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Psicologia ·

Psicologia Social

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Identidade Antonio da Costa Ciampa Uma pergunta aparentemente simples Quem é você É uma pergunta que freqüentemente nos fazem e que às vezes fazemos a nós mesmos Quem sou eu Quando esta pergunta surge podemos dizer que estamos pesquisando nossa identidade Como em qualquer pesquisa esta mos em busca de respostas de conhecimento Por se tratar de uma pergunta feita a nosso respeito é fácil darmos uma resposta ou nao é Se é um conhecimento que buscamos a respeito de nós mesmos podemos supor que estamos em condições de fornecêlo Afinal se trata de dizer quem somos Experimente N5o continue lendo antes de responder a esta pergunta quem évocê Pronto Respondeu de forma a qualquer pessoa depois dè ouvir sua resposta poder afirmar que o conhece Sua resposta toma possível você se mostrar ao outro e ao mesmo tempo você se reconhecer de forma total e transparente de modo a não haver nenhuma dúvida nenhum segredo a seu respeito Sua resposta produz um conheci mento que o toma perfeitamente previsível Ninguém nem mesmo você depois de conhecer essa resposta terá dúvida sobre como você vai agir pensar sentir em qualquer situação que surja AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 59 Acredito que se você foi sincero estas questões todas podem ter levantado algumas duvidas Será tão fácil dizer quem somos Se como estou supondo não é tão fácil como pode parecer a primeira vista podemos admitir que este é um problema digno de uma pesquisa científica e não só por causa disso Psicólogos sociólogos antropólogos os mais diversos cientistas sociais têm estudado a questão da identidade filósofos também Não só pela dificuldade mas também pela importância que esta questão apre senta outros especialistas têm se envolvido com ela e não só cientis tas e filósofos nos tribunais juizes ptomotores advogados peritos etc na administração tanto pública como privada na polícia na escola no supermercado etc enfim em praticamente todas as situações da vida cotidiana a questão da identidade aparece de uma forma ou de outra e também fora do cotidiano quem era mesmo aquela personagem com quem sonhei ontem Você já reparou como as novelas de TV exploram esse filão Ê frequente uma personagem viver um grande drama porque de repente des cobre estar enganada a respeito da identidade de outra personagem é seu pai sua mâe seu filho sua irmã etc e não quem pensava que fosse conseqüentemente descobre ao mesmo tempo que também estava enganado a respeito da própria identidade afinal se esse desconhecido é meu pai então eu sou seu filho e não de quem pensava a identidade do outro reflete na minha e a minha na dele afinal ele só é meu pai porque eu sou filho dele Outro exemplo nas histórias policiais quase sempre o enredo é todo montado para que se descubra a identidade do criminoso não só no sentido de saber quem cometeu o crime mas também como se tomou criminoso por vezes a história se desenvolve de tal modo que nos os espectaàores ou leitores sabemos quem é o criminoso mas as demais personagens da história não sabem isto nos levanta uma outra questão pelo fato de os outros nãx saberem ele deixa de ser criminoso Que é ser criminoso1 É cometer um ato criminoso Pense no exemplo digamos fictício de poderosos cidadãos que cometem atos que você considera criminosos mas não são perse guidos pela polícia e pela justiça Podemos falar numa identidade oculta Pense numa história de espionagem a identidade do espião exatamente se caracteriza como uma identidade oculta pelo menos para os espionados sendo que suas aventuras prati camente terminam ou deixam de ser atraentes quando essa identidade é revelada Até os superheróis têm sua identidade secreta aquilo de que o SuperHomem tem mais medo é que 60 ANTONIO DA COSTA CUMPA descubram quem ele é na vida cotidiana como muitos de nos que escondemos algum aspecto de nossa identidade e morremos de medo que os outros descubram esse nosso lado oculto A literatura o cinema a TV as histórias em quadrinhos as artes num sentido bem amplo também lidam com o problema da identidade e podem nos ensinar muito a respeito Voltemos a nosso ponto de partida Se como afirmamos estamos falando de nossa identidade quando respondemos à pergunta quem sou eu a primeira observação a ser feita é que nossa identidade se mostra como a descrição de uma personagem como em uma novela de TVt cuja vida cuja biografia aparece numa narrativa uma história com enredo personagens cenários etc ou seja como personagem que surge num discurso nossa resposta nossa história Ora qualquer discurso qualquer história costuma ter um autor que constrói a personagem Cabe perguntar então você é a personagem do seu discurso ou o autor que cria essa