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Psicologia ·
Psicologia Social
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CAPA lombadaindd 1 06Aug19 100959 AM Belo Horizonte 2019 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais Comissão de Psicologia Laicidade Espiritualidade Religião e outros Saberes Tradicionais 2019 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais É permitida a reprodução desta publicação desde que sem al terações e citada a fonte Capa Brasil84 Revisão ortográfica e gramatical Brasil84 Projeto e edição gráfica Brasil84 Impressão Gráfica Global Print Tiragem 1000 exemplares Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais Rua Timbiras 1532 6º andar Lourdes CEP 30140061 Belo HorizonteMG Telefone 31 21386767 wwwcrpmgorgbr crp04crp04orgbr Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais Comissão de Psicologia Laicidade Espiritualidade Religião e outros Saberes Tradicionais XV Plenário do Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais Gestão 20162019 DIRETORIA CONSELHEIRASOS Aparecida Maria de Souza Cruvinel Claudia Natividade Dalcira Ferrão Délcio Fernando Pereira Eliane de Souza Pimenta Eriane Sueley de Souza Pimenta Érica Andrade Rocha Ernane Maciel Felipe Viegas Tameirão Filippe de Mello Flávia Gotelip Leila Aparecida Silveira Letícia Gonçalves Madalena Luiz Tolentino Marcelo Arinos Márcia Mansur Saadallah Mariana Tavares Marília Fraga Odila Maria Fernandes Braga Paula Khoury Reinaldo Júnior Rita Almeida Robson de Souza Roseli de Melo Solange Coelho Stela Maris Bretas Souza Tulio Picinini Vilene Eulálio Waldomiro Salles Yghor Gomes Stela Maris Bretas Souza Conselheira Diretora Presidenta Aparecida Maria de Souza Cruvinel Conselheira Diretora VicePresidenta Felipe Viegas Tameirão Conselheiro Diretor Tesoureiro Délcio Fernando Pereira Conselheiro Diretor Secretário SuMáRIO Apresentação 5 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições os desafios de uma ciência e profissão no século XXI 9 A religião e as questões de gênero construções do conceito de espiritualidade na compreensão da diversidade sexual 36 Reinaldo da Silva Júnior Excurso sobre o humano e seus desdobramentos como perspectiva do póshumano 52 Henrique Marques Lott Por uma espiritualidade de enfrentamento ao fundamentalismo 75 Marcus Mareano O malestar na sociedade e seus efeitos sobre os matrimônios católicos contemporâneos a proposta de mediação religiosa do Encontro de Casais com Cristo 92 Denis Cotta Formiga Desafios e possibilidades da experiência de encontro inter religioso uma investigação fenomenológica 109 Yuri Elias Gaspar e Miguel Mahfoud Somos mudança Meditação saúde espiritual e transformação social 135 Wanderson Xavier Mendes A dimensão de espiritualidade e o enfrentamento ao fundamentalismo discutindo as relações de poder 151 Guaraci M Santos Terapia no mundo antigo e suas implicações para um diálogo entre Psicologia e Teologia 167 Davi C Ribeiro Lin Anexo I Nota de posicionamento sobre laicidade e religião 181 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 5 APRESENTAçãO Em novembro de 2017 na sede do CRP 04 começamos os trabalhos da Comissão de Laicidade Espiritualidade Religião e Outras Tradições batizada de Clerot O objetivo maior deste coletivo é pensar como a Psicologia enquanto ciência e profis são deve se relacionar com essa temática contribuindo para que nossa compreensão do ser humano e nosso trabalho junto a este possa ser mais eficiente na promoção da saúde como condição biopsicosocialespiritual conforme preconiza a OMS Entendemos que o profissional de Psicologia tanto em suas ações práticas em seus ambientes de trabalho quanto em seu exercício como produtor de um conhecimento científico na pes quisa precisa estar comprometido com um saber que contri bua com a construção de condições favoráveis a esta existência saudável Compromisso este que nos aproxima dos fenômenos sociais que são estruturantes da vida das pessoas e a religiosi dade em todas as suas manifestações compõe esse espectro Entendemos ainda que não é possível uma análise criteriosa desse fenômeno sem a garantia dos direitos à diversidade de ex pressão cultural por isso o olhar da Psicologia para a religião e para a espiritualidade precisa estar regido pela égide dos direitos humanos Tendo como horizonte de sentido os axiomas dos direitos hu manos e da saúde biopsicosocialespiritual a Clerot tem nos fenômenos religiosos e na experiência de espiritualidade das pes Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 6 soas seu recorte específico procurando construir uma reflexão psicológica que nos ajude a compreender como o ser humano é afetado e afeta o mundo Alguns princípios éticos precisam ser resguardados quando a Psicologia se propõe à seguinte reflexão em primeiro lugar a premissa da laicidade como condição da ciência Ou seja a ciência como uma racionalidade que se constitui de conceitos produzidos de forma racional a partir dos experimentos e da análise crítica de seus resultados não deve ser influenciada por dogmas Em segundo é preciso reconhecer a diversidade como condição ontológica e como tal precisa ser legitimada e preser vada nas relações humanas o que só se faz possível pelo diálogo e aproximação entre os diferentes é papel da Psicologia promo ver tal diálogo e garantir respeito à diversidade própria de nossa existência Neste período de trabalho a Clerot produziu uma nota de orientação dirigida à categoria e participou da Mostra de Práticas em comemoração ao Dia dao Psicólogao com uma roda de conversa sobre Psicologia e espiritualidade Também realizamos oficina de práticas psicológicas em comunidades terapêuticas organizamos juntamente à UFMG um seminário sobre a obra de Pierre Sanchis e sua relação com a Psicologia além de dois Psicologia em Foco Tivemos ainda como atividade ordinária as reuniões mensais da Comissão na sede A Clerot também peregrinou pelo estado com o ciclo de con ferências sobre laicidade espiritualidade e religião e essa ação teve como principal resultado a formação de grupos da Comissão em duas cidades Divinópolis e Uberlândia Participamos ain da do Grupo de Trabalho Nacional sobre laicidade espiritua lidade e religião além de termos sido convidados a falar sobre Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 7 a temática em eventos realizados em faculdades estivemos na UNA BH FAJE UFTM e Unileste Todo esse trabalho não poderia ficar restrito aos membros da Comissão e por isso produzimos este material para socializar com a categoria as reflexões que estão sendo geradas sobre o tema entendendo que assim podemos ampliar o olhar e apro fundar ainda mais as discussões trazendo à mesa atores que ainda não se engajaram no debate Temos a convicção de que apenas com o envolvimento das pessoas podemos construir uma visão crítica que nos permita compreender o ser humano e os fe nômenos que o cercam de maneira mais complexa nos levando à perspectiva holística necessária nesta investigação Sabemos no entanto que a compreensão do fenômeno reli gioso não se esgota mas observamos que essa discussão no mo mento atual de nossa história parece ganhar importância ainda maior pelo fato da questão religiosa começar a receber grande destaque na realidade cotidiana da sociedade ocupando os ce nários político educacional e econômico Assistimos a retomada de uma reflexão moral pautada por dogmas e não pela cons ciência ética Este espírito de época estimula sentimentos ul traconservadores que promovem a exclusão pelo préconceito e intolerância Grupos acabam se fechando em guetos e o diálogo fica comprometido além das relações que precisam do diálogo para se sustentar É dentro desse cenário que a Psicologia ganha papel relevante para o estudo da religião e da espiritualidade Os textos deste livro não apresentam soluções não serão eles que irão resolver a relação da Psicologia com a temática religiosa se é que essa relação será um dia resolvida definitivamente O que temos aqui é o resultado de uma construção coletiva com prometida em produzir este diálogo por entender que a principal Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 8 ferramenta da nossa profissão é a linguagem e por isso preci samos sempre promover as condições para que a linguagem se coloque como instrumento do encontro entre as pessoas Os autores apresentam seus textos tendo como unidade me todológica discursos que têm a intenção de mostrar caminhos transdisciplinares que permitam o diálogo epistemológico em di reção às aproximações e não aos distanciamentos conceituais na direção de maneiras de viver na diversidade construindo identidades que não se isolem mas que permitam o trânsito na multiplicidade É com esse espírito que apresentamos nosso tra balho para que todos possam usufruir e contribuir com os des dobramentos futuros Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições os desafios de uma ciência e profissão no século XXI COMISSãO DE LAICIDADE ESPIRITuALIDADE RELIGIãO E OuTROS SAbERES TRADICIONAIS Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 10 Resumo Observamos em nossa prática como Psicólogasos nos di versos espaços de atuação clínica particular serviços públicos políticas de saúde AD saúde mental uma forte presença do elemento religioso seja no discurso de pacientes ou na implemen tação de projetos de políticas de saúde ligados a instituições eou tradições religiosas Por conta da força dessa presença o fenôme no religioso vai atravessar a prática dao Psicólogao exigindo uma postura ética que deve ter como pressuposto a laicidade Mas será que ao Psicólogao está preparadao para absorver em sua prática profissional a perspectiva laica na relação com o fenômeno religioso entendendo que esta postura não deve construir uma barreira entre ciência e religião mas sim garantir o diálogo entre essas racionalidades O que entendo é que há a necessidade de produzir um saber psicológico sobre a religião capaz de reconhecer os aspectos políticos no qual o fenômeno se envolve distinguindo estes da experiência subjetiva que leva as pessoas a perceberem o sagrado e tomar consciência da existência de tal fazendo desta uma experiência revolucionária de encontro e sentido da vida Palavraschave Psicologia Laicidade Espiritualidade Religião Introdução A prática da Psicologia pela sua peculiaridade de ter como principal instrumento a escuta e como objeto privilegiado de es tudo a dimensão subjetiva e intersubjetiva do ser humano es Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 11 barra a todo momento com o fenômeno religioso A existência humana está indelevelmente marcada por essa condição A religião em sua concepção mais ampla vai se mostrar nas es truturas sociais e nas relações intersubjetivas que são as experiências de exterioridade do indivíduo e também nas experiências internas emocionais e perceptivas que delimitam nossa subjetividade É por conta dessa essencial presença do religioso na existência humana que a Psicologia enquanto epistemologia voltada para a compreensão do ser humano não pode desconsiderála ou desqualificála enquanto experiência real e legítima da condição humana no mundo Compreender esse fenômeno entender seu funcionamento e en contrar seu lugar no quebracabeça existencial deve ser um objetivo da Psicologia Para tanto se faz necessário que se construa um campo semântico de diálogo que faça surgir uma epistemologia onde concei tos possam ser produzidos no sentido de nos apresentar o fenômeno religioso à luz de uma racionalidade científica que não desqualifique seu objeto por conta de preconceitos axiomáticos inflexíveis Um estudo psicológico da religião não pode descaracterizar esse fenômeno confundindoo com outras experiências humanas Por isso é preciso ser criterioso na descrição desse fenômeno identifi cando de forma sistemática as diversas situações existenciais em que este se apresenta Husserl utilizava do artifício da epoché e aqui esse exercício fenomenológico husserliano vai se mostrar de grande valia e servirá de instrumento para que a Psicologia possa identificar no fenômeno religioso o que dele se apresenta enquan to componente histórico cultural político emocional e espiritual Neste exercício intelectual precisamos ter a consciência dos limites da própria razão e da consequente capacidade humana de compreender a realidade pois essa condição limitada coloca o ser humano imerso num grande mistério que sempre permeará a exis Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 12 tência e o fenômeno religioso em sua essência toca exatamente nessa relação que estabelecemos com esse mistério existencial O que estou afirmando é que estudar o fenômeno religioso implica numa imersão nesse mistério sabendo que os recursos que temos para compreendêlo são insuficientes pois sua exten são é infinita Sem essa humilde consciência de nossas limita ções qualquer hermenêutica sobre o tema perde sua credibili dade pois tenderá a aprisionar esse mistério infinito em alguma justificativa estreita e por isso incompleta e incorreta Dito isso apresento este artigo em três momentos o primeiro onde discuto o conceito de laicidade procurando darlhe duas perspectivas sua relação com a religião enquanto tradição insti tuída colocandose em contraposição à esta e sua relação com a produção de conhecimento e organização política quando a laicidade se coloca como paradigma O segundo momento do artigo trata do conceito de religião procurando destacar três olhares possíveis para o termo o estudo antropológico que se orienta pela compreensão da cultura e pro cura estudar os ritos e mitos das tradições religiosas além de sua função para os grupos sociais e sua organização coletiva o estudo sociológico que vai se debruçar sobre as instituições religiosas e procurar entender o seu lugar na engenharia política das rela ções sociais e terceiro o estudo psicológico que deve ter como objeto a experiência subjetiva com o mistério que é chamada de experiência mística ou de espiritualidade No terceiro momento do texto procuro refletir um pouco sobre o conceito de espiritualidade Por ver nele o elemento chave do fenômeno religioso para a Psicologia enquanto ciência e profissão a espiritualidade vai se apresentar como objeto de nosso estudo e ferramenta de nossa intervenção Por isso compreender esse con Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 13 ceito é fundamental para que ao psicólogao possa transitar por esse fenômeno fazendo dele mais um instrumento na promoção da saúde e do pleno desenvolvimento do ser humano Se podemos observar nasos psicólogasos de hoje uma grande dificuldade em lidar com o fenômeno religioso em sua prática cotidiana provocando distorções tanto no que diz res peito a uma aproximação equivocada entre Psicologia e reli gião como também num distanciamento esquizoide que impe de a Psicologia de se apropriar dessa dimensão espiritual que é constitutiva do ser humano tal situação é decorrente em gran de proporção exatamente pela falta de uma descrição mais pre cisa do conceito de espiritualidade no universo epistemológico da ciência psicológica A religião em sua manifestação sociopolítica pode funcionar como um catalisador para a libertação do ser humano ou como um elemento de sua escravização pode ser uma promotora da consciência que nos ilumina ou fonte de alienação que nos de sorienta Por isso uma Psicologia comprometida com a liberdade humana que se projeta enquanto ciência e profissão como ins trumento de luta por essa liberdade precisa se aproximar da reli gião fazendo desta relação mais um espaço de promoção do ser humano valorizando sua diversidade de existir e sua capacidade de transformação do mundo e de sua subjetividade Laicidade um conceito dentro da história do pensamento Façamos agora uma reflexão sobre a laicidade enquanto pa radigma para a ciência Para isso precisamos primeiro contex Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 14 tualizar a ciência em sua construção histórica enquanto episte mologia pois a mesma não nasce laica Muito pelo contrário a ciência palavra que vem do latim scientia sabedoria conhe cimento sempre foi propriedade de uns poucos privilegiados eleitos que acabavam por isso detendo o poder sobre as grandes massas e na maior parte da história este pôde produzir o conhe cimento que explicava que a realidade dada aos eleitos estava vinculada à religião Esses eleitos eram escolhidos pelos próprios deuses formando assim uma elite políticoreligiosa que formou a sociedade ocidental nas suas bases tradicionais grecojudaico romana cristãs O laico ou leigo aquele que não pertencia a essa elite políticoreligiosa que produzia o conhecimento ou fazia ciência se preferirem ficava condenado a reproduzir o modelo a ele imposto pela lógica oficial Podemos fazer uma rá pida comparação à condição de alienação1 proposta por Marx Neste momento podemos entender que a laicidade era uma condição do ser humano alienado Devemos ainda reconhecer que o conhecimento produzido pela razão que é o instrumento intelectual que o ser humano utiliza para explicar o mundo este ve por muito tempo a serviço de um poder religioso que deveria ser utilizado como parâmetro para a definição da verdade e por isso a baliza da construção do conhecimento ou da ciência2 Essa ligação entre razão e fé pode ser melhor entendida quando observamos a necessidade humana mais perene a busca pela ver dade A certeza de que a razão é um instrumento confiável para nos levar à verdade nunca se deslocou da convicção de que essa verdade 1 MÉSZÁROS István A teoria da alienação em Marx São Paulo Boitempo 2006 2 Um texto interessante para compreender esta trajetória do pensamento ociden tal é FERRY Luc Aprender a viver Filosofia para os novos tempos Rio de Janeiro Objetiva 2010 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 15 é da ordem do transcendente e que sua descoberta passa por uma revelação do absoluto ou seja é uma descoberta metafísica3 A perspectiva da metafísica como lugar da verdade ou do real acompanha a história do pensamento ocidental e pode ser vis ta no pensamento dos présocráticos que buscavam a perfeição do cosmos em Platão com o mundo das ideias passando por Agostinho e Tomás de Aquino e até mesmo em Kant o filósofo da razão pura e Hegel com sua fenomenologia do espírito Essa compreensão foi a garantia para que o conhecimento sobre a ver dade absoluta ficasse sobre a salvaguarda daqueles que tinham uma certa intimidade com esse universo transcendente Essa relação de intimidade entre o conhecimento religião e poder e seus desdobramentos no cenário da sociedade laica é muito bem apresentada por Lott em seu livro sobre o desencantamento do mundo de Gauchet4 A laicidade só ganha destaque na produção do conhecimento como paradigma da ciência na modernidade quando o poder político procura se desvincular do poder religioso a partir da as censão de uma nova classe social a burguesia5 A razão então muda de dono e passa a servir aos interesses desse novo estrato social se vinculando fortemente ao que na Grécia antiga era de 3 Podemos ver este viés místico mesmo na ciência da natureza e um texto que apresenta com propriedade esta relação é FORATO Thaís Cyrino A Filosofia místi ca e a doutrina newtoniana uma discussão historiográfica Alexandria Revista de Educação em Ciência e Tecnologia Florianópolis v 1 n 3 p 2953 nov 2008 ISSN 19825153 Disponível em httpsperiodicosufscbrindexphpalexandriaar ticleview37825 Acesso em 27 fev 2017 DOI httpdxdoiorg105007x 4 LOTT H Religião política e democracia a sociedade desencantada de M Gauchet São Paulo Fonte Editorial 2017 5 Para melhor compreensão deste processo histórico HOBSBAWM Eric J A Era das Revoluções Rio de Janeiro Ed Paz e Terra 2003 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 16 nominado de techine que se distingue do conceito de episteme6 A ciência que era a produção de episteme passa a ser a produ ção de techine Mas existe na techine moderna da burguesia uma diferença fundamental da techine grega a moderna está atrelada a outros paradigmas que são o positivismo pragmático e a economia de mercado é uma tecnologia funcional a serviço da produção ins trumental visando os bens de consumo e o acúmulo de capital para a burguesia Está oficialmente inaugurado o capitalismo como modelo econômico e político e para tanto a visão laica de Estado e a produção do pensamento são fortes aliadas pois trazem no seu bojo a perspectiva ideológica da liberdade É pre ciso observar que neste momento mesmo os movimentos reli giosos se apropriam dessa revolução iluminista como é o caso do protestantismo Um texto clássico que apresenta essa articulação entre religião e capitalismo é o livro de Weber7 Agora na modernidade o laico ou leigo aquele que não é iniciado e por isso está fora da religião passa a ter voz e sua ca pacidade racional não é mais desprezada pela falta de vinculação com uma doutrina de fé A laicidade passou de uma condição a de não religioso para um conceito que estava presente na es sência da liberdade ser laico passa a significar ter liberdade para circular entre os diferentes mundos que começam a surgir ter um olhar crítico O laico é o ser humano que tem o benefício da dúvida cartesiana 6 MOURA Lucas de AZAMBUJA Celso Candido de O conceito de técnica segundo Aristóteles XI Salão de Iniciação Científica PUCRS 09 a 12 de agosto de 2010 7 WEBER M A ética protestante e o espírito do capitalismo São Paulo Comp das Letras 2004 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 17 Nessa perspectiva a laicidade passa a ser condição para um Estado livre e democrático em contraposição ao Estado despóti co dos reis e religiosos também para o pensamento pragmático e positivo de uma ciência tecnológica que vinha para transformar a realidade física do mundo O laico ou leigo aquele que não tinha autoridade agora estava livre para expressar suas ideias8 Talvez o principal equívoco na utilização do termo nos tempos atuais principalmente no senso comum é a compreensão de que ao se afastar dos dogmas e doutrinas de uma tradição re ligiosa a laicidade bane a religiosidade da experiência humana É preciso esclarecer que o processo é exatamente o contrário Ao se afastar de um modelo religioso único a laicidade se abre para a experiência religiosa em toda a sua multiplicidade reco nhecendo que a dimensão espiritual do ser humana não pode ser restrita a aspectos culturais e históricos pois diz respeito à ipseidade do ser humano compondo sua essência A expressão fenomenológica dessa espiritualidade essa sim vai estar marcada pela cultura e pelo tempo histórico e por isso deve ser compreendida nesse terreno Mas a espiritualidade é da ordem do transcendente e para ser compreendida em sua es sência como afirma Otto9 precisa ser vivenciada senão não terá sentido os instrumentos da razão não são suficientes para a per cepção consciente dessa dimensão humana 8 Uma história emblemática para ilustrar esse período é o julgamento de Galileu Galilei RODRIGUES Wellington Gil BAIARDI Amílcar Dificuldades de comu nicação científica em um contexto de censura o caso Galileu III Conferencia Lati noamericana del International History and Philosophy of Science Teaching Group IHPST Noviembre Santiago de Chile 2014 Disponível em httplaboratoriogre ciaclwpcontentuploads201507GILYBAIARDICO117pdf Acesso em 20 fev 2017 9 OTTO R O sagrado Lisboa Edições 70 1990 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 18 Quando aplicado ao pensamento ou à produção de conheci mento o conceito de laicidade se apresenta como possibilidade de uma visão crítica sobre a verdade um questionamento ne cessário ao pesquisador que não deve se contentar com o dado buscando sempre novas compreensões do real e promovendo uma hermenêutica livre e dinâmica diferente da exegese dura e dogmática imposta pelas instituições religiosas Para concluirmos nosso breve comentário sobre a laicidade vamos retomar nossa reflexão inicial para constatar que ao con trário da condição de laico imposta às pessoas pela Igreja Católi ca na Idade Média classificandoas assim como não religiosas e portanto não aptas à produção do conhecimento e não capazes de reconhecer a verdade o conceito de laicidade da modernida de não se coloca como oposição ao religioso e sim como possibi lidade de um diálogo epistemológico e cultural onde a diversida de religiosa deve ser respeitada e legitimada como manifestação da espiritualidade que nos compõe O Estado laico moderno portanto não se pretende um Esta do ateu e sim um Estado plural que permite que a diversidade religiosa se apresente sem reservas e o pensamento laico por sua vez não é um pensamento que desconsidera a dimensão de espiritualidade mas o observa enquanto experiência ontológica Definindo religião e pensando sua relação com a Psicologia Quando procuramos definir conceitos o caminho natural do raciocínio lógico é buscar nas raízes etimológicas do termo as evi dências de seu significado Com o termo religião esse exercício Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 19 é complicado se ficarmos apenas na vertente latina do termo já teremos um problema enorme pois observamos que essa palavra da língua portuguesa não tem apenas uma origem etimológica Temos o vocábulo religio palavra utilizada pelos romanos para di zer dos cultos prestados aos deuses do panteão de Roma10 implica va em todo o conjunto de ritos direcionados aos diversos deuses que compunham o universo mitológico da Roma Antiga bem próxima da estrutura mítica do mundo grego Nesse contexto as tradições monoteístas do Livro Sagrado não se caracterizavam pela prática da religio ou seja o judaísmo e o cristianismo11 não eram religião Em uma outra vertente temos o termo religare como referência etimológica esta inclusive a versão de maior apego popular que é a junção do prefixo re com a palavra ligare dando o sentido de uma fusão mais profunda uma ligação mais intensa ou uma religação com uma unidade perdida aquilo que Freud entendeu ser típico da neurose mas que na racionalidade religiosa subten dese uma ligação com o sagrado algo que faz a vida efêmera do ser humano mortal ganhar uma condição de transcendência que lhe proporciona uma percepção de perenidade uma religação com o absoluto que permite o sentimento de unidade ou sentimento oceânico como quis mostrar a Freud seu amigo religioso12 Uma terceira possibilidade hermenêutica de leitura etimoló gica da palavra religião na língua latina é a sua vinculação com o verbo relegere que significa revisar ou reler e se refere à necessi dade exegética para a leitura do texto sagrado Os textos sagrados 10 Sobre religião romana ver CARDONA F L Mitologia romana Barcelona edicomunicación 1996 11 O islamismo surge um pouco mais tarde por volta de 600 dC quando o cristia nismo já havia sido incorporado pelo Império Romano o que aconteceu no século III 12 FREUD S O malestar na civilização obras completas vol XXI Rio de Janei ro Imago 1996 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 20 precisam sempre estar sendo relidos em condições específicas de um tempo de uma cultura de uma política e de uma ética para terem sentido e serem úteis para a vida das pessoas13 Vejam estou aqui apenas nos termos de origem latina que é a mãe de nossa língua portuguesa mas poderíamos estender nos so estudo etimológico para outra vertente linguística importante para a formação de nossa cultura e que se mostra muito presente em nosso vocabulário a língua grega onde temos o termo Κοινή koiné comum apropriado pelos cristãos para nomear suas co munidades que é também uma língua popular na Grécia Antiga utilizada na escrita de textos bíblicos Do mesmo radical temos o termo koinonia comunhão que é outro princípio bastante próximo do universo simbólico cristão que foi a tradição religio sa predominante na formação de nosso povo e de nossa cultura Esses pequenos exemplos foram postos para demonstrar a di ficuldade de definição do conceito de religião algo ampliado pela apropriação popular da palavra carregandoa com uma série de significantes alguns favoráveis outros contrários à aceitação desta como um termo qualificado para a compreensão mais precisa do ser humano como requer a ciência principalmente a ciência moderna Mas se pretendemos estudar o fenômeno é preciso que o identi fiquemos a partir de critérios claros e bem definidos Precisamos ser capazes de descrever e identificar sua manifestação fenomenológica para então compreender sua essência Procuro construir minha definição do conceito de religião a partir de três critérios 1 Os aspectos sociológicos que vão nos apresentar as instituições religio sas que são as que se formam como grupos organizados com regu lamentos próprios código moral e hierarquia de poder tendo como 13 AVEZEDO Cristiane de A procura do conceito de religio entre o relegere e o religare Religare Juiz de Fora v 7 1 2010 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 21 catalisador o universo mítico e as experiências de transcendência que dão ao ser humano a evidência do sagrado Quando estudamos essas instituições é preciso compreender sua posição política seus interesses econômicos e suas relações com as outras instituições sociais como a família a escola o governo 2 Os aspectos antro pológicos que nos mostram a tradição religiosa os mitos os ritos ou seja a forma estética que o sagrado ganha dentro das culturas e do tempo histórico influenciando na construção ética de um povo e consequentemente na formação das subjetividades que se dão nesse contexto 3 Os aspectos psicológicos que se referem à ex periência vivenciada pelo sujeito ou à percepção subjetiva do sagra do os sentimentos as sensações a consciência as atitudes que são próprias dessa experiência fazendo dela um fenômeno específico que é denominado religioso É claro que esses três aspectos acon tecem num intricado jogo que é a existência e não pode portanto ser pensado de maneira pontual deslocado de seu todo o que não significa por sua vez que não possamos descrever cada um deles em suas particularidades fenomenológicas aparentes Para descrevermos de forma mais criteriosa os três aspectos do conceito de religião que procuro trabalhar neste texto me parece ser adequado trazer para reflexão a relação que a Psicologia enquanto ciência e profissão pode ter com este fenômeno aqui conceituado Quando pensamos nas instituições religiosas e na sua função so cial não podemos desconsiderar as relações intersubjetivas14 um campo fértil de estudo para a Psicologia Social assim como para análise institucional área específica dentro da Psicologia Social15 14 HÖSLE Vittorio O sistema de Hegel o idealismo da subjetividade e o proble ma da intersubjetividade São Paulo Loyola 2007 15 BAREMBLITT Gregório F Compêndio de análise institucional e outras cor rentes teoria e prática Belo Horizonte Instituto Félix Guattari 2002 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 22 que pode e deve ser aplicada ao estudo dessas instituições religio sas apenas para citar duas possibilidades de interlocução com a Psi cologia Estamos falando de um aspecto da religião que se apresenta como objeto de estudo para que a Psicologia possa compreender o ser humano As instituições religiosas como todas as outras ins tituições cumprem um papel fundamental na formação das pes soas influenciando diretamente na organização da personalidade e na produção do adoecimento que promove sofrimento e a dor que tanto nos debilita Temos autores importantes que desenvolveram e outros que desenvolvem pesquisas nesse campo e servem de referência para esta análise psicossocial da religião instituída Podemos ci tar como exemplo textos clássicos da história da Psicologia como O que é verdadeiro em religião16 ou a Psicologia dos povos de Wundt onde o autor desenvolve sua ideia de religião do medo17 E também autores contemporâneos como Oro e Ureta18 Perei ra e Penzim19 Steil20 dentre tantos outros São todos estudos de 16 FREUD S Moisés e o monoteísmo obras completas vol XXIII Rio de Janei ro Imago 1996 17 JORGE Pe J S Cultura religiosa o homem e o fenômeno religioso São Paulo Loyola 1994 18 ORO Ari Pedro URETA Marcela Religião e política na América Latina uma análise da legislação dos países Horiz antropol Porto Alegre v 13 n 27 p 281 310 junho 2007 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttex tpidS010471832007000100013lngennrmiso Acesso em 01 fev 2017 httpdxdoiorg101590S010471832007000100013 19 PEREIRA William César PENZIM Adriana Brandão Análise Institucional na vida religiosa caminhos de uma intervenção Estudos e pesquisas em Psicologia UERJ RJ v 7 n 3 p 521540 dez 2007 Disponível em httpwwwrevispsiuerj brv7n3artigospdfv7n3a13pdf Acesso em 30 jan 2017 20 STEIL Carlos Alberto Pluralismo Modernidade e Tradição Transformações do Campo Religioso Ciências Sociais e Religião Argentina v 3 n 3 2001 Disponível em httpwwwseerufrgsbrCienciasSociaiseReligiaoarticleview2172 Acesso em 29 jan 2017 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 23 grande relevância para uma compreensão mais ampla da inter subjetividade e seus contornos Ao dirigirmos nosso olhar para os elementos simbólicos das tradições seus signos ritos mitos sua construção ética e moral seus valores estéticos nos lembramos de autores como Jung21 Freud22 Campbell23 Podemos a partir dessas reflexões observar como nossa realidade existencial está marcada por esse imagi nário simbólico que dá a ela significado e sentido como nossas emoções valores e reações se confundem com este universo má gico nada racional o mundo imaginário dos símbolos Estes aspectos da religião o sociológico e o antropológico o institucional e o cultural não causam muitos problemas para a racionalidade científica moderna que a Psicologia utiliza desde o século XIX é a religião se apresentando como objeto de estudo assim como esse modelo o entende visto a partir dos referenciais epistemológicos de outras disciplinas consolidadas com as quais a Psicologia sempre dialogou com facilidade O terceiro ponto no entanto pode trazer alguns embaraços para o seu estudo e à maneira como a Psicologia deve se apro priar desse fenômeno construindo com este um diálogo mais fértil para o ser humano Estamos falando da experiência religio sa em si como nos apropriar de uma experiência vivenciada pelo outro sem utilizar para isso de nossos preconceitos 21 JUNG C G Psicologia e religião obras completas vol 111 Petrópolis Vozes 2011 Resposta a Jó obras completas vol 114 Petrópolis Vozes 2011 22 FREUD S Totem e tabu obras completas vol XIII Rio de Janeiro Imago 1996 23 CAMPBELL J O poder do mito São Paulo Palas Athena 1990 org Mito sonhos e religião nas artes na Filosofia e na vida contem porânea Rio de Janeiro Ediouro 2001 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 24 Entramos aí numa racionalidade um campo epistemológico que se denomina fenomenologia da religião Não existe outro método possível para se tomar conhecimento da experiência sem utilizar os mediadores conceituais das teorias científicas ou teo lógicas que não seja o proposto por Husserl a saber voltar às coisas mesmas Esta máxima ou axioma husserliano quando aplicada no estudo do fenômeno religioso nos leva a uma expe riência direta imediata com isso que se identifica como sagrado experiência esta que só é possível a partir do exercício da epo ché24 que nos permite vivenciar a unidade sujeitoobjeto sem o distanciamento provocado pelas mediações da linguagem Autores da estirpe de Van der Leeuw25 Eliade26 e Otto27 se so mam a nomes contemporâneos da Psicologia e da ciência da reli gião como Mendonça28 Amatuzzi e Baungart29 Machado30 Goto31 24 MARTINI Renato da S A fenomenologia e a epoché Revista de Filosofia v 21 n 1 UNESP 1999 25 VAN DER LEEUW G Fenomenologia de la religión México Fondo de cultura economica 1964 26 ELIADE M Tratado de história das religiões São Paulo Martins Fontes 1998 27 OTTO R O sagrado Lisboa edições 70 1990 28 MENDONÇA A G de Fenomenologia da experiência religiosa Numen re vista de estudos e pesquisa da religião v 2 nº 2 Juiz de Fora 1999 Disponível em httpsnumenufjfemnuvenscombrnumenarticleview873 Acesso em 01 fev 2017 29 AMATUZZI M M BAUNGART T de A A Experiência religiosa e cres cimento pessoal uma compreensão fenomenológica Rever ano 7 dezembro São Paulo 2007 Disponível em httpwwwpucspbrreverrv42007ibaungarthtm Acesso em 30 jan 2017 30 MACHADO Jorge A T Os indícios de Deus no homem uma abordagem do método fenomenológico de Martin Heidegger Porto Alegre EDIPUCRS 2006 31 GOTO Tommy Akira Fenomenologia e experiência religiosa em Paul Tillich Rev Abordagem Gestalt Goiânia v 17 n 2 p 137142 dez 2011 Disponível em httppepsicbvsaludorgscielophpscriptsciarttextpi dS180968672011000200004lngptnrmiso Acesso em 02 fev 2017 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 25 Giovanetti32 dentre tantos outros pesquisadores no qual me in cluo no estudo sistemático e criterioso do fenômeno religioso em sua essência A compreensão de que a dimensão da espiritualidade é cons titutiva do se humano e que por isso vai compor juntamente com a história ou temporalidade a cultura ou produção simbó lica materialidade espacial o complexo fenômeno que identifi camos como subjetividade é o que nos dá identidade no mundo das coisas que nos diferencia enquanto entes Essa dimensão existencial espiritualidade no entanto por mais que seja exaustivamente estudada e demonstrada fenome nologicamente pelos estudiosos ainda tem muita dificuldade de adesão no meio científico tradicional33 pois da experiência reli giosa mística ou ainda espiritual o que sobra para ser observado é a percepção do sujeito que vai aparecer através de sua narra tiva daquilo que os próprios místicos chamam de inefável algo pouco conclusivo para alguns Mas não é assim também quando estudamos a origem do universo e propomos o Big Bang A Psicologia não deveria ter problemas com esta característica de inconsistência do fenômeno religioso afinal foi nesse campo de saber que se construiu o conceito de inconsciente e também a compreensão de que o desejo é uma força que não contro lamos completamente dois princípios bastante fora do padrão métrico da ciência moderna Mas mesmo a Psicologia demons trou resistência em se apropriar do conceito de espiritualidade 32 GIOVANETTI JP O sagrado e a experiência religiosa na psicoterapia In MASSINI M MAHFOUND M org Diante do mistério Psicologia e senso religioso São Paulo Edições Loyola 1999 33 Como tradicional estou chamando uma ciência que se prende ao modelo mo derno ancorado nos paradigmas cartesiano positivista e empiristas Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 26 para a compreensão da representação do que seja a subjetividade humana e maior resistência ainda em pensar na utilização da experiência religiosa como instrumento de sua prática O que podemos afirmar no entanto é que essa resistência não é própria da religião e nem da ciência mas sim dos atores que respondem por esses lugares O que assistimos neste ringue é mais de ordem da luta pelo poder do que pelo saber O objetivo deste texto é contribuir para amenizar essa rixa criando condições epistemológicas e metodológicas para que a Psicologia compreenda a valor deste diálogo abrindo inclusive oportunidade para se pensar uma incorporação instrumental da espiritualidade na prática psicológica fazendo dessa dimensão existencial mais um veículo na promoção da saúde Quando falamos de uma Psicologia comprometida com a pro moção de um mundo mais saudável onde as pessoas tenham condição de viver de maneira mais digna e respeitosa e onde as diferenças não se transformem em desigualdade estamos falan do de uma sociedade em que a expressão da experiência religiosa em toda sua diversidade deve ser reconhecida não apenas como uma forma de manifestação cultural que por si só já deveria ser preservada mas como uma maneira de promoção de saúde Afinal estamos falando do equilíbrio necessário para que corpo e mente manifestem a subjetividade em todo seu potencial A religião assim como o ser humano que a vivencia em sua subjetividade e intersubjetividade não pode ser resumida em conceitos fechados numa estrutura rígida aprisionada em teo rias definitivas e excludentes pois estão religião e ser humano sempre em processo transformando a si e o meio ao seu redor no movimento que é a essência da existência Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 27 Pensando o conceito de espiritualidade para a Psicologia Neste curto ensaio vou me ater a um ponto que para mim ressalta com maior evidência quando pensamos esse diálogo en tre Psicologia e religião o conceito de espiritualidade Para início de conversa é preciso pontuar que quando tratamos de conceito não estamos falando de percepção subjetiva de sentimentos ou de construtos dogmáticos O conceito se caracteriza por ser uma des crição fenomenológica rigorosa uma representação semântica que dá significado ao objeto por isso o conceito é universal perene não pode ser relativizado O termo vem do latim conceptus que por sua vez é uma conjugação do verbo concipere que significa conter completamente formar dentro de si Por isso quando construí mos um conceito não podemos fazêlo sustentado por sensações extemporâneas ou percepções subjetivas ele precisa estar calçado pela razão e seus princípios axiomáticos que são universais34 É com esse pressuposto que apresento o termo espiritualidade como um conceito e não como uma percepção ou uma crença um produto do desejo ou fruto do imaginário de alguma pessoa em particular Vamos então apresentar de forma criteriosa e sis temática o conceito de espiritualidade a partir da perspectiva fe nomenológica no Brasil bem representada por pensadores como Francisco Holanda Angela Alles Belo Mauro Amatuzzi José P Giovanette e Tomy Akira Goto A ciência produz os seus conceitos a partir da observação em pírica e sistemática dos fenômenos estudados e é desse lugar que 34 Para uma melhor compreensão do tema JUNIOR João F JASMIM Marcelo orgs História dos conceitos diálogos transatlânticos Rio de Janeiro EDPUCRIO Ed LoyolaIUPERJ 2007 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 28 podemos afirmar que o ser humano se mostra fenomenologica mente como um ser aberto O que significa ser aberto Um ser que não está ontologicamente determinado um ser que se trans forma se adapta se refaz no ato de existir Isso talvez seja a úni ca e real diferença que nos distingue dos outros seres vivos deste planeta que já nascem programados para executar certas funções e não saem de seus scripts Jamais veremos um leão produzindo mel ou um elefante voando a não ser que seja o Dumbo Essa abertura ontológica do ser humano é bem apresentada por Rosa35 Essa condição radical de abertura ou incompletude do ser hu mano foi também identificada por diversos observadores da nossa natureza Freud a chamou de falta Buber Chang e outros chama ram de intersubjetividade Heidegger de dasein ser aí Rogers de congruência Não estou aqui querendo igualar esses conceitos pois são construtos que têm sentido próprio dentro de seus uni versos epistemológicos o que faço aqui é o exercício da epoché fenomenológica como propõe Husserl produzindo a redução que nos leve à essência no caso de cada um desses conceitos e aí veremos que todos apontam para essa noção de incompletude do sujeito que o faz necessitar de um outro que o preencha36 É essa mesma condição humana que lhe permite vivenciar o que chamamos de experiência de transcendência uma experiên cia que no campo perceptivo da subjetividade pode ser descrita como uma sensação de preenchimento de plenitude que nos faz sentir o tempo parar Algumas pessoas relatam uma sensa ção de paz um sentimento de tranquilidade e segurança outros 35 ROSA Merval Antropologia filosófica uma perspectiva cristã Rio de Janeiro JUERP 1996 36 GUERRA Alba G SIMÓES P Dialética da falta da incompletude à transcen dência São Paulo Escuta 1995 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 29 falam de transbordamento das emoções e tem ainda os que falam de uma experiência que produz uma sensação de conforto e prazer Otto a define a partir de três termos em latim misteriun facinans tremendun37 Podemos observar essa experiência em situações bastante dis tintas Por exemplo quando dois amantes conseguem atingir o orgasmo numa transa envolvente e apaixonada e ficam extáticos no segundo seguinte da explosão químicoorgânica de seus cor pos talvez por isso os orientais compreenderam que a relação sexual é um veículo místico e para quem não sabe o Kama Sutra é um livro religioso38 quando nos perdemos na contemplação do horizonte de frente ao mar ou no cume de uma montanha39 quando o cientista descobre a solução do problema que o inquie ta em sua pesquisa quando o artista vislumbra sua obra ainda por sair mas já composta em sua mente Espiritualidade não é outra coisa senão essa condição onto lógica do ser humano uma dimensão constitutiva de sua mani festação fenomenológica neste mundo esta abertura radical que lhe permite vivenciar a experiência de transcendência e reco nhecer no outro aquilo que lhe falta reconhecer que o outro lhe completa e que por isso somos seres intersubjetivos o outro se apresenta como o nosso complemento Esse conceito portanto é fundamental para a Psicologia pois nossa subjetividade está impreterivelmente marcada por esta condição de abertura pró pria da incompletude existencial que nos constitui 37 OTTO R O sagrado Lisboa edições 70 1990 38 Sobre essa relação entre sexo e espiritualidade WEIL P Mística