da obra da redenção sancionado por Deus O Oriente pelo contrário sublinha o fato de que o homem é a única causa eficiente de sua própria evolução superior o Oriente com efeito acredita na autorredenção 771 O ponto de vista religioso representa sempre a atitude psicológica e seus preconceitos específicos mesmo para aquelas pessoas que esqueceram sua religião ou que dela nunca ouviram falar Em relação à psicologia o Ocidente é cristão em todos os sentidos apesar de tudo O anima naturaliter christiana de Tertuliano vale para todo o Ocidente não somente no sentido religioso como ele pensava mas também no sentido psicológico A graça provém de uma outra fonte de qualquer modo ela vem de fora Qualquer outra perspectiva é pura heresia Assim compreendese perfeitamente que a alma humana tenha complexos de inferioridade Quem ousa pensar em uma relação entre a alma e a ideia de Deus é logo acusado de psicologismo ou suspeito de misticismo doentio O Oriente pelo contrário tolera compassivamente estes graus espirituais inferiores em que o homem se ocupa com o pecado devido à sua ignorância cega a respeito do carma ou atormenta a sua imaginação com uma crença em deuses absolutos os quais se ele olhar um pouco mais profundamente perceberá que não passam de véus ilusórios tecidos pelo seu próprio espírito Por isso a psique é o elemento mais importante é o sopro que tudo penetra ou seja a natureza de Buda é o espírito de Buda o uno o DharmaKâya Toda vida jorra da psique e todas as suas diferentes formas de manifestação se reduzem a ela É a condição psicológica prévia e fundamental que impregna o homem oriental em todas as fases de seu ser determinando todos os seus pensamentos ações e sentimentos seja qual for a crença que professe 772 De modo análogo o homem ocidental é cristão independentemente da religião à qual pertença Para ele a criatura humana é algo de infinitamente pequeno um quase nada Acrescentase a isso o fato de que como diz Kierkegaard o homem está sempre em falta diante de Deus O homem procura conciliar os favores da grande potência mediante o temor a penitência as promessas a submissão autohumilhação as boas obras e os louvores A grande potência não é o homem mas um totaliter aliter o totalmente outro absolutamente perfeito e exterior a única realidade existente 6 Se modificarmos um pouco a fórmula e em lugar de Deus colocarmos outra grandeza como por exemplo o mundo o dinheiro teremos o quadro completo do homem ocidental zeloso temente a Deus piedoso humilde empreendedor cobiçoso ávido de acumular apaixonada e rapidamente toda espécie de bens deste mundo tais como riqueza saúde conhecimentos domínio técnico prosperidade pública bemestar poder político conquistas etc Quais são os grandes movimentos propulsores de nossa época Justamente as tentativas de nos apoderarmos do dinheiro ou dos bens dos outros e de defendermos o que é nosso A inteligência se ocupa principalmente em inventar ismos adequados para ocultar os seus verdadeiros motivos ou para conquistar o maior número possível de presas Não pretendo descrever o que sucederia a um oriental se se esquecesse do ideal de Buda Não quero colocar assim tão deslealmente e para nossa vantagem o preconceito ocidental Mas não posso deixar de propor a questão de saber se seria possível ou mesmo conveniente para ambos os lados imitar o ponto de vista do outro A diferença entre ambos é tão grande que não se vê uma possibilidade de imitálos e muito menos ainda a oportunidade de o fazer Não se pode misturar fogo com água A posição oriental idiotiza o homem ocidental e viceversa Não se pode ser ao mesmo tempo um bom cristão e seu próprio redentor do mesmo modo como não se pode ser ao mesmo tempo um budista e adorar a Deus Muito mais lógico é admitir o conflito pois se existe realmente uma solução só pode tratarse de uma solução irracional 773 Por inevitável desígnio do destino o homem ocidental tomou conhecimento da maneira de pensar do oriental É inútil querer depreciar esta maneira de pensar ou construir pontes falsas ou enganadoras por sobre abismos Em vez de aprender de cor as técnicas espirituais do Oriente e querer imitálas numa atitude forçada de maneira cristã imitatio Christi muito mais importante seria procurar ver se não existe no inconsciente uma tendência introvertida que se assemelhe ao princípio espiritual básico do Oriente Aí sim estaríamos em condições de construir com esperança em nosso próprio terreno e com nossos próprios métodos Se nos apropriarmos diretamente dessas coisas do Oriente teremos de ceder nossa capacidade ocidental de conquista E com isso estaríamos confirmando mais uma vez que tudo o que é bom vem de fora onde devemos buscálo e bombeálo para nossas almas estéreis 7 A meu ver teremos aprendido alguma coisa com o Oriente no dia em que entendermos que nossa alma possui em si riquezas suficientes que nos dispensam de fecundála com elementos tomados de fora e em que nos sentirmos capazes de desenvolvernos por nossos próprios meios com ou sem a graça de Deus Mas não poderemos entregarnos a esta tarefa ambiciosa sem antes aprender a agir sem arrogância espiritual e sem uma segurança blasfema A atitude oriental fere os valores especificamente cristãos e não adianta ignorar estas coisas Se quisermos que nossa atitude seja honesta isto é radicada em nossa própria história é preciso apropriarmonos desta atitude com plena consciência dos valores cristãos e conscientes do conflito que existe entre estes valores e a atitude introvertida do Oriente É a partir de dentro que devemos atingir os valores orientais e procurálos dentro de nós mesmos e não a partir de fora Devemos procurálos em nós próprios em nosso inconsciente Aí então descobriremos quão grande é o temor que temos do inconsciente e como são violentas as nossas resistências É justamente por causa destas resistências que pomos em dúvida aquilo que para o Oriente parece tão claro ou seja a capacidade de autolibertação própria da mentalidade introvertida 774 Este aspecto do espírito é por assim dizer desconhecido no Ocidente embora seja o componente mais importante do inconsciente Muitas pessoas negam de todo a existência do inconsciente ou afirmam que este é constituído apenas pelos instintos ou por conteúdos recalcados ou esquecidos que antes formavam parte da consciência Podemos admitir com toda a tranquilidade que a expressão oriental correspondente ao termo mind se aproxima bastante do nosso inconsciente ao passo que o termo espírito é mais ou menos idêntico à consciência reflexa Para nós ocidentais a consciência reflexa é impensável sem um eu Ela se equipara à relação dos conteúdos com o eu Se não existe o eu estará faltando alguém que possa se tornar consciente de alguma coisa O eu portanto é indispensável para o processo de conscientização O espírito oriental pelo contrário não sente dificuldade em conceber uma consciência sem o eu Admite que a existência é capaz de estenderse além do estágio do eu O eu chega mesmo a desaparecer neste estado superior Semelhante estado espiritual permaneceria inconsciente para nós pois simplesmente não haveria uma testemunha que o presenciasse Não ponho em dúvida a existência de estados espirituais que transcendam a consciência Mas a consciência reflexa diminui de intensidade à medida em que o referido estado a ultrapassa Não consigo imaginar um estado espiritual que não se ache relacionado com um sujeito isto é com um eu O seu poder não pode subtrairse ao eu O eu por exemplo não pode ser privado do seu sentimento corporal Pelo contrário enquanto houver capacidade de percepção deverá haver alguém presente que seja o sujeito da percepção É só de forma mediana e indireta que tomamos consciência de que existe um inconsciente Entre os doentes mentais podemos observar manifestações de fragmentos do inconsciente pessoal que se desligaram da consciência reflexa do paciente Mas não temos prova alguma de que os conteúdos inconscientes se achem em relação com um centro inconsciente análogo ao eu Antes pelo contrário existem bons motivos que nos fazem ver que um tal estado nem sequer é provável 775 O fato de o Oriente colocar de lado o eu com tanta facilidade parece indicar a existência de um pensamento que não podemos identificar com o nosso espírito No Oriente o eu desempenha certamente um papel menos egocêntrico que entre nós seus conteúdos parecem estar relacionados com um sujeito apenas frouxamente e os estados que pressupõem um eu debilitado parecem ser os mais importantes A impressão que se tem igualmente é de que a hathaioga serve antes de tudo para extinguir o eu pelo domínio de seus impulsos não domesticados Não há a menor dúvida de que as formas superiores da ioga ao procurar atingir o samâdhi têm como finalidade alcançar um estado espiritual em que o eu se ache praticamente dissolvido A consciência reflexa no sentido empregado por nós é considerada como algo inferior isto é como um estado de avidyâ ignorância ao passo que aquilo a que denominamos de pano de fundo obscuro da consciência reflexa é entendido no Oriente como consciência reflexa superior 8 O nosso conceito de inconsciente coletivo seria portanto o equivalente europeu do buddhi o espírito iluminado 776 Destas considerações podemos concluir que a forma oriental da sublimação consiste em retirar o centro de gravidade psíquico da consciência do eu que ocupa uma posição intermédia entre o corpo e os processos ideais da psique As camadas semifisiológicas inferiores da psique são dominadas pela prática da ascese isto é pela exercitação e assim mantidas sob controle Não são negadas ou reprimidas diretamente por um esforço supremo da vontade como acontece comumente no processo de sublimação ocidental Pelo contrário poderseia mesmo dizer que as camadas psíquicas inferiores são ajustadas e configuradas pela prática paciente da hathaioga até chegarem ao ponto de não perturbarem mais o desenvolvimento da consciência superior Este processo singular parece ser estimulado pela circunstância de que o eu e seus apetites são represados pelo fato de o Oriente atribuir maior importância ao fator subjetivo 9 A atitude introvertida caracterizase em geral pelos dados a priori da apercepção Como se sabe a apercepção é constituída de duas fases a primeira é a apreensão do objeto e a segunda a assimilação da apreensão à imagem previamente existente ou ao conceito mediante o qual o objeto é compreendido A psique não é uma não entidade desprovida de qualquer qualidade A psique constitui um sistema definido consistente de determinadas condições e que reage de maneira específica Qualquer representação nova seja ela uma apreensão ou uma ideia espontânea desperta associações que derivam do tesouro da memória Estas se projetam imediatamente na consciência e produzem a imagem complexa de uma impressão embora este fato já constitua em si uma espécie de interpretação Designa a disposição inconsciente da qual depende a qualidade da impressão que designo pelo nome de fator subjetivo Este merece o qualificativo de subjetivo porque é quase impossível que uma primeira impressão seja objetiva Em geral é preciso antes um processo cansativo de verificação análise e comparação para que se possa moderar e ajustar as reações imediatas do fator subjetivo 777 Apesar da propensão da atitude extrovertida a designar o fator subjetivo como apenas subjetivo a proeminência atribuída a este fator não indica necessariamente um subjetivismo de caráter pessoal A psique e sua natureza são bastante reais Como já assinalei elas convertem até mesmo os objetos materiais em imagens psíquicas Não captam as ondas sonoras em si mas o tom não captam os comprimentos das ondas luminosas mas as cores O ser é tal qual o vemos e entendemos Existe um número infinito de coisas que podem ser vistas sentidas e entendidas das mais diversas maneiras Abstração feita dos preconceitos puramente pessoais a psique assimila fatos exteriores de maneira própria que em última análise baseiase nas leis ou formas fundamentais da apercepção Estas formas não sofrem alteração embora recebam designações diferentes em épocas diferentes ou em partes diferentes do mundo Em nível primitivo o homem teme os magos e feiticeiros Modernamente observamos os micróbios com igual medo No primeiro caso todos acreditam em espíritos no segundo acreditase em vitaminas Antigamente as pessoas eram possuídas do demônio hoje elas o são e não menos por ideias etc 778 O fator subjetivo é constituído em última análise pelas formas eternas da atividade psíquica Por isto todo aquele que confia no fator subjetivo está se apoiando na realidade dos pressupostos psíquicos Se agindo assim ele consegue estender a sua consciência para baixo de sorte a poder tocar as leis fundamentais da vida psíquica estará em condições de entrar na posse da verdade que promana naturalmente da psique se esta não for então perturbada pelo mundo exterior não psíquico Em qualquer caso esta verdade compensará a soma dos conhecimentos que podem ser adquiridos através da pesquisa do mundo exterior Nós do Ocidente acreditamos que uma verdade só é convincente quando pode ser constatada através de fatos externos Acreditamos na observação e na pesquisa o mais exatas possíveis da natureza Nossa verdade deve concordar com o comportamento do mundo exterior pois do contrário esta verdade será meramente subjetiva Da mesma forma que o Oriente desvia o olhar da dança da prakrti physis natureza e das múltiplas formas aparentes da mâyâ assim também o Ocidente tem medo do inconsciente e de suas fantasias vãs O Oriente no entanto sabe muito bem haverse com o mundo apesar de sua atitude introvertida o Ocidente também sabe agir com a psique e suas exigências apesar de sua extroversão Ele possui uma instituição a Igreja que confere expressão à psique humana mediante seus ritos e dogmas As ciências naturais e a técnica não são também de modo algum invenções puramente ocidentais Seus equivalentes orientais parecem um pouco fora de moda ou mesmo primitivos mas o que temos para apresentar no tocante ao conhecimento espiritual e à técnica psicológica deve parecer tão atrasado comparado à ioga como a astrologia e a medicina orientais comparadas às ciências do Ocidente Não quero negar a eficácia da Igreja cristã mas se compararmos os Exercícios de Inácio de Loyola com a ioga compreendese o que quero dizer Existe uma diferença e uma diferença muito grande Passar diretamente deste nível para a ioga oriental é tão inoportuno quanto a súbita transformação dos asiáticos em europeus pela metade Os benefícios da civilização ocidental parecemme duvidosos e semelhante reparo tenho a fazer também quanto à adoção da mentalidade oriental por parte do Ocidente Mas estes mundos antitéticos se defrontaram um com o outro O Oriente está em pleno processo de transformação foi seriamente perturbado e de modo mais profundo e prenhe de consequências Até mesmo os métodos mais eficazes da arte bélica europeia foram imitados com sucesso pelo Oriente Quanto a nós a dificuldade parece mais de ordem psicológica Nossa fatalidade são as ideologias que correspondem ao Anticristo há tanto tempo esperado O nacionalsocialismo nazismo se assemelha tanto a um movimento religioso quanto qualquer outro movimento a partir de 622 dC O comunismo tem a pretensão de instaurar o paraíso na terra Estamos de fato mais protegidos contra as más colheitas e epidemias do que contra nossa miserável inferioridade espiritual que parece oferecer tão pouca resistência às epidemias psíquicas 779 O Ocidente é também extrovertido em sua atitude religiosa Hoje em dia soa como uma ofensa afirmar que o cristianismo possui um caráter hostil ou pelo menos uma atitude de indiferença em relação ao mundo e suas alegrias Pelo contrário o bom cristão é um cidadão jovial um homem de negócios empreendedor um excelente soldado o melhor em todas as profissões Os bens profanos são considerados muitas vezes como recompensa especial do comportamento cristão e o adjetivo ἐπιούσιοζ supersubstantialis 10 do Painosso que se referia ao pão foi abandonado há muito tempo pois o pão real é evidentemente muito mais importante Nada mais lógico portanto que uma extroversão tão ampla não pudesse conceder ao homem uma alma que encerrasse em si algo que não proviesse exteriormente do conhecimento humano ou que não fosse produzido pela graça divina Sob este ponto de vista a afirmação de que o homem traz em si a possibilidade da autorredenção é uma blasfêmia manifesta Em nossa religião não há nada que apoie a ideia de uma força de autolibertação do espírito Existe entretanto uma forma bastante moderna de psicologia a psicologia dita analítica ou complexa segundo a qual há a possibilidade de que no inconsciente ocorram determinados processos que compensam com o seu simbolismo as deficiências e os desnorteamentos da atitude consciente Quando as compensações inconscientes se tornam conscientes por meio da técnica analítica provocam uma mudança tão grande na atitude consciente que podemos falar de um novo nível de consciência Mas o método em si não é capaz de produzir o processo propriamente dito da compensação inconsciente Este depende inteiramente da psique inconsciente ou da graça divina o nome pouco importa Mas o processo inconsciente em si quase nunca atinge a consciência sem a ajuda da técnica Quando é trazido à tona revela conteúdos que formam um contraste notável com a orientação geral das ideias e dos sentimentos conscientes Se assim não fosse tais conteúdos não teriam efeito compensatório Mas o primeiro resultado em geral é um conflito pois a atitude consciente opõe resistência à penetração de tendências aparentemente incompatíveis e estranhas É nas esquizofrenias onde se veem os exemplos mais espantosos de semelhantes intrusões de conteúdos totalmente estranhos e inaceitáveis Nestes casos tratase naturalmente de deformações e aberrações patológicas e com o simples conhecimento do material moral é possível constatar a semelhança do esquema que está na base desses fenômenos Aliás são nossas próprias imagens que podem ser encontradas na mitologia e em outras formas arcaicas de pensamento 780 Em circunstâncias normais qualquer conflito impele a psique a agir no sentido de chegar a uma solução mais satisfatória Por via de regra vale dizer no Ocidente o ponto de vista consciente é que decide arbitrariamente contra o inconsciente porque tudo quanto procede do interior do homem é por preconceito considerado como algo de inferior ou não inteiramente correto Mas nos casos aqui mencionados todos os estudiosos são concordes em admitir que os conteúdos aparentemente incompatíveis e ininteligíveis não devem ser recalcados de novo e que é preciso também aceitar e suportar o conflito Em um primeiro momento parece impossível qualquer solução e este fato deve ser suportado com paciência A estase assim verificada constela o inconsciente ou em outras palavras o protelamento consciente provoca uma nova reação compensatória no inconsciente Esta reação que se manifesta geralmente nos sonhos é levada então ao plano da realização consciente A consciência se vê deste modo confrontada com um novo aspecto da psique e isto suscita um novo problema ou modifica inesperadamente os dados do problema já existente Este modo de proceder dura até o momento em que o conflito original é resolvido de maneira satisfatória Todo este processo é chamado de função transcendente Tratase ao mesmo tempo de um processo e de um método A produção de compensações inconscientes é um processo espontâneo ao passo que a realização consciente é um método A função é chamada transcendente 11 porque favorece a passagem de uma constituição psíquica para outra mediante a mútua confrontação dos opostos 781 Esta é uma descrição bastante esquemática da função transcendente Para os detalhes devo remeter o leitor às referências das notas de rodapé Mas não pude deixar de chamar a atenção para estas observações e para estes motivos de ordem psicológica porque eles nos indicam o caminho de acesso àquele espírito com o qual nosso texto se relaciona Tratase do espírito gerador de imagens da matriz de todas aquelas formas fundamentais que conferem à apercepção o seu caráter próprio Estas formas são exclusivas da psique inconsciente Estas constituem seus elementos estruturais e só elas podem explicar por que é que certos motivos mitológicos surgem com maior ou menor frequência por toda parte mesmo onde a migração é improvável como via de transmissão Os sonhos os fantasmas e as psicoses produzem imagens que se identificam aparentemente em todos os aspectos com os motivos mitológicos de que as pessoas implicadas não tinham conhecimento algum mesmo indiretamente graças a expressões de uso corrente ou por meio da linguagem simbólica da Bíblia 12 Não há dúvida de que tanto a psicopatologia da esquizofrenia quanto a psicologia do inconsciente revelam a presença de material arcaico Seja qual for a estrutura do inconsciente uma coisa é inteiramente certa ele contém um número determinado de motivos ou formas de caráter arcaico que no fundo identificamse com as ideias fundamentais da mitologia e formas análogas de pensamento 782 Pelo fato do inconsciente ser a matriz espiritual ele traz consigo a marca indelével do criador É o lugar onde se dá o nascimento das formas de pensamento como o é também o espírito universal sob o ponto de vista do nosso texto Como não podemos atribuir uma forma definida ao inconsciente a afirmação oriental segundo a qual o espírito universal não tem forma é arupaloka mesmo sendo o lugar de origem de todas as formas parece justificarse sob o ponto de vista psicológico Como as formas do inconsciente não estão ligadas a nenhuma época determinada e por isso parecem eternas causamnos a impressão singular e única de intemporalidade quando se realizam no plano da consciência Podemos constatar a mesma coisa na psicologia do primitivo a palavra australiana altjira 13 por exemplo significa ao mesmo tempo sonho país dos espíritos e tempo no qual os seus antepassados vivem e continuarão a viver É segundo dizem o tempo em que não havia tempo Isto nos parece uma concretização e projeção manifestas do inconsciente com todas as suas características suas manifestações oníricas suas formas originais de pensamento e sua intemporalidade 783 Por isso é que uma atitude introvertida na qual a tônica recai no fator subjetivo o pano de fundo da consciência e não no mundo exterior o mundo da consciência provoca necessariamente as manifestações características do inconsciente ou seja as formas arcaicas de pensamento impregnadas de sentimentos ancestrais ou históricos e também do sentimento de indeterminação de intemporalidade e de unidade O sentimento peculiar de unidade é uma experiência típica que ocorre em todas as formas de misticismo e é provável que provenha da contaminação geral dos conteúdos que se fortalecem com a debilitação da consciência reflexa abaissement du niveau mental A mistura quase sem limites das imagens nos sonhos e também nos produtos dos enfermos mentais nos atesta sua origem inconsciente Ao contrário da distinção e da diferença bem claras das formas no plano da consciência os conteúdos inconscientes são extremamente indeterminados e é por isso que podem misturarse com facilidade Se começassemos a imaginar um estado em que nada fosse claro certamente perceberíamos o todo como uno Por isso não é muito improvável que a sensação singular de unidade do conhecimento subliminar do complexo universal derive do inconsciente 784 Graças à função transcendente temos não só acesso ao espírito uno como aprendemos igualmente a entender as razões pelas quais o Oriente acredita na possibilidade da autolibertação Pareceme justo falarse em autolibertação se se consegue modificar o estado psíquico mediante a introspecção e a realização consciente das compensações inconscientes e assim chegar à solução dos conflitos dolorosos Mas como já indiquei acima não é tão fácil realizar a ambiciosa pretensão de autolibertação pois as compensações inconscientes não podem ser provocadas voluntariamente talvez seja preciso esperar que elas sejam produzidas Também não se pode mudar o caráter peculiar da compensação est aut non est ela é ou simplesmente não é É estranho que a filosofia oriental parece não ter prestado atenção a este fator de suma importância E é precisamente tal fato que justifica psicologicamente o ponto de vista ocidental Parece que a psique ocidental tem um conhecimento intuitivo da dependência do homem em relação a um poder obscuro que deve cooperar para que tudo corra bem Onde e quando o inconsciente não coopera o homem se vê embaraçado até mesmo em suas atitudes costumeiras Em tal situação pode tratarse de uma falha da memória da ação ou do interesse coordenados e da concentração e esta falha pode dar origem a inconvenientes sérios ou eventualmente também a um acidente fatal que pode levar à ruína tanto profissional como moral Antigamente em tais casos os homens diziam que os deuses haviam sido inclementes hoje falamos de neurose Sua causa nós a procuramos na falta de vitaminas nos distúrbios glandulares ou sexuais ou no excesso de trabalho Se cessa de repente a cooperação do inconsciente o que jamais consideramos como inteiramente natural então se trata de uma situação gravíssima 785 Comparativamente a outras raças como por exemplo a chinesa parece que o ponto fraco do europeu é o equilíbrio espiritual ou para dizêlo grosseiramente o cérebro É compreensível que queiramos distanciarnos o máximo possível de nossas fraquezas fato este que explica aquela espécie de extroversão com que se procura dominar o meio ambiente A extroversão caminha paralelamente à desconfiança em relação ao homem interior quando de alguma forma não nos damos conta dela Além disto todos nós tendemos a subestimar aquilo que tememos Nossa convicção absoluta de que nihil est in intellectu quod non antea fuerit in sensu de que no intelecto não se encontra nada que não tenha sido apreendido primeiramente pelos sentidos que constitui a divisa da extroversão ocidental deve ter um fundamento semelhante Mas como frisamos anteriormente esta extroversão se justifica psicologicamente pela razão essencial de que a compensação inconsciente escapa ao controle humano Sei que a ioga se orgulha de poder controlar até mesmo os processos inconscientes de sorte que nada há na psique que não seja dirigido por uma consciência suprema Não duvido absolutamente de que um tal estado seja mais ou menos possível mas só com uma condição de que o indivíduo se identifique com o inconsciente Esta identidade é o equivalente oriental de nossa idolatria ocidental da objetividade absoluta da orientação maquinal para um determinado fim para uma ideia ou objeto mesmo com o risco de perder todo o vestígio de vida interior Do ponto de vista oriental esta objetividade é apavorante é sinônimo da identidade completa com o samsâra para o Ocidente pelo contrário o samâdhi outra coisa não é senão um estado onírico sem importância No Oriente o homem interior sempre exerceu sobre o homem exterior um poder de tal natureza que o mundo nunca teve oportunidade de separálo de suas raízes profundas No Ocidente pelo contrário o homem exterior sempre esteve de tal modo no primeiro plano que se alienou de sua essência mais íntima O espírito único a unidade a indeterminação e a eternidade se achavam sempre unidas no Deus uno O homem tornouse pequeno um nada e fundamentalmente sempre num estado de má consciência 786 Creio que através de minha exposição tornouse claro que estes dois pontos de vista embora se contradigam mutuamente têm um fundamento psicológico Ambos são unilaterais porque não levam em conta os fatores que não se ajustam à sua atitude típica O primeiro subestima o mundo da consciência reflexa o segundo o mundo do espírito uno O resultado é que ambos com sua atitude extrema perdem metade do universo sua vida se acha separada da realidade total tornandose facilmente artificial e desumana O Ocidente tem a mania da objetividade seja a atitude ascética do cientista ou a atitude do corretor de Bolsa que esbanja a beleza e a universalidade da vida em troca de um objetivo mais ou menos ideal No Oriente o que se procura é a sabedoria a paz o desprendimento e imobilidade de uma psique que foi conduzida de volta às suas origens obscuras e deixou para trás todas as preocupações e alegrias da vida tal como ela é e provavelmente será Não é de admirar que esta unilateralidade em ambos os lados assuma formas muito semelhantes às do monaquismo É ela que garante ao eremita ao homem santo ao monge ou ao cientista uma concentração tranquila e sem distúrbios sobre um determinado objetivo Nada tenho a objetar contra semelhante unilateralidade É evidente que o homem o grande experimento da natureza ou seu próprio grande experimento achase autorizado a semelhantes empreendimentos se for capaz de os suportar Sem unilateralidade o espírito humano não poderia desenvolverse em seu caráter diferenciado Mas creio que não faz mal tentarmos compreender ambos os lados 787 A tendência extrovertida do Ocidente e a tendência introvertida do Oriente possuem um objetivo comum muito importante ambos fazem esforços desesperados por vencer aquilo que a vida tem de natural É a afirmação do espírito sobre a matéria o opus contra naturam indício da juventude do homem que se delicia toda a sua vida a usar da mais poderosa das armas jamais inventadas pela natureza o espírito consciente O entardecer da humanidade que se situa ainda num futuro longínquo pode suscitar um ideal diferente Com o passar do tempo talvez nem sequer se sonhe mais com conquistas Referências BÜTTNER H Meister Eckeharts Schriften und Predigten 2 vols Jena 1917 EVANSWENTZ WY Das tibetische Buch der grossen Befreiung Munique 1955 JUNG CG Psychologie und Alchemie Psychologische Abhandlungen V Zurique Rascher 1944 Rev Neuaufl 1952 GW 12 1972 31980 Symbole der Wandlung Analyse des Vorspiels zu einer Schizophrenie Zurique Rascher 1952 4 umgearbeitete Auflage von Wandlungen und Symbole der Libido 1912 GW 5 1973 31983 Psychologische Typen Zurique Rascher 1921 Neuaufl 1925 1930 1937 1940 1942 1947 e 1950 GW 6 1960 neunte rev Aufl 1967 zehnte rev Aufl I 41981 LÉVYBRUHL L Les Fonctions mentales dans les sociétiés inférieures 2 ed Paris 1912 MEIER CA Spontanmanifestationen des kollektiven Unbewussten In Zentralblatt für Psychotherapie XI Leipzig 1939 p 284303 NELKEN J Analytische Beobachtungen über Phantasien eines Schizophrenen In Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschung IV Viena e Leipzig 1912 OTTO R Das Gefühl des Überweltlichen Munique 1932 Das Heilige Breslau 1917 SAMYUTTANIKÄYA Übers von Wilhelm Geig 2 vols Munique 1930 SPIELREIN S Über den psychologischen Inhalt eines Falles von Schizophrenie In Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschung III Leipzig e Viena 1912 p 329400 Fonte OC 115 759787 1 Escrito em 1939 Apareceu pela primeira vez em inglês em The Tibetan Book of the Great Liberation organizado por WY EvansWentz 1954 Versão alemã publicada em 1955 2 Omito de propósito o Oriente modernizado 3 Cf em Psychologische Typen Tipos psicológicos as definições de extroversão e introversão OC 6 4 Este comentário foi redigido em 1939 5 Samyuttanikâya 12 Nidânasamyutta 6 OTTO R Das Heilige 1918 p 28 cf tb Das Gefühl des Überweltlichen 1932 p 212s 7 Quem não possui Deus desta maneira mas tem necessidade de buscálo todo fora não possui Deus de maneira nenhuma e então é fácil que algo o perturbe Meister Eckeharts Schriften und Predigten Organizado por H Büttner 1909 II p 8 8 A psicologia do Ocidente não classifica os conteúdos desta maneira isto é como julgamentos da consciência que distinguem entre a ideia de superior e de inferior Parece que o Oriente reconhece a existência de condições psíquicas subumanas uma verdadeira subconsciência que compreende os instintos e os psiquismos semifisiológicos mas é classificada de consciência superior 9 Tipos psicológicos 2011 OC 6 p 406s 10 O termo substantialis não corresponde ao verdadeiro correto sentido de ἐπιούσιοζ como mostraram pesquisas posteriores 11 Cf as definições em Tipos psicológicos OC 6 no verbete símbolo 12 Muitas pessoas acham que estas afirmações não merecem crédito mas ou não conhecem a psicologia do homem primitivo ou nada sabem a respeito dos resultados das pesquisas psicológicas Em minha obra Symbole der Wandlung Símbolos da transformação encontramse observações específicas como também em Psychologie und Alchemie Psicologia e alquimia e ainda em NELKEN J Analytische Beobachtungen über Phantasien eines Schizophrenen 1912 p 504s SPIELREIN S Über den psychologischen Inhalt eines Falles von Schizophrenie 1912 p 329s MEIER CA Spontanmanifestationen des kollektiven Unbewussten 13 LÉVYBRUHL L La Mythologie primitive 1935 p 23s A ioga e o Ocidente 1 859 Há pouco menos de um século o Ocidente adquiriu alguma noção da ioga Embora seja verdade que há mais de dois mil anos tenham chegado à Europa os mais variados tipos de narrativas maravilhosas provenientes da Índia fabulosa com seus sábios e céticos onfálicos contudo só mediante os primeiros contatos com os Upanishads trazidos ao Ocidente por Anquetil du Perron teve início um verdadeiro conhecimento da filosofia hindu e da prática filosófica da Índia Mas um conhecimento mais geral e mais aprofundado só foi possível graças ao trabalho de Max Müller Oxford e aos Sacred Books of East editados por ele Este conhecimento real no entanto restringiuse inicialmente aos indólogos e filósofos Mas o movimento teosófico desencadeado por Madame Blavatsky não tardou em apoderarse das tradições orientais e as colocou ao alcance do público Durante várias décadas o conhecimento da ioga foi cultivado no Ocidente de um lado como ciência estritamente acadêmica e de outro como algo que talvez possamos classificar de religião conquanto não se tenha desenvolvido a ponto de tornarse uma igreja organizada apesar dos esforços de Annie Besant e do fundador do ramo antroposófico Rudolf Steiner que por sua vez deriva de Madame Blavatsky 860 Dificilmente se pode comparar o caráter desta evolução com aquilo que a ioga significa para a Índia Ou seja no Ocidente as doutrinas orientais encontraram uma situação espiritual peculiar que a Índia pelo menos a Índia antiga desconhecia ou seja a rigorosa separação entre ciência e religião existente em maior ou menor grau há trezentos anos quando a doutrina da ioga começou pouco a pouco a tornarse conhecida no Ocidente Esta separação que é uma característica típica do Ocidente começou com o Renascimento no século IV época em que surgiu um interesse geral e apaixonado pela antiguidade clássica favorecido pela queda do Império Romano do Oriente que sucumbiu às investidas do Islamismo Pela primeira vez difundiuse o conhecimento da língua e da cultura gregas no Ocidente A esta irrupção da assim chamada filosofia pagã seguiuse imediatamente o grande Cisma da Igreja Romana ou seja o Protestantismo que em breve se alastrou