personagem ao fazer o discurso Se você é a personagem de uma história quem é o autor dessa história Se nas histórias da vida real nao existe o autor da história será que não sâo todas as personagens que montam a história Todos nós eu você as pessoas com quem convivemos somos as personagens de uma história que nós mesmos criamos fazendonos autores e personagens ao mesmo tempo Com esta afirmação já antecipamos o que se poderia dizer caso nos consideremos o autor que cria nossa personagem o autor mesmo é personagem da história Na verdade assim poderíamos afirmar que há uma autoria coletiva da história aquele que costumamos designar como autor seria dessa forma um narrador um contador de his tória Com isso podemos perceber outro fato curioso nao só a identidade de uma personagem constitui a de outra e viceversa o pai do filho e o filho do pai como também a identidade das personagens constitui a do autor tanto quanto a do autor constitui a das personagens A trama parece complicarse pois é sabido que muitas vezes nos escondemos naquilo que falamos o autor se oculta por trás da personagem Mas da mesma forma como um autor acaba se revelando através de seus personagens é muito freqüente nos revelarmos através daquilo que ocultamos Somos ocultação e reve lação AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL W Até agora falamos das pessoas como se elas fossem de urna determinada forma e não se modificassem o que é falso Basta observarmos nossos próximos basta nos observarmos No mínimo as pessoas ficam mais velhas a criança se torra adulto o adulto ancião No máximo o que seria no máximo Não reconheço mais Fulano é outra pessoa1 Há mudanças mais ou menos previsíveis mais ou menos desejáveis mais ou menos controláveis mais ou menos mudanças O estudante que se torna um profissional depois de formado representa uma mudinça bem mais previsível do que a do jovem nosso amigo de infância que se torna um criminoso ê lógico que implicitamente estamos também considerando certas condições de classe social numa outra situação social a previsi bilidade pode ser invertida infelizmente Outro exemplo a moci nha que se torna donadecasa mãe de filhos etc vive uma mudança mais desejável do que a daquela que se torna prostituta novamente há algo implícito nesse julgamento valores etc O desempregado que se torna alcoólatra ou criminoso etc sofre uma mudança provavelmente menos controlável do que a do escriturário que se toma gerente como você consideraria aqui a questão de classe de valores etc Há mudanças e mudanças quem muda mais o heterossexual que se torna homossexual ou o adepto de uma religião que se torna ateu O alienado politicamente que se toma revolucionário ou o civil que se torna militar Nós nos tomamos algo que não éramos ou nos tomamos algo que já éramos e estava como que embutido dentro de nós Parece que quando se trata de algo positivamente valorizado a tendência nossa é afirmar que estava embutido em nós sempre tive vocação para ser médico quando não desejável freqüentemente estava embutido1 nos outros sempre achei que ele tinha propensão para o crime que ele tinha um jeito de bicha Q u e dizer da jovem que se tema donadecasa E do religioso que se torna ateu O escriturário que se torna gerente está realizando uma tendência uma vocação1 Podemos imaginar as mais diversas combinações para con figurar uma identidade como uma totalidade Uma totalidade contraditória múltipla e mutável no entanto una Por mais contraditório por mais mutável que seja sei que sou eu que sou assim ou seja sou uma unidade de contrários sou uno na multipli cidade e na mudança Quando nossa unidade é percebida como ameaçada quando corremos o risco de não saber quem somos quando nos sentimos 62 ANTONIO DA COSTA CIAMPA desagregando temos maus pressentimentos temos o pressenti mento de que vamos enlouquecer aprendemos a ter horror de sermds outro1 quando queremos ofender alguém cantarolamos um refrão bastan te conhecido Fulano não é mais aquele Z1 não é à to a que o tipo clássico de piada de louco envolve alguém que diz que é quem não ê Napoleão Jesus Cristo etc nestes casos é fácil verificar que ele não é quem diz que é Porém será sempre fácil saber que alguém é ou não é quem diz que é Num certo sentido podese considerar a chamada doença mental como um problema de identidade o louco é nosso outro tanto quanto o curado é o outro do louco Não afirma o dito popular que de médico e de louco cada um tem um pouco Desde o início estamos jogando perguntas em cima de per guntas provocativamente para uma questão que parecia tão simples Talvez valesse a pena segurar essas duvidas e examinar a questão de forma menos interrogativa Vamos tentar separar dois tipos de problema os de natureza empírica prática e os de natureza teórica e filosófica No princípio era o verbo Quando