do sexo Belo Horizonte Itatiaia 1976 39 COMTESPONVILLE A O espírito do ateísmo introdução a uma espirituali dade sem Deus São Paulo WMF Martins Fontes 2007 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 30 Não podemos confundir esse conceito com a compreensão que o senso comum tem do termo ligandoo à ideia de fantasma ou seres sobrenaturais visão esta que foi fortemente marcada pela perspectiva de tradições espíritas no campo da religião que devem ser respeitadas em suas particularidades doutrinais mas não devem ser utilizadas como parâmetro para a construção do conceito científico que devemos utilizar na discussão psicológica Conclusão Compreendo o quão complexo é tratar dessa temática pois ainda vivemos no ambiente científico brasileiro um suspiro po sitivista cartesiano que nos coloca em alguma medida na condi ção do espírito de época moderno ambiente este que dificulta um diálogo entre o pensamento que assume a condição de cien tífico e o pensamento que ficou destinado a um gueto religioso No entanto se nos propomos a produzir uma análise crítica tal análise precisa começar a ser feita na própria construção do co nhecimento como vemos no texto de Feyerabend40 A crítica que levanto não é nova já havia sido detectada por Husserl em 193441 mas é fundamental para a construção de uma Psicologia que seja comprometida com o ser humano com a promoção da qualidade de vida das pessoas e com a sustenta bilidade de nossa casa mãe a Terra Estou falando da necessida de do resgate ao conceito de espiritualidade nas ciências que se propõem a trabalhar com o ser humano A perspectiva de uma ciência humana que não considera a dimensão espiritual é de 40 FEYERABEND P Contra o método Rio de Janeiro F Alves 1989 41 HUSSERL E A crise da humanidade europeia e a Filosofia Porto Alegre EDIPUCRS 208 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 31 uma epistemologia empobrecida e uma metodologia ineficiente Por isso não podemos pensar uma Psicologia verdadeiramente comprometida com a promoção da saúde humana que não te nha em seus estudos um olhar dirigido para a espiritualidade como instrumento dessa práxis Seguindo este raciocínio crítico é preciso compreender que a condição de laicidade destinada ao pensamento científico de pois da modernidade não pode ser apontada como justificativa para um afastamento entre essas racionalidades pelo contrário a perspectiva laica é exatamente a perspectiva do diálogo onde a diversidade é legitimada e reconhecida como resultado da condi ção ontológica do ser Essa aproximação entre Psicologia e religião no entanto não deve ser feita de qualquer forma afinal estamos falando de uma reflexão criteriosa e por isso muito bem definida Um ponto chave para essa construção dialogada é a identidade de cada ra cionalidade Nessa relação uma não deve se submeter à outra mas sim contribuir ambas para a ampliação do conheci mento que podemos ter do ser humano neste mundo e nesse aspecto em alguns momentos a crítica se volta para a religião Quando esta é estudada pela Psicologia nos seus fenômenos so ciais a religião enquanto instituição e tradição não vai fugir de uma análise sobre as relações de poder sobre sua função de controle dos indivíduos dentro do sistema Portanto é fundamental para a Psicologia compreender e se apropriar da espiritualidade como instrumento de transformação do ser humano e da sociedade E para isso precisamos dirigir nossa crítica para nós mesmos enquanto pensadores de uma epistemologia e pesquisadores que utilizam de um método no estudo e na abordagem do ser humano Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 32 Ao mesmo tempo na construção de uma realidade social mais justa e ética é necessário que as instituições sejam revistas em seus valores e estrutura e aí a crítica se volta às instituições religiosas e ao papel que estas cumprem dentro desse modelo social e político Sabemos que toda essa complexa trama está participando de um movimento holístico que vai tratar da vida e do universo da existência e da não existência uma trama que nos coloca de volta à especulação filosófica e que portanto não tem fim assim como a tela de Penélope42 Mas também sabemos que o nosso trabalho é participar ativamente deste processo de construção eterna do saber e do fazer neste mundo e é com esse compro misso que nos propomos a estar à frente desse debate Referências bibliográficas AMATUZZI M M BAUNGART T de A A Experiência reli giosa e crescimento pessoal uma compreensão fenomenológica Rever ano 7 dezembro São Paulo 2007 AVEZEDO Cristiane de A procura do conceito de religio entre o relegere e o religare Religare Juiz de Fora vol7 1 2010 BAREMBLITT Gregório F Compêndio de análise institucional e outras correntes teoria e prática Belo Horizonte Instituto Fé lix Guattari 2002 CAMPBELL J O poder do mito São Paulo Palas Athena 1990 org Mito sonhos e religião nas artes na Filo sofia e na vida contemporânea Rio de Janeiro Ediouro 2001 42 HOMERO Ilíada e Odisseia Rio de Janeiro Nova Fronteira 2015 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 33 CARDONA F L Mitologia romana Barcelona edicomunica ción 1996 COMTESPONVILLE A O espírito do ateísmo introdução a uma espiritualidade sem Deus São Paulo WMF Martins Fon tes 2007 ELIADE M Tratado de história das religiões São Paulo Mar tins Fontes 1998 FERRY Luc Aprender a viver Filosofia para os novos tempos Rio de Janeiro Objetiva 2010 FEYERABEND P Contra o método Rio de Janeiro F Alves 1989 FREUD S Moisés e o monoteísmo obras completas vol XXIII Rio de Janeiro Imago 1996 FREUD S O malestar na civilização obras completas vol XXI Rio de Janeiro Imago 1996 FREUD S Totem e tabu obras completas vol XIII Rio de Janeiro Imago 1996 GOTO Tommy Akira Fenomenologia e experiência religiosa em Paul Tillich Rev Abordagem Gestalt Goiânia v 17 n 2 p 137142 dez 2011 GUERRA Alba G SIMÓES P Dialética da falta da incomple tude à transcendência São Paulo Escuta 1995 HOBSBAWM Eric J A Era das Revoluções Rio de Janeiro Ed Paz e Terra 2003 HOMERO Ilíada e Odisseia Rio de Janeiro Nova Fronteira 2015 HÖSLE Vittorio O sistema de Hegel o idealismo da subjetivida de e o problema da intersubjetividade São Paulo Loyola 2007 HUSSERL E A crise da humanidade europeia e a Filosofia Porto Alegre EDIPUCRS 2008 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 34 JORGE Pe J S Cultura religiosa o homem e o fenômeno reli gioso São Paulo Loyola 1994 JUNG C G Psicologia e religião obras completas vol 111 Petrópolis Vozes 2011 Resposta a Jó obras completas vol 114 Petrópo lis Vozes 2011 JUNIOR João F JASMIM Marcelo orgs História dos con ceitos diálogos transatlânticos Rio de Janeiro EDPUCRIO Ed LoyolaIUPERJ 2007 LOTT H Religião política e democracia a sociedade desencan tada de M Gauchet São Paulo Fonte Editorial 2017 MACHADO Jorge A T Os indícios de Deus no homem uma abordagem do método fenomenológico de Martin Heidegger Porto Alegre EDIPUCRS 2006 MARTINI Renato da S A fenomenologia e a epoché Revista de Filosofia v 21 n 1 UNESP 1999 MASSINI M MAHFOUND M org Diante do mistério Psicologia e senso religioso São Paulo Edições Loyola 1999 MENDONÇA A G de Fenomenologia da experiência relligio sa Numen revista de estudos e pesquisa da religião v 2 n 2 Juiz de Fora 1999 MÉSZÁROS István A teoria da alienação em Marx São Paulo Boitempo 2006 MOURA Lucas de AZAMBUJA Celso Candido de O Concei to de técnica segundo Aristóteles XI Salão de Iniciação Científi ca PUCRS 09 a 12 de agosto de 2010 ORO Ari Pedro URETA Marcela Religião e política na Améri ca Latina uma análise da legislação dos países Horiz Antropol Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 35 Porto Alegre v 13 n 27 p 281310 jun 2007 OTTO R O sagrado Lisboa edições 70 1990 PEREIRA William César Castilho PENZIM Adriana Bran dão Análise Institucional na vida religiosa caminhos de uma in tervenção Estudos e Pesquisas em Psicologia UERJ RJ v 7 n 3 p 521540 dez 2007 RODRIGUES Wellington Gil BAIARDI Amílcar Dificulda des de comunicação científica em um contexto de censura o caso Galileu III Conferencia Latinoamericana del International History and Philosophy of Science Teaching Group IHPST nov Santiago de Chile 2014 ROSA Merval Antropologia filosófica uma perspectiva cristã Rio de Janeiro JUERP 1996 STEIL Carlos Alberto Pluralismo Modernidade e Tradição Transformações do Campo Religioso Ciências Sociais e Religião Argentina v 3 n 3 2001 VAN DER LEEUW G Fenomenologia de la religión México Fondo de cultura economica 1964 WEBER M A ética protestante e o espírito do capitalismo São Paulo Companhia das Letras 2004 WEIL P Mística do sexo Belo Horizonte Itatiaia 1976 A religião e as questões de gênero construções do conceito de espiritualidade na compreensão da diversidade sexual REINALDO DA SILVA JúNIOR Psicólogo doutor em Ciência da Religião professor da UEMG Divinópolis conselheiro do CRP 04 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 37 Resumo As instituições religiosas procuram exercer um forte controle sobre seus adeptos e um campo onde esse domínio pode ser sentido de maneira determinante é a sexualidade Por isso a con cepção de gênero se torna um fator fundamental na construção do discurso ideológico dessas instituições que tendem a descon siderar a diversidade sexual enquanto componente na formação da identidade de gênero Essa comunicação se propõe discutir como a liberdade sexual e a construção da identidade de gênero em toda a sua diversidade são expressões da dimensão de espiri tualidade humana que se caracteriza pela sua condição de aber tura e faz do ser humano um sujeito em formação e por isso um sujeito de múltiplas possibilidades inclusive na construção de sua identidade sexual É preciso diferenciar os interesses das instituições religiosas que se alinham politicamente com grupos sociais na intenção de garantir seu espaço de poder da experiên cia religiosa ou espiritual que nos põe em contato com o outro produzindo no ser humano a possibilidade de uma consciência ética A expressão da liberdade própria do espírito aparece feno menologicamente no mundo das coisas pela multiplicidade No campo sexual essa característica se apresenta na construção de identidades de gênero que não estão engessadas num determi nismo incompatível com o espírito humano Palavraschave Gênero Religião Espiritualidade Liberdade Fenomenologia Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 38 Introdução A religião é um fenômeno revelador da estrutura social de um povo A partir de seu estudo temos acesso a condições específi cas de organização das relações afetivas da moral e de como as pessoas expressam e convivem com seus sentimentos e valores O ethos de um grupo é indelevelmente marcado pela sua tradição religiosa sem entrar aqui no mérito de quem é o responsável pela estrutura aparente da sociedade por entender que não se trata de uma leitura linear mas sim de uma complexa trama onde o religioso se apresenta como um elemento do jogo e por isso precisa ser considerado quando procuramos entender como as pessoas se enxergam e enxergam o mundo em que vivem Por isso alguns aspectos culturais e expressões da subjetivi dade e da intersubjetividade no seio de um grupo estruturado só podem ser compreendidos a fundo quando consideramos em seu estudo o fenômeno religioso e as implicações deste nessas interações Dentre essas construções culturais podemos citar a identidade de gênero e os hábitos de convivência coletiva que se configura como a moral do grupo neste caso no que tange ao comportamento sexual Sexualidade e religião sempre estiveram intimamente relacionadas em todas as culturas o controle do corpo para a libertação da alma a relação da fertilidade feminina com a vida e o mistério da criação e a apresentação do falo como o símbolo do poder são apenas algumas analogias possíveis dessa intimidade às vezes favorável e às vezes repressora Entendo que esses são fenômenos de expressão humana e que se apresentam como forte influência na construção do ethos brasi leiro pois estamos falando de experiências que vão dando forma a um modo de ser do povo desenhando sua cultura e os sujeitos que Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 39 a produzem Por isso compreender o significado do feminino e do masculino em nosso meio e como esses elementos aparecem na produção das relações sociais demarcando a correlação de forças na disputa pelo poder nos permite refletir com maior propriedade sobre a ética que emerge desse ethos nacional e não tem como pensar o feminino e o masculino fora da expressão da sexualidade e da identidade de gênero Essa compreensão por sua vez passa pela percepção de como o brasileiro se apropria de sua espirituali dade e de como ele a exercita em seu cotidiano existencial na bus ca de sua liberdade e de seus direitos pois o exercício de aprender a lidar com as forças feminina e masculina que nos habitam é o exercício de nos responsabilizar pelo ser no mundo possibilitando uma apropriação do corpo como expressão de nossa liberdade Poder vivenciar a sexualidade a partir de uma visão mais aber ta sobre o feminino e o masculino visão esta que não reduza esses arquétipos às características biológicas e deterministas de um corpo físico entendido como um corpo pronto mas sim como forças que compõe nossa espiritualidade de maneira dinâmica e transformadora é fundamental para a implementação de uma ética respeitosa para com a diversidade de identidade de gênero e a consequente garantia de direitos de uma população que se vê desprovidas das assistências básicas para o cidadão um público que não tem lugar nas escolas nos programas de saúde na se gurança pública na seguridade social nos direitos trabalhistas dentre outros Com isso afirmamos que ao discutir a liberdade do espírito humano na construção de sua identidade de gênero estamos demarcando um espaço político de luta pelos direitos humanos luta esta de dever conduzir qualquer discussão ética Reconheço que os atravessadores dessa discussão são mui tos tornandoa uma reflexão de grande complexidade Mas essa Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 40 é apenas mais uma vantagem do tema pois a complexidade é sinônimo de riqueza de possibilidades o que faz deste um pro jeto aberto que não se esgota em si mesmo e precisa dialogar com outras práticas e outros olhares para desenvolver um plano mais amplo de análise da realidade brasileira enquanto socieda de além de como acontece a organização da subjetividade e da intersubjetividade no nosso universo cultural Sendo assim este trabalho se propõe a ser mais um problemati zador do que uma pesquisa que venha trazer soluções que esgotem a temática Espero que possamos aqui contribuir com uma gama de pesquisas e racionalidades que ao longo da história vêm trazen do à baila a necessidade de revermos a postura conservadora de um machismo excludente e opressor resultado da cultura patriarcal que nos acompanha desde a antiguidade Discursos como a fenomeno logia o existencialismo a Psicologia analítica de Jung a teoria rei chiana o pensamento feminista do século passado as teorias queer os textos místicos e de diálogo interreligioso são exemplos desse esforço Procuro com esta contribuição me somar a esses discursos na busca de diálogos que nos aproximem de uma verdade inques tionável a essencial necessidade de garantir os direitos amplos para que a dignidade da vida seja respeitada e possamos então desen volver uma ética e um ethos que nos conduzam à justiça e ao bem O texto foi dividido em três momentos No primeiro apresen to de maneira mais livre e sem compromissos de um estudioso do tema uma compreensão sobre identidade de gênero A liber dade que me guia nesta definição tem suas vantagens e também suas desvantagens que não cabem aqui ser apresentadas para que cada leitor faça suas próprias críticas a respeito No segundo momento faço uma reflexão sobre a espirituali dade e sua relação com a expressão sexual pensando a dimensão Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 41 de liberdade humana para então nas considerações finais tercei ro momento tecer alguns comentários sobre a expressão políti ca desta discussão Espero que minha narrativa e análise possam proporcionar dúvidas e levantar problemas que venham produzir novas reflexões dando ao tema a dinâmica que ele merece Compreendendo a identidade de gênero Vivemos numa época onde qualquer perspectiva perenialista é fortemente rejeitada uma reação à hegemonia metafísica da Idade Média e à hegemonia da razão moderna podemos dizer que uma reação até mesmo ao paradigma cósmico que está por trás de todo o pensamento ocidental Nos dias atuais a compreensão da reali dade está intensamente marcada pela transitoriedade pois a con dição de temporalidade se colocou como imperativo da existência em um mundo que Bauman chamou de líquido43 Como ganho advindo deste espírito de época temos a legitimação da diversida de a diferença ganha não apenas visibilidade mas reconhecimen to O sujeito é reconhecido e com ele os direitos do ser humano podem ser reivindicados A consolidação de um mundo plural é a consolidação de um mundo onde o direito à manifestação das diferenças esteja de fato garantido enquanto prática moral Mas como tudo que traz um ganho este acompanha também uma perda Essa dinâmica dialética inclusive é o axioma da pró pria mobilidade paradigmática dessa nova racionalidade O que se perde nesse cenário de efemeridade é exatamente a capacidade de se definir referências seguras uma dificuldade de estabelecer cri térios que posam nos dar sustentação ética uma cegueira para os 43 BAUMAN Zygmunt A cultura no mundo líquido moderno Rio de Janeiro Zahar Editores 2013 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 42 elementos universais que devem ser os orientadores das escolhas do ser humano em sua passagem por este plano existencial aquilo que nos permite reconhecer o bem a virtude o justo Na questão do gênero este paradoxo produzido pela dialética pósmoderna ganha um colorido próprio pois temos que pensar os conceitos de masculino e feminino nessa dinâmica do univer sal e do produzido pela cultura na história Um exercício comple xo que vou procurar desenvolver a seguir lembrando que minha abordagem do tema passa por um olhar fenomenológico mas não se prende aos conceitos husserlianos exercitando um diálogo com outras racionalidades como a Psicologia analítica e autores da temática específica da identidade de gênero e da discussão sobre espiritualidade na Psicologia e ciência da religião Precisamos começar esta conversa reconhecendo que estamos trabalhando com dois conceitos distintos masculino e feminino Portanto partimos da premissa da existência de elementos de diferenciação dessas categorias que podem ser identificados nas suas singularidades de maneira que um não se confunda com o outro Esta noção arquetípica44 do gênero que nos permite saber da existência de um feminino e de um masculino no entanto não deve ser referência quando vamos pensar a identidade de gênero no mundo da cultura pois assim como o sagrado ganha formas diversificadas nas diversas culturas e épocas históricas também a manifestação dos arquétipos no mundo não pode ser padronizada No que diz respeito à manifestação de gênero vou trazer a contribuição de Scott 44 Arquétipo nada mais é do que uma expressão já existente na antiguidade sinônimo de ideia no sentido platônico JUNG C G Os arquétipos e o inconsciente coletivo Petrópolis Vozes 2008 p 87 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 43 Por gênero eu me refiro ao discurso sobre a diferença dos sexos Ele não remete apenas a ideias mas também a instituições a estruturas a práticas cotidianas e a rituais ou seja a tudo aquilo que constitui as relações sociais O discur so é um instrumento de organização do mundo mesmo se ele não é anterior à organização social da diferença sexual Ele não reflete a realidade biológica primária mas ele constrói o sentido desta realidade A diferença sexual não é a causa originária a partir da qual a organização social po deria ter derivado ela é mais uma estrutura social movediça que deve ser ela mesma analisada em seus diferentes contextos históricos45 Partindo dessa premissa devemos compreender a identidade de gênero46 não apenas como identificação arquetípica mas sim como uma construção histórica política e cultural complexa que vai transitar pelo que chamamos de intersubjetividade47 ou como nos apresentam brilhantemente Coelho Jr Figueiredo as matri zes intersubjetivas matrizes intersubjetivas indicam dimensões 45 SCOTT 1998 op cit GROSSI Míriam Pillar Identidade de gênero e sexua lidade Disponível em httpswwwresearchgatenetprofileMiriamGrossipublica tion267977995IDENTIDADEDEGENEROeSEXUALIDADElinks55fe19d c08aeba1d9f69e6aaIDENTIDADEDEGENEROeSEXUALIDADEpdf Acesso em 10 mai 2017 46 Para uma leitura mais técnica do termo JESUS Jaqueline Gomes de Orienta ções sobre a população transgênero conceitos e termos Brasília 2012 47 Temos aí um ótimo caminho para compreender a relação entre espiritualida de e identidade de gênero como propomos neste texto Para auxiliar nesta reflexão HÖSLE Vittorio O sistema de Hegel o idealismo da subjetividade e o problema da intersubjetividade São Paulo Loyola 2007 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 44 de alteridade que nunca ocupam de forma pura e exclusiva o campo das experiências humanas48 Se localizar no espaço no tempo na cultura enquanto in divíduo dar conta das escolhas que nos constroem compreen der os caminhos trilhados para saber onde nos encontramos no presente Esse é um exercício que exige uma entrega e uma consciência nem sempre possível em um mundo de cer ceamentos numa sociedade que tem como princípio segregar a diferença que macula a ordem estabelecida como nos mostram Rodrigues Heilborn O normativo portanto não estaria apenas na categoria de gênero regida por regras culturais mas já se apresenta na categoria sexo que só existiria dentro de uma prática normativa capaz de produzir os corpos para governálos Sexo assim não seria uma condição estática de um corpo mas um processo pelo qual as normas materializam o sexo49 Por isso construções de subjetividades que não se enqua drem às normas são dolorosamente abortadas produzindo um 48 COELHO JUNIOR Nelson Ernesto FIGUEIREDO Luís Cláudio Figuras da intersubjetividade na constituição subjetiva dimensões da alteridade Interações São Paulo v 9 n 17 p 928 jun 2004 Disponível em httppepsicbvsaludorg scielophpscriptsciarttextpidS141329072004000100002lngptnrmiso Acesso em 16 mai 2017 49 RODRIGUES Carla HEILBORN Maria Luiza Construindo Vera Cruz e desconstruindo gênero aproximações entre Pedro Almodóvar e Judith Butler Sex Salud Soc Rio de Janeiro n 16 p 7385 2014 Disponível em httpwwwscielo brscielophpscriptsciarttextpidS198464872014000100005lngennrmi so Acesso em 16 mai 2017 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 45 sofrimento profundo pelo estrangulamento da condição existen cial daquele que não pode ser o que sente ser A possibilidade de experiência da sexualidade e da identificação de gênero exercida na liberdade e autonomia do sujeito é uma necessidade se pen samos numa sociedade que promova a saúde em suas relações pois a negação dessa autonomia quanto à sua auto percepção vai criar toda uma estrutura social de exclusão e marginalização que se estende desde os recônditos mais íntimos do indivíduo seus afetos e personalidade até seus direitos civis de cidadão A violência que surge como produto dessa condição é de ordem psíquica física e simbólica como esclarece Jesus50 Se compreender livre o suficiente para assumir que a sua per cepção subjetiva não se alinha com o corpo físico que habita é um exercício só possível em um espaço intersubjetivo de aber tura e equidade e é para a promoção desse ambiente social que precisamos trabalhar se nos comprometemos com a saúde das pessoas e com um mundo ético Quando pensamos nas pessoas trans a percepção e constru ção de uma identidade sexual fica ainda mais reprimida e amea çada produzindo uma exclusão social de uma violência bárbara A invisibilidade desse público faz com que a sociedade simples mente ignore seus problemas e quando colocada de frente a este o reconhece como uma aberração Precisamos garantir a esse grupo de pessoas o seu espaço social sua dignidade de ci dadãos e sua saúde 50 JESUS Jaqueline Gomes de Orientações sobre a população transgênero con ceitos e termos Brasília 2012 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 46 O que a espiritualidade tem a ver com isso O conceito de espírito vem etimologicamente ligado às ideias de ventilação movimento sopro vida51 Ou seja o espírito se apresenta enquanto vocábulo como um significante daquilo que produz o frescor e mobilidade a existência o inanimado se torna animado pelo espírito o que está inerte ganha vida pelo espírito Nesse caminho epistemológico a Filosofia se apropriou do conceito de espírito e viu nele a possibilidade de uma expres são fenomenológica do ser expressão esta que ganha diversas interpretações como demonstram Japiassú e Marcondes52 Para o nosso propósito seguirei a perspectiva que Teixeira nos apresenta53 Do que nos coloca o autor vou destacar dois aspec tos o desapego e o potencial libertador da espiritualidade huma na É a partir dessas condições ou características do espírito que podemos fazer a ligação com a temática da identidade de gênero pois estamos tratando exatamente da liberdade de expressão da subjetividade e do desapego aos padrões de identidade produzi dos pelo sistema ideológico repressor de uma sociedade neuroti zada e neurotizante Nesse sentido a possibilidade da experiên cia espiritual é a possibilidade de ruptura com esse modelo Quando se entende o espírito humano como a dimensão antropológica de transcendência observamos nesta espiritua lidade que é a manifestação fenomenológica do espírito a ca 51 Um estudo muito bem feito sobre esta etimologia é MEDEIROS FILHO Félix Antônio de A concepção de almaespírito na PréHistória um estudo semântico do Nostrático João Pessoa UFPB 2014 52 JAPIASSÚ Hilton e MARCONDES Danilo Dicionário básico de Filosofia Rio de Janeiro Jorge Zahar 2008 p 9293 53 TEIXEIRA Faustino O potencial libertador da espiritualidade e da experiência religiosa In AMATUZZI Mauro M org Psicologia e espiritualidade São Paulo Paulus 2005 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 47 pacidade de encontro que faz a passagem do subjetivo para o intersubjetivo o sujeito se percebe pertencente a algo que o ul trapassa e se torna mais do que um indivíduo O sentimento de pertença é um sentimento de sentido e é o que nos permite construir uma identidade Aí então podemos saber de nós e res ponder as questões que nos angustiam quem sou eu De onde vim Para onde vou Por isso conseguir se encontrar sexualmente se torna uma experiência de espiritualidade porque implica num exercício de liberdade e de desapego num movimento de transcendência e de encontro uma percepção que Heidegger chama de dasein o seraí É essa a necessidade das pessoas trans permitir que na liberdade de seu espírito possam se desapegar do corpo original para se encontrar numa corporeidade de sentido como nos es clarece MarzanoParisoli Com efeito a sexualidade pode revelarnos melhor do que outras experiências a relação estreita entre corpo individualidade e intencionalidade Ela pode também permitirnos trabalhar sobre o paradoxo corporal expresso pela proposição nós somos nos so corpo ao mesmo tempo que o temos dentro de nossas relações mais intensas com o outro54 Qual o nosso compromisso político enquanto agentes promo tores da saúde Garantir que as pessoas trans tenham condição de viver sua espiritualidade na expressão de sua sexualidade exercitando sua liberdade de escolha e com isso aprendendo 54 MARZANOPARISOLI Maria M Pensar o corpo Petrópolis Vozes 2004 p 109110 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 48 a se conhecer e se orientar por essas escolhas num mundo de pluralidade marcado pelo mistério imponderável O exercício do desapego nos permite mobilidade uma ha bilidade fundamental num universo que está em trânsito Esse exercício nos leva ao sentimento de liberdade que deve emba lar nosso sonho ético Uso essa licença poética de tratar a ética como um sonho por entender que ela nasce no mais profundo do ser humano assim como o sonho Este lugar de sentido último que Husserl chamou de consciência transcendental55 e Jung de inconsciente coletivo56 Essa percepção profunda que nos coloca em conexão com o todo só pode emergir quando suspendemos os conceitos e per mitimos assim que a experiência fale por si numa expressão imediata da existência É nessa condição existencial de pleni tude que a sexualidade se apresenta sem as censuras de um sis tema ideológico repressor e é também nesse ambiente que as pessoas trans podem se encontrar descobrindo uma identidade encoberta e reprimida assumindo a responsabilidade de se fazer a partir das escolhas que produzimos em nossas relações Considerações finais Observamos que a proximidade entre a construção da iden tidade das pessoas trans e a experiência espiritual é maior do que pode parecer na visão do senso comum e de alguns extra tos de uma ciência engessada em paradigmas da modernidade 55 TOURINHO Carlos Diógenes Côrtes A consciência e o mundo na fenomeno logia de Husserl influxos e impactos sobre as ciências humanas Estudos e Pesquisas em Psicologia v 12 n 3 Universidade Federal Fluminense UFF Niterói 2012 56 JUNG C G Os arquétipos e o inconsciente coletivo Petrópolis Vozes 2008 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 49 Para perceber esse vínculo no entanto é preciso compreender claramente o que seja o espírito pois esse conceito tem uma in terpretação bastante confusa por conta da apropriação deste por diferentes ideologias e pelas instituições religiosas que procuram submeter o espírito e a espiritualidade aos dogmas e doutrinas de suas tradições Aqui procuramos resgatar o conceito em sua raiz etimológi ca e na perspectiva hermenêutica da fenomenologia da religião Encontramos nele um significante da condição existencial de abertura que Heidegger chamava dasein e por isso uma condi ção essencial quando pensamos na construção da identidade que vamos produzindo em nosso caminho existencial incluindo aí a identidade de gênero Para as pessoas trans a possibilidade de viver sua sexualida de com liberdade e responsabilidade respaldadas pelos direitos civis de cidadãos só é possível quando o exercício da espiritua lidade não é reprimido nem por forças internas nem por forças externas ao sujeito Por isso a necessidade de lutarmos por uma sociedade que reconheça a autonomia dos indivíduos e a plura lidade existencial e tenha em suas ações de políticas públicas estratégias que garantam os direitos dessa população A garantia dos direitos dentro de uma realidade múltipla passa pela construção de ralações de equidade tanto entre os indivíduos quanto no que diz respeito à estrutura das políticas públicas em toda a sua extensão que envolve a educação saúde segurança lazer e seguridade social Lutar por essas garantias é mais do que uma convicção é um dever de todos aqueles que se comprometem com um mundo mais digno e justo mais saudável e mais humano Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 50 É por isso que precisamos construir uma Psicologia que alcan ce as demandas dessas pessoas que saiba ouvir suas angústias e seus desejos sem produzir estereótipos ou reproduzir padrões de respostas que atendam à manutenção de um processo de exclusão que leva este público à condição de marginalidade Uma Psicolo gia comprometida com a liberdade e com a promoção de direitos Essa Psicologia ao meu ver passa por uma ciência capaz de dialogar com outras racionalidades de absorver novos métodos e técnicas uma Psicologia que seja ela própria um exercício dessa espiritualidade livre e dinâmica que nos anima Um novo mundo exige uma nova Psicologia que assuma a condição de cri ticidade que o olhar e a escuta precisam ter diante da realidade Entendo que este é um processo longo difícil e até utópico em certa medida mas que não pode ser relegado por conta de sua complexidade pois senão perdemos o horizonte ético que nos conduz e uma psicólogoa sem ética se torna uma arma perigosa contra a humanidade Referências bibliográficas AMATUZZI Mauro M org Psicologia e espiritualidade São Paulo Paulus 2005 BAUMAN Zygmunt A cultura no mundo líquido moderno Rio de Janeiro Zahar Editores 2013 COELHO JUNIOR Nelson Ernesto FIGUEIREDO Luís Cláu dio Figuras da Intersubjetividade na constituição subjetiva dimen sões da alteridade Interações São Paulo v 9 n 17 p 928 2004 Disponível em httppepsicbvsaludorgscielophpscripts ciarttextpidS141329072004000100002lngptnrmi so Acesso em 16 mai 2017 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 51 HÖSLE Vittorio O sistema de Hegel o idealismo da subjetivida de e o problema da intersubjetividade São Paulo Loyola 2007 JAPIASSÚ Hilton MARCONDES Danilo Dicionário básico de Filosofia Rio de Janeiro Jorge Zahar 2008 JESUS Jaqueline Gomes de Orientações sobre a população transgênero conceitos e termos Brasília 2012 JUNG C G Os arquétipos e o inconsciente coletivo Petrópo lis Vozes 2008 MARZANOPARISOLI Maria M Pensar o corpo Petrópolis Vozes 2004 MEDEIROS FILHO Félix Antônio de A concepção de alma espírito na PréHistória um estudo semântico do Nostrático João Pessoa UFPB 2014 RODRIGUES Carla HEILBORN Maria Luiza Construindo Vera Cruz e desconstruindo gênero aproximações entre Pedro Almodó var e Judith Butler Sex Salud Soc Rio de Janeiro n 16 p 7385 2014 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscripts ciarttextpidS198464872014000100005lngennrmi so Acesso em 16 mai 2017 SCOTT 1998 op cit GROSSI Míriam Pillar Identidade de gêne ro e sexualidade Disponível em httpswwwresearchgatenet profileMiriamGrossipublication267977995IDENTIDA DEDEGENEROeSEXUALIDADElinks55fe19dc08ae ba1d9f69e6aaIDENTIDADEDEGENEROeSEXUALIDA DEpdf Acesso em 10 mai 2017 TOURINHO Carlos Diógenes Côrtes A consciência e o mun do na fenomenologia de Husserl influxos e impactos sobre as ciências humanas Estudos e Pesquisas em Psicologia v 12 n 3 Universidade Federal Fluminense UFF Niterói 2012 Excurso sobre o humano e seus desdobramentos como perspectiva do póshumano57 57 Este texto foi tema de apresentação oral no X Simpósio Internacional Filosófi coTeológico da FAJE Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia HENRIquE MARquES LOTT Graduado em Filosofia pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora 2004 e é mestre e doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora 2013 Realizou seu estágio doutoral em 2012 na modalidade Recherches Doctorales Libres junto à École des Hautes Études em Sciences Sociales EHSS de Paris com a bolsa sanduíche da Capes É também pósdoutor em Ciências da Religião pela PUC Minas 2017 tendo realizado seu estágio pósdoutoral com a bolsa do Programa Nacional de PósDoutorado PNPD da Capes Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 53 Resumo A reflexão que propomos neste texto parte de algumas con cepções filosóficas que permeiam a noção de humano e se des dobra numa análise discursiva que procura indicar uma perspec tiva de compreensão para tratarmos a noção contemporânea de póshumano Nossa análise acolhe um ponto de vista de ordem conceitual e especulativo que se divide em três momentos dis tintos No primeiro discorremos brevemente acerca da noção de humano tal como esta é concebida por nossa tradição filosófica Num segundo momento nos detemos em concepções filosóficas modernas e contemporâneas que indicam uma abertura possível para pensarmos a questão do póshumano como uma extensão da noção de humano Por fim ensaiamos um debate concer nente às implicações éticas e morais suscitadas pelos avanços das tecnociências e pela perspectiva do póshumano no campo das relações sociais Concluímos nossa análise apontando para a necessidade de um aprofundamento do debate em torno de questões relacionadas com a dignidade e a liberdade humana no âmbito das pesquisas científicas e da dinâmica social Palavraschave Humano Póshumano Tecnociência Ética Debate Introdução Testemunhamos atualmente a consolidação de um processo que nos coloca cada vez mais em confronto com as transforma ções técnicas e científicas transformações estas que vêm se radi Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 54 calizando especialmente nas últimas décadas quando registramos inegáveis avanços da ciência A nosso ver essa situação cria condi ções inéditas que permitem ao homem atual realizar experiências extremamente novas no âmbito de suas próprias criações Para alguns teóricos e cientistas confrontamonos hoje com a possibi lidade de criarmos um ser superior a nós mesmos um ser que poderá ultrapassar nossa própria condição de humanidade58 Essa busca de superação do humano vem alimentando os ideais e o imaginário simbólico de certas áreas das tecnociências áreas que por vezes se engajam em uma construção que alguns autores consideram como uma utopia póshumana BESNIER 2008 Estaríamos vivendo o início de uma nova era em que o ser humano começa a se transformar pouco a pouco em um ser que não é mais humano ou dito de outro modo um ser para além do humano Será que no futuro seremos substituídos por outros seres superiores a nós e deixaremos de existir Ou será que vamos nos tornar uma subes pécie inferior que vai coexistir com uma nova espécie superior que será criada por nós mesmos Essas são entre outras algumas questões que têm inquietado a imaginação de muitos cientistas e pesquisadores de diferenciadas áreas do conhecimento LANCE LIN 2012 Com o avanço das perspectivas delineadas pelo desen volvimento das tecnociências da comunicação da informação e de 58 Essa compreensão permeia atualmente vários ramos da ciência como a nano tecnologia a biologia a engenharia genética a neurociência e a informática aplicadas à dinâmica do conhecimento O Massachusetts Institute of Techology MIT localiza do em Cambridge é um importante centro científico que busca a superação da condi ção humana natural Uma de suas linhas de pesquisas mais destacadas é desenvolvida pelas unidades Sloan School of Management Lincoln Laboratory Computer Science and Artificial Intelligence Laboratory Media Lab e Whitehead Institute que elaboram e desenham a figura de um transhumano numa perspectiva futura de um homem desnaturalizado cf BESNIER 2008 p 4 Os primeiros grupos de pesquisa trans humana surgem nos anos de 1980 na Universidade da Califórnia em Los Angeles Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 55 pesquisas científicas diversas como as do campo da neurociência e da nanotecnologia entre outras somos impregnados de um modo ou de outro pelo imaginário póshumanista que se desenha no cenário contemporâneo BESNIER 2008 Trataremos dessas questões seguindo as linhas do roteiro que apresentamos no resumo acima Procuramos sondar primeira mente de modo bastante sucinto o que a tradição filosófica tem a nos dizer sobre o humano em suas linhas mais gerais como por exemplo as ideias de humano elaboradas a partir do composto corpo e alma sobre o corpo como máquina a racionalidade como alma e sobre o homem como ser histórico social e moral Des se modo procuramos preparar o terreno para adentrarmos nas concepções modernas e contemporâneas que discutimos na se gunda etapa de nossa reflexão quando então tratamos a respeito de algumas concepções acerca de humano e de póshumano no quadro das discussões mais recentes São discussões que a nosso ver apresentam por um lado novas apreensões e possibilidades de abordagens compreensivas e por outro dão continuidade ao legado da tradição humanística mantendo as antigas aspirações fi losóficas e teológicas no quadro idealizado pelo póshumanismo A partir dos aportes que reunimos no primeiro e no segundo momento deste texto conduzimos nossa atenção para um ter ceiro momento que aborda questões de cunho ético e moral e que implica direta ou indiretamente a prática da ciência atual Procuramos levar em conta nesse caso certas situações limites que nos colocam frente a frente com alguns efeitos produzidos pela ciência Situações que podem de uma parte nos proporcio nar significativos avanços mas de outra parte podem desfigurar nossa condição humana a ponto de colocar em risco nossa pró pria existência e nossa condição de sobrevivência No âmbito Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 56 dessas indagações fazemos a seguinte pergunta até que ponto é legitimamente aceitável permitir a desconfiguração do huma no em nome da ciência e até que ponto essa permissão fere ou não os direitos mais fundamentais historicamente conquistados como a igualdade a dignidade e a liberdade humanas Essa é a questão que conduz as discussões conclusivas que apresentamos no decorrer deste texto Gostaríamos de ressaltar que a trajetória que seguimos aqui foi conduzida por uma perspectiva ampla de diálogos e de interlocuções com diversos autores Noções filosóficas sobre o humano Começamos nossa reflexão com uma pergunta básica que sur ge no contexto cultural das origens da Filosofia ocidental o que é o homem e qual é a sua configuração como ser neste mundo Foi com os sofistas que se registrou pela primeira vez a centralidade das preocupações filosóficas com o homem A antropologia dos sofistas dava uma ênfase muito especial à dimensão espiritual do ser humano pois concebia que o espírito é o órgão através do qual o Homem apreende o mundo das coisas e se refere a ele JAEGER 2001 p 341 Protágoras por exemplo propunha um humanismo radical e explícito que segue o princípio do homo mesura Em sua obra Sobre a Verdade escreve a famosa frase O homem é a medida de todas as coisas πάντωνχρημάτωνμέτρ ονἄνθροπος apud FRAILLE 1965 p 230 Platão que conviveu com os sofistas mas não era um deles define o homem como sendo um composto de corpo e alma Sua concepção dualista compromete a unidade antropológica que no seu entender é resultante da ordem das ideias Platão realiza uma síntese da tradição filosófica anterior dos sofistas e de Sócrates A Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 57 seu ver é a ordem transcendente das ideias que permite explicar no homem a polaridade constitutiva da vida da alma psyché em sua condição terrena VAZ 1991 p 36 Na antropologia platô nica o corpo é compreendido como a parte sensível do homem em oposição à alma que é de natureza suprassensível O corpo é algo inferior uma espécie de matéria impura que não é mais do que um cárcere da alma e a alma por seu turno deve procurar fugir do corpo e nesse sentido ela escapa da morte pois é de na tureza imortal Para Platão Fédon 64c a morte do corpo abre o caminho para um novo ciclo de vida da alma Desse modo quando advém a morte corporal a alma como parte imortal foge rápida subsistindo sem se destruir escapando à morte Fédon 106e Aristóteles tal como Platão considerava que o homem é um ser composto syntheton de psyché e de soma A psyché é pois a perfeição ou ato entelécheia do corpo VAZ 1991 p 39 Con tudo diferente de seu mestre Aristóteles considerava que a alma era inseparável do corpo e que todas as afecções da alma ocor rem com um corpo De Anima 403a Em sua obra A Política 1253a Aristóteles dá outro tipo de definição na qual entende que o homem é naturalmente um animal político destinado a viver em sociedade e aquele que por instinto e não porque qual quer circunstância se inibe e deixa de fazer parte de uma cidade é um ser vil ou superior ao homem Segundo Aristóteles é a capa cidade de se expressar com palavras e a racionalidade que diferen ciam o homem de todos os outros animais desse modo ele é um animal racional um zôonlogikón Na concepção aristotélica O homem transcende de alguma maneira a natureza e não pode ser considerado simplesmente um ser natural VAZ 1991 p 40 No período medieval a antropologia teológica de Agostinho 1973 p 26 compreende o homem como o ápice de toda criação Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 58 do mundo Ele escreve em suas Confissões que Deus está no ho mem o homem em Deus Embora com clara influência do pensa mento platônico e sua concepção sobre corpo e alma a antropolo gia agostiniana diferenciavase daquela dos filósofos gregos Estes concebiam que o homem bom é aquele que sabe e conhece pois o bem e a virtude são ciência Para Agostinho ao contrário o homem bom é o que ama o que ama o que se deve amar AN TISERI REALE 1990 p 459 A antropologia agostiniana parte de premissas teológicas que implicam a assunção do corpo na unidade da natureza humana na qual o Verbo se encarnou e a resti tuição escatológica da unidade do homem tal como procedeu da Palavra criadora de Deus VAZ 1991 p 65 Tomás de Aquino por sua vez influenciado pela Filosofia de Aristóteles e de Santo Agostinho também elabora sua antropo logia baseada na concepção de que o homem é um animal racio nal composto de corpo e alma Para ele a alma humana realiza funções através do corpo porém não se mistura ao corpo pois é uma substância intelectual que se une ao corpo como forma TOMÁS 1996 p 266 A concepção de Tomás segue o viés aristotélico ao considerar que o entendimento humano está dire tamente ligado com o corpo A seu ver os sentidos corporais são órgãos de conhecimento que possibilitam o conhecimento inte lectual O homem como é um ser que está constitutivamente vinculado com um corpo material deve buscar nas coisas sen síveis cuja natureza é