por toda a Europa setentrional Mas esta renovação do Cristianismo já não era capaz de exorcizar os espíritos libertados 861 Começara a época das descobertas mundiais no sentido geográfico e científico do termo enquanto o pensamento ia se emancipando de forma crescente das cadeias opressivas da tradição religiosa As igrejas continuaram a existir mantidas pela necessidade estritamente religiosa do público mas perderam a liderança no plano cultural Enquanto a Igreja Romana continuou formando uma unidade graças à sua inexcedível forma de organização o protestantismo se esfacelou em cerca de quatrocentas denominações diferentes Isto revela de um lado a sua incapacidade intrínseca mas também o seu dinamismo a sua vitalidade religiosa que o impele sempre para diante para mais longe No decorrer do século XIX houve uma paulatina formação sincrética e a importação maciça de sentimentos religiosos exóticos como por exemplo a religião formada por Abdul Bahai as seitas sufistas a pregação de Ramakrishna o budismo etc Muitos destes sistemas como a teosofia por exemplo incorporaram elementos cristãos A imagem que daí resultou corresponde quase ao sincretismo helenístico dos séculos III e IV que chegou também à Índia pelo menos em seus resquícios 2 862 Mas todos estes sistemas se situam na linha religiosa e recrutam a maior parte de seus adeptos no seio do protestantismo No fundo tratase nada mais do que de seitas protestantes O protestantismo concentrava seus golpes contra a autoridade da Igreja abalando principalmente a fé nessa mesma Igreja enquanto transmissora e comunicadora da salvação divina Isso fez com que coubesse ao indivíduo o ônus da autoridade e consequentemente uma responsabilidade religiosa que até então não tivera O declínio da prática da confissão dos pecados e da absolvição agravou ainda mais o conflito moral interior do indivíduo sobrecarregandoo de uma série de problemas de que a Igreja outrora o poupara na medida em que seus sacramentos e em particular o sacrifício da missa garantiam a salvação ao fiel graças à realização da ação sagrada pelo ministério do sacerdote Para tanto o indivíduo devia contribuir apenas com a confissão pessoal dos pecados com o arrependimento e a penitência Com a eliminação da ação sagrada eficaz passou a faltar a resposta de Deus ao propósito do indivíduo São estas as lacunas que explicam o anseio e a busca de sistemas que prometessem essa resposta ou seja um gesto de complacência e aceitação por parte de outrem superiores diretores espirituais ou mesmo Deus 863 A ciência europeia não tomava na devida conta estas esperanças e expectativas Mantinhase distanciada e isolada das convicções e necessidades religiosas do grande público Este isolamento do espírito ocidental inevitável do ponto de vista histórico apoderouse também da doutrina da ioga na medida em que foi acolhida no Ocidente transformandoa de um lado em objeto de ciência e de outro saudandoa como processo terapêutico É verdade que não se pode negar a existência no seio deste movimento de toda uma série de tentativas no sentido de conciliar a ciência com a convicção religiosa e a prática como no caso da Christian Science a teosofia e antroposofia das quais notadamente a última gosta de se apresentar com laivos de ciência por isto a antroposofia do mesmo modo que a Christian Science invalida certos ambientes de cultura intelectual 864 Como o protestantismo não tem um caminho previamente traçado qualquer sistema que lhe permita um desenvolvimento adequado é por assim dizer bemvisto por ele No fundo deveria fazer tudo aquilo que a Igreja sempre fez como mediadora só que agora não sabe como fazêlo Tendo levado a sério as próprias necessidades religiosas também fez esforços inauditos para crer Mas a fé é um carisma um dom da graça e não um método E é justamente um método que faz falta aos protestantes a ponto de muitos deles terem se interessado seriamente pelos exercícios espirituais de Inácio de Loyola rigorosamente católicos Mas o que mais os perturba é a contradição entre a verdade religiosa e a verdade científica o conflito entre a fé e o saber que através do protestantismo afetou até mesmo o catolicismo Este conflito existe única e exclusivamente por causa da cisão histórica operada no pensamento europeu Se não houvesse de um lado um impulso psicológico inatural para crer e do outro uma fé igualmente inatural na ciência não haveria qualquer razão para este conflito Seria fácil então imaginar um estado em que o indivíduo simplesmente soubesse e ao mesmo tempo acreditasse naquilo que lhe parecesse provável por estas ou aquelas boas razões A rigor não há forçosamente uma razão para o conflito entre essas duas coisas Na verdade ambas são necessárias pois apenas o conhecimento assim como apenas a fé são sempre insuficientes para atender às necessidades religiosas do indivíduo 865 Por isso se se propuser algum método religioso como científico podese estar certo de contar com o público no Ocidente A ioga satisfaz a essa expectativa À parte o estímulo da novidade e o fascínio pela meia compreensão a ioga conquista muitos adeptos por boas razões ela propõe não só um método tão amplamente procurado como também uma filosofia de inaudita profundidade Oferece a possibilidade de uma experiência controlável satisfazendo com isto a necessidade científica de fatos e além disso graças à sua amplitude e profundeza à sua idade venerável à sua doutrina e metodologia que abarcam todos os domínios da vida promete insuspeitadas possibilidades que os pregadores da doutrina raramente deixaram de sublinhar 866 Silencio a importância que a ioga tem na Índia pois não me sinto autorizado a emitir um juízo a respeito de algo que não conheço por experiência própria Mas posso dizer alguma coisa sobre aquilo que ela significa para o Ocidente A ausência de métodos entre nós raia pela anarquia psíquica Por isso qualquer prática religiosa ou filosófica significa uma espécie de disciplinamento psicológico e consequentemente também um método de higiene mental As inúmeras formas de proceder da ioga de natureza puramente corporal significam também uma higiene fisiológica que pelo fato de estar subordinada à ginástica costumeira ou aos exercícios de controle da respiração é também de natureza filosófica e não apenas mecânica e científica De fato nestes exercícios ela liga o corpo à totalidade do espírito coisa que se pode ver claramente nos exercícios do prânayâma onde o prâna é ao mesmo tempo a respiração e a dinâmica universal do cosmos Como a ação do indivíduo é ao mesmo tempo um acontecimento cósmico o assenhoreamento do corpo inervação se associa ao assenhoreamento do espírito da ideia universal resultando daí uma totalidade viva que nenhuma técnica por mais científica que seja é capaz de produzir Sem as representações da ioga seria inconcebível e também ineficaz a prática da ioga Ela trabalha com o corporal e o espiritual unidos um ao outro de maneira raramente superada 867 No Oriente onde surgiram estas ideias e estas práticas e onde há quatro mil anos uma tradição ininterrupta criou todas as bases e os pressupostos espirituais necessários a ioga como é fácil de imaginar tornouse a expressão mais adequada e a metodologia mais apropriada para fundir o corpo e o espírito em uma unidade que dificilmente se pode negar gerando assim uma disposição psicológica que possibilita o surgimento de sentimentos e intuições que transcendem o plano da consciência A mentalidade histórica da Índia não tem em princípio qualquer dificuldade em trabalhar analogicamente com um conceito como o de prâna Mas o Ocidente com seu mau costume de querer crer de um lado e com a sua crítica de origem filosófica e científica do outro cai cegamente na armadilha da crença e engole conceitos e termos como prâna âtman châcra samâdhi etc Mas a própria crítica científica já tropeça contra o conceito de prâna e de purusha Por isso a cisão operada no espírito ocidental torna impossível de início uma adequada realização das intenções da ioga Ou esta é um assunto estritamente religioso ou um training como a mnemotécnica a ginástica respiratória a eurritmia etc Mas não se encontra o mínimo vestígio daquela unidade e dessa totalidade que é própria da ioga O hindu não consegue esquecer nem o corpo nem o espírito O europeu pelo contrário esquece sempre um ou outro Foi graças a esta capacidade que ele conquistou antecipadamente o mundo isso não ocorrendo com o hindu Este não somente conhece a sua natureza como também sabe até onde ele próprio é essa natureza O europeu pelo contrário tem uma ciência da natureza e sabe espantosamente muito pouco a respeito da natureza que está nele Para o hindu é um benefício conhecer um método que o ajude a vencer o poder supremo da natureza por dentro e por fora Para o europeu é um veneno reprimir totalmente a natureza já mutilada e transformála em robô obediente 868 Embora se afirme que a ioga é capaz de mover montanhas é difícil apresentar uma prova neste sentido O poder da ioga se situa dentro dos limites admissíveis para seu meio ambiente O europeu pelo contrário pode fazer montanhas saltarem pelos ares e a guerra mundial nos deu um antegosto amargo de tudo quanto ele é ainda capaz de fazer quando seu intelecto alienado da natureza se liberta de todos os freios Como europeu não posso desejar que o homem adquira ainda um maior controle e poder sobre a natureza tanto exterior como interiormente Sim devo confessar para vergonha minha que devo os meus melhores conhecimentos e entre eles há alguns que são inteiramente bons à circunstância de por assim dizer ter feito sempre o contrário do que nos dizem todas as regras da ioga Graças ao desenvolvimento histórico o europeu se distanciou de suas raízes e seu espírito terminou por cindirse entre fé e saber da mesma forma que qualquer excesso de natureza psicológica se dissolve nos pares opostos O europeu precisa retornar não à natureza à maneira de Rousseau mas à sua natureza Sua missão consiste em redescobrir o homem natural Em vez disso porém o que ele prefere são sistemas e métodos com os quais possa reprimir o homem natural que atravessa seu caminho onde quer que esteja Com toda certeza ele fará mau uso da ioga pois sua disposição psíquica é totalmente diversa da do homem oriental Sempre digo a quem posso Estude bem a ioga Você aprenderá um número infinito de coisas com ela mas não a utilize pois nós europeus não somos feitos para usar sem mais nem menos tais métodos Um guru hindu poderá explicarlhe tudo muito claramente e você poderá executar depois o que ele lhe tiver ensinado mas saberá você quem está se utilizando da ioga Em outras palavras Saberá você quem é você mesmo e de que modo é constituído 869 O poder da ciência e da técnica na Europa é tão grande e tão incontestável que é quase uma pura perda de tempo procurar saber o que se pode fazer e o que já se inventou Sentimonos tomados de pavor diante das imensas possibilidades do europeu E aqui uma questão inteiramente diferente começa a se delinear Quem emprega este poder Em mãos de quem se encontra esta capacidade de ação O Estado é ainda por algum tempo um instrumento preventivo que aparentemente protege o cidadão contra a massa incalculável de venenos e de outros meios infernais de destruição estes podem ser produzidos sempre a curtíssimo prazo e em toneladas O poder tornouse de tal modo perigoso que é cada vez mais premente a questão não tanto de saber o que ainda se pode fazer mas de que modo deveria ser constituído o homem ao qual se confia o controle deste poder ou de que maneira se poderia mudar a mentalidade do homem ocidental para que renunciasse a seu terrível poder Seria infinitamente mais importante tirarlhe a ilusão desse poder do que reforçálo na errônea convicção de que pode tudo quanto quer O slogan Querer é poder custou a vida a milhões de pessoas 870 O homem ocidental não necessita da superioridade sobre a natureza tanto dentro como fora pois dispõe de ambas as coisas de maneira perfeita e quase diabólica O que ele porém não tem é o reconhecimento consciente de sua própria inferioridade em relação à natureza tanto à volta como dentro de si O que deveria aprender é que não é como ele quer que ele pode Se não estiver consciente disto destruirá a própria natureza Desconhece sua própria alma que se rebela contra ele de maneira suicida 871 Como tem o poder de transformar tudo em técnica em princípio tudo quanto tem aparência de método é perigoso e está fadado ao insucesso Porque a ioga é também uma higiene é útil ao homem como qualquer outro sistema Mas entendida no sentido mais profundo do termo não é apenas isto O que ela pretende se não estou enganado é desprender libertar definitivamente a consciência de todas as amarras que a ligam ao objeto e ao sujeito Como porém não se pode libertar o indivíduo daquilo de que ele não está consciente o europeu deve primeiramente aprender a conhecer o sujeito que no Ocidente é chamado o consciente O método da ioga está voltado exclusivamente para a consciência e para a vontade consciente Um procedimento como este só é promissor se o inconsciente não possuir qualquer potencial digno de nota isto é se não encerrar grande parte da personalidade Se o empreende então todos os esforços conscientes serão baldados e o produto desta atitude de crispação é uma caricatura ou mesmo o oposto do que se esperaria como resultado natural 872 Uma parte considerável e importante do inconsciente se acha expressa através da rica metafísica e do rico simbolismo do Oriente reduzindo com isto o potencial desse mesmo inconsciente Quando o iogue fala em prâna tem em mente muito mais do que a simples respiração Na palavra prâna ele ouve ainda o eco de toda a componente metafísica e é como se realmente soubesse o que prâna significa também sob este aspecto Não o sabe pelo entendimento mas pelo coração pelo ventre e pelo sangue O europeu porém aprende de cor e imita conceitos e por isto não está em condições de exprimir sua realidade subjetiva através do conceito hindu Para mim é quase fora de dúvida que o europeu se pudesse ter as experiências que correspondem à sua índole dificilmente escolheria justamente um conceito como o de prâna para expressar esta experiência 873 Originariamente a ioga era um processo natural de introversão que se operava com todas as suas variantes individuais possíveis Tais introversões provocam estranhos processos internos que alteram a personalidade Estas introversões foramse organizando paulatinamente em métodos no curso dos milênios e isso das maneiras mais variadas possíveis A própria ioga hindu conheceu um semnúmero de formas estranhamente diversas O motivo foi a diversidade original das experiências individuais Com isto não queremos absolutamente dizer que qualquer um destes métodos se aplica à estrutura histórica específica do europeu Pelo contrário é provável que sua ioga natural derive de modelos históricos que o Oriente desconhece Na verdade as duas tendências culturais que no Ocidente mais ocuparamse praticamente com a alma isto é a medicina e a cura católica da alma geraram métodos que podemos muito bem comparar com a ioga Já mencionei os exercícios espirituais da Igreja Católica Quanto à medicina são precisamente alguns dos métodos psicoterapêuticos modernos os que mais se aproximam da ioga A psicanálise de Freud consiste em fazer com que a consciência do paciente remonte de um lado ao mundo interior das reminiscências infantis e de outro aos desejos e impulsos recalcados pela consciência Este processo é um desenvolvimento lógico e consequente da prática da confissão O seu intuito é provocar uma introversão a fim de tornar conscientes as componentes inconscientes do sujeito 874 Um método um pouco diferente é o chamado training autógeno proposto por JH Schultz 3 que adota de propósito o caminho da ioga Seu escopo principal é eliminar a atitude crispada de resistência da consciência e os recalques do inconsciente provocados por ela 875 A minha metodologia se baseia como a de Freud na prática da confissão Como ele também levo em conta os sonhos mas é na maneira de apreciar os sonhos que nossas concepções divergem Para ele o inconsciente é essencialmente um pequeno apêndice da consciência no qual estão reunidas todas as incompatibilidades Para mim o inconsciente é uma disposição psicológica coletiva de natureza criativa Dessa divergência radical decorre também uma maneira totalmente diversa de apreciar o simbolismo e seu método de interpretação Freud procede de maneira essencialmente analítica e redutiva Eu porém acrescento também um procedimento sintético que põe em relevo o caráter finalístico das tendências inconscientes em relação ao desenvolvimento da personalidade Este ramo da pesquisa trouxe à luz importantes paralelos com a ioga especialmente com a Kundaliniioga e com a simbólica tanto da ioga tântrica do lamaísmo quanto da ioga taoista da China Estas formas de ioga e seu rico simbolismo nos forneceram materiais comparativos preciosíssimos para a interpretação do inconsciente coletivo Mas em princípio não aplico todos os métodos da ioga porque nada deve ser imposto ao inconsciente no Ocidente O mais das vezes a consciência é de uma intensidade e de uma exiguidade convulsivas e por isto não convém acentuálas ainda mais Devemos pelo contrário tanto quanto possível ajudar o inconsciente a atingir a consciência para arrancála de seu entorpecimento Para este fim utilizo também uma espécie de método de imaginação ativa que consiste em um training especial de desligamento da consciência para ajudar os conteúdos inconscientes a se expandirem 876 Se procedo assim de forma tão acentuadamente crítica e negativa no confronto da ioga isto não significa de modo algum que eu não considere as aquisições espirituais do Oriente como o que de mais grandioso o espírito humano jamais criou Espero que de minha exposição resulte com suficiente clareza que minha crítica se volta única e exclusivamente contra a aplicação da ioga ao homem do Ocidente A evolução espiritual do Ocidente seguiu caminhos totalmente diversos dos do Oriente razão pela qual surgiram condições sumamente desfavoráveis para a aplicação da ioga A civilização ocidental tem pouco menos de mil anos de existência ela deve primeiramente libertarse de suas unilateralidades bárbaras Para isto é preciso uma percepção e uma visão mais profundas da natureza do homem Mas com a repressão e a dominação não se chega a conhecimento algum e menos ainda com a imitação de métodos que surgiram de condições psicológicas totalmente diversas Com o perpassar dos séculos o Ocidente irá formando sua própria ioga e isto se fará sobre a base criada pelo cristianismo Referência SCHULTZ JH Das autogene Training Berlim 1932 Fonte OC 115 859876 1 Aparecido em tradução inglesa em Prabuddha Bharata Calcutá fevereiro de 1936 2 Cf Apolônio de Tiana bem como as doutrinas dos mistérios órficos e pitagóricos e a gnose etc 3 Cf SCHULTZ JH Das autogene Training Berlim se 1932 Prefácio à obra de Suzuki A Grande Libertação 1 Aquele para quem o tempo é como a eternidade e a eternidade é como o tempo livre está de qualquer conflito1a Jakob Böhme 15751624 877 As obras de Daisetz Teitaro Suzuki sobre o zenbudismo constituem uma das melhores contribuições produzidas nos últimos decênios para o conhecimento do budismo vivo O próprio zen é talvez o fruto mais importante que surgiu dessa árvore cujas raízes são as coleções do Cânon Páli 2 Não podemos ser suficientemente gratos ao autor em primeiro lugar pelo fato de ter tornado o zen acessível à compreensão ocidental e em segundo lugar da maneira pela qual se desincumbiu da tarefa que se propôs As concepções religiosas do Oriente são em geral de tal forma diferentes das ocidentais que mesmo uma tradução puramente literal nos coloca diante das maiores dificuldades sem falar do sentido de certos termos que dependendo do contexto é até mesmo preferível deixar sem traduzir Cito apenas um exemplo o da palavra chinesa Tao para a qual até agora não foi possível encontrar nem mesmo aproximadamente uma tradução europeia Os próprios escritos budistas primitivos contêm pontos de vista e ideias quase inassimiláveis pelo europeu comum Não sei quais os pressupostos espirituais ou climáticos e a preparação necessários para que se possa ter uma ideia ou uma imagem suficientemente clara acerca da concepção budista primitiva do Kamma À luz do que sabemos a respeito da essência do zen tratase também aqui de uma concepção central de inigualável singularidade Essa estranha acepção é designada pelo termo satori e pode ser traduzida por iluminação Satori é a raison dêtre a razão de ser do zen e sem o satori não há zen afirma Suzuki 3 Creio que não é muito difícil para a mente ocidental captar o que um místico entende por iluminação ou o que é conhecido como tal na linguagem religiosa Satori designa uma forma e um caminho para a iluminação que é quase inacessível à compreensão do europeu Reportome aqui à iluminação de Hyakujo Pai Chang HuaiHai 724814 dC e à lenda de Kozankoku Huang ShanKu poeta e estadista confuciano tais como as descreve Suzuki na obra em questão 4 878 O que se segue também poderá servir de exemplo Certa vez um monge foi ter com Gensha desejando saber onde ficava a entrada do caminho que conduz à verdade Gensha perguntoulhe Estais ouvindo o murmúrio do regato Sim estou ouvindo respondeu o monge É lá que está a entrada ensinoulhe o mestre 879 Contentarmeei com estes poucos exemplos que ilustram suficientemente a opacidade da experiência vital do satori Mesmo que citássemos muitos outros exemplos acharíamos extremamente difícil saber como se chega a esta iluminação e em que ela consiste Ou em outras palavras saber o que nos ilumina e a respeito de que somos iluminados Kaiten Nukariya professor do colégio budista TöShü de Tóquio diznos falando da iluminação Uma vez libertados da falsa concepção de simesmo temos de despertar nossa mais íntima e pura sabedoria divina chamada pelos mestres do zen a mente de Buda Mind of Buddha ou Bodhi o conhecimento pelo qual o indivíduo experimenta a iluminação ou Prajnã suprema sabedoria É a luz divina o céu interior a chave de todos os tesouros do espírito o ponto central do pensamento e da consciência a fonte de onde brotam a força e o poder a sede da bondade da justiça da compaixão e da medida de todas as coisas Quando este conhecimento interior é plenamente despertado estamos aptos para compreender que cada um de nós se identifica em espírito essência e natureza com a vida universal ou Buda que cada um de nós recebe a graça transbordante do Santo Ser Buda que ele suscita nossas forças morais abre nossos olhos espirituais desenvolve nossas capacidades comunicanos uma missão e que a vida não é um mar de nascimentos de doenças de velhice e morte nem um vale de lágrimas e sim o templo santo de Buda a Terra Pura Sukhavati a terra da bemaventurança onde poderemos gozar as delícias do Nirvana Então nosso espírito será totalmente transformado Já não seremos perturbados pela cólera e pelo ódio nem feridos pela inveja e pela ambição nem incomodados pelas preocupações e cuidados ou atormentados pela tristeza e pelas dúvidas5 880 É desta maneira que um oriental e ainda por cima conhecedor do zen expressase sobre a essência da iluminação Temos de admitir que esta passagem necessitaria apenas de pequenas alterações para figurar tranquilamente em qualquer devocionário místico cristão Mas ela nos deixa insatisfeitos diante da tentativa de compreender a experiência vital do satori descrita nesta ampla dissertação É provável que Nukariya se dirija ao racionalismo ocidental do qual ele próprio sorveu uma boa dose e esta é a razão pela qual tudo soa tão banalmente edificante É preferível a abstrusa obscuridade das historietas do zen a esta adaptação ad usum Delphini Elas dizem pouco mas de certo modo transmitem muito mais do que dizem 881 O zen é tudo menos filosofia no sentido ocidental da palavra 6 Esta é também a opinião expressa por Rudolf Otto em sua introdução ao livro de Ohasama sobre o zen quando afirma que Nukariya identifica o mágico mundo oriental das ideias com nossas categorias filosóficas ocidentais confundindoas entre si Caso se invoque o paralelismo psicofísico que é a mais férrea das doutrinas para explicar esta intuição mística da não dualidade da unidade e da coincidentiaoppositorum seremos com certeza completamente expulsos da esfera do Kôan do Kwatsu e do Satori 7 É infinitamente preferível deixarse impregnar profundamente e de antemão pela estranha obscuridade das historietas do zen e ter sempre presente que o satori é um mysterium ineffabile como aliás pretendem os próprios mestres do zen Entre as historietas e a iluminação mística há em nosso entender um imenso abismo A possibilidade de transpôlo poderá quando muito ser indicada mas nunca será atingida na prática 8 O indivíduo tem aqui a impressão de tocar por assim dizer num verdadeiro mistério e não em algo apenas imaginado ou pretendido Isto é não se trata de um segredo mistificador e sim de uma experiência viva que bloqueia qualquer linguagem O satori nos atinge como algo de novo como algo que não esperávamos 882 Quando no seio do cristianismo surgem as visões da Santíssima Trindade da Mãe Santíssima do Crucificado ou do Santo Padroeiro depois de longa preparação espiritual temos a impressão de que tudo isto deve ser mais ou menos assim Também é compreensível que Jacob Böhme num relance de olhos tenha penetrado no centrum naturae coração da natureza através de um raio de sol refletido num disco de estanho Entretanto é mais difícil digerir a visão de Mestre Eckhart a respeito do garotinho nu 9 ou mesmo a visão de Swedenborg sobre o homem do manto vermelho que queria livrálo do vício da gula e a quem ele apesar disso ou talvez justamente por isso reconheceu como o Senhor Deus 10 Tais coisas são difíceis de aceitar pois se aproximam do grotesco Muitas das experiências do satori porém não somente raiam pelos limites do grotesco como são grotescas parecendo completamente sem sentido 883 Mas para alguém que se tenha dedicado com amor e compreensão e por tempo considerável ao estudo da natureza do espírito do longínquo Oriente muitas destas coisas surpreendentes que levam o europeu comum de perplexidade em perplexidade acabam por desaparecer O zen é na verdade uma das flores mais maravilhosas do espírito oriental 11 docilmente impregnada pelo imenso mundo do pensamento budista Por isso quem se esforçou por compreender a doutrina do Budismo até certo ponto ou seja renunciando a certos preconceitos ocidentais chegará a captar determinadas profundidades por sob o manto bizarro das experiências individuais do satori ou percebendo as inquietantes dificuldades que o Ocidente filosófico e religioso se acreditava até então autorizado a ignorar Como filósofo o indivíduo se ocupa exclusivamente com aquela preocupação que de sua parte nada tem a ver com a vida E como cristão nada tem a ver com o paganismo Senhor eu te dou graças porque não sou como aquele ali Lc 1811 Não há satori dentro destes limites ocidentais Esta é uma questão puramente oriental Mas será realmente assim Será que não temos realmente satori 884 Quando lemos atentamente os textos do zen não podemos fugir à impressão de que apesar de tudo o que neles parece bizarro o satori é de fato um acontecimento natural Tratase de uma coisa tão simples 12 que não podemos ver a floresta por causa das árvores e qualquer tentativa de explicálo nos leva sempre a uma confusão maior Nukariya tem razão portanto ao afirmar que toda tentativa de explicar ou analisar o conteúdo do zen ou iluminação seria inútil Mas ainda assim esse autor ousa dizer que a iluminação comporta uma percepção da natureza do simesmo 13 e é uma emancipação da consciência em relação à ilusória concepção do simesmo 14 A ilusão referente à natureza do simesmo é a habitual confusão que se faz entre o eu e o simesmo Pelo termo simesmo Nukariya compreende o Buda total isto é a totalidade pura e simples da consciência da vida Ele cita Pan Shan que dizia A lua do espírito mind encerra todo o universo em sua luz e acrescenta É a vida e o espírito spirit cósmicos e ao mesmo tempo a vida e o espírito spirit individuais 15 885 Qualquer que seja a definição do simesmo ele é algo que difere do eu E desde que uma compreensão mais elevada do eu nos conduz ao si mesmo este último deve ser algo de maior e mais amplo que engloba a experiência do eu e por isso mesmo ultrapassao Da mesma forma que o eu é uma certa experiência do meu próprio ser assim também o simesmo é uma experiência de mim próprio a qual entretanto já não é vivida sob a forma de um eu mais amplo ou mais alto e sim sob a forma de um não eu 886 Tais pensamentos são também familiares ao autor da Deutsche Theologie Teologia Alemã À medida que uma criatura se torna consciente desta sua perfeição ela perde por completo seu caráter de criatura sua índole de ser criado sua quidade sua ipseidade16 Quando considero que existe algo de bom em mim mesmo isto provém da ilusão de que sou bom Isto é sempre um sinal de imperfeição e de tolice Se estivesse consciente da verdade também estaria consciente de que não sou bom de que o bem não é meu nem provém de mim Por isso conclui o homem Que pobre tolo eu sou Estava iludido de que era bom mas eis que percebo que aquilo era e é realmente Deus17 887 O que acima foi dito já nos dá uma ideia bastante satisfatória do conteúdo da iluminação O processo do satori é formulado e interpretado como uma ruptura e uma passagem da consciência limitada na forma do eu para a forma do simesmo que não tem um eu Esta concepção corresponde ao zen bem como à mística do Mestre Eckhart O mestre diz no seu sermão sobre os beati pauperes spiritu bemaventurados os pobres de espírito Quando saí de Deus todas as coisas diziam Há um Deus Mas isto não pode fazerme bem aventurado pois juntamente com isso percebo que sou uma simples criatura Mas é na ruptura18 quando desejo permanecer pura e simplesmente na vontade de Deus e livre também da sua vontade de todas as suas obras e do próprio Deus então é que sou mais do que todas as criaturas pois não sou nem Deus nem criatura sou o que era e o que permanecerei sendo agora e para sempre Então recebo um impulso que me eleva acima dos anjos Este impulso me torna tão rico que Deus já não pode me satisfazer mesmo em face do que Ele é como Deus e de todas as suas obras divinas pois nessa ruptura percebo que eu e Deus somos uma e mesma coisa Eu sou então o que era19 pois nem cresço nem diminuo sou um ser imóvel que move todas as coisas Aqui Deus não habita mais no interior do homem pois o homem com sua pobreza alcançou novamente o que sempre foi e será eternamente20 888 Nesta passagem o mestre está realmente descrevendo uma experiência do satori uma substituição do eu pelo simesmo que possui a natureza de Buda ou seja a universalidade divina Por modéstia científica não pretendo fazer aqui uma afirmação metafísica e sim expressar a opinião de que uma mudança de consciência pode ser experimentada além do que considero o satori sobretudo como um problema psicológico Para aquele que não partilha ou não compreende este ponto de vista tal explicação se reduzirá a meras palavras incapazes de lhe oferecer portanto uma significação tangível Não estará apto então a fazer destas abstrações uma ponte que o leve até os fatos relatados ou melhor não está em condições de compreender de que modo o perfume do loureiro em flor 21 ou um nariz adornado de pincenê 22 poderiam provocar mudança tão grande na consciência A coisa mais simples seria naturalmente relegar todas estas estórias para o domínio dos divertidos contos de fada ou caso aceitemos os fatos tais como são considerálos pelo menos como exemplos de ilusão Seria preferível empregar aqui a expressão autossugestão este pobre traste jogado no arsenal dos conceitos espirituais inadequados Um estudo sério e responsável desse estranho fenômeno não pode passar tranquilamente ao largo do caráter real dos fatos Nunca estamos em condições de decidir definitivamente se uma pessoa foi realmente iluminada ou redimida ou se apenas imagina que o tenha sido Faltanos para isto qualquer critério Além disso sabemos muito bem que uma dor imaginária é muitas vezes mais dolorosa do que uma dor pretensamente real pois é acompanhada de um sofrimento moral sutil provocado por um sombrio e secreto sentimento de culpa pessoal Não se trata portanto de um fato concreto mas de uma realidade espiritual isto é de um acontecimento psíquico do processo conhecido por satori 889 Todo conhecimento espiritual é uma imagem e uma imaginação Se assim não fosse não haveria consciência nem fenomenalidade da ocorrência A própria imaginação é também um fato psíquico Por isso é inteiramente irrelevante dizerse que uma iluminação é real ou imaginária O iluminado ou o que alega sêlo julga em qualquer dos casos que o é A opinião dos outros nada significa para ele em relação à própria experiência Mesmo que esteja mentindo sua mentira seria um fato psicológico Sim ainda que todos os relatos religiosos nada mais fossem do que invenções e falsificações conscientes poderia ser escrito um tratado psicológico muito interessante a respeito de tais mentiras com o mesmo rigor científico apresentado pela psicopatologia das ilusões O fato de que exista um movimento religioso para o qual inúmeras e brilhantes capacidades trabalharam durante muitos séculos é motivo suficiente para fazerse pelo menos uma tentativa séria no sentido de trazer tais conhecimentos para a esfera da compreensão científica 890 Levantei acima a questão de saber se entre nós no Ocidente existe algo que se assemelhe ao satori Se excetuarmos o que disseram os místicos ocidentais a um exame superficial nada existe nem de longe que se possa comparar a tal processo Nosso modo de pensar não leva em consideração a possibilidade da existência de degraus no desenvolvimento da consciência A simples ideia de que há uma diferença tremenda entre a consciência da existência de um objeto e a consciência da consciência de um objeto já toca as raias de uma sutileza que mal se pode justificar Dificilmente alguém se atreveria a tomar este problema tão a sério percebendo plenamente as condições psicológicas que estão na base de tais problemas Característico é o fato de que a formulação desta e de outras questões semelhantes não são devidas em geral a uma necessidade psicológica mas ocorrem quase sempre quando se acham enraizadas em uma prática originariamente religiosa Na Índia foi a ioga e na China o Budismo que proporcionaram a força propulsora para a tentativa de se desprender dos liames de um estado de consciência considerado imperfeito Quanto ao que sabemos da mística ocidental seus textos estão cheios de instruções indicando como o homem poderá e deverá libertarse do sentido da egoidade de sua consciência de modo que mediante o conhecimento de seu próprio ser possa elevarse acima dele e alcançar o homem interior