queremos conhecer a identidade de alguém quando nosso objetivo é saber quem alguém é nossa dificuldade consiste apenas em obter as informações necessárias O pai que deseja saber quem são os amigos que andam com seu filho a mãe que procura conhecer o namorado da filha o empregador que seleciona um candidato para trabalhar o comerciante lojista ou banqueiro que procura se assegurar da credibilidade de um cliente a quem vai fazer um empréstimo todos eles procuram tomar informações através dos mais variados mejos e formas a natureza das informações pode variar mas todas têm em comum o fato de permitirem um conheci mento da identidade da pessoa a respeito de quem as informações são tomadas Assim obter as informações necessárias é uma questão prá tica quais as informações significativas quais as fontes confiáveis quem dá as referências de que forma obter as informações como interpretar e analisar essas informações etc Enfim o mesmo procedimento que um cientista adota ao fazer uma pesquisa empí rica talvez sem a sofisticação habitual numa pesquisa científica A5 CATEGORIAS FUNDAMENTAIS D PSICOLOGIA SOCIAL 63 Aqui não pròblematizamos o resultado obtido não compli camos a questão supomos que as informações nos revelam a reali dade Essa crença é a mesma que guia nossas açôes mais corri queiras da vida cotidiana Nossos rituais sociais escondem a dificuldade implícita nessa maneira de pensar e de agir é fácil imaginar como se tornaria difícil conviver com outras pessoas se nào houvesse a suposição compartilhada por todoJnós de que normal mente um indivíduo é a pessoa que diz que é e que os outros dizem que é Pense numa apresentação social um amigo chega com um desconhecido e diz Este é Fulano meu colega e após você o cumprimentar o novo conhecido diz Muito prazer sou Fulano ou então Sou Fulano a seu dispor etc Se as informações são verdadeiras então a realidade está conhecida pelo menos agimos como se estivesse depois de uma apresentação dizemos que o apresentado é nosso conhecido11 Como são fornecidas essas informações A forma mais simples habitual e inicial é fornecer um nome um substantivo se olharmos o dicionário veremos que substantivo é a palavra que designa o ser que nomçia o ser Nós nos identificamos com nosso nome que nos identifica num conjunto de outros seres que indica nossa singularidade nosso nome próprio Falamos chamome Fulano sem prestar muita atenção ao fato de que antes que eu me chamasse Fulano1 eu era chamado Fulano ou seja nós nos chamamos da forma como os outros nos chamam Nós nos tornamos nosso nome pense em você mesmo com outro nome nào como outra pessoa mas você mesmo com outro nome há um sentimento de estranheza parece que não encaixa Geralmente as pessoas se sentem ofendidas quando por qualquer motivo tro camos seu nome é sinal de amizade e respeito nào esquecer nem confundir o nome das pessoas que prezamos A não ser em casos excepcionais o primeiro grupo social do qual fazemos parte é a família exatamente quem nos dá nosso nome Nosso primeiro nome preñóme nos diferencia de nossos familiares enquanto o último sobrenome nos iguala a eles Diferença e igualdade É uma primeira noção de identidade Sucessivamente vamos nos diferenciando e nos igualando conforme os vários grupos sociais de que fazemos parte brasileiro igual a outros brasileiros diferente dos estrangeiros nós os brasileiros somos enquanto os estrangeiros são homem ou niulher os homens são enquanto as mulheres são1 Os 64 ANTONIO DA COSTA C1AMPA exemplos podem se multiplicar indefinidamente os corintianos são enquanto os torcedores dos outros clubes so O conhecimento de si é dado pelo reconhecimento reciproco dos indivíduos identificados através de um determinado grupo social que existe objetivamente com sua história suas tradições suas normas seus interesses etc Um grupo pode existir objetivamente por exemplo uma classe social mas seus componentes podem não se identificar como seus membros e nem se reconhecerem reciprocamente Ê fácil parece perceber as conseqüências de tal fato seja para o indivíduo seja para o grupo social Mas se é verdade que minha identidade é constituída pelos diversos grupos de que faço parte esta constatação pode nos levar a um erro qual seja o de pensar que os substantivos com os quais nos descrevemos sou brasileiro sou homem etc expressam ou indicam uma substância brasilidade masculinidade etc que nos tornaria um sujeito imutável idêntico a simesmo manifestação daquela substância Para compreendermos melhor a idéia de ser a identidade constituída pelos grupos de que fazemos parte fazse necessário refletirmos como um grupo existe objetivamente através das relações que estabelecem seus membros entre si e com o meto onde vivem isto é pela sua prática pelo seu agir num sentido amplot podemos dizer pelo seu trabalho agir trabalhar