proporcional à sua um ponto de apoio para se elevar a Deus GILSON 2001 p 658 Com o advento da modernidade as questões sobre o humano se voltam radicalmente em direção à racionalidade É possível dizer que o pensamento modernista afirma que os seres humanos pertencem a um mundo governado por leis naturais que a razão descobre e às quais Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 59 ela mesma se submete TOURAINE 1992 p 5159 Descartes por exemplo considera que o homem é um ser composto de duas subs tâncias diferentes uma alma espiritual cuja essência é o pensamen to e um corpo cuja essência é a extensão À alma pertence somente o pensar O corpo é uma máquina regida por leis gerais e mecânicas FRAILE 1965 p 516 Para explicar o corpo Descartes se vale do modelo da máquina que funciona como os relógios as fontes arti ficiais os moinhos e outras semelhantes máquinas que não sendo feitas senão pelos homens não deixam de ter a força de se mover por elas mesmas DESCARTES sd p 807 O pensamento moderno vai desdobrar os rumos da antropologia racionalista que prolongará a tradição do zôonlogikón mas dandolhe um novo conteúdo pois nela o esquema mecanicista ou a primazia do modelo da máquina se estenderá à explicação da vida do homem VAZ 1991 p 81 A Filosofia Iluminista do século XVIII vai seguir por seu turno a ideia de um progresso da razão buscando interpretar as transfor mações que o homem realizou no campo social e cultural Trans formações estas que se afirmaram com o avanço da seculariza ção com a conquista do mundo histórico e com a formulação de novas ideias sobre o direito o contrato social e o Estado Para os filósofos das Luzes a razão é o ponto de encontro e o centro de expansão A razão é una e idêntica para todo o indivíduo pensante para toda a nação toda época toda a cultura CASSI RER 1997 p 2223 O uso da racionalidade aplicado às noções de Humanidade Civilização Tolerância Revolução entre outras são ideias diretrizes que estruturam o espaço mental da Ilustração Neste espaço o homem passa a ocupar o centro do qual irradiam as linhas da inteligibilidade VAZ 1991 p 95 59 Todas as traduções do francês e do espanhol para o português apresentadas neste texto foram realizadas por nós Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 60 Na esteira das ideias do Iluminismo a Filosofia de Kant segue considerando o ser humano pelo primado da racionalidade Con tudo para Kant o homem é motivado tanto por seus desejos cor porais e materiais como por sua racionalidade No seu entendi mento nossa condição como seres racionais indica que devemos estar bem conscientes de nossas obrigações e de que o valor moral surge somente da luta para realizálas Mas como animais estamos também vivamente preocupados com a felicidade DU DLEY 2013 p 65 Por um lado a noção de humano em Kant apresentase como uma antropologia de viés pragmático que é uma intenção típica da Ilustração alemã a de tornar a Filosofia útil para a vida Por outro lado segue as peculiaridades da concepção do homem do ponto de vista crítico permanecendo nesse caso na linha da tradição dualista própria da antropologia racionalista VAZ 1991 p 9798 Esses são os traços mais gerais que gostaríamos de destacar acerca das compreensões antropológicofilosóficas de nossa tra dição Com essa breve digressão procuramos preparar o terreno para darmos seguimento às questões que formam a parte central de nossa reflexão neste texto parte esta que versa a respeito do deslocamento das questões do humano para o póshumano Isso é o que veremos a partir desse momento Humano e póshumano concepções modernas e contemporâneas Grande parte do pensamento moderno e contemporâneo considera que o homem é um ser de transformação Essa é uma compreensão que perpassa uma longa tradição filosófica Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 61 que começa com os antigos filósofos gregos seguindo até Hegel Feuerbach e Marx além de Hanna Arendt dentre outros con temporâneos LOTT 2013 p 31 Na lógica dessa compreen são do homem como transformação é possível afirmar como faz o sociólogo austroamericano Peter Berger 2003 p 20 que o que aparece em qualquer momento histórico particular como natureza humana é da mesma forma um produto da atividade do homem para construir um mundo Podemos acrescentar que o homem é também e sempre foi um ser social que se confronta e se opõe ao mundo transformandoo e manipulandoo com o propósito de criar um ambiente habitável e favorável para sua existência Essa compreensão é parte do proje to intelectual elaborado pelo filósofo francês Marcel Gauchet que propõe uma compreensão do humano através de uma antropossociologia transcendental Antropo logia no sentido de teoria do humano disso que faz a humanidade do homem sociologia por que os dois aspectos parecem inevitavelmen te correlacionados transcendental enfim para designar a dimensão propriamente filosófica do conjunto a interrogação sobre as condições de possibilidade GAUCHET 2003 p 10 Gauchet desenvolve uma análise histórica e política que co meça com as sociedades primitivas ou arcaicas e chega aos dias atuais Em sua interpretação essas sociedades vivem o mito reli gioso na sua integralidade e praticam um tipo de religião que ele define como religião primeira No seu entender a religião pri meira configurase como uma forma de vestimenta de uma base Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 62 antropológica mais profunda que é o conflito Para Gauchet é o conflito social que leva o homem arcaico ou primitivo a recusar sua própria potência de criador e a negar a si mesmo para afirmar a figura de um todo outro o heterônomo Nas sociedades modernas e desencantadas ao contrário das sociedades primitivas o que predomina é o modelo autônomo que tem como característica a autoafirmação e o reconhecimen to do homem como ser de transformação e criação de mundo Segundo Gauchet 2007 p 133 com a modernidade e o pro cesso de desencantamento do mundo o homem passa a ter cada vez mais um domínio teórico e prático que muda e transforma sua própria natureza e os rumos de seu destino Numa outra interpretação a do filósofo francês Edgar Mo rin 1979 p 20 a ideia de natureza humana acabou sendo imobilizada por forças conservadoras com o propósito de ser mobilizada contra a mudança social Para Morin essas forças conservadoras se pautavam por uma ideologia do progresso e consideravam que para que houvesse mudança no homem não era preciso que houvesse mudança de natureza humana A seu ver em decorrência disso houve um esvaziamento de conteúdos no que concerne à noção de natureza humana Assim a na tureza humana aparece como um resíduo amorfo inerte monó tono tratase daquilo que o homem se subtraiu e não de modo algum daquilo que o fundamenta MORIN 1979 p 20 Essa concepção de esvaziamento da ideia de natureza huma na acena a nosso ver para algumas questões sobre o póshu mano Mas cabe perguntar primeiramente o que significa pós humano Tratase de uma utopia ou de uma realidade concreta e plausível Muitos consideram ter sido Nietzsche o precursor do póshumanismo Segundo o filósofo francês Serge Trottein Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 63 2006 p 1 Nietzsche teria dado o primeiro impulso ao questio nar os valores do humanismo e a propor um humanismo superior sua intenção era recuperar o antihumanismo como promessa de um retorno a um humanismo mais autêntico Segundo Trottein 2006 p 2 a crítica nietzschiana ao huma nismo não se restringe a ser um antihumanismo ela confrontase também com o póshumanismo e abre assim a perspectiva de su peração do humanismo clássico que digase de passagem já não atende mais à situação atual Com as novas tecnologias o homem adquiriu o poder da autotransformação e caminha para o rompi mento das fronteiras que definem a compreensão do homem como zôonlogikón e também como homem e máquina Ao que tudo indica após Nietzsche no âmbito da reflexão filosófica nós nos encontramos pela primeira vez em posição de produzir delibe radamente esse tipo supremo de humanidade GAUCHET 2007 Uma das primeiras elaborações concretas de póshumanis mo vem do filósofo alemão Peter Sloterdijk 1999 que causou grande impacto quando publicou seu livro Regras para o parque humano60 Nesse livro o autor lança a questão sobre como se or ganizar em um mundo onde seres híbridos deverão coabitar com seres humanos BESNIER 2008 p 3 Sloterdijk foi acusado de fazer a promoção do superhomem nietzschiano pelo viés de uma apologia de recursos às novas tecnologias em breve ele se encontraria acusado ou preso em flagrante delito de transhu manismo TROTTEIN 2006 p 4 Sua questão central versa sobre a incapacidade do humanismo pensar a essência do hu mano FERREIRA 2004 p 35 60 Muitos autores consideram essa obra de Sloterdijk como um marco fundamen tal nas discussões sobre o póshumanismo cf BESNIER 2008 TROTTEIN 2006 FERREIRA 2004 RABENHORST 2005 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 64 Sloterdijk parte de uma reflexão que começa com o humanismo clássico e se desenvolve na linha do póshumanismo que ele pro cura pensar a partir de Nietzsche e de Heidegger Seu livro Regras para o parque humano foi inspirado pela carta de Heidegger Sobre o humanismo sua intenção era oferecer uma resposta a esse texto e tentar reparar aquilo que a seu ver o texto resolutamente ignorou A história social do homem tocada pela questão do Ser e o redemoinho histórico na abertura da diferença ontológica que não é outro que a his tória das domesticações do homem o que Sloter dijk chama ainda a face escondida da clareira E é aí que intervém Zaratustra Nietzsche esboça o destino do futuro homem O pós humanismo é então a abertura de novas pos sibilidades de criação de adestramento de do mesticação do homem TROTTEIN 2006 p 3 Uma das questões discutidas por Sloterdijk diz respeito às novas tecnologias e às consequentes transformações que elas promovem A seus olhos o humanismo empreende uma luta contra a estupidez e o embrutecimento combatendo as bestia lidades que as pulsões humanas são capazes de realizar Nesse caso tanto Heidegger quanto Sloterdijk acreditam que o hu manismo instaura uma retórica de civilização em que ao perigo da bestialização é oferecida a tranquilidade da domesticação FERREIRA 2004 p 34 Contudo ao procurar responder a Heidegger Sloterdijk introduz o póshumanismo no seio da clareira TROTTEIN 2006 p 3 Em seu entendimento o humanismo não foi capaz de coibir a bestialidade humana SLOTERDIJK 1999 p 32 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 65 Outra contribuição para a reflexão sobre o póshumanismo vem do filósofo norteamericano Francis Fukuyama 2003 au tor do livro Nosso futuro póshumano Fukuyama considera que com a queda do comunismo a história teria chegado ao fim e doravante caminhamos em uma nova história a história pós humana Na interpretação de Eduardo Rabenhorst Fukuyama procura refletir como a revolução biotecnológica abre caminho para um retorno a um ordenamento muito mais hie rárquico da sociedade Na nova sociedade o ser humano modificado geneticamente viria ao mundo com um status sui generis já que ele diferiria dos outros indivíduos da espécie Corremos o risco de ver surgir num futuro bem próximo uma sociedade dividida em camadas su periores ou inferiores não apenas do ponto de vista econômico mas sobretudo sob o prisma genético RABENHORST 2005 p 120121 Essa concepção indica que cedo ou tarde nós teremos uma superação biogenética da atual condição humana Todavia esse avanço científico pode gerar uma desigualdade no que diz res peito à distribuição ou seja alguns seriam privilegiados e ou tros não Além disso correse o risco da incerteza genética e de uma cruel divisão no interior da sociedade Diante dessa pos sibilidade funesta Fukuyama propõe uma outra fundamenta ção para a dignidade do homem ele toma como base a própria consciência entendida como combinação de razão linguagem emoção capacidade de deliberação e aptidão simbólica RABE NHORST 2005 p 121 Assim procedendo o filósofo nortea Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 66 mericano procura identificar o que entende ser uma qualidade humana essencial FUKUYAMA 2003 p 158 Outros estudiosos do póshumanismo como o filósofo e so ciólogo francês Hervé Fisher 2004 por exemplo consideram que o fantasma do póshumanismo não merece a referência ao humanismo que ele invoca O homem vem demonstrando de um modo progressivo ao longo de sua existência histórica o de sejo de ultrapassar seus próprios limites naturais Desse modo é possível considerar que o homem sempre tentou escapar de sua biologia O xamanismo e a religião exaltam sua relação com um mundo superior mágico ou religioso As religiões judaicocristãs inventaram uma auda ciosa visão de homem dotado de uma alma que o religa diretamente a Deus e que lhe permite parti cipar assim do ser de Deus FISHER 2004 p 2 Nesse sentido é possível dizer que a ideia de póshumano não é nova pois o desejo de ir além de si de transcender ao corpo e a esse mundo é algo antigo na espécie humana O que vemos com o pósmodernismo não difere muito disso tratase de um desejo que obedece a lógica da tecnociência para negar o que é próprio da humanidade seu enigma definitivo sua fragilidade sua irredutibilidade à matéria FISHER 2004 p 2 Como vimos mais acima Platão considerava o corpo como uma prisão da alma Descartes por sua vez desqualificava o corpo e o situava no nível mais animal de nosso ser Atualmente a obsessão do corpo perfeito não é talvez nada além de uma recusa do corpo E a tecnociência encara o desafio de realizar este fan Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 67 tasma BESNIER 2008 p 4 O póshumanismo persegue um ideal que pretende atingir um estágio da humanidade tecnológica cuja principal meta é a transcendência das limitações físicas e bio lógicas do humano FELINTO 2005 p 3 As novas tecnologias alimentam os sonhos de realizar o desejo do homem de ir além de si de ampliar sua inteligência sua força sua imunidade e sua capacidade física Alimentam também esse investimento imagi nário compensatório que nós operamos na tecnociência onde nós cultivamos a ilusão de ultrapassar nossos limites e de completar nosso ser irredutivelmente inacabado FISHER 2005 p 3 As técnicas de eugenia não são novas na história humana os gre gos antigos as utilizavam com destreza JAEGER 2001 Contudo os eugenistas do passado pretendiam fazer a raça humana mais pura mas ainda humana Os partidários do póshumanismo creem que chegou a hora de ir além de se buscar um estágio avançado em que não seríamos mais humanos RÜDIGER 2007 p 5 Todavia essa aspiração compartilha dos mesmos sonhos de superação de transfor mação e de transcendência que sempre tivemos Se tomarmos um ponto de vista fenomenológico será possível dizer que o homem é uma ideia histórica e não uma espécie natural A obstinação em des qualificar o corpo é uma atitude dependente de um pathos onde pre domina a vontade de desencarnação BESNIER 2008 p 5 O póshumano no contexto da dignidade e da liberdade humanas As concepções em torno do humano e do póshumano que acabamos de comentar suscitamnos reflexões sobre o campo da ética e das relações sociais A nosso ver será preciso refletir até que ponto o uso dos meios tecnológicos se legitima e até que pon Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 68 to esse uso se justifica por si mesmo Não temos como fechar os olhos para os inegáveis avanços científicos que testemunhamos e dos quais nos beneficiamos amplamente nos dias de hoje Con tudo quando o uso e a produção das tecnologias se desenvolvem sem a ponderação da reflexão ética quando instigam a realização da vontade egoísta dos indivíduos sem levar em conta a vida a liberdade e a dignidade do outro quando a produção dessas tec nologias tem por objetivo um uso com vistas a uma dominação vil e desumana nós certamente questionamos a legitimidade e a validade desse uso e dessa produção Como escreve Edgard Morin 1979 p 20 se somos obrigados hoje a reconhecer que todos os homens são homens a verdade é que excluímos imediatamente aqueles a quem chamamos desumanos MORIN 1979 p 20 O póshumanismo promete a possibilidade concreta de trans formar o ser humano através da tecnociência Essa possibilidade nos leva a refletir sobre dois caminhos distintos o primeiro é extre mamente positivo pois indica que podemos seguir uma rota que nos levará a uma segurança e a um bemestar cada vez maiores Nesse caso com os avanços da ciência será possível assegurar um desenvolvimento humano bastante favorável seja ele físico mental ambiental ou social O segundo caminho no entanto não é a nosso ver nada positivo porque é capaz de colocar em risco a própria vida e a dignidade humanas Nesse caso a ciência pode se colocar a serviço de interesses individuais egoístas e desumanos pode se deixar levar pela indiferença para com o sofrimento e as más condições do outro acentuando ainda mais a divisão social e a dominação política econômica técnica e científica A promessa utópica do póshumanismo nos coloca em um cam po de incertezas no qual não sabemos o preço a pagar e não conhe cemos quais as consequências que teremos que nos confrontar no futuro O termo póshumano nos causa de fato estranheza Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 69 porque significa após o homem isto é significa uma situação futura em que não haverá mais humano Por esse motivo autores como Hervé Fisher por exemplo preferem falar de hiperhumano em contraposição a póshumano Em sua concepção O hiperhumanismo não se inscreve no espa ço social pela confrontação ele é consciente da multiplicidade de espaços e de tempos sociais aos quais ele pertence O hiperhumanismo marca a passagem da solidão à solidariedade Ele afirma o valor da interdependência entre os ho mens entre as nações e entre os homens e o Uni verso Nosso medo de uma catástrofe final aparentemente inevitável que está na base do sentimento do trágico atual nos incita a bus car nossa salvação no crescimento de uma ética de responsabilidade dividida O sentido de res ponsabilidade nasce da consciência dos vínculos entre nós e os outros entre nossos atos e suas consequências FISHER 2004 p 4 Atos e consequências estes que são certamente legítimos quando advêm de pesquisas científicas que levam em conta a consciência ética e que procuram preservar a dignidade e a liber dade dos indivíduos Em outras palavras somos do parecer que são especialmente válidas as pesquisas que levam em conta a ele vação da dignidade humana e trabalham para evitar a bestialidade a opressão e as desigualdades Sob essa ótica podemos considerar que a ética passa à frente da lógica da tecnociência Contudo precisamos estar bem atentos porque infelizmente a tecnociên cia é muito mais poderosa que a ética FISHER 2004 p 7 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 70 Sendo assim é preciso debater e aprofundar as questões que envolvem a dignidade humana e a tecnociência Não podemos deixar que a tecnociência neutralize a consciência ética e a delete por completo A dignidade humana é segundo o filósofo alemão Jürgen Habermas uma questão incontornável que tem um forte significado nas relações interpessoais de reconhecimento recí proco e no relacionamento igualitário entre as pessoas HABER MAS 2004 p 47 As tecnociências nos colocam diante do perigo de chegarmos a ponto de não nos compreendermos mais como seres vivos eticamente livres e moralmente iguais orientados por normas e fundamentos HABERMAS 2004 p 57 Para o filósofo alemão é de fundamental importância ponde rar discutir e procurar saber até que ponto as tecnologias podem e devem alterar a natureza humana pois corremos o risco de perder a dimensão ética e moral da espécie Em seu entender as intervenções eugênicas de aperfeiçoamento pre judicam a liberdade ética na medida em que sub metem a pessoa em questão a intenções fixadas por terceiros que ela rejeita mas que são irreversíveis impedindoa de se compreender como autor único de sua própria vida HABERMAS 2004 p 87 No entendimento de Habermas as pesquisas genéticas de veriam incorporar um arcabouço ético e moral que preservasse a dignidade humana e que nos desse no presente a perspectiva de uma consciência futura livrandonos das promessas da eu genia liberal que se pautam pela lei da oferta e da procura No seu parecer é preciso impor limites para as pesquisas e práticas da eugenia isso porque especialmente nas sociedades liberais Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 71 seriam os mercados que regidos por interesses lucrativos e pe las preferências da demanda deixariam as decisões eugênicas às escolhas individuais dos pais e de modo geral aos desejos anárquicos de fregueses e clientes HABERMAS 2004 p 68 Para o filósofo alemão só deveriam ser aceitas as práticas de eugenia que não colocassem em risco e não limitassem a autono mia e a igualdade entre os indivíduos Em sua compreensão as pesquisas e as práticas científicas que visam o aperfeiçoamento humano não podem ser normalizadas de modo legítimo no âm bito de uma sociedade pluralista e democraticamente constituí da que concebe a todo cidadão igual direito a uma conduta de vida autônoma HABERMAS 2004 p 9192 Conclusão No caminho que trilhamos ao logo deste texto procuramos exercitar uma interpretaçãocompreensão sobre a noção de hu mano que se desdobrou em seguida na noção contemporânea de póshumano Em nosso entendimento a ideia de póshumano segue no geral uma linha de continuidade que nasce do desejo humano de superação de si mesmo desejo este que digase de passagem acompanha o homem desde suas origens Contudo assinalamos que a situação atual em que vivemos que traz a marca indelével dos avanços das tecnociências indica a possibilidade de alterarmos radicalmente a constituição biogenética do ser humano Vivemos assim uma situação iné dita em nossa história em que por um lado podemos mais do que nunca colher grandes benefícios mas por outro corremos o risco iminente de criarmos a nossa própria extinção dentro dos laboratórios de pesquisas científicas Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 72 Ademais corremos também o risco de diminuir a dignidade humana e de restringirmos sua autonomia sua liberdade e o seu sentido de igualdade Em virtude disso consideramos que é pre ciso continuar aprofundando o debate em torno das questões que permeiam o fazer científico Em suma somos do parecer que se de fato desejamos nos livrar dessa velha carcaça do hu mano não podemos deixar que esse desejo se consolide sem a mediação da reflexão ética Referências bibliográficas AGOSTINHO Confissões Os Pensadores São Paulo Abril Cultural 1973 ANTISERI Dario REALE Giovanni História da Filosofia vol I São Paulo Paulus 1990 AQUINO Tomás de Suma contra os gentios Porto Alegre EDIPUCRS 1996 ARISTÓTELES A Política São Paulo Atena Editora 1944 De anima Rio de Janeiro Editora 34 2006 BERGER Peter O dossel sagrado elementos para uma teoria sociológica da religião São Paulo Paulus 1985 BESNIER JeanMichel Que nous annoncent les utopies du posthumanisme Philosophie Management Compteren du Séminaire du 2510 08 p 115 Disponível em wwwphiloso phiemanagementcom Acesso em 18 mai 2014 CASSIRER Ernest A Filosofia do Iluminismo Campinas Uni camp 1997 DESCARTES René Traité de lHomme Paris Édition de la Pléiade sd Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 73 DUDLEY Will Idealismo alemão Petrópolis Vozes 2013 FELINTO Erick O PósHumano Incipiente Uma Ficção Co municacional da Cibercultura Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 2005 Disponível em httpwwwportcomintercomorgbrpdfs10849249003545 2962099631814065767000406pdf Acesso em 05 jun 2014 FERREIRA Jonatas A condição póshumana ou como pular sobre a nossa própria sombra Política Trabalho Revista de Ciências Sociais nº 21 outubro 2004 p 3142 Disponível em httpperiodicosufpbbrojsindexphppoliticaetrabalhoarti cleview6555 Acesso em 09 jun 2014 FISHER Hervé Lhyperhumanisme contre le posthumanisme Revue Argument 2004 Disponível em httpwwwrevuear gumentcaarticle20040301272lhyperhumanismecontrele posthumanismehtml Acesso em 08 jun 2014 FRAILE Guillermo Historia de la Filosofia v I Madrid Biblio teca de Autores Cristianos 1965 FUKUYAMA Francis Nosso futuro póshumano Rio de Janei ro Rocco 2003 GAUCHET Marcel La condition historique Paris Stok 2003 La démocratie contre elemême Paris Gallimard 2002 Lavènement de la démocratie II La crise du libéralis me Paris Gallimard 2007 GILSON Etienne A Filosofia na Idade Média São Paulo Mar tins Fontes 2001 HABERMAS Jürgen O futuro da natureza humana São Paulo Martins Fontes 2003 HEIDEGGER Martin Sobre o humanismo Os Pensadores São Paulo Abril Cultural 1983 p 147175 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 74 JAEGER Werner Paideia a Formação do Homem Grego São Paulo Martins Fontes 2001 LANCELIN Aude Bienvenue dans le monde posthuman Ma rianne 2012 p 19 Disponível em httpwwwmariannenet Bienvenuedanslemondeposthumaina214436html Aces so em 14 mai 2014 LOTT Henrique Marques A dinâmica do desencanto do mun do a saída da religião e a emergência da modernidade em Marcel Gauchet Tese Doutorado em Ciência da Religião Universi dade Federal de Juiz de Fora 2013 MORIN Edgar O Enigma do Homem Rio de Janeiro Zahar Editores 1979 PLATÃO Fédon Os Pensadores São Paulo Abril Cultural 1983 RABENHORST Eduardo R A dignidade do homem e os peri gos da pósmodernidade Verba Juris ano 4 n 4 jandez 2005 p 105126 RÜDIGUER Francisco Breve história do póshumanismo Ele mentos de genealogia e criticismo Compós abril 2007 p 117 Disponível em httpwwwcomposorgbrseerindexphpe composarticleviewFile145146 Acesso em 09 jun 2014 SLOTERDIJK Peter Regras para o parque humano Uma res posta à carta de Heidegger sobre o humanismo São Paulo Esta ção Liberdade 2000 TOURAINE Alain Critique de la modernité Paris Fayard 1992 TROTTEIN Serge Le posthumanisme de Nietzscheréflexions sur un trait dunion Noesis 102006 p 18 Disponível em httpnoesisrevuesorg662 Acesso em 06 jun 2014 VAZ Henrique Cláudio de Lima Antropologia filosófica v 1 São Paulo Edições Loyola 1991 Por uma espiritualidade de enfrentamento ao fundamentalismo MARCuS MAREANO Bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará UECE Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia FAJE Doutor em Teologia pela Universidade Católica de LovainaBélgica Professor de Teologia na PUCMG Padre da Arquidiocese de Belo Horizonte Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 76 Introdução Em culturas tão plurais e em tempos de alguns valores hu manos considerados ainda temos que estranhar o fundamenta lismo a inflexibilidade e a indisposição à mudança por parte de alguns grupos e setores da sociedade O presente texto discute o atual fenômeno no âmbito das re ligiões e propõe a experiência espiritual como enfrentamento a esse atual desafio Dentre as diferentes formas de fundamenta lismo a mais escandalosa é o fundamentalismo religioso pois pratica intolerância e violência de onde se espera promoção de justiça e paz A preocupação de retornar aos fundamentos como queria o movimento protestante do início do século XX que deu origem ao fundamentalismo pode ser mais benéfica se tal fundamento for o espírito ao invés da letra dos textos A reflexão se desenvolve a fim de propor sinais para uma es piritualidade que se oponha ao fundamentalismo O primeiro ponto aborda a pertinência desse tema em diversos âmbitos e estratos sociais sobretudo o fundamentalismo religioso que in felizmente observamos no Brasil Em seguida contextualizamos nosso momento presente denominado de pósmodernidade e o lugar que a religião ocupa nele Finalmente elencamos alguns tópicos principais como indicativos para uma espiritualidade pós moderna de contraposição ao fundamentalismo o pluralismo re ligioso a dimensão ética e o enfrentamento ao fundamentalismo Consequência de uma conferência e de um debate subse quente o texto não pretende ser exaustivo ou defender uma tese estrita sobre o tema O escopo do trabalho é mais indicativo e discursivo do que conclusivo e busca oferecer assinalações para ampliação da discussão Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 77 A questão dos fundamentalismos Não é necessário muito esforço de pesquisa para sentir a ur gência do tema no Brasil e no mundo Constantemente escu tamos e lemos notícias que remetem às diversas ações funda mentalistas no âmbito moral político econômico e sobretudo religioso As consequências são nefastas para todas as pessoas A história da humanidade traz marcas de inúmeros episódios de intolerância religiosa as cruzadas a rivalidade entre católicos e evan gélicos em diferentes países o extermínio de grupos minoritários os grupos fundamentalistas muçulmanos entre outros61 Poderíamos aprender com os erros passados no entanto ainda nos assustamos como ressalta Armstrong 2001 p 484 Hoje o fundamentalismo faz parte do mundo moderno Representa uma decepção uma alie nação uma ansiedade uma raiva generalizada que nenhum gover no pode ignorar sem correr risco Até agora os esforços para lidar com o fundamentalismo não tiveram muito sucesso Especificamente no Brasil neste momento histórico em que vi vemos destacamos duas atitudes principais dentre muitas decor rentes de fundamentalismo A primeira e talvez a mais momen tânea é a polarização políticopartidária entre direita e esquerda entre poderosos economicamente e ascendentes socialmente en tre golpistas e golpeados TELLES 2017 p 195205 A reflexão sobre esse tópico ainda se desenvolve e os eventos ainda aconte cem à espera de um desfecho DULCI 2017 p 169171 Outra atitude fundamentalista que destacamos se situa na esfera religiosa O Brasil é um país predominantemente cristão 61 Uma melhor análise e maiores exemplos de fundamentalismo nas diferentes religiões VASCONCELLOS Pedro Fundamentalismos matrizes presenças e inquie tações São Paulo Paulinas 2008 p 5584 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 78 e vergonhosamente ainda por aprender a conviver melhor com as diferentes crenças especialmente as de matrizes africanas principais vítimas de intolerância religiosa Algumas notícias recentes demonstram como o fundamen talismo religioso cristão promove desrespeitos e provoca vítimas nas outras religiões Dentre tantas notícias destacase a seguinte De janeiro a março deste ano os casos de intole rância religiosa cresceram mais de 56 no estado do Rio de Janeiro em comparação ao primeiro tri mestre de 2017 Em valores absolutos o número subiu de 16 para 25 denúncias no período segun do a Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos SEDHMI A capital concentra 55 das denúncias seguida por Nova Iguaçu e Duque de Caxias ambos na Bai xada Fluminense com 125 e 53 respectiva mente O tipo de violência mais praticado é a dis criminação 32 Depois aparecem depredação de lugares ou imagens 20 e difamação 108 As religiões de matrizes africanas são os principais alvos candomblé 30 e umbanda 2262 Se por um lado alguns poucos se desrespeitam e até matam em nome de Deus e da religião outros muitos buscam um caminho de rea lização humana plenitude paz e felicidade Pessoas querem viver em harmonia consigo mesmas com os outros e com a criação A espiritua lidade é a via e superação dos absurdos de algumas pessoas religiosas 62 Casos de intolerância religiosa sobem 56 no estado do Rio Disponível em httpagenciabrasilebccombrdireitoshumanosnoticia201805casosdeintole ranciareligiosasobem56noestadodorio Acesso em 18 jun 18 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 79 Religião e pósmodernidade Desde o início do novo milênio nós nos situamos em tempos de rápidas mudanças socioculturais O que era exato firme e consistente passa por um estado de liquefação A pósmoderni dade se consolida como novo tempo Situamonos nesse momento incógnito da nossa história As realidades estão dissolvidas e misturadas por isso a metáfora da fluidez conforme o uso difundido por Zygmunt Bauman 2001 p 71063 Nós recebemos uma herança de um processo de secu larização desde a modernidade64 O pensamento atual conside ra caducas e superadas as questões modernas por exemplo verdade absoluta moral universal supremacia da razão e cinde com a tradição O passado não importa e o futuro não interessa O que existe é o presente Por essa razão um tempo de insta bilidade crises moral fé economia política meio ambiente religião e um relativismo pertinente Do ponto de vista das religiões nós passamos de tempos da morte de Deus para uma revanche religiosa Ouvese falar cada vez mais frequentemente de um regresso do religioso ou do sagrado E é já costume caracterizar a nossa época precisa mente por esse regresso o que a tornaria uma época de atitude pósmoderna isto é superadora de uma correspondente atitude 63 Sobre a dificuldade de precisão do conceito pósmodernidade A denominação de pósmodernidade aplicada ao final do século XX e à transição do segundo milênio para o terceiro tornouse patrimônio comum a múltiplos âmbitos da cultura e da sociedade Por isso mesmo tornase extremamente difícil uma caracterização precisa desse concei to DUQUE João Manuel Dizer Deus na pósmodernidade Lisboa Alcalá 2003 p 5 64 Sobre o processo de secularização e suas consequências na contemporaneidade MONICO Lisete Secularização ateísmo e pluralismo religioso nas sociedades oci dentais contemporâneas Horizonte Belo Horizonte v 13 n 40 p 20642095 outdez 2015 Especialmente o tópico sobre a secularização MONICO 2015 p 20672069 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 80 moderna que se diz por sua natureza adversa ao religioso e ao sagrado DUQUE 2003 p 163 A proliferação das crenças responde à necessidade de recom por a partir do indivíduo e de seus problemas algo do sentido perdido A religião na contemporaneidade se caracteriza entre ou tras coisas pela difusão de crenças individualistas uma reconsi deração institucional da religiosidade e uma nova religiosidade flu tuante de elaborações sincréticas HERVIERLÉGER 2008 p 2025 Assistimos a um processo de desregulação das religiões As novas gerações se opõem às antigas gerações Há lacunas diferentes e enormes entre uma geração e outra que representam verdadeiras rupturas culturais Os pais ou responsáveis rejeitam transmitir alguma fé para os filhos e deixam para eles a escolha da religião Ou ainda os mais antigos não têm mais certezas de fé ou vivem crenças pessoais distinta das instituições O que antes era oferecido e aceito como pronto e indiscutível hoje necessita de um esclarecimento e uma opção refletida Os que creem hoje fazem com maior convicção A responsabilidade de escolher o próprio rumo pesa sobre o indivíduo pasmo diante de múltiplas alternativas Por isso a emergência de fundamenta lismos e de um tradicionalismo estéril reflexos da pouca capaci dade de diálogo com o presente Repetemse modelos velhos sob uma nova roupagem enquanto não se aceita os atuais desafios O indivíduo atual deseja uma experiência pessoal que correspon da aos seus anseios profundos e lhe forneça consolo e sentido de exis tência perene para sua vida Independentemente de denominação religiosa o ser humano anseia por algo da ordem da transcendência Ela é uma experiência porque este saber de cunho atemático mas inevitável é momento e Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 81 condição de possibilidade de toda e qualquer experiência concreta de qualquer objeto que seja Essa experiência é chamada transcenden tal porque faz parte das estruturas necessárias e não suprimíveis do próprio sujeito que conhece e porque consiste precisamente na ultrapassagem de determinado grupo de possíveis objetos ou de categorias A experiência transcendental é a ex periência da transcendência experiência na qual a estrutura do sujeito e consequentemente tam bém a estrutura última de todo objeto concebível de conhecimento está presente conjuntamente e na identidade RAHNER 1989 p 33 Embora os pensadores de diferentes tempos da história tenham apontado essa dimensão humana no momento presente ela se tor na destacada pela reação ao racionalismo histórico anterior e pelo enfraquecimento das grandes instituições sociais O ser humano possui uma sede de Deus Para corresponder a tal sede busca hu mana pelo espiritual devese considerar também a água espiritual e a forma de satisfação os meios para satisfação Portanto qual es piritualidade corresponderia melhor ao nosso tempo pósmoderno Por uma espiritualidade na pósmodernidade A pergunta complexa não merece uma resposta simplória nem definitiva pois o fenômeno exige ampla pesquisa Entretanto elencamos algumas características basilares para uma espiritua lidade na pósmodernidade especialmente para o enfrentamen to do fundamentalismo Compreendendo espiritualidade como movimento humano para a transcendência Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 82 Pluralismo religioso O primeiro tópico a ser considerado é o pluralismo religioso aludido acima Os tempos não são de hegemonia de uma de nominação nem de uma única maneira de relacionarse com a transcendência Cada vez surgem novas religiões ou novas for mas de viver a religiosidade De forma evidente a religião transfigurouse fragmentouse e multiplicouse embora cada fragmento não tenha efeitos maiores nas socie dades laicas permanecendo através das suas cir culações simbólicas do mistério das práticas e dos ritos mesmo em atividades grupos ou pro jetos não explicitamente tidos como religiosos Na atualidade das sociedades pósseculares uti lizando a designação emblemática de Habermas identificase uma abundância de novas direções religiosas e filosóficas uma expansão acelerada de vários grupos religiosos ou meramente de apelos para distintos modus vivendi Quando um ritual um simbolismo e uma estrutura institu cional são radicalmente modificados resulta um novo movimento religioso ao qual os membros facilmente tanto aderem como abandonam em função da resposta a necessidades ou a desejos pessoais MONICO 2015 p 2078 Assim um indivíduo que hoje busca alguma espiritualidade se depara com a variedade de ofertas Cada pessoa escolhe confor me lhe apraz Ao invés de uma religiosidade universal estamos caminhando para uma religiosidade profundamente pessoal uma Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 83 religiosidade a partir da qual cada um poderá encontrar sua lin guagem pessoal própria e mais específica para se dirigir a Deus FRANKL 2011 p 111 Prezase pela experiência mais do que pela normatização A dificuldade se encontra na solidez na pereni dade e no compromisso com a própria dimensão espiritual As religiões podem propor uma espiritualidade sadia que hu manize e integre o ser humano65 Dessa forma cumprese a tarefa dessas instituições que é a de ligar no sentido de relacionar re ligare a transcendência e a imanência o invisível e o visível o divino e o humano Do contrário a experiência religiosa tornase uma patologia gerando fanatismo e fundamentalismo e adoe cendo as pessoas e a sociedade O remédio é o desafio de cultivar uma experiência transcendental adequada e perene Por isso uma espiritualidade não pode ser um anestésico humano Um movimento espiritual conflui para uma prática de vida melhora da As religiões contribuem para um mundo melhor se a espiritualida de aponta para uma ética e o que se experimenta por uns instantes deriva em melhores ações de seres humanos inebriados pelo mistério Dimensão ética Nos tempos atuais muitas pessoas procuram viver eticamen te sem alguma vinculação religiosa institucional Ou ainda fre quentam algumas instituições religiosas sem viver genuinamente 65 Luiz Carlos Susin apresenta alguns critérios para uma espiritualidade saudável a árvore e os frutos isto é as consequências práticas de uma espiritualidade a livre decisão do amor liberdade e autonomia para viver qualquer tipo de fé SUSIN Luiz Carlos O ato de religião como virtude e seus vícios sobre fundamentalismo fanatis mo esquizocrentes In MILLEN Maria Inês de Castro ZACHARIAS Ronaldo org Fundamentalismo desafios à ética teológica Aparecida Santuário 2017 p 195 222 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 84 os preceitos religiosos A religião fica à serviço dos gostos indivi duais e não parece ser mais necessária para a felicidade humana A ética pode substituir uma fé ou uma vivência religiosa Cada vez mais cresce o número de pessoas que vivem bem mas não participam das religiões ou sequer dizem acreditar em Deus Por esse motivo diferentes propostas aparecem como alternati vas como por exemplo a espiritualidade ateia do filósofo André ComteSponville Uma espiritualidade da fidelidade antes da fé da ação antes que da esperança sim a ação pode se tornar um exercício espiritual tanto os trabalhos nos mosteiros quanto as artes marciais no oriente do amor enfim antes que do medo ou da submissão 2006 p 150 Ou ainda a proposta de uma espi ritualidade laica de Luc Ferry O amor é claro é o mais visível e mais forte não só por se encarnar em relações com outras pessoas mas também por animar todas as demais ordens do direito à ética passando pela arte a cultura e a ciência FERRY 2012 p 200 Seja pelos conhecidos discursos das religiões seja por refle xões que as dispensam a espiritualidade supera as instituições e conduz à prática do amor O ser humano que anseia uma ex periência transcendental aspira amar e sentirse amado para além e a partir das limitadas experiências sensoriais de amor Portanto o espiritual incide na práxis cotidiana da vida o trans cendente me remete ao drama real vivido e me insere nele de maneira diferente para atuar mais eficazmente O ato deve ser todo da pessoa humana mas como se fosse todo dependente da vontade transcendental em uma síntese en tre as vontades humana e divina na qual uma não pode nada sem a outra BLONDEL 1893 p 385 A ação é o ponto de encontro e de cooperação e o lugar de comunhão entre o ser hu mano e sua destinação própria Deus onde o homem ascende à Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 85 finalidade para a qual foi criado e o meio pelo qual se configura ao infinito que é o princípio e o fim da ação humana A comu nhão com o divino é a consumação da ação plenamente realizada pela participação no amor A orientação e a finalidade da ação humana se dirigem para essa realidade absoluta infinita e comumente nomeada por deus66 Mesmo a práxis sendo múltipla e transitiva ela anseia uma uni dade que a atrai e a impulsiona adiante O ser humano é livre na medida em que age conforme sua própria orientação e finalidade Não obstante ainda se praticam crueldades em nome de Deus e das religiões cultivamse ódios guerras conflitos e divisões O que poderia ser para humanização e melhoramento humano às vezes se torna combustível para inflamar rupturas sociais em nome de uma verdade O amor fica teórico e presente apenas nos discursos e a vida desses crentes fundamentalistas causa mais estranhamento do que admiração Se por um lado muitas pessoas das religiões disseminam caos por outro a espiritualidade representa resistência luta pacífica e oposição aos destroços como exemplo importantes expoentes da nossa história recente de diferentes denominações Mahat ma Gandhi Dalai Lama Asia Bibi Papa Francisco Thich Nhat Hanh Madre Tereza de Calcutá entre outros Enfrentamento ao fundamentalismo Os discursos de grupos fundamentalistas trazem o nome de deus e justificam as atrocidades por causa de uma falsa fé Por 66 Com essa grafia queremos comunicar a ideia de Deus de maneira não confes sional por uma religião específica Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 86 detrás há uma imagem equivocada de Deus como soberano in finito e onipotente que opera tudo e faz com que todas as coisas ocorram conforme seus desígnios Os líderes usam disso para manipular os grupos em prol de seu propósito de poder Então como pensar uma imagem de Deus que se oponha a essa realidade desumanizante Como uma relação com a divin dade supera o fundamentalismo doentio que ainda temos notí cias e se dispõe para uma aventura com o mistério Nossas maneiras de nomear o mistério são variadas deus transcendência inefável etc no entanto o humano percebe uma realidade para além de si mesmo da qual tem sede e almeja uma relação As religiões podem ajudar nesse caminho renovan do o próprio discurso considerando o momento atual e história real na qual o divino se manifesta Aqui neste aquém da subjetividade descons truída encontramonos sós e ao mesmo tempo acompanhados Sós em nossa liberdade pensan te e acompanhados na sensibilidade de outros corpos Sós no luto mas acompanhados de nos sos mortos e dos vivos a que com pena e com gozo entre mesclados sempre mal conhece mos e amamos Um lugar que não é lugar um sentido que é sem sentido um ser que não ente nem super ente mas abismo do ser Teremos de dar esse salto no vazio uma fé que não é crença que se engana anelando possuir um objeto de latria mas fé que é confiança in condicional no outro Uma esperança que não espera nada e no entanto dá todo na aposta de Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 87 um amanhã Um amor que não é correspondido porque não tem medida mas só sabe ser pura doação Tal será o lugar para falar da revelação divina no meio dos escombros da pósmoderni dade MENDOZAÁLVAREZ 2016 p 4244 Podemos pensar em deus como quem verdadeiramente se situa na realidade humana e padece o drama de todos Assim será possível encontrar uma finalidade para as adversidades e força para o enfrentamento cotidiano como Zizek arguemnta Schelling já havia escrito Deus é uma vida e não