divinizado Ruysbroeck faz uso de uma imagem que a filosofia hindu também conhece isto é da árvore que tem as raízes em cima e a copa embaixo 23 Ele deve subir na árvore da fé que cresce para baixo pois tem as raízes fincadas na divindade 24 Ruysbroeck também se expressa como a ioga O homem deve ser livre e sem imagens Livre de tudo o que o liga aos outros e vazio de todas as criaturas 25 Não deve ser perturbado pela luxúria e pelo sofrimento pelo lucro e pelas perdas pelas ascensões e pelas quedas pelas preocupações em relação aos outros pelos prazeres e pelo temor e não deve apegarse a qualquer criatura 26 É daí que resulta a unidade do ser e esta unidade significa um estarvoltadoparadentrodesi O estar voltado para dentro de si significa que o homem está orientado para dentro de si mesmo para dentro do próprio coração de modo que pode sentir e compreender a ação interior e as palavras íntimas de Deus 27 Esta nova disposição da consciência surgida da prática religiosa não se caracteriza pelo fato de que as coisas exteriores não afetam mais a consciência da egoidade da qual se originara uma recíproca vinculação mas sim pela circunstância de que uma consciência vazia permanece aberta a uma outra influência Esta outra influência não é mais sentida como uma atividade própria e sim como a atuação de um não eu que tem a consciência como seu objeto 28 É por conseguinte como se o caráter subjetivo do eu fosse transferido ou assumido por outro sujeito que tomasse o lugar do eu 29 Temos aqui a conhecida experiência religiosa já formulada por Paulo 30 É fora de dúvida que se trata da descrição de um novo estado de consciência separado do primeiro por um processo de profunda transformação religiosa 891 Podese objetar que a consciência em si não mudou mas somente a consciência de alguma coisa É como se tivéssemos virado a página de um livro e agora víssemos com os mesmos olhos uma figura diferente Receio que este modo de considerar não seja mais do que uma interpretação arbitrária pois não leva em conta a realidade dos fatos A verdade é que o texto não descreve apenas uma imagem ou um objeto mas sim a experiência de uma transformação que ocorre muitas vezes sob as mais violentas convulsões A extinção de uma imagem e sua substituição por outro é um fato muito cotidiano que nunca revela as qualidades de uma experiência de transformação Não se trata de estar vendo outra coisa É o indivíduo que vê de outro modo É como se o ato espacial de ver fosse alterado por uma nova dimensão Quando o mestre pergunta Estás ouvindo o murmúrio do regato certamente está se referindo a uma audição inteiramente diversa da ordinária 31 A consciência é algo semelhante à percepção e como esta também está sujeita a condições e a limites Podemos por exemplo estar conscientes a diversos níveis em uma esfera mais ou menos ampla mais superficial ou mais profunda Estas diferenças de grau são muitas vezes diferenças de modos de ser pois dependem do desenvolvimento da personalidade em seu todo isto é da condição do sujeito que percebe 892 O intelecto não se interessa pela condição do sujeito que percebe na medida em que este pensa logicamente O intelecto se ocupa por sua própria natureza com a assimilação dos conteúdos da consciência e talvez também com os métodos assimilativos Tornase necessária uma paixão filosófica para forçar a tentativa de subjugar o intelecto e avançar até o conhecimento daquele que é o sujeito da percepção Tal paixão dificilmente se distingue das forças religiosas propulsoras e por isso todo esse problema faz parte do processo de transformação religiosa que é incomensurável ao intelecto A filosofia antiga está indubitavelmente e em larga escala a serviço do processo de transformação o que não se pode afirmar amplamente acerca da filosofia moderna Schopenhauer ainda se acha condicionado até certo ponto pelo pensamento antigo O Zaratustra de Nietzsche já não é mais filosofia e sim um processo dramático de transformação que engoliu completamente o intelecto Não se trata mais de um modo de pensar e sim do pensador do pensamento no mais alto sentido e é isto o que transparece em cada página do livro um novo homem um homem completamente transformado deve aparecer em cena um ser que quebrasse as cascas do homem velho e não olhasse apenas para um novo céu e uma nova terra mas fosse ele mesmo quem os criasse Angelus Silesius exprimiu este fato por certo mais modestamente do que Zaratustra Meu corpo é uma casca na qual um pintainho será chocado pelo Espírito da eternidade32 893 No âmbito cristão o satori corresponde a uma experiência religiosa de transformação Como existem entretanto diversos graus e tipos desta experiência não seria supérfluo designar com maior precisão a categoria que mais corresponde à experiência do zen Tratase sem a menor dúvida de uma experiência mística que se distingue de outras similares pelo fato de sua preparação consistir em um deixar correr em um esvaziarse de imagens e coisas semelhantes E isto em contraste com experiências religiosas que se baseiam como os Exercícios de Inácio de Loyola na exercitação e na imaginação de imagens sagradas Eu gostaria de concluir também nesta última categoria a transformação que se realiza no Protestantismo mediante a fé a oração e a experiência comunitária pois tratase aqui não de uma vacuidade ou de uma libertação mas de uma suposição claramente definida A definição característica da libertação Deus é um nada parece incompatível em princípio com a contemplação da paixão da fé e da expectativa da comunidade 894 Desta forma a analogia do satori com a experiência ocidental se circunscreve àqueles poucos místicos cristãos cujos ditos pelo amor do paradoxo tocam as fronteiras da heterodoxia ou até mesmo a ultrapassam Foi esta a qualidade que como se sabe determinou a condenação por parte da Igreja das obras de Mestre Eckhart Fosse o Budismo uma igreja no sentido em que usamos esta palavra o movimento zen por certo teria sido um fardo intolerável para ela A razão disto é a forma extremamente pessoal que se conferiu ao método bem como à atitude iconoclasta de muitos de seus mestres 33 Assim como é o zen um movimento formas coletivas têm sido modeladas no decurso dos séculos tal como se pode ver no trabalho a respeito da formação dos monges zenbudistas 34 Mas quanto à forma e ao conteúdo elas se referem apenas ao exterior À parte a característica do estilo de vida o processo de formação e educação dos discípulos parece consistir no método do koan Por koan se entende uma questão paradoxal uma expressão ou ação do mestre Pela descrição de Suzuki parece que se trata principalmente de perguntas dos mestres transmitidas sob a forma de historietas Estas são propostas por um instrutor à meditação de seu discípulo Um exemplo clássico é a estória do Wu e do Mu Certa vez um monge perguntou ao mestre O cão possui também a natureza de Buda Ao que o mestre respondeu Wu Como observa Suzuki este Wu significa simplesmente wu isto é o mesmo que o próprio cão teria dito em resposta à questão 35 895 À primeira vista parece que a proposta desta questão como objeto de meditação já é uma antecipação do resultado final e que o conteúdo da experiência estaria assim determinado à semelhança dos exercícios jesuíticos ou de certas meditações cujo objeto é definido por uma tarefa indicada pelo mestre Os koans entretanto são de tão grande variedade de tal ambiguidade e além do mais tão tremendamente paradoxais que mesmo um bom conhecedor do assunto não logrará atinar com aquilo que poderia emergir como solução adequada Além disso as descrições da experiência final são de tal modo obscuras que em nenhum caso o indivíduo conseguiria perceber sem objeções uma conexão racional entre o koan e a experiência Visto ser impossível provar qualquer sucessão lógica é de suporse que o método do koan não coloca obstáculo algum à liberdade das ocorrências psíquicas e que o resultado portanto não decorre senão da disposição individual do iniciando A completa destruição do intelecto racional visada na formação do monge cria uma falta de pressuposto quase absoluta da consciência Mas por mais que se exclua este pressuposto não se elimina o pressuposto inconsciente a disposição psicológica existente mas não percebida é tudo menos um vazio e uma falta de pressuposto Tratase de um fator natural e quando ele responde coisa que acontece evidentemente na experiência do satori é uma resposta da natureza que consegue canalizar diretamente a sua reação para a consciência 36 O que a natureza inconsciente do discípulo opõe ao mestre ou ao koan como resposta é obviamente satori É este pelo menos o ponto de vista que me parece exprimir mais ou menos adequadamente a essência do satori de acordo com o que nos dizem as descrições Esta concepção se apoia também no fato de que a visão da própria natureza o homem original e a profundeza do ser constituem em muitos casos para o mestre do zen uma aspiração toda especial 37 896 O zen difere de todas as outras práticas filosóficas e religiosas de meditação pela ausência radical de pressupostos O próprio Buda muitas vezes é severamente rejeitado e até mesmo quase blasfemicamente menosprezado muito embora ou talvez precisamente pelo fato de poder ser apresentado como o exemplo mais frisante de um pressuposto espiritual à prática da ascese Ele é também uma imagem e portanto deve ser rejeitado Nada deve existir a não ser o que realmente aí se encontra tal é o homem com sua completa e inconsciente pressuposição espiritual da qual não pode libertarse precisamente por ser inconsciente Por isso a resposta que parece surgir do vazio isto é a luz que brilha do seio das trevas mais densas sempre tem sido sentida como uma iluminação maravilhosa e beatificante 897 O mundo da consciência é inevitavelmente um mundo cheio de limitações e de muros que bloqueiam os caminhos Ele é por natureza sempre unilateral e esta unilateralidade resulta da essência mesma da consciência Nenhuma consciência pode abrigar mais do que um número diminuto de representações simultâneas O restante deve ficar na sombra e subtraído à vista Aumentar os conteúdos simultâneos provoca de imediato um obscurecimento da consciência ou até mesmo uma perturbação que pode chegar à desorientação A consciência em si pela própria essência não só exige mas é uma delimitação rigorosa a um círculo diminuto e portanto bemdefinido de conteúdos Devemos nossa orientação geral única e exclusivamente à circunstância de podermos pôr em andamento uma série de imagens comparativamente rápidas graças à nossa atenção Esta porém representa um esforço que não somos capazes de sustentar por muito tempo Por isso temos de nos arranjar por assim dizer com um mínimo de representações simultâneas e séries de imagens Excluise portanto constantemente um grande campo de representações possíveis ficando a consciência sempre limitada a um estreitíssimo círculo Por isso é absolutamente impossível imaginar o que aconteceria se uma consciência individual conseguisse abarcar de um só relance o quadro simultâneo de tudo quanto se possa imaginar Se o homem já conseguiu construir o edifício do mundo com as poucas coisas claras e definidas que foi capaz de imaginar simultaneamente que espetáculo divino descortinaria se pudesse imaginar ao mesmo tempo e com clareza uma multidão de coisas Esta pergunta só se aplica às representações possíveis para nós Se acrescentarmos a estas os conteúdos inconscientes isto é aqueles que ainda não estão em condições ou não são mais capazes de atingir a consciência e tentarmos então imaginar o espetáculo global não o conseguiremos Até mesmo a mais ousada fantasia fracassará Esta incapacidade de imaginar é naturalmente impossível na forma consciente mas é um fato na forma inconsciente dado que tudo quanto está situado na zona subliminar é sempre virtualmente representável O inconsciente é a totalidade não passível de observação direta de todos os fatores psíquicos subliminares um espetáculo total de natureza potencial Ele constitui a disposição total da qual a consciência só retira pequenos fragmentos de cada vez 898 Quando a consciência é esvaziada tanto quanto possível de seus conteúdos estes cairão também em um estado de inconsciência pelo menos transitório Este recalque via de regra produzse no zen subtraindose aos conteúdos a energia da consciência e transferindoa ou para o conceito do vazio ou para o koan Como estes dois últimos devem ser estáveis a sucessão de imagens é abolida e consequentemente também a energia que alimenta o dinamismo da consciência A quantidade de energia economizada é absorvida pelo inconsciente reforçando a sua carga natural até um certo valor máximo Isto aumenta a facilidade com que os conteúdos inconscientes irrompem na consciência Como o esvaziamento e o fechamento da consciência não são tarefas fáceis requerse um treinamento training especial e um período indefinidamente longo 38 para produzir aquele máximo de tensão que levará à eclosão final dos conteúdos inconscientes no âmbito da consciência 899 Os conteúdos que irrompem na consciência não são absolutamente destituídos de sentido A experiência psiquiátrica com doentes mentais mostranos que há relações peculiares entre os conteúdos da consciência e os delírios e ilusões que nela irrompem Tratase das mesmas relações que existem entre os sonhos e a consciência de um homem normal em estado de vigília A conexão é em substância uma relação compensatória 39 Os conteúdos do inconsciente com efeito trazem à superfície tudo aquilo que é necessário 40 no sentido mais amplo do termo para a totalização isto é para a totalidade da orientação consciente Se o indivíduo conseguir enquadrar harmonicamente na vida da consciência os fragmentos oferecidos ou forçados pelo inconsciente resultará então uma forma de existência psíquica que corresponde melhor à personalidade individual e por isso também elimina os conflitos entre a personalidade consciente e inconsciente É neste princípio que se baseia a moderna psicoterapia na medida em que pôde se libertar do preconceito histórico segundo o qual o inconsciente só abriga conteúdos infantis e inferiores Nele existe certamente um recanto inferior um quarto de despejo de segredos impublicáveis que não são propriamente inconscientes mas dissimulados e apenas semiesquecidos Mas isto tem tanto a ver com o conteúdo tomado como um todo quanto por exemplo um dente cariado com a personalidade total O inconsciente é a matriz de todas as afirmações metafísicas de toda a mitologia de toda a filosofia desde que esta não seja meramente crítica e de todas as formas de vida que se baseiam em pressupostos psicológicos 900 Cada irrupção do inconsciente na consciência é uma resposta a uma situação bemdefinida da consciência e esta resposta promana das possibilidades reais de representação isto é da disposição global que como foi explicado acima é uma imagem simultânea in potentia potencial da existência psíquica em geral A dissociação em unidades isoladas seu caráter unilateral e fragmentário se radicam na própria essência da consciência A reação proveniente da disposição tem sempre o caráter de totalidade pois reflete uma natureza que não foi dividida por uma consciência discriminativa 41 Daí o seu efeito avassalador É a resposta inesperada abrangente totalmente elucidativa que atua como iluminação e como revelação quando a consciência foi parar num beco sem saída 42 901 Quando depois de muitos anos da mais dura ascese e da mais enérgica e impiedosa devastação da compreensão racional o devoto do zen recebe uma resposta a única verdadeira da própria natureza podese compreender tudo o que foi dito a respeito de satori Como qualquer um pode ver o que transparece na maioria das estórias do zen é a naturalidade das respostas Sim compreendemos com certa satisfação interior e primitiva a história do discípulo iluminado que desejou uma surra do mestre como recompensa 43 Quanta sabedoria encerra a monossilábica resposta wu do mestre à pergunta sob a natureza búdica do cão É preciso porém ter bem presente um semnúmero de pessoas que não sabem distinguir entre uma anedota espirituosa e um disparate mas que são muitos também os que estão convencidos de sua inteligência e capacidade a ponto de acreditarem só haver encontrado em suas vidas cabeças ocas e estúpidas 902 Embora o valor do zenbudismo seja grande para a compreensão do processo de transformação religiosa duvidase de sua aplicabilidade aos povos do Ocidente Faltam ao local os prérequisitos espirituais para o zen Quem dentre nós confiariase incondicionalmente à superioridade de um mestre e a seus métodos incompreensíveis Este respeito e consideração por uma grande personalidade humana só se encontram no Oriente Quem poderia se vangloriar de que acredita na possibilidade da experiência de uma transformação sumamente paradoxal a tal ponto que estaria disposto a sacrificar muitos anos da sua vida na busca fatigante e monótona de tal objetivo E por fim quem ousaria tomar sobre si a autoridade de uma transformação e de uma experiência tão heterodoxas A menos que seja um homem que não mereça a menor fé alguém que talvez por razões patológicas vivesse a proferir fanfarronadas Um homem como esse não se queixaria entre nós de falta de seguidores Mas se um mestre impõe uma tarefa mais árdua que exige mais do que um mero papaguear então o europeu começa a duvidar pois a senda íngreme do autodesenvolvimento parecelhe tão melancólica e sombria como o próprio inferno 903 Não tenho dúvidas de que a experiência do satori ocorra também no Ocidente pois entre nós existem igualmente pessoas que entreveem finalidades últimas e não recuam diante de nenhuma fadiga ou trabalho para se aproximarem delas Mas se calam a respeito das próprias experiências não por pudor mas porque estão conscientes de que é inútil qualquer tentativa de comunicálas aos outros De fato em nossa civilização nada há que estimule e secunde estas aspirações nem mesmo da parte da Igreja a guardiã dos valores religiosos Aliás a raison dêtre desta sua função é opor se a todas as experiências originais pois elas não podem ser senão heterodoxas O único movimento no âmbito de nossa civilização que tem ou deveria ter de algum modo certa compreensão destas aspirações é a psicoterapia Por isto não é mero acaso que seja precisamente um terapeuta a escrever esta introdução 904 No fundo a psicoterapia é uma relação dialética entre o médico e o paciente É uma discussão entre duas totalidades psíquicas uma disputa na qual o conhecimento é apenas um utensílio O objetivo é a transformação não algo predeterminado mas uma mudança de caráter indefinível cujo único critério é o desaparecimento do senso da egoidade Nenhum esforço da parte do médico é capaz de forçar esta experiência O máximo que pode é aplainar o caminho para ajudar o paciente a conseguir uma atitude que oponha a mínima resistência possível à experiência decisiva O papel de primeiro plano que o conhecimento desempenha em nosso comportamento ocidental corresponde em não menor grau à importância que se atribui à tradicional atmosfera espiritual do zen O zen e sua técnica só puderam germinar no solo da cultura espiritual do Budismo e é esta que constitui o seu pressuposto permanente Não se pode destruir um intelecto racionalista que jamais existiu O adepto do zen não é um fruto da ignorância e da incultura Daí ocorre que entre nós com certa frequência um eu consciente e uma compreensão também consciente e cultivada têm de ser produzidos primeiramente por uma certa terapia antes de pensarse em eliminar o sentido da egoidade ou o racionalismo Além disso a psicoterapia não trata de pessoas que por amor à verdade estão como os monges do zen prontas a fazer qualquer sacrifício e sim na maioria das vezes dos mais obstinados dos europeus Deste modo as tarefas da psicoterapia são naturalmente muito mais variadas e as fases individuais do longo processo muito mais contraditórias do que no zen 905 Por esta e muitas outras razões não é recomendável e nem mesmo possível uma transplantação direta do zen para as condições ocidentais Mas o terapeuta que se ocupa seriamente com a questão dos resultados de sua terapia não pode permanecer insensível à finalidade na qual se empenha o método oriental da cura psíquica isto é a edificação de um todo harmônico Como se sabe no Oriente este problema vem ocupando intensamente os mais arrojados espíritos há mais de dois mil anos assim foram desenvolvidos métodos e doutrinas que simplesmente deixam na sombra todas as tentativas ocidentais da mesma natureza Nossas tentativas têm parado com poucas exceções ou na magia culto dos mistérios entre os quais se deve incluir também o cristianismo ou no intelectualismo a filosofia desde Pitágoras até Schopenhauer Somente as tragédias espirituais do Fausto de Goethe e do Zaratustra de Nietzsche marcam a primeira irrupção apenas pressentida de uma experiência da totalidade em nosso hemisfério ocidental 44 E ainda não sabemos o que significam esses produtos do espírito europeu os mais promissores de todos tão sobrecarregados se acham da materialidade e da concretude de nossa mentalidade moldada pelo pensamento grego 45 Embora nosso intelecto tenha desenvolvido quase até à perfeição a capacidade da ave de rapina de enxergar das maiores alturas o menor ratinho a força de gravidade da terra dele se apodera e os sâmsaras o envolvem em um mundo de imagens confusas e perturbadoras a partir do momento em que ele cessa de buscar a presa e volta seu olhar para dentro de si tentando encontrar a quem busca Então sim o indivíduo é precipitado nas dores de um parto infernal cercado de terrores e perigos desconhecidos que estão a espreitálo ameaçado por miragens enganadoras e por labirintos que o conduzem ao erro O pior de todos os destinos paira ameaçadoramente sobre o aventureiro a muda e abissal solidão precisamente no tempo que ele considera seu O que sabemos a respeito dos motivos mais profundos da principal ocupação como Goethe chamou o Fausto ou do estremecimento da Experiência de Dioniso Precisamos ler o Bardo Thödol o Livro Tibetano dos Mortos 46 do fim para o começo conforme sugeri para encontrar um paralelo oriental dos tormentos e catástrofes que povoam o caminho da libertação que conduz à totalidade É disto que se trata e não de boas intenções de imitações inteligentes ou mesmo de acrobacias intelectuais E é isto o que se apresenta seja sob a forma de insinuações seja em fragmentos menores ou maiores ao psicoterapeuta que se libertou das opiniões doutrinárias demasiado apressadas ou de horizontes limitados Se ele for escravo de seu credo quase biológico tentará sempre reduzir o que vê e observa algo de banal e consequentemente a um denominador racionalístico que só satisfará aos indivíduos que se contentam com ilusões A principal de todas as ilusões consiste em admitir que alguma coisa pode satisfazer alguém Esta ilusão está por trás de tudo o que é intolerável e na frente de todo e qualquer progresso E uma das coisas mais difíceis é superar tudo isso Caso o psicoterapeuta ainda encontre tempo à margem de sua benéfica atividade para alguma reflexão ou se por força das circunstâncias enxergar através de suas próprias ilusões perceberá pouco a pouco como são vazias insípidas e contrárias à vida todas as reduções racionalísticas quando elas se chocam com algo que é vivo e procura desenvolverse E se ele acompanhar o movimento vital logo perceberá o que significa arrombar as portas diante das quais todos preferem se esgueirar 47 906 Não gostaria de modo algum que meus leitores pensassem diante do exposto que estou querendo fazer alguma recomendação ou dar algum conselho Mas a partir do momento em que no Ocidente se começa a falar no zen considero minha obrigação mostrar também aos europeus onde fica a entrada da mais longa de todas as entradas que conduzem ao satori e quais as dificuldades de que está semeado o caminho somente trilhado entre nós por alguns poucos grandes homens faróis brilhando no alto de uma montanha para dentro de um futuro nebuloso Seria um erro funesto pensar que o satori ou o samâdi pudessem ser encontrados em qualquer lugar abaixo dessa altura Para uma experiência da totalidade nada menos nem de menor valor do que o próprio todo O sentido psicológico deste fato pode ser compreendido mediante a simples reflexão de que a consciência de cada indivíduo é apenas uma parte do psíquico em geral e que ela portanto nunca será capaz de atingir a totalidade para isto será mister ainda uma expansão indefinida do inconsciente Mas este último não se deixa captar por fórmulas engenhosas nem se exorcizar mediante dogmas científicos pois existe algo do destino inerente a ele ou até mesmo algumas vezes é o próprio grande destino como Fausto e Zaratustra o mostram sobejamente A consecução da totalidade requer o emprego do todo Ninguém está em condições de satisfazer a esta exigência e por isso não há condições fáceis nem substitutivos ou compromissos Como porém Fausto e Zaratustra são duas obras que apesar de seu alto conceito estão no limite do que é compreensível para o europeu dificilmente poderíamos esperar que um público culto mas que somente há pouco começou a ouvir falar do obscuro mundo da alma estivesse apto para formar uma ideia adequada da condição espiritual de um homem que caiu nas malhas confusas do processo de individuação designo a este processo como a via de tornarse um todo As pessoas recorrem então ao vocabulário da patologia e se contentam em citar termos como neurose e psicose ou falam sussurrando o mistério criador Mas o que poderá criar um indivíduo que porventura não seja poeta Por causa deste equívoco muitas pessoas nos tempos modernos intitularamse artistas por sua própria conta e risco Como se a arte nada tivesse a ver com a capacidade Talvez quando não tenhamos mais nada a criar criemosnos a nós mesmos 907 O zen mostranos o quanto o processo de tornarse um todo a integralização significa para o Oriente Ocuparse com os enigmas do zen poderá talvez fortalecer a espinha dorsal de algum europeu pusilâmine e sem fibra ou proporcionarlhe um par de óculos para a sua miopia a fim de que ele possa através do obscuro orifício da parede ter pelo menos uma rápida visão do mundo da experiência psíquica até então envolto em denso nevoeiro Certamente isto não terminará mal pois aqueles que se atemorizam demais estão eficazmente protegidos contra uma deterioração mais grave bem como de qualquer outro incidente através da ideia salvadora da autossugestão 48 Entretanto eu gostaria de advertir o leitor atento e interessado que não subestime a profundidade que caracteriza o espírito do Oriente nem suponha que o zen não encerra valor algum 49 A atitude zelosamente cultivada no Ocidente de uma credibilidade verbal no confronto com o tesouro do pensamento oriental representa neste caso um perigo menor porque no zen afortunadamente não há palavras maravilhosamente incompreensíveis como no hinduísmo O zen também não trabalha com técnicas complicadas como as de hathaioga 50 que acenam para o europeu acostumado a pensar em termos de fisiologia com a enganosa esperança de poder afinal adquirir o espírito à força de sentarse e fazer exercícios de respiração Pelo contrário o zen requer inteligência e força de vontade como todas as coisas grandes que desejam tornarse reais Referências ANGELUS SILESIUS Johann Scheffler Cherubinischer Wandersmann Sämtl poet Werke III Hg von HL Held Munique 1924 BÜTTNER H Meister Eckeharts Schriften und Predigten 2 vols Jena 1917 Das Büchlein vom vollkommenen Leben Jena 1907 Ed HB EVANSWENTZ WY Das tibetanische Totenbuch 6 ed Zurique 1960 Ed EW KATHAUPANISHAD Siehe Sacred Books of the East XV RUYSBROECK J The Adornment of the Spiritual Marriage usw Übers von CA Wynschenk Dom Londres 1916 Sacred Books of the East 50 vols Oxford 18791910 Ed Max Müller SUZUKI DT An Introduction to ZenBuddhism Londres e Nova York 1949 Die grosse Befreiung Zurique 1958 Essays in Zen Buddhism 3 vols Londres 19271934 The Training of the Zen Buddhist Monk Kyoto 1934 OHAZAMA S Ohasama Schuej Zen Der lebendige Buddhismus in Japan Übers von August Faust Gotha e Stuttgart 1925 PERCIVAL MA William Blakes Circle of Destiny Nova York 1938 SPAMER A Texte aus der deutschen Mystik des 14 und 15 Jahrhunderts Jena 1912 Ed AS Fonte OC 115 877907 1 SUZUKI DT Die Grosse Befreiung Einführung in den ZenBuddhismus 1939 Nova edição 1958 Edição brasileira Introdução ao ZenBudismo Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1961 1a Wem Zeit ist wie Ewigkeit Und Ewigkeit wie die Zeit Der ist befreit Von allen Streit 2 A origem do zen é como indicam os próprios autores orientais o Sermão da Flor pregado por Buda que certa vez apresentou silenciosamente uma flor aos discípulos reunidos em assembleia Somente Kasyapa o entendeu Shuei Ohasama Zen Der lebendige Buddhismus in Japan O zenbudismo no Japão 1925 p 3 3 SUZUKI DT Die Grosse Befreiung Op cit p 133 4 Ibid p 124 e 128s 5 NUKARIYA K The Religion of the Samurai 1913 p 133 6 O Zen não é psicologia nem filosofia SUZUKI DT Essays in Zen Buddhism II op cit p 84 7 OTTO R In OHASAMA Zen p VIII 8 Embora eu tente apesar de tudo dar explicações nas páginas que se seguem estou plenamente cônscio de que tudo o que eu disser é destituído de valor no sentido do satori Devo entretanto tentar manobrar nossa compreensão ocidental visando pelo menos obter um entendimento aproximado tarefa esta de tal modo difícil que nos torna réus de alguns crimes contra o espírito do zen 9 Cf Texte aus der deutschen Mystik des 14 und 15 Jahrhunderts Org por Adolf Spamer 1912 p 143 10 WHITE W Emanuel Swedenborg 1867 I p 243 11 Não há dúvida de que o zen é um dos mais preciosos e sob muitos aspectos um dos mais notáveis dons com que o homem oriental foi abençoado SUZUKI DT Essays I op cit p 249 12 Um mestre ensinava Antes de alguém estudar o zen as montanhas são para ele montanhas e as águas são águas Quando porém conseguir uma percepção da verdade do zen mediante as instruções ministradas por um bom mestre as montanhas não são para ele mais montanhas nem as águas são águas Mais tarde quando tiver alcançado o local do repouso isto é quando tiver atingido o satori as montanhas serão novamente montanhas para ele e as águas serão novamente águas Ibid p 12 13 Em The Religion of the Samurai p 123 14 Ibid p 124 A iluminação inclui uma visão da natureza do simesmo E uma libertação do espírito mind de toda ilusão a respeito do simesmo 15 Ibid p 132 16 Das Büchlein von vollkommenen Leben Org por H Büttner 1907 p 4 17 Op cit p 8 18 Há uma imagem semelhante no zen quando perguntaram a um mestre em que consistia o budato estado búdico ele respondeu O fundo do jarro está quebrado SUZUKI DT Essays I op cit p 217 Outra semelhança é a da ruptura rasgão do saco Ibid p 100 19 Cf ibid p 220 241 O Zen é um relance de olhos na natureza original do homem ou o conhecimento do homem original Cf tb SUZUKI DT Die Grosse Befreiung Op cit p 144 20 Meister Eckeharts Schriften und Predigten Op cit p 176s 21 SUZUKI DT Die Grosse Befreiung p 129 22 Ibid p 124 23 Há uma velha árvore cujas raízes crescem para cima e os ramos para baixo Chamase Brama e somente ela é imortal KathaUpanishad II Adhyâya 6 Vallî I 24 RUYSBROECK J The Adornment of the Spiritual Marriage 1916 p 47 Certamente não se pode dizer que o místico flamengo nascido em 1273 tenha tomado emprestada esta imagem por exemplo dos textos hindus 25 Ibid p 51 26 Ibid p 57 27 Ibid p 62 Ó 28 Ó Senhor instruíme na vossa doutrina que tem suas raízes na natureza da ipseidade do espírito self nature of mind Instruíme na doutrina do não eu etc Cit extraída do Lankâvatârasûtra SUZUKI DT Essays I op cit p 78 29 Diz um mestre do zen O Buda nada mais é do que o espírito mind ou melhor aquele que anseia por ver este espírito Ibid p 104 30 Gl 220 Eu vivo mas já não sou eu mas o Cristo que vive em mim 31 Suzuki diz a respeito dessa mudança A forma anterior de contemplação é abandonada e o mundo ganha um novo sentido Alguns deles os iluminados afirmam que viveram na ilusão ou que seu ser primitivo caiu no esquecimento outros reconhecem que até àquele momento nada haviam imaginado a respeito da nova beleza do vento refrescante ou do brilho da pedra preciosa Essays I op cit p 235 Cf tb SUZUKI DT Die Grosse Befreiung Op cit p 122s 32 Mein Leib ist eine Schal in dem ein Küchelein vom Geist der Ewigkeit will ausgebrütet sein Des Angelus Silesius Cherubinischer Wandersmann 33 Satori é a mais íntima de todas as experiências individuais SUZUKI DT Essays I op cit p 247 Um mestre dizia a seu discípulo Na realidade eu não comuniquei nada e mesmo que o tentasse fazer eu te daria o ensejo de zombar de mim mais tarde Além disso tudo o que te posso ensinar me pertence e nunca se tornará teu Ibid p 227 Um monge dizia a seu mestre Procurei o Buda mas não sei como devo continuar minha indagação É o mesmo que procurares a vaca em que estás montado Ibid II p 59 Um mestre dizia Buda é o intelecto que não entende Não existe outro Ibid II p 57 34 SUZUKI DT The Training of the ZenBuddhist Monk 35 SUZUKI DT Essays II op cit p 74 36 SUZUKI DT Ibid p 46 diz textualmente a consciência do zen deve desenvolverse até atingir a maturidade Quando se tornar madura com certeza irromperá na forma do satori que é uma mirada do inconsciente 37 A quarta máxima do zen diz Ver a própria natureza é alcançar o budato estado búdico Ibid p 7 e 204s Certa vez um monge pediu a Huinêng que o instruísse e o mestre respondeu Mostrame a tua face original a que tinhas antes de nascer Ibid I p 210 Diz um livro japonês a respeito do Zen Se queres o Buda olha para dentro de tua própria natureza pois esta natureza é o próprio Buda Ibid I p 219 Uma experiência do satori revela o homem original ao mestre Ibid I p 241 Huinêng dizia Não penses no bem não penses no mal mas considera no momento presente qual era o aspecto original que já possuías antes de nascer Ibid II p 28 38 Bodhidharma o fundador do zen na China diz A incomparável doutrina de Buda só pode ser compreendida depois de uma longa e dura prática depois de suportar as coisas mais difíceis de serem suportadas e de exercer as coisas mais difíceis de serem exercidas Os que não têm muita força e sabedoria nada conseguem entender a seu respeito Todo o esforço de pessoas como estas fracassará inevitavelmente Ibid I p 176 39 Mais provável do que uma relação meramente complementar 40 Esta necessidade é uma hipótese de trabalho As pessoas têm ou podem ter opiniões diferentes a este respeito Assim perguntase por exemplo se as concepções religiosas são necessárias Só o curso da vida individual é que decidirá isto é só as experiências do indivíduo é que contarão Não temos critérios abstratos neste sentido 41 Quando o espírito mind discrimina surge então a variedade das coisas quando não discrimina ele vê a natureza real das coisas Cit extraída do Lankâvatârasûtra SUZUKI DT Essays I op cit p 88 42 HsüanTse dizia Vosso espírito deve ser como