fazer pensar sentir etc já não mais substantivo mas verbo Usamos tanto o substantivo que esquecemos do fato original do agir Eva comeu a maçã Prometeu roubou o fogo dos céus Oxali com seu cajado separou o mundo dos homens do mundo dos deuses Como devemos dizer o pecador peca o desobediente desobedece o trabalhador trabalha Ao dizer assim estamos pressupondo antes da ação do fazer uma identidade de pecador de desobediente de trabalhador etc contudo é pelo agir pelo fazer que alguém se torna algo ao pecar pecador ao desobedecer desobediente ao trabalhar traba lhador Estamos constatando talvez uma obviedade nós somos nossas ações nós nos fazemos pela prática a não ser por gozação você chamaria trabalhador alguém que não trabalhasse essa obviedade que nos coloca frente a um complicadíssimo problema teórico Até aqui estávamos tratando a identidade como um dado a ser pesquisado como um produto preexistente a ser conhecido AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 69 deixando de lado a questão fundamental de saber como se dá esse dado como se produz esse produto A resposta à pergunta quem sou eu é uma representação da identidade Então tomase necessário partir da representação como um produto para analisar o próprio processo de produção Uma questão complicada O que é identidade Já vimos que nos satisfazer com a concepção de que se trata da resposta dada à pergunta quem sou eu é pouco é insatisfatório Ela capta o aspecto representacional da noção de identidade enquanto produto mas deixa de lado seus aspectos constitutivo de produção bem como as implicações recíprocas destes dois aspectos Mesmo assim nosso ponto de partida poderá ser a própria representação considerandoa também como processo de produçào de tal forma que a identidade passe a ser entendida como o próprio processo de identificação Dizer que a identidade de uma pessoa é um fenômeno social e não natural é aceitável pela grande maioria dos cientistas sociais Exatamente isso nos permitirá caminhar Com efeito se esta belecermos uma distinção entre o objeto de nossa representação e a sua representação veremos que ambos se apresentam como fenô menos sociais conseqüentemente como objetos sem características de permanência não sendo independentes um do outro Não podemos isolar de um lado todo um conjunto de elementos biológicos psicológicos sociais etc que podem caracterizar um indivíduo identificandoo e de outro lado a representação desse indivíduo como uma duplicação mental ou simbólica que expressaria a sua identidade Isso porque há como que uma interpenetração desses dois aspectos de tal forma que a individualidade dada já pressupõe um processo anterior de repre sentação que faz parte da constituição do indivíduo representado Por exemplo antes de nascer o nascituro já é representado como filho de alguém e essa representação prévia o constitui efetivamente objetivamente como filho membro de uma determinada famí lia posteriormente essa representação é assimilada pelo individuo ic tal forma que seu processo interno de representação é incor porado na sua objetividade social como filho daquela família 66 ANTONIO DA COSTA CIAMPA É verdade que não basta a representação prévia O nascituro uma vez nascido constituirseá como filho na medida em que as relações nas quais esteja envolvido concretamente confirmem essa representação através de comportamentos que reforcem sua conduta como filho e assim por diante Temos de considerar também esse aspecto operativo e não só o representacional Contudo é na medida em que é pressuposta a identificação da criança como filho fe dos adultos em questão como pais que os comportamentos vão ocorrer caracterizando a relação paterno filial Desta forma a identidade do filho se de um lado é conseqüência das relações que se dão de outro com anterioridade é uma condição dessas relações Ou seja é pressuposta uma identidade queé reposta a cada momento sob pena de esses objetos sociais filho pais família etc deixarem de existir objeti vamente ainda que possam sobreviver seus organismos físicos meros suportes que encarnam a objetividade do social Isto introduz uma complexidade que deve ser considerada aqui Uma vez que a identidade pressuposta é reposta ela é vista como dada e não como se dando num contínuo processo de identificação É como se uma vez identificada a pessoa a produção de sua identidade se esgotasse com o produto Na linguagem corrente dizemos eu sou filho dificilmente alguém dirá estou sendo filho Daí a expectativa generalizada de que alguém devè agir de acordo com o que é e conseqüentemente ser tratado como tal De certa forma reatualizamos através de rituais sociais uma iden tidade pressuposta que assim é reposta como algo já dado retirando em conseqüência o seu caráter de historicidade aproximandoa mais da noção de um mito que prescreve