apenas um ser Mas toda vida tem um destino e está sujeita ao sofrimento e ao devir Sem um conceito de Deus que sofre humanamente toda a história permanece incompreensível Por quê Porque o sofrimento de Deus indica que ele está envolvido na história é afetado por ela e não apenas um mestre transcendente que controla tudo lá de cima o sofrimento de Deus significa que a história humana não é apenas um teatro de sombras mas sim o lugar de uma luta real a luta que o próprio absoluto está envolvido e em que seu destino é decidido ZIZEK 2016 p 132 Um deus sofrente agride o imaginário comum no qual se habituou a imaginar o divino como um espírito perfeitíssimo onipotente onisciente e onipresente Assim como as grandes instituições sociais a maneira de viver os valores e a sociedade estão em crise por conta das aceleradas mudanças da pósmoder nidade da mesma forma a imagem de deus deve ser repensada Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 88 e discutida sempre As buscas pelo mistério continuam por parte do ser humano e as repostas possíveis devem assumir as novas questões e os indivíduos gestados nessa cultura Os desafios presentes não são piores do que os de outros mo mentos na história A ousadia de um encontro com o mistério contribui para refletirmos além dos horizontes estreitos do espa ço e tempo em que nos situamos A experiência espiritual eleva nossas mentes ilumina nossos olhares e fortalece nosso ser para o empenho por uma existência abundante de sentido de ser Assim deus não é um ídolo propriedade de alguma deno minação religiosa ou alguém que suscite guerras desrespeitos e rivalidades para melhor ser adorado As características da nossa sociedade contemporânea apontam para uma experiência huma na de um deus percebido nas tramas da história e na vivência da complexidade do tempo Um deus mais na terra do que nos céus menos ontológico e mais existencial presente no interior das pessoas mais do que nos templos religiosos que se conhece pelas relações mais do que pelos discursos Assim teríamos uma espiritualidade verdadeira ao invés da intolerância religiosa Considerações finais Finalmente podemos nos questionar Que lições podemos tirar do passado que nos ajudem a enfrentar mais criativamente no futuro os medos que o fundamentalismo encerra ARMS TRONG 2001 p 484 O barulho rouco dos fundamentalistas parece ser mais forte do que as ações das pessoas que fazem uma experiência trans cendental Se comparamos quantitativamente e qualificativa Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 89 mente os espiritualizados que fazem verdadeira experiência espiritual exercem melhor sua humanidade que outros que que rem impor uma religião própria para todos aqueles deixam me lhor herança para os humanos pósteros do que estes Um caminho de superação das barbáries fundamentalistas deve ser a espiritualidade A experiência humana sobressai aos discursos religiosos Podemos enaltecer antes o conteúdo o mis tério de um deus do que as etiquetas denominações religio sas A beleza dos cultos e liturgias das diferentes religiões as preces feitas de maneiras próprias e a vivência do amor ocultam as marcas deixadas pelos atos fundamentalistas A pósmodernidade desafianos para novas compreensões das religiões e de deus Seremos tanto mais inseridos no mundo presente quanto mais o escutamos e dialogamos comsobre ele Nele fazemos a experiência espiritual e para ele tal ato se volta Por isso a esperança de uma consistente espiritualidade supera o medo do fundamentalismo Se infelizmente ainda se noticiam atos de violência por causa da religião a espiritualidade deve chegar de maneira eloquente no enfrentamento dessa realidade como um rio que quanto mais profundas são as águas mais si lenciosas perenes e fecundas vitalizando tudo por onde passa Então o presente se torna melhor com o que aprendemos do passado e pouco a pouco construímos um futuro menos intole rante e mais espiritual Se cada indivíduo possui uma tendência a integrarse cada experiência com o mistério potencializa isso e gera a paz que a humanidade almeja Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 90 Referências bibliográficas ARMSTRONG Karen Em nome de Deus o fundamentalismo no judaísmo no cristianismo e no islamismo São Paulo Compa nhia das Letras 2001 BAUMAN Zygmunt Modernidade líquida Rio de Janeiro Jor ge Zahar 2001 BLONDEL Maurice LAction essai dune science de la prati que et dune critique de la vie Paris 1893 COMTESPONVILLE André LEsprit de lathéisme introduc tion à une espiritualité sans Dieu Paris Albin 2006 DULCI Otávio Brasil 2016 para onde vamos In SOUZA Ro bson PENZIM Adriana ALVES Claudemir org Democracia em crise o Brasil contemporâneo Belo Horizonte PUCMG 2017 p 151171 FERRY Luc O homemdeus ou o sentido da vida Rio de Janei ro DIFEL 2012 FRANKL Viktor A presença ignorada de Deus 13ª ed Petrópo lis Vozes 2011 HERVIERLÉGER Danièle O peregrino e o convertido a reli gião em movimento Petrópolis Vozes 2008 MENDOZAÁLVAREZ Carlos Deus Ineffabilis uma Teologia pósmoderna da revelaçãodo fim dos tempos São Paulo É Rea lizações 2016 MONICO Lisete Secularização ateísmo e pluralismo religio so nas sociedades ocidentais contemporâneas Horizonte Belo Horizonte v 13 n 40 2015 p 20642095 RAHNER Karl Curso fundamental da fé 2ª ed São Paulo Paulus 1989 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 91 SUSIN Luiz Carlos O ato de religião como virtude e seus ví cios sobre fundamentalismo fanatismo esquizocrentes In MILLEN Maria Inês de Castro ZACHARIAS Ronaldo org Fundamentalismo desafios à ética teológica Aparecida Santuá rio 2017 p 195 222 TELLES Helcimara Crise política ou crise na política O pro cesso de impeachment da presidente Dilma Rousseff e seus des dobramentos apolíticos In SOUZA Robson PENZIM Adria na ALVES Claudemir org Democracia em crise o Brasil contemporâneo Belo Horizonte PUCMG 2017 p 173206 VASCONCELLOS Pedro Fundamentalismos matrizes pre senças e inquietações São Paulo Paulinas 2008 ZIZEK Slavoj Apenas um Deus que sofre pode nos salvar In GUNJEVIC Boris ZIZEK Slavoj O sofrimento de Deus inver sões apocalípticas Belo Horizonte Autêntica 2016 p 129160 O malestar na sociedade e seus efeitos sobre os matrimônios católicos contemporâneos a proposta de mediação religiosa do Encontro de Casais com Cristo DENIS COTTA FORMIGA Mestrando em Ciências da Religião na PUC Minas e bolsista desta Bolsa Assistencial Stricto Sensu Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 93 Resumo O presente estudo visa analisar os aspectos advindos do males tar da sociedade contemporânea e seus impactos sobre os vínculos amorosos mais especificamente sobre os matrimônios cristãocató licos Nessa premissa salientase o serviço escola da Igreja Católica a saber o Encontro de Casais com Cristo ECC que tenta instau rar uma mediação religiosa em prol da consolidação do sacramento do matrimônio De acordo com a hipótese desta pesquisa o ECC preza por uma ressignificação do matrimônio de seus participantes contudo salientamse problemáticas para a instauração deste objeti vo Observase que tais problemáticas são derivadas em certo grau aos sentidos produzidos nos indivíduos pelo malestar na sociedade contemporânea de acordo com o prisma psicanalítico No que tan ge ao referencial teórico utilizado esta pesquisa se fundamenta em duas subdisciplinas das Ciências da Religião a saber a Sociologia da Religião e a Psicologia da Religião no intuito de propor um diá logo teórico entre ambas Neste sentido no tocante à subdisciplina de Psicologia da Religião este trabalho se utilizará da abordagem psicanalítica freudiana tratada pelo psicanalista brasileiro Joel Bir man que propõe um diálogo com o pensamento do sociólogo Max Weber referente ao processo de desencantamento do mundo Além disso este estudo visa salientar a concepção freudiana referente à concepção de amor narcísico e de amor anaclítico que são elucida das na obra Sobre o narcisismo de autoria de Sigmund Freud e que serão abordadas posteriormente neste trabalho Palavraschave ECC Matrimônio Sociedade Contemporânea Psicanálise Malestar Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 94 Introdução As Ciências da Religião CR constituem um vasto campo do saber que se dedica a uma análise científica da religião e que preza pelo estudo empírico dos aspectos individuais e sociais dos fenôme nos religiosos No âmbito epistemológico o campo das CR é cons tituído de uma árvore do conhecimento composta de oito subáreas cada qual com uma metodologia e aporte teórico próprios Dessa forma por intermédio da subárea da Psicologia da Religião preten dese analisar os aspectos subjetivos dos indivíduos participantes e os efeitos psicológicos produzidos por este serviço escola da Igreja Católica intitulado Encontro de Casais com Cristo ECC Além disso este estudo visa apresentar sob um prisma psicanalítico o contexto em que se encontra o sujeito desamparado e em males tar Assim este indivíduo de acordo com suas necessidades pode recorrer a uma mediação religiosa como o ECC em busca de res postas para seu sofrimento emocional e amoroso Primordialmente devese salientar qual é o discurso religioso difundido por esse serviço da Igreja Católica para que posterior mente se possa realizar a inferência com o desencantamento reli gioso De uma forma geral podese dizer que o discurso religioso oriundo do ECC preza sobretudo pela evangelização da família e pelo fortalecimento dos laços matrimoniais de seus participantes Na premissa de promover o cuidado matrimonial dos casais paroquianos surgiu o Encontro de Casais com Cristo Essa ação pastoral familiar foi idealizada nacionalmente pelo Padre Alfonso Pastore que iniciou o projeto em 1970 na Paróquia Nossa Se nhora do Rosário na Vila Pompeia em São Paulo SP Segundo Pastore 2000 o propósito do ECC seria de uma forma geral realizar um chamado da igreja para que seus fiéis se atentassem à importância da família e do casamento Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 95 Nesse contexto o discurso utilizado pela Igreja Católica e mais propriamente pela ação do ECC segue em uma direção oposta ao discurso proferido pela sociedade contemporâneaconsumo e que em algum grau podem fragilizar os laços amorosos como é o caso do conceito de amor narcisista elucidado por Sigmund Freud Visão psicanalítica freudiana sobre os impactos da sociedade contemporânea sobre os matrimônios católicos É de suma importância inicialmente realizar um aporte teó rico da presente pesquisa sob a perspectiva das Ciências Psi cológicas da Religião e sua interpretação da subjetividade e da conduta dos indivíduos em contexto religioso Assim uma Psico logia da Religião não deve se pautar pela crítica ou pela defesa da religião mas pelo seu serviço de conhecimento científico Em outros termos tratase de realizar o estudo científico des critivo e objetivo do fenômeno religioso no que se refere ao com portamento humano RODRIGUES GOMES 2013 p 333 Cabe ressaltar outro ponto de referência neste trabalho a saber o conceito de sociedade contemporânea que segundo Agamben 2009 recorre inicialmente ao conceito de Nietzsche que vislumbra o que é ser contemporâneo como intempestivo Assim o autor relembra que para Nietzsche o ser contemporâ neo possui como uma de suas principais características a sua inadequação ao seu próprio tempo em outros termos o indiví duo não se identifica com o contexto temporal em que vive Um exemplo disso é o próprio Nietzsche que considerava suas ideias à frente de seu contexto histórico Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 96 Dessa forma para o autor supracitado o ser contemporâneo é aquele que pertence verdadeiramente ao seu tempo é verda deiramente contemporâneo ele é capaz mais do que os outros de perceber e apreender o seu tempo AGAMBEN 2009 p58 59 O referido autor ainda propõe outra forma a qual se pode definir a contemporaneidade assim contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo para nele perceber não as luzes mas o escuro AGAMBEN 2009 p 62 Nesse sentido Agamben 2009 salienta que a escuridão nes se contexto não se remete à inércia ou à falta de visibilidade do ser contemporâneo ao contrário diz respeito à capacidade de ver aspectos de seu tempo que estão encobertos nessa escuridão Em outros termos o sujeito contemporâneo segundo o pensamento do autor supracitado é capaz de vislumbrar aspectos obscuros de sua realidade social aspectos estes que na maioria das vezes se encontram ocultos à uma analise superficial das esferas sociais Em suma segundo o pensamento do autor supramencionado o sujeito contemporâneo deve aprender com a escuridão do presente e trazer a luz da interpretação do passado Por isso a im portância de se recorrer à história para que assim possa ilumi nar as trevas da contemporaneidade e dessa forma interpretar o tempo presente de uma melhor forma Nessa guisa com o intuito de tratar o afastamento dos casais da paróquia e ao mesmo tempo em que propõe um diálogo entre a Igre ja e a sociedade contemporânea o Encontro de Casais com Cristo se mostra como uma espécie de mediação religiosa com enfoque no sacramento matrimonial frente ao malestar social que pode impactar direita ou indiretamente o casamento dos paroquianos Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 97 Dessa forma antes de se analisar os aspectos psicológicos e emocionais que podem ser observados nesse Encontro salienta se a necessidade de contextualizar o enfoque inicial que se pro põe o ECC Católico Este se fundamenta de uma forma geral em três etapas cada qual com suas particularidades e direciona das a alcançar um determinado objetivo A primeira etapa é caracterizada por desempenhar a quebra de gelo é o momento da convocação dos casais afastados da igreja e do início do processo de ressignificação do matrimônio A segunda etapa é o reencontro tratando da proposta de com promisso com a Igreja focase no engajamento de casais da pa róquia no ECC A terceira etapa enfim possui um enfoque na reflexão das estruturas injustas da sociedade Ao tratar do contexto de desencantamento do mundo67 o psicanalista brasileiro Joel Birman aponta que este referido es tado de desencantamento traz ao sujeito um sentimento de desamparo que em outros termos pode ser descrito como certa descrença para com os aspectos sociais abrangendo os relacio namentos interpessoais e sua própria condição humana Nes se sentido serão tratados no próximo tópico deste trabalho os possíveis diálogos entre as teorias weberiana e freudiana no que cerne ao conceito de desencantamento do mundo Podese inclusive retomar ao conceito da castração realizada pela figura paterna para dialogar com esse processo do sujeito desen cantado Na concepção freudiana Deus seria para o sujeito a repre 67 O conceito sociológico de desencantamento do mundo foi utilizado amplamen te por Max Weber No entanto o psicanalista freudiano Joel Birman se utiliza desse mesmo termo para realizar uma dialética entre a visão weberiana e a freudiana funda mentandose principalmente na obra Malestar na civilização de Sigmund Freud Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 98 sentação do pai simbólico68 no qual são refletidasdepositadas todas as suas experiências medostraumas e recalques inconscientes Dessa forma o sujeito pode perder a referência de Deus da religião ou até mesmo de si Esse estado no qual o sujeito neurótico vivencia o desencantamento pode prejudicálo em di versas esferas de sua vida entre elas as relações interpessoais e sociais Nesse viés os indivíduos desencantados se encon tram com as referências de normas e valores presentes no su perego69 fragilizado Assim sem a repressão de que certa forma servia como estrato psíquico controlador de sua conduta social o sujeito acaba dividido e sem qualidades no que tange à sua persona sociocultural BIRMAN 1998 Nesse viés se encontra um dos maiores desafios da ação da Igreja Católica e mais especificamente do ECC A problemática que se apresenta é de como propiciar a este sujeito desencantado uma ressignificação do sacramento matrimonial Como relembra Schuchter 2014 de acordo com o pensamento weberiano o desencantamento religioso também pode ser visto na mudança de paradigma entre o homem e a sua ideia de salvação Dessa forma se há uma negação por parte do sujeito da ne cessidade da Igreja de seus líderes religiosos assim como dos 68 Na visão psicanalítica freudiana Deus seria a representação simbólica paterna tanto em níveis de experiência do sujeito quanto de idealizações feitas à essa imagem que podem variar desde a concepção de um pai amoroso até a de um pai extrema mente severo e repressor 69 A segunda tópica freudiana estabelece que todo sujeito possui três esferas de ordem psíquica que controlam e moldam sua conduta assim como as experiências vividas Assim de forma geral o ID é reservatório das pulsões de vida e morte é estritamente regido pelo princípio do prazer O ego estabelece o equilíbrio entre as exigências do ID e às ordens do superego é regido pelo princípio da realidade é o regulador O superego originase com o complexo de Édipo a partir da internalização das proibições seu conteúdo se refere às exigências sociais e culturais BOCK 2009 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 99 sacramentos instituídos este indivíduo se encontra em um pro cesso de racionalização religiosa que pode ser concebida como aspecto do desencantamento religioso A partir dessa premissa o ECC possui dois principais desa fios o primeiro seria a tentativa de propiciar um reencantamento religioso desse sujeito procurando instaurar ou reavivar senti mentos idealizações que façam com que esse indivíduo retorne à Igreja e professe sua fé cristãcatólica O segundo desafio es taria relacionado à proposta de ressignificação70 do sacramento do matrimônio que preza por uma nova visão ou renovação do amor inicial vivido no início do vínculo amoroso Ao se pensar nas problemáticas e dilemas entre eles o de sencantamento do mundo que levaram esses indivíduos a parti ciparem desse encontro para casais podese analisar os possíveis impactos emocionais gerados inicialmente nesses indivíduos ao serem submetidos a esse discurso religioso Discurso este que é pautado pela figura de um Deuspai amoroso e que se preocupa com a união da família e sobretudo com o sacramen to71 do matrimônio Nesse contexto em que se apresentam casais que em sua maioria se encontram emocionalmente fragilizados as mensa gens difundidas nas palestras da primeira etapa do ECC em um primeiro momento podem propiciar uma eclosão de emoções li gadas ao arrependimento à carência afetiva entre outros aspec tos que de alguma forma remetem ao passado ou ao presente do relacionamento do casal 70 Neologismo que se refere à atribuição de um novo significado de algo 71 A definição de sacramento é atribuída a Santo Agostinho e é resumida como um sinal externo e visível de uma graça interior e espiritual NOVO DICIONÁRIO DE TEOLOGIA 2011 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 100 Como referenciado anteriormente esses encontros podem instaurar em seus participantes a importância da empatia do vín culo amoroso em que o amor narcísico dá lugar ao amor anaclí tico E é aqui neste exato ponto que se vislumbra a contribuição teórica de Freud o presente estudo Segundo a concepção psicanalítica freudiana o amor narcí sico pode ser entendido em um sentido egocêntrico no qual o sujeito só ama alguém que reflete sua imagem como o reflexo de um espelho Em outros termos no amor narcísico o sujeito só ama quando se reconhece no outro Podese dizer que ama a si mesmo refletidoa noa parceiro a Outro tipo de amor apresentado por Freud 1914 199672 é o anaclítico em que ao contrário do narcísico o sujeito identifica no outro a diferença e dessa forma ama a diferença do outro Esse tipo de amor pode ser compreendido como um enfoque no outro ou seja o sujeito é ciente das diferenças entre ele e a outra pessoa não necessitando ver refletida sua imagem noa parceiroa para amáloa até pelo contrário o que ele deseja é a diferença Diante dessa perspectiva o autor salienta que para superar esse amor mercantilista baseado em bens de consumo é neces sária uma ressignificação deste Deve ser encarado como uma arte que exige humildade e esforço de ambas as partes envolvidas para que assim se possa criar a possibilidade de um amor anaclítico Em suma com base na teoria psicanalítica de Freud é pos sível associar a proposta do ECC Católico por meio da concep ção de ressignificação do casamento nesse viés o processo de atribuição de um novo significado para o matrimônio que se dá 72 A primeira data entre colchetes se refere à publicação original da obra e a se gunda entre parênteses remete à data da obra consultada Nas demais citações serão elucidadas somente a data da obra consultada Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 101 por meio do discurso religioso do ECC Nessa premissa o amor narcísico precisa ser superado extinguido do casamento para que assim possa dar lugar ao amor anaclítico O desencantamento do mundo uma proposta de diálogo entre a sociologia weberiana e a psicanálise freudiana Através de uma análise da Psicologia da Religião e mais espe cificamente da abordagem psicanalítica podese contextualizar o desencantamento religioso tratado por Weber na Sociologia como um dos fatores que podem propiciar o aspecto de fragilidade desses laços amorosos Nessa perspectiva se os indivíduos se encontram afastados da Igreja eou não se atêm ao matrimônio enquanto sacra mento notase uma mudança na conduta desses sujeitos Para uma melhor compreensão do conceito weberiano de desencantamento do mundo cabe ressaltar a figura do filósofo e sociólogo brasileiro Carlos Eduardo Sell que discorre sobre esse conceito da teoria weberiana Primordialmente Sell 2015 aponta que antes de se compreender a concepção de secularis mo na obra sociológica de Weber devese atentar aos dois ideais que estão quase sempre associados ao processo de secularização sendo a racionalização e o desencantamento do mundo No pensamento weberiano o conceito de desencantamento do mundo pode ser entendido em duas esferas o desencantamento religioso entendido como desmafigicação do desencantamento científico entendido como perda do sentido Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 102 identificando pois dois significados no concei to elide o fato de que também a ciência repousa sobre a desmafigicação SELL 2015 p 1617 Segundo Sell 2015 o conceito de secularização na obra webe riana é um tanto quanto fraco se for vislumbrado enquanto termo o processo de secularização pode ser encontrado ao se abarcar de forma mais holística sua obra Na tentativa de elucidar como a secularização é entendida na obra de Weber Sell 2015 p 22 aponta que esse processo é dividido em uma estrutura bidi mensional a secularização tanto os processos de ruptura quanto de continuidade entre o moderno e suas raízes religiosas No intuito de instaurar a dialética entre a Sociologia e a psi canálise este trabalho apresenta a visão freudiana sobre o de sencantamento do mundo Assim de acordo com Birman 1998 p 141 o desencantamento pode ser concebido como a racionalização do mundo pela ciência e o correlato esvaziamento dos deuses que encantavam o mundo produzem no sujeito um desamparo originário e inevitável Segundo o autor supracitado esse conceito freudiano é difundido sobretudo na obra O mal estar na civilização publicada originalmente em 1929 Nesta Sigmund Freud apesar de não utilizar propriamente o termo de sencantamento do mundo ressalta que o sujeito na modernida de se encontra destituído de suas potencialidades e desta forma é destinado ao desamparo e ao malestar BIRMAN 1998 Nesse sentido de esvaziamento ao qual o sujeito se encontra no desencantamento a religião perde o seu status de proteção e de salvação para esse indivíduo Assim a fantasia da proteção de um Deuspai não é mais alcançada eou vislumbrada por esse sujeito que padece então de um desamparo inevitável como re lembra a teoria freudiana Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 103 Para se tratar do caráter do desencantamento no viés psica nalítico é de suma importância frisar a ideia de religião expressa por Freud que é concebida como uma neurose infantil do su jeito Ao retomar sua concepção de religião enquanto neurose infantil Freud 1929 2011 p 1773 esclarece que o homem comum entende como sua reli gião o sistema de doutrinas e promessas que de um lado lhe esclarece os enigmas deste mundo com invejável perfeição e de outra lhe garante que uma solícita Providência velará por sua vida e compensará numa outra existência as even tuais frustrações desta A partir desse fragmento o autor supracitado nos remete ao pensamento de que o sujeito ao perder o encantamento pela religião ou até mesma ao encarála como uma neurose infantil pode se lançar ao malestar eou ao desprazer E assim para evi tar o desprazer o sujeito busca o sentido da vida que segundo Freud 2011 é permeado pela procura da felicidadeprazer No entanto de acordo com o autor em foco a felicidade não é eter na mas sim passageira em outros termos as pessoas não são felizes mas estão felizes dada a ideia de fenômeno episódico Através de seu pensamento Freud 2011 aponta que a bus ca pelo prazer em certas ocasiões pode levar os indivíduos a procurar na religião um alento para o seu estado de desamparo mesmo que como paliativo Seguindo essa concepção observa 73 A primeira data entre colchetes se refere à publicação original da obra e a se gunda entre parênteses remete à data da obra consultada Nas demais citações serão elucidadas somente a data da obra consultada Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 104 se que grande número de pessoas empreende conjuntamen te a tentativa de assegurar a felicidade e protegerse do sofrimen to através de uma delirante modificação da realidade Devemos caracterizar como tal delírio de massa também as religiões da humanidade FREUD 2011 p 26 No tocante ao pensamento da expressão desancamento do mundo a análise da obra freudiana O malestar na civilização mesmo sem utilizar essa expressão fornece subsídios para um processo dialético entre a sociologia e psicanálise Freud 2011 estabelece primordialmente que a busca pelo prazer não se limi ta somente ao campo religioso salientando que essa procura se dirige aos demais constructos socioculturais como a ciência e a arte mesmo que ambas fracassem no quesito promoção da felicidade duradoura Neste intuito a concepção freudiana elu cida que por mais que arte possa ser fonte de momentos de alegria não é capaz de produzir mais que um passageiro alheamento às durezas da vida não sendo forte o bastante para fazer esquecer a miséria real FREUD 2011 p 25 Nesse sentido Birman 1998 concebe o desencantamento religioso como uma tentativa do sujeito de fingir para si mesmo eou para as outras pessoas que ele ainda se encontra firme mente ligado à religião mas no entanto já se encontra apartado dela há algum tempo Dessa maneira o pensamento freudiano concebe o processo de racionalização da religião que acaba por instaurar novas perspectivas acerca da necessidade de significa ção da religião para o homem Então o sujeito ao migrar sua crença para a nova religião que se apresenta a saber a ciência moderna acaba por se sentir de samparado por não encontrar nela as respostas que procurava para o anseio de sua alma Nesse viés o intuito científico de fornecer Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 105 ao homem as respostas sobre a verdadeira Arte verdadeira Natureza o verdadeiro Deus ou mesmo a verdadeira Felicidade fracassa miseravelmente SCHUCHTER 2014 p 46 Diante desse paradigma o sujeito neurótico insatisfeito com as repostas dadas pela ciência moderna se volta para sua incompletu de e se encontra novamente desamparado Esse estado de desam paro pode muitas vezes levar esse sujeito à tentativa de retorno à ilusão religiosa que pode ser vislumbrada pela ideia de reen cantamento Nessa guisa percebese segundo o pensamento de Schuchter 2014 que o processo de desencantamento do mundo instaura de alguma forma a necessidade de um reencantamento Em outros termos nessa concepção observase que desencantamento não é nenhum processo linear e irreversível Tratase de um longo proces so conduzido principalmente pela religião de salvação judaicocristã e pela ciência grega e mo derna no qual o desencantamento e o reencan tamento estimulamse mutuamente mas no qual também a constelação fundamental das esferas de valor e ordens de vida veemse profundamente alteradas SCHUCHTER 2014 p 4950 Ao analisar o pensamento do sociólogo Schuchter 2014 po dese perceber a proposta de diálogo entre a teoria psicanalítica freudiana e a sociológica weberiana em que ambos tratam de um duplo desamparo do sujeito ou em outros termos um duplo de sencantamento No paradigma sociológico observase o conceito de desencantamento já na perspectiva freudiana vislumbrase o malestar social ou desprazer e sua busca pela felicidade Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 106 Conclusão Por intermédio dos teóricos utilizados neste trabalho podese observar características marcantes da sociedade contemporânea e sua relação com o âmbito religioso Com o propósito de esta belecer um diálogo entre pensadores clássicos como o sociólogo Max Weber e o psicanalista Sigmund Freud percebese que o indivíduo contemporâneo se encontra não desencantado mas duplamente desencantado74 Nessa perspectiva percebese os desafios enfrentados pelo ECC na contemporaneidade ao tentar promover uma consoli dação do sacramento matrimonial que por sua vez se encon tra permeado por um contexto sociocultural caracterizado pelo desprazer Assim os vínculos amorosos e religiosos apresentam aspectos de porosidade ou nos termos de Bauman formas lí quidas tanto no âmbito social quanto nas formas de relaciona mento como elucidado em sua obra intitulada Amor Líquido Em suma este estudo visa salientar que caso a religião deseje continuar relevante ao viés sociocultural ao qual está inserida é de suma importância a promoção do diálogo Igrejasocieda de Como dito anteriormente neste trabalho os sujeitos não possuem a mesma visão de mundo e além disso a socieda de contemporânea também dispõe de seus deuses e ideologias religiosas que são amplamente divulgadas como substitutas às tradições religiosas ditas tradicionais Nesse impasse o sujeito pósmoderno se encontra entre um verdadeiro cardápio religioso a la carte em que o sincretismo 74 Esse duplo desencantamento se refere primeiramente à religião e aos aspec tos míticos em geral e posteriormente o segundo desencantamento com a ciência e as promessas da modernidade Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 107 religioso eou ideológico aparece como mais uma opção às restri ções de instituições religiosas ortodoxas Sendo assim as insti tuições religiosas tradicionais tendem a afrouxar seus discursos com o intuito de acomodar esse sujeito duplamente desencan tando mas que em certa medida ainda recorre à religião como reduto contra o desamparo e ao malestar da contemporaneidade Referências bibliográficas AGAMBEN Giorgio O que é o contemporâneo In O que é o contemporâneo e outros ensaios Chapecó Argos 2009 BAUMAN Z Amor líquido Rio de Janeiro Zahar 2004 BAUMAN Z Modernidade líquida Rio de Janeiro Zahar 2001 BIRMAN J O malestar na modernidade e a psica nálise a psicanálise à prova do social PHYSIS Re vista Saúde Coletiva v 8 n 1 1998 p 123144 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciar ttextpidS010373311998000100007lngennrmiso Acesso em 27 set 2017 BOCK A M B et al Psicologias uma introdução ao estudo de Psicologia 14 ed São Paulo Saraiva 2009 FREUD S 1996a Sobre o narcisismo uma introdução Edi ção Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud v 9 Rio de Janeiro Imago Originalmente pu blicado em 1914 FREUD S 2011 O malestar na civilização São Paulo Com panhia das Letras Originalmente publicado em 1929 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 108 RODRIGUES C C L GOMES A M A Teorias clássicas da Psicologia da Religião In PASSOS J D USARSKI F Com pêndio de Ciência da Religião São Paulo Paulinas 2013 p 333340 SCHUCHTER W O desencantamento do mundo Seis estudos sobre Max Weber Rio de Janeiro UFRJ 2014 SELL C E A secularização como sociologia do moderno Max Weber a religião e o Brasil no contexto modernoglobal Revista Brasileira de Sociologia v 03 n06 juldez 2015 Desafios e possibilidades da experiência de encontro interreligioso uma investigação fenomenológica YuRI ELIAS GASPAR Doutorado em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais Brasil 2014 Professor adjunto da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri Campus JK MIGuEL MAHFOuD Doutorado em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Brasil 1996 Professor associado aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 110 Introdução Embora haja tanto desencontro pela vida a vida é arte do encontro já dizia o grande poeta Vinícius de Moraes 1988 Não foi por acaso que invertemos a ordem dos famosos versos pois triste é constatar que de fato o desencontro é tanto e tem chamado tanto a nossa atenção fazendose presente nas rela ções entre pessoas grupos comunidades povos países Triste também é perceber que diante de tantos desencontros muitas pessoas cansadas e machucadas reafirmam que a vida é a im possibilidade do encontro Mas permitindonos retomar à mesma canção de Vinícius a tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste não Não uma esperança vazia ideológica ou ilusória pois a ferida aberta de um desencontro reacende a chama da nossa espera por reais experiências de encontro é assim como a luz no coração É com essa chama que reconhecemos não só como os desencontros nos ferem mas como os encontros podem efetivamente nos corres ponder Aqui podemos nos encontrar inclusive conosco mesmos e nos abrir para reconhecer a arte da vida do encontro e no encontro Embora haja tantas possibilidades de encontrosvida uma mo dalidade em especial nos interessa o encontro entre diferentes Não de qualquer diferença mas daquela seria mesmo diferen ça que se joga na raiz que tende a tocar no horizonte último da vida a diferença interreligiosa Já é perceptível nesta primeira problematização o emergir de uma provocação a diferença é um fato mas a experiência do encontro pode revelar uma proximidade surpreendente Na diferença pode emergir uma unidade No relacionamento interreligioso o desencontro tem sido uma constante além de ser em algumas situações assustado Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 111 ramente perigoso TEIXEIRA 2010 A tensão toma a cena no desenrolar da relação podendo se concretizar implícita ou ex plicitamente por meio de formas diversas estranhamentos pre conceitos discordâncias mágoas brigas ódios guerras santas genocídios Tensão que se revela tanto no relacionamento in terpessoal quanto em modalidades mais amplas de relação social Tensão por vezes velada por vezes assumida religião não se discute afirma o antigo ditado Tensão por vezes incentivada o que pode tanto dificultar a constituição e manutenção do rela cionamento baseado no reconhecimento recíproco quanto levar em última consequência a verdadeiras batalhas Inclusive mui tas das guerras foram e continuam sendo justificadas em nome de Deus tenha Ele o nome que for frente àqueles que não compartilham daquela crença Enquanto aparecem em vários países e entre países situações de desencontro e violência sus citadas pela diferença religiosa não só a relação entre pessoas povos e países se vê ameaçada como também a própria existên cia do ser humano Tanto que muitos dizem e propõem que seria melhor que a religião não fizesse parte da vida das pessoas grupos e nações em síntese que não existisse já que ela seria o fator que gera mais desencontro e violência Se no relacionamento interreligioso o desencontro é dramático e por vezes trágico o encontro quando se realiza mesmo mar cado por tensões pode ser gerador de vida ocasião de reconheci mento de uma proximidade fundamental na diferença que pode lançar provocações para a totalidade da vida Acontecimento que surpreende a todos os envolvidos por mais que seja planejado ele instaura uma novidade que pode abrir novos caminhos para o relacionamento interreligioso Desenrolandose em nível inter pessoal o encontro interreligioso pode inundar a constituição das Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 112 relações sociais mais amplas contribuindo para a constituição de uma cultura que o favoreça Desenrolandose em nível macro so cial ou sendo proposto por figuras e instituições de referência o encontro interreligioso pode se constituir como recurso cultural para a transformação dos relacionamentos cotidianos Tanto é assim que nos últimos anos ampliaramse os esfor ços para promover explicitamente o encontro interreligioso São iniciativas que nasceram de diferentes tradições religiosas e em diversas partes do mundo experiências em ato que evidenciam a urgência e a radicalidade do encontro como resposta a tantos desencontros oferecendo indicações preciosas para a constitui ção do relacionamento frutífero com o diferente na diferença e para construir um mundo mais humano Não se trata de propos tas genéricas de como deveria ser a relação interreligiosa mas de situações concretas que evidenciam o valor de contemplar a experiência para dela aprender como o encontro pode aconte cer A importância de investigar efetivos encontros interreligio sos é evidenciada por Sodré 2007 ao destacar que experiências concretas de acolhimento e diálogo entre sujeitos de diferentes perspectivas religiosas podem se tornar exemplos vivos que mos tram a possibilidade de aprofundamento da experiência religiosa no reconhecimento da alteridade e no respeito à pluralidade de manifestações da religiosidade Nesse sentido o Brasil apresenta uma realidade particular mente interessante e provocadora marcada tanto por uma inten sa e multifacetada convivência entre pessoas de religiões diferen tes quanto por inúmeros exemplos de encontros interreligiosos que estruturam relacionamentos baseados contemporaneamente no reconhecimento e enriquecimento mútuo e na vivência da própria religiosidade na relação com a alteridade Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 113 A partir dessa problematização realizamos pesquisa de doutora do Gaspar 2014 com o objetivo de investigar a constituição e o di namismo próprio da experiência de encontro interreligioso a partir de quem pôde vivenciar unidade dentro da diversidade de posições religiosas Para tanto adotamos a Fenomenologia Clássica de Ed mund Husserl 2006 2012 e Edith Stein 2003 2005 como base de nosso referencial teóricometodológico Ales Bello 2004 e en trevistamos seis pessoas que de fato carregam essa experiência de encontro interreligioso consigo Vejamos quem são essas pessoas75 Dom Bernardo católico é prior de um mosteiro trapista no Brasil Ele é neto de imigrantes judeus da Europa Oriental Cria do num ambiente tipicamente americano foi também formado segundo as tradições judaicas Mesmo reconhecendo o valor do Judaísmo em sua formação maravilhouse pela presença de Je sus e converteuse ao Catolicismo após uma passagem pela Igre ja Presbiteriana Interessado na vida monástica primeiramente se tornou padre jesuíta para só depois tornarse monge trapista Carolina budista é participante ativa da SokaGakkai Internatio nal onde é responsável por acompanhar os membros dessa organiza ção especialmente as jovens budistas de sua faixa etária É em casa o lugar por excelência onde sua convivência interreligiosa acontece Filha de pais católicos Carolina transformou a resistência inicial em simpatia diálogo e boa convivência Mesmo permanecendo católica praticante sua mãe não se opôs que Carolina se convertesse ao Bu dismo e também participa de algumas reuniões da SokaGakkai Criado no meio evangélico Davi desde muito cedo participou ativamente da vida da Igreja interessandose na adolescência pelos 75 A partir da autorização dos entrevistados optamos por manter seus nomes pró prios reais na apresentação dos resultados pois compreendemos que a pessoalidade encarnada em cada história é desta forma melhor respeitada Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 114 caminhos teológico e pastoral Enquanto estudou em colégios con fessionais teve oportunidade de se relacionar com pessoas de ou tras perspectivas religiosas Na graduação em Psicologia aprofun dou relacionamentos dessa natureza especialmente com católicos e espíritas cultivando a amizade e a disponibilidade para conviver e aprender com o outro Aprofundandose na própria perspectiva tornouse mestre em Teologia e pastor sem abandonar o percurso já feito busca integrar a contribuição das duas vertentes em que se formou Assim hoje atua como psicólogo clínico e é um dos líderes de uma comunidade evangélica bem como continua a cultivar sua abertura para se relacionar com o diferente participando de algu mas modalidades de diálogo interreligioso entre outras iniciativas José Luiz espírita carrega uma trajetória familiar interessante De católicos nãopraticantes ele sua mãe e irmãos converteram se ao Espiritismo Anos mais tarde a mãe e os irmãos tornaram se evangélicos batistas enquanto ele permanece espírita Seu pai mesmo por não frequentar nenhuma religião é descrito como ex tremamente espiritualizado e dedicado ao bem do próximo Com pletando o quadro sua esposa oriunda de uma tradicional família mineira é católica ministra da eucaristia e seus filhos também são católicos praticantes E é nesse seio familiar que José Luiz reafirma sua experiência de boa convivência interreligiosa Miriam é descendente de imigrantes judeus que se refugiaram no Brasil devido às perseguições das duas Guerras Mundiais Ela foi criada num lar judaico e formada numa escola e comunidade judaicas Nutrindose dessa raiz Miriam se abre e se apropria de outras perspectivas religiosas tais como Budismo Espiritismo e Catolicismo retoma elementos de sua tradição judaica e realiza uma síntese pessoal de todas as tradições religiosas que herdou e encontrou em sua trajetória Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 115 Silvia candomblecista realizou longo percurso dentro do universo protestante formandose em Teologia e atuando como reverenda na área pastoral Além de teóloga Silvia também é fi lósofa mestre em Ciências da Religião e doutoranda em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres Gênero Feminismo Ao in vestigar gênero raça e poder tendo como universo o Candomblé tornouse filha de santo e hoje mesmo afastada das instituições evangélicas em que inicialmente se formou e atuou continua mantendo a convivência com pessoas desse movimento evangé lico e também ministra aulas numa faculdade ecumênica As entrevistas foram realizadas individualmente tendo como ponto de partida a seguinte pergunta Gostaria que você me con tasse a sua experiência religiosa descrevendo tanto a sua história de adesão à sua perspectiva religiosa quanto de relacionamento com pessoas de outras religiões Quando necessário os sujeitos foram convidados a esclarecer pontos de especial interesse para a pesquisa A transcrição dos relatos foi analisada fenomenologica mente e os resultados foram organizados em narrativas de modo a acompanhar e aprofundar a trajetória da vivência religiosa de cada sujeito e os encontros interreligiosos por eles vivenciados Para os fins deste capítulo optamos por apresentar a genera lização qualitativa dos resultados alcançados Tratase da expe riênciatipo Van der Leew 1964 da constituição do encontro interreligioso que apreendemos a partir da análise das entrevis tas Buscamos explicitar as tensões e as possibilidades caracte rísticas da experiência de encontro interreligioso que emergiram na descrição da vivência e da elaboração da pessoa em sua rela ção com a alteridade religiosa76 76 Quando se mostrou pertinente inserimos notas de rodapé mostrando como nossas compreensões se articulam com contribuições teóricas Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 116 A constituição da experiência de encontro interreligioso Aceitando o desafio de analisar experiências religiosas e in terreligiosas de nossos seis sujeitos adentramos um universo plural multifacetado cheio de nuances tensões descobertas e aberturas A diversidade se apresentou a nós em múltiplos tons em tantas formas possíveis de viver a fé de elaborar experiên cias de se posicionar no mundo de configurar relações O con tato com a alteridade e em particular com a alteridade religiosa também pôde ser apreendido em sua riqueza de possibilidades provocandonos em nosso ensejo de delinear como pode se reali zar a unidade dentro da diversidade religiosa No impacto com uma alteridade religiosa a pessoa colhe uma provocação Não fica impassível diante do que se lhe apresenta de algum modo o real a solicita Mas não se trata de qualquer solicitação já que ela se vê tocada num ponto radical de sua constituição é a resposta pessoalmente reconhecida às pergun tas últimas que se coloca em jogo é a sua compreensão da to talidade da vida e do fundamento do seu ser que toma a cena nessa modalidade de relação Em síntese é a sua experiência religiosa77 que se apresenta e de algum modo é solicitada no impacto com a alteridade Como evidencia José Luiz em sua ex periência Meus dois filhos católicos têm um conceito de vida bem ético Todo mundo elogia Então