o espaço mas não pode fixarse na ideia do vazio Neste caso a verdade se expandirá com todo o seu vigor e sem nenhum empecilho Cada movimento de vossa vontade brota de um coração inocente e vosso comportamento será igual tanto para com o ignorante como para com o sábio Ibid I p 209 43 Cf SUZUKI DT Die Grosse Befreiung Op cit p 130 44 Neste contexto convém lembrar também o nome do místico inglês William Blake cf a excelente apresentação de Milton O Percival em William Blakes Circle of Destiny de 1938 45 O Gênio da mitologia grega significa uma irrupção da consciência na materialidade do mundo privandoa assim de seu caráter onírico original 46 EVANSWENTZ WY Das Tibetanische Totenbuch Cf 844s deste volume 47 Fausto I primeira cena verso 710 48 Cf SUZUKI DT Die Grosse Befreiung Op cit p 131s 49 O Zen não é um passatempo é a mais séria de todas as tarefas da vida Nenhuma cabeça oca jamais se arriscará a abordálo SUZUKI DT Essays I op cit p 16 cf tb Die Grosse Befreiung Op cit p 76 50 Se queres alcançar o budato permanecendo sentado de pernas cruzadas matáloás Enquanto não te libertares deste modo de sentar não chegarás à verdade diz um mestre a seu discípulo SUZUKI DT Essays I op cit p 222 Considerações em torno da psicologia da meditação oriental 1 908 Em seu livro intitulado Kunstform und Yoga 2 As formas da arte e a ioga meu amigo Heinrich Zimmer cujo falecimento foi lamentavelmente prematuro realçou a profunda conexão que existe entre a arquitetura hierática da Índia e a ioga Quem viu alguma vez o Borobudur ou as estupas de Barhut e de Shândi dificilmente consegue subtrairse à impressão de que nestes monumentos está presente uma atitude espiritual caso já não o tenha percebido através de milhares de outras impressões pela vida indiana Nas inumeráveis facetas da transbordante espiritualidade hindu se reflete uma concepção interior da alma que num primeiro momento parece exótica e inacessível à compreensão europeia formada na escola do pensamento grego Nosso intelecto contempla as coisas exteriores nosso olhar bebe como diz Gottfried Keller aquilo que nossos cílios captam e bebem da superabundância dourada do mundo e é a partir da multidão das impressões exteriores que concluímos que existe um mundo interior Assim até mesmo seus conteúdos nós os deduzimos a partir das coisas exteriores segundo a sentença Nada existe no intelecto que não tenha antes passado pelos sentidos Esta máxima parece não ter validade na Índia O pensamento e as formas de arte hindus se manifestam no mundo dos sentidos mas não podemos deduzilos a partir destes últimos Apesar de seu aspecto sensual quase importuno esse pensamento e essas formas nada têm de sensual em sua natureza mais íntima pelo contrário são suprassensuais Não é o mundo dos sentidos dos corpos das cores e dos sons das paixões humanas que a capacidade artística da alma hindu reproduz sob uma forma transfigurada ou num modo de sentir realista É um mundo inferior ou superior de natureza metafísica de onde irrompem figurações estranhas no interior da conhecida visão terrena do mundo Quem observar atentamente as formas impressionantes sob as quais os dançarinos do kathakáli do sul da Índia representam seus deuses não descobrirá aí um só gesto natural Tudo é bizarro e situado abaixo ou acima do nível humano comum Eles não se movem como seres humanos mas deslizam não pensam com a cabeça mas com as mãos Até mesmo os rostos humanos desaparecem por trás das máscaras artificiais esmaltadas de azul Nosso mundo habitual nada nos oferece que se possa comparar nem de longe com esta magnificência grotesca O indivíduo é como que lançado em uma espécie de sonho à vista de tal espetáculo e sua impressão é a de que jamais deparou com algo de semelhante Não são espectros noturnos com que nos defrontamos nos espetáculos do Kathakáli dos templos e sim figuras de profundo e tenso dinamismo formas elaboradas segundo rigorosas leis até nos mínimos detalhes ou organicamente desenvolvidas Não são fantasmas ou meras cópias de realidades únicas e irrepetíveis mas sim realidades que ainda não tiveram existência realidades potenciais que podem transpor a cada momento o limiar do existir 909 Quem se entrega plenamente a tais impressões não demorará a perceber que estas formas nada têm de onírico para o hindu mas são reais para ele do mesmo modo que tocam algo dentro de nós com uma intensidade quase assustadora algo para o qual não temos uma linguagem adequada Mas observamos também que o nosso mundo dos sentidos se transforma em sonho à medida que estas formas penetram cada vez mais profundamente em nós e então despertamos em um mundo povoado de deuses da mais imediata realidade 910 O que o europeu percebe na Índia em primeiro lugar é o seu aspecto corporal físico contemplado do exterior Mas isto não é a Índia como o hindu a vê não é a sua realidade A realidade como se vê pela palavra alemã Wirklichkeit é algo que atua realmente wirkt Para nós o conceito real por excelência se acha ligado ao mundo dos fenômenos do que aparece exteriormente Para o hindu porém este conceito está ligado à alma Para ele o mundo é aparência e sua realidade se aproxima daquilo que nós chamaríamos de sonho 911 Este estranho contraste com o Ocidente se expressa sobretudo na prática religiosa Nós falamos em edificação e elevação religiosas Deus é o Senhor de todas as coisas Temos uma religião do amor ao próximo Em nossas igrejas que se lançam às alturas existe um altarmor situado em lugar elevado Hochaltar enquanto a Índia fala de dhyâna concentração meditação e imersão a divindade se acha no interior de todas as coisas O indivíduo se volta do exterior para o interior Nos antigos templos hindus o altar está colocado a dois ou três metros abaixo do rés do chão e aquilo que nós velamos com o máximo recato é para o hindu o mais sagrado dos símbolos Nós cremos na ação o hindu crê no ser imóvel A prática de nossa religião consiste na adoração na veneração e no louvor Para o hindu pelo contrário a prática mais importante é a ioga a imersão em um estado que chamaríamos de inconsciente mas ele considera como o mais alto grau de consciência A ioga é de um lado a expressão mais eloquente do espírito hindu e do outro o instrumento de que o indivíduo se utiliza sempre para provocar esse singular estado de espírito 912 Que é então a ioga Literalmente ioga significa imposição de um jugo isto é disciplinamento das forças instintivas da alma designadas em sânscrito pelo termo Kleças A imposição do jugo tem por escopo domar aquelas forças que mantêm o homem preso ao mundo Na linguagem de Agostinho as Kleças correspondem à superbia e à concupiscentia Existe uma grande variedade de formas de ioga mas todas elas visam sempre ao mesmo fim Não pretendo citar aqui o nome de todas e sim lembrar que ao lado de práticas e exercícios de caráter meramente psíquico existe também a chamada hathaioga que consiste numa espécie de ginástica corporal e principalmente em exercícios respiratórios e atitudes corporais específicas No presente estudo eu me proponho a comentar um texto da ioga que nos oferece uma visão profunda da mesma Tratase de um texto budista pouco conhecido transmitido em língua chinesa que é a tradução de um original sânscrito Data do ano 424 dC Intitulase Amitâyurdhyânasûtra isto é Tratado da Meditação de Amitâbha 3 Este sûtra tratado é altamente apreciado sobretudo no Japão e pertence ao âmbito do chamado budismo teísta que conserva a doutrina do Âdhibuddha ou Mahâbuddha o Buda original do qual provêm as cinco dhyâni de Buda ou as dhyâni de Bodhisattva Uma destas cinco dhyâni é Amitâbha o Buda do sol poente da luz incomensurável o Senhor de Sukhâvati a terra da felicidade É o protetor do período atual do mundo da mesma forma que Çâkyamuni o Buda histórico é o seu mestre Um fato digno de nota no culto de Amitâbha é uma espécie de celebração eucarística com pão consagrado Amitâbha é representado com um vaso na mão no qual está contido o alimento da imortalidade que nos dá a vida ou às vezes também com o vaso da água sagrada 913 O texto em questão começa com uma narrativa de enquadramento cujo conteúdo não nos interessa aqui Um príncipe herdeiro atenta contra a vida de seus pais A rainha pede socorro a Buda em sua aflição suplicando que lhe mande os seus dois discípulos Maudgalyâyana e Ânanda Buda atende a seu desejo e os dois lhe aparecem imediatamente O próprio Çâkyamuni isto é Buda também aparece diante dela e lhe mostra na visão os dez mundos e a manda escolher aquele no qual ela deseja renascer Ela escolhe o reino terreno de Amitâbha Buda ensinalhe então a ioga que a deve preparar para o reino de Amitâbha Depois de várias prescrições de ordem moral ele lhe comunica o seguinte 914 Tu e todos os outros seres isto é os que têm a mesma intenção deveis procurar a percepção do reino terreno concentrando os pensamentos Talvez me perguntes como se pode conseguir esta percepção Vou explicarte a maneira Todos os seres desde que não sejam cegos de nascença têm o sentido da visão e podem ver o sol poente Deves colocarte na posição correta e dirigir o olhar para o poente Prepara então teus pensamentos para a meditação concentrandote sobre o sol Fixa tua consciência firmemente no sol de modo a teres uma percepção dele sem a mínima perturbação concentrada exclusivamente nele Olha firmemente para ele no momento em que vai pôrse quando parece um tambor dependurado Depois de teres visto o sol desta maneira conserva esta imagem fixa e clara estejas ou não de olhos fechados Esta é a chamada percepção do sol e é a primeira meditação 915 Já vimos que o sol poente é uma alegoria de Amitâbha o dispensador da imortalidade O texto continua Em seguida procurarás ter a percepção da água Fixa o teu olhar na água pura e clara e mantém esse olhar claro e imutável dentro de ti Não permitas que teus pensamentos se dissipem e se percam 916 Como já indiquei Amitâbha é também o dispensador da água da imortalidade 917 Depois de teres visto a água desta maneira procurarás ter a percepção do gelo Vêloás luminoso e transparente Também imaginarás a aparição do lápislazúli lazurita Depois que o conseguires verás o chão como se fosse substituído de lápislazúli transparente e luminoso tanto por dentro como por fora Debaixo deste chão de lápislazúli verás o estandarte de ouro ornado de sete joias isto é de diamantes e de outras pedras preciosas que sustentam o solo Este estandarte se estende nas oito direções da rosa dos ventos ocupando assim inteiramente os oito ângulos dos alicerces Cada lado das oito mencionadas direções é constituído de 100 joias cada uma das quais tem 1000 raios e cada raio 84000 cores que refletindose no chão de lápislazúli têm o aspecto de um bilhão de sóis e dificilmente se pode vêlos separados uns dos outros Na superfície do solo de lápislazúli estendemse cabos de ouro ligados entre si em forma de cruz e suas partes são constituídas de fios ornados cada um de sete joias e cada uma destas partes é clara e distinta Quando tiveres realizado esta percepção meditarás sucessivamente sobre cada uma de suas partes constitutivas E farás com que as imagens apareçam o mais claramente possível de modo que nunca se dissipem nem se percam estejas ou não de olhos abertos À parte o tempo em que estiveres dormindo deverás conservar estas imagens sempre diante de teus olhos interiores Não há dúvida de que aquele que tiver alcançado este estado do qual estamos falando viverá na terra da suprema felicidade Sukhâvati Quem entretanto alcançar o estado de samâdhi estará capacitado a ver essa terra clara e distintamente Este estado não pode ser explicado de modo perfeito É a percepção da terra e é a terceira meditação 918 Samâdhi é a absorção total isto é o estado em que todas as conexões cósmicas foram absorvidas no interior do indivíduo O samâdhi é a oitava das oito sendas 919 Depois disto vem a meditação sobre as árvores das joias do país de Amitâbha à qual se segue a meditação sobre a água No país da suprema felicidade a água está distribuída em oito lagos A água de cada um destes lagos é constituída de sete joias suaves e flexíveis A fonte que as alimenta provém do rei das joias Cintâmani a Pérola dos Desejos No centro de cada lago há 60 milhões de flores de loto cada uma das quais constituída de sete joias Todas as flores são perfeitamente redondas e exatamente do mesmo tamanho A água que circula entre as flores produz sons melodiosos e agradáveis que expressam todas as virtudes perfeitas bem como o sofrimento a não existência a transitoriedade das coisas e o não ego Estes sons expressam também o louvor dos sinais da perfeição e dos sinais interiores da excelência de todos os budas Do rei das joias Cintâmani partem raios de extrema beleza cujo brilho se transforma em pássaros que possuem as cores de 100 joias e emitem sons maviosos de louvor à memória de Buda e também à memória da comunidade por ele formada Esta é a percepção da água das oito boas qualidades e também a quinta meditação 920 Buda instrui a rainha a respeito da meditação do próprio Amitâbha da seguinte maneira Procura ter a percepção de uma flor de loto no país das sete joias A flor possui 84000 pétalas cada folha possui 84000 nervuras e cada nervura 84000 raios cada um dos quais pode ser visto com clareza 921 Depois disto deves ter a percepção do próprio Buda Perguntas de que modo Cada Buda Tathâgata o perfeito é alguém cujo corpo aeriforme é o princípio da natureza DharmadhâtuKâya dhâtu elemento constituído de tal modo que pode penetrar na consciência de todos os seres Por isso desde o momento em que tiveres a percepção de Buda tua consciência possuirá verdadeiramente esses sinais da perfeição bem como os 80 sinais inferiores das excelências que percebes em Buda Por fim tua consciência se transformará em Buda ou melhor tua consciência será o próprio Buda O oceano do conhecimento verdadeiro e universal de todos os budas tem sua origem na nossa própria consciência e no nosso próprio pensamento Por isso deves voltar teu pensamento com toda a atenção para uma cuidadosa meditação sobre esse Buda Tathâgata o Arhat isto é o Santo e perfeito iluminado Se queres ter a percepção deste Buda deverás primeiramente ter a percepção de sua imagem estejas de olhos abertos ou fechados Fitao atentamente como um ídolo de ouro do jâmbûnada seiva que escorre da árvore do jambo que está sentado sobre a flor de loto4 Quando tiveres visto a figura sentada na flor tua visão espiritual se tornará clara e estarás capacitada para perceber com toda nitidez a beleza do país de Buda Ao veres estas coisas faze com que elas se tornem bem claras e firmes para ti tão claras como a palma de tuas mãos Ao passares por esta experiência verás também todos os budas dos dez mundos Afirmase que aqueles que praticaram esta meditação viram o corpo de todos os budas Por haverem meditado sobre o corpo de Buda tiveram também a percepção do espírito de Buda Tratase da grande compaixão conhecida como espírito de Buda Graças a esta compaixão universal o contemplativo tem a percepção de todos os seres Aqueles que praticarem esta meditação renascerão depois da morte em um outro país na presença de Buda e alcançarão o espírito de renúncia graças ao qual enfrentarão todas as consequências que virão depois disto É por isso que todos aqueles que possuem a sabedoria deveriam concentrar seu pensamento em uma cuidadosa meditação sobre este Buda Amitâyus 922 Dizse que aqueles que praticam esta meditação não viverão mais em um estado embrionário mas terão acesso a essas regiões maravilhosas e magníficas dos budas 923 Quando tiveres atingido esta percepção deverás imaginarte a ti mesma renascendo no mundo da suprema felicidade a região do Oriente e sentada de pernas cruzadas na flor de loto Em seguida imaginarás que esta flor te contém dentro de si e logo depois se abrindo Quando a flor volta a se abrir teu corpo estará envolvido por 500 raios coloridos Teus olhos serão abertos e verás os budas e os bodhisattvas enchendo todo o céu Escutarás o rumor das águas e das árvores o canto dos pássaros e a voz dos muitos budas 924 Em seguida Buda disse a Ânanda e à Vaidehi a rainha Os que desejam renascer na região oriental mediante seu puro pensamento deveriam primeiramente meditar sobre uma imagem de Buda de 16 côvados de altura sentada na flor de loto em meio às águas do lago Como já foi dito anteriormente o verdadeiro corpo e seu tamanho são ilimitados e incompreensíveis ao intelecto comum Mas graças à ação eficaz da antiga oração desse Tathâgata todos os que pensam e se lembram dele atingirão com toda a certeza o fim que se propõem 925 O texto prossegue Quando Buda terminou este sermão a Rainha Vaidehi guiada pelas palavras de Buda pôde contemplar juntamente com suas 500 companheiras o espetáculo do país da felicidade suprema que se estende a perder de vista e pôde ver também o corpo de Buda bem como o corpo dos dois bodhisattvas Seu espírito estava repleto de alegria Ela os louvava dizendo Jamais vi coisa tão maravilhosa Logo em seguida foi totalmente iluminada e alcançou o espírito de renúncia e daí por diante esteve sempre pronta a sofrer todas as consequências possíveis e imagináveis daí decorrentes Suas 500 companheiras também se alegraram pelo fato de terem adquirido daí por diante o conhecimento supremo e perfeito e desejaram renascer no país de Buda Aquele que é venerado em todo o mundo predisse que todas haveriam de renascer nesse país e estavam aptas para alcançar o samâdhi a tranquilidade sobrenatural da presença de muitos budas 926 Em um excurso sobre o destino do não iluminado diz Buda resumindo a prática da ioga Mas por se achar atormentado de dores ele não encontrará tempo para pensar em Buda Neste caso um bom amigo lhe dirá Embora não possas praticar o exercício da memória de Buda pelo menos poderás pronunciar o nome de Buda Amitâyus Poderá dizer isto com voz firme e de coração puro Poderá pensar constantemente em Buda repetindo até dez vezes Namo A mitâyushe Buddhâya Honra e louvor a Buda Amitâyus A cada repetição do nome de Buda exterminará seus pecados que de outra forma o envolveriam na hora do nascimento e da morte durante 80 milhões de Kalpas períodos compreendidos entre duas criações sucessivas Ao morrer verá um loto de ouro semelhante ao disco do sol brilhando diante de seus olhos e renascerá em um instante em Sukhâvati o mundo da suprema felicidade 927 São estes os conteúdos essenciais da ioga que aqui nos interessam O texto se divide em 16 meditações das quais destaco apenas algumas passagens Creio no entanto que elas são suficientes para dar uma ideia do que será a meditação que nos eleva até o samâdhi o supremo arrebatamento e a suprema iluminação 928 Este exercício começa com a concentração sobre o sol poente A intensidade dos raios do sol poente na latitude sul é ainda tão forte que basta contemplálo por alguns instantes para que se produza uma imagem duradoura e intensa do sol na retina Vêse então o sol poente por um espaço considerável mesmo que os olhos estejam fechados Um dos métodos hipnóticos como se sabe consiste em fitar um objeto luminoso e brilhante um diamante ou um cristal por exemplo Podemos supor que o ato de fitar o sol tem por escopo produzir um efeito de natureza semelhante Mas não deve produzir sonolência porque a fixação deve vir associada a uma meditação a respeito do sol Essa meditação é a reflexão em torno do sol uma compreensão e uma percepção clara daquilo que o sol é em si de sua forma de suas qualidades e de seus significados Como o elemento redondo desempenha um papel importante nas passagens subsequentes podemos também supor que o disco redondo do sol deve servir de modelo para as figuras redondas da fantasia que se seguirão Também tem por finalidade preparar as visões luminosas subsequentes É deste modo que deve provocar a percepção tal como diz o texto 929 A meditação seguinte a da água não se baseia mais em uma impressão dos sentidos mas produz graças à imaginação ativa a imagem de uma superfície aquosa refletora que como sabemos pela experiência reflete perfeitamente a luz solar Nesse momento é preciso imaginar que a água se converte em gelo luminoso e transparente Com este procedimento a luz imaterial da imagem duradoura do sol na retina se materializa na água que por sua vez solidificase em gelo O que se pretende com isto é evidentemente uma concretização e uma materialização da visão do que resulta a materialidade da criação de fantasias que vêm substituir a natureza física ou seja este mundo que conhecemos Criase uma outra realidade por assim dizer com material psíquico O gelo que por sua natureza tem uma tonalidade azulada transformase em lápislazúli um composto de natureza pétrea que por sua vez convertese em chão mas um chão luminoso e transparente Com este chão se forma um alicerce imutável e por assim dizer real em todos os sentidos Este chão azul e transparente é como um lago de vidro através de cujas camadas transparentes o olhar penetra nas profundezas 930 Destas profundezas brilha então o assim denominado estandarte de ouro Importa observar aqui que o termo sânscrito dhvaja designativo de estandarte significa em geral sinal e símbolo Por isso poderíamos dizer que se trata do aparecimento de um símbolo O fato de o símbolo se estender nas oito direções da rosa dos ventos indica que o fundamento representa um sistema de oito raios Como diz o texto os oito cantos do fundamento se acham inteiramente ocupados pelo estandarte O sistema brilha como 1000 milhões de sóis A imagem persistente do sol adquiriu portanto bastante energia e aumentou a ponto de transformarse em força luminosa de intensidade infinita A estranha ideia das amarras de ouro que se estende por todo o sistema parece querer indicar que as partes deste sistema se acham solidamente interligadas de modo que é impossível desfazêlo Infelizmente o texto não fala da possibilidade de o método vir a falhar nem dos sintomas de degeneração que poderiam advir em decorrência de um erro qualquer Mas tais perturbações em um processo imaginativo não contêm nada de estranho para um conhecedor do assunto pelo contrário constituem uma ocorrência normal Por isso não é de espantar que na visão da ioga esteja prevista uma espécie de solidificação interior da imagem por meio de amarras de ouro 931 Embora o texto não o diga expressamente o sistema de oito raios já é o país de Amitâbha Nele brotam e crescem árvores maravilhosas como convém a um paraíso A água do país de Amitâbha tem uma importância toda especial Ela se encontra sob a forma de oito lagos correspondentes ao octógono A fonte é uma joia central Cintâmani a Pérola dos Desejos símbolo do objeto difícil de conseguir e também do valor supremo 5 Na arte chinesa é aquela figura lunar que muitas vezes aparece associada ao dragão 6 Os sons maravilhosos emitidos pelas águas são constituídos de dois pares de opostos que expressam as verdades fundamentais do budismo como o sofrimento e o não ser a transitoriedade das coisas e a anulação de si e isto quer dizer que todo ser é cheio de sofrimentos e tudo o que se refere ao eu é passageiro e caduco É destes erros que o não ser e o nãoser eu nos libertam A água que produz esses sons é portanto algo como a doutrina de Buda em geral uma água salvadora da sabedoria uma aqua doctrinae água da doutrina para usarmos uma expressão de Orígines A fonte desta água a pérola sem igual é o Tathâgata o Buda em pessoa Resulta daí a reconstituição imaginativa da figura de Buda e a percepção desta constituição leva ao conhecimento de que Buda a rigor outra coisa não é senão a psique do iogue em ação durante a meditação a psique daquele mesmo que medita Não é somente a forma de Buda que brota da própria consciência e dos próprios pensamentos a alma que produz estas imagens e estes pensamentos é o próprio Buda 932 A figura de Buda está sentada em uma flor redonda de loto no centro do país octogonal de Amitâbha Buda se destaca pela grande compaixão com a qual acolhe todos os seus e consequentemente também o meditador isto é o ser mais íntimo que é o próprio Buda e que aparece na visão como o verdadeiro simesmo do meditador Este se sente como o único existente como a consciência suprema que é realmente o próprio Buda Para atingir esta meta final ele precisou percorrer todo o caminho da penosa reconstituição espiritual libertandose da consciência cega do ego sobre a qual pesa a culpa da ilusão do mundo para chegar ao outro polo da alma no qual o mundo é abolido como ilusório 933 Nosso texto não é apenas uma peça literária de museu pois vive sob esta e muitas outras formas na alma do hindu impregnandolhe a vida e o pensamento até os mínimos detalhes tão singularmente estranho aos olhos de um europeu Não é o budismo por exemplo que forma e educa a alma do hindu mas a ioga O budismo em si é um fruto do espírito da ioga que é mais antiga e universal do que a reforma de Buda É com este espírito que deve familiarizarse quer queira ou não aquele que aspira a entender a arte a filosofia e a ética hindus a partir de dentro Nossa maneira habitual de entender sempre a partir de fora falha nesta tarefa porque é absolutamente inadequada à natureza da espiritualidade hindu Eu gostaria de prevenir o leitor de modo particular contra as imitações e tentativas tantas vezes repetidas de sentir e assimilar certas práticas orientais que nos são estranhas Em geral o que daí resulta nada mais é do que um embrutecimento sumamente artificial de nossa inteligência ocidental De fato se alguém conseguisse renunciar à Europa sob todos os aspectos e tornarse realmente um perfeito iogue com todas as consequências éticas e práticas daí decorrentes passando todo o seu tempo em posição de loto sentado em uma pele de gazela debaixo de uma árvore poeirenta de banian figueira sagrada e terminando os seus dias numa não existência obscura e sem nome eu seria o primeiro a reconhecer que ele compreendeu a ioga como um hindu Mas quem não o conseguir também não deverá portarse como se tivesse compreendido a ioga Não pode nem deve renunciar à sua inteligência ocidental Pelo contrário deve pôla a funcionar para compreender honestamente a respeito da ioga tudo quanto esteja ao alcance da nossa capacidade de compreensão sem a preocupação tola de querer imitar e sentir aquilo que não corresponde à sua índole Como os segredos da ioga têm para o hindu tanta ou maior importância do que os mistérios da fé cristã para nós deveríamos evitar todo e qualquer exotismo que colocasse em ridículo nosso mysterium fidei mistério da fé sem com isso subestimar as representações e as práticas estranhas dos hindus considerandoas como erros absurdos Com isto estaríamos barrando a nós mesmos a via de acesso a uma compreensão analógica desses fatos Mas já fomos bastante longe sob este aspecto pois os conteúdos espirituais do dogma cristão se reduziram para nós a um nevoeiro racionalista e iluminista numa medida que já se tornou perigosa e é muito fácil menosprezar o que não conhecemos nem entendemos 934 Se quisermos de fato entender a ioga só poderemos fazêlo à maneira europeia É verdade que entendemos muita coisa com o coração mas também nesse caso nossa mente tem dificuldade em acompanhar de perto a formulação intelectual e exprimir adequadamente aquilo que entende Não há dúvida de que há uma maneira de compreender com o cérebro e em particular com o intelecto científico Mas neste caso muitas vezes o coração fica de fora Por isso é que devemos deixar ora isto ora aquilo à benévola colaboração do público Procuremos portanto em primeiro lugar compreender ou construir com o cérebro aquela ponte oculta que nos levará da ioga à compreensão ocidental 935 Para isto devemos nos reportar mais uma vez ainda à série de símbolos de que já tratamos mas desta vez levando em conta o seu significado O sol que encabeça a série é a fonte do calor e da luz e o centro inegável de nosso mundo visível Por isso como dispensador dá vida ele tem sido por assim dizer em todos os tempos e em todos os lugares ou a divindade em pessoa ou pelo menos uma de suas imagens Até mesmo no universo das representações cristãs é uma alegoria muito difundida de Cristo Uma segunda fonte da vida é particularmente nos países meridionais a água que como se sabe desempenha um papel de importância na alegoria cristã como por exemplo na figura dos quatro rios do paraíso e da fonte que jorra ao lado do monte do templo Esta última foi comparada com o sangue que saiu da chaga do lado de Cristo na cruz Neste contexto quero lembrar o diálogo de Cristo com a samaritana junto ao poço de Jacó bem como os rios de água viva que haveriam de brotar do lado de Cristo Jo 738 Uma meditação sobre o sol e a água evocará estas e outras relações de sentido que levarão o contemplador gradualmente do plano inicial das aparências externas para o plano de fundo das realidades ou em outras palavras para o sentido espiritual dos objetos de sua meditação que se acha por trás dessas aparências Com isto ele se transfere para a esfera do psíquico onde o sol e a água são despidos de sua objetividade física e consequentemente transformados em símbolos de certos conteúdos psíquicos ou em imagens da fonte da vida dentro da própria alma Nossa consciência não se cria a si mesma mas emana de profundezas desconhecidas Desperta gradualmente na criança e cada manhã ao longo da existência desperta das profundezas do sono saindo de um estado de inconsciência É como uma criança que nasce diariamente das profundezas do inconsciente materno Sim um estudo mais acurado da consciência nos mostra claramente que ela não é somente influenciada pelo inconsciente como também emana constantemente do abismo do inconsciente sob a forma de inúmeras ideias espontâneas Por isso a meditação sobre o significado do sol e da água é como uma espécie de descida à fonte psíquica ou em outras palavras ao nosso próprio inconsciente 936 Mas encontramos aqui uma diferença sensível entre o espírito oriental e o ocidental Tratase da mesma diferença que já constatamos ou seja a que existe entre o altarmor altar em posição elevada e o altar construído abaixo do nível do solo O homem ocidental procura sempre a exaltação e o oriental a imersão ou o aprofundamento Parece que a realidade exterior com a sua corporeidade e seu peso domina o espírito europeu com muito mais força e maior intensidade do que o faz com o hindu Por isso o primeiro procura elevarse acima do mundo enquanto o segundo retorna de preferência às profundezas da mãenatureza 937 Mas da mesma forma pela qual a contemplação cristã procura por exemplo nos Exercitia Spiritualia de Inácio de Loyola captar com todos os sentidos do corpo a forma sagrada o mais concretamente possível assim também o iogue procura dar solidez à água que contempla primeiro através da solidez do gelo e em seguida do lápislazúli formando assim o chão firme como ele próprio o denomina Cria por assim dizer um corpo sólido para a sua própria visão e confere assim ao elemento interior isto é às formas de seu mundo psíquico uma realidade concreta que substitui o mundo exterior Não há dúvida de que inicialmente ele não vê senão uma superfície refletora azul como por exemplo a de um lago ou do mar que é também um símbolo corrente do inconsciente em nossos sonhos De fato sob a superfície refletora da água escondemse profundezas desconhecidas obscuras e misteriosas 938 Como nos diz o texto a pedra azul é transparente dandonos a entender com isto que o olhar do contemplador pode penetrar as profundezas do mistério da alma onde enxerga o que antes não podia ser visto isto é aquilo que se achava mergulhado num estado de inconsciência Da mesma forma que o sol e a água são fontes da vida física assim também exprimem como símbolos o mistério essencial da vida do inconsciente No estandarte símbolo que ele vê através do chão de lápislazúli o iogue contempla como que uma imagem da fonte da consciência anteriormente invisível e aparentemente sem forma definida Por meio da dhyâna isto é da imersão e do aprofundamento da contemplação parece que o inconsciente assume uma forma definida É como se a luz da consciência que cessara de iluminar os objetos do mundo dos sentidos exteriores iluminasse daí por diante as trevas do inconsciente Quando se extinguem por completo o mundo dos sentidos e do pensamento o elemento interior surge com toda a nitidez 939 Neste ponto o texto oriental passa por cima de um fenômeno psíquico que se converte para o europeu em uma fonte inesgotável de dificuldades Se ele procurar esconjurar as representações do mundo exterior esvaziando seu espírito de tudo o que é exterior tornarseá presa primeiramente de suas próprias fantasias subjetivas que nada têm a ver com os conteúdos de nosso texto As fantasias não gozam de boa fama são ordinárias e destituídas de valor e por isso rejeitadas como inúteis e destituídas de sentido Tratase das Kleças daquelas forças desordenadas e caóticas dos instintos que a ioga pretende justamente subjugar Esse objetivo é perseguido também pelos referidos Exercitia Spiritualia e tanto um método como o outro procura chegar ao mesmo resultado fornecendo o objeto da contemplação àquele que medita isto é propondolhe a imagem sobre a qual deve concentrarse para impedir o acesso das chamadas fantasias carentes de valor Ambos os métodos tanto o oriental como o ocidental procuram chegar ao mesmo fim por via direta Não pretendo pôr em dúvida a prática da meditação quando levada a efeito dentro de um quadro eclesiástico significativo Fora deste contexto porém a coisa em geral não funciona ou conduz até mesmo a resultados deploráveis Em outros termos com o esclarecimento do inconsciente caise sobretudo na esfera do inconsciente pessoal e caótico onde se acha tudo quanto se gostaria de esquecer ou não se desejaria confessar ou admitir nem para si nem para os outros em qualquer circunstância Por isto crêse que a melhor maneira de evitálo é não olhar para este canto escuro Mas quem procede desta maneira não consegue evitar este canto e nunca chegará a perceber o menor traço daquilo que a ioga promete Só aquele que atravessar estas trevas poderá ter a esperança de avançar mais alguns passos É por isto que em princípio sou contra a adoção das práticas da ioga por parte dos europeus de forma indiscriminada e sem senso crítico pois sei perfeitamente que o que se espera com isto é evitar seu canto escuro Mas tal início é inteiramente desprovido de sentido e de valor 940 É aqui que reside a razão mais profunda pela qual nós homens do Ocidente não desenvolvemos coisa alguma que possa se comparar com a ioga exceção feita do emprego bastante limitado dos exercícios inacianos Temos um receio profundo de encarar de frente o lado abominável de nosso inconsciente pessoal É por isso que o europeu prefere dizer aos outros de que modo devem proceder Não entra em nossa cabeça que a correção do conjunto deve começar pelo próprio indivíduo ou mais exatamente por mim mesmo Muitos pensam inclusive que é patológico olhar às vezes para