as condutas corretas reproduzindo o social O caráter temporal da identidade íica restrito a um momento originário quando nos tornamos algo por exemplo sou professor torneime professor e desde que essa identificação existe me é dada uma identidade de professor como uma posição assim como filho também Eu como ser social sou um serposto A posição de mim o eu serposto me identifica discri minandome como dotado de certos atributos que me dão uma identidade considerada formalmente como atemporal A reposiçâo da identidade deixa de ser vista como uma sucessão temporal AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 67 passando a ser vista como simples manifestação de um ser idêntico a simesmo na sua permanência e estabilidade A mesmice de mim é pressuposta como dada permanentemente e não como reposição de uma identidade que uma vez foi posta Vejamos um exemplo quando alguém é identificado como pai Podese responder que é quando nasce uma criança gerada por esse indivíduo esse fato contudo assim considerado ainda é um fato físico e ser pai é um fato social A paternidade tornase uni fenômeno social quando aquele evento físico é classificado como tal por ser considerado equivalente a outras paternidades prévias O pai se identifica e é identificado como tal por se encontrar na situação equivalente de outros pais t afinal ele também é filho de um pai Se ele é pai e a mesmice de si está assegurada sua identidade de pai está constituída permanen temente de fato ele se tornou pai e assim permanecerá enquanto reconhecer e for reconhecida essa identidade ou seja enquanto ela estiver sendo resposta cotidianamente Ora mas ao mesmo tempo ele também é filho esse outro que ele é é negado na sua posição como pai pois se ele permanecesse como filho a posição de seu filho estaria ameaçada já que a diferença não se estabeleceria Dessa forma cada posição minha me determina fazendo com que minha existência concreta seja a unidade da multiplicidade que se realiza pelo desenvolvimento dessas determinações Em cada momento de minha existência embora eu seja uma totalidade manifestase uma parte de mim como desdobramento das múltiplas determinações a que estou sujeito Quando estou írente a meu filho relacionome como pai com meu pai como filho e assim por diante Contudo meu filho não me vê apenas como pai nem meu pai apenas me vê como filho nem eu compareço frente aos outros apenas como portador de um único papel mas sim como o representante de mim com todas minhas determinações que me tornam um indivíduo concreto Desta forma estabelecese uma intrincada réde de representações que permeia todas as relações onde cada identidade reflete outra identidade desaparecendo qual quer possibilidade de se estabelecer um fundamento originário para cada uma delas Este jogo de reflexões múltiplas que estrutura as relações sociais é mantida pela atividade dos indivíduos de tal forma que é licito dizerse que as identidades no seu conjunto refletem a estrutura social ao mesmo tempo que reagem sobre ela conser vandoa ou a transformando 68 ANTONIO DA COSTA C1AMPA As atividades de indivíduos identificados são normatizadas tendo em vista manter a estrutura social vale dizer conservar as identidades produzidas paralisando o processo de identificação pela reposição de identidades pressupostas que um dia foram postas Assim a identidade que se constitui no produto de um permanente processo de identificação aparece como um dado e não como um darse constante que expressa o movimento do social Para prosseguirmos há necessidade de uma rápida digressão sobre o movimento do social ele é em última análise a História A História é a progressiva e contínua hominização do Homem a partir do momento que este diferenciandose do animal produz suas condições de existência produzindose a si mesmo conse qüentemente A História então como a entendemos é a história da autoprodução humana o que faz do Homem um ser de possibi lidades que compõem sua essência histórica Diferentes momentos históricos podem favorecer ou dificultar o desenvolvimento dessas possibilidades de humanização do Homem mas é certo que a continuidade desse desenvolvimento concretização constitui a substância do Homem o concreto que em si é possibilidade e pela contradição interna desenvolvese levando as diferenças a exis tirem para serem superadas aquela só deixará de existir se não mais existir nem História nem Humanidade Assim o Homem como espécie é dotado de uma substância quet embora não contida totalmente em cada indivíduo faz deste um participante dessa substância Qk que cada homem está enredado num determinado modo de apropriação da natureza no qual se configura o modo desuas relações com os demais homens Então eu como qualquer ser humano participo de uma substância humana que se realiza como história e como sociedade