para mim é o que basta Se os outros estão vendo assim se eu sei como eles são e aos olhos de 77 Segundo Giussani 2009 a experiência religiosa compreendida enquanto ex periência humana se articula ao senso religioso descrito como a capacidade que a ra zão tem de exprimir a própria natureza profunda na interrogação última A experiência religiosa se constitui então como resposta às perguntas últimas no relacionamento do eu com uma Presença misteriosa reconhecida como fonte de sentido Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 117 Deus também é o que basta Se eles vão acreditar no que eu acredi to Às vezes eu ficava um pouco apreensivo com eles em termos de limitação de visão mas hoje não Acho que a ideia espírita te abre formas de enxergar muito diferente Impacto que poderia ser desconsiderado para não ser vivido e elaborado já que alguém assustado receoso ou ferido poderia fechar os olhos para a realidade que se apresenta No entanto não foi isso que apreendemos Impactada a pessoa pode decidir ainda que implicitamente acolher a provocação que lhe chega dando espaço para que a relação continue a se delinear continue a se constituir Nesse ponto o outro efetivamente adentra seu universo das mais diferentes formas Formas que muitas vezes a machucam como quando a pessoa vive uma experiência de não correspondência com algum ponto radicalmente significativo que estrutura o seu ser no mundo A provocação acolhida que poderia se tornar uma ocasião de en contro se constitui então como experiência de desencontro in terreligioso ou desencontro entre quem abraça alguma religião e um contexto social supostamente laico A tensão da diferença inicialmente percebida se instaura e passa a dar o tom da relação Não se trata de uma experiência tranquila a pessoa vive a dor por se dar conta de uma realidade que não lhe corresponde por estar imersa numa relação na qual não há espaço para a reciprocidade em que ela possa expressar livremente a própria religiosidade sem ser julgada negativamente ou sem que o outro lhe tente subjugar Nessas modalidades de relação Dom Bernardo se vê manipula do Carolina julgada preconceituosamente Davi hostilizado José Luiz desrespeitado Miriam desconsiderada Silvia discriminada Carregando essa dor por não se perceber considerada e bus cando cuidar do que lhe é radicalmente significativo a pessoa Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 118 pode se posicionar mantendo a distância inicialmente perce bida por vezes silenciando por vezes evitando o conflito e as discussões polêmicas em torno da questão religiosa por vezes marcando a diferença entre as perspectivas em jogo por vezes desqualificando a intenção do outro e por vezes exigindo respei to Não se trata de reação impulsiva já que ela percebendose incomodada desconsiderada enganada ou ofendida colhe um juízo de não correspondência e afirma na relação o que lhe é radical Como pontua Silvia Não quero enxotar ninguém Se é do outro tá Mas assim não entra na minha individualidade por que a minha essência No que é essência para mim nisso eu sou radical então não toca porque eu já estou definida Em sua elaboração quando não se vê considerada em seu cen tro não faz sentido para a pessoa continuar na relação ou manter o modo como esta se estrutura naquele momento ou ainda aceitar as suas implicações Dom Bernardo não pode colocar entre pa rênteses a verdade que reconheceu Carolina não quer viver sem diálogo Davi não aceita relativizar tudo José Luiz não prostitui seus princípios Miriam não pode abrir mão do que para ela é mais importante Silvia não admite que entrem em sua essência Não se trata de um posicionamento fácil uma vez que a pes soa por vezes vive o drama de se distanciar ou mesmo de pre cisar romper relações que lhe são significativas Consequências não necessariamente desejadas mas que se mostraram necessá rias ou inevitáveis para que ela conseguisse afirmar o que com preende ser central para si em termos de vivência religiosa Não obstante mesmo nesses momentos de distanciamento e ruptura colhemos o desejo de continuar a cuidar do outro de alguma for ma Tanto que Dom Bernardo compreendendo a posição de sua família pede a Deus para que tudo se resolva Carolina dian Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 119 te da resistência inicial continua a desejar a harmonia em seu ambiente e a se mobilizar para tanto Davi cultiva a esperança de que o relacionamento seja efetivamente respeitoso e pessoal José Luiz e Silvia permanecerem se relacionando mesmo após tentativas de conversão ou conflitos Miriam busca compreender e respeitar a posição de seus familiares e de seu agora exmarido Ainda diante de relações de desencontro a pessoa ao retomar o fundamento do próprio ser o valor do outro para a realização de si e a correspondência pessoal de uma experiência de encontro se posiciona diante do outro afirmando a sua abertura a sua dis ponibilidade para o encontro interreligioso e buscando dar sua contribuição para que a relação se estruture em outros termos É nesse sentido que Carolina afirma Com o tempo com o meu comportamento com as questões positivas que o Budismo foi ge rando na minha vida fui mostrando para eles que as coisas podiam ser de outra forma E aí a gente começou a entrar em harmonia e dialogar e eu me converti dois anos depois Diante de uma experiência de desencontro a pessoa reconhe ce um ponto fundamental e decide afirmálo como ocasião para provocar o outro solicitando que ele reconsidere sua posição ini cial de fechamento Marcando a própria posição espera e busca uma correspondência Assim explicita as razões da própria religiosidade para supe rar preconceitos evidencia pontos compartilhados para possibi litar o reconhecimento de uma proximidade solicita o outro a considerar fatores inicialmente não problematizados buscando criar uma nova possibilidade de relação aceita suspender certos princípios para afirmar outros mais fundamentais podendo in clusive ceder para não criar atrito em nome da boa convivência protela a adesão a algo significativo para respeitar o momento do Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 120 outro muda o próprio comportamento na relação para evidenciar o bem de sua religião com o intuito de quebrar resistências e pro mover o diálogo Muitas são as possibilidades diferentes modos de buscar um mesmo objetivo a transformação daquela relação de desencontro em encontro Ao se colocar nessa posição diante do outro a pessoa não necessariamente elimina a tensão inicial mas esta não dá mais o tom da relação Ao atuar sua abertura afirma uma possibilida de dando testemunho da sua posição como uma proposta que espera uma resposta78 E quando ela se coloca nessa posição o encontro pode realmente acontecer e a relação efetivamente fru tificar Dom Bernardo transforma separação em reaproximação Carolina resistência em simpatia Davi rejeição em proximida de José Luiz desrespeito em boa convivência Miriam descon sideração em aceitação Silvia discriminação em respeito É justamente a possibilidade do emergir da novidade no im pacto com a alteridade religiosa que no fim abre caminho para a constituição da experiência de encontro interreligioso Qual é a dinâmica própria dessa experiência Eis que algo acontece assim se inicia a experiência de encon tro79 A pessoa é surpreendida por um acontecimento que abre novas possibilidades para si Seja quando algo imprevisto irrom pe em seu universo seja quando a própria pessoa busca ativa mente o que lhe interessa Seja quando se trata de um primeiro contato ou quando ela redescobre algo que já estava presente 78 Segundo Giussani 2004 o processo educativo efetivamente se estrutura na medida em que o sujeito responde à proposta recebida a partir de um critério pessoal 79 Tanto Guardini 2002 quanto Romano 2008 evidenciam que está no aconteci mento a força de provocação do encontro Nesse sentido o encontro é sempre novo mes mo que seja com a situação de sempre pois emerge dentro de um horizonte diferente de significado e criativo pois nos abre para algo que transcende o que está estabelecido Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 121 em seu horizonte uma situação cotidiana uma relação que lhe é familiar Seja por uma via ou por outra o encontro se constitui na experiência na medida em que a pessoa colhe uma provocação para si que desperta um dinamismo na qual se vê pessoalmente envolvida Em suas elaborações Davi diz meus amigos espí ritas me lembram que eu sou amado Incrível isso né Eu me lembro de uma conversa que tive com Roberta E ela citou literalmente Paulo a Timóteo que fala o espírito que Deus nos deu não é de temor mas de poder amor e equilíbrio Eu falo uai se Roberta tem capacidade de citar o apóstolo Paulo assim para com preender a minha experiência Pô fala sério risos Como é que eu vou ficar longe Então foram experiências humanas grandes que nos fazem querer estar perto Em síntese o encontro interreligioso é o emergir da novidade que surpreende mesmo quando se trata de algo já desejado ou quando se desenrola numa relação já existente Dom Bernardo se impacta com a música cristã que anuncia o nascimento do Rei de Israel Carolina se encanta com a abertura e maturidade do primo evangélico Davi se surpreende com a amiga espírita que cita o Evangelho para compreender a sua experiência José Luiz admira o modo como sua esposa católica vive a própria religiosidade Miriam se maravilha com a leitura do livro do católico Giussani Silvia ainda pastora se desconcerta diante da liberdade da mãe de santo Esse primeiro impacto surpreendente com a alteridade que instaura uma novidade já é vivido como experiência de corres pondência mesmo que seja apenas intuída sinalizada vislum brada Ainda que perceba um estranhamento inicial ou que não compreenda claramente os significados de tal provocação a pessoa já vive uma correspondência pessoal intui algo pelo qual vale a pena se lançar e se mobiliza para ir em direção ao que se Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 122 insinuou em sua experiência Miriam assim nos relata uma de suas experiências de encontro Eu sentei e a moça deu o Johrei imposição de mãos Bom são 15 minutos que a gente fica lá Da hora que sentei até a hora que levantei eu chorava Eu chora va eu chorava e vinha um calor Não sabia por que chorava Eu só senti um peso saindo um peso saindo assim um alívio Eu falei tem alguma coisa estranha nisso eu quero saber o que é Dom Bernardo mesmo sem saber se maravilhava ao escutar o nome de Jesus quando criança e mais velho procura conhecer mais a fundo este homem Carolina receosa por não concordar com al gumas crenças de sua tia católica se dispõe a dialogar abertamente Davi achando a missa horrível continua a frequentála com o gosto de compartilhar e de oferecer o seu olhar José Luiz estranhando o casamento permanece participando da cerimônia porque direciona seu olhar à sua esposa considerandose um convidado muito espe cial Silvia ainda pastora mesmo incomodada continua pesquisan do querendo compreender mais a fundo o Candomblé Portanto é por viver e vislumbrar algo correspondente para si que a pessoa colhe uma realização por participar daquele encon tro se dispondo então a continuar a se envolver a levar a sério a provocação recebida a se empenhar para aprofundar a relação Mesmo quando a novidade que nasce do encontro instaura uma tensão ou traz problemas na convivência com outros a pessoa permanece sustentando sua posição de abertura80 por carregar uma evidência de correspondência presente naquela relação Tratase de uma novidade que a um só tempo desconcerta e atrai surpreendida a pessoa é provocada a retomar com vitalida 80 Sobre a constituição de uma experiência de abertura que nasce do impacto com o real confira o livro O senso religioso de Luigi Giussani 2009 e o livro Experiência Elementar em Psicologia aprendendo a reconhecer de Miguel Mahfoud 2012 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 123 de o que lhe acontece O novo solicita coloca questões explicita tensões desperta elaborações abre caminhos No entanto a pes soa não se perde nessa provocação a todo tempo está verificando o que lhe acontece tendo como crivo uma referência pessoal de modo a se certificar se é real e verdadeira aquela hipótese por ela encontrada aquela correspondência inicialmente vivida Não se trata de uma verificação qualquer já que a pessoa jus tamente por se encontrar diante de uma alteridade religiosa é so licitada a reelaborar um ponto radical da própria compreensão de si e do mundo Nesse sentido ela não se abre para o encontro com o outro por estar distraída por não se interessar ou por decidir não aderir a nada para não se alienar como forma de mostrar suposta abertura Pelo contrário tendo escolhido entrevistar sujeitos enrai zados na própria tradição pudemos apreender como a pessoa que tem presentes as próprias referências pessoais e que tem clareza do que lhe faz sentido pode realizar esse movimento de verifi car o que acontece com as próprias referências abrindose para a novidade que nasce do encontro Como diz Dom Bernardo É interessante descobrir que é possível ter uma relação visceral a duas realidades diferentes Por um lado é impossível imaginar minha vida sem Jesus Ele é a minha salvação Por outro lado uma reação típica quando leio num jornal sobre um crime cometido a primeira coisa que meu coração diz é tomara que não seja judeu risos Porque há essa preocupação e essa identificação Houve uma época em que eu imaginava que com o passar do tempo eu ficaria cada vez mais católico e menos judeu mas faz anos anos e anos E nem quero que seja assim É uma riqueza para mim Diversas são as possibilidades de verificar o que acontece A verificação pode se dar na convivência cotidiana numa ação conjunta com um objetivo comum na partilha de práticas reli Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 124 giosas no diálogo explícito Por vezes inclusive a pessoa recorre a companhias para ajudála a sustentar sua disponibilidade para o outro e a verificar de modo aberto Independente do espaço e dos recursos para que isto aconteça a pessoa realiza um movi mento de comparação entre a sua referência pessoal e aquilo que encontra de modo a colher um juízo para si naquela experiência E a pessoa reelabora também a própria identidade no encontro com o outro81 é na relação em si e não fora dela que ela se vê solicita da a se contemplar e redescobrir Um processo que pode conduzir aos mais diversos resultados A pessoa pode reafirmar retomar ou reinter pretar a própria posição e a tradição religiosa da qual faz parte pode identificar proximidades distâncias e possibilidades de relacionamen to se apropriar de contribuições do outro para aprofundar a própria perspectiva pode articular criativamente elementos religiosos eou culturais das diferentes religiões em jogo pode assimilar os fatores que fazem sentido para si integrando e sintetizando de modo próprio reconhecer uma dupla inserção que pode assumir diferentes formas pode até mesmo reconhecer e aderir à religião anunciada pelo outro Diante dessa multiplicidade de possibilidades de elaboração colhemos uma mesma raiz um posicionamento no qual a pes soa verificando afirma o que emerge como mais verdadeiro para si como mais correspondente Novamente não se trata de um processo puramente intimista ou racionalista já que a verifica ção é despertada vivida e sustentada pela relação é diante da alteridade que a pessoa se posiciona No encontro com o outro ao realizar essa verificação a pessoa identifica e afirma uma experiência ainda mais central uma verda 81 Para a compreensão de diferentes formas de reelaboração da própria identidade a partir do impacto e da relação com o outro confira as elaborações realizadas por Pierre Sanchis 2012 sobre a dinâmica do sincretismo Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 125 de ainda mais radical82 que se configura como ponto fundante de sua abertura para a diversidade que sustenta sua fidelidade à cor respondência vivida Essa experiência emerge como critério que possibilita com que a pessoa dê continuidade ao encontro vivido com a alteridade e afirme plenamente o valor de si do outro da relação e da vida mesma O ponto fundante para Dom Bernardo é a confiança em Deus Para Carolina a convivência harmoniosa a felicidade e a paz Para Davi a afirmação do caráter relacional de Deus amor primário e a valorização da humanidade comum Para José Luiz a centralidade da justiça divina e da moral cristã Para Miriam o fato de sermos todos filhos de Deus e estarmos em bus ca de algo Para Silvia a marca mística e a possibilidade de reco nhecer a manifestação de Deus de várias formas em vários lugares Cada qual a seu modo seja numa relação com o transcendente seja numa relação mais profunda consigo mesmo identifica numa experiência radical que também é relacional o fator estruturante da relação O encontro com o outro solicita a pessoa a retomar o fundamento do seu ser que acaba se revelando em sua elaboração como o fundamento de todo ser A pessoa ao identificar a raiz da própria verdade ancorada em sua religiosidade e elaborada a partir do encontro com o outro entende identificar também a raiz de toda verdade fonte a partir da qual cada sujeito individual ou coletivo ou cada religião pode se estruturar A partir desse reconhecimento a pessoa vive uma realização também por no confronto com o dife rente retomar a verdade que encontrou de forma mais profunda e por se dar conta de sua abertura para afirmar a si mesma e ao outro 82 Reconhecemos em Teixeira 2002 elaboração semelhante O diálogo interre ligioso faculta assim a experiência rica e inovadora de celebração de uma verdade que é mais elevada e mais profunda que a verdade parcial reivindicada pelos interlocu tores em questão ainda que os mesmos possam estar persuadidos de seu engajamento incondicional com sua verdade particular p 160 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 126 O reconhecimento desse critério nuclear se configura como base também para que a pessoa permaneça perto mesmo na dife rença afirme o valor do outro mesmo não concordando com sua crença se posicione com liberdade explicitando pontos de discor dância dentro do relacionamento se disponha a dialogar sobre te mas polêmicos elabore criticamente as perspectivas religiosas em jogo como ocasião de crescimento mútuo Dom Bernardo embora veja limites intransponíveis entre Catolicismo e Judaísmo deseja que este último continue existindo Carolina ao ler o livro que sua tia lhe deu afirma com liberdade que pensa de outra forma Davi mesmo não compartilhando algumas crenças permanece perto dos pentecostais católicos e espíritas José Luiz diante do convite de sua irmã para ir à igreja com carinho diz não Miriam permanece perto de quem lhe faz bem mesmo que este adote um caminho diferente Silvia continua convivendo bem com pessoas vinculadas à instituição religiosa com a qual teve grandes atritos A percepção e a elaboração da diferença não eliminam o valor do outro e da relação Pelo contrário é por meio da relação83 que a pessoa encontra elementos para elaborar e é na relação que ela vive o gosto de ser ela mesma de valorizar o outro em seu cami nhar e de ter liberdade para compartilhar a vida numa relação de proximidade marcada pelo profundo respeito Dentre os modos encontrados para lidar com a existência e convivência de polos opostos na relação apreendemos o humor84 como um caminho em que o malestar gerado pela tensão da di ferença pode ser enfrentado sem deixar nada de fora ao mesmo 83 Segundo Donati 2009 o relacionamento que nasce do encontro interreligioso pode se tornar um bem na medida em que possibilita o reconhecimento e a transfor mação recíproca 84 Encontramos em Frankl 2003 elaboração semelhante Para o referido autor o humor pode ser um importante recurso para enfrentar o sofrimento Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 127 tempo em que se busca manter o relacionamento Em outras pa lavras a pessoa diante da tensão da diferença recorre ao humor como instrumento para ajudála a enfrentar o que é dramático ou inquietante sem deixar de cuidar da relação Dom Bernardo chega mesmo a explicitar que esta é uma herança judaica quanto mais importante a questão maior o elemento humo rístico Carolina afirma que é o Budismo e ri ciente de que torna superlativa a afirmação da própria identidade como estratégia para enfrentar preconceitos Em situações em que a tensão se apresenta Davi faz piadas e joga com as palavras dando leveza à relação sem renunciar ao exame dos pontos críticos José Luiz brinca com a esposa e com quem lhe pergunta sobre os filhos propondo o diálogo como espaço para se posicionar livremente e para respeitar o caminho do outro Miriam também brinca anunciando que em algum momento vai dar tilt forma de lidar com o drama da sua abertura a tudo em opo sição à necessidade humana por alguma delimitação E Silvia a todo tempo debocha e se diverte seja ironizando a própria experiência e o incômodo quanto aos deveres que tem que cumprir seja brincando de amarrar a disparidade de suas pertenças em títulos que tentam dar conta da sua complexidade uma forma de responder que é muito sua e que está também presente nas coletividades em que ela se insere Vivenciando o encontro sem esconder a tensão que lhe é pró pria a pessoa descobre o valor e a dignidade daquilo que encontra e quando é o caso do outro que encontrou admirandose por ele ser quem é Como afirma José Luiz Como a minha esposa é uma pessoa muito ética de princípios bem definidos a gente convive bem em função disso Eu respeito muito a sua forma o seu empenho as suas ideias apesar de não acreditar no que ela acredita Isso é a verdadeira função da religião se você acredita vai incorporar aquilo na sua vida procurando ser melhor em função do que acredita Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 128 Valorização que se dirige por vezes ao fato do outro ser uma boa pessoa por vezes à coerência e fidelidade com a qual vive a própria religiosidade por vezes à beleza e verdade da perspectiva religiosa a que adere Nesse sentido o outro emerge não só como um anexo mas como parte constitutiva do caminhar da pessoa que a enriquece fortalece e realiza85 Dom Bernardo se alegra pelo reestabelecimento do relacionamento com sua família Carolina se maravilha com a participação da mãe em sua cerimônia de con versão Davi se reconhece amado a partir das amizades que tem José Luiz se orgulha das pessoas de sua família Miriam é grata àqueles que lhe abriram caminho Silvia vive o gosto por indicar a amiga para a entrevista repetindo que sua história é um celeiro Justamente por reconhecer o valor do outro para si a pessoa por vezes carrega o desejo de que ele compartilhe a verdade e a realização daquilo que ela vive como pudemos acompanhar na posição de Dom Bernardo diante de seus pais Carolina diante de sua mãe Davi diante de seus amigos José Luiz diante de seus filhos Miriam diante do marido e Silvia diante da sociedade No entanto ao retomar que o sentido da relação é a realização de si e do outro e ao perceber que este sentido está presente no modo como a relação tem se configurado a pessoa reafirma que em bora carregue esse desejo há um respeito pela posição do outro Em sua elaboração é mais realizador inclusive para si mesma quando o encontro se fundamenta numa reciprocidade na qual cada um se sente reconhecido e respeitado em sua posição É a partir desse respeito que o encontro pode ser inclusive ocasião de mudança e transformação 85 Sobre o reconhecimento da centralidade do outro para a constituição de si mes mo confira o livro O eu renasce no encontro de Luigi Giussani 2010 e o livro Experiên cia Elementar em Psicologia aprendendo a reconhecer de Miguel Mahfoud 2012 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 129 Encontro interreligioso em que a pessoa não só descobre o valor do outro para si como também descobre a si mesma com um novo frescor A relação é vivida como ocasião preciosa para redescobrir os próprios valores colher novos aprendizados apreender o que é central e periférico afirmar o que não pode abrir mão aprofundar a própria verdade reconhecer contribui ções possíveis encontrar sentidos para o viver É também por isso que nessas modalidades de relação a pessoa se empenha para continuar a aprofundar esta para cuidar de si do outro e da quilo que encontrou porque de certa maneira o encontro acaba estruturando o modo como a própria pessoa se concebe Além disso a experiência de encontro interreligioso não se en cerra em si mesma de uma situação circunscrita a pessoa tocada no centro do seu ser num movimento de abertura começa a ela borar a tirar consequências cada vez mais amplas daquele encon tro nos mais diferentes âmbitos Como explicita Davi Quando brota um diálogo a partir de um relacionamento não conversamos só como ideia mas conversamos de um para um reconhecendo que no final da história é a comunhão que faz o ser É a questão da Trindade Porque Pai Filho e Espírito Santo produzem vida a partir do relacio namento desde o início da história É disso que estamos falando de relacionamentos fecundos porque são pessoais Dom Bernardo a partir da relação visceral que reconhece em si examina as possibilidades de articulação entre Judaísmo e Ca tolicismo Carolina do diálogo com seus familiares amplia os horizontes para enfrentar muitas questões dentre as quais a pos sibilidade da convivência harmoniosa e da paz mundial mesmo que existam conflitos e diferenças Davi refletindo sobre cada encontro vivido ao mesmo tempo elabora questões teológicas e problematiza os fundamentos que viabilizam o diálogo interreli Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 130 gioso José Luiz a partir da boa convivência com seus familiares se põe a pensar sobre a importância da diferença para o cresci mento da humanidade Miriam no encontro com o Johrei Cen ter se abre para a espiritualidade reconhecendo uma primeira virada em sua vida Silvia em sua convivência com os batistas problematiza criticamente os modos com os quais a religião pode ser perversa Tratase de um movimento de reflexividade que brota da relação e a retroalimenta abrindo caminho para novos encontros provocações verificações posicionamentos elabora ções reflexões mais amplas e assim por diante E o encontro não se encerra em si mesmo também porque passa a ser desejado A pessoa provocada pela experiência de encontro mobilizase para que o mesmo continue a acontecer seja na mes ma relação onde se deu seja em outras É também por isso que Dom Bernardo propõe a seus companheiros monges a leitura do livro Sobre o Céu e a Terra86 que narra um diálogo interreligioso entre o Papa Francisco e um rabino de Buenos Aires e a visita ao Museu do Holocausto Que Carolina se dispõe ao diálogo com ou tros familiares com membros de sua organização e interessados no Budismo Que Davi se dedica a cultivar as amizades com as pessoas que são profundamente próximas e profundamente diferentes Que José Luiz busca manter a boa convivência com toda a sua família mesmo quando a curiosidade não é construtiva Que Miriam per manece indo a fundo nas perspectivas religiosas que encontrou sem abandonar as suas raízes Que Silvia continua mantendo os laços com os evangélicos O ponto é que o encontro se torna uma expe riência significativa na qual a pessoa por viver uma correspondência profunda se empenha para que ele continue de algum modo 86 Bergoglio J Skorka A 2013 Sobre o Céu e a Terra as reflexões do novo Papa sobre a família a fé e o papel da Igreja S M Dlinsky Trad São Paulo Paralela Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 131 Diante desse encontro tão provocador a pessoa também se sente grata por se ver integrante de uma relação que a ultrapassa e constitui Seja quando há evidente realização seja quando a dor se faz presente como é o caso de Silvia com os metodistas a pessoa colhe um juízo de gratidão por de algum modo viver uma correspondência gratidão por encontrar um sentido para si naquele encontro gratidão pela história que com seus dramas e riquezas é a sua história o caminho que a formou Gratidão que sinaliza que o encontro é vivido como sendo de algum modo dado mesmo que seja buscado construído trans formado Há um posicionamento de abertura da pessoa sem o qual ele não pode acontecer ao mesmo tempo em que seu empe nho não pode garantir que ele se dê Um acontecimento no qual a pessoa ativa recebe um dom Considerações finais Partimos do objetivo de investigar os fatores constitutivos e a dinâmica característica da experiência de encontro interreligio so E dentro da diversidade de rostos e trajetórias encontramos um fio comum o delineamento de um percurso sempre encarna do de modo único e justamente por isso propriamente humano Percurso que revela uma unidade de experiência em sua vitalida de percurso em que o encontro interreligioso é acontecimento que provoca abre novas possibilidades em que a pessoa nesse encontro com a alteridade religiosa vive uma correspondência e vai em direção a ela confronta o que encontrou com as próprias referências colhe um juízo reelabora a própria identidade e se posiciona afirmando o que é radical identificando uma verdade mais central que a reconecta consigo com o outro e com a vida Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 132 Vivendo uma realização a pessoa elabora tira consequências deseja a continuidade é grata A partir desse percurso colhemos também convites chama dos a se abrir à relação antes de julgar o outro a se deixar provo car por sua presença a verificar na convivência Pois é na relação com o outro e com a vida que o encontro pode acontecer prenhe de possibilidades novas Embora haja tanto desencontro este trabalho se constituiu como uma ocasião de encontro com pessoas com experiências com compreensões da realidade humana Encontros a partir dos quais esperamos que possa se constituir uma contribuição real ao nosso campo e à nossa sociedade Encontros aos quais somos imensamente gratos De fato embora haja tanto desencontro pela vida o encontro se mostrou a nós por meio desta pesquisa uma arte que embe leza a vida Referências bibliográficas ALES BELLO A Fenomenologia e ciências humanas Psicologia História Religião M Mahfoud M Massimi Trads Bauru SP Edusc Publicação original de 2004 DONATI P Teoria relazionale della società i concetti di base Milano Franco Angeli 2009 FRANKL V E Psicoterapia e sentido da vida fundamentos da lo goterapia e análise existencial 3ª ed A M Castro Trad São Paulo Quadrante 2003 Publicação original de 1946 GASPAR Y E Unidade na diversidade investigação fenomeno lógica de experiências de encontro interreligioso 2014 Tese de Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 133 Doutorado Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Univer sidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte GIUSSANI L Educar é um risco como criação de personalidade e de história N Oliveira Trad São Paulo Companhia Ilimita da Publicação original de 1977 GIUSSANI L O senso religioso P A E Oliveira Trad 2009 Brasília Universa Publicação original de 1986 GIUSSANI L Lio rinasce in un incontro 2010 Milano BUR GUARDINI R O encontro J P Peres Trad Em L Cogo C C C Chaves Orgs Curso de extensão em educação infantil 2002 p 204212 Belo Horizonte AVSI HUSSERL E Ideias para uma fenomenologia pura e para uma fi losofia fenomenológica 2006 M Suzuki Trad Aparecida SP Ideias e Letras Publicação original póstuma de 1952 HUSSERL E A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental uma introdução à filosofia fenomenológica 2012 D F Ferrer Trad São Paulo Forense Universitária Publica ção original póstuma de 1954 MAHFOUD M Experiência elementar em Psicologia aprenden do a reconhecer 2012 Brasília Universa Belo Horizonte Artesã MORAES V Samba da benção Em A arte de Vinícius de Moraes CD 1988 Rio de Janeiro Polygram ROMANO C Lo posible y el acontecimiento introducción a la hermenéutica acontecial A Fornari P Meno E Muñoz Trads 2008 Santiago Chile Universidad Alberto Hurtado Publicação original de 2008 SANCHIS P O som Brasil uma tessitura sincrética Em M Massimi Org Psicologia cultura e história perspectivas em diá logo 2012 p 1554 Rio de Janeiro Outras Letras Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 134 SODRÉ O Monges em diálogo a caminho do Absoluto estudo psicossocial do diálogo interreligioso monástico 2005 Tese de Doutorado Programa de PósGraduação em Psicologia Clínica Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Rio de Janei ro STEIN E Estructura de la persona humana Em E Stein Obras completas vIV escritos antropológicos y pedagógicos 2003 p 555749 F J Sancho e col Trads Vitoria Espanha El Carmen Originais de 193233 STEIN E Contribuiciones a la fundamentación filosófica de la psicología y de las ciencias del espíritu Em E Stein Obras com pletas vII escritos filosóficos etapa fenomenológica 19151920 2005 p 207520 F J Sancho e col Trads Burgos Espanha Monte Carmelo Originais de 1922 TEIXEIRA F L C Diálogo interreligioso o desafio da acolhida da diferença Perspectiva Teológica 34 93 2002 p 155177 TEIXEIRA F L C O Pluralismo Religioso e a Ameaça Funda mentalista Numen revista de estudos e pesquisa da religião 10 1 2010 p 924 VAN DER LEEUW G Fenomenología de la religión E de la Peña Trad 1964 México Fondo de Cultura Económica Pu blicação original de 1933 Somos mudança Meditação saúde espiritual e transformação social WANDERSON XAVIER MENDES Psicólogo licenciado em Psicologia professor de Yoga membro do CIT e Clerot Desenvolve atividade transdiciplinar no NASCE UFMG e LIASEUFMG Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 136 Neste preâmbulo gosto de sugerir inestimável e promissora exortação Quem tiver olhos para ver veja Ouvidos para ouvir ouça A Meditação é uma arte e técnica milenar um processo que vem se desenvolvendo há milhares de anos junto a povos pri mitivos que a receberam eou elaboraram com o propósito de provocar experiências não ordinárias de tomada de consciência de verdadeira unidade do reino de Luz e dimensões da verdade e sabedoria dentro de nós mesmos a chamada auto realização nosso direito inato e muitas vezes inconsciente Esse reino de Luz sentimento oceânico embora não tenha encontrado eco no espírito investigativo do precursor da psicanálise moti vou interlocuções penetrantes dele com seu correspondente o escritor Romain Rolland que se revelaram de sensível importân cia ao estudioso do tema que embora muitas vezes ambíguas não obstante evidenciam um campo de estudo de fundamental importância para compreensão dos limites e alcances da teoria psicanalítica a respeito do misticismo BORGES 2008 Tal experiência denominada mais tarde Experiência de Platô por Abraham Maslow FADIMAN E FRAGER 2002 A Consciência Cósmica por R M Bucke WEIL 2003 vem sendo decifrada meticulosamente pela Psicologia desde que representantes dessa jovem ciência nomes da envergadura do já citado Maslow como Grof Viktor Frankl Vich Murphy Jourard e também o citado Fadiman fundaram a Revista de Psicologia Transpessoal e iniciaram o movimento sob a liderança de Antony Sutich o que configurou a Quarta Força em Psicologia em 1969 Tudo está relatado em Pierre Weil Os Mutantes Uma Nova Hu manidade para um Novo Milênio WEIL 2003 op cit e em Elias Boainaim Tornarse Transpessoal BOAINAIM 1998 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 137 Hoje é cada vez mais evidente e acessível a um número cada vez maior de pessoas a existência de indícios em relatos de antigas escrituras do Oriente Norte da Índia que um ex traordinário aborígene conhecido em tal região como SadaShiva foi quem começou a difusão desse processo Tal meditação sub jetiva estendeuse veladamente de modo sistemático e rigoroso a partir do Oriente através da literatura da arte da dança e da medicina configurando uma ciência milenar holística da vida ANANDA MARGA 2008 Recentemente começa a ser investigado verificado e compro vado de modo inequívoco também pelas Ciências Acadêmicas que TANTRA nome original dessa Ciência Eterna ao longo de muitos anos foi à maneira do que ocorreu com o modelo filosó fico e científico do Ocidente fragmentandose em disciplinas cada vez mais especializadas conformando os diversos ramos do Yoga que estiveram mais ou menos integrados Por exemplo Kar ma Yoga que enfatiza a ação e o serviço ao próximo Jnana Yoga que enfatiza o autoconhecimento e Bhakti Yoga que cultiva a devoção amorosa ao Ser a Suprema e Essencial Consciência Infinita e Eterna que como dito acima habita mais ou menos conscientemente o nosso interior ANANDA MARGA 2009 CG Jung príncipe herdeiro do legado freudiano relata que as diversas formas do Yoga Tântrico e seu rico simbolismo lhe forne ceram material comparativo preciosíssimo para a interpretação do inconsciente coletivo JUNG 2012 E assim vemos aquele que iluminou o túnel aberto por seu predecessor render créditos à sabedoria perene do Oriente Sabese muito mais que suficientemente o que disse este Ser que marcou profunda e indelevelmente sua passagem em aC e dC neste planeta Ele nos provocou agudamente esti Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 138 mulando em nós preciosas percepções e efetivas mudanças Em certa ocasião num breve simples e sublime exemplo Ele nos disse no tempo certo nada há de oculto que não venha a ser manifesto e nada em segredo que não venha à luz do dia Se alguém tem ouvidos para ouvir ouça Marcos 4 22 23 Agora é o tempo para reconhecer então que após SadaShiva há aproximadamente 3500 anos práticas meditativas e valores espirituais foram difundidos entre os devotos de Krishna atra vés dentre outros métodos do cantar do Mantra vibração acús tica sagrada Hare Krishna PRABHUPADA 2009 que con tinua a ser ouvido ainda hoje E de evidenciar também como o Mantra contemporâneo Baba Nam Kevalam e um sistema sofisticado de práticas e valores espirituais resgatado da Tradi ção Tântrica pelo Yogue Sri SriAnandamurti 19211990 fun dador da Ananda Marga foi difundido globalmente atravessou continentes propagandose a partir da missão de renunciantes incansáveis monges monjas e abnegados discípulos gestan do sutilmente uma revolução silenciosa a qual se encontra em pleno curso ANANDA MARGA 2019 Causarnosia estranheza citar Yogues e Mantras num trabalho científico Não fora o exponencial aumento das citações de renoma dos pesquisadores das neurociências e variados outros campos de investigação de vanguarda que vêm empreendendo a árdua tarefa de desvendar o que até há pouco mantinhase abrigado no oculto Observemos com acuidade o que se constatou em recente artigo publicado ao tratar de modificações de estados psíquicos e físicos uma destas ações compreende o direcio namento da atenção através da introspecção a qual se pode alcançar mediante diversas estra Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 139 tégias Por exemplo por meio do som como nos Mantras REBOIRAS Y GRZONA 2015 Mantendonos amparados pela arqueologia podemos reconhe cer também que há 2600 anos Sidharta Buddha Gautama o Príncipe de Kapilavastu através de um extraordinário esforço e valorosa renúncia enveredou por práticas meditativas Dhyana de Tantra Yoga que se desdobrou no Chna na China Chem na Corea e Zen no Japão SARKAR 1997 Por qual razão ainda hesitamos em tratar sob enfoque psicológico o legado prin cipesco do Budismo uma vez que John KabbatZinn sobejamente demonstrou nos laboratórios de redução de estresse em Harvard resultados muito positivos da prática da Plena Atenção sobre pa cientes oncológicos cardiológicos ou com transtornos de ansieda de depressão drogadicão e dor KABBATZINN 2017 Ou ainda A experiência protagonizada por Mathieu Ri card francês doutorado em biologia molecular no Instituto Pasteur que abandonou sua car reira científica para concentrarse na prática do budismo no Himalaya Mais tarde Ricard e outros meditadores profissionais com mais de 2 mil horas de prática submeteramse a múltiplos estudos de ressonância magnética e eletroence falograma de duzentos canais nos quais se ob servaram níveis muito superiores de emoções positivas evidenciadas pelo aumento do meta bolismo do córtex préfrontal em relação a um grupo controle da população em geral Estu dos tais que foram replicados em meditadores Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 140 novatos e referenciaram os mesmos benefícios REBOIRAS Y GRZONA 2015 A literatura Taoísta representada pelo precursor LaoTsé Mes tre Lao exposta no Tao Te King a Via Iluminadora veio tam bém permitir aos estudiosos apontar que a meditação já existia na antiga China de forma sistematizada e comsistente pelo me nos há cerca de 2500 anos TAO TE KING 2001 Ainda mais próximo de nossa ancestralidade Outras experiências como as Xamânicas nome dado pelos antropólogos relatam que grupos como por exemplo os Kung do deserto de Kalahari na África valemse de experiências como a privação de sentidos experiências que acontecem a noite sons de tambores e outros instrumentos além da respiração intensiva e profunda para entrar no denominado êxtase Desta feita com finalidade de obter a cura pes soal e da comunidade KATZ 1982 Podem ser ainda mais familiares as experiências propostas e reveladas por Ieshouade Nazaré a partir de Israel desde que aprofundemos nosso acesso a elas através do trabalho interno penetrando profundamente em suas camadasconchas muitas vezes inocentes ingênuas e superficiais e atinjamos o seu cerne A prática do Hesicasmo tradição contemplativa do Cristianis mo Ortodoxo Católico Oriental com o uso da palavra vibração acústica sagrada Kyrie EleisonChrystieEleison associado à postura e respiração profunda há muito esquecidas segura mente nos aponta um caminho de mudança acertado propagado Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 141 por JeanYves Leloup no Escritos sobre o Hesicasmo LELOUP 2003 assim como revela ser o Caminho de Místicos que deci fraram o mistério da verdade por experiência direta como João da Cruz Tereza DÁvila Francisco e Clara de Assis da Tradição Romana Ressaltase ainda os recentes e inestimáveis estudos resgatados do Clássico Nuvens do NãoSaber por Monges Trapis tas Tradição Centrante in Keating 2005 Também os protestantes mais progressistas os quais talvez fos sem melhor denominados de nossos irmãos separados exortam nos além da prática da oração aos Momentos de Silêncio a Sós com Deus IBC sd Sem dúvida uma vasta tecnologia teo lógica significativos avanços na intimidade das Igrejas da mesma UniTrindade dos quais podemos se quisermos nos conscientizar e aprofundar de modo rigoroso e sistemático através de uma verda deira Ciência do Espiritual que desponta altaneira Ora o que delineamos até aqui expõe um novo olhar um per curso que une ciência e espiritualidade Tratase de fenômeno complexo e multifacetado vivenciado sob a forma de princípios rituais símbolos institucionalizados ou não que ultrapassaram fronteiras culturais revelando algo maior há muito in defi nido como onipresente infinito ou inefável e que começou a partir de um novo paradigma a ser melhor compreendido pela ciência acadêmica artigos e publicações e a tecnociência to mografia eletroencefalograma de 200 canais ressonância mag nética que o acompanha Necessário percurso uma vez que o universo como uma máquina já não satisfaz a mente daqueles que tiveram tal mecanismo frequentemente acoplado ao pulso substituído pelo efeito piezoeléctrico do cristal de quartzo Mas a metáfora não é o que melhor nos acudirá neste mo mento Portanto mantenhamos a nossa caligrafia firme nas linhas Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 142 da história o Yoga do Maha grande Bharata a Índia Antiga revi sitado pela ciência moderna e a religião comparada permitenos num abraço transdisciplinar aliar o mais antigo ao mais atual como nos ensina Roberto Crema em Antigos e Novos Tera peutas CREMA 2002 um manual de verdadeira pacificação de espíritos belicosos há muito movidos pelo fanatismo da dia bolização a divisão que tem atrasado o discernimento do Uno uma vez que promove embates ao disputar a propriedade disso que buscamos decifrar Embates estes manifestos em múltiplos igrejismos embates de religiões e psicologismos embates de teorias psicológicas grupismos que PR Sarkar denomina de sóciosentimento no NeoHumanismo Ecologia Espirituali dade e Expansão Mental SARKAR 2001 Ora para aprofundar ainda mais a nossa reflexão sem exas perarmos ao nosso leitor competente é imperativo que expla nemos sem demora qual o fundamento da nossa metodologia pois assim ele poderá acompanhar o nosso raciocínio opondo um mínimo de resistência a qual o seu espírito investigador criterio so porventura já tenha incorrido É a UNESCO órgão das Nações Unidas responsável pela Educação Ciência e Cultura no mundo que nos respalda mais convenientemente ao recomendar o diálogo entre a Ciência a Arte a Filosofia e a Tradição Espiritual por meio da Declaração de Veneza 1986 Documento sintetizado após o Simpósio Ciên cia e as fronteiras do Conhecimento prólogo do nosso passado cultural que reuniu 19 expoentes de todas as partes e distintas especialidades do mundo entre os quais dois detentores de prê mios Nobel Esse Simpósio contou ainda com a participação do eminente matemático brasileiro Ubiratan DAmbrósio SOM MERMAN 2008 Ainda em Sommerman dentre numerosos Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 143 colóquios congressos pesquisas e publicações sobre o tema destacamos dados da Carta da Transdisciplinaridade