dentro de si e que isto nos torna melancólicos como até mesmo um teólogo me garantiu certa vez 941 Disse há pouco que no Ocidente não desenvolvemos nada que se possa comparar com a ioga Mas isto não é de todo exato Entre nós desenvolveuse como corresponde à mente preconceituosa do europeu uma psicologia médica que se ocupa especialmente com as Kleças Chamamola de psicologia do inconsciente A tendência inaugurada por Freud reconheceu o lado sombrio do homem e sua influência sobre a consciência e assumiu totalmente este problema Essa psicologia se ocupa com aquilo que o texto em questão pressupõe como resolvido A ioga conhece muito bem o mundo das Kleças mas o caráter naturalista de sua religiosidade desconhece o conflito moral que as Kleças representam para nós ocidentais Um dilema ético nos separa de nossa sombra O espírito da Índia brota diretamente da natureza Nosso espírito pelo contrário opõese à natureza 942 O chão lápislazúli é opaco para nós porque o problema do mal deve ser resolvido antes de tudo no plano da natureza Esta questão pode ser resolvida mas não certamente com argumentos racionalistas superficiais ou com um palavrório intelectual oco A responsabilidade ética do indivíduo pode dar uma resposta válida Mas não há receitas e formulários pré fabricados e sim apenas o pagamento até o último centavo Só então é que o chão de lápislazúli pode tornarse transparente Nosso sutra pressupõe portanto que o mundo sombrio de nossas fantasias isto é de nosso inconsciente pessoal foi percorrido pelo contemplativo e passa então a descrever uma forma simbólica que à primeira vista nos parece estranha Tratase de uma figura geométrica radial dividida em oito segmentos formando a assim chamada ogdóade No centro desta figura vêse um loto no qual Buda está sentado A experiência decisiva consiste afinal em saber que Buda é o próprio contemplativo e com isto parece desfeito o nó fatal dado pela narrativa do quadro O símbolo de estrutura simétrica expressa obviamente uma concentração máxima a que só se pode chegar levandose ao extremo não só o distanciamento e a transição do interesse em relação às impressões do mundo dos sentidos e das representações ligadas aos objetos externos como também o voltarse decisivamente para aquilo que constitui o pano de fundo da consciência O mundo da consciência com suas ligações com o objeto e mesmo o próprio centro da consciência isto é o ego extinguemse e em seu lugar surge o mundo de Amitâbha com seu brilho que aumenta e se intensifica indefinidamente 943 Psicologicamente isto quer dizer que por trás e debaixo do mundo das fantasias surge uma camada ainda mais profunda do inconsciente que ao contrário da desordem caótica das Kleças é de uma ordem e de uma harmonia insuperáveis e que ao invés da multiplicidade daquelas representa a unidade universal do mandala do bodhi o círculo mágico da iluminação 944 Mas o que tem nossa psicologia a dizer a respeito desta descoberta hindu de um inconsciente suprapessoal e universal que surge de algum modo quando as trevas do inconsciente pessoal se tornam transparentes Nossa psicologia sabe que o inconsciente pessoal nada mais é do que uma camada superposta que se assenta em uma base de natureza inteiramente diversa Esta base é o que chamamos de inconsciente coletivo A razão desta denominação está na circunstância de que ao contrário do inconsciente pessoal e de seus conteúdos meramente pessoais as imagens do inconsciente mais profundo são de natureza nitidamente mitológica Isto significa que essas imagens coincidem quanto à forma e ao conteúdo com as representações primitivas universais que se encontram na raiz dos mitos Elas não são mais de natureza pessoal mas são puramente suprapessoais e consequentemente comuns a todos os homens Por isso é possível constatar sua presença nos mitos e nas fábulas de qualquer povo e de qualquer época bem como em indivíduos que não têm o menor conhecimento consciente de mitologia 945 Nossa psicologia ocidental avançou realmente tanto quanto a ioga pela circunstância de estar em condições de constatar cientificamente a existência de uma camada do inconsciente comum a todos os indivíduos Os temas mitológicos cuja existência foi demonstrada pela investigação do inconsciente constituem a rigor uma multiplicidade mas esta multiplicidade culmina em um arranjo concêntrico e radial que constitui verdadeiramente o centro ou a essência do inconsciente coletivo Dada a coincidência notável dos resultados da pesquisa psicológica com os conhecimentos da ioga escolhi o termo sânscrito mandala que significa círculo para designar este símbolo central 946 Alguém poderá perguntarme Mas de que modo a ciência universal chega a semelhantes resultados Para isto há dois caminhos O primeiro é a via histórica Se estudarmos o método introspectivo da filosofia natural da Idade Média por exemplo verificaremos que ele se serviu constantemente do círculo em particular do círculo dividido em quatro segmentos para simbolizar o princípio central inspirandose para isto claramente na alegoria da quaternidade usada correntemente na Igreja como por exemplo as numerosas representações do rex gloriae rei da glória cercado pelos quatro evangelistas os quatro rios do paraíso os quatro ventos etc 947 A segunda via é a da psicologia empírica A um determinado estágio do tratamento psíquico os pacientes desenham às vezes espontaneamente esses mandalas seja porque sonharam com eles seja porque sentem de súbito a necessidade de compensar sua desordem psíquica com a representação de um conjunto ordenado Foi um processo desta natureza que nosso santo nacional o bemaventurado Nicolau de Flüe percorreu e cujo estágio final podemos ver ainda no quadro da visão da Trindade pintado na Igreja Matriz de Sachseln Nosso santo fixou sua visão aterradora que o abalou até o mais profundo de seu ser mediante desenhos de forma circular no livrinho de um místico alemão 7 948 Mas o que diz nossa psicologia empírica a respeito do Buda sentado na flor de loto A rigor o Cristo deveria estar sentado em um trono nos mandalas ocidentais ocupando o centro da figura Foi isto o que aconteceu durante a Idade Média como já ficou dito em outro lugar Mas nossos mandalas modernos cujo surgimento espontâneo observamos em um grande número de indivíduos sem pressupostos ou intromissões de caráter exterior não contêm nenhuma figura de Cristo e menos ainda a de um Buda sentado na posição de loto Pelo contrário o que ocorre não raras vezes é a cruz isósceles ou mesmo uma alusão clara à suástica Não pretendo discutir aqui este fato estranho que em si mesmo é do máximo interesse 8 949 Existe uma diferença muito sutil mas enorme entre o mandala cristão e o mandala budista O cristão jamais dirá em sua contemplação Eu sou Cristo pelo contrário confessará como Paulo Eu vivo mas já não sou eu é Cristo que vive em mim Gl 220 Mas nosso sûtra afirma Saberás que tu é que és Buda No fundo estas duas confissões são idênticas visto que o budista atinge este conhecimento quando se torna anâtman isto é sem o simesmo mas há uma grande diferença na formulação o cristão alcança a sua meta em Cristo ao passo que o budista se reconhece como Buda O cristão parte justamente do mundo transitório do eu enquanto o budista se apoia ainda no fundamento eterno da natureza interior cuja união com a divindade ou com a essência universal encontramos também em outras confissões hindus Referências JUNG CG Psychologie und Alchemie Psychologische Abhandlungen V Zurique Rascher 1944 Rev Neuaufl 1952 GW 12 1972 31980 Symbolik des Geistes Studien über psychische Phänomenologie mit einem Beitrag von Riwkah Schärf Psychologische Abhandlungen VI Zurique Rascher 1948 Neuaufl 1953 Jungs Beiträge GW 91 1976 51983 und GW 13 1978 31982 und in diesem Band d h GW 11 Symbole der Wandlung Analyse des Vorspiels zu einer Schizophrenie Zurique Rascher 1952 4 umgearbeitete Auflage von Wandlungen und Symbole der Libido 1912 GW 5 1973 31983 Wandlungen und Symbole der Libido Viena 1912 Siehe Symbole der Wandlung Sacred Books of the East 50 vols Oxford 18791910 Ed Max Müller STÖCKLI A Die Visionen des seligen Bruder Klaus Einsiedeln 1933 ZIMMER H Kunstform und Yoga im indischen Kultbild Berlim 1926 Fonte OC 115 908949 1 Surgido pela primeira vez em Mitteilungen der Schweizerischen Gesellschaft der Freunde ostasiatischer Kultur V 1943 e publicado a seguir em Symbolik des Geistes 1948 2 Kunstform und Yoga im indischen Kultbild Berlim se 1926 3 Sacred Books of the East Vol XLIX Parte II p 161s Traduzidos por Takakusu 4 Jambunadi rio formado do suco do fruto do jambeiro e que corre em torno do monte Meru retornando depois à árvore de origem 5 Cf Wandlungen und Symbole der Libido 1912 p 161 ou a nova edição de 1952 Symbole der Wandlung p 279 e no lugar citado Símbolos da transformação 6 Cf Psychologie und Alchemie seção 61 Psicologia e alquimia 7 Cf Die Visionen des Seligen Bruder Klaus de P Alban Stöckli OFM Cap Cf tb 474s deste volume 8 O leitor encontrará as necessárias indicações em Psychologie und Religion Psicologia e religião Petrópolis Vozes 2011 136s Prefácio ao I Ging 1 964 É com a maior satisfação que atendo ao desejo manifestado pela tradutora da edição de I Ging de Wilhelm no sentido de escrever de próprio punho um prefácio para esta obra podendo cumprir desta maneira um ato de piedade para com meu falecido amigo Richard Wilhelm Da mesma forma que ele estava consciente da importância histórica e cultural de sua versão e apresentação do I Ging sem igual no Ocidente assim também me sinto na obrigação de transmitir esta obra da melhor maneira possível ao mundo da língua inglesa 965 Se o Livro das Transmutações 1a fosse uma obra popular não precisaria de uma introdução Mas ele é tudo menos popular Pelo contrário suspeitase que ele constitui uma velha coleção de sentenças mágicas sendo portanto de um lado uma obra difícil de entender e do outro destituída de qualquer valor A tradução de Legges publicada na série dos Sacred Books of the East dirigida por Max Müller pouco contribuiu para pôr o livro ao alcance da mentalidade ocidental 2 Isto foi uma razão a mais para que Wilhelm se esforçasse por abrir uma via de acesso à simbologia muitas vezes obscura do texto em questão ele estava capacitado para isso e com a maior facilidade se considerarmos que se ocupara por vários anos praticamente com a estranha técnica deste livro de oráculo o que naturalmente lhe proporcionou a possibilidade de desenvolver uma sensibilidade muito fina para o conteúdo vivo do texto em forma inteiramente diversa da que se poderia esperar apenas de uma tradução mais ou menos literal 966 Devo a Wilhelm as mais valiosas informações sobre o complicado problema do I Ging bem como sobre a maneira prática de avaliar os resultados obtidos Eu mesmo me ocupei há mais de vinte anos atrás com a técnica destes oráculos que me pareciam de grande interesse sob o ponto de vista psicológico e já conhecia bastante bem o I Ging quando me encontrei pela primeira vez com Wilhelm no início da década de 1920 Mesmo assim foi uma experiência notável ver Wilhelm entregue à sua obra e poder observar com meus próprios olhos a maneira pela qual ele analisava praticamente os resultados Para grande satisfação minha pude constatar que os meus conhecimentos de psicologia eram de grandíssima utilidade 967 Naturalmente como não entendesse o chinês só podia abordar o I Ging pelo lado prático Minha única dúvida era a respeito da funcionalidade do método e de sua utilidade Dada a minha ignorância em questões de sinologia o simbolismo abstrato dessas fórmulas mágicas pouco teria podido me interessar Eu não podia me preocupar com as dificuldades de caráter filosófico mas única e exclusivamente com a exploração psicológica do método utilizado no I Ging 968 Na época em que Wilhelm esteve comigo em Zurique pedilhe que elaborasse um hexagrama a respeito da situação de nossa sociedade psicológica Eu conhecia a situação mas ele não O diagnóstico foi espantosamente correto como o foi também o prognóstico que descrevia um fato só ocorrido posteriormente e que eu mesmo não havia previsto Mas este resultado não era assim tão espantoso uma vez que eu já havia feito anteriormente uma série de experiências notáveis com o método No começo empregava a técnica mais complicada das cinquenta varinhas de milefólio 3 mais tarde quando já conseguira uma visão de conjunto do funcionamento do método bastavame o denominado oráculo das moedas que em seguida usei abundantemente Com o decorrer do tempo verifiquei que havia certas conexões por assim dizer regulares entre a situação vigente e o conteúdo dos hexagramas Este fato é inegavelmente singular e segundo nossos pressupostos comuns não deveria ocorrer descontados os assim chamados golpes do acaso Mas é preciso notar que apesar da crença na regularidade das leis da natureza nós nos comportamos muito liberalmente em relação ao conceito de acaso Quantos fenômenos psíquicos qualificamos de casuais quando na realidade vemos que nada têm a ver com uma casualidade Lembremos apenas os casos de lapsos de linguagem erros de leitura e esquecimentos que Freud já declarava nada possuírem de acidental Por isso sintome inclinado a uma posição de ceticismo em relação às chamadas coincidências do I Ging Pareceme inclusive que o percentual de acertos supera de muito qualquer probabilidade Acredito mesmo que não se trata de acaso mas de regularidade 969 Com isto chegamos à questão de saber como se deveria demonstrar esta pretensa regularidade Aqui sou obrigado a decepcionar o leitor Esta demonstração é sumamente difícil se não de todo impossível aspecto este que tenho como o mais provável Esta constatação deverá parecer demasiado catastrófica para quem a encara de um ponto de vista racionalista e devo contar desde já com a possibilidade de ser acusado de fazer afirmações levianas falando em regularidade da coincidência da situação com a resposta do hexagrama Na realidade eu deveria fazer tais acusações contra mim mesmo se não soubesse por uma longa experiência prática o quanto é difícil para não dizer impossível aduzir provas quando se trata de questões de psicologia Quando deparamos com certos fatos bastante complicados na vida prática resolvemos o problema à base de conceitos sentimentos afetos intuições convicções etc para cuja explicação e aplicabilidade é impossível encontrar até mesmo uma demonstração científica no entanto os interessados poderão se dar por satisfeitos com a solução encontrada As situações que se apresentam na prática são de uma tal complexidade que é impossível analisálas de maneira satisfatoriamente científica Quando muito o que se consegue é um certo grau de probabilidade E mesmo assim só quando os interessados forem não só perfeitamente sinceros como também e sobretudo de boafé Entretanto só podemos chegar a um grau maior de sinceridade e de boafé dentro dos limites de nossa consciência Ora aquilo que somos em nosso inconsciente escapa ao nosso controle em outras palavras a nossa consciência acredita que é honesta e de boafé mas nosso inconsciente talvez saiba que para além disto nossa aparente sinceridade e boafé nada mais são do que uma fachada por trás da qual se oculta o contrário Devido ao inconsciente é impossível descrever e compreender uma pessoa e uma situação psicológica e por isso é também impossível demonstrar se tais coisas existem na realidade Quando muito conseguimos mostrar baseados estatisticamente em uma grande massa de material empírico recolhido que certos fenômenos psíquicos perfeitamente definidos são prováveis e nada mais do que isto 4 Mas em situações psicológicas individuais altamente complicadas nada se pode provar porque por sua própria natureza tais situações nada oferecem que possa ser submetido a repetições experimentais Os oráculos do I Ging se situam entre estas situações singulares impossíveis de repetir Como sempre nelas acontece o indivíduo não é capaz de discernir se uma coisa é provável ou não Suponhamos por exemplo que alguém depois de longa preparação resolva pôr em prática um plano elaborado e perceba de repente que este seu passo poderá prejudicar os interesses de outras pessoas Nesta expectativa digamos que ele consulte o oráculo recebendo talvez entre outras a seguinte resposta hexagrama 41 Irse embora depressa quando houver terminado os trabalhos não é nenhuma desonra mas é preciso pensar bem até onde isto pode prejudicar os outros 970 Ora é absolutamente impossível provar que esta frase apesar de sua inegável correspondência tenha algo a ver com a situação psicológica do consultor Este tem só três possibilidades diante de si ou se espantar com o fato de a frase do hexagrama concordar tão perfeitamente com sua situação ou considerar esta aparente concordância como um acaso ridículo ou simplesmente negála Na primeira hipótese ele se dirigirá ao segundo verso do mesmo hexagrama que diz Empreender alguma coisa é motivo de infortúnio Sem se prejudicar a si mesmo É possível ajudar os outros a crescer 971 Ele talvez reconheça a sabedoria desta conclusão ou a considere simplesmente sem importância No primeiro caso acha impossível tratarse de um acaso e no segundo acha que só pode tratarse de um acaso numa terceira hipótese considera que tudo isso nada significa Mas neste caso não se pode provar coisa alguma Por isso escrevo este prefácio somente para aqueles que se acham inclinados a conceder algum crédito a este estranho método 972 Embora tais coincidências verbais não sejam muito raras não representam a maioria dos casos Muitas vezes as conexões são bastante vagas ou mesmo indiretas exigindo então maior crédito Isto acontece principalmente quando a situação psicológica inicial não é muito nítida mas nebulosa ou só foi apreendida de maneira unilateral Nestas circunstâncias dãose casos em que se o consultante mostrar disposições de considerar sua situação sob uma luz diferente é possível discernir uma relação mais ou menos simbólica com o hexagrama Expressome de propósito com cautela porque não gostaria de sugerir que é preciso criar uma conexão à tout prix a todo custo Tais artificialismos não compensam e só levam a especulações doentias É por isso que o método se presta ao abuso Por esta razão não serve para indivíduos imaturos infantis e propensos a brincadeiras nem convém a temperamentos intelectualistas e racionalistas endereçase a pessoas capazes de meditar e refletir e que gostem de pensar naquilo que fazem e sobre o que lhes acontece casos estes que nada têm a ver com o ensimesmamento hipocondríaco Este último é um exemplo do abuso da reflexão mórbida O I Ging não se recomenda à base de demonstrações e resultados positivos não faz alarde de si nem vem espontaneamente ao nosso encontro Qual uma obra da natureza espera que alguém o descubra Não oferece conhecimentos e habilitações mas parece ser o livro certo para os que amam o autoconhecimento e a sabedoria no tocante ao pensar e ao agir se é que existem Ele nada promete por isso não precisa sustentar coisa alguma e em hipótese alguma é culpado de que alguém chegue a conclusões erradas O método deve ser manipulado com certa inteligência A estupidez como se sabe não é uma arte 973 Suponhamos então que não sejam absurdas as coisas contidas no livro nem mera autossugestão e interpretação dada pelo consultante mesmo assim o espírito ocidental formado na filosofia e nas ciências da natureza vêse obrigado a encarar o fato desagradável de que uma situação psicológica pode acharse expressa na divisão fortuita das quarenta e nove varinhas de milefólio ou na queda igualmente fortuita ou mais fortuita ainda das moedas e isto de tal modo que se distingue até mesmo uma relação de sentido Esta coerência é inesperada para a mentalidade ocidental que tem hábitos de pensar inteiramente diversos Por isto entendese perfeitamente que nosso espírito rejeite tais coisas como se fossem inteiramente impossíveis Em caso de evidência ainda se poderia pensar que um profundo conhecedor dos hexagramas pegasse as varinhas inconscientemente com tanta destreza que elas se distribuíssem de maneira correspondente Ora no oráculo das moedas falta esta possibilidade tenuíssima pois aqui são tantas as condições externas qualidade da superfície em que são jogadas o rolar das moedas etc que entram em jogo que uma tendência psíquica pelo menos segundo nossa maneira de pensar não conseguiria se impor Se alguma coisa no método dá certo então é forçoso admitir que existe um paralelismo insólito entre o evento psíquico e o evento físico Esta conclusão é shocking chocante mas não de todo nova pois constitui a única hipótese plausível da Astrologia e de modo particular da moderna horoscopia embora esta última esteja voltada mais para o tempo em si mesmo do que para a posição momentânea dos astros pois o tempo é também determinado e medido com instrumentos da Física Se a leitura do caráter pela horoscopia em geral fosse exata e há alguma probabilidade em seu favor ela não seria mais admirável do que a capacidade de um bom conhecedor de vinho que baseado na qualidade deste determina com segurança qual a região a situação local vinhedo e o ano da produção do mesmo coisa que à primeira vista parece duvidosa para um não conhecedor Ora um bom astrólogo pode dizerme em cima da buxa os signos do zodíaco em que o sol e a lua se achavam no dia de meu nascimento e qual é o meu ascendente Por conseguinte o paralelismo psicofísico que seria preciso admitir como base do oráculo do I Ging representaria um outro aspecto do processo que se deve pôr à base da astrologia se atribuirse alguma significação à leitura do caráter pela astrologia Não há dúvida de que é grande o número de pessoas que se ocupam com a astrologia como também são indivíduos de índole comprovadamente reflexiva e interessados por coisas de psicologia que extraem desta ocupação múltiplas espécies de conhecimento Aqui também é evidente a possibilidade de abusos 974 Eu estaria exorbitando os limites de minha competência científica se quisesse responder aqui à questão abordada Só posso afirmar que todos os que consultam o mencionado oráculo agem como se houvesse de fato um paralelismo entre o evento exterior e o interior entre o psíquico e o físico e que mesmo não conferindo qualquer significado ao resultado de sua consulta declaramse a favor de uma tal possibilidade Minha atitude diante de tais fatos é pragmática e a psicoterapia e a psicologia médica foram as grandes mestras que me ensinaram este comportamento prático e útil Em parte alguma se deve esperar algo de mais desconhecido do que neste setor e em domínio algum nos habituamos a empregar o que é mais atuante sem perceber às vezes quais são as razões pelas quais esse fator atua Assistimos a curas inesperadas obtidas com terapias duvidosas e a fracassos inesperados mediante métodos pretensamente seguros Quem se dedica à pesquisa do inconsciente depara com coisas insólitas que um racionalista evita com horror afirmando depois nada ter visto O lado irracional da vida ensinou me a não rejeitar o que quer que seja mesmo que isto vá de encontro a todas as nossas teorias aliás de vida tão curta ou pareça por outro lado momentaneamente inexplicável Isto nos deixa inquietos não temos plena certeza de que a bússola esteja apontando na direção verdadeira mas não é na segurança na certeza e na tranquilidade que se fazem descobertas O mesmo acontece com este método chinês de adivinhação Aquilo a que ele visa evidentemente é o autoconhecimento ainda que em todos os tempos tenha sido usado paralelamente de forma supersticiosa Só os indivíduos estúpidos e inferiores acham que o autoconhecimento é prejudicial Ninguém os abalará nesta convicção Mas pessoas mais inteligentes podem jogar tranquilamente com a possibilidade de colher algumas experiências talvez ricas de ensinamento por meio deste método 975 O método em si é simples e fácil A dificuldade porém começa como já disse com a apreciação dos resultados Antes de mais nada não é nada fácil compreender a simbologia dessa obra mesmo com o apoio dos excelentes comentários de Wilhelm Quanto mais conhecimentos de psicologia do inconsciente o leitor possuir tanto mais fácil se tornará seu trabalho Mas uma dificuldade diferente e mais decisiva consiste na ignorância generalizada da própria sombra isto é do aspecto inferior da própria personalidade que é constituída em grande parte de complexos reprimidos Acontece muitas vezes que a personalidade consciente se volta com todas as suas forças contra tais conteúdos descarregandoos sob a forma de projeções sobre os seus semelhantes Só vemos perfeitamente o argueiro que está no olho do nosso irmão e não enxergamos a trave que está no nosso próprio olho O fato de muitas vezes sermos acometidos por uma cegueira sistemática em relação aos nossos próprios defeitos revelase extremamente prejudicial dificultando o estudo e a compreensão do I Ging Poderseia quase dizer que aquele que depois de usar o método numerosas vezes afirmar não ter encontrado nele nada de compreensível sofre com toda a probabilidade de elevado grau de cegueira Talvez valesse a pena escrever um comentário sob o ponto de vista da moderna psicologia a respeito de cada um dos sinais tal como Confúcio o fez em seu tempo Mas este trabalho exigiria um espaço quatro vezes maior do que o de um simples prefácio como este e seria uma tarefa sumamente pretensiosa Por este motivo tive de decidirme por outra maneira de proceder Referências I Ging Siehe Wilhelm RHINE JB The Reach of the Mind Londres e Nova York 1948 Sacred Books of the East 50 vols Oxford 18791910 Ed Max Müller WILHELM R I Ging Das Buch der Wandlungen Aus dem Chinesischen verdeutscht und erläutert von R W Jena 1923 und Neuausgaben Fonte OC 115 964975 1 Escrito em 1948 para a versão inglesa de I Ging O Livro das Transformações aparecido em 1950 Traduzido por Mrs CF Baynes A tradução inglesa deste prefácio se diferencia amplamente da presente versão que é a original Por isso a numeração dos parágrafos neste trabalho nem sempre coincide com a da edição inglesa Convém observar também que o título desta obra tem sido grafado de diversas maneiras I Ging pronúncia i Idingi como no presente prefácio IChing Yi King IKing Y King etc Na tradução deste prefácio conservamos a forma do original alemão NT 1a Existe uma tradução brasileira da análise e da versão inglesa de John Blofeld sob o título de I Ching O Livro das Transformações 2 ed Rio de JaneiroSão Paulo Record 1971 NT 2 Legge faz a seguinte observação a respeito dos textos que explicam cada linha dos hexagramas According to our notions a framer of emblems should be a good deal of a poet but those of the Yi only make us think of a dryasdust Out of more than 350 the greater number are only grotesque Sacred Books of the EastVol XVI p 22 Este mesmo autor diz falando das lessons dos hexagramas But why it may be asked why should they be conveyed to us by such an array of lineal figures and in such a farrago of emblematic representations Ibid p 25 Mas não encontramos qualquer passagem em que Legge demonstre ter experimentado praticamente o método 3 As varinhas são de Ptarmica Sibirica que Legge ainda viu crescer sobre o túmulo de Confúcio 4 Os trabalhos de JB Rhines poderiam ser de grande utilidade neste ponto Cf ExtraSensory Perception Boston se 1934 e New Frontiers of the Mind Nova York se 1937 V REALIDADE E TRANSCENDÊNCIA DA PSIQUE O passo que conduz a uma consciência mais alta deixanos sem qualquer segurança com a retaguarda desguarnecida OC 13 25 Deus quer vir a ser na chama cada vez mais intensa da consciência humana Cartas 1 O real e o suprarreal 742 Não conheço nada a respeito de uma suprarrealidade A realidade contém tudo o que podemos saber pois aquilo que age que atua é real Se não age não podemos nos dar conta de sua presença e por conseguinte não conhecemos nada a seu respeito Por isto eu só posso falar de coisas reais e nunca de coisas irreais suprarreais ou subreais a menos que alguém naturalmente tivesse a ideia de limitar o conceito de realidade de tal maneira que o atributo real só se aplicasse a um determinado segmento da realidade Esta limitação à chamada realidade material ou concreta dos objetos percebidos pelos sentidos é um produto do modo de pensar subjacente ao chamado senso comum e à linguagem ordinária Este modo de pensar procede em conformidade com o célebre princípio Nihil est in intellectu quod non antea fuerit in sensu nada existe no intelecto que antes não tenha passado pelos sentidos e isto a despeito do fato de haver uma imensidade de coisas na mente que não derivam dos dados dos sentidos Sob este aspecto é real tudo o que provém ou pelo menos parece provir direta ou indiretamente do mundo revelado pelos sentidos 743 Esta limitação da imagem do mundo é reflexo da unilateralidade do homem ocidental da qual muitas vezes se tem inculpado mas injustamente o espírito grego A limitação do conhecimento à realidade material arranca um pedaço excessivamente grande ainda que fragmentário da realidade total substituindoo por uma zona de penumbra que poderíamos chamar de irreal ou suprarreal A visão oriental do mundo desconhece esta perspectiva por demais estreita e por isto não tem necessidade de uma suprarrealidade filosófica Nossa realidade arbitrariamente circunscrita achase continuamente ameaçada pelo suprassensível pelo supranatural pelo suprahumano e outras coisas semelhantes A realidade oriental evidentemente inclui tudo isto Entre nós a zona de perturbação começa já com o conceito de psíquico Em nossa realidade o psíquico não pode exprimir senão um efeito de terceira mão produzido originariamente por causas físicas uma secreção do cérebro ou alguma outra coisa igualmente saborosa Ao mesmo tempo atribuise a este apêndice do mundo material a capacidade de superar e conhecer não só os mistérios do mundo físico mas também a si próprio sob a forma de mente e tudo isto sem que lhe seja reconhecida apenas como uma realidade indireta 744 O pensamento é real Provavelmente segundo este modo de pensar na medida em que se refere a algo que pode ser percebido pelos sentidos Se não puder será considerado irreal imaginário e fantástico e deste modo declarado como não existente Isto acontece praticamente de maneira incessante embora seja uma monstruosidade filosófica O pensamento existiu e existe mesmo que não se refira a uma realidade palpável e produz inclusive efeitos exteriores pois do contrário ninguém o perceberia Mas como a palavra existe se refere segundo o nosso modo de pensar a algo de material o pensamento irreal devese contentar com a existência de uma suprarrealidade nebulosa que equivale praticamente à irrealidade E no entanto o pensamento tem deixado indícios indubitáveis atrás de si talvez tenhamos especulado com eles e com isto aberto um doloroso rombo em nossa conta bancária mental 745 Nosso conceito prático de realidade parece portanto que precisa de revisão e tanto é assim que a literatura comum e diária começa a incluir os conceitos de super e supra em seu horizonte mental Estou de pleno acordo com isto porque nossa imagem do mundo contém alguma coisa que não está inteiramente certa ou seja na teoria nos recordamos muito pouco e na prática por assim dizer quase nunca de que a consciência não tem uma relação direta com qualquer objeto material Percebemos apenas as imagens que nos são transmitidas indiretamente através de um aparato nervoso complicado Entre os terminais dos nervos dos órgãos dos sentidos e a imagem que aparece na consciência se intercala um processo inconsciente que transforma o fato psíquico da luz por exemplo em uma luzimagem Sem este complicado processo inconsciente de transformação a consciência é incapaz de perceber qualquer coisa material 746 A consequência disto é que aquilo que nos parece como uma realidade imediata consiste em imagens cuidadosamente elaboradas e que por conseguinte nós só vivemos diretamente em um mundo de imagens Para determinar ainda que só aproximadamente a natureza real das coisas materiais precisamos da aparelhagem e dos métodos complicados da Física e da Química Com efeito estas disciplinas são instrumentos que ajudam o intelecto humano a ver um pouco a realidade não física por trás dos véus enganosos do mundo das imagens 747 Longe portanto de ser um mundo material esta realidade é um mundo psíquico que só nos permite tirar conclusões indiretas e hipotéticas acerca da verdadeira natureza da matéria Só o psíquico possui uma realidade imediata que abrange todas as formas do psíquico inclusive as ideias e os pensamentos irreais que não se referem a nada de exterior Podemos chamálas de imaginação ou ilusão isto não lhes tira nada de sua realidade De fato não existe nenhum pensamento real que às vezes não possa ser posto de lado por um pensamento irreal que assim mostrase mais poderoso e mais eficiente do que o primeiro Maiores do que todos os perigos físicos são os efeitos tremendos das ideias ilusórias às quais nossa consciência mundana nega qualquer realidade Nossa tão decantada razão e nossa vontade desmedidamente superestimada às vezes são impotentes diante do pensamento irreal As potências cósmicas que regem os destinos de toda a humanidade tanto para o bem como para o mal são fatores psíquicos inconscientes e são elas também que produzem a consciência criando assim a conditio sine qua non para a existência de um mundo em geral Nós somos subjugados por um mundo que foi criado por nossa psique 748 Isto nos permite julgar as proporções do erro que nossa consciência ocidental comete ao atribuir apenas uma realidade derivada de causas materiais O Oriente é mais sábio porque encontra a essência de todas as coisas fundadas na psique A realidade do psíquico isto é a realidade psíquica aquela única realidade que podemos experimentar diretamente achase entre as essências desconhecidas do espírito e da matéria Fonte OC 82 742748 Publicado em Querschnitt Vol XII 1933 Sobre a sincronicidade 1 959 Talvez fosse indicado começar minha exposição definindo o conceito do qual ela trata Mas eu gostaria mais de seguir o caminho inverso e vos dar primeiramente uma breve descrição dos fatos que devem ser entendidos sob a noção de sincronicidade Como nos mostra sua etimologia esse termo tem alguma coisa a ver com o tempo ou para sermos mais exatos com uma espécie de simultaneidade Em vez de simultaneidade poderíamos usar também o conceito de coincidência significativa de dois ou mais acontecimentos em que se trata de algo mais do que uma probabilidade de acasos Casual é a ocorrência estatística isto é provável de acontecimentos como a duplicação de casos por exemplo conhecida nos hospitais Grupos desta espécie podem ser constituídos de qualquer número de membros sem sair do âmbito da probabilidade e do racionalmente possível Assim pode ocorrer que alguém casualmente tenha a sua atenção despertada pelo número do bilhete do metrô ou do trem Chegando a casa ele recebe um telefonema e a pessoa do outro lado da linha