nunca como indivíduo isolado sempre como humanidade Nesse sentido embora não toda ela eu contenho uma infi nitude de humanidade o que me faz uma totalidade que se realiza materialmente de forma contingente ao tempo e ao espaço físicos e sociais de tal modo que cada instante de minha existência como indivíduo é um momento de minha concretização o que me torna parte daquela totalidade em que sou negado como totalidade sendo determinado como parte assim eu existo como negação de AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 9 mimmesmo ao mesmo tempo que o que estousendo sou eumesmo Em conseqüência sou o que estousendo urna parcela de minha humanidade isso me dá uma identidade que me nega naquilo que sou sem estarsendo a minha humanidade total Essa identidade que surge como representação de meu estar sendo se converte num pressuposto de meu ser como totalidade o que formalmente transforma minha identidade concreta enten dida como um darse numa sucessão temporal em identidade abstrata num dado atemporal sempre presente entendida como identidade pressuposta reposta Isso ocorre porque compareço perante outrem como repre sentante de mimmesmo a partir dessa pressuposição de identidade que se encarna como uma parte de mimcomo totalidade Essa identidade pressuposta não é uma simples imagem mental de mimmesmot pois ela se configurou na relação com outrem que lanibém me identifica como idêntico a mimmesmo desse modo ao me objetificar e ser objetificado por outrem pelo caráter atemporal formalmente atribuído à minha identidade o que estou sendo como parte surge como encarnação da totalidade de mim seja para mim seja para outrem isso confunde o meu comparecimento frente a outrem em como representante de mim com a expressão da totalidade do meu ser de mim como representado Isto se dá porque cada comparecimento meu frente a outrem envolve representação num tríplice sentido 1 eu represento enquanto estou sendo o representante de mim com uma identidade pressuposta e dada fantasmagóri camente como sempre idêntica 2 eu represento em conseqüência enquanto desempenho papéis decorrentes de minhas posições ocultando outras partes de mim não contidas na minha identidade pressuposta e reposta caso contrário eu nào sou o representante de mim 3 eu represento finalmente enquanto reponho no presente o que tenho sido enquanto reitero a apresentação de mim reapre sentado como o que estou sendo dado o caráter formalmente atemporal atribuído à minha identidade pressuposta que está sendo reposta encobrindo o verdadeiro caráter substancialmente temporal de minha identidade como uma sucessão do que estou sendo como devir Ao me representar no primeiro sentido representante de mim transformome num desigual de mim por representar no 70 ANTONIO DA COSTA CIAMPA segundo sentido desempenho de papéis um outro que sou eu mesmo o que estou sendo parcialmente como desdobramento de minhas múltiplas determinações e que me determina e por isso me nega impedindo que eu deixe de representar no terceiro sentido reapresentação para expressar o outro outro que também sou eu o que sou sem estar sendo que negaria a negação de mim indicada pelo representar no sentido antenor o segundo Ora essa expressão do outro outro que também sou eu consiste na alterização da minha identidade na supressão de minha identidade pressuposta e no desenvolvimento de uma identidade posta como metamorfose constante em que toda huma nidade contida em mim pudesse se concretizar pela negação não representar no terceiro sentido do que me nega representar no segundo sentido de forma que eu possa como possibilidade e tendência representarme no primeiro sentido sempre como diferente de mim mesmo a fim de estar sendo mais plenamente Ou seja só posso comparecer no mundo frente a outrem efetivamente como representante do meu ser real quando ocorrer a negação da negação entendida como deixar de presentificar uma apresentação de mim que foi cristalizada em momentos anteriores deixar de repor uma identidade pressuposta ser movimento ser processo ou para utilizar uma palavra mais sugestiva se bem que polêmica ser metamorfose Nem aitfo nem besta apenas homem A análise teórica feita até aqui inverte totalmente a noção tradicional que se tem de identidade ou seja o que é ê um ser é idêntico a ele mesmo isso decorreria da necessidade para o ser de ser o que é Mas o que quer dizer o ser ser o que é Vejamos um exemplo clássico uma semente já contém em si uma pequena plantinha a planta plenamente desenvolvida e seus frutos de onde sairão novas sementes Então ser semente é ser semente mas não só a mesma semente como também a plantinha a planta desenvolvida o fruto e a nova semente uma multiplicidade que naturalmente já está contida na semente e que se concretiza pela transformação em fruto ou seja pelo fazerse