de 1994 assinada no Primeiro Congresso Mundial da Transdisciplinari dade em Portugal por 62 participantes advindos de 14 países além dos dados dos anais do Congresso de Locarno 1997 No Congresso de Locarno 1997 foram definidos os três pila res metodológicos da pesquisa transdisciplinar 1 Complexidade 2 Lógica do Terceiro Incluído e 3 Diferentes Níveis de Realidade A Declaração de Veneza 1986 aduz em seu Artigo 11 UNI PAZ 2011 Rigor Abertura e Tolerância são características fundamentais da atitude e da visão transdisci plinar O rigor na argumentação que leva em conta todos os dados é a melhor barreira contra possíveis desvios A abertura comporta a acei tação do desconhecido do inesperado e do im previsível A tolerância é o reconhecimento do direito às ideias e verdades contrárias às nossas Já em Anexo 1 também a Declaração de Veneza em seu Ar tigo 2 reconhece UNIPAZ 2000 O conhecimento científico no seu próprio ímpeto atingiu o ponto em que ele pode começar um diá logo com outras formas de conhecimento Nesse sentido e mesmo admitindo as diferenças funda mentais entre Ciência e Tradição reconhecemos ambas em complementaridade e não em contradi ção Esse novo e enriquecedor intercâmbio entre Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 144 ciência e as diferentes tradições do mundo abre as portas para uma nova visão da humanidade E assim sem receio devidamente munidos dessa promissora visão transdisciplinar podemos agora com a coerência congruên cia e fôlego do investigador ousado e sobretudo bem preparado imergir um passo a mais na viagem que os mestres da consciên cia ousaram traçar e percorrer a viagem interior a si mesmo Um número cada vez maior de cuidadores poderá assim familiarizar se com a cartografia transpessoal de consciência apresentada no recém lançado Meditação o que dizem os Cientistas e Sábios da monja psicóloga e antropóloga de Harvard Susan Andrews AN DREWS 2018 que abrange não só consciente e inconsciente mas também a nossa dimensão superconsciente transpessoal nível tão ou mais saudável quanto o autor do Introdução à Psi cologia do Ser ousara sonhar MASLOW 1962 Ken Wilber co nhecido pela profundidade e originalidade de sua produção nada mais nada menos como o Einstein da Consciência através do seu Espectro da Consciência 2007 e do seu Psicologia Integral 2002 é outro autor ocidental que também enfocou as cinco ca madas da mente à luz da Psicologia Transpessoal Eis uma síntese de Andrews em diálogo com psicólogos oci dentais e com Sarkar da Escola Tântrica que é por ela designa do reiteradamente como a fonte de sua inspiração ANDREWS 2018 FADIMAM E FRAGER 1986 SARKAR 2007 Sabese que a mente na perspectiva da Psicanálise Freudiana é situada em 3 camadas ID ego e superego Também é notório que a Escola Ocidental costuma se referenciar a ela como cons ciente subconsciente e inconsciente e importantes representan tes da Escola Oriental segundo Wilber também a configuraram Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 145 em 3 níveis a saber Mente Densa Mente Sutil e Mente Causal O representante da Escola Tântrica emprega o termo Kosa como sinônimo de camada Sendo a consciente sensóriomotora ou no original Sânscrito KamamayaKosa mente de desejos Kama Desejo a primeira camada A segunda camada subconsciente abriga ManomayaKosa a ca mada lógica ou do intelecto Man Pensar onde se alojam pensa mentos mais profundos Até aqui nada de novo Ocorre que na carto grafia Tântrica há um terceiro nível e é o superconsciente que abriga ainda outras três Kosas AtimanasaKosa a camada supramental do mínio da intuição e criatividade Ati Supra VijnánamayaKosa cha mada de mente do conhecimento especial Vi especial e Jnána conhecimento capaz de promover o verdadeiro discernimento do que é a realidade perene e um efêmero espetáculo o que leva ao de sapego espontâneo E HiranyamayaKosa camada dourada todas as autênticas tradições e caminhos espirituais dedicam elevado apreço a essa camada iluminada cuja linguagem se encontra mais próxima do silêncio convidando a uma escuta ainda mais profunda e ampliada Hiranya dourado Ao trilharmos esses três degraus nos aproxima remos assim da Psicologia de inteireza a qual consideramos mais apta a tratar do ser humano em sua totalidade E talvez se ousarmos superar preconceitos e rótulos ultrapas sados muitos dos seres extraordinários citados acima já foram equivocadamente rotulados como portadores de severas patolo gias e ideais caducos de cientificidade indo além de estarre cedores dogmas científicos e religiosos a experiência nos mostre que essas vivências retiram a espiritualidade unicamente da re ligião a qual na maior parte da sua história não foi senão outra forma de adaptação ao mundo material ainda que matriz e fonte de alimento da espiritualidade Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 146 Nós precisamos ser a mudança que queremos ver no mundo M Gandhi E talvez nós possamos assim vêlo e ouvilo em todo lugar na nossa casa nova na nossa nova aldeia global E esse pontinho azul sofrido e sagrado será assim um pouco mais dignamente ha bitável até quiçá volte a ser um Por isso e muito mais ousamos e convidamos você a eliminar a pobreza a estreiteza e toda mani pulação e condicionamento material ou espiritual e dizer eu sou tu és e nós somos mudança num grande Sangachadvam mover juntos Sem igrejismos ou psicologismos Num mutirão de curadores como exorta a Organização Mundial de Saúde OMS Pois chegado é o tempo de diminuir a competição e enaltecer a cooperação Para o nosso bemestar e o bemestar de tudo e de todos E já que como vimos a arte é parte integrante da abor dagem transdisciplinar convidamos o leitor a manter o seu olhar que vê atento à poesia de Crema 2002 Novo milênio novo olhar Mudar o mundo é mudar o olhar Do olhar que estreita e subtrai para o olhar que amplia e engrandece Do olhar que julga e condena para o olhar que compreende e perdoa Do olhar que teme e se esquiva para o olhar que confia e atreve Do olhar que separa e exclui Para o olhar que acolhe e religa Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 147 Todos os olhares num só Olhar O olhar da inocência e o olhar da vigilância O olhar da justiça E o olhar da Misericórdia Todos os olhares num só Olhar Olhar de criança que brinca na Primavera olhar do adulto que labora no Verão olhar maduro que oferta no Outono olhar de prece e de silêncio no Inverno O olhar de quem nasce O olhar de quem passa O olhar de quem parte Olhares da existência no Olhar da Essência Todos os olhares num só Olhar Dançar de roda na órbita do olhar dançar de guerreiro em volta da fogueira do olhar dançar de Ser no olhar do Amor Dançar e brincar de olhar Olhar o porvir Do Instante que nasce Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 148 no coração palpitante da transmutação Viva o novo olhar Olhe a vida de novo Novo olhar novo viver Mudar o mundo É mudar o olhar É alto olhar Altar do olhar É ousar viver É viver no ousar É amar viver É viver para amar Só então partir Para o Grande Olhar Todos os olhares num só Olhar Num mesmo Olhar Supremo Olhar Olhar Referências bibliográficas ANANDA MARGA A Liberação da Mente através do Tantra Yoga 3ª Ed SP Ananda Marga Publicações 2008 ANANDA MARGA História 2019 Disponível em www anandamargaorgbranandamarga Acesso em 18 fev 2019 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 149 ANANDA MARGA Introdução ao Tantra Yoga Distrito Fede ral Editora Ananda Marga Yoga e Meditação 2009 ANDREWS Susan Meditação o que dizem os Cientistas e Sá bios São Paulo Visão Futuro 2018 BÍBLIA DE JERUSÁLEM Escritos da Tradição JudaicoCris tã 2004 BORGES Vitor Santiago Sentimento Oceânico Um estudo da Experiência Religiosa a partir de Freud e Romain Rolland Dissertação de Mestrado defendida e aprovada na Universidade Católica de Brasília Distrito Federal 2008 CREMA Roberto Antigos e Novos Terapeutas Rio de Janeiro Vozes 2002 FADIMAM J e FRAGER R Teorias da Personalidade Editora Harbra 1986 IBC Caderno de Reflexão Momentos a Sós com Deus Igreja Batista Central de Belo Horizonte sd JOHNSON Willard Do Xamanismo à Ciência Uma História da Meditação São Paulo Cultrix 1995 JUNG CG Obras Completas v 115 Psicologia e Religião Ocidental e OrientalPsicologia e Religião Oriental Vozes 2012 JUNIOR BOAINAIM Elias Tornarse Transpessoal Trans cendência e Espiritualidade na obra de Carl Rogers São Paulo Summus Editorial 1998 KABATZINN John Atenção Plena para Iniciantes Rio de Ja neiro Sextante 2017 KATZ Richard Boiling Energy Community Healing Among the Kalahari Kung Harvard University Press 1982 KEATING Thomas Mente Aberta Coração Aberto A Dimen Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 150 são Contemplativa do Evangelho Loyola São Paulo 2005 LELOUP JeanYves Escritos sobre o Hesicasmo Uma Tradi ção Contemplativa Esquecida Rio de Janeiro Vozes 2003 MASLOW Abraham Harold Introdução à Psicologia do Ser El dorado 1962 PRABHUPADA Srila O cantar de Hare Krsna Baktivedanta Book Trust 2009 REBOIRAS Fabiana GRZONA Estebán Práticas Meditativas para a Redução do Estresse O BemEstar como Competência dos Profis sionais de Saúde Revista del Hospital Italiano de Buenos Aires 2015 SARKAR PRANANDAMURTI SHRII SHRII Psicologia do Yoga São Paulo Editora Ananda Marga Yoga e Meditação 2007 SARKAR PRANANDAMURTI SHRII SHRII Discourses on Tantra v 1 Calcuta Ananda Marga Publications 1997 SARKAR PRANANDAMURTI SHRII SHRII NeoHuma nismo Ecologia Espiritualidade e Expansão Mental São Paulo Ananda Marga Publicações 2001 SOMMERMAN Américo Inter ou Transdiciplinaridade Ques tões Fundamentais da Educação São Paulo Paulus 2008 TSÉ LAO Tao Te King O Livro do Tao e sua Virtude Versão integral e comentários São Paulo Attar 2001 UNIPAZ Manual da Formação Transdiciplinar São Paulo UNI PAZ 2000 WEIL Pierre Os Mutantes Uma nova humanidade para um novo milênio Campinas Verus 2003 WILBER Ken O Espectro da Consciência São Paulo Cultrix 2007 Psicologia Integral Consciência Espírito Psicolo gia Terapia São Paulo Cultrix 2002 A dimensão de espiritualidade e o enfrentamento ao fundamentalismo discutindo as relações de poder GuARACI M SANTO Psicólogo e especialista em Psicanálise e Direito pela Newton Paiva Especializado em Direito Público pela Newton Paiva Anamages Mestre e doutorando em Ciências da Religião membro do Grupo de Pesquisa Religião Pluralismo e Diálogo Interreligioso REPLUDI PUC Minas e do Fórum Inter Religioso contra a Violência e a Discriminação CONICMG CENARABMG Pastoral e DEC PUC Minas Educafro UFM CUTMG Exsecretário e vicepresidente da Associação de Umbanda e Candomblé do Estado de Minas Gerais Tateturia n kise Sacerdote candomblecista na Nação de Angola tradição africana Bantu rei de congado e umbandista Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 152 Introdução Um convite à reflexão como a espiritualidade pode contribuir para o enfrentamento ao fundamentalismo mais especificamente o religioso Em que medida a Psicologia pode tratar de temas atuais que se pautam em fundamentalismos como racismo xenofobia homofobia e intolerância religiosa É a partir dessas indagações que pretendemos construir uma relação dialogal com os pares e público aqui presentes no Psicologia em Foco 2018 a convite do CRP04 por meio do Professor Reinaldo da Silva Junior coordena dor da Comissão Psicologia Laicidade Espiritualidade Religião e Outros Saberes Tradicionais Clerot do qual faço parte Ao falarmos de Psicologia deixamos claro que não se trata de uma generalização desta pelo contrário acreditamos na impor tância de salvaguardar as especificidades de cada corrente teóri ca que compõe os saberes psicológicos Entretanto é fato uma finalidade comum entre eles indiferente do eixo epistemológico a que pertencem estes têm como premissa o cuidar de seres humanos por meio técnicas especificas Cuidado que acredita mos que deva ser feito de forma ética e profissional respeitando as singularidades de cada caso e seguindo as normas e técnicas propostas por cada epistemologia Quanto aos seres humanos sujeitos e suas demandas estes podem apresentar dificuldades relacionais com seus semelhan tes as quais muitas vezes são fruto da falta de conhecimento acerca de si eou do outro A isto se junta a característica das sociedades contemporâneas de oferecer em um mesmo ambien te histórico geográfico diferentes maneiras de compreender o mundo o que impede que o sujeito se adeque calmamente a uma moral de época Uma das respostas possíveis a essas ques Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 153 tões que levantamos é o fundamentalismo Como efeito temos assistido a uma crescente onda de comportamentos fundamen talistas nas relações sociais politicas e religiosas entre outras Segundo Magali Cunha 2017 o termo fundamentalista deuse primeiramente por Curtis Lee Laws editor e próximo da Igreja Batista Esse termo foi empregado para retratar um movi mento teológico protestante conservador contrário ao liberalismo teológico e científico inaugurado pela modernidade Movimento que segundo a autora o qual resultou em uma obra de doze vo lumes intitulada Os Fundamentos um testemunho para Verdade A obra objetivava defender os fundamentos da fé cristã pautan dose nas escrituras sagradas desta Neste viés ela defende um Jesus divinizado e a literalidade de seus milagres isso sem uma mínima possibilidade de contextualização e atualização de seus pressupostos e narrativas Ademais ignorava os teólogos liberais da época abertos ao progresso científico e as inovações propos tas pela modernidade em prol da justiça e da paz Esse ignorar representava uma rigidez de comportamentos que não permitiam a abertura a outras realidades e perspectivas socioculturais e religiosas ou sequer as consideravam possíveis de existir O que sinalizava uma indisposição ao outro negan dose assim a possibilidade de qualquer tipo de diálogo Como resultado disso abriase um campo propício ao extremismo e ao fanatismo fomentando atos de intolerância Hoje recorrentemente nos deparamos com o termo funda mentalismo associado prioritariamente ao mundo Islâmico a partir de atos terroristas cometidos pelo Estado Islâmico e outros grupos fundamentalistas eou terroristas Com isso incorremos numa rotulação genérica se consideramos que existem outras for mas de comportamentos fundamentalistas que podem ter carac Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 154 terísticas extremistas e fanáticas por meio de ações autoritárias e passionais ou não E que atos de cunho fundamentalistas não se circunscrevem somente aos campos religiosos ou políticos No Brasil é cada vez mais recorrente o uso desse termo como forma de nomear grupos evangélicos religiosos eou políticos dentre outros que defendem um conservadorismo contrário aos direitos de livres expressões sexuais organizações familiares e religiosas entre outras em nome de fundamentos confessionais específicos como os cristãos católicos e protestantes em suas di versas variações O que por sua vez pode potencializar conflitos sociais políticos e religiosos Exemplo disso são os atos de homicídios das populações jo vens negras e LGBT além dos ataques a afroreligiosos e seus terreiros também com registros de ações semelhantes que in felizmente estão se tornando comuns em nome de verdades in flexíveis e descontextualizadas no Brasil Atos estes de extrema perversidade e violência contra a dignidade e a vida humana Com efeito a essa realidade Cunha Carta Capital 2017 ressalta ser necessário diferenciar a defesa de doutrinas e prin cípios do fanatismo religioso ou político para que possamos ser justos em nossas construções acerca do tema fundamentalismo Sabemos que para os seres humanos é importante nesse mundo moderno e competitivo fundamentarse bem por meio de suas crenças e valores religiosos ou não a fim de orientar a pró pria existência Contudo como explicitamente isso é feito e sua finalidade é que precisa ser assistido Para tanto nos perguntamos a espiritualidade em interlocução com as Ciências Psicológicas pode ser pensada como um recurso efetivo a fim de promover os fundamentos teóricos de determinados segmentos como os teoló gicos a uma perspectiva essencialmente mais humana Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 155 Segundo Teixeira 2005 p15 a espiritualidade não é algo que ocorre para além da esfera do humano mas algo que toca em profundidade sua vida e experiência Nesse sentido entendemos a espiritualidade como uma ma nifestação intrinsicamente humana que corrobora para uma bus ca de sentido existencial subjetivamente Teixeira 2005 afirma ainda que esta é uma energia não perceptível ao ser e contudo instigao ao trabalho de seguir e atingir uma condição espiritual universal Ações que podem acontecer fora ou dentro de uma conformação religiosa Isso difere a espiritualidade da religiosi dade já que esta se caracteriza pela busca de sentido por meio da prática religiosa mediada por ritos A religiosidade é a forma que os seres humanos elegem de acordo com suas perspectivas e afinidades de expressar subjetivamente em atos suas crenças e valores religiosos confessionais fundamentos e dogmas sagra dos visando orientar suas vidas cotidianas Conjuntamente espiritualidade e religiosidade podem colo car os sujeitos a serviço do outro e da comunidade Uma dinâmi ca que confere de forma subjetiva legitimação a existência dos seres humanos TEIXEIRA 2005 p 16 Quanto à religião esta é entendida aqui como instituição onde a normatização de seus valores se faz legitimada por uma doutrina mor codificada em escrituras sagradas eou registrada formalmente Contudo entendemos que existem formas de mani festações da espiritualidade busca de sentido que culturalmente não se enquadram nas categorias que privilegiam registros escri tos Bem como se organizam a partir do princípio de interrelação e interação contínua entre o mundo material e o espiritual como por exemplo as religiões de matrizes africanas Estas religiões en tendem que o religarse não é possível pois para elas nunca se Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 156 perde a ligação com o divino Elas acreditam que a vida é contínua e perpassa os mundos visível e invisível dinamicamente e que o sa grado se manifesta no ser humano e em sua vida cotidianamente Temos ainda outras religiões que são nomeadas por seus prati cantes como muito particulares uma bricolagem individual e cole tiva de crenças desembocando em uma crescente gama de novas denominações religiosas para ilustrar citamos o Umbandaime Uma mescla de práticas umbandista ameríndias orientais e dai mistas que passam a compor o cenário das religiões minoritárias e que como tal estão sujeitas às pressões fundamentalistas dos setores homogêneos religiosos e políticos dentre outros Por consequência à pluralidade crescente de opções religio sas e de uma carência de sentido o sujeito pode responder se abrindo às diferenças ou adotando posturas fundamentalistas As posturas fundamentalistas se ligam a duas estratégias defensi vas a estratégia de gueto onde se busca o afastamento de pes soas e situações que não fazem parte daquela religião específica e a estratégia da cruzada onde se tenta resgatar o mundo e as pessoas através de conversões e mudanças nas práticas sociais TEIXEIRA 2007 Essa segunda estratégia pode ser utilizada conjuntamente a atos de violência tanto simbólica quanto física Mariz 2013 aponta que as religiões mais conservadoras den tro dos campos católico e evangélico tendem a demonizar as re ligiões da nova era e as religiões com matrizes africanas Dentro dessas mesmas religiões cristãs existem buscadores de diálogo principalmente nos setores mais intelectualizados que entendem que o contato com outras religiosidades pode reavivar sua fé A saber as religiões de matrizes africanas são no Brasil o principal alvo de preconceitos religiosos A cada três dias uma queixa de intolerância religiosa chega à Secretaria de Direitos Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 157 Humanos da Presidência da República No ranking das denún cias por intolerância religiosa entre 2011 e 2014 encontramos que a intolerância às religiões de matrizes africanas são as cam peãs em denúncias totalizando 75 seguidas pelas manifestações cristãs evangélicas com 58 espíritas com 27 e católicas na casa dos 22 registros Folha de São Paulo 27062015 Segundo Silva 2007 isso acontece por meio de atos que caracterizam uma Guerra Santa como Ataques feitos no âmbito dos cultos das igrejas neopentecostais e em seus meios de divulgação e proselitismo agressões físicas in loco contra terreiros e seus membros ataques às cerimônias religiosas afrobrasileiras realizadas em locais pú blicos ou a símbolos dessas religiões existentes em tais espaços ataques a outros símbolos da herança africana no Brasil que tenham alguma relação com as religiões afrobrasileiras e as rea ções públicas políticas e judiciais dos adeptos das religiões afrobrasileiras SILVA 2007 p 10 Historicamente perseguidas as religiões de matrizes africanas carregam em si uma herança colonial de exclusão e a margina lidade de suas práticas e etnia estas classificadas pelas classes dominantes da época como ainda hoje como sendo desprezíveis e inferiores QUEIROZ 1989 Sendo assim a discriminação e perseguição aos negros e suas práticas é histórica no Brasil CORRÊA 2001 QUEIROZ 1989 A saber nos primórdios das escolas científicas no Brasil nos períodos imperial e republicano os negros eram tidos como in Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 158 feriores aos brancos uma posição de afirmação da escravidão e desqualificação desse povo Uma forma do governo dominante de se manter por meio de um racismo pseudocientífico fomenta do e instrumentalizado pelas elites dos períodos citados Forma excludente que mesmo durante a república e a abolição da es cravatura permaneceu intrínseca na estrutura do Estado assim como das classes dominantes do país Assim qualquer manifestação religiosa ou não relacionada à cultura africana era recachada sob o pretexto que elas faziam apologia ao mal eou a própria demonização do negro escravizado e seus descendentes Nesse contexto religiões de matrizes africanas como o can domblé foram perseguidas veementes por meio de políticas es pecíficas de repressão das atividades religiosas ou culturais dos negros CORRÊA 2001 p 43 Como por exemplo a necessi dade de autorização policial feita nas delegacias de bons costumes e diversão da Polícia Civil até os anos 1980 para que os terreiros pudessem fazer seus rituais e festejos dentro da lei e da ordem Dentre as práticas das comunidades negras no Brasil as do candomblé se destacaram visto que se apresentaram como uma forma de resistência pois salvaguardaram as maneiras de ser e pensar que constituíram seu patrimônio específico im pedindo que a cultura ocidental fortemente hegemônica QUEIROZ 1989 p 33 Práticas que contribuíram para o não aniquilar coletivo das identidades étnicas e religiosas dos africa nos escravizados e seus descendentes Entender as perseguições das igrejas pentecostais às religiões de matrizes africanas umbanda e candomblé nos auxilia no entendi mento sobre a atual intolerância religiosa Para SOARES 1990 es sas igrejas cristãs modernas buscam imbuir seus fiéis do espírito do Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 159 combate ao mal e a partir disso as religiões africanas ficam expos tas a atos extremistas oriundos dos fiéis das igrejas neopentecostais Para a autora a fé cristã neopentecostal é inflexível quanto à sua não abertura ao diálogo com as religiões afrobrasileiras Realidade que tenciona muito o campo religioso nacional e traz muitos prejuízos financeiros e psicológicos aos afroreligiosos por meio de ataques verbais e físicos que também se estendem aos seus terreiros Nesse aspecto lançamos mão do conceito de poder foucaultia no Para Foucault poder não é algo que se possui inerentemente e sim função de exercer suas vontades no contato com outros dentro de uma determinada situação concreta O poder está o tempo todo sendo alvo de disputas A Guerra Santa acima citada é estratégia de tomar e manter para um grupo religioso o poder de nomearse como única religião aceitável Outro conceito do mesmo autor que podemos utilizar é o de panóptico apresentado por Bentham e uti lizado por Foucault Um modelo de prisão que permite vigilância a partir de uma conformação geográfica onde os sujeitos presos são sempre possíveis de serem vistos Podemos ampliar este conceito para qualquer situação onde o olhar sobre o outro demonize eou menospreze os diferentes e permita vigiálos no intuito de tolher suas manifestações Isto vem ocorrendo com as religiões de matrizes africanas O preconceito a discriminação e a falta de informação sobre as manifestações da cultura afrobrasileira faz com que mui tos considerem legítimo esse poder que tem a possibilidade tanto de vigiar quanto de constituir sobre aqueles que vigiam a respeito deles um saber FOUCAULT 2008 p 88 A intolerância religiosa parece estar ligada à construção des sas verdades sobre os rituais do candomblé e umbanda Apesar da divisão atual de poder de nossa sociedade deixar em vantagem as religiões fundamentalistas extremistas sobre as afrobrasilei Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 160 ras novos arranjos são possíveis a partir de ações concretas de empoderamento dessas religiões Uma primeira ação é aumen tar o conhecimento sobre essas religiões combatendo as ideias equivocadas construídas por discursos fanáticos e de ódio Na intenção de conhecer melhor as manifestações religiosas de matriz africana elencaremos alguns de seus princípios os quais se chocam com as posturas exclusivistas e fundamentalis tas e por isso acabam as colocando como alvo de discursos de ódio Dentre eles temos O Princípio da Diversidade que tem como premissa que os seres humanos são diferentes por natureza O que reforça tanto o respeito à alteridade quanto a necessidade de complementação dos diferentes na vida comunitária e codependente entre os se res do mundo visível e destes com os do mundo invisível O Princípio da Ancestralidade provedora do ngunzo na língua africana de tradição Bantu87 ou axéno dialeto Yorubá88 a força vi tal como sendo a realidade fundante dessas religiões e que permite compreender suas vidas cotidianas Todo ancestral tem um passa do terreno foi antepassado mas nem todo antepassado foi ou será ancestral Para os povos africanos e também para os afroreligiosos brasileiros sua cosmovisão está centralizada nos ancestrais e é a par tir disso que suas as relações sociais são instituídas 87 Bantu Banto especificação étnicolinguística que corresponde aos países localizados na parte subequatorial do continente Africano correspondente a países como Moçambique Angola e República do Congo e outros Tradições das religiões de matrizes africanas como as Congadas as Folias de Reis mesmo que consideradas como manifestações culturais populares sabemos que elas se constituem a religiosi dade por meio da descendência africana e os candomblés de Angola no Brasil 88 Grupo étnico e linguístico localizado ao norte no continente africano composto por países como Nigéria Benim Costa do Marfim e etc de onde se originam os candomblés de tradição Yorubá e Nagô com os terreiros de Jeje Kêtu Efón e outros no Brasil Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 161 Por fim e não menos importante o Princípio Religioso como forma de ser e viver A religião como razão primeira das culturas africanas de tradição Yorubá e Bantu entre outras é constituída por meio das memórias e codificada pela oralidade Esta oralida de que é mais fluida que o saber expresso nos livros sagrados se adapta às novas configurações sociais ao mesmo tempo em que repete o mito de fundação da religião Não é de se espantar que isto os partidários do fundamentalismo Neste sentido entendemos que o diálogo interreligioso a partir de seus princípios norteadores como proposto a seguir pode de forma cuidadosa auxiliar em nossa reflexão foco Isto por acredi tarmos que assumir o reconhecimento da necessidade de cons truções de novos saberes de forma transversal e compartilhada é dar o primeiro passo para abrirse ao encontro com o outro Panasiewick 2003 apresenta quatro níveis de encontro inter religioso com suas respectivas formas de diálogo a nível existencial presença e testemunho Diz respeito à vivência espontânea e natural dos valores internalizados pelos fiéis no interior de uma tradição cultural e religiosa a partir da convivência com eles em ambientes não religiosos É por isso que os fundamentalistas insistem na postura de gueto relacional procurando afastar seus membros do contato com pessoas e atos por eles nomeados como mundanos b nível místico oração e contemplação No nível mítico as pessoas são chamadas a participar dos rituais de outras religiões Neste nível compartilhase a experiência comunitária e a expe riência contemplativa da fé perante o Ser além das diferentes metodologias de se aproximar do Absoluto c nível ético libertação e promoção do ser humano É o nível do diálogo das ações e da colaboração com objetivos de caráter Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 162 humanitário social econômico e político que se orientem para o eu PANASIEWICK 2003 p 50 Entendemos o nível da ética propício para um tratar de ques tões com evidências religiosas fundamentalistas Visto que tanto por meio da ética pessoal quando o ser humano usa valores que privilegiam o respeito ao outro antes de qualquer teoria e tam bém da ética profissional preconizada pelo Código de Ética pro posto pelo Conselho Federal de Psicologia podemos construir posturas contra o preconceito e para além conseguimos ver a partir da narrativa do consulente uma possibilidade de trabalho que privilegie a reflexão um deslocamento do discurso ou até mesmo uma ressignificação subjetiva acerca da problemática em questão Uma escuta sem proselitismo e com suspensão de juízo de valor é instrumento de suma importância neste cenário Res saltamos que as verdades são relacionais e como tal devem ser consideradas como vetores que indicam por onde e de que forma a questão deve ser conduzida e na melhor das hipóteses sanada d nível teológico enriquecimento e aplicação dos patrimônios religiosos O diálogo dos especialistas O objetivo é confrontar aprofundar e enriquecer os respectivos patrimônios religiosos como também aplicar os recursos aí contidos aos problemas que se põem à Humanidade no decurso da sua História PANA SIEWICK 2003 p 50 Falando da valoração interreligiosa Vigil 2006 afirma que as pessoas podem utilizar três formas diferentes de valorar as outras visões frente à própria visão religiosa formas exclusivis tas inclusivistas e pluralistas A postura exclusivista é aquela que afirma que só a própria crença ou cosmovisão propicia a salvação eou reflete com clareza a verdade Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 163 O inclusivismo inclui as religiões de mesma base por exem plo todas as religiões cristãs no rol das possibilidades de salva ção e outras cosmovisões parecidas no rol das verdadeiras Além disso alguns pensadores incluem também religiões não cristãs como as religiões afrobrasileiras pois elas teriam um cristianis mo anônimo que manteria características cristãs sem nomeálas desta forma A terceira postura é a do pluralismo O pluralismo afirma que a salvação está em Deus Afirma também que cada cultura per cebe alguns aspectos de Deus e ignora outros visto que Deus é inacessível à mente humana Assim todas as religiões apesar de não serem iguais seriam verdadeiras pois ofereceriam uma leitura de partes desse divino Existem algumas disposições e condições para que o diálogo interreligioso seja possível são elas o respeito ao outro em sua identidade própria a fidelidade à sua própria identidade cer ta igualdade entre os parceiros consciência de humanidade e a abertura de valor de alteridade A partir disso entendemos que a espiritualidade produ ção de sentidos relacionais concomitantemente com as prá ticas psicológicas pode ser instrumento de enfretamento ao fundamentalismo Elencamos como possibilidades de intervenção psicológica nesses campos de conflitos promoção de diálogos mediação de conflitos reflexões contra as introjeções de preconceitos religio sos ensino nas universidades sobre questões religiosas e suas influências nas práticas psicológicas além da formulação e apoio a leis específicas como papel dos Conselhos Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 164 Considerações finais Temos no cenário brasileiro atual grandes desafios dentre eles o de sermos responsáveis e justos em nossas reflexões e consequentemente em nossas ações Nesse sentido devemos nos esforçar para diferenciar a defesa de fundamentos políticos eou religiosos e outros conservadores ou não de atos extremos ou fanáticos expressos verbal ou fisicamente de forma violenta Sendo assim o tratar psicológico de posições fundamenta listas que se apresentam em nossos cotidianos sobre racismo xenofobia homofobia e outras depende do conhecimento e aceitação das diferenças de uma consciência crítica profissio nal e humana No caso da religião entendemos que não há uma religião em abstrato as religiões se apresentam à Psicologia de modo geral corporificadas em pessoas e organizações São essas pessoas e organizações os locus de intervenção do saber psicoló gico mais do que as doutrinas locus de intervenções teológicas As práticas fundamentalistas violentas e discursos de ódio co metidos contra grupos minoritários como as religiões de matri zes africanas surgem em contexto de competitividade religiosa nos moldes do mercado de consumo ancoradas nas vontades de angariar poder e dinheiro Essas religiões neste contexto sofrem de dupla desvantagem Primeiro por carregarem uma menos va lia ligada culturalmente à herança africana e segundo por não fazerem proselitismo pois não se colocam como melhores que outras religiões e oferecerem seus produtos simbólicos sem a necessidade de conversão Quanto à espiritualidade dimensão do sentido quando bem trabalhada coloca os seres humanos diante à uma vivência re lacional com outros seres humanos visto que o eu se define Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 165 frente ao não eu Essa relação com respeito à alteridade é em no nosso entendimento a principal arma no combate aos funda mentalismos Cabe à Psicologia como ciência e prática social se debruçar sobre essa questão e criar metodologias que facilitem a vivência do diálogo e do respeito à diferença Referências bibliográficas CORRÊA M As Ilusões da Liberdade a escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil Bragança Paulista EDUSF 2000 CUNHA Magali do N Precisamos falar sobre fundamentalis mo In Diálogos da Fé Disponível em httpswwwcartaca pitalcombrblogsdialogosdafeprecisamosfalarsobrefunda mentalismo Acesso em 03 abr 2018 FOUCAULT Michel A Verdade e as formas jurídicas Rio de Janeiro Nau Editora 2002 MARIZ Cecília Loreto Instituições tradicionais e movimentos emergentes In PASSOS João Décio USARSKI Frank Com pêndio de Ciência da Religião São Paulo PaulusPaulinas 2013 PANASIEWICK Roberlei Os níveis ou formas de diálogo inter religioso uma leitura a partir da Teologia cristã Belo Horizonte Revista Horizonte v 2 n 3 p 240261 abrjun 2003 Dispo nível em httpperiodicospucminasbrindexphphorizonte articleview597624 Acesso em 02 ago 2016 QUEIROZ MIP Identidade Cultural Identidade Nacional no Brasil Ver Social USP S Paulo 1l 2946 Sem 1989 QUEIRUGA Andrés Torres O encontro entre as religiões In QUEIRUGA Andrés Torres Autocompreensão cristã diálogo das religiões São Paulo Paulinas 2007 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 166 SILVA Vagner Gonçalves Da Prefácio ou Notícias de uma Guerra Nada Particular os ataques neopentecostais às religiões afrobrasileiras e aos símbolos da herança africana no Brasil In Intolerância Religiosa impactos do neopentecostalismo no cam po religioso afrobrasileiro São Paulo Edusp 2007 SOARES Mariza de Carvalho Guerra Santa no País do Sin cretismo In Sinais dos tempos diversidade religiosa no Brasil Cadernos do ISER 23751041990 SCHWARCZ Lilia Moritz O Espetáculo das Raças Cientistas Instituições e Questão Racial no Brasil 18701930 São Paulo Companhia das Letras 1993 TEIXEIRA Faustino O Pluralismo Religioso e a Ameaça Fun damentalista Numen revista de estudos e pesquisa da religião Juiz de Fora v 10 n 1 e 2 p 924 2007 TEIXEIRA Faustino MENEZES Renata Religiões em Movi mento o Censo de 2010 Petrópolis RJ Vozes p 1736 2013 VIGIL José M Teologia do pluralismo religioso para uma relei tura pluralista do cristianismo São Paulo Paulus 2006 Terapia no mundo antigo e suas implicações para um diálogo entre Psicologia e Teologia DAVI C RIbEIRO LIN Doutorado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia Brasil 2019 Psicólogo Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 168 Introdução Este artigo recupera a ideia de terapia na antiguidade visando reconhecer referências de saber interdisciplinar e caminhos de diálogo para a Psicologia Em outras palavras porque a Filoso fia antiga e a Teologia patrística têm uma concepção elaborada de terapia da alma muitos séculos antes da Psicologia fazerse ciência a relação entre Psicologia e outros campos do saber não é necessariamente uma história de conflito inevitável mas pode abrirse a um diálogo interdisciplinar de cooperação e enrique cimento mútuo Se a Psicologia quiser manter um ouvido atento em tempos de polarização e radicalismos no campo religioso e científico ela é convidada a cultivar um diálogo respeitoso entre diferentes campos do saber mantendo tanto uma postura epis temológica clara quanto intencionalmente evitando uma miopia histórica que desconhece as potencialidades e limites de tradi ções e saberes anteriores a própria ciência psicológica No atual contexto brasileiro fomentar um caminho de interdisciplinari dade entre Teologia e Psicologia tornase necessário diante do crescente processo de disjunção e ausência de diálogo entre fé religiosa e ciência ou uma sobreposição que não compreende a singularidade de cada enfoque A terapia na antiguidade Pierre Hadot destaca que a Filosofia no mundo antigo se rela cionava a uma escolha de um modo de vida em comunidade inte grando discurso filosófico como teoria com uma prática existen cial Consequentemente a Filosofia antiga difere radicalmente daquilo que conhecemos por Filosofia no século XXI era uma Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 169 escolha por um caminho filosófico não como um apêndice da reflexão mas seu ponto de partida integrada a uma visão global de certo modo de viver89 O discurso filosófico na antiguidade relacionavase a uma escolha de opção existencial nunca feita por um indivíduo isolado mas orientado por uma escola rumo a um ideal de felicidade Exigia uma mudança de estilo de vida e conversão do ser como uma preparação para a sabedoria90 Uma essencial tarefa das diferentes escolas filosóficas relacionavase a justificar essa escolha existencial incorporando sua visão de mundo à prática na qual o discurso filosófico expressava um ca minho terapêutico de um tipo de vida escolhida A Filosofia na antiguidade clássica tinha como tarefa principal a terapia da alma Cícero 10643 aC orador filósofo e políti co romano descreve a necessidade de se despertar no paciente um conhecimento sobre a ambiguidade de seu próprio estado de enfermidade A alma julga sobre si mesma quando justamente o que nela julga está doente91 Ao contrário da Filosofia mo derna que se ocupou mais com fundamentações normativas a ética antiga centrouse na busca da felicidade e do sumo bem e desembocou em um desenvolvimento de uma ars vivendi uma metodologia terapêutica para se alcançar a meta de uma vida92 A consequência é que a Filosofia antiga tomou para si a necessi dade da criação de métodos que conduzissem um ser humano ao caminho da felicidade propondo um autoconhecimento e mé todos terapêuticos pelos quais o homem tornavase cônscio de sua enfermidade e assim poderia ser conduzido ao caminho da 89 Hadot Pierre What Is Ancient Philosophy Cambridge Harvard University Press 2002 3 90 Ibid 4 91 Cicero Tusculana e disputationes III 1 92 Johannes Brachtendorf Confissões de Agostinho São Paulo Loyola 2008 14 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 170 felicidade Portanto aquilo que hoje conhecemos como parte do objeto de estudo e prática da Psicologia era na antiguidade uma ocupação filosófica O papel do terapeuta na era helenística era ocupado por guias filosóficos que curavam através da palavra o discurso precisava adequarse ao estado do paciente e o uso da retórica buscava um ideal de florescimento não como um Deus nem como um animal mas como um humano Conversas pes soais com um sábio filósofo buscavam harmonia com o universo em uma concepção na qual a Psicologia e a física não se distan ciavam mas participam da mesma ordem cosmológica em vistas a uma opção existencial de realização da felicidade humana Podese afirmar que aquilo que conhecemos hoje como práti ca psicoterapêutica não era totalmente compreendida no mundo antigo no entanto suas raízes têm uma longa tradição na história das ideias psicológicas Uma incipiente psicoterapia foi desen volvida na antiguidade nos campos da história médica Filoso fia e da Teologia na tradição judaicocristã Também é relevante notar que mesmo no mundo antigo as disciplinas já estavam encontrando suas especificidades Hipócrates que encarnou os valores do que é hoje a profissão médica tendeu a destacar o tratamento somático embora ele se esforçasse por ter mente e corpo sadios Os filósofos em contraste eram hábeis na cura através de belas palavras na arte da retórica A tradição filosófica da terapia helenística também foi deno minada como psicagogia um sistema de cuidado dedicado ao desenvolvimento holístico do seguidor Como bem sintetiza Paul Kolbet a psicagogia referese a tradições de terapia filosofi camente articuladas comuns na literatura helenística relativas a como uma pessoa amadurecida leva os menos maduros a per ceber e internalizar a sabedoria por si mesmos Essas tradições Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 171 além disso enfatizam que para o discurso terapêutico ser eficaz ele deve se basear no conhecimento e persuadir adaptandose de maneiras específicas tanto ao estado psíquico do receptor como à ocasião particular93 Consequentemente não é difícil perceber como esse ideal cultural também influenciou o cristia nismo e a seguinte articulação teológica A psicagogia também foi apropriada por judeus e cristãos que interessados em desen volver meios para o desenvolvimento da pessoa humana a partir da perspectiva da fé integraram a tradição judaicocristã com os ensinamentos da Filosofia helenística Fílon e os terapeutas de Alexandria viveram no primeiro século da era cristã em um caldeirão de encontro entre cultura grega e tradição judaica Reconhecendo que a tarefa da Filosofia era tera pêutica e integrandoa no judaísmo helenístico cultivou um mo delo integrado da unidade da pessoa Seu modelo de saúde não se limitava ao corpo ou retirava o olhar das dimensões psíquica e es piritual da vida mas buscavase um cuidado com a pessoa humana em seu corpo alma e espírito terapeutas com uma antropologia holística buscando o cuidado de ser em suas dimensões corporal psíquica e espiritual em sua integralidade constitutiva94 Ao tera peuta cabe uma escuta que não é somente um ato corporal mas a condição para a saúde psíquica e que se revela uma postura espi ritual95 O ouvir é o primeiro chamado da shema hebraica Ouve ó Israel A consequência é que se institui um modelo antropoló gico holístico com escuta integral que inspira na atualidade um trabalho em conjunto de diferentes disciplinas como medicina 93 Paul R Kolbet Augustine and the Cure of Souls Revising a Classical Ideal Notre Dame University of Notre Dame Press 2010 8 94 JeanYves Leloup Prendresoin de lêtre Philonet les thérapeutes dAlexandrie Pa ris Albin Michel 1999 95 Ibid 83 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 172 Psicologia e espiritualidade Fílon efetua uma síntese terapêutica entre as tradições da antropologia judaica e a helenística exemplo de uma prática na tradição de matriz judaicocristã que ao inserir se em um diálogo com a cultura helênica de maneira frutífera se posiciona contra um olhar fragmentado ao indivíduo e a favor do cuidado com a pessoa inteira Com o desenvolvimento da fé cristã em um corpo de saber e perspectiva teológica a Teologia valida o ideal filosófico de terapia e o apropria dentro da tradição cristã Na interação entre a heran ça grecoromana e a tradição judaicocristã filósofos cristãos aco lhem para si práticas da Filosofia helenística e o adaptam afirman do a fé cristã como a verdadeira philosophia Agostinho 354430 orador e retórico na corte imperial de Milão e posteriormente bis po de Hipona era consciente de que as palavras não somente in formam mas performam e moldam a direção dos afetos Em uma de suas cartas ele recomenda um tratamento da vida interior algo que parece aproximarse de uma recomendação a psicoterapia em dias atuais se esses problemas te incomodam assim como eles me perturbam discutaos com algum médico do coração cordis medico caso encontres alguém onde moras ou quando fores a Ro ma96 Agostinho é possivelmente o maior responsável na adap tação cristã do modelo clássico de terapia Apesar de conservar os mesmos ideais por sabedoria que