diz um número igual ao do bilhete À noite ele compra um bilhete de entrada para o teatro contendo esse mesmo número Os três acontecimentos formam um grupo casual que embora não seja frequente não excede os limites da probabilidade Eu gostaria de vos falar do seguinte grupo casual tomado de minha experiência pessoal e constituído de não menos de seis termos 960 Na manhã do dia primeiro de abril de 1949 eu transcrevera uma inscrição referente a uma figura que era metade homem metade peixe No almoço houve peixe Alguém nos lembrou o costume do Peixe de Abril primeiro de abril De tarde uma antiga paciente minha que eu já não via por vários meses mostroume algumas figuras impressionantes de peixe À noite alguém me mostrou uma peça de bordado representando um monstro marinho Na manhã seguinte bem cedo eu vi outra antiga paciente que veio me visitar pela primeira vez depois de dez anos Na noite anterior ela sonhara com um grande peixe Alguns meses depois ao empregar esta série em um trabalho maior e tendo encerrado justamente a sua redação eu me dirigi a um local à beira do lago em frente à minha casa onde já estivera diversas vezes naquela mesma manhã Desta vez encontrei um peixe morto mais ou menos de um pé de comprimento cerca de 30cm sobre a amurada do lago Como ninguém pôde estar lá não tenho ideia de como o peixe foi parar ali 961 Quando as coincidências se acumulam desta forma é impossível que não fiquemos impressionados com isto pois quanto maior é o número dos termos de uma série desta espécie e quanto mais extraordinário é o seu caráter tanto menos provável ela se torna Por certas razões que mencionei em outra parte e que não quero discutir aqui admito que se trate de um grupo casual Mas também devo reconhecer que é mais improvável do que por exemplo uma mera duplicação 962 No caso do bilhete do metrô acima mencionado eu disse que o observador percebeu casualmente o número e o gravou na memória o que ordinariamente ele jamais fazia Isto nos forneceu os elementos para concluir que se trata de uma série de acasos mas ignoro o que o levou a fixar a sua atenção nos números Pareceme que um fator de incerteza entra no julgamento de uma série desta natureza e reclama certa atenção Observei coisa semelhante em outros casos sem contudo ser capaz de tirar as conclusões que mereçam fé Entretanto às vezes é difícil evitar a impressão de que há uma espécie de precognição de acontecimentos futuros Este sentimento se torna irresistível nos casos em que como acontece mais ou menos frequentemente temos a impressão de nos encontrar com um velho conhecido mas para nosso desapontamento logo verificamos que se trata de um estranho Então vamos até a esquina próxima e topamos com o próprio em pessoa Casos desta natureza acontecem de todas as formas possíveis e com bastante frequência mas geralmente bem depressa nos esquecemos deles passados os primeiros momentos de espanto 963 Ora quanto mais se acumulam os detalhes previstos de um acontecimento tanto mais clara é a impressão de que há uma precognição e por isto tanto mais improvável se torna o acaso Lembrome da história de um amigo estudante ao qual o pai prometera uma viagem à Espanha se passasse satisfatoriamente nos exames finais Este meu amigo sonhou então que estava andando em uma cidade espanhola A rua conduzia a uma praça onde havia uma catedral gótica Assim que chegou lá dobrou a esquina à direita entrando noutra rua Aí ele encontrou uma carruagem elegante puxada por dois cavalos baios Nesse momento ele despertou Contounos ele o sonho enquanto estávamos sentados em torno de uma mesa de bar Pouco depois tendo sido bemsucedido nos exames viajou à Espanha e aí em uma das ruas reconheceu a cidade de seu sonho Encontrou a praça e viu a igreja que correspondia exatamente à imagem que vira no sonho Primeiramente ele queria ir diretamente à igreja mas se lembrou de que no sonho ele dobrava a esquina à direita entrando noutra rua Estava curioso por verificar se seu sonho seria confirmado outra vez Mal tinha dobrado a esquina quando viu na realidade a carruagem com os dois cavalos baios 964 O sentimento do déjàvu sensação do já visto baseiase como tive oportunidade de verificar em numerosos casos em uma precognição do sonho mas vimos que esta precognição ocorre também no estado de vigília Nestes casos o puro acaso se torna extremamente improvável porque a coincidência é conhecida de antemão Deste modo ela perde seu caráter casual não só psicológica e subjetivamente mas também objetivamente porque a acumulação dos detalhes coincidentes aumenta desmedidamente a improbabilidade Dariex e Flammarion calcularam as probabilidades de 14 milhões a 1800 milhões para mortes corretamente previstas Por isto em tais casos seria inadequado falar de acasos Do contrário tratase de coincidências significativas Comumente os casos deste gênero são explicados pela precognição isto é pelo conhecimento prévio Também se fala de clarividência de telepatia etc sem contudo saberse explicar em que consistem estas faculdades ou que meio de transmissão elas empregam para tornar acontecimentos distantes no espaço e no tempo acessíveis à nossa percepção Todas estas ideias são meros nomina nomes não são conceitos científicos que possam ser considerados como afirmações de princípio Até hoje ninguém conseguiu construir uma ponte causal entre os elementos constitutivos de uma coincidência significativa 965 Coube a JB Rhine o grande mérito de haver estabelecido bases confiáveis para o trabalho no vasto campo destes fenômenos com seus experimentos sobre a ESP extrasensoryperception Ele usou um baralho de vinte e cinco cartas divididas em cinco grupos de cinco cada um dos quais com um desenho próprio estrela retângulo círculo cruz duas linhas onduladas A experiência era efetuada da seguinte maneira em cada série de experimentos retiravamse aleatoriamente as cartas do baralho 800 vezes seguidas mas de modo que o sujeito ou pessoa testada não pudesse ver as cartas que iam sendo retiradas Sua tarefa era adivinhar o desenho de cada uma das cartas retiradas A probabilidade de acerto é de 15 O resultado médio obtido com um número muito grande de cartas foi de 65 acertos A probabilidade de um desvio casual de 15 é só de 1250000 Alguns indivíduos alcançaram o dobro ou mais de acertos Uma vez todas as 25 cartas foram adivinhadas corretamente em nova série o que dá uma probabilidade de 1289023223876953125 A distância espacial entre o experimentador e a pessoa testada foi aumentada de uns poucos metros até 4000 léguas sem afetar o resultado 966 Uma segunda forma de experimentação consistia no seguinte mandavase o sujeito adivinhar previamente a carta que iria ser retirada no futuro próximo ou distante A distância no tempo foi aumentada de alguns minutos até duas semanas O resultado desta experiência apresentou uma probabilidade de 1400000 967 Numa terceira forma de experimentação o sujeito deveria procurar influenciar a movimentação de dados lançados por um mecanismo escolhendo um determinado número Os resultados deste experimento dito psicocinético PK de psychokinesis foram tanto mais positivos quanto maior era o número de dados que se usavam de cada vez 968 O experimento espacial mostra com bastante certeza que a psique pode eliminar o fator espaço até certo ponto A experimentação com o tempo nos mostra que o fator tempo pelo menos na dimensão do futuro pode ser relativizado psiquicamente A experimentação com os dados nos indica que os corpos em movimento podem ser influenciados também psiquicamente como se pode prever a partir da relatividade psíquica do espaço e do tempo 969 O postulado da energia é inaplicável no experimento de Rhine Isto exclui a ideia de transmissão de força Também não se aplica a lei da causalidade circunstância esta que eu indicara há trinta anos Com efeito é impossível imaginar como um acontecimento futuro seja capaz de influir num outro acontecimento já no presente Como atualmente é impossível qualquer explicação causal forçoso é admitir a título provisório que houve acasos improváveis ou coincidências significativas de natureza acausal 970 Uma das condições deste resultado notável que é preciso levar em conta é o fato descoberto por Rhine as primeiras séries de experiência apresentam sempre resultados melhores do que as posteriores A diminuição dos números de acerto está ligada às disposições do sujeito da experimentação As disposições iniciais de um sujeito crente e otimista ocasionam bons resultados O ceticismo e a resistência produzem o contrário isto é criam disposições desfavoráveis no sujeito Como o ponto de vista energético é praticamente inaplicável nestes experimentos a única importância do fator afetivo reside no fato de ele ser uma das condições com base nas quais o fenômeno pode mas não deve acontecer Contudo de acordo com os resultados obtidos por Rhine podemos esperar 65 acertos em vez de apenas 5 Todavia é impossível prever quando haverá acerto Se isto fosse possível estaríamos diante de uma lei o que contraria totalmente a natureza do fenômeno que tem as características de um acaso improvável cuja frequência é mais ou menos provável e geralmente depende de algum estado afetivo 971 Esta observação que foi sempre confirmada mostranos que o fator psíquico que modifica ou elimina os princípios da explicação física do mundo está ligado à afetividade do sujeito da experimentação Embora a fenomenologia do experimento da ESP e da PK possa enriquecerse notavelmente com outras experiências do tipo apresentado esquematicamente acima uma pesquisa mais profunda das bases teria necessariamente de se ocupar com a natureza da afetividade Por isto eu concentrei minha atenção sobre certas observações e experiências que posso muito bem dizêlo impuseramse com frequência no decurso de minha já longa atividade de médico Elas se referem a coincidências significativas espontâneas de alto grau de improbabilidade e que consequentemente parecem inacreditáveis Por isto eu gostaria de vos descrever um caso desta natureza para dar um exemplo que é característico de toda uma categoria de fenômenos Pouco importa se vos recusais a acreditar em um único caso ou se tendes uma explicação qualquer para ele Eu poderia também vos apresentar uma série de histórias como esta que em princípio não são mais estranhas ou menos dignas de crédito do que os resultados irrefutáveis de Rhine e não demoraríeis a ver que cada caso exige uma explicação própria Mas a explicação causal cientificamente possível fracassa por causa da relativização psíquica do espaço e do tempo que são duas condições absolutamente indispensáveis para que haja conexão entre a causa e o efeito 972 O exemplo que vos proponho é o de uma jovem paciente que se mostrava inacessível psicologicamente falando apesar das tentativas de parte a parte neste sentido A dificuldade residia no fato de ela pretender saber sempre melhor as coisas do que os outros Sua excelente formação lhe fornecia uma arma adequada para isto a saber um racionalismo cartesiano aguçadíssimo acompanhado de uma concepção geometricamente impecável da realidade Após algumas tentativas de atenuar o seu racionalismo com um pensamento mais humano tive de me limitar à esperança de que algo inesperado e irracional acontecesse algo que fosse capaz de despedaçar a retorta intelectual em que ela se encerrara Assim certo dia eu estava sentado diante dela de costas para a janela a fim de escutar a sua torrente de eloquência Na noite anterior ela havia tido um sonho impressionante no qual alguém lhe dava um escaravelho de ouro uma joia preciosa de presente Enquanto ela me contava o sonho eu ouvi que alguma coisa batia de leve na janela por trás de mim Volteime e vi que se tratava de um inseto alado de certo tamanho que se chocou com a vidraça pelo lado de fora evidentemente com a intenção de entrar no aposento escuro Isto me pareceu estranho Abri imediatamente a janela e apanhei o animalzinho em pleno voo no ar Era um escarabeídeo da espécie da Cetonia aurata o besouro rosa comum cuja cor verdedourada tornao muito semelhante a um escaravelho de ouro Estendilhe o besouro dizendolhe Está aqui o seu escaravelho Este acontecimento abriu a brecha desejada no seu racionalismo e com isto rompeuse o gelo de sua resistência intelectual O tratamento pôde então ser conduzido com êxito 973 Esta história destinase apenas a servir de paradigma para os casos inumeráveis de coincidência significativa observados não somente por mim mas por muitos outros e registrados parcialmente em grandes coleções Elas incluem tudo o que figura sob os nomes de clarividência telepatia etc desde a visão significativamente atestada do grande incêndio de Estocolmo tida por Swedenborg até os relatos mais recentes do marechal do ar Sir Victor Goddard a respeito do sonho de um oficial desconhecido que previra o desastre subsequente do avião de Goddard 974 Todos os fenômenos a que me referi podem ser agrupados em três categorias 1 Coincidência de um estado psíquico do observador com um acontecimento objetivo externo e simultâneo que corresponde ao estado ou conteúdo psíquico por exemplo o escaravelho onde não há nenhuma evidência de uma conexão causal entre o estado psíquico e o acontecimento externo e onde considerandose a relativização psíquica do espaço e do tempo acima constatada tal conexão é simplesmente inconcebível 2 Coincidência de um estado psíquico com um acontecimento exterior correspondente mais ou menos simultâneo que tem lugar fora do campo de percepção do observador ou seja especialmente distante e só se pode verificar posteriormente como por exemplo o incêndio de Estocolmo 3 Coincidência de um estado psíquico com um acontecimento futuro portanto distante no tempo e ainda não presente e que só pode ser verificado também posteriormente 975 Nos casos dois e três os acontecimentos coincidentes ainda não estão presentes no campo de percepção do observador mas foram antecipados no tempo na medida em que só podem ser verificados posteriormente Por este motivo digo que semelhantes acontecimentos são sincronísticos o que não deve ser confundido com sincrônicos 976 Esta visão de conjunto deste vasto campo de observação seria incompleta se não considerássemos aqui também os chamados métodos mânticos O manticismo tem a pretensão senão de produzir realmente acontecimentos sincronísticos pelo menos de fazêlos servir a seus objetivos Um exemplo bem ilustrativo neste sentido é o método oracular do I Ging que o Dr Helmut Wilhelm descreveu detalhadamente neste encontro O I Ging pressupõe que há uma correspondência sincronística entre o estado psíquico do interrogador e o hexagrama que responde O hexagrama é formado seja pela divisão puramente aleatória de 49 varinhas de milefólio seja pelo lançamento igualmente aleatório de três moedas O resultado deste método é incontestavelmente muito interessante mas até onde posso ver não proporciona um instrumento adequado para uma determinação objetiva dos fatos isto é para avaliação estatística porque o estado psíquico em questão é demasiadamente indeterminado e indefinível O mesmo se pode dizer do experimento geomântico que se baseia sobre princípios similares Fonte OC 83 959976 1 Publicado pela primeira vez no EranosJahrbuch XX 1951 Tratavase originariamente de uma conferência que o autor pronunciou perante o Círculo Eranos de 1951 em Ascona na Suíça A alma e a morte 796 Muitas vezes me tem sido perguntado o que é que eu penso a respeito da morte desse fim não problemático da existência humana individual A morte nos é conhecida simplesmente como um fim e nada mais E o pontofinal que se coloca muitas vezes antes mesmo de encerrarse o período e depois dela só existem recordações e efeitos subsequentes nos outros Mas para o interessado a areia escoouse na ampulheta a pedra que rolava chegou ao estado de repouso Em confronto com a morte a vida nos parece sempre como um fluir constante como a marcha de um relógio a que se deu corda e cuja parada afinal é automaticamente esperada Nunca estamos tão convencidos desta marcha inexorável do que quando vemos uma vida humana chegar ao fim e nunca a questão do sentido e do valor da vida se torna mais premente e mais dolorosa do que quando vemos o último alento abandonar um corpo que ainda há pouco vivia Quão diferente nos parece o significado da vida quando vemos um jovem a lutar por objetivos distantes e a construir um futuro em comparação com um doente incurável ou um ancião que descem relutantes e impotentes à sepultura A juventude tem aparentemente um objetivo um futuro um significado e um valor enquanto a marcha para um fim é apenas uma cessação sem sentido Se alguém tem medo do mundo da vida e do futuro todos consideram isto como lamentável irracional e neurótico o jovem é visto como um poltrão covarde Mas se o homem que envelhece sente um pavor secreto ou mesmo um temor mortal ao pensamento de que suas expectativas razoáveis de vida agora são apenas de tantos e tantos anos então nos lembramos penosamente de certos sentimentos que trazemos dentro de nosso próprio peito desviamos talvez o olhar para outro lado e encaminhamos a conversa para outro assunto O otimismo com que julgamos a juventude fracassa nessa hora Temos naturalmente um repertório de conceitos apropriados a respeito da vida que ocasionalmente ministramos aos outros tais como Todo mundo um dia vai morrer ninguém é eterno etc mas quando estamos sozinhos e é noite e a escuridão e o silêncio são tão densos que não escutamos e não vemos senão os pensamentos que somam e subtraem os anos da vida e a longa série daqueles fatos desagradáveis que impiedosamente nos mostram até onde os ponteiros do relógio já chegaram e a aproximação lenta e irresistível do muro de trevas que finalmente tragarão tudo o que eu amo desejo possuo espero e procuro então toda a nossa sabedoria de vida se esgueirará para um esconderijo impossível de descobrir e o medo envolverá o insone como um cobertor sufocante 797 Assim como existe um grande número de jovens que no fundo tem um medo assustador da vida que eles ao mesmo tempo desejam ardentemente também existe um número talvez ainda maior de pessoas idosas que tem o mesmo medo em relação à morte Tenho observado que aqueles que mais temem a vida quando jovens são justamente os que mais têm medo da morte quando envelhecem Quando são jovens dizemos que eles opõem uma resistência infantil as exigências normais da vida mas deveríamos dizer a mesma coisa quando são velhos ou seja que eles têm medo também das exigências normais da vida mas estamos tão convencidos de que a morte não é senão o fim de um processo que ordinariamente não nos ocorre conceber a morte como uma meta e uma consumação como o fazemos sem hesitação com respeito aos objetivos e às intenções da vida jovem em ascensão 798 A vida é um processo energético como qualquer outro mas em princípio todo processo energético é irreversível e por isto é orientado univocamente para um objetivo E este objetivo é o estado de repouso No fundo todo processo nada mais é do que por assim dizer a perturbação inicial de um estado de repouso perpétuo que procura restabelecerse sempre A vida é teleológica par excellence é a própria persecução de um determinado fim e o organismo nada mais é do que um sistema de objetivos prefixados que se procura alcançar O termo de cada processo é o seu objetivo Todo processo energético se assemelha a um corredor que procura alcançar sua meta com o máximo esforço e o maior dispêndio possível de forças A ânsia do jovem pelo mundo e pela vida o desejo de consumar altas esperanças e objetivos distantes constituem o impulso teleológico manifesto da vida que se converte em medo da vida em resistências neuróticas depressões e fobias se fica preso ao passado sob algum aspecto ou recua diante de certos riscos sem os quais não se podem atingir as metas prefixadas Mas o impulso teleológico da vida não cessa quando se atinge o amadurecimento e o zênite da vida biológica A vida desce agora montanha abaixo com a mesma intensidade e a mesma irresistibilidade com que a subia antes da meiaidade porque a meta não está no cume mas no vale onde a subida começou A curva da vida é como a parábola de um projétil que retorna ao estado de repouso depois de ter sido perturbado no seu estado de repouso inicial 799 A curva psicológica da vida entretanto recusase a se conformar com estas leis da natureza A discordância às vezes começa já antes na subida Biologicamente o projétil sobe mas psicologicamente retarda Ficamos parados por trás de nossos anos agarrados à nossa infância como se não pudéssemos nos arrancar do chão Paramos os ponteiros do relógio e imaginamos que o tempo se deteve Se alcançamos finalmente o cume mesmo com algum atraso psicologicamente nos sentamos aí para descansar e embora nos sintamos deslizar montanha abaixo agarramonos ainda que somente com olhares nostálgicos ao pico que outrora alcançamos o medo que antigamente nos paralisava diante da vida agora nos paralisa diante da morte E embora admitamos que foi o medo da vida que retardou nossa subida contudo exigimos maior direito ainda de nos determos no cume que acabamos de galgar justamente por causa desse atraso Embora se torne evidente que a vida se afirmou apesar de todas as nossas resistências agora profundamente lamentadas não levamos este fato em conta e tentamos deter o curso da vida Com isto nossa psicologia perde a sua base natural Nossa consciência paira suspensa no ar enquanto embaixo a parábola da vida desce cada vez mais rapidamente 800 A vida natural é o solo em que se nutre a alma Quem não consegue acompanhar essa vida permanece enrijecido e parado em pleno ar É por isto que muitas pessoas se petrificam na idade madura olham para trás e se agarram ao passado com um medo secreto da morte no coração Subtraemse ao processo vital pelo menos psicologicamente e por isto ficam paradas como colunas nostálgicas com recordações muito vívidas do seu tempo de juventude mas sem nenhuma relação vital com o presente Do meio da vida em diante só aquele que se dispõe a morrer conserva a vitalidade porque na hora secreta do meiodia da vida se inverte a parábola e nasce a morte A segunda metade da vida não significa subida expansão crescimento exuberância mas morte porque o seu alvo é o seu término A recusa em aceitar a plenitude da vida equivale a não aceitar o seu fim Tanto uma coisa como a outra significam não querer viver E não querer viver é sinônimo de não querer morrer A ascensão e o declínio formam uma só curva 801 Sempre que possível nossa consciência recusase a aceitar esta verdade inegável Ordinariamente nos apegamos ao nosso passado e ficamos presos à ilusão de nossa juventude A velhice é sumamente impopular Parece que ninguém considera que a incapacidade de envelhecer é tão absurda quanto a incapacidade de abandonar os sapatos de criança que traz nos pés O homem de trinta anos ainda com espírito infantil é certamente digno de lástima mas um septuagenário jovem não é delicioso E no entanto ambos são pervertidos desprovidos de estilo verdadeiras monstruosidades psicológicas Um jovem que não luta nem triunfa perdeu o melhor de sua juventude e um velho que não sabe escutar os segredos dos riachos que descem dos cumes das montanhas para os vales não tem sentido é uma múmia espiritual e não passa de uma relíquia petrificada do passado Está situado à margem da vida repetindose mecanicamente até à última banalidade Pobre cultura aquela que necessita de tais fantasmas 802 Nossa longevidade comprovada pelas estatísticas atuais é um produto da civilização Entre os primitivos só excepcionalmente se chega a uma idade avançada Assim quando visitei as tribos primitivas da África Oriental vi pouquíssimos homens de cabelos brancos que poderiam ter estimativamente mais de sessenta anos Mas eram realmente velhos e parecia que tinham sido sempre velhos tão plenamente se haviam identificado com sua idade avançada Eram exatamente o que eram sob todos os aspectos ao passo que nós somos sempre apenas mais ou menos aquilo que realmente somos É como se nossa consciência tivesse deslizado um pouco de suas bases naturais e não soubesse mais como se orientar pelo tempo natural Dir seia que sofremos de uma hybris da consciência que nos induz a acreditar que o tempo de nossa vida é mera ilusão que pode ser alterada a nosso bel prazer Perguntase de onde a consciência tira a sua capacidade de ser tão contrária à natureza e o que pode significar tal arbitrariedade 803 Da mesma forma que a trajetória de um projétil termina quando ele atinge o alvo assim também a vida termina na morte que é portanto o alvo para o qual tende a vida inteira Mesmo sua ascensão e seu zênite são apenas etapas e meios através dos quais se alcança o alvo que é a morte Esta fórmula paradoxal nada mais é do que a conclusão lógica do fato de que nossa vida é teleológica e determinada por um objetivo Não acredito que eu seja culpado de estar brincando aqui com silogismos Se atribuímos uma finalidade e um sentido à ascensão da vida por que não atribuímos também ao seu declínio Se o nascimento do homem é prenhe de significação por que é que a sua morte também não o é O jovem é preparado durante vinte anos ou mais para a plena expansão de sua existência individual Por que não deve ser preparado também durante vinte anos ou mais para o seu fim Por certo com o zênite a pessoa alcança obviamente este fim é este fim e o possui O que se alcança com a morte 804 No momento em que talvez se poderia esperar eu não gostaria de tirar uma fé subitamente de meu bolso e convidar meus leitores a fazer justamente aquilo que ninguém pode fazer isto é a acreditar em alguma coisa Devo confessar que eu também jamais poderia fazêlo Por isto certamente eu não afirmarei agora que é preciso crer que a morte é um segundo nascimento que nos leva a uma sobrevida no além Mas posso pelo menos mencionar que o consensus gentium consenso universal tem concepções claras sobre a morte que se acham expressas de maneira inequívoca nas grandes religiões do mundo Podese mesmo afirmar que a maioria destas religiões é um complicado sistema de preparações para a morte de tal modo que a vida de acordo com a minha fórmula paradoxal acima expressa realmente nada mais é do que uma preparação para o fim derradeiro que é a morte Para as duas maiores religiões vivas o cristianismo e o budismo o significado da existência se consuma com o seu término 805 Desde a época do Iluminismo desenvolveuse uma opinião a respeito da natureza da religião que embora seja uma concepção errada tipicamente racionalista merece ser mencionada por causa de sua grande difusão De acordo com este ponto de vista todas as religiões constituem uma espécie de sistemas filosóficos forjados pela cabeça dos homens Um dia alguém inventou um Deus e outros dogmas e passou a zombar da humanidade com esta fantasia própria para satisfazer desejos Esta opinião é contraditada pelo fato psicológico de que a cabeça é um órgão inteiramente inadequado quando se trata de conceber símbolos religiosos Estes não provêm da cabeça mas de algum outro lugar talvez do coração certamente de alguma camada profunda da psique pouco semelhante à consciência que é sempre apenas uma camada superficial É por isto que os símbolos religiosos têm um pronunciado caráter de revelação e em geral são produtos espontâneos da atividade inconsciente da psique São tudo menos coisa imaginada Pelo contrário eles se desenvolveram progressivamente à semelhança de plantas como revelações naturais da psique humana no decurso dos séculos Ainda hoje podemos observar em certos indivíduos o aparecimento espontâneo de autênticos e genuínos símbolos religiosos que brotam do inconsciente quais flores de espécie estranha enquanto a consciência se mantém perplexa de lado sem saber realmente o que fazer com semelhantes criações Não é muito difícil constatar que esses símbolos individuais provêm tanto em seu conteúdo quanto em sua forma do mesmo espírito inconsciente ou que outro nome tenha que as grandes religiões da humanidade Em qualquer caso a experiência nos mostra que as religiões não são elaborações conscientes mas provêm da vida natural da psique inconsciente dandolhe adequada expressão Isso explica a sua disseminação universal e sua imensa influência sobre a humanidade através da história Esta influência seria incompreensível se os símbolos religiosos não fossem ao menos verdades psicológicas naturais 806 Sei que muitas pessoas têm dificuldades com a palavra psicológico Para tranquilizar estes críticos eu gostaria portanto de acrescentar que ninguém sabe o que é a psique como ninguém sabe até onde a natureza da psique se estende Uma verdade psicológica é portanto uma coisa tão boa e respeitável quanto uma verdade física que se limita à matéria como aquela à psique 807 O consensus gentium que se expressa nas religiões está em consonância com a minha fórmula paradoxal acima referida Por isto parece me que considerar a morte como a realização plena do sentido da vida e sua verdadeira meta em vez de uma mera cessão sem sentido corresponde melhor à psique coletiva da humanidade Quem professa uma opinião racionalista a este respeito isolouse psicologicamente e está em oposição com sua própria natureza humana básica 808 Esta última frase contém uma verdade fundamental a respeito de todas as neuroses pois as perturbações nervosas consistem primariamente em uma alienação dos instintos em uma separação da consciência em relação a certos fatos fundamentais da psique por isto as opiniões racionalistas se aproximam inesperadamente dos sintomas neuróticos Como este elas consistem em um pensamento dissimulado que ocupa o lugar do pensamento psicologicamente correto Este último mantém sempre sua vinculação com o coração com as profundezas da alma com a raizmestra de nosso ser porque Iluminismo ou não iluminismo consciência ou não consciência a natureza nos prepara para a morte Se pudéssemos observar diretamente e registrar os pensamentos de um jovem caso ele tivesse tempo e vagar para sonhar em pleno dia descobriríamos ao lado de imagens da memória fantasias que se ocupam sobretudo com o futuro Realmente a maioria das fantasias é constituída de antecipações Em geral as fantasias são atos preparatórios ou mesmo exercícios psíquicos para lidar com certas realidades futuras Se pudéssemos fazer a mesma experiência com uma pessoa que envelhece naturalmente sem o seu conhecimento encontraríamos um número maior de imagens da memória do que no jovem por causa da tendência do idoso a olhar para trás mas em compensação encontraríamos também um número espantosamente grande de antecipações do futuro inclusive da morte Com o andar dos anos acumulamse assustadoramente os pensamentos sobre a morte O homem que envelhece quer queira quer não preparase para a morte Por isto eu penso que a própria natureza se prepara para o fim Objetivamente é indiferente saber o que a consciência individual pensa a respeito disto Subjetivamente porém há uma imensa diferença quanto a saber se a consciência acompanha passo a passo a psique ou se ela se apega a opiniões que o coração desconhece De fato é tão neurótico não se orientar na velhice para a morte como um fim quanto reprimir na juventude fantasias que se ocupam com o futuro 809 Na minha experiência bastante longa fiz uma série de observações com pessoas cuja atividade psíquica inconsciente eu pude seguir até imediatamente antes da morte Geralmente a aproximação do fim era indicada através daqueles símbolos que na vida normal denotavam mudanças no estado psicológico símbolos de renascimento tais como mudanças de localidade viagens e semelhantes Muitas vezes pude acompanhar até acima de um ano antes os indícios de aproximação da morte inclusive naqueles casos em que a situação externa não permitia tais pensamentos O processo tanatológico começara portanto muito antes da morte real Aliás observase isto frequentemente também na mudança peculiar de caráter que precede de muito a morte Globalmente falando eu me espantava de ver o pouco caso que a psique inconsciente fazia da morte Pareceria que a morte era alguma coisa relativamente sem importância ou talvez nossa psique não se preocupasse com o que eventualmente acontecia ao indivíduo Por isto parece que o inconsciente se interessa tanto mais por saber como se morre ou seja se a atitude da consciência está em conformidade ou não com o processo de morrer Assim uma vez tive de tratar de uma mulher de 62 anos ainda vigorosa e sofrivelmente inteligente Não era portanto por falta de dotes que ela se mostrava incapaz de compreender os próprios sonhos Infelizmente era por demais evidente que ela não queria entendêlos Seus sonhos eram muito claros mas também desagradáveis Ela metera na própria cabeça que era uma mãe perfeita para os filhos mas os filhos não partilhavam desta opinião e os seus próprios sonhos revelavam uma convicção bastante contrária Fui obrigado a interromper o tratamento depois de algumas semanas de esforços infrutíferos por ter sido convocado para o serviço militar era durante a guerra Entrementes a paciente foi acometida de um mal incurável que depois de alguns meses levoua a um estado agônico o qual a cada momento podia significar o fim Na maior parte do tempo ela se achava mergulhada numa espécie de delírio ou sonambulismo e nesta curiosa situação mental ela espontaneamente retomou o trabalho de análise antes interrompido Voltou a falar de seus sonhos e confessava a si própria tudo o que me havia negado antes com toda a obstinação possível e mais uma porção de outras coisas O trabalho de autoanálise se prolongava por várias horas ao dia durante seis semanas No final deste período ela havia se acalmado como uma paciente num tratamento normal e então morreu 810 Desta e de numerosas outras experiências do mesmo gênero devo concluir que nossa alma não é indiferente pelo menos ao morrer do indivíduo A tendência compulsiva que os moribundos frequentemente revelam de querer corrigir ainda tudo o que é errado deve apontar na mesma direção 811 Saber de que modo se deve afinal interpretar estas experiências é um problema que supera a competência de uma ciência empírica e ultrapassa nossas capacidades intelectuais pois para se chegar a uma conclusão é preciso que se tenha necessariamente também a experiência real da morte Este acontecimento infelizmente coloca o observador numa situação que lhe torna impossível transmitir uma informação objetiva de sua experiência e das conclusões daí resultantes 812 A consciência se move dentro de estreitos limites dentro do curto espaço de tempo entre seu começo e seu fim encurtado ainda mais em cerca de um terço por períodos de sono A vida do corpo dura um pouco mais começa sempre mais cedo e muitas vezes só cessa depois da consciência Começo e fim são aspectos inevitáveis de todos os processos Todavia se examinarmos de perto verificamos que é extremamente difícil indicar onde começa e onde termina um processo porque os acontecimentos e