outro para então retornar a si mesmo outro outro São distintos momentos cuja AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 71 unidade constitui o concreto uma unidade múltipla como vimos e também contraditória pois a semente não permanece como se mente para ser o que é ela precisa ser negada morrer uma semente que permanecesse indefinidamente semente nao seria semente Não germinaria não seria negada ela precisa deixar de ser semente para ser plenamente semente Então r o ser ser o que é implica o seu desenvolvimento concreto a superação dialética da contradição que opõe Dm e Outro fazendo devir um outro outro que é o Um que contém ambos E para o Homem o que é para o ser humano ser o que é Voltemos a uma afirmação feita anteriormente sobre o movi mento do social o qual constitui a História ela é a progressiva e contínua hominizaçâo do Homem a partir do momento em que este diferencian dose do animal produz suas condições de exis tência produzindose a si mesmo conseqüentemente Assim o existir humanamente não está garantido de antemão nem é uma mudança que se dá naturalmente mecanicamente exatamente porque o homem é histórico E afinal a História nem é um Deus que conduz os homens a seus desígnios secretos nem é um processo com um fim último isto seria reduzir o homem à c o n d iç ã o de coisa desconhecer a infinitude humana conceber os homens como seres que chegarão a realizar sua plenitude e nada mais pudessem viraser depois de um momento dado seria considerar que tudo o que foram são serâo e podem ser se esgotasse num absoluto que negasse a dialética do fenômeno humano é verdade que um fato ocorrido é irrecorrível definitivamente mas seus desdobramentos assim como seus significados são imprevisíveis e suas transformações infindáveis o que não significa que certas alternativas não possam ser impossíveis Uma alternativa impossível é o homem deixar de ser social e histórico ele não seria homem absolutamente Outra impossibili dade é deixar de ser também um animal conseqüentemente subme tido às condições dessa sua natureza orgânica tal como a planta à sua natureza vegetal Contudo e por isso foi grifada a palavra também não pode ser só animal dada sua natureza social e histórica Então nem anjo nem besta o homem é homem não como uma afirmação tautológica mas como uma afirmação da mate rialidade da contínua e progressiva hominizaçâo do homem De um lado portanto o homem não está limitado no seu viraser por um fim preestabelecido como a semente de outro 72 ANTONIO DA COSTA ClAMPA não está liberado das condições históricas em que vive de modo que seu viraser fosse uma indeterminação absoluta A primeira constatação acima de que o viraser do homem não pode se confundir com o de uma semente deve servir para questionar toda e qualquer concepção fatalista mecanicista de um destino inexorável seja nas suas formas mais supersticiosas sou pobre porque Deus quer nasceu para ser criminoso etc seja çm formas mais sofisticadas de teorias pseudocientíficas por exemplo em certas versões de teorias de personalidade A segunda constatação de que o homem não está liberado de suas condições históricas nos coloca um problema e uma tarefa O problema consiste em que não é possível dissociar o estudo da identidade do indivíduo do da sociedade As possibilidades de diferentes configurações de identidade estão relacionadas com as diferentes configurações da ordem social Foge às finalidades e aos limites deste artigo analisar sob quais condições vivemos hoje em nossa sociedade brasileira e conseqüentemente como considerar as alternativas de identidade possíveis aqui e agora Fique claro contudo que uma anlise geral como a que está sendo feita precisa ser traduzida para uma análise das circunstâncias concretas e especificas atuais é do contexto histórico e social em que o homem vive que decorrem suas determinações e conseqüentemente emer gem as possibilidades ou impossibilidades os modos e as alterna tivas de identidade O fato de vivermos sob o capitalismo e a complexidade crescente da sociedade moderna impedemnos de ser verdadeiramente sujeitos A tendência geral do capitalismo é constituir o homem como mero suporte do capital que o determina negandoo enquanto homem já que se torna algo coisificado tornase trabalhadormercadoria e não trabalha autonomamente tomase capitalistapfopriedade do capital e não proprietário das coisas Recorrendo a uma metáfora já utilizada anteriormente o homem deixa de ser verbo para ser substantivo Esta constatação deve ser entendida como indicação de fato que resulta histori camente ligado a um determinado modo de produção e não como algo inerente à natureza humana Genericamente falando a questão da identidade se coloca de maneira diferente em diferentes sociedades précapitalistas capitalistas póscapitaüstas etc há especificidades