herdou da leitura de Cícero Agostinho vê no Christus Medicus o modelo do sábio médico fi losófico a encarnação de Cristo sua humanidade permitiu uma troca na qual os seres humanos trazem suas doenças mas através de sua identificação com as feridas humanas Cristo os dá vida A consequência é que Agostinho retém o ideal filosófico e ao mes mo tempo traz a ideia de terapia para a Cristologia e a Teologia 96 Santo Agostinho ep 956 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 173 Confissões uma expressão autobiográfica de um narrar sobre si dentro de um horizonte relacionalterapêutico descreve a jor nada da conversão da vida interior de Santo Agostinho em di reção a uma vida relacional mais autêntica Sua conversão ao deixar a carreira como um profissional do mercado da oratória e retórica é também um novo jeito de se comunicar com o mundo um manifesto de uma vida interior que abandonou a manipula ção das palavras visando o ganho pessoal Agostinho percebese como alguém que é feito a partir de relações de acolhimento e graça Suas noções elaboradas sobre interioridade memória e um ideal comunitário de transformação da vida interior sinalizam que a antiguidade tanto na Filosofia quanto na Teologia já era dotada de modelos psicológicos complexos Apesar de não terem um caráter científico moderno limitados pelo próprio avanço e horizonte dos antigos séculos tanto a Filosofia helenística quan to a Teologia patrística se propunham a cuidar da pessoa humana e de seus processos psíquicos Como aponta Paul Kolbet situar Agostinho como antigo terapeuta ou pelo menos um protote rapeuta permitenos compreender a complexidade de um saber psicológico de outra época e ao mesmo tempo tomar consciên cia de nossas próprias pressuposições Ao tomar uma tradição filosófica complexa como a da Filosofia clássica e produzir um modelo filosófico teológico profundo como o descrito em Confis sões Agostinho de Hipona aponta para a possibilidade de pessoas com um conhecimento teológico produzirem um saber psicológi co aprofundado contendo elementos originais Um dos desafios da na contemporaneidade e da nossa pro fissão enquanto psicoterapeutas é que podemos sofrer de uma miopia histórica Enquanto ciência nascida no século XIX ge rada na confluência das ciências naturais Filosofia e estudo da Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 174 fisiologia a Psicologia estabeleceu uma necessária relação de di ferenciação Entretanto distinção não significa necessariamente banimento de diálogo mas clareza e limites necessários Pelo nosso desconhecimento do saber psicológico anterior ao século XIX a Psicologia pode fecharse em uma atitude de afastamento em vez de mutuo enriquecimento com campos como a Filosofia e a Teologia Apesar das transformações históricas nos diferen tes campos do conhecimento e da distância entre antiguidade e contemporaneidade Teologia Filosofia e Psicologia podem participar de um diálogo interdisciplinar fecundo reconhecendo limites e possibilidades se retém tanto epistemologias próprias e claras quanto uma abertura a construção de pontes de contato A ideia de conflito inevitável entre saber científico e a es piritualidade é também fruto de uma ciência nascida em um momento histórico que reforçou a distância entre a ciência e a expressão religiosa No século XIX com o desenvolvimento de ciência e de uma classe distinta o cientista ganha força o dis curso de confronto inevitável entre ciência e comando religioso A nova classe de cientistas questiona a autoridade da igreja as ciências nascidas no século XIX e início do século XX tenderam a se estabelecer em contraposição à linguagem religiosa A ideia de conflito inevitável carrega também contornos de substituição de saberes como exemplificada pelo cientista natural e evolucio nista Thomas Huxley Seus textos científicos são descritos como sermões e o museu de história natural é a catedral da nature za A Psicologia nasce nesse contexto do século XIX com uma visão de conflito entre ciência e fé Em O Futuro de Uma Ilusão de 1927 Sigmund Freud parte do princípio de que a religião foi criada pelo homem por motivos de auto conservação por seus desejos pulsionais é uma projeção de sua orfandade de um nar Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 175 cisismo infantil e portanto o ser humano precisa da descrença para abrirse à liberdade Há de se notar que a crítica de Freud é válida quando a religiosidade reproduz medos infantis e não permite um amadurecimento humano Entretanto nem todos os psicanalistas que correspondiam com Freud compartilhavam de sua mesma visão sobre a questão religiosa como no caso do pastor reformado teólogo e psicanalista Oskar Pfister com quem Freud manteve uma amizade e extensa correspondência por trin ta anos Como se evidencia na rica correspondência entre am bos as dissonâncias não impediram um diálogo fecundo97 Caminhos de interdisciplinaridade A primeira condição necessária para que a Psicologia se reconhe ça como um saber em diálogo é uma clareza epistemológica entre o campo religioso e o científico No excelente texto Ser cristão e ser psicólogo endereçado ao Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos CPPC a psicanalista e doutora em Teologia Karin Wondracek des creve diferentes modos de interação entre Psicologia e fé em um contínuo que vai desde perigosos atalhos de junção a dissociações reativas98 Wondracek também discute o aporte da Psicologia da religião as contribuições propriamente teológicas e como algumas junções entre Psicologia e fé podem ser prejudiciais O argumento reforça que não é justo que se use no consultório oração aos santos bíblia mediunidade ou florais exotéricos ao invés de sua abordagem teórica abandonando Freud Rogers Gestalt substituindo a técnica pela religião É desleal e antiético quando profissionais religiosos 97 Karin Wondracek O amor e seus destinos a contribuição de Oskar Pfister para o diálogo entre psicanálise e teologia São Leopoldo ESTSinodal 2005 98 Karin Wondracek Ser cristão e ser psicólogo em Psicoteologia 2º semestre 2013 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 176 não levam a ciência a sério e a metodologia terapêutica de sua abor dagem deixam a formação que receberam nos anos de graduação em Psicologia transformando um espaço de escuta em outro de pregação A máxima bíblica de graça recebestes de graça dai tam bém se aplica parafraseando as palavras do próprio Cristo não se pode esperar ganho financeiro quando se usa uma mensagem es piritual como método de intervenção terapêutica O próprio Cristo criticou os líderes religiosos de seu tempo que em nome de uma religião neurótica impunham fardos sobre os mais simples Apesar dos atuais esvaziamentos na compreensão dos limites entre saberes paradoxalmente a própria tradição teológica é rica nesta interface interdisciplinar que respeita as balizas de ambos os campos Desde o Concílio da Calcedônia do ano de 451 que arti culou mais profundamente a dupla natureza de Cristo mantendo tanto sua natureza divina e humana articulamse teologicamente duas dimensões diversas sem perder a validade e singularidade de ambas O concílio não apenas conceitua uma verdade a respeito das duas naturezas do Cristo mas se torna um paradigma para dialogar campos e diferentes saberes99 Ao recuperar o paradigma proposto por Calcedônia o teólogo de Princeton James Loder é um exemplo de capacidade de diálogo interdisciplinar entre Psico logia e Teologia a partir da antropologia teológica100 Há de se perceber portanto que a ausência de um básico conhecimento teológico entre profissionais que se dizem cristãos fomenta a incapacidade de diálogo entre os campos religioso e o científico Não é o saber teológico ou a expressão da doutrina o problema mas uma superficial religiosidade que não permi 99 Ibid 1314 100 James E Loder The Logic of the Spirit Human Development in Theological Perspective San Francisco JosseyBass 1998 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 177 te um aprofundamento na mesma Infelizmente uma devoção cristã que pouco conhece a própria tradição teológica seja ela Católica ou Protestante pode reduzirse em um fechamento uma redoma antiintelectualista que impede o aprofundamento interdisciplinar Há entretanto dentro dos recursos da própria tradição religiosa elementos que facilitam e provocam o diálogo respeitoso com a ciência e a Psicologia A fé cristã assim como a experiência espiritual em diferentes religiões busca o floresci mento da experiência humana e do bem comum de toda socie dade e como objetivo de cuidar da pessoa e de seu mundo e se insere em objetivos semelhantes ao que se propõe a Psicologia Por outro lado pareceme que uma atenção à questão religio sa e as expressões da espiritualidade humana precisam achar es paço nos diálogos da Psicologia As perguntas mais fundamentais sobre o sentido de vida transcendência e o absolutamente outro parecem fazer parte da vivência humana ao longo dos séculos e possivelmente de toda constituição humana Se em reação ao fundamentalismo religioso pressupomos que a experiência religiosa certamente tem elementos patológicos não acompa nhamos a experiência humana dos nossos pacientes O risco é invalidarmos a experiência religiosa quando ela é expressão hu mana de uma busca por sentido e transcendência Se conside rarmos que a vivência religiosa é doentia ela já se constitui um olhar terapêutico enviesado e para nós já tem a partir de nosso olhar presente o futuro de uma ilusão Infelizmente porém se desvalidamos previamente a experiência de fé da pessoa corre mos o risco de não realizarmos a contemplação desinteressada da epoché fenomenológica de Husserl ou a aceitação incondicional de Carl Rogers não acompanhamos a pessoa Não acolhemos o sofrimento e a nossa capacidade de empatia fica reduzida Não Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 178 proponho que vejamos todos os processos religiosos na clínica psicológica como saudáveis mas que mantenhamos a abertura de toda boa ciência ao mistério da vida que se apresenta A pergunta sobre Deus e o sentido da vida parece perpassar a própria constituição da experiência humana quer a acolhamos ou não ela não deixará os consultórios de Psicologia À essa separação que não acompanha a pessoa que faz da disjunção entre Psicolo gia e fé o seu objetivo primeiro também podemos tragicamente chamar de fundamentalismo Creio que em épocas de polarização como a nossa precisamos rejeitar os dois fundamentalismos o re ligioso e o secular em nome de um diálogo respeitoso que consi dere a integridade do conhecimento científico Paralelamente os psicólogos na clínica são chamados a recusar respostas prontas e permanecer diante do mistério pois como indica AnconaLopez o símbolo religioso a palavra e o rito excedem a capacidade de com preensão racional a inclusão da experiência religiosa na clínica psicológica exige abertura para a metáfora para os símbolos para o desconhecido para o reconhecimento do instante fugaz em que um significado restaurado tornase pleno de vida101 Conclusão Dizer que não é possível praticar psicoterapia e ao mesmo tempo cultivar uma abertura à dimensão religiosa dos clientes é uma atitude reducionista e constituise como miopia histórica Ao longo dos séculos desde a antiguidade pessoas que culti vavam princípios filosóficos e valores religiosos se envolveram 101 AnconaLopes Marília Religião e psicologia clínica quatro atitudes básicas In Massimi M Mahfoud M Diante do mistério Psicologia e senso religioso São Paulo Loyola 1999 85 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 179 para contribuir para o avanço da cultura arte e ciência porque viam em sua vocação profissional um modo de cultivar e servir no mundo e ao bem comum Aqueles entre nós com uma vivência espiritual fecunda carregam uma consciência de que a vida in clui a dimensão do mistério sem transcendência seja ela através da arte ou da experiência espiritual os valores da sociedade pas sam a ser guiados por uma sociedade capitalista e materialista que adoece a saúde emocional O caminho da interdisciplinaridade entre Teologia e Psicolo gia tornase urgente diante do crescente processo de disjunção entre fé e ciência e sobreposição que não compreende a singu laridade de cada enfoque Um caminho de diálogo profícuo entre ciência psicológica e fé dependerá da formação de profissionais em Psicologia que tenham um respeito à dimensão humana em sua procura por transcendência e sentido consequentemente estarão abertos a acolher a busca contida na experiência religiosa dos seus clientes Cabe à Psicologia não somente reforçar as sin gularidades de cada campo mas em uma atitude de humildade diante das fontes que recebemos do passado abrirse a interdis ciplinaridade incluindo pessoas com uma espiritualidade viva que queiram contribuir à Psicologia cultivando rigor acadêmico e prática profissional ética Referências bibliográficas AGOSTINHO Santo Confissões São Paulo Paulus 1984 AGOSTINHO Santo Epistola 96 In Library of Latin Texts CLCLT5 Moderante Paul Tombeur Turnhout Brepols 2002 3 CDROMS Database Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 180 ANCONALOPES Marília Religião e Psicologia clínica quatro atitudes básicas In Mahfoud M Massimi M Diante do mis tério Psicologia e senso religioso São Paulo Loyola 1999 BRACHTENDORF Johannes Confissões de Agostinho São Paulo Loyola 2008 CICERO Ciceros Tusculan Disputations Also Treatises On The Nature Of The Gods And On The Commonwealth Project Gu tenberg 2005 FREUD Sigmund O futuro de uma ilusão Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud vol XXI Rio de Janeiro Imago 1996 HADOT Pierre What Is Ancient Philosophy Cambridge Har vard University Press 2002 KOLBET Paul R Augustine and the Cure of Souls Revising a Classical Ideal Notre Dame University of Notre Dame Press 2010 LELOUP JeanYves Prendresoin de lêtre Philonet les thérapeu tesdAlexandrie Paris Albin Michel 1999 LODER James E The Logic of the Spirit Human Development in Theological Perspective San Francisco JosseyBass 1998 WONDRACEK Karin Ser cristão e ser psicólogo Psicoteolo gia 2º semestre 2013 815 WONDRACEK Karin O amor e seus destinos a contribuição de Oskar Pfister para o diálogo entre psicanálise e Teologia São Leopoldo ESTSinodal 2005 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 181 ANEXO I Nota de posicionamento sobre laicidade e religião No momento histórico vivido pelo país a Psicologia brasileira ciência e profissão vem a público apresentar seu posiciona mento frente a uma das temáticas mais relevantes para a manu tenção das instituições democráticas que garantem o Estado de direito conforme prevê o Artigo 5º da Constituição Federal a laicidade do Estado e a liberdade religiosa O CRPMG como autarquia pública preocupado em zelar pelo Estado de direito e pelas instituições democráticas gosta ria de reforçar os princípios fundamentais do Código de Ética Profissional dasos Psicólogasos especificamente o parágrafo primeiro O psicólogo baseará seu trabalho no respeito e na pro moção da liberdade da dignidade da igualdade e da integridade do ser humano apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos Entendemos que o Estado laico é o modelo social que nos garante as condições de direito que precisamos defender é atra vés da laicidade do Estado que a diversidade religiosa pode ser garantida e legitimada como manifestação da pluralidade étnica que define a construção de nosso povo Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 182 O CRPMG reconhece a importância dos fenômenos cultu rais na formação da subjetividade e por isso legitima as tradições religiosas em toda a sua diversidade como fenômenos importan tes para a compreensão do ser humano Por isso defendemos a laicidade do Estado como condição fundamental para que o direito à diversidade religiosa seja garantido É preciso ainda ressaltar a laicidade da própria Psicologia que enquanto ciência fundamenta a construção de seu saber na pesquisa rigorosa e metodologicamente estruturada e comprova damente eficaz Não podemos portanto utilizar de preceitos de fé ou dogmas teológicos na produção de nosso saber e de nosso fazer como Psicólogasos AO profissional da Psicologia no exercício de sua prática deve saber respeitar as pessoas com quem trabalha reconhecen do suas histórias e trajetória existencial não impondo ao outro seus próprios valores como preconiza a alínea b do artigo 2º do Código de Ética Ao psicólogo é vedado induzir a convicções políticas filosóficas morais ideológicas religiosas de orienta ção sexual ou a qualquer tipo de preconceito quando do exercí cio de suas funções profissionais Por isso a identidade profissional dao psicólogao não deve estar vinculada à sua tradição religiosa sendo inapropriada a uti lização de termos como Psicologia espírita Psicologia cristã Psicologia umbandista Psicologia budista E no exercício de sua prática é preciso que suas convicções religiosas não condu zam o processo que deve ser orientado pelas técnicas produzidas pela ciência psicológica Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 183 CAPA lombadaindd 1 06Aug19 100959 AM
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CAPA lombadaindd 1 06Aug19 100959 AM Belo Horizonte 2019 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais Comissão de Psicologia Laicidade Espiritualidade Religião e outros Saberes Tradicionais 2019 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais É permitida a reprodução desta publicação desde que sem al terações e citada a fonte Capa Brasil84 Revisão ortográfica e gramatical Brasil84 Projeto e edição gráfica Brasil84 Impressão Gráfica Global Print Tiragem 1000 exemplares Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais Rua Timbiras 1532 6º andar Lourdes CEP 30140061 Belo HorizonteMG Telefone 31 21386767 wwwcrpmgorgbr crp04crp04orgbr Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais Comissão de Psicologia Laicidade Espiritualidade Religião e outros Saberes Tradicionais XV Plenário do Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais Gestão 20162019 DIRETORIA CONSELHEIRASOS Aparecida Maria de Souza Cruvinel Claudia Natividade Dalcira Ferrão Délcio Fernando Pereira Eliane de Souza Pimenta Eriane Sueley de Souza Pimenta Érica Andrade Rocha Ernane Maciel Felipe Viegas Tameirão Filippe de Mello Flávia Gotelip Leila Aparecida Silveira Letícia Gonçalves Madalena Luiz Tolentino Marcelo Arinos Márcia Mansur Saadallah Mariana Tavares Marília Fraga Odila Maria Fernandes Braga Paula Khoury Reinaldo Júnior Rita Almeida Robson de Souza Roseli de Melo Solange Coelho Stela Maris Bretas Souza Tulio Picinini Vilene Eulálio Waldomiro Salles Yghor Gomes Stela Maris Bretas Souza Conselheira Diretora Presidenta Aparecida Maria de Souza Cruvinel Conselheira Diretora VicePresidenta Felipe Viegas Tameirão Conselheiro Diretor Tesoureiro Délcio Fernando Pereira Conselheiro Diretor Secretário SuMáRIO Apresentação 5 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições os desafios de uma ciência e profissão no século XXI 9 A religião e as questões de gênero construções do conceito de espiritualidade na compreensão da diversidade sexual 36 Reinaldo da Silva Júnior Excurso sobre o humano e seus desdobramentos como perspectiva do póshumano 52 Henrique Marques Lott Por uma espiritualidade de enfrentamento ao fundamentalismo 75 Marcus Mareano O malestar na sociedade e seus efeitos sobre os matrimônios católicos contemporâneos a proposta de mediação religiosa do Encontro de Casais com Cristo 92 Denis Cotta Formiga Desafios e possibilidades da experiência de encontro inter religioso uma investigação fenomenológica 109 Yuri Elias Gaspar e Miguel Mahfoud Somos mudança Meditação saúde espiritual e transformação social 135 Wanderson Xavier Mendes A dimensão de espiritualidade e o enfrentamento ao fundamentalismo discutindo as relações de poder 151 Guaraci M Santos Terapia no mundo antigo e suas implicações para um diálogo entre Psicologia e Teologia 167 Davi C Ribeiro Lin Anexo I Nota de posicionamento sobre laicidade e religião 181 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 5 APRESENTAçãO Em novembro de 2017 na sede do CRP 04 começamos os trabalhos da Comissão de Laicidade Espiritualidade Religião e Outras Tradições batizada de Clerot O objetivo maior deste coletivo é pensar como a Psicologia enquanto ciência e profis são deve se relacionar com essa temática contribuindo para que nossa compreensão do ser humano e nosso trabalho junto a este possa ser mais eficiente na promoção da saúde como condição biopsicosocialespiritual conforme preconiza a OMS Entendemos que o profissional de Psicologia tanto em suas ações práticas em seus ambientes de trabalho quanto em seu exercício como produtor de um conhecimento científico na pes quisa precisa estar comprometido com um saber que contri bua com a construção de condições favoráveis a esta existência saudável Compromisso este que nos aproxima dos fenômenos sociais que são estruturantes da vida das pessoas e a religiosi dade em todas as suas manifestações compõe esse espectro Entendemos ainda que não é possível uma análise criteriosa desse fenômeno sem a garantia dos direitos à diversidade de ex pressão cultural por isso o olhar da Psicologia para a religião e para a espiritualidade precisa estar regido pela égide dos direitos humanos Tendo como horizonte de sentido os axiomas dos direitos hu manos e da saúde biopsicosocialespiritual a Clerot tem nos fenômenos religiosos e na experiência de espiritualidade das pes Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 6 soas seu recorte específico procurando construir uma reflexão psicológica que nos ajude a compreender como o ser humano é afetado e afeta o mundo Alguns princípios éticos precisam ser resguardados quando a Psicologia se propõe à seguinte reflexão em primeiro lugar a premissa da laicidade como condição da ciência Ou seja a ciência como uma racionalidade que se constitui de conceitos produzidos de forma racional a partir dos experimentos e da análise crítica de seus resultados não deve ser influenciada por dogmas Em segundo é preciso reconhecer a diversidade como condição ontológica e como tal precisa ser legitimada e preser vada nas relações humanas o que só se faz possível pelo diálogo e aproximação entre os diferentes é papel da Psicologia promo ver tal diálogo e garantir respeito à diversidade própria de nossa existência Neste período de trabalho a Clerot produziu uma nota de orientação dirigida à categoria e participou da Mostra de Práticas em comemoração ao Dia dao Psicólogao com uma roda de conversa sobre Psicologia e espiritualidade Também realizamos oficina de práticas psicológicas em comunidades terapêuticas organizamos juntamente à UFMG um seminário sobre a obra de Pierre Sanchis e sua relação com a Psicologia além de dois Psicologia em Foco Tivemos ainda como atividade ordinária as reuniões mensais da Comissão na sede A Clerot também peregrinou pelo estado com o ciclo de con ferências sobre laicidade espiritualidade e religião e essa ação teve como principal resultado a formação de grupos da Comissão em duas cidades Divinópolis e Uberlândia Participamos ain da do Grupo de Trabalho Nacional sobre laicidade espiritua lidade e religião além de termos sido convidados a falar sobre Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 7 a temática em eventos realizados em faculdades estivemos na UNA BH FAJE UFTM e Unileste Todo esse trabalho não poderia ficar restrito aos membros da Comissão e por isso produzimos este material para socializar com a categoria as reflexões que estão sendo geradas sobre o tema entendendo que assim podemos ampliar o olhar e apro fundar ainda mais as discussões trazendo à mesa atores que ainda não se engajaram no debate Temos a convicção de que apenas com o envolvimento das pessoas podemos construir uma visão crítica que nos permita compreender o ser humano e os fe nômenos que o cercam de maneira mais complexa nos levando à perspectiva holística necessária nesta investigação Sabemos no entanto que a compreensão do fenômeno reli gioso não se esgota mas observamos que essa discussão no mo mento atual de nossa história parece ganhar importância ainda maior pelo fato da questão religiosa começar a receber grande destaque na realidade cotidiana da sociedade ocupando os ce nários político educacional e econômico Assistimos a retomada de uma reflexão moral pautada por dogmas e não pela cons ciência ética Este espírito de época estimula sentimentos ul traconservadores que promovem a exclusão pelo préconceito e intolerância Grupos acabam se fechando em guetos e o diálogo fica comprometido além das relações que precisam do diálogo para se sustentar É dentro desse cenário que a Psicologia ganha papel relevante para o estudo da religião e da espiritualidade Os textos deste livro não apresentam soluções não serão eles que irão resolver a relação da Psicologia com a temática religiosa se é que essa relação será um dia resolvida definitivamente O que temos aqui é o resultado de uma construção coletiva com prometida em produzir este diálogo por entender que a principal Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 8 ferramenta da nossa profissão é a linguagem e por isso preci samos sempre promover as condições para que a linguagem se coloque como instrumento do encontro entre as pessoas Os autores apresentam seus textos tendo como unidade me todológica discursos que têm a intenção de mostrar caminhos transdisciplinares que permitam o diálogo epistemológico em di reção às aproximações e não aos distanciamentos conceituais na direção de maneiras de viver na diversidade construindo identidades que não se isolem mas que permitam o trânsito na multiplicidade É com esse espírito que apresentamos nosso tra balho para que todos possam usufruir e contribuir com os des dobramentos futuros Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições os desafios de uma ciência e profissão no século XXI COMISSãO DE LAICIDADE ESPIRITuALIDADE RELIGIãO E OuTROS SAbERES TRADICIONAIS Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 10 Resumo Observamos em nossa prática como Psicólogasos nos di versos espaços de atuação clínica particular serviços públicos políticas de saúde AD saúde mental uma forte presença do elemento religioso seja no discurso de pacientes ou na implemen tação de projetos de políticas de saúde ligados a instituições eou tradições religiosas Por conta da força dessa presença o fenôme no religioso vai atravessar a prática dao Psicólogao exigindo uma postura ética que deve ter como pressuposto a laicidade Mas será que ao Psicólogao está preparadao para absorver em sua prática profissional a perspectiva laica na relação com o fenômeno religioso entendendo que esta postura não deve construir uma barreira entre ciência e religião mas sim garantir o diálogo entre essas racionalidades O que entendo é que há a necessidade de produzir um saber psicológico sobre a religião capaz de reconhecer os aspectos políticos no qual o fenômeno se envolve distinguindo estes da experiência subjetiva que leva as pessoas a perceberem o sagrado e tomar consciência da existência de tal fazendo desta uma experiência revolucionária de encontro e sentido da vida Palavraschave Psicologia Laicidade Espiritualidade Religião Introdução A prática da Psicologia pela sua peculiaridade de ter como principal instrumento a escuta e como objeto privilegiado de es tudo a dimensão subjetiva e intersubjetiva do ser humano es Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 11 barra a todo momento com o fenômeno religioso A existência humana está indelevelmente marcada por essa condição A religião em sua concepção mais ampla vai se mostrar nas es truturas sociais e nas relações intersubjetivas que são as experiências de exterioridade do indivíduo e também nas experiências internas emocionais e perceptivas que delimitam nossa subjetividade É por conta dessa essencial presença do religioso na existência humana que a Psicologia enquanto epistemologia voltada para a compreensão do ser humano não pode desconsiderála ou desqualificála enquanto experiência real e legítima da condição humana no mundo Compreender esse fenômeno entender seu funcionamento e en contrar seu lugar no quebracabeça existencial deve ser um objetivo da Psicologia Para tanto se faz necessário que se construa um campo semântico de diálogo que faça surgir uma epistemologia onde concei tos possam ser produzidos no sentido de nos apresentar o fenômeno religioso à luz de uma racionalidade científica que não desqualifique seu objeto por conta de preconceitos axiomáticos inflexíveis Um estudo psicológico da religião não pode descaracterizar esse fenômeno confundindoo com outras experiências humanas Por isso é preciso ser criterioso na descrição desse fenômeno identifi cando de forma sistemática as diversas situações existenciais em que este se apresenta Husserl utilizava do artifício da epoché e aqui esse exercício fenomenológico husserliano vai se mostrar de grande valia e servirá de instrumento para que a Psicologia possa identificar no fenômeno religioso o que dele se apresenta enquan to componente histórico cultural político emocional e espiritual Neste exercício intelectual precisamos ter a consciência dos limites da própria razão e da consequente capacidade humana de compreender a realidade pois essa condição limitada coloca o ser humano imerso num grande mistério que sempre permeará a exis Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 12 tência e o fenômeno religioso em sua essência toca exatamente nessa relação que estabelecemos com esse mistério existencial O que estou afirmando é que estudar o fenômeno religioso implica numa imersão nesse mistério sabendo que os recursos que temos para compreendêlo são insuficientes pois sua exten são é infinita Sem essa humilde consciência de nossas limita ções qualquer hermenêutica sobre o tema perde sua credibili dade pois tenderá a aprisionar esse mistério infinito em alguma justificativa estreita e por isso incompleta e incorreta Dito isso apresento este artigo em três momentos o primeiro onde discuto o conceito de laicidade procurando darlhe duas perspectivas sua relação com a religião enquanto tradição insti tuída colocandose em contraposição à esta e sua relação com a produção de conhecimento e organização política quando a laicidade se coloca como paradigma O segundo momento do artigo trata do conceito de religião procurando destacar três olhares possíveis para o termo o estudo antropológico que se orienta pela compreensão da cultura e pro cura estudar os ritos e mitos das tradições religiosas além de sua função para os grupos sociais e sua organização coletiva o estudo sociológico que vai se debruçar sobre as instituições religiosas e procurar entender o seu lugar na engenharia política das rela ções sociais e terceiro o estudo psicológico que deve ter como objeto a experiência subjetiva com o mistério que é chamada de experiência mística ou de espiritualidade No terceiro momento do texto procuro refletir um pouco sobre o conceito de espiritualidade Por ver nele o elemento chave do fenômeno religioso para a Psicologia enquanto ciência e profissão a espiritualidade vai se apresentar como objeto de nosso estudo e ferramenta de nossa intervenção Por isso compreender esse con Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 13 ceito é fundamental para que ao psicólogao possa transitar por esse fenômeno fazendo dele mais um instrumento na promoção da saúde e do pleno desenvolvimento do ser humano Se podemos observar nasos psicólogasos de hoje uma grande dificuldade em lidar com o fenômeno religioso em sua prática cotidiana provocando distorções tanto no que diz res peito a uma aproximação equivocada entre Psicologia e reli gião como também num distanciamento esquizoide que impe de a Psicologia de se apropriar dessa dimensão espiritual que é constitutiva do ser humano tal situação é decorrente em gran de proporção exatamente pela falta de uma descrição mais pre cisa do conceito de espiritualidade no universo epistemológico da ciência psicológica A religião em sua manifestação sociopolítica pode funcionar como um catalisador para a libertação do ser humano ou como um elemento de sua escravização pode ser uma promotora da consciência que nos ilumina ou fonte de alienação que nos de sorienta Por isso uma Psicologia comprometida com a liberdade humana que se projeta enquanto ciência e profissão como ins trumento de luta por essa liberdade precisa se aproximar da reli gião fazendo desta relação mais um espaço de promoção do ser humano valorizando sua diversidade de existir e sua capacidade de transformação do mundo e de sua subjetividade Laicidade um conceito dentro da história do pensamento Façamos agora uma reflexão sobre a laicidade enquanto pa radigma para a ciência Para isso precisamos primeiro contex Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 14 tualizar a ciência em sua construção histórica enquanto episte mologia pois a mesma não nasce laica Muito pelo contrário a ciência palavra que vem do latim scientia sabedoria conhe cimento sempre foi propriedade de uns poucos privilegiados eleitos que acabavam por isso detendo o poder sobre as grandes massas e na maior parte da história este pôde produzir o conhe cimento que explicava que a realidade dada aos eleitos estava vinculada à religião Esses eleitos eram escolhidos pelos próprios deuses formando assim uma elite políticoreligiosa que formou a sociedade ocidental nas suas bases tradicionais grecojudaico romana cristãs O laico ou leigo aquele que não pertencia a essa elite políticoreligiosa que produzia o conhecimento ou fazia ciência se preferirem ficava condenado a reproduzir o modelo a ele imposto pela lógica oficial Podemos fazer uma rá pida comparação à condição de alienação1 proposta por Marx Neste momento podemos entender que a laicidade era uma condição do ser humano alienado Devemos ainda reconhecer que o conhecimento produzido pela razão que é o instrumento intelectual que o ser humano utiliza para explicar o mundo este ve por muito tempo a serviço de um poder religioso que deveria ser utilizado como parâmetro para a definição da verdade e por isso a baliza da construção do conhecimento ou da ciência2 Essa ligação entre razão e fé pode ser melhor entendida quando observamos a necessidade humana mais perene a busca pela ver dade A certeza de que a razão é um instrumento confiável para nos levar à verdade nunca se deslocou da convicção de que essa verdade 1 MÉSZÁROS István A teoria da alienação em Marx São Paulo Boitempo 2006 2 Um texto interessante para compreender esta trajetória do pensamento ociden tal é FERRY Luc Aprender a viver Filosofia para os novos tempos Rio de Janeiro Objetiva 2010 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 15 é da ordem do transcendente e que sua descoberta passa por uma revelação do absoluto ou seja é uma descoberta metafísica3 A perspectiva da metafísica como lugar da verdade ou do real acompanha a história do pensamento ocidental e pode ser vis ta no pensamento dos présocráticos que buscavam a perfeição do cosmos em Platão com o mundo das ideias passando por Agostinho e Tomás de Aquino e até mesmo em Kant o filósofo da razão pura e Hegel com sua fenomenologia do espírito Essa compreensão foi a garantia para que o conhecimento sobre a ver dade absoluta ficasse sobre a salvaguarda daqueles que tinham uma certa intimidade com esse universo transcendente Essa relação de intimidade entre o conhecimento religião e poder e seus desdobramentos no cenário da sociedade laica é muito bem apresentada por Lott em seu livro sobre o desencantamento do mundo de Gauchet4 A laicidade só ganha destaque na produção do conhecimento como paradigma da ciência na modernidade quando o poder político procura se desvincular do poder religioso a partir da as censão de uma nova classe social a burguesia5 A razão então muda de dono e passa a servir aos interesses desse novo estrato social se vinculando fortemente ao que na Grécia antiga era de 3 Podemos ver este viés místico mesmo na ciência da natureza e um texto que apresenta com propriedade esta relação é FORATO Thaís Cyrino A Filosofia místi ca e a doutrina newtoniana uma discussão historiográfica Alexandria Revista de Educação em Ciência e Tecnologia Florianópolis v 1 n 3 p 2953 nov 2008 ISSN 19825153 Disponível em httpsperiodicosufscbrindexphpalexandriaar ticleview37825 Acesso em 27 fev 2017 DOI httpdxdoiorg105007x 4 LOTT H Religião política e democracia a sociedade desencantada de M Gauchet São Paulo Fonte Editorial 2017 5 Para melhor compreensão deste processo histórico HOBSBAWM Eric J A Era das Revoluções Rio de Janeiro Ed Paz e Terra 2003 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 16 nominado de techine que se distingue do conceito de episteme6 A ciência que era a produção de episteme passa a ser a produ ção de techine Mas existe na techine moderna da burguesia uma diferença fundamental da techine grega a moderna está atrelada a outros paradigmas que são o positivismo pragmático e a economia de mercado é uma tecnologia funcional a serviço da produção ins trumental visando os bens de consumo e o acúmulo de capital para a burguesia Está oficialmente inaugurado o capitalismo como modelo econômico e político e para tanto a visão laica de Estado e a produção do pensamento são fortes aliadas pois trazem no seu bojo a perspectiva ideológica da liberdade É pre ciso observar que neste momento mesmo os movimentos reli giosos se apropriam dessa revolução iluminista como é o caso do protestantismo Um texto clássico que apresenta essa articulação entre religião e capitalismo é o livro de Weber7 Agora na modernidade o laico ou leigo aquele que não é iniciado e por isso está fora da religião passa a ter voz e sua ca pacidade racional não é mais desprezada pela falta de vinculação com uma doutrina de fé A laicidade passou de uma condição a de não religioso para um conceito que estava presente na es sência da liberdade ser laico passa a significar ter liberdade para circular entre os diferentes mundos que começam a surgir ter um olhar crítico O laico é o ser humano que tem o benefício da dúvida cartesiana 6 MOURA Lucas de AZAMBUJA Celso Candido de O conceito de técnica segundo Aristóteles XI Salão de Iniciação Científica PUCRS 09 a 12 de agosto de 2010 7 WEBER M A ética protestante e o espírito do capitalismo São Paulo Comp das Letras 2004 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 17 Nessa perspectiva a laicidade passa a ser condição para um Estado livre e democrático em contraposição ao Estado despóti co dos reis e religiosos também para o pensamento pragmático e positivo de uma ciência tecnológica que vinha para transformar a realidade física do mundo O laico ou leigo aquele que não tinha autoridade agora estava livre para expressar suas ideias8 Talvez o principal equívoco na utilização do termo nos tempos atuais principalmente no senso comum é a compreensão de que ao se afastar dos dogmas e doutrinas de uma tradição re ligiosa a laicidade bane a religiosidade da experiência humana É preciso esclarecer que o processo é exatamente o contrário Ao se afastar de um modelo religioso único a laicidade se abre para a experiência religiosa em toda a sua multiplicidade reco nhecendo que a dimensão espiritual do ser humana não pode ser restrita a aspectos culturais e históricos pois diz respeito à ipseidade do ser humano compondo sua essência A expressão fenomenológica dessa espiritualidade essa sim vai estar marcada pela cultura e pelo tempo histórico e por isso deve ser compreendida nesse terreno Mas a espiritualidade é da ordem do transcendente e para ser compreendida em sua es sência como afirma Otto9 precisa ser vivenciada senão não terá sentido os instrumentos da razão não são suficientes para a per cepção consciente dessa dimensão humana 8 Uma história emblemática para ilustrar esse período é o julgamento de Galileu Galilei RODRIGUES Wellington Gil BAIARDI Amílcar Dificuldades de comu nicação científica em um contexto de censura o caso Galileu III Conferencia Lati noamericana del International History and Philosophy of Science Teaching Group IHPST Noviembre Santiago de Chile 2014 Disponível em httplaboratoriogre ciaclwpcontentuploads201507GILYBAIARDICO117pdf Acesso em 20 fev 2017 9 OTTO R O sagrado Lisboa Edições 70 1990 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 18 Quando aplicado ao pensamento ou à produção de conheci mento o conceito de laicidade se apresenta como possibilidade de uma visão crítica sobre a verdade um questionamento ne cessário ao pesquisador que não deve se contentar com o dado buscando sempre novas compreensões do real e promovendo uma hermenêutica livre e dinâmica diferente da exegese dura e dogmática imposta pelas instituições religiosas Para concluirmos nosso breve comentário sobre a laicidade vamos retomar nossa reflexão inicial para constatar que ao con trário da condição de laico imposta às pessoas pela Igreja Católi ca na Idade Média classificandoas assim como não religiosas e portanto não aptas à produção do conhecimento e não capazes de reconhecer a verdade o conceito de laicidade da modernida de não se coloca como oposição ao religioso e sim como possibi lidade de um diálogo epistemológico e cultural onde a diversida de religiosa deve ser respeitada e legitimada como manifestação da espiritualidade que nos compõe O Estado laico moderno portanto não se pretende um Esta do ateu e sim um Estado plural que permite que a diversidade religiosa se apresente sem reservas e o pensamento laico por sua vez não é um pensamento que desconsidera a dimensão de espiritualidade mas o observa enquanto experiência ontológica Definindo religião e pensando sua relação com a Psicologia Quando procuramos definir conceitos o caminho natural do raciocínio lógico é buscar nas raízes etimológicas do termo as evi dências de seu significado Com o termo religião esse exercício Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 19 é complicado se ficarmos apenas na vertente latina do termo já teremos um problema enorme pois observamos que essa palavra da língua portuguesa não tem apenas uma origem etimológica Temos o vocábulo religio palavra utilizada pelos romanos para di zer dos cultos prestados aos deuses do panteão de Roma10 implica va em todo o conjunto de ritos direcionados aos diversos deuses que compunham o universo mitológico da Roma Antiga bem próxima da estrutura mítica do mundo grego Nesse contexto as tradições monoteístas do Livro Sagrado não se caracterizavam pela prática da religio ou seja o judaísmo e o cristianismo11 não eram religião Em uma outra vertente temos o termo religare como referência etimológica esta inclusive a versão de maior apego popular que é a junção do prefixo re com a palavra ligare dando o sentido de uma fusão mais profunda uma ligação mais intensa ou uma religação com uma unidade perdida aquilo que Freud entendeu ser típico da neurose mas que na racionalidade religiosa subten dese uma ligação com o sagrado algo que faz a vida efêmera do ser humano mortal ganhar uma condição de transcendência que lhe proporciona uma percepção de perenidade uma religação com o absoluto que permite o sentimento de unidade ou sentimento oceânico como quis mostrar a Freud seu amigo religioso12 Uma terceira possibilidade hermenêutica de leitura etimoló gica da palavra religião na língua latina é a sua vinculação com o verbo relegere que significa revisar ou reler e se refere à necessi dade exegética para a leitura do texto sagrado Os textos sagrados 10 Sobre religião romana ver CARDONA F L Mitologia romana Barcelona edicomunicación 1996 11 O islamismo surge um pouco mais tarde por volta de 600 dC quando o cristia nismo já havia sido incorporado pelo Império Romano o que aconteceu no século III 12 FREUD S O malestar na civilização obras completas vol XXI Rio de Janei ro Imago 1996 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 20 precisam sempre estar sendo relidos em condições específicas de um tempo de uma cultura de uma política e de uma ética para terem sentido e serem úteis para a vida das pessoas13 Vejam estou aqui apenas nos termos de origem latina que é a mãe de nossa língua portuguesa mas poderíamos estender nos so estudo etimológico para outra vertente linguística importante para a formação de nossa cultura e que se mostra muito presente em nosso vocabulário a língua grega onde temos o termo Κοινή koiné comum apropriado pelos cristãos para nomear suas co munidades que é também uma língua popular na Grécia Antiga utilizada na escrita de textos bíblicos Do mesmo radical temos o termo koinonia comunhão que é outro princípio bastante próximo do universo simbólico cristão que foi a tradição religio sa predominante na formação de nosso povo e de nossa cultura Esses pequenos exemplos foram postos para demonstrar a di ficuldade de definição do conceito de religião algo ampliado pela apropriação popular da palavra carregandoa com uma série de significantes alguns favoráveis outros contrários à aceitação desta como um termo qualificado para a compreensão mais precisa do ser humano como requer a ciência principalmente a ciência moderna Mas se pretendemos estudar o fenômeno é preciso que o identi fiquemos a partir de critérios claros e bem definidos Precisamos ser capazes de descrever e identificar sua manifestação fenomenológica para então compreender sua essência Procuro