os processos os começos e os fins constituem no fundo um contínuo indivisível Distinguimos os processos uns dos outros com o fim de defini los e conhecêlos melhor mas no fundo sabemos que toda divisão é arbitrária e convencional Este procedimento não interfere no contínuo do processo mundano porque começo e fim são antes e acima de tudo necessidades do processo de conhecimento consciente Podemos certamente afirmar com bastante certeza que uma consciência individual chegou ao fim enquanto relacionada conosco Mas não é de todo certo se isto interrompe a continuidade do processo psíquico porque hoje em dia não se pode afirmar a ligação da psique com o cérebro com tanta certeza quanto há cinquenta anos Primeiro que tudo a Psicologia precisa ainda de digerir certos fatos parapsicológicos o que não fez até agora 813 Quer dizer parece que a psique inconsciente possui qualidades que projetam uma luz inteiramente singular sobre sua relação com o espaço e o tempo Refirome aos fenômenos telepáticos espaciais e temporais que como sabemos é mais fácil ignorar do que explicar Sob este aspecto a ciência até agora escolheu com bem poucas exceções o caminho mais cômodo que é o de ignorálos Devo porém confessar que as chamadas capacidades telepáticas me causaram muita dor de cabeça porque a palavra chave telepatia longe está de explicar o que quer que seja A limitação da consciência no tempo e no espaço é uma realidade tão avassaladora que qualquer desvio desta verdade fundamental é um acontecimento da mais alta significação teórica pois provaria que a limitação no tempo e no espaço é uma determinante que pode ser anulada O fator anulador seria a psique porque o atributo espaçotempo se ligaria a ela consequentemente no máximo como qualidade relativa e condicionada Em determinadas circunstâncias contudo ela poderia romper a barreira do tempo e do espaço precisamente por causa de uma qualidade que lhe é essencial ou seja sua natureza transespacial e transtemporal Esta possibilidade de transcender o tempo e o espaço que me parece muito lógica é de tão grande alcance que estimularia o espírito de pesquisa ao maior esforço possível O desenvolvimento atual de nossa consciência contudo está tão atrasado as exceções confirmam a regra que em geral faltanos ainda o instrumental científico e intelectual para avaliar adequadamente os fatos da telepatia quanto à sua importância para o conhecimento da natureza da psique Refiro me a este grupo de fenômenos simplesmente para indicar que a ligação da psique com o cérebro isto é sua limitação no espaço e no tempo não é tão evidente nem tão indiscutível como até agora nos têm feito acreditar 814 Quem conhece um mínimo que seja o material parapsicológico já existente e suficientemente testado sabe muito bem que os chamados fenômenos telepáticos são fatos inegáveis Um exame crítico e objetivo dos dados disponíveis nos permite verificar que algumas dessas percepções ocorrem de tal maneira como se não existisse o fator espaço e outras como se não houvesse o fator tempo Naturalmente não podemos tirar daí a conclusão metafísica de que no mundo das coisas em si não há espaço nem tempo e que consequentemente a mente humana se acha implicada na categoria espaçotempo como em uma ilusão nebulosa Pelo contrário verificase que o espaço e o tempo são não apenas as certezas mais imediatas e mais primitivas para nós como são também empiricamente observáveis porque tudo o que é perceptível acontece como se estivesse no tempo e no espaço Em vista desta certeza avassaladora é compreensível que a razão sinta a maior dificuldade em admitir a validade da natureza peculiar dos fenômenos telepáticos Mas quem fizer justiça aos fatos não pode deixar de admitir que sua aparente independência em relação ao espaço e ao tempo é sua qualidade mais essencial Em suma nossas percepções ingênuas e nossas certezas mais imediatas não são estritamente falando mais do que evidências de uma forma de intuição psicológica a priori que exclui qualquer outra forma O fato de sermos totalmente incapazes de imaginar uma forma de existir independente do tempo e do espaço não prova absolutamente que tal existência seja impossível E da mesma forma como de uma aparente independência em relação ao espaço e ao tempo não podemos tirar a conclusão absoluta quanto à realidade de uma forma de existência independente do espaço e do tempo assim também não nos é permitido concluir a partir do caráter aparentemente espacial e temporal de nossas percepções que uma existência independente em relação ao espaço e ao tempo é impossível Em vista dos dados fornecidos pela experiência não somente nos é permitido mas é imperioso duvidar da validez de nossa percepção espacialtemporal A possibilidade hipotética de que a psique toque também em uma forma de existência independente em relação ao espaço e ao tempo constitui um ponto de interrogação que deve ser levado a sério pelo menos por enquanto As ideias e as dúvidas de nossos físicos modernos devem aconselhar aos psicólogos a serem prudentes porque o que significa filosoficamente falando a limitação do espaço senão uma relativização da categoria espaço Algo de semelhante pode facilmente acontecer com a categoria tempo como também com a causalidade As dúvidas a este respeito hoje em dia têm menos fundamento do que as de outrora 815 A natureza da psique mergulha em obscuridades para além dos limites de nossas categorias intelectuais A alma encerra tantos mistérios quanto o mundo com seus sistemas de galáxias diante de cujas majestosas configurações só um espírito desprovido de imaginação é capaz de negar suas próprias insuficiências Esta extrema incerteza da compreensão humana nos mostra que o estardalhaço iluminista é não somente ridículo como também lamentavelmente estúpido Se alguém portanto extraísse da necessidade do próprio coração ou da concordância com as lições da antiga sabedoria da humanidade ou do fato psicológico de que ocorrem percepções telepáticas a conclusão de que a psique participa em suas camadas mais profundas de uma forma de existência transespacial e transtemporal e que por consequência pertence àquilo que inadequada e simbolicamente é designado pelo nome de eternidade o único argumento que a razão crítica lhe poderia opor seria o non liquet não está provado da ciência Tal pessoa além disso possuiria a inestimável vantagem de estar de acordo com uma inclinação presente na psique humana desde tempos imemoriais e universalmente existente Quem por ceticismo rebeldia contra a tradição falta de coragem ou insuficiente experiência psicológica ou ignorância cega não extrai esta conclusão tem muito pouca chance estatisticamente falando de ser um pioneiro do espírito embora esteja firmemente certo de entrar em conflito com as verdades do próprio sangue No fundo jamais conseguiremos provar que tais verdades sejam ou não absolutas É suficiente porém que elas existam como inclinações da psique e sabemos demais o que seja entrar levianamente em choque com essas verdades Equivale à negação consciente dos instintos isto é a um desenraizamento a uma desorientação à falta de sentido da existência ou que outros nomes possam ter estes sintomas de inferioridade Um dos erros sociológicos e psicológicos mais fatais de que nossa época é tão rica foi o de pensar muitas vezes que alguma coisa pode mudar de um momento para outro por exemplo que a natureza do homem pode mudar radicalmente ou que podemos descobrir uma fórmula ou uma verdade que seja um começo inteiramente novo etc Qualquer mudança essencial ou mesmo uma simples melhoria significa um milagre O distanciamento das verdades do sangue produz uma agitação neurótica cujos exemplos abundam em nossos dias Esta agitação por sua vez gera a falta de sentido da existência falta esta que é uma enfermidade psíquica cuja amplidão e alcance total nossa época ainda não percebeu Fonte OC 82 796815 Publicado pela primeira vez em Europäische Revue Vol X 1934 a seguir em Wirklichkeit der Seele Tratados psicológicos Vol IV 1934 Sobre o renascimento Observações preliminares Os textos seguintes reproduzem os conteúdos essenciais de duas conferências improvisadas Elas foram estenografadas e pude utilizar essas anotações na elaboração do presente trabalho Alguns trechos tiveram que ser deixados de lado principalmente porque as exigências de um texto impresso são diferentes das exigências da palavra falada No entanto levei a cabo tanto quanto possível minha primeira intenção de resumir o conteúdo de minhas conferências sobre o tema renascimento esforceime também no sentido de reproduzir minha análise da décima oitava sura do Corão como exemplo de um mistério de renascimento em seus principais aspectos Acrescentei uma série de fontes bibliográficas que o leitor eventualmente poderá consultar O resumo feito não pretende ser mais do que um apanhado geral de um campo do conhecimento passível de ser iluminado apenas superficialmente no contexto de uma conferência 199 O conceito de renascimento nem sempre é usado num sentido unívoco Uma vez que esse conceito comporta vários aspectos tentei reunir aqui os seus principais significados Ressalto cinco aspectos diversos que provavelmente poderiam ser multiplicados se nos aprofundássemos parece me porém que com essas definições abrangemos os principais significados Na primeira parte da minha dissertação apresento um breve sumário das várias formas de renascimento ao passo que na segunda parte trato de seus diferentes aspectos psicológicos Na terceira parte o processo de transformação é ilustrado através do exemplo de uma série de símbolos 1 Formas do renascimento 200 α Metempsicose Como podemos ver pelo exposto o conceito de renascimento é multifacetado Em primeiro lugar destaco a metempsicose a transmigração da alma Tratase da ideia de uma vida que se estende no tempo passando por vários corpos ou da sequência de uma vida interrompida por diversas reencarnações O budismo especialmente centrado nessa doutrina o próprio Buda vivenciou uma longa série de renascimentos não tem certeza se a continuidade da personalidade é assegurada ou não em outras palavras pode tratarse apenas de uma continuidade do karma Os discípulos perguntaram ao mestre quando ele ainda era vivo acerca desta questão mas Buda nunca deu uma resposta definitiva sobre a existência ou não da continuidade da personalidade 1 201 β Reencarnação A segunda forma é a reencarnação que contém eo ipso o conceito de continuidade pessoal Neste caso a personalidade humana é considerada suscetível de continuidade e memória ao reencarnar ou renascer temos por assim dizer potencialmente a condição de lembrar nos de novo das vidas anteriores que nos pertenceram possuindo a mesma forma do eu da vida presente Na reencarnação tratase em geral de um renascimento em corpos humanos 202 γ Ressurreição resurrectio Uma terceira forma é a ressurreição pensada como um ressurgir da existência humana após a morte Há aqui outro matiz o da mutação da transmutação ou transformação do ser Esta pode ser entendida no sentido essencial isto é o ser ressurrecto é um outro ser ou a mutação não é essencial no sentido de que somente as condições gerais mudaram como quando nos encontramos em outro lugar ou em um corpo diferentemente constituído Pode tratarse de um corpo carnal como na crença cristã de que o corpo ressurge Em nível superior este processo não é compreendido no sentido material grosseiro mas se considera que a ressurreição dos mortos é um ressurgir do corpus glorificationis do subtle body corpo sutil no estado de incorruptibilidade 203 δ Renascimento renovatio A quarta forma diz respeito ao renascimento sensu strictiori em outras palavras ao renascimento durante a vida individual A palavra inglesa rebirth é o equivalente exato da palavra alemã Wiedergeburt renascimento e parece não existir no francês um termo que possua o sentido peculiar do renascimento Essa palavra tem um matiz específico Possui uma conotação que indica a ideia de renovatio da renovação ou mesmo do aperfeiçoamento por meios mágicos O renascimento pode ser uma renovatio sem modificação do ser na medida em que a personalidade renovada não é alterada em sua essência mas apenas em suas funções partes da personalidade que podem ser curadas fortalecidas ou melhoradas Estados de doença corporal também podem ser curados através de cerimônias de renascimento 204 Outra forma ainda é uma mutação propriamente dita ou seja o renascimento total do indivíduo Neste caso a renovação implica mudança da essência que podemos chamar de transmutação Tratase da transformação do ser mortal em um ser imortal do ser corporal no ser espiritual do ser humano num ser divino Um exemplo muito conhecido é o da transfiguração miraculosa de Cristo ou a subida ao céu da Mãe de Deus com seu corpo após a morte Representações semelhantes podem ser encontradas no Fausto segunda parte isto é a transfornação de Fausto no Menino e depois no Dr Mariano 205 ε Participação no processo da transformação A quinta forma finalmente é o renascimento indireto Neste caso a transformação não ocorre diretamente pelo fato de o homem passar por morte e renascimento mas indiretamente pela participação em um processo de transformação como se este se desse fora do indivíduo Tratase de uma participação ou presença em um rito de transformação Pode ser uma cerimônia como a missa por exemplo em que se opera uma transubstanciação Pela presença no ritual o indivíduo recebe a graça Nos mistérios pagãos também existem transformações semelhantes em que o neófito também recebe a graça tal como sabemos acerca dos mistérios de Elêusis Lembrome da profissão de fé do neófito eleusino que enaltece o efeito da graça sob a forma da certeza da imortalidade 2 2 Psicologia do renascimento 206 O renascimento não é um processo de algum modo observável Não podemos medilo pesar ou fotografálo ele escapa totalmente aos nossos sentidos Lidamos aqui com uma realidade puramente psíquica que só nos é transmitida indiretamente através de relatos Falamos de renascimento professamos o renascimento estamos plenos de renascimento e esta verdade nos basta Não nos preocupamos aqui com a questão de saber se o renascimento é um processo de algum modo palpável Devemos contentarnos com a realidade psíquica No entanto é preciso acrescentar que não estamos nos referindo à opinião vulgar acerca do psíquico que o considera um nada absoluto ou algo menos do que um gás Muito pelo contrário a meu modo de ver a psique é a realidade mais prodigiosa do mundo humano Sim ela é a mãe de todos os fatos humanos da cultura e da guerra assassina Tudo isso é primeiramente psíquico e invisível Enquanto permanece unicamente psíquico não é possível experimentálo pelos sentidos mas apesar disso tratase indiscutivelmente de algo real O fato de as pessoas falarem de renascimento e de simplesmente haver um tal conceito significa que também existe uma realidade psíquica assim designada Como essa realidade é constituída só o podemos deduzir a partir de depoimentos Se quisermos descobrir o significado do renascimento devemos interrogar a história para saber quais as acepções que esta lhe dá 207 O renascimento é uma das proposições mais originárias da humanidade Esse tipo de proposição baseiase no que denomino arquétipo Todas as proposições referentes ao sobrenatural transcendente e metafísico são em última análise determinadas pelo arquétipo e por isso não surpreende que encontremos afirmações concordantes sobre o renascimento nos povos mais diversos Um acontecimento psíquico deve subjazer a tais proposições À psicologia cabe discutir o seu significado sem entrar em qualquer conjetura metafísica e filosófica Para obtermos uma visão abrangente da fenomenologia das vivências de transformação é necessário delimitar essa área com mais precisão Podemos distinguir principalmente dois tipos de vivência primeiro a vivência da transcendência da vida e segundo a de sua própria transformação A A experiência da transcendência da vida 208 α Vivências mediadas pelo rito sagrado Pelo conceito de transcendência da vida entendo as experiências acima mencionadas feitas pelo neófito através de sua participação em um rito sagrado que lhe revela a perpetuidade da vida através de transformações e renovações Nos dramas de mistérios a transcendência da vida é representada em face de suas formas concretas e constantes de manifestação geralmente através do destino de morte e renascimento de um deus ou herói divino O neófito é pois simples testemunha do processo ou um participante ativo do mesmo ou um possuído pelo drama divino ou ainda se identifica com o deus através do ritual O decisivo neste caso é que a substância a existência ou forma da vida objetiva em um processo que transcorre por si mesmo se transforma ritualmente sendo que o neófito recebe a graça é influenciado impressionado ou consagrado por sua simples presença ou participação O processo da transformação não ocorre no neófito mas fora dele apesar de este encontrarse envolvido no processo O neófito participa ritualmente da morte do despedaçamento e da dispersão do corpo de Osíris por exemplo e logo em seguida de sua ressurreição Ele faz assim a experiência da permanência e continuidade da vida que ultrapassa todas as modificações das formas manifestadas e sempre ressurge como fênix das próprias cinzas Desta participação no evento ritual pode surgir como efeito aquela esperança de imortalidade característica do neófito de Elêusis 209 Um exemplo vivo do drama do mistério que representa a permanência e a transformação da vida é a missa Se observarmos os fiéis durante o ofício litúrgico podemos notar todos os graus de participação da simples presença indiferente até a mais profunda compenetração emocionada Os grupos masculinos que se aglomeram à porta da saída conversando sobre coisas mundanas fazendo o sinal da cruz e se ajoelhando mecanicamente partilham do ritual sagrado apesar de sua dispersão pela simples presença no espaço cheio de graça Na missa Cristo é sacrificado através de um ato exterior ao mundo e atemporal ressurgindo novamente na substância transformada pela consagração A morte sacrifical no rito não é uma repetição do evento histórico mas um ato eterno que ocorre por primeira e única vez A vivência da missa é pois participação em uma transcendência da vida que ultrapassa todas as barreiras de espaço e tempo É um momento de eternidade no tempo 3 210 β Experiências diretas Tudo o que o drama dos mistérios representa e produz no espectador também pode ocorrer sob a forma de uma experiência espontânea extática ou visionária sem qualquer ritual A visão do meiodia de Nietzsche é um exemplo clássico disso 4 Nietzsche como é sabido substitui o mistério cristão pelo mito de DionisoZagreu que foi desmembrado e retornou à vida inteiramente abraçado pelo generoso amor da videira e escondido de si mesmo Sua experiência tem portanto um caráter dionisíaco da natureza a divindade aparece nas vestes da antiga natureza é o momento da eternidade a hora do meiodia consagrada a Pan Acaso o tempo passou Porventura estou caindo Não cairia acaso no poço da eternidade O próprio aro de ouro o anel do retorno aparece a ele como uma promessa de ressurreição e vida 5 É como se Nietzsche tivesse estado presente numa celebração de mistérios 211 Muitas vivências místicas têm um caráter semelhante representam uma ação em que o espectador fica envolvido embora sua natureza não mude necessariamente Do mesmo modo muitas vezes os sonhos mais belos e impactantes não têm efeito duradouro ou transformador sobre o sonhador Este pode sentirse impressionado sem contudo ver nisso obrigatoriamente um problema Neste caso o sucedido permanece do lado de fora como uma ação ritual executada por outros Tais formas mais estéticas de vivência devem ser cuidadosamente destacadas das que indubitavelmente envolvem mudanças na natureza da pessoa B Transformação subjetiva 212 Transformações da personalidade não são ocorrências raras Na realidade elas desempenham um papel considerável na psicopatologia embora sejam diversas das vivências místicas que acabamos de descrever e às quais a investigação psicológica não tem acesso fácil No entanto os fenômenos que a seguir examinaremos pertencem a uma esfera bastante familiar à psicologia 213 α Diminuição da personalidade Um exemplo da alteração da personalidade no sentido da diminuição énos dado por aquilo que a psicologia primitiva conhece como lost of soul perda de alma A condição peculiar implícita neste termo corresponde na mente do primitivo à suposição de que a alma se foi tal como um cachorro que foge à noite de seu dono A tarefa do xamã é então capturar a fugitiva e trazêla de volta Muitas vezes a perda ocorre subitamente e se manifesta através de um malestar geral O fenômeno se conecta estreitamente com a natureza da consciência primitiva desprovida da firme coerência da nossa própria consciência Possuímos controle sobre o nosso poder voluntário mas o primitivo não o tem São necessários exercícios complicados para que ele possa concentrar se em qualquer atividade consciente e intencional que não seja apenas emocional e instintiva Nossa consciência é mais segura e confiável neste aspecto No entanto algo semelhante pode ocorrer ocasionalmente com o homem civilizado só que não o descrevemos como uma lost of soul mas como um abaissement du niveau mental termo que Janet designou para este fenômeno 6 Tratase de um relaxamento da tensão da consciência que pode ser comparada com uma baixa leitura barométrica pressagiando mau tempo O tônus cedeu o que é sentido subjetivamente como peso morosidade e depressão Não se tem mais nenhum desejo ou coragem de enfrentar as tarefas do dia A pessoa se sente como chumbo porque nenhuma parte do corpo parece disposta a moverse e isso é devido ao fato de não haver mais qualquer energia disponível 7 Este fenômeno bem conhecido corresponde à lost of soul do primitivo O estado de desânimo e paralisação da vontade pode aumentar a ponto de a personalidade desmoronar por assim dizer desaparecendo a unidade da consciência as partes isoladas da personalidade tornamse autônomas e através disso perdese o controle da consciência Criamse assim por exemplo campos anestesiados ou amnésia sistemática Esta última é um fenômeno histérico de perda Esta expressão médica corresponde à lost of soul 214 O abaissement pode ser consequência de um cansaço físico e psíquico de doenças somáticas de emoções e choques violentos cujo efeito é especialmente deletério sobre a autossegurança da personalidade O abaissement sempre tem uma influência limitadora sobre a personalidade global Diminui a autoconfiança e a iniciativa e limita o horizonte espiritual através de um egocentrismo crescente Pode levar finalmente ao desenvolvimento de uma personalidade essencialmente negativa que representa uma falsificação em relação à personalidade originária 215 β Transformação no sentido da ampliação A personalidade no início é raramente aquilo que será mais tarde Por isso existe pelo menos na primeira metade da vida a possibilidade de ampliação ou modificação da mesma Ela pode ocorrer por influência exterior e isso através de novos conteúdos vitais que afluem e são assimilados Neste caminho podese fazer a experiência de um acréscimo essencial da personalidade Por isso é frequente supor que tal ampliação venha exclusivamente de fora e nisto se baseia o preconceito de que nos tornamos uma personalidade na medida em que recolhermos maximamente as experiências Quanto mais seguirmos esta receita pensando que todo acréscimo só vem de fora tanto mais empobrecemos interiormente Assim pois se formos tocados por uma grande ideia de fora devemos compreender que ela só nos toca porque há algo em nós que lhe corresponde e vai ao seu encontro Possuir disponibilidade anímica significa riqueza não o acúmulo de coisas conquistadas Só nos apropriamos verdadeiramente de tudo o que vem de fora para dentro como também tudo o que emerge de dentro se formos capazes de uma amplitude interna correspondente à grandeza do conteúdo que vem de fora ou de dentro A verdadeira ampliação da personalidade é a conscientização de um alargamento que emana de fontes internas Sem amplitude anímica jamais será possível referirse à magnitude do objeto Por isso dizse com razão que o homem cresce com a grandeza de sua tarefa Mas ele deve ter dentro de si a capacidade de crescer senão nem a mais árdua tarefa servirlheá de alguma coisa No máximo ela o destruirá 216 O encontro de Nietzsche com Zaratustra que transformou o aforista crítico no poeta trágico e profético é um exemplo clássico dessa ampliação Paulo é um exemplo semelhante Cristo veio de repente ao seu encontro na estrada de Damasco Embora o Cristo que apareceu a Paulo não fosse possível sem o Jesus histórico o aparecimento de Cristo a Paulo não proveio do Jesus histórico mas sim do seu inconsciente 217 Num ponto culminante da vida em que o botão se abre em flor e do menor surge o maior um tornase dois e a figura maior que sempre fomos mas permanecia invisível comparece diante do homem que fomos até então com a força da revelação O verdadeiramente pequeno e sem esperança sempre reduz à sua pequenez a revelação do grande e jamais compreenderá que o Juízo Final também despontou para a sua pequenez O ser humano intimamente grande sabe porém que o amigo da alma pelo qual há tanto ansiava o imortal chegou enfim de fato para levar cativo seu cativeiro 8 aquele que sempre trouxe em si aprisionado a fim de capturálo permitindo que a sua vida desembocasse em sua própria vida um momento de perigo mortal A visão profética de Nietzsche ao deparar com o bailarino na corda bamba 9 desvela o perigo ameaçador da atitude do equilibrista diante de um acontecimento a que Paulo deu o nome máximo de que foi capaz 218 O próprio Cristo é o símbolo supremo do imortal que está oculto no homem mortal 10 Habitualmente este problema é representado por um motivo dual por exemplo pelos Dioscuros um dos quais é mortal e o outro imortal Um paralelo indiano é o do par de amigos Dois amigos unidos esvoaçantes Abraçam juntos a mesma árvore Um deles come a frutinha doce O outro olha para baixo sem comer O Espírito sobre essa árvore pairando Sofre em sua impotência aflito delirante mas quando louva e contempla a onipotência e majestade do outro Vê sua dor se esvaindo11 219 Um paralelo digno de nota é a lenda islâmica do encontro de Moisés com Chidr ou al Chadir 12 ao qual voltarei mais adiante Naturalmente não podemos ver a transformação da personalidade no sentido da multiplicação apenas sob a forma de tais vivências significativas Existe também uma casuística trivial que pode ser compilada facilmente a partir dos casos clínicos e do processo de cura de pacientes nervosos Todos os casos finalmente em que o reconhecimento de algo maior rebenta um anel de ferro que oprime o coração pertencem a esta categoria 13 220 γ Modificação da estrutura interior Neste caso não se trata de ampliação nem de diminuição mas de uma modificação estrutural da personalidade Menciono como forma principal o fenômeno da possessão o qual consiste no fato de um conteúdo qualquer pensamento ou parte da personalidade dominar o indivíduo por algum motivo Os conteúdos da possessão aparecem como convicções singulares idiossincrasias planos obstinados etc Em geral eles não são suscetíveis de correção Temos de ser um amigo muito especial do possuído disposto a arcar com as penosas consequências se quisermos enfrentar uma tal situação Recusome a traçar uma linha divisória absoluta entre possessão e paranoia A possessão pode ser formulada como uma identificação da personalidade do eu com um complexo 14 221 Um caso frequente é a identificação com a persona que é o sistema da adaptação ou estilo de nossa relação com o mundo Assim sendo quase todas as profissões têm a sua persona característica Tais coisas são fáceis de estudar atualmente uma vez que as pessoas públicas aparecem fotografadas frequentemente na imprensa O mundo exige um certo tipo de comportamento e os profissionais se esforçam por corresponder a tal expectativa O único perigo é identificarse com a persona como por exemplo o professor com o seu manual o tenor com sua voz daí a desgraça É que então se vive apenas em sua própria biografia não se é mais capaz de executar uma atividade simples de modo natural Pois já está escrito e então ele foi para cá ou para lá disse isso ou aquilo etc A túnica de Dejanira colouse à pele de Héracles e nela se enraizou É preciso a determinação desesperada de um Héracles para arrancar do corpo a túnica de Nesso e entrar no fogo da imortalidade a fim de transformarse naquilo que verdadeiramente é 15 Exagerando um pouco poderíamos até dizer que a persona é o que não se é realmente mas sim aquilo que os outros e a própria pessoa acham que se é Em todo caso a tentação de ser o que se aparenta é grande porque a persona frequentemente recebe seu pagamento à vista 222 Há também outros fatores que podem obcecar o indivíduo de forma decisiva Entre eles especialmente importante é a função inferior Este não é o lugar adequado para tratar detalhadamente desta problemática 16 Só quero ressaltar que a função inferior coincide com o lado obscuro da personalidade humana O obscuro que adere a cada personalidade é a porta de entrada para o inconsciente o pórtico dos sonhos Dele saem aquelas duas figuras crepusculares a sombra e a anima para entrar na parte noturna do sonho nas visões oníricas ou permanecendo invisíveis tomam posse da consciência do eu Um ser humano possuído por sua sombra está postado em sua própria luz caindo em suas próprias armadilhas Sempre que possível ele prefere exercer uma impressão desfavorável sobre os outros Em geral não tem sorte porque vive abaixo de si mesmo e no máximo alcança o que não lhe convém Onde não há soleira na qual possa tropeçar ele a constrói imaginando ter feito algo útil 223 A possessão provocada pela anima ou animus apresenta entretanto uma outra imagem Em primeiro lugar ao darse a transformação da personalidade evidenciamse os traços do sexo oposto no homem o feminino e na mulher o masculino No estado de possessão ambas as figuras perdem seu encanto e seus valores que só possuem em estado de despreocupação em relação ao mundo introversão isto é quando constroem uma ponte para o inconsciente Voltada para fora a anima é volúvel desmedida caprichosa descontrolada emocional às vezes demoniacamente intuitiva indelicada perversa mentirosa bruxa e mística 17 O animus pelo contrário é rígido cheio de princípios legalista dogmático reformador do mundo teórico emaranhandose em argumentos polêmico despótico 18 Ambos têm mau gosto a anima é cercada de indivíduos medíocres e o animus se presta a pensamentos medíocres 224 Outro caso de modificação estrutural diz respeito a algumas raras observações sobre as quais só posso externarme com a maior reserva Trata se de estados de possessão em que esta é desencadeada por algo que poderíamos designar mais adequadamente por alma ancestral e precisamente como uma determinada alma ancestral São casos de identificação visível com pessoas falecidas Os fenômenos de identificação ocorrem naturalmente após a morte do ancestral Léon Daudet foi o primeiro a chamar minha atenção para tais possibilidades através do seu livro confuso mas genial LHérédo Ele supõe que na estrutura da personalidade existem elementos ancestrais que repentinamente podem irromper sob certas condições Através disso o indivíduo pode precipitarse subitamente em um papel ancestral Agora sabemos que este papel tem um grande significado para o primitivo Não há unicamente a suposição de que os espíritos ancestrais reencarnem nas crianças mas tentase também transferilos às crianças dandolhes os nomes correspondentes Da mesma forma os primitivos procuram transformarse a si próprios ritualmente nos ancestrais Remeto a ideia australiana da altjirangamitijna 19 das almas ancestrais meio animais cuja revivificação através do culto tem o maior significado funcional para a vida da tribo Essas ideias da idade da pedra eram amplamente difundidas o que se pode reconhecer ainda através de numerosos vestígios em outros lugares Por este motivo não é improvável que tais formas primordiais da vivência ainda se repitam hoje como identificações com almas ancestrais e acredito mesmo ter visto casos semelhantes 225 δ Identificação com um grupo Passemos agora ao comentário de outra forma de transformação que chamaremos de identificação com um grupo Tratase mais exatamente da identificação de um indivíduo com um certo número de pessoas que têm uma vivência de transformação coletiva É uma situação psicológica especial que não deve ser confundida com a participação em um ritual de transformação o qual é realizado de fato diante de um público mas não depende de forma alguma de uma identidade de grupo nem gera necessariamente uma tal identidade É algo bem diferente vivenciar a transformação no grupo do que em si mesmo Em um grupo maior de pessoas ligadas e identificadas entre si por um estado de ânimo peculiar criase uma vivência de transformação que tem apenas uma vaga semelhança com uma transformação individual Uma vivência grupal ocorre em um nível inferior de consciência em relação à vivência individual É um fato que quando muitas pessoas se reúnem para partilhar de uma emoção comum emerge uma alma conjunta que fica abaixo do nível de consciência de cada um Quando um grupo é muito grande criase um tipo de alma animal coletiva Por esse motivo a moral de grandes organizações é sempre duvidosa É inevitável gue a psicologia de um amontoado de pessoas desça ao nível da plebe 20 Por isso se eu tiver no grupo o que se chama uma vivência comunitária coletiva esta ocorre em um nível de consciência relativamente inferior por este motivo a vivência grupal é muito mais frequente do que uma vivência de transformação individual É também muito mais fácil alcançar a primeira pois o encontro de muitas pessoas tem uma grande força sugestiva O indivíduo na multidão tornase facilmente uma vítima de sua sugestionabilidade Só é necessário que algo aconteça por exemplo uma proposta apoiada por todos para que cada um concorde mesmo que se trate de algo imoral Na massa não se sente nenhuma responsabilidade mas também nenhum medo 226 A identificação com o grupo é pois um caminho simples e mais fácil mas a vivência grupal não vai mais fundo do que o nível em que cada um está Algo se modifica em cada um mas essa mudança não perdura Pelo contrário a pessoa depende continuamente da embriaguez da massa a fim de consolidar a vivência e poder acreditar nela Quando não está mais na multidão a pessoa tornase outro ser incapaz de reproduzir o estado anterior Na massa predomina a participation mystique que nada mais é do que uma identidade inconsciente Por exemplo quando se vai ao teatro os olhares encontram imediatamente os olhares que se ligam uns aos outros cada um olha como o outro olha e todos ficam presos à