inclusive dentro de um mesmo modo de produção ligadas à ordem simbólica de cada sociedade há quase sempre a sobrevivência de formas arcaicas de identidade etc etc AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 73 Este problema assim formulado sugere um ampio programa dt pesquisas empíricas que certamente mostrariam como pano de fundo o verdadeiro problema de identidade do homem moderno a Cilio entre o indivíduo e a sociedade que faz coni que cada indivíduo não reconheça o outro como ser humano e conseqüen temente não se reconheça a si próprio como humano Isto está ftliim expresso num verso magistral de Mário de Andrade quando ala de São Paulo Ninguém chega a ser um nesta cidade11 Chegar a ser um ou o que é o mesmo ier uma metamorfose ambulante Se o problema que consideramos está na relação individuo e wciedade que tarefa dai decorre A realização de um projeto político A questão da identidade nos remete necessariamente a um projeto político Tentando explicar chegamos até aqui partindo da pergunta o que é para o ser humano ser o que ét1 buscamos uma resposta considerando sua natureza social e histórica expressa pela conti nua e progressiva hominização do homem1 Com isso procuramos esclarecer que o homem em si humanizável humanizase por si este o devir humano Desta forma o futuro se coloca como contínua e progressiva realização da humanidade porém como não é possível aprioris tieamente esgotar a definição do conteúdo de ser humano esta infindável tarefa se nos impõe de maneira inescapável Não se trata evidentemente de conceitos abstratos e definitivos que considerem o homem como pura consciência só como subjetividade este o risco idealista nem também de reduzilo à simples condição de coisa só como objetividade esta a armadilha materíalistamecanicista Tratase de considerar a superação dialética desse dualismo peia prâxis Tratase de não contemplar inerte e quieto a historia Mas de se engajar em projetos de coexistência humana que possibilitem um sentido da história como realização de um porvir a ser feito com os outros Projetos que não se definam aprioristícamente por um modelo de sociedade e de homem que todos deveriam sofrer totali tariamente e identicamente mas projetos que possam tender 74 ANTONIO DA COSTA CUMPA convergir ou concorrer para a transformação real de nossas condições de existencia de modo que o verdadeiro sujeito humano venha à existencia Qualquer tendencia convergência ou concor rência que se arvore em Verdade em ação em expressão definitiva e acabada de um único projeto de transformação absolutizase tornandose antidíalética antihistórica antihumana A formulação de tal política de uma política de identidade do Homem da nossa sociedade a realização de tais projetos para ser coerente com seus propósitos há de ser feita coletivamente e de forma democrática entendida aqui como forma racional A questão se coloca como uma questão prática e como tal deve ser enfrentada conscientemente por nós cada um de nós todos nós Acredito que além de outros dois fatores podem impedir esse engajamento consciente num projeto político O primeiro é ter uma atitude de um lado intelectual frente à questão da relação indivíduo e sociedade semelhante àquela que nos leva a discutir quem nasceu primeiro o ovo ou a galinha o que prevalece primeiro a sociedade ou primeiro o indivíduo De outro lado uma atitude prática semelhante à do asno indeciso entre deis montes de feno permanecendo no imobilismo o que atacar primeiro o indivíduo ou a sociedade O segundo fator é uma concepção de identidade como perma nência como estabilidade mais que uma simples concepção abstrata é vivermos privilegiando a permanência e a estabilidade e patologizando a crise e a contradição a mudança e a transfor mação Assim como que estancamos o movimento escamoteamos a contradição impedimos a superação dialética Identidade é movimento ê desenvolvimento do concreto Identidade é metamorfose É sermos o Um e uni Outro para que cheguemos a ser Um numa infindável transformação Bibliografía Fausto R Marx Lógica e Política São Paulo Brasiliense 1983 Giannotti J ÀT Trabalho e Reflexão São Paulo Brasiliense 1983 Habermas J Para a Reconstrução do Materialismo Histórico São Paulo Brasiliense 1983 Heller A A Filosofia Radical São Paulo Brasiliense 1983 AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA SOCIAL 75 I O Quotidiano e a História Rio de Janeiro Paz e Terra 1972 Dentro de uma preocupação mais empírica que filosófica podem ser mencionados especificamente Berger P e Luckmann T Construção Socio da Realidadet Petrópoüs Vozes 1973 Erikson E Identidade Juventudee Crise 2 ed Rio de Janeiro Zahar 1976 Goff man E A Representação do Eu rta Vida Cotidiana t Petrópolis Vozes 1975 Sarbin T R e Scheibe K E eds Studies in Sociaf Identity Nova Iorque Praeger Publishers 1983