rede invisível da relação recíproca inconsciente Se esta condição se intensifica cada um sentese arrastado pela onda coletiva de identificação com os outros Pode até mesmo ser uma sensação agradável uma ovelha entre dez mil ovelhas E se percebemos que essa multidão é uma grande e maravilhosa unidade tornamonos heróis exaltados pelo grupo Voltando depois a nós mesmos descobrimos que meu nome civil é este ou aquele que moro nesta ou naquela rua no terceiro andar e que aquela história no fundo foi muito prazerosa e esperamos que amanhã ela se repita a fim de que eu possa me sentir de novo como um povo inteiro o que é bem melhor do que ser apenas o cidadão x ou y Como este é um caminho fácil e conveniente de ascensão a outros níveis de personalidade o ser humano sempre formou grupos que possibilitassem vivências de transformação coletiva frequentemente sob a forma de estados extáticos A identificação regressiva com estados de consciência inferiores e mais primitivos é sempre ligada a um maior sentido de vida donde o efeito vivificante das identificações regressivas com os ancestrais meio teriomórficos da Idade da Pedra 21 227 A inevitável regressão psicológica dentro do grupo é parcialmente suprimida pelo ritual isto é pela cerimônia do culto que coloca no centro da atividade grupal a representação solene dos eventos sagrados impedindo que a multidão caia numa instintividade inconsciente Ao exigir a atenção e o interesse de cada indivíduo a cerimônia do culto possibilita que o mesmo tenha uma vivência relativamente individual dentro do grupo mantendose assim mais ou menos consciente No entanto se faltar a relação com um centro que expresse o inconsciente através de seu simbolismo a alma da massa tornase inevitavelmente o ponto focal de fascínio atraindo cada um com seu feitiço Por isso as multidões humanas são sempre incubadoras de epidemias psíquicas 22 sendo os acontecimentos na Alemanha nazista o evento clássico desse fenômeno 228 Contra esta avaliação da psicologia das massas essencialmente negativa objetarseá que há também experiências positivas como por exemplo um entusiasmo saudável que incentiva o indivíduo a ações nobres ou um sentimento igualmente positivo de solidariedade humana Fatos deste tipo não devem ser negados A comunidade pode conferir ao indivíduo coragem decisão e dignidade que ele perderia facilmente no isolamento Ela pode despertar nele a lembrança de ser um homem entre homens Mas isso não impede que algo lhe seja acrescentado algo que não possuiria como indivíduo Tais presentes muitas vezes imerecidos significam no momento uma graça especial mas a longo prazo há o perigo de o presente transformarse em perda uma vez que a natureza humana tem a debilidade de julgar que é indiscutivelmente sua tal dádiva por isso num momento de necessidade passa a exigir esse presente como um direito seu em vez de obtêlo mediante o próprio esforço Infelizmente constatamos isso com grande clareza na tendência de exigir tudo do Estado sem refletir sobre o fato de que este é constituído por sua vez pelos mesmos indivíduos que fazem tais exigências O desenvolvimento lógico desta tendência leva ao comunismo no qual cada indivíduo escraviza a coletividade e esta última é representada por um ditador isto é um senhor de escravos Todas as tribos primitivas cuja ordem social é comunista também têm um chefe com poderes ilimitados sobre elas O estado comunista nada mais é do que uma monarquia absoluta em que não há súditos mas apenas servos 229 ε Identificação com o herói do culto Para a vivência da transformação também é importante a identificação com o deus ou herói que se transforma durante o ritual sagrado Muitas cerimônias de culto têm por finalidade criar essa identificação Na Metamorfose de Apuleio encontramos um bom exemplo disso o neófito que é um ser humano comum é escolhido para ser Hélio coroado de palmas coberto com um manto místico venerado pela multidão A sugestão da comunidade produz a identificação com o deus A participação da comunidade também pode ocorrer sem a apoteose do neófito mas o ofício sagrado é recitado e através dele ocorrem gradualmente mudanças psíquicas individuais nos participantes através de um longo período de tempo Exemplo disso é o culto de Osíris Inicialmente somente o faraó participava do deus da transformação na medida em que apenas ele tinha um Osíris Mais tarde os nobres do reino obtiveram também um Osíris e finalmente o cristianismo coroou esse desenvolvimento reconhecendo que todos têm uma alma imortal e participação direta na divindade No cristianismo a evolução continuou no sentido do Deus ou Cristo exterior transformarse pouco a pouco no Cristo interior do indivíduo e embora presente em muitos permanece sempre um e o mesmo uma verdade que já fora antecipada na psicologia do totem em que durante as refeições o animal totêmico era morto e comido em muitos pedaços e no entanto era sempre único tal como existe só um Menino Jesus e um Papai Noel 230 Através da participação do destino do deus nos mistérios o indivíduo transformase indiretamente No cristianismo eclesial a vivência da transformação é indireta na medida em que ocorre através da participação no ritual oficiado ou recitado O ritual oficiado dromenon é uma das formas e o recitado ou a Palavra ou ainda a Mensagem é a outra A primeira é característica do culto ricamente elaborado da Igreja Católica A segunda forma é o anúncio da Palavra no protestantismo 231 ζ Procedimentos mágicos Outra forma de transformação é alcançada através de um rito usado para este fim Em vez de se vivenciar a experiência de transformação mediante uma participação o ritual é intencionalmente usado para produzir uma transformação Este tornase assim de certa forma uma técnica à qual nos submetemos Por exemplo um homem está doente e deveria ser renovado por isso A renovação deveria ocorrerlhe e para que ocorra ele é puxado através de um buraco feito na parede na cabeceira de seu leito e assim renasce Ou então recebe um outro nome e com este uma nova alma Desse modo os demônios não o reconhecem mais ou ainda deve passar por uma morte figurada ou então é puxado grotescamente através de uma vaca de couro que o devora pela boca e o expele por trás Ou ainda passa por uma ablução ou banho batismal transformandose em um ser semidivino com um novo caráter e um destino metafísico transformado 232 η Transformação técnica Além da utilização mágica do ritual existem ainda técnicas especiais que atraem além da graça correspondente ao ritual também o esforço do iniciado para alcançar a meta Tratase aqui de uma vivência de transformação produzida por meios técnicos Pertencem a este contexto os exercícios denominados ioga no Oriente e exercitia spiritualia no Ocidente Tratase de uma técnica determinada prescrita com maior ou menor precisão a fim de atingir um efeito psíquico determinado ou pelo menos tentar atingilo É o caso tanto na yoga mental como nos métodos ocidentais correspondentes 23 São técnicas no pleno sentido da palavra derivadas da reelaboração de processos e transformações naturais Outrora quando não existiam pressupostos históricos havia transformações espontâneas de certo modo naturais e agora elas são utilizadas em suas sequências na técnica a fim de alcançar a transformação O modo pelo qual tais métodos devem ter surgido originalmente pode ser esclarecido sob a forma da seguinte lenda 233 Era uma vez um velho estranho Ele vivia numa caverna na qual se refugiara fugindo ao ruído das aldeias Tinha a fama de mago e por isso possuía alunos que esperavam aprender com ele a arte da magia Ele porém não cogitava disso Só procurava saber o que não sabia mas tinha a certeza do que sempre ocorria Tendo meditado muito tempo sobre o que nossa meditação não alcança não teve outra saída para sua situação precária a não ser pegar uma argila vermelha e fazer todo tipo de desenhos nas paredes de sua caverna a fim de descobrir como aquilo que ele não sabia poderia ser Depois de muitas tentativas chegou ao círculo Isto está certo achou ele e mais um quadrilátero dentro e assim ficou melhor Os alunos estavam curiosos mas sabiam apenas que algo acontecia com o velho eles teriam gostado demais de descobrir o que realmente ele fazia Perguntaramlhe O que fazes lá dentro Mas o velho não dava nenhuma informação Descobriram então os desenhos na parede e disseram Ah É isso e copiaram os desenhos Mas assim sem perceber inverteram todo o processo anteciparam o resultado esperando com isso forçar o processo que havia conduzido àquele resultado Assim acontecia outrora e ainda acontece hoje 234 θ Transformação natural Já mencionei antes que além dos processos de transformação técnicos há transformações naturais Todas as ideias acerca do renascimento fundamentamse neste fato A própria natureza exige morte e renascimento O velho alquimista Demócrito diz A natureza alegrase com a natureza a natureza abraça a natureza e a natureza vence a natureza 24 Há processos naturais de transformação que nos ocorrem quer queiramos ou não saibamos ou não Tais processos produzem consideráveis efeitos psíquicos que bastariam para que se indagasse reflexivamente o que realmente se produziu Como o velho da nossa história ele desenhará mandalas entrará em seu círculo protetor e na perplexidade e angústia da prisão por ele mesmo escolhida à guisa de refúgio se transformará em um ser semelhante aos deuses Os mandalas são lugares de nascimento ou melhor conchas de nascimento flores de lótus das quais nasce o Buda O iogue sentado em flor de lótus vêse transformado em uma figura imortal 235 Os processos naturais de transformação são anunciados principalmente no sonho Em outra parte apresentei uma série de símbolos oníricos do processo de individuação 25 Eram sonhos que usavam sem exceção o simbolismo do renascimento Em todo o caso tratase de um processo demorado de transformação interna e do renascimento em um outro ser Este outro ser é o outro em nós a personalidade futura mais ampla com a qual já travamos conhecimento como um amigo interno da alma Por isso é algo confortante para nós ao encontrarmos o amigo e companheiro reproduzido num ritual sagrado como por exemplo naquela relação de amizade entre Mitra e o deus Sol o que para a mente ilustrada representa um mistério porquanto esta última costuma olhar para essas coisas sem empatia No entanto se ele levasse em conta o sentimento descobriria que é o amigo o qual o Sol leva consigo em seu carro tal como se vê nos monumentos É a representação de uma amizade masculina imagem externa de um fato interno tratase da representação da relação com o amigo interno da alma no qual a própria natureza gostaria de nos transmutar naquele outro que também somos e que nunca chegamos a alcançar plenamente O homem é o par de um Dioscuro em que um é mortal e o outro imortal sempre estão juntos e apesar disso nunca se transformam inteiramente num só Os processos de transformação pretendem aproximar ambos a consciência porém resiste a isso porque o outro lhe parece de início como algo estranho e inquietante e não podemos nos acostumar à ideia de não sermos senhores absolutos na própria casa Sempre preferiríamos ser eu e mais nada Mas confrontamonos com o amigo ou inimigo interior e de nós depende ele ser um ou outro 236 Não precisamos ser doentes mentais para ouvir a sua voz Muito pelo contrário ouvila é a coisa mais simples e natural Podemos por exemplo fazer uma pergunta à qual ele responde O fluxo das ideias continua como em uma conversa comum Podemos chamála uma mera associação ou um solilóquio ou uma meditação dos antigos alquimistas que designavam o parceiro do diálogo como aliquem alium internum como um outro interior 26 Esta forma de colóquio com o amigo da alma foi até mesmo admitida por Inácio de Loyola no método dos Exercitia spiritualia 27 com a limitação porém de que só o meditador fala mas a resposta interna é omitida Esta seria repudiada por provir supostamente apenas do homem e assim continua até hoje O preconceito não é moral ou metafísico mas o que é pior sua natureza é intelectual A voz é explicada como uma associação tola que prossegue de um modo sem sentido ou propósito como um mecanismo de relógio que saiu do eixo Ou então pensamos tratase apenas de meus pensamentos mesmo que um exame mais acurado revele que se trata de pensamentos rejeitados ou jamais admitidos conscientemente como se tudo o que fosse psíquico pertencesse à alçada do eu Esta hybris cumpre o ofício útil da manutenção e supremacia da consciência que deve ser protegida da dissolução no inconsciente Mas ela sucumbe quando o inconsciente resolve tornar obsessivos alguns pensamentos insensatos ou gerar outros sintomas psicógenos pelos quais não queremos assumir responsabilidade alguma 237 Nossa opinião sobre a voz interior movese entre dois extremos ou a vemos como um desvario total ou então como a voz de Deus A ninguém ocorre que possa haver um meiotermo valioso O outro que responde deve ser tão unilateral por seu lado quanto o eu Do conflito entre ambos pode surgir verdade e sentido mas isto só no caso de que o eu esteja disposto a conceder a personalidade que cabe ao outro Este último tem uma personalidade própria sem dúvida tanto quanto as vozes dos doentes mentais porém um colóquio verdadeiro só se torna possível quando o eu reconhece a existência de um interlocutor Este reconhecimento não é comum entre as pessoas pois nem todos se prestam aos Exercitia spiritualia Não se trata naturalmente de uma conversa quando somente um dirige a palavra ao outro como faz George Sand em suas conversas com seu amigo espiritual 28 só ele fala nas trinta páginas em questão e ficamos esperando inutilmente a resposta do outro Ao colóquio dos Exercitia seguese talvez a graça silenciosa na qual o cético moderno não acredita Mas como seria se Cristo com o qual falamos desse uma resposta imediata através das palavras de um coração humano pecador Que terríveis abismos de dúvida se abririam então Que loucura temeríamos Compreendese que é melhor a mudez das imagens divinas e que a consciência do eu acredite em sua supremacia em vez de prosseguir em suas associações Compreendese que o amigo interno apareça tantas vezes como inimigo e por estar tão longe sua voz é fraca Quem está próximo dele está próximo do fogo 29 238 Talvez esse alquimista estivesse pensando em algo parecido quando disse Escolhe para ti aquela pedra mediante a qual os reis são venerados em suas coroas e os médicos curam seus doentes porque ela está próxima do fogo 30 Os alquimistas projetam os acontecimentos internos em formas externas e assim o amigo interno neles aparece sob a forma da pedra da qual o Tractatus aureus diz Entendei ó filhos dos sábios o que clama a pedra protegeme e eu te protegerei dáme o que é meu a fim de que eu te ajude 31 Um escoliasta acrescenta 32 O pesquisador da verdade ouve a pedra e o filósofo como se ambos falassem por uma só boca O filósofo é Hermes e a pedra idêntica a Mercúrio corresponde justamente ao Hermes latino 33 Desde os tempos mais remotos Hermes é o mistagogo e o psicopompo dos alquimistas seu amigo e conselheiro 34 que os conduz à meta da obra Ele é tanquam praeceptor intermedius inter lapidem et discipulum 35 A outros porém o amigo aparece sob a figura de Cristo ou do Chadir ou de um guru visível ou invisível Ele também pode aparecer na figura de qualquer dirigente pessoal ou social Neste caso o colóquio é decididamente unilateral Não há diálogo interior pois a resposta possível aparece como ação do outro isto é como acontecimento externo Tal resposta ao alquimista se manifestava através da transformação da matéria química Quando um deles buscava a transformação a descobria fora na matéria e a transformação da mesma clamava Eu sou a transformação alguns eram tão lúcidos que sabiam é a minha transformação mas não pessoal e sim a transformação de algo mortal em algo imortal em mim que se liberta do seu invólucro mortal o qual sou eu e desperta agora para sua própria vida entra na Barca solar que talvez me leve 36 239 Tratase de um pensamento muito antigo Estive no Alto Egito na região de Assuan e entrei numa sepultura do Egito Antigo recentemente aberta Atrás da porta da entrada havia uma cestinha de caniço com o cadáver seco de um recémnascido envolto em trapos Pelo visto a mulher de um trabalhador havia colocado furtivamente o recémnascido morto dentro da sepultura de um nobre a fim de que a criança participasse da salvação do nobre quando este entrasse na Barca solar para o nascer de um novo dia a criança alcançaria a graça divina por ter sido enterrada em um lugar sagrado Referências A Sammlungen alchemistischer Traktate verschiedener Autoren Ars Chemica quod sit licita exercentibus probationes doctissimorum iurisconsultorum Strassburg 1566 I Septem tractatus seu capitula Hermetis Trismegisti aurei p 731 Tractatus aureus Artis Auriferae quam chemiam vocant usw 2 vols Basel 1593 Band I I Allegoriae super librum Turbae p 139145 II Aurora consurgens quae dicitur aurea hora p 185246 nur Teil II III Rosinus ad Sarratantam episcopum p 277319 IV Liber secretorum alchemiae compositus per Calid filium Iazichi p 325 351 V Tractatus Aristotelis de practica lapidis philosophici p 361373 VI Rachaidibi Veradiani Rhodiani et Kanidis philosophorum régis Persarum De materia philosophici lapidis acutissime colloquentium fragmentum p 397404 VII Liber de arte chimica incerti authoris p 575631 Band II VIII Rosarium philosophorum p 204384 enthält eine zweite Fassung der Visio Arislei p 246ss Eine andere Ausgabe von Anis auriferae in diesem Bande gelegentlich zitiert erschien 1572 in Basel und enthält den Tractatus aureus p 641ss Bibliotheca Chemica Curiosa seu rerum ad alchemiam pertinentium thésaurus instructissimus 2 vols Genf 1702 Ed Johannes Jacobus Mangetus Band I I Hermes Trismegistus Tractatus aureus de lapidis physici secreto p 400 445 II Morienus Liber de compositione alchemiae p 509519 Band II III Sendivogius Epistola XIII p 496 Theatrum Chemicum praecipuos selectorum auctorum tractatus continens Vols IIII Ursel 1602 Vol IV Strassburg 1613 Vol V 1622 Vol VI 1661 B Allgemeine Bibliographie ALDROVANDUS U Dendrologiae naturalis scilicet arborum historiae libri Frankfurt 1671 BERTHELOT M La Chimie au moyen âge 3 vols Histoire des Sciences Paris 1893 Collection des anciens alchimistes grecs Paris 18871888 DE JONG KHE Das antike Mysterienwesen in religionsgeschichtlicher ethnologischer und psychologischer Beleuchtung Leiden 1909 DEUSSEN P Sechzig Upanishads des Veda Aus dem Sanskrit übersetzt und mit Einleitungen und Anmerkungen versehen 3 ed Leipzig 1938 FIERZDAVID L Der Liebestraum des Poliphilo Ein Beitrag zur Psychologie der Renaissance und der Moderne Zürich 1947 HornefFer Emst Nietzsches Lehre von der Ewigen Wiederkunft und deren bisherige Veröffentlichung Leipzig RheinVerlag 1900 IZQUIERDO S Alcarazense Societatis Iesu Praxis exercitiorum spiritualium PNS Ignatii Roma 1695 JANET P Les Névroses Bibliothèque de philosophie scientifique Paris 1919 erstmals 1909 JUNG CG Der Geist Mercurius In EranosJahrbuch 1942 Zurique RheinVerlag 1943 Erweiterte Neuausgabe in Symbolik des Geistes Siehe dort Gestaltungen des Unbewussten Psychologische Abhandlungen VII Zurique Rascher 1950 Jungs Beiträge in diesem Band sowie GW 15 1971 Psychologie und Alchemie Psychologische Abhandlungen V Zurique Rascher 1944 Revidierte Neuauflage 1952 GW 12 1972 Psychologische Typen Zurique Rascher 1921 Neuauflagen 1925 1930 1937 1940 1942 1947 e 1950 GW 6 1960 und 1967 Symbolik des Geistes Studien über psychische Phänomenologie mit einem Beitrag von Dr phil Riwkah Schärf Psycholog Abhandlungen VI Zurique Rascher 1948 1953 Jungs Beiträge in diesem Band sowie in GW 11 1963 und 1973 und GW 13 Versuch einer psychologischen Deutung des Trinitätsdogmas In Symbolik des Geistes Siehe dort GW 11 1963 e 1973 Das Wandlungssymbol in der Messe In Eranos Jahrbuch 19401941 Zurique Rascher 1942 Erweitert in Von den Wurzeln des Bewusstseins Siehe dort GW 11 1963 e 1973 Von den Wurzeln des Bewusstseins Studien über den Archetypus Psychologische Abhandlungen IX Zurique Rascher 1954 Drei Abhandlungen in diesem Band die übrigen in GW 8 1967 e 1977 GW 11 1963 e 1973 e GW 13 1978 Zur Psychologie östlicher Meditation In Mitteilungen der Schweizerischen Gesellschaft der Freunde Ostasiatischer Kultur V Berna 1943 p 3353 Später in Symbolik des Geistes Siehe dort Ferner in Bewusstes und Unbewusstes Beiträge zur Psychologie Bücher des Wissens TB Frankfurt a M Fischer e Hamburgo 1957 GW 11 1963 e 1973 Zur Psychologie und Pathologie sogenannter occulter Phänomene Eine psychiatrische Studie Dissertation Oswald Mutze Leipzig 1902 GW 1 1966 JUNG E Ein Beitrag zum Problem des Animus In JUNG CG Wirklichkeit der Seele Anwendungen und Fortschritte der neueren Psychologie Psychologische Abhandlungen IV Zurique Rascher 1934 Neuauflagen 1939 und 1947 Der Aufsatz ist zusammen mit Die Anima als Naturwesen Beitrag zur Festschrift Studien zur Analytischen Psychologie CG Jungs II Zurique Rascher 1955 unter dem Titel Animus und Anima gesondert als Pb bei Rascher Zürich 1967 erschienen KEYSERLING GH Südamerikanische Meditationen Stuttgart 1932 LE BON G Psychologie der Massen Übersetzun Philosophisch soziologische Bücherei II 2 verbesserte Aufl Leipzig 1902 LEVYBRUHL L La Mythologie primitive Le monde mythique des Australiens et des Papous Travaux de lannee sociologique 2 ed Paris 1935 NIETZSCHE F Werke 16 vols Leipzig 18991911 Also sprach Zarathustra Ein Buch für Alle und Keinen In Vol VI REITZENSTEIN R Poimandres Studien zur griechischägyptischen und frühchristlichen Literatur Leipzig 1904 RUHLANDUS M Lexicon alchemiae sive dictionarium alchemisticum Frankfurt 1612 SAMYUTTANIKÄYA Die in Gruppen geordnete Sammlung aus dem PäliKanon der Buddhisten zum ersten Mal ins Deutsche übertragen von Wilhelm Geiger Vol I München Neubiberg 1930 SCHOPENHAUER A Aphorismen zur Lebensweisheit In Parerga und Paralipomena Leine philosophische Schriften 2 vols in cinem Berlim 1891 SPENCER B GILLEN FJ The Northern Tribes of Central Australia Londres 1904 TONQUÉDEC J de Les Maladies nerveuses ou mentales et les manifestations diaboliques Précédé dune lettre de SE le Cardinal Verdier 3 ed Paris 1938 WELLS HG The War of the Worlds Londres 1896 Fonte OC 91 199239 Publicado pela primeira vez sob o título Os diversos aspectos do renascimento em EranosJahrbuch 1939 RheinVerlag Zurique 1940 revisto e ampliado sob o título acima em Gestaltungen des Unbewussten Phsychologische Abhandlungen VII Rascher Zurique 1950 1 Cf SamyuttaNikaya 1612 KassapaSamyutta Sutta 12 Após a morte p 286 2 Cf versos 480482 do Demeterhymnus Hino a Deméter DE JONG Das antike Mysterienwesen in religionsgeschichtlicher ethnologischer und psychologischer Bedeutung p 14 Bemaventurado aquele que os viu nos habitantes da Terra Mas não participou dos santos rituais Sorte diversa o aguarda na escuridão cega da morte Em um epitáfio de Elêusis op cit lêse Em verdade os deuses bemaventurados anunciam um belo segredo Aos mortais não é maldição a morte e sim bênção 3 Cf JUNG O símbolo da transformação na missa 4 Also sprach Zarathustra p 400s 5 HORNEFFER Nietzsches Lehre von der Ewigen Wiederkunft 6 Les Névroses p 358 7 O fenômenogana descrito pelo conde Keyserling Südamerikanische Meditationen pertence a este domínio 8 Ef 48 tradução de Lutero 9 Also sprach Zarathustra p 21s Tua alma morrerá mais depressa do que teu corpo 10 Cf mais pormenores in JUNG Tentativa de uma interpretação psicológica do dogma da Trindade 226s 11 Çvetâçvatara Upanishad IV 6 7 9 in DEUSSEN Sechzig Upanishads des Veda p 301 12 O Corão 18ª Sura 13 Em minha dissertação inaugural Sobre a psicologia e patologia dos fenômenos chamados ocultos 1902 descrevi um caso desse tipo de ampliação da personalidade 14 A respeito do conceito da Igreja de possessão cf DE TONQUÉDEC Les Maladies nerveuses ou mentales et les manifestations diaboliques prefaciado pelo Cardeal Verdier 15 Nesse contexto pode ser útil ler Aphorismen zur Lebensweisheit de Schopenhauer Parerga und Paralipomena I cap II Sobre o que se é e cap IV Sobre o que se representa 16 Este problema importante foi tratado com minúcias no cap V de Tipos psicológicos 17 Cf descrição excelente da anima em Ulysses Aldrovandus Dendrologiae libri duo p 146 Ela aparecia simultaneamente como muito suave e muito dura e embora mostrasse há quase dois mil anos as caras mais variáveis a modo de um Proteu cumulava de preocupações inquietudes e aflições o amor Suscitado certamente do caos isto é da confusão agatônica do antigo cidadão bolonhês Lucius Agatho Priscus Descrição semelhante encontrase também na Hypnerotomachia de Poliphilo Cf LINDA FIERZDAVID Der Liebestraum des Poliphilo p 205s 18 Cf EMMA JUNG Ein Beitrag zum Problem des Animus 19 Cf o resumo em LÉVYBRUHL La Mythologie primitive 20 Cf LE BON Psychologie der Massen 21 O altjirangamitijna Cf os rituais das tribos australianas SPENCER GILLEN The Northern Tribes of Central Australia bem como LÉVYBRUHL Op cit 22 Lembrome do pânico catastrófico ocorrido em Nova York pouco antes da última guerra mundial depois da emissão radiofônica de uma história fantástica de HG Wells War of the Worlds e que se repetiu recentemente em Quito 23 Cf JUNG Considerações em torno da psicologia da meditação oriental OC 115 24 BERTHELOT Collection des anciens alchimistes grecs II I 3 p 43 45 25 EranosJahrbuch 1935 Este material encontrase ampliado e reelaborado em Psicologia e alquimia 26 RULANDUS Lexicon alchemiae p 327 verbete meditatio 27 IZQUIERDO Praxis Exercitiorum spiritualium p 10 Colloquium aliud non est quam familiariter loqui cum Christo Domino etc O Colóquio nada mais é do que conversar intimamente com Cristo o Senhor 28 Presumivelmente Entretiens journaliers avec le très docte et très habiledocteur Piffoël etc 29Neutestamentliche Apokryphen p 35 30 Um PseudoAristóteles in Rosarium philosophorum 1550 fol Q 31 Largiri vis mihi meum Tu queres darme o que é meu é o modo comum de ler tanto na primeira edição de 1566 in Ars chemica sob o título Septem tractatus seu capitula Hermetis Trismegisti aurei como in Theatr chem 1613 IV e MANGET Bibliotheca chemica curiosa I 400s No Rosarium philosophorum 1550 fol E IV encontrase uma outra versão Largire mihi ins meum ut te adiuvem Dáme o meu direito a fim de que eu te ajude o que representa uma das arbitrariedades interpretativas do anônimo do Rosarium importante porém para a interpretação da alquimia 32 MANGET Op cit p 430b 33 Comprovantes minuciosos in Psicologia e alquimia 84s e O Espírito de Mercúrio 278s e 289 34 Cf a bela oração do Astrampsychos Ἐλϑέ μοι κύριε Ἐρμῆ onde se lê no final Eu sou tu e tu és eu REITZENSTEIN Poimandres p 21 35 MANGET Op cit Semelhante ao professor mediador entre a pedra e o aluno 36 A pedra e sua transformação é representada como a ressurreição do homo philosophicus do segundo Adão Aurora consurgens quae dicitur Aurea hora in Artis auriferae I p 185s como alma humana livro de Krates in BERTHELOT La Chimie ao Moyen Âge III 50 como ser subordinado e superordenado ao ser humano Hic lapis est subtus te quantum ad obedientiam supra te quo ad dominium ergo a te quantum ad scientiam circa te quantum ad aequales Esta pedra está abaixo de ti para obedecer acima de ti para mandar portanto dentro de ti para reconhecer e em torno de ti como igual a ti Rosinus ad Sarratantam in Art aurif I p 310 como vida sanguis est anima et anima est vita et vita lapis noster est o sangue é a alma e a alma é a vida e a vida é nossa pedra Tractatus Aristotelis in Art aurif I p 347 bem como Rachaidib fragmentum in Art Aurif I p 398 e 401 como Maria virgo De arte chimica in Art aurif I p 582 como o próprio homem tu es eius minera et de te extrahitur et in te inseparabiliter manet tu és seu mineral e de ti ele é extraído e em ti ele permanece inseparável Rosinus ad Sarratantam in Art aurif I p 311 Textos de capa Contracapa A imagem de mundo e do ser humano presente na Psicologia Analítica de CG Jung evidencia a especial importância de que se revestem a espiritualidade e a transcendência Em uma carta assim escreve Jung A pergunta decisiva para o ser humano é se ele tem o Infinito como referência E este é o critério de sua vida No seu entendimento o processo terapêutico também está estreitamente ligado com a espiritualidade O problema da cura é um problema religioso A psicanalista junguiana Brigitte Dorst reúne neste volume uma seleção dos escritos mais importantes de CG Jung sobre o tema espiritualidade e transcendência e mostra a grande importância da dimensão espiritual vista pela ótica da Psicologia Analítica Orelhas Durante toda a sua vida CG Jung se ocupou intesamente e de forma crítica com a temática religiosa e espiritual Seu interesse voltouse para o âmbito das experiências espirituais situadas para além de diferentes denominações e confissões igrejas e tradições religiosas A experiência espiritual independentemente da religião era para Jung um fenômeno evidente e presente na alma e desse modo também um fenômeno psíquico A convicção de Jung era esta A meu ver as religiões com tudo o que são e representam têm uma proximidade tão grande da alma humana que a psicologia de modo algum pode ignorálas Em sua Psicologia Analítica Jung procura apresentar uma compreensão da psique como espaço de experiência do numinoso permitindo novos modos de ver fenômenos e experiências religiosas que até aquele momento não haviam sido tratados na Psicologia da Religião como escreve Brigitte Dorst A presente seleção de textos feita por ela e a extensa introdução evidenciam a importância da espiritualidade na Psicologia Analítica e mostram como é grande o leque dos temas espirituais e das tradições religiosas com que Jung se ocupou Brigitte Dorst é professora de Psicologia psicanalista e psicoterapeuta junguiana com consultório em Münster Alemanha É coordenadora científica da Sociedade Internacional de Psicologia Profunda Entre seus trabalhos mais intensos estão os temas da espiritualidade da psicologia dos símbolos da identidade e da velhice Há muitos anos dirige cursos de aprofundamento em Psicologia Analítica bem como um centro de meditação Jogos de poder Fexeus Henrik 9788532653574 280 páginas Compre agora e leia Este livro inclinará a balança ao seu favor Não importa se você for vendedor advogado garçom professor cuidador gerente estratégico estudante ou encantador de cães a meta é ajudálo a dominar a arte de conseguir o que quer e não o que os outros querem Deixeos envolvidos em aulas e pesquisas Atividades assim podem ser interessantes e divertidas mas não são realmente necessárias Mais fácil é parar de ser um seguidor e tornarse um líder Compre agora e leia A linguagem corporal dos lideres Kinsey Goman Carol 9788532648686 304 páginas Compre agora e leia A linguagem corporal é a administração do tempo do espaço da aparência da postura do gesto da prosódia vocal do toque do cheiro da expressão facial e do contato visual A mais recente pesquisa na neurociência e psicologia provou que a linguagem corporal é crucial para a eficácia da liderança e este livro vai mostrar a você exatamente como ela impacta a capacidade dos líderes em negociar administrar a mudança estabelecer a confiança projetar o carisma e promover a colaboração Compre agora e leia Sobre sentimentos e a sombra Jung C G 9788532649249 80 páginas Compre agora e leia Nos anos de 1957 e 1959 CG Jung respondeu em um círculo familiar de forma simples e bastante informal a perguntas referentes ao seu pensamento As exposições realizadas em suíçoalemão foram registradas em fita magnética por um dos participantes Posteriormente essas gravações foram transpostas para linguagem escrita da forma mais fiel e literal possível com o objetivo de tornálas acessíveis ao público não familiarizado com o alemão de Jung e assim surgiu esta obra Compre agora e leia Eu não sou meu cérebro Gabriel Markus 9788532657602 320 páginas Compre agora e leia Este livro visa de maneira universalmente compreensível e a partir de intelecções Einsicht antigas abrir novas perspectivas para a filosofia do espírito O autoconhecimento já se encontra afinal há muito tempo no centro da filosofia e a sua história prévia ajuda a compreender melhor de onde vêm tanto os verdadeiros quanto os aparentes problemas com os quais nos ocupamos até hoje Em que medida deveríamos adequar nossa imagem do ser humano ao progresso tecnológico Para que seja possível lidar de algum modo com questões como essa de maneira sensata devemos examinar de modo mais preciso do que estamos habituados a fazer no nosso dia a dia conceitos de nosso autorretrato tais como consciência espírito Eu pensamento ou liberdade Compre agora e leia Sociedade do cansaço Han ByungChul 9788532650832 80 páginas Compre agora e leia Os efeitos colaterais do discurso motivacional O mercado de palestras e livros motivacionais está crescendo desde o início do século XXI e não mostra sinais de desaquecimento Religiões tradicionais estão perdendo adeptos para novas igrejas que trocam o discurso do pecado pelo encorajamento e autoajuda As instituições políticas e empresariais mudaram o sistema de punição hierarquia e combate ao concorrente pelas positividades do estímulo eficiência e reconhecimento social pela superação das próprias limitações ByungChul Han mostra que a sociedade disciplinar e repressora do século XX descrita por Michel Foucault perde espaço para uma nova forma de organização coercitiva a violência neuronal As pessoas se cobram cada vez mais para apresentar resultados tornando elas mesmas vigilantes e carrascas de suas ações Em uma época onde poderíamos trabalhar menos e ganhar mais a ideologia da positividade opera uma inversão perversa nos submetemos a trabalhar mais e a receber menos Essa onda do eu consigo e do yes we can tem gerado um aumento significativo de doenças como depressão transtornos de personalidade síndromes como hiperatividade e burnout Este livro transcende o campo filosófico e pode ajudar educadores psicólogos e gestores a entender os novos problemas do século XXI Compre agora e leia Table of Contents Folha de rosto Ficha catalográfica Copyright Nota do editor Introdução I As dimensões da Psique O inconsciente pessoal e o inconsciente suprapessoal ou coletivo A função transcendente A autonomia do inconsciente II Simbolismo religioso A função dos símbolos religiosos A cura da divisão III Psicoterapia e religião Introdução à problemática da psicologia religiosa da alquimia Sobre a relação entre a psicoterapia e a direção espiritual Religião e psicologia uma resposta a Martin Buber IV Caminhos Espirituais e Sabedoria Oriental Comentário psicológico sobre o Livro Tibetano da Grande Libertação A ioga e o Ocidente Prefácio à obra de Suzuki A Grande Libertação Considerações em torno da psicologia da meditação oriental Prefácio ao I Ging V Realidade e Transcendência da Psique O real e o suprarreal Sobre a sincronicidade A alma e a morte Sobre o renascimento Textos de capa