construir minha definição do conceito de religião a partir de três critérios 1 Os aspectos sociológicos que vão nos apresentar as instituições religio sas que são as que se formam como grupos organizados com regu lamentos próprios código moral e hierarquia de poder tendo como 13 AVEZEDO Cristiane de A procura do conceito de religio entre o relegere e o religare Religare Juiz de Fora v 7 1 2010 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 21 catalisador o universo mítico e as experiências de transcendência que dão ao ser humano a evidência do sagrado Quando estudamos essas instituições é preciso compreender sua posição política seus interesses econômicos e suas relações com as outras instituições sociais como a família a escola o governo 2 Os aspectos antro pológicos que nos mostram a tradição religiosa os mitos os ritos ou seja a forma estética que o sagrado ganha dentro das culturas e do tempo histórico influenciando na construção ética de um povo e consequentemente na formação das subjetividades que se dão nesse contexto 3 Os aspectos psicológicos que se referem à ex periência vivenciada pelo sujeito ou à percepção subjetiva do sagra do os sentimentos as sensações a consciência as atitudes que são próprias dessa experiência fazendo dela um fenômeno específico que é denominado religioso É claro que esses três aspectos acon tecem num intricado jogo que é a existência e não pode portanto ser pensado de maneira pontual deslocado de seu todo o que não significa por sua vez que não possamos descrever cada um deles em suas particularidades fenomenológicas aparentes Para descrevermos de forma mais criteriosa os três aspectos do conceito de religião que procuro trabalhar neste texto me parece ser adequado trazer para reflexão a relação que a Psicologia enquanto ciência e profissão pode ter com este fenômeno aqui conceituado Quando pensamos nas instituições religiosas e na sua função so cial não podemos desconsiderar as relações intersubjetivas14 um campo fértil de estudo para a Psicologia Social assim como para análise institucional área específica dentro da Psicologia Social15 14 HÖSLE Vittorio O sistema de Hegel o idealismo da subjetividade e o proble ma da intersubjetividade São Paulo Loyola 2007 15 BAREMBLITT Gregório F Compêndio de análise institucional e outras cor rentes teoria e prática Belo Horizonte Instituto Félix Guattari 2002 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 22 que pode e deve ser aplicada ao estudo dessas instituições religio sas apenas para citar duas possibilidades de interlocução com a Psi cologia Estamos falando de um aspecto da religião que se apresenta como objeto de estudo para que a Psicologia possa compreender o ser humano As instituições religiosas como todas as outras ins tituições cumprem um papel fundamental na formação das pes soas influenciando diretamente na organização da personalidade e na produção do adoecimento que promove sofrimento e a dor que tanto nos debilita Temos autores importantes que desenvolveram e outros que desenvolvem pesquisas nesse campo e servem de referência para esta análise psicossocial da religião instituída Podemos ci tar como exemplo textos clássicos da história da Psicologia como O que é verdadeiro em religião16 ou a Psicologia dos povos de Wundt onde o autor desenvolve sua ideia de religião do medo17 E também autores contemporâneos como Oro e Ureta18 Perei ra e Penzim19 Steil20 dentre tantos outros São todos estudos de 16 FREUD S Moisés e o monoteísmo obras completas vol XXIII Rio de Janei ro Imago 1996 17 JORGE Pe J S Cultura religiosa o homem e o fenômeno religioso São Paulo Loyola 1994 18 ORO Ari Pedro URETA Marcela Religião e política na América Latina uma análise da legislação dos países Horiz antropol Porto Alegre v 13 n 27 p 281 310 junho 2007 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttex tpidS010471832007000100013lngennrmiso Acesso em 01 fev 2017 httpdxdoiorg101590S010471832007000100013 19 PEREIRA William César PENZIM Adriana Brandão Análise Institucional na vida religiosa caminhos de uma intervenção Estudos e pesquisas em Psicologia UERJ RJ v 7 n 3 p 521540 dez 2007 Disponível em httpwwwrevispsiuerj brv7n3artigospdfv7n3a13pdf Acesso em 30 jan 2017 20 STEIL Carlos Alberto Pluralismo Modernidade e Tradição Transformações do Campo Religioso Ciências Sociais e Religião Argentina v 3 n 3 2001 Disponível em httpwwwseerufrgsbrCienciasSociaiseReligiaoarticleview2172 Acesso em 29 jan 2017 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 23 grande relevância para uma compreensão mais ampla da inter subjetividade e seus contornos Ao dirigirmos nosso olhar para os elementos simbólicos das tradições seus signos ritos mitos sua construção ética e moral seus valores estéticos nos lembramos de autores como Jung21 Freud22 Campbell23 Podemos a partir dessas reflexões observar como nossa realidade existencial está marcada por esse imagi nário simbólico que dá a ela significado e sentido como nossas emoções valores e reações se confundem com este universo má gico nada racional o mundo imaginário dos símbolos Estes aspectos da religião o sociológico e o antropológico o institucional e o cultural não causam muitos problemas para a racionalidade científica moderna que a Psicologia utiliza desde o século XIX é a religião se apresentando como objeto de estudo assim como esse modelo o entende visto a partir dos referenciais epistemológicos de outras disciplinas consolidadas com as quais a Psicologia sempre dialogou com facilidade O terceiro ponto no entanto pode trazer alguns embaraços para o seu estudo e à maneira como a Psicologia deve se apro priar desse fenômeno construindo com este um diálogo mais fértil para o ser humano Estamos falando da experiência religio sa em si como nos apropriar de uma experiência vivenciada pelo outro sem utilizar para isso de nossos preconceitos 21 JUNG C G Psicologia e religião obras completas vol 111 Petrópolis Vozes 2011 Resposta a Jó obras completas vol 114 Petrópolis Vozes 2011 22 FREUD S Totem e tabu obras completas vol XIII Rio de Janeiro Imago 1996 23 CAMPBELL J O poder do mito São Paulo Palas Athena 1990 org Mito sonhos e religião nas artes na Filosofia e na vida contem porânea Rio de Janeiro Ediouro 2001 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 24 Entramos aí numa racionalidade um campo epistemológico que se denomina fenomenologia da religião Não existe outro método possível para se tomar conhecimento da experiência sem utilizar os mediadores conceituais das teorias científicas ou teo lógicas que não seja o proposto por Husserl a saber voltar às coisas mesmas Esta máxima ou axioma husserliano quando aplicada no estudo do fenômeno religioso nos leva a uma expe riência direta imediata com isso que se identifica como sagrado experiência esta que só é possível a partir do exercício da epo ché24 que nos permite vivenciar a unidade sujeitoobjeto sem o distanciamento provocado pelas mediações da linguagem Autores da estirpe de Van der Leeuw25 Eliade26 e Otto27 se so mam a nomes contemporâneos da Psicologia e da ciência da reli gião como Mendonça28 Amatuzzi e Baungart29 Machado30 Goto31 24 MARTINI Renato da S A fenomenologia e a epoché Revista de Filosofia v 21 n 1 UNESP 1999 25 VAN DER LEEUW G Fenomenologia de la religión México Fondo de cultura economica 1964 26 ELIADE M Tratado de história das religiões São Paulo Martins Fontes 1998 27 OTTO R O sagrado Lisboa edições 70 1990 28 MENDONÇA A G de Fenomenologia da experiência religiosa Numen re vista de estudos e pesquisa da religião v 2 nº 2 Juiz de Fora 1999 Disponível em httpsnumenufjfemnuvenscombrnumenarticleview873 Acesso em 01 fev 2017 29 AMATUZZI M M BAUNGART T de A A Experiência religiosa e cres cimento pessoal uma compreensão fenomenológica Rever ano 7 dezembro São Paulo 2007 Disponível em httpwwwpucspbrreverrv42007ibaungarthtm Acesso em 30 jan 2017 30 MACHADO Jorge A T Os indícios de Deus no homem uma abordagem do método fenomenológico de Martin Heidegger Porto Alegre EDIPUCRS 2006 31 GOTO Tommy Akira Fenomenologia e experiência religiosa em Paul Tillich Rev Abordagem Gestalt Goiânia v 17 n 2 p 137142 dez 2011 Disponível em httppepsicbvsaludorgscielophpscriptsciarttextpi dS180968672011000200004lngptnrmiso Acesso em 02 fev 2017 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 25 Giovanetti32 dentre tantos outros pesquisadores no qual me in cluo no estudo sistemático e criterioso do fenômeno religioso em sua essência A compreensão de que a dimensão da espiritualidade é cons titutiva do se humano e que por isso vai compor juntamente com a história ou temporalidade a cultura ou produção simbó lica materialidade espacial o complexo fenômeno que identifi camos como subjetividade é o que nos dá identidade no mundo das coisas que nos diferencia enquanto entes Essa dimensão existencial espiritualidade no entanto por mais que seja exaustivamente estudada e demonstrada fenome nologicamente pelos estudiosos ainda tem muita dificuldade de adesão no meio científico tradicional33 pois da experiência reli giosa mística ou ainda espiritual o que sobra para ser observado é a percepção do sujeito que vai aparecer através de sua narra tiva daquilo que os próprios místicos chamam de inefável algo pouco conclusivo para alguns Mas não é assim também quando estudamos a origem do universo e propomos o Big Bang A Psicologia não deveria ter problemas com esta característica de inconsistência do fenômeno religioso afinal foi nesse campo de saber que se construiu o conceito de inconsciente e também a compreensão de que o desejo é uma força que não contro lamos completamente dois princípios bastante fora do padrão métrico da ciência moderna Mas mesmo a Psicologia demons trou resistência em se apropriar do conceito de espiritualidade 32 GIOVANETTI JP O sagrado e a experiência religiosa na psicoterapia In MASSINI M MAHFOUND M org Diante do mistério Psicologia e senso religioso São Paulo Edições Loyola 1999 33 Como tradicional estou chamando uma ciência que se prende ao modelo mo derno ancorado nos paradigmas cartesiano positivista e empiristas Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 26 para a compreensão da representação do que seja a subjetividade humana e maior resistência ainda em pensar na utilização da experiência religiosa como instrumento de sua prática O que podemos afirmar no entanto é que essa resistência não é própria da religião e nem da ciência mas sim dos atores que respondem por esses lugares O que assistimos neste ringue é mais de ordem da luta pelo poder do que pelo saber O objetivo deste texto é contribuir para amenizar essa rixa criando condições epistemológicas e metodológicas para que a Psicologia compreenda a valor deste diálogo abrindo inclusive oportunidade para se pensar uma incorporação instrumental da espiritualidade na prática psicológica fazendo dessa dimensão existencial mais um veículo na promoção da saúde Quando falamos de uma Psicologia comprometida com a pro moção de um mundo mais saudável onde as pessoas tenham condição de viver de maneira mais digna e respeitosa e onde as diferenças não se transformem em desigualdade estamos falan do de uma sociedade em que a expressão da experiência religiosa em toda sua diversidade deve ser reconhecida não apenas como uma forma de manifestação cultural que por si só já deveria ser preservada mas como uma maneira de promoção de saúde Afinal estamos falando do equilíbrio necessário para que corpo e mente manifestem a subjetividade em todo seu potencial A religião assim como o ser humano que a vivencia em sua subjetividade e intersubjetividade não pode ser resumida em conceitos fechados numa estrutura rígida aprisionada em teo rias definitivas e excludentes pois estão religião e ser humano sempre em processo transformando a si e o meio ao seu redor no movimento que é a essência da existência Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 27 Pensando o conceito de espiritualidade para a Psicologia Neste curto ensaio vou me ater a um ponto que para mim ressalta com maior evidência quando pensamos esse diálogo en tre Psicologia e religião o conceito de espiritualidade Para início de conversa é preciso pontuar que quando tratamos de conceito não estamos falando de percepção subjetiva de sentimentos ou de construtos dogmáticos O conceito se caracteriza por ser uma des crição fenomenológica rigorosa uma representação semântica que dá significado ao objeto por isso o conceito é universal perene não pode ser relativizado O termo vem do latim conceptus que por sua vez é uma conjugação do verbo concipere que significa conter completamente formar dentro de si Por isso quando construí mos um conceito não podemos fazêlo sustentado por sensações extemporâneas ou percepções subjetivas ele precisa estar calçado pela razão e seus princípios axiomáticos que são universais34 É com esse pressuposto que apresento o termo espiritualidade como um conceito e não como uma percepção ou uma crença um produto do desejo ou fruto do imaginário de alguma pessoa em particular Vamos então apresentar de forma criteriosa e sis temática o conceito de espiritualidade a partir da perspectiva fe nomenológica no Brasil bem representada por pensadores como Francisco Holanda Angela Alles Belo Mauro Amatuzzi José P Giovanette e Tomy Akira Goto A ciência produz os seus conceitos a partir da observação em pírica e sistemática dos fenômenos estudados e é desse lugar que 34 Para uma melhor compreensão do tema JUNIOR João F JASMIM Marcelo orgs História dos conceitos diálogos transatlânticos Rio de Janeiro EDPUCRIO Ed LoyolaIUPERJ 2007 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 28 podemos afirmar que o ser humano se mostra fenomenologica mente como um ser aberto O que significa ser aberto Um ser que não está ontologicamente determinado um ser que se trans forma se adapta se refaz no ato de existir Isso talvez seja a úni ca e real diferença que nos distingue dos outros seres vivos deste planeta que já nascem programados para executar certas funções e não saem de seus scripts Jamais veremos um leão produzindo mel ou um elefante voando a não ser que seja o Dumbo Essa abertura ontológica do ser humano é bem apresentada por Rosa35 Essa condição radical de abertura ou incompletude do ser hu mano foi também identificada por diversos observadores da nossa natureza Freud a chamou de falta Buber Chang e outros chama ram de intersubjetividade Heidegger de dasein ser aí Rogers de congruência Não estou aqui querendo igualar esses conceitos pois são construtos que têm sentido próprio dentro de seus uni versos epistemológicos o que faço aqui é o exercício da epoché fenomenológica como propõe Husserl produzindo a redução que nos leve à essência no caso de cada um desses conceitos e aí veremos que todos apontam para essa noção de incompletude do sujeito que o faz necessitar de um outro que o preencha36 É essa mesma condição humana que lhe permite vivenciar o que chamamos de experiência de transcendência uma experiên cia que no campo perceptivo da subjetividade pode ser descrita como uma sensação de preenchimento de plenitude que nos faz sentir o tempo parar Algumas pessoas relatam uma sensa ção de paz um sentimento de tranquilidade e segurança outros 35 ROSA Merval Antropologia filosófica uma perspectiva cristã Rio de Janeiro JUERP 1996 36 GUERRA Alba G SIMÓES P Dialética da falta da incompletude à transcen dência São Paulo Escuta 1995 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 29 falam de transbordamento das emoções e tem ainda os que falam de uma experiência que produz uma sensação de conforto e prazer Otto a define a partir de três termos em latim misteriun facinans tremendun37 Podemos observar essa experiência em situações bastante dis tintas Por exemplo quando dois amantes conseguem atingir o orgasmo numa transa envolvente e apaixonada e ficam extáticos no segundo seguinte da explosão químicoorgânica de seus cor pos talvez por isso os orientais compreenderam que a relação sexual é um veículo místico e para quem não sabe o Kama Sutra é um livro religioso38 quando nos perdemos na contemplação do horizonte de frente ao mar ou no cume de uma montanha39 quando o cientista descobre a solução do problema que o inquie ta em sua pesquisa quando o artista vislumbra sua obra ainda por sair mas já composta em sua mente Espiritualidade não é outra coisa senão essa condição onto lógica do ser humano uma dimensão constitutiva de sua mani festação fenomenológica neste mundo esta abertura radical que lhe permite vivenciar a experiência de transcendência e reco nhecer no outro aquilo que lhe falta reconhecer que o outro lhe completa e que por isso somos seres intersubjetivos o outro se apresenta como o nosso complemento Esse conceito portanto é fundamental para a Psicologia pois nossa subjetividade está impreterivelmente marcada por esta condição de abertura pró pria da incompletude existencial que nos constitui 37 OTTO R O sagrado Lisboa edições 70 1990 38 Sobre essa relação entre sexo e espiritualidade WEIL P Mística do sexo Belo Horizonte Itatiaia 1976 39 COMTESPONVILLE A O espírito do ateísmo introdução a uma espirituali dade sem Deus São Paulo WMF Martins Fontes 2007 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 30 Não podemos confundir esse conceito com a compreensão que o senso comum tem do termo ligandoo à ideia de fantasma ou seres sobrenaturais visão esta que foi fortemente marcada pela perspectiva de tradições espíritas no campo da religião que devem ser respeitadas em suas particularidades doutrinais mas não devem ser utilizadas como parâmetro para a construção do conceito científico que devemos utilizar na discussão psicológica Conclusão Compreendo o quão complexo é tratar dessa temática pois ainda vivemos no ambiente científico brasileiro um suspiro po sitivista cartesiano que nos coloca em alguma medida na condi ção do espírito de época moderno ambiente este que dificulta um diálogo entre o pensamento que assume a condição de cien tífico e o pensamento que ficou destinado a um gueto religioso No entanto se nos propomos a produzir uma análise crítica tal análise precisa começar a ser feita na própria construção do co nhecimento como vemos no texto de Feyerabend40 A crítica que levanto não é nova já havia sido detectada por Husserl em 193441 mas é fundamental para a construção de uma Psicologia que seja comprometida com o ser humano com a promoção da qualidade de vida das pessoas e com a sustenta bilidade de nossa casa mãe a Terra Estou falando da necessida de do resgate ao conceito de espiritualidade nas ciências que se propõem a trabalhar com o ser humano A perspectiva de uma ciência humana que não considera a dimensão espiritual é de 40 FEYERABEND P Contra o método Rio de Janeiro F Alves 1989 41 HUSSERL E A crise da humanidade europeia e a Filosofia Porto Alegre EDIPUCRS 208 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 31 uma epistemologia empobrecida e uma metodologia ineficiente Por isso não podemos pensar uma Psicologia verdadeiramente comprometida com a promoção da saúde humana que não te nha em seus estudos um olhar dirigido para a espiritualidade como instrumento dessa práxis Seguindo este raciocínio crítico é preciso compreender que a condição de laicidade destinada ao pensamento científico de pois da modernidade não pode ser apontada como justificativa para um afastamento entre essas racionalidades pelo contrário a perspectiva laica é exatamente a perspectiva do diálogo onde a diversidade é legitimada e reconhecida como resultado da condi ção ontológica do ser Essa aproximação entre Psicologia e religião no entanto não deve ser feita de qualquer forma afinal estamos falando de uma reflexão criteriosa e por isso muito bem definida Um ponto chave para essa construção dialogada é a identidade de cada ra cionalidade Nessa relação uma não deve se submeter à outra mas sim contribuir ambas para a ampliação do conheci mento que podemos ter do ser humano neste mundo e nesse aspecto em alguns momentos a crítica se volta para a religião Quando esta é estudada pela Psicologia nos seus fenômenos so ciais a religião enquanto instituição e tradição não vai fugir de uma análise sobre as relações de poder sobre sua função de controle dos indivíduos dentro do sistema Portanto é fundamental para a Psicologia compreender e se apropriar da espiritualidade como instrumento de transformação do ser humano e da sociedade E para isso precisamos dirigir nossa crítica para nós mesmos enquanto pensadores de uma epistemologia e pesquisadores que utilizam de um método no estudo e na abordagem do ser humano Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 32 Ao mesmo tempo na construção de uma realidade social mais justa e ética é necessário que as instituições sejam revistas em seus valores e estrutura e aí a crítica se volta às instituições religiosas e ao papel que estas cumprem dentro desse modelo social e político Sabemos que toda essa complexa trama está participando de um movimento holístico que vai tratar da vida e do universo da existência e da não existência uma trama que nos coloca de volta à especulação filosófica e que portanto não tem fim assim como a tela de Penélope42 Mas também sabemos que o nosso trabalho é participar ativamente deste processo de construção eterna do saber e do fazer neste mundo e é com esse compro misso que nos propomos a estar à frente desse debate Referências bibliográficas AMATUZZI M M BAUNGART T de A A Experiência reli giosa e crescimento pessoal uma compreensão fenomenológica Rever ano 7 dezembro São Paulo 2007 AVEZEDO Cristiane de A procura do conceito de religio entre o relegere e o religare Religare Juiz de Fora vol7 1 2010 BAREMBLITT Gregório F Compêndio de análise institucional e outras correntes teoria e prática Belo Horizonte Instituto Fé lix Guattari 2002 CAMPBELL J O poder do mito São Paulo Palas Athena 1990 org Mito sonhos e religião nas artes na Filo sofia e na vida contemporânea Rio de Janeiro Ediouro 2001 42 HOMERO Ilíada e Odisseia Rio de Janeiro Nova Fronteira 2015 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 33 CARDONA F L Mitologia romana Barcelona edicomunica ción 1996 COMTESPONVILLE A O espírito do ateísmo introdução a uma espiritualidade sem Deus São Paulo WMF Martins Fon tes 2007 ELIADE M Tratado de história das religiões São Paulo Mar tins Fontes 1998 FERRY Luc Aprender a viver Filosofia para os novos tempos Rio de Janeiro Objetiva 2010 FEYERABEND P Contra o método Rio de Janeiro F Alves 1989 FREUD S Moisés e o monoteísmo obras completas vol XXIII Rio de Janeiro Imago 1996 FREUD S O malestar na civilização obras completas vol XXI Rio de Janeiro Imago 1996 FREUD S Totem e tabu obras completas vol XIII Rio de Janeiro Imago 1996 GOTO Tommy Akira Fenomenologia e experiência religiosa em Paul Tillich Rev Abordagem Gestalt Goiânia v 17 n 2 p 137142 dez 2011 GUERRA Alba G SIMÓES P Dialética da falta da incomple tude à transcendência São Paulo Escuta 1995 HOBSBAWM Eric J A Era das Revoluções Rio de Janeiro Ed Paz e Terra 2003 HOMERO Ilíada e Odisseia Rio de Janeiro Nova Fronteira 2015 HÖSLE Vittorio O sistema de Hegel o idealismo da subjetivida de e o problema da intersubjetividade São Paulo Loyola 2007 HUSSERL E A crise da humanidade europeia e a Filosofia Porto Alegre EDIPUCRS 2008 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 34 JORGE Pe J S Cultura religiosa o homem e o fenômeno reli gioso São Paulo Loyola 1994 JUNG C G Psicologia e religião obras completas vol 111 Petrópolis Vozes 2011 Resposta a Jó obras completas vol 114 Petrópo lis Vozes 2011 JUNIOR João F JASMIM Marcelo orgs História dos con ceitos diálogos transatlânticos Rio de Janeiro EDPUCRIO Ed LoyolaIUPERJ 2007 LOTT H Religião política e democracia a sociedade desencan tada de M Gauchet São Paulo Fonte Editorial 2017 MACHADO Jorge A T Os indícios de Deus no homem uma abordagem do método fenomenológico de Martin Heidegger Porto Alegre EDIPUCRS 2006 MARTINI Renato da S A fenomenologia e a epoché Revista de Filosofia v 21 n 1 UNESP 1999 MASSINI M MAHFOUND M org Diante do mistério Psicologia e senso religioso São Paulo Edições Loyola 1999 MENDONÇA A G de Fenomenologia da experiência relligio sa Numen revista de estudos e pesquisa da religião v 2 n 2 Juiz de Fora 1999 MÉSZÁROS István A teoria da alienação em Marx São Paulo Boitempo 2006 MOURA Lucas de AZAMBUJA Celso Candido de O Concei to de técnica segundo Aristóteles XI Salão de Iniciação Científi ca PUCRS 09 a 12 de agosto de 2010 ORO Ari Pedro URETA Marcela Religião e política na Améri ca Latina uma análise da legislação dos países Horiz Antropol Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 35 Porto Alegre v 13 n 27 p 281310 jun 2007 OTTO R O sagrado Lisboa edições 70 1990 PEREIRA William César Castilho PENZIM Adriana Bran dão Análise Institucional na vida religiosa caminhos de uma in tervenção Estudos e Pesquisas em Psicologia UERJ RJ v 7 n 3 p 521540 dez 2007 RODRIGUES Wellington Gil BAIARDI Amílcar Dificulda des de comunicação científica em um contexto de censura o caso Galileu III Conferencia Latinoamericana del International History and Philosophy of Science Teaching Group IHPST nov Santiago de Chile 2014 ROSA Merval Antropologia filosófica uma perspectiva cristã Rio de Janeiro JUERP 1996 STEIL Carlos Alberto Pluralismo Modernidade e Tradição Transformações do Campo Religioso Ciências Sociais e Religião Argentina v 3 n 3 2001 VAN DER LEEUW G Fenomenologia de la religión México Fondo de cultura economica 1964 WEBER M A ética protestante e o espírito do capitalismo São Paulo Companhia das Letras 2004 WEIL P Mística do sexo Belo Horizonte Itatiaia 1976 A religião e as questões de gênero construções do conceito de espiritualidade na compreensão da diversidade sexual REINALDO DA SILVA JúNIOR Psicólogo doutor em Ciência da Religião professor da UEMG Divinópolis conselheiro do CRP 04 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 37 Resumo As instituições religiosas procuram exercer um forte controle sobre seus adeptos e um campo onde esse domínio pode ser sentido de maneira determinante é a sexualidade Por isso a con cepção de gênero se torna um fator fundamental na construção do discurso ideológico dessas instituições que tendem a descon siderar a diversidade sexual enquanto componente na formação da identidade de gênero Essa comunicação se propõe discutir como a liberdade sexual e a construção da identidade de gênero em toda a sua diversidade são expressões da dimensão de espiri tualidade humana que se caracteriza pela sua condição de aber tura e faz do ser humano um sujeito em formação e por isso um sujeito de múltiplas possibilidades inclusive na construção de sua identidade sexual É preciso diferenciar os interesses das instituições religiosas que se alinham politicamente com grupos sociais na intenção de garantir seu espaço de poder da experiên cia religiosa ou espiritual que nos põe em contato com o outro produzindo no ser humano a possibilidade de uma consciência ética A expressão da liberdade própria do espírito aparece feno menologicamente no mundo das coisas pela multiplicidade No campo sexual essa característica se apresenta na construção de identidades de gênero que não estão engessadas num determi nismo incompatível com o espírito humano Palavraschave Gênero Religião Espiritualidade Liberdade Fenomenologia Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 38 Introdução A religião é um fenômeno revelador da estrutura social de um povo A partir de seu estudo temos acesso a condições específi cas de organização das relações afetivas da moral e de como as pessoas expressam e convivem com seus sentimentos e valores O ethos de um grupo é indelevelmente marcado pela sua tradição religiosa sem entrar aqui no mérito de quem é o responsável pela estrutura aparente da sociedade por entender que não se trata de uma leitura linear mas sim de uma complexa trama onde o religioso se apresenta como um elemento do jogo e por isso precisa ser considerado quando procuramos entender como as pessoas se enxergam e enxergam o mundo em que vivem Por isso alguns aspectos culturais e expressões da subjetivi dade e da intersubjetividade no seio de um grupo estruturado só podem ser compreendidos a fundo quando consideramos em seu estudo o fenômeno religioso e as implicações deste nessas interações Dentre essas construções culturais podemos citar a identidade de gênero e os hábitos de convivência coletiva que se configura como a moral do grupo neste caso no que tange ao comportamento sexual Sexualidade e religião sempre estiveram intimamente relacionadas em todas as culturas o controle do corpo para a libertação da alma a relação da fertilidade feminina com a vida e o mistério da criação e a apresentação do falo como o símbolo do poder são apenas algumas analogias possíveis dessa intimidade às vezes favorável e às vezes repressora Entendo que esses são fenômenos de expressão humana e que se apresentam como forte influência na construção do ethos brasi leiro pois estamos falando de experiências que vão dando forma a um modo de ser do povo desenhando sua cultura e os sujeitos que Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 39 a produzem Por isso compreender o significado do feminino e do masculino em nosso meio e como esses elementos aparecem na produção das relações sociais demarcando a correlação de forças na disputa pelo poder nos permite refletir com maior propriedade sobre a ética que emerge desse ethos nacional e não tem como pensar o feminino e o masculino fora da expressão da sexualidade e da identidade de gênero Essa compreensão por sua vez passa pela percepção de como o brasileiro se apropria de sua espirituali dade e de como ele a exercita em seu cotidiano existencial na bus ca de sua liberdade e de seus direitos pois o exercício de aprender a lidar com as forças feminina e masculina que nos habitam é o exercício de nos responsabilizar pelo ser no mundo possibilitando uma apropriação do corpo como expressão de nossa liberdade Poder vivenciar a sexualidade a partir de uma visão mais aber ta sobre o feminino e o masculino visão esta que não reduza esses arquétipos às características biológicas e deterministas de um corpo físico entendido como um corpo pronto mas sim como forças que compõe nossa espiritualidade de maneira dinâmica e transformadora é fundamental para a implementação de uma ética respeitosa para com a diversidade de identidade de gênero e a consequente garantia de direitos de uma população que se vê desprovidas das assistências básicas para o cidadão um público que não tem lugar nas escolas nos programas de saúde na se gurança pública na seguridade social nos direitos trabalhistas dentre outros Com isso afirmamos que ao discutir a liberdade do espírito humano na construção de sua identidade de gênero estamos demarcando um espaço político de luta pelos direitos humanos luta esta de dever conduzir qualquer discussão ética Reconheço que os atravessadores dessa discussão são mui tos tornandoa uma reflexão de grande complexidade Mas essa Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 40 é apenas mais uma vantagem do tema pois a complexidade é sinônimo de riqueza de possibilidades o que faz deste um pro jeto aberto que não se esgota em si mesmo e precisa dialogar com outras práticas e outros olhares para desenvolver um plano mais amplo de análise da realidade brasileira enquanto socieda de além de como acontece a organização da subjetividade e da intersubjetividade no nosso universo cultural Sendo assim este trabalho se propõe a ser mais um problemati zador do que uma pesquisa que venha trazer soluções que esgotem a temática Espero que possamos aqui contribuir com uma gama de pesquisas e racionalidades que ao longo da história vêm trazen do à baila a necessidade de revermos a postura conservadora de um machismo excludente e opressor resultado da cultura patriarcal que nos acompanha desde a antiguidade Discursos como a fenomeno logia o existencialismo a Psicologia analítica de Jung a teoria rei chiana o pensamento feminista do século passado as teorias queer os textos místicos e de diálogo interreligioso são exemplos desse esforço Procuro com esta contribuição me somar a esses discursos na busca de diálogos que nos aproximem de uma verdade inques tionável a essencial necessidade de garantir os direitos amplos para que a dignidade da vida seja respeitada e possamos então desen volver uma ética e um ethos que nos conduzam à justiça e ao bem O texto foi dividido em três momentos No primeiro apresen to de maneira mais livre e sem compromissos de um estudioso do tema uma compreensão sobre identidade de gênero A liber dade que me guia nesta definição tem suas vantagens e também suas desvantagens que não cabem aqui ser apresentadas para que cada leitor faça suas próprias críticas a respeito No segundo momento faço uma reflexão sobre a espirituali dade e sua relação com a expressão sexual pensando a dimensão Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 41 de liberdade humana para então nas considerações finais tercei ro momento tecer alguns comentários sobre a expressão políti ca desta discussão Espero que minha narrativa e análise possam proporcionar dúvidas e levantar problemas que venham produzir novas reflexões dando ao tema a dinâmica que ele merece Compreendendo a identidade de gênero Vivemos numa época onde qualquer perspectiva perenialista é fortemente rejeitada uma reação à hegemonia metafísica da Idade Média e à hegemonia da razão moderna podemos dizer que uma reação até mesmo ao paradigma cósmico que está por trás de todo o pensamento ocidental Nos dias atuais a compreensão da reali dade está intensamente marcada pela transitoriedade pois a con dição de temporalidade se colocou como imperativo da existência em um mundo que Bauman chamou de líquido43 Como ganho advindo deste espírito de época temos a legitimação da diversida de a diferença ganha não apenas visibilidade mas reconhecimen to O sujeito é reconhecido e com ele os direitos do ser humano podem ser reivindicados A consolidação de um mundo plural é a consolidação de um mundo onde o direito à manifestação das diferenças esteja de fato garantido enquanto prática moral Mas como tudo que traz um ganho este acompanha também uma perda Essa dinâmica dialética inclusive é o axioma da pró pria mobilidade paradigmática dessa nova racionalidade O que se perde nesse cenário de efemeridade é exatamente a capacidade de se definir referências seguras uma dificuldade de estabelecer cri térios que posam nos dar sustentação ética uma cegueira para os 43 BAUMAN Zygmunt A cultura no mundo líquido moderno Rio de Janeiro Zahar Editores 2013 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 42 elementos universais que devem ser os orientadores das escolhas do ser humano em sua passagem por este plano existencial aquilo que nos permite reconhecer o bem a virtude o justo Na questão do gênero este paradoxo produzido pela dialética pósmoderna ganha um colorido próprio pois temos que pensar os conceitos de masculino e feminino nessa dinâmica do univer sal e do produzido pela cultura na história Um exercício comple xo que vou procurar desenvolver a seguir lembrando que minha abordagem do tema passa por um olhar fenomenológico mas não se prende aos conceitos husserlianos exercitando um diálogo com outras racionalidades como a Psicologia analítica e autores da temática específica da identidade de gênero e da discussão sobre espiritualidade na Psicologia e ciência da religião Precisamos começar esta conversa reconhecendo que estamos trabalhando com dois conceitos distintos masculino e feminino Portanto partimos da premissa da existência de elementos de diferenciação dessas categorias que podem ser identificados nas suas singularidades de maneira que um não se confunda com o outro Esta noção arquetípica44 do gênero que nos permite saber da existência de um feminino e de um masculino no entanto não deve ser referência quando vamos pensar a identidade de gênero no mundo da cultura pois assim como o sagrado ganha formas diversificadas nas diversas culturas e épocas históricas também a manifestação dos arquétipos no mundo não pode ser padronizada No que diz respeito à manifestação de gênero vou trazer a contribuição de Scott 44 Arquétipo nada mais é do que uma expressão já existente na antiguidade sinônimo de ideia no sentido platônico JUNG C G Os arquétipos e o inconsciente coletivo Petrópolis Vozes 2008 p 87 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 43 Por gênero eu me refiro ao discurso sobre a diferença dos sexos Ele não remete apenas a ideias mas também a instituições a estruturas a práticas cotidianas e a rituais ou seja a tudo aquilo que constitui as relações sociais O discur so é um instrumento de organização do mundo mesmo se ele não é anterior à organização social da diferença sexual Ele não reflete a realidade biológica primária mas ele constrói o sentido desta realidade A diferença sexual não é a causa originária a partir da qual a organização social po deria ter derivado ela é mais uma estrutura social movediça que deve ser ela mesma analisada em seus diferentes contextos históricos45 Partindo dessa premissa devemos compreender a identidade de gênero46 não apenas como identificação arquetípica mas sim como uma construção histórica política e cultural complexa que vai transitar pelo que chamamos de intersubjetividade47 ou como nos apresentam brilhantemente Coelho Jr Figueiredo as matri zes intersubjetivas matrizes intersubjetivas indicam dimensões 45 SCOTT 1998 op cit GROSSI Míriam Pillar Identidade de gênero e sexua lidade Disponível em httpswwwresearchgatenetprofileMiriamGrossipublica tion267977995IDENTIDADEDEGENEROeSEXUALIDADElinks55fe19d c08aeba1d9f69e6aaIDENTIDADEDEGENEROeSEXUALIDADEpdf Acesso em 10 mai 2017 46 Para uma leitura mais técnica do termo JESUS Jaqueline Gomes de Orienta ções sobre a população transgênero conceitos e termos Brasília 2012 47 Temos aí um ótimo caminho para compreender a relação entre espiritualida de e identidade de gênero como propomos neste texto Para auxiliar nesta reflexão HÖSLE Vittorio O sistema de Hegel o idealismo da subjetividade e o problema da intersubjetividade São Paulo Loyola 2007 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 44 de alteridade que nunca ocupam de forma pura e exclusiva o campo das experiências humanas48 Se localizar no espaço no tempo na cultura enquanto in divíduo dar conta das escolhas que nos constroem compreen der os caminhos trilhados para saber onde nos encontramos no presente Esse é um exercício que exige uma entrega e uma consciência nem sempre possível em um mundo de cer ceamentos numa sociedade que tem como princípio segregar a diferença que macula a ordem estabelecida como nos mostram Rodrigues Heilborn O normativo portanto não estaria apenas na categoria de gênero regida por regras culturais mas já se apresenta na categoria sexo que só existiria dentro de uma prática normativa capaz de produzir os corpos para governálos Sexo assim não seria uma condição estática de um corpo mas um processo pelo qual as normas materializam o sexo49 Por isso construções de subjetividades que não se enqua drem às normas são dolorosamente abortadas produzindo um 48 COELHO JUNIOR Nelson Ernesto FIGUEIREDO Luís Cláudio Figuras da intersubjetividade na constituição subjetiva dimensões da alteridade Interações São Paulo v 9 n 17 p 928 jun 2004 Disponível em httppepsicbvsaludorg scielophpscriptsciarttextpidS141329072004000100002lngptnrmiso Acesso em 16 mai 2017 49 RODRIGUES Carla HEILBORN Maria Luiza Construindo Vera Cruz e desconstruindo gênero aproximações entre Pedro Almodóvar e Judith Butler Sex Salud Soc Rio de Janeiro n 16 p 7385 2014 Disponível em httpwwwscielo brscielophpscriptsciarttextpidS198464872014000100005lngennrmi so Acesso em 16 mai 2017 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 45 sofrimento profundo pelo estrangulamento da condição existen cial daquele que não pode ser o que sente ser A possibilidade de experiência da sexualidade e da identificação de gênero exercida na liberdade e autonomia do sujeito é uma necessidade se pen samos numa sociedade que promova a saúde em suas relações pois a negação dessa autonomia quanto à sua auto percepção vai criar toda uma estrutura social de exclusão e marginalização que se estende desde os recônditos mais íntimos do indivíduo seus afetos e personalidade até seus direitos civis de cidadão A violência que surge como produto dessa condição é de ordem psíquica física e simbólica como esclarece Jesus50 Se compreender livre o suficiente para assumir que a sua per cepção subjetiva não se alinha com o corpo físico que habita é um exercício só possível em um espaço intersubjetivo de aber tura e equidade e é para a promoção desse ambiente social que precisamos trabalhar se nos comprometemos com a saúde das pessoas e com um mundo ético Quando pensamos nas pessoas trans a percepção e constru ção de uma identidade sexual fica ainda mais reprimida e amea çada produzindo uma exclusão social de uma violência bárbara A invisibilidade desse público faz com que a sociedade simples mente ignore seus problemas e quando colocada de frente a este o reconhece como uma aberração Precisamos garantir a esse grupo de pessoas o seu espaço social sua dignidade de ci dadãos e sua saúde 50 JESUS Jaqueline Gomes de Orientações sobre a população transgênero con ceitos e termos Brasília 2012 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 46 O que a espiritualidade tem a ver com isso O conceito de espírito vem etimologicamente ligado às ideias de ventilação movimento sopro vida51 Ou seja o espírito se apresenta enquanto vocábulo como um significante daquilo que produz o frescor e mobilidade a existência o inanimado se torna animado pelo espírito o que está inerte ganha vida pelo espírito Nesse caminho epistemológico a Filosofia se apropriou do conceito de espírito e viu nele a possibilidade de uma expres são fenomenológica do ser expressão esta que ganha diversas interpretações como demonstram Japiassú e Marcondes52 Para o nosso propósito seguirei a perspectiva que Teixeira nos apresenta53 Do que nos coloca o autor vou destacar dois aspec tos o desapego e o potencial libertador da espiritualidade huma na É a partir dessas condições ou características do espírito que podemos fazer a ligação com a temática da identidade de gênero pois estamos tratando exatamente da liberdade de expressão da subjetividade e do desapego aos padrões de identidade produzi dos pelo sistema ideológico repressor de uma sociedade neuroti zada e neurotizante Nesse sentido a possibilidade da experiên cia espiritual é a possibilidade de ruptura com esse modelo Quando se entende o espírito humano como a dimensão antropológica de transcendência observamos nesta espiritua lidade que é a manifestação fenomenológica do espírito a ca 51 Um estudo muito bem feito sobre esta etimologia é MEDEIROS FILHO Félix Antônio de A concepção de almaespírito na PréHistória um estudo semântico do Nostrático João Pessoa UFPB 2014 52 JAPIASSÚ Hilton e MARCONDES Danilo Dicionário básico de Filosofia Rio de Janeiro Jorge Zahar 2008 p 9293 53 TEIXEIRA Faustino O potencial libertador da espiritualidade e da experiência religiosa In AMATUZZI Mauro M org Psicologia e espiritualidade São Paulo Paulus 2005 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 47 pacidade de encontro que faz a passagem do subjetivo para o intersubjetivo o sujeito se percebe pertencente a algo que o ul trapassa e se torna mais do que um indivíduo O sentimento de pertença é um sentimento de sentido e é o que nos permite construir uma identidade Aí então podemos saber de nós e res ponder as questões que nos angustiam quem sou eu De onde vim Para onde vou Por isso conseguir se encontrar sexualmente se torna uma experiência de espiritualidade porque implica num exercício de liberdade e de desapego num movimento de transcendência e de encontro uma percepção que Heidegger chama de dasein o seraí É essa a necessidade das pessoas trans permitir que na liberdade de seu espírito possam se desapegar do corpo original para se encontrar numa corporeidade de sentido como nos es clarece MarzanoParisoli Com efeito a sexualidade pode revelarnos melhor do que outras experiências a relação estreita entre corpo individualidade e intencionalidade Ela pode também permitirnos trabalhar sobre o paradoxo corporal expresso pela proposição nós somos nos so corpo ao mesmo tempo que o temos dentro de nossas relações mais intensas com o outro54 Qual o nosso compromisso político enquanto agentes promo tores da saúde Garantir que as pessoas trans tenham condição de viver sua espiritualidade na expressão de sua sexualidade exercitando sua liberdade de escolha e com isso aprendendo 54 MARZANOPARISOLI Maria M Pensar o corpo Petrópolis Vozes 2004 p 109110 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 48 a se conhecer e se orientar por essas escolhas num mundo de pluralidade marcado pelo mistério imponderável O exercício do desapego nos permite mobilidade uma ha bilidade fundamental num universo que está em trânsito Esse exercício nos leva ao sentimento de liberdade que deve emba lar nosso sonho ético Uso essa licença poética de tratar a ética como um sonho por entender que ela nasce no mais profundo do ser humano assim como o sonho Este lugar de sentido último que Husserl chamou de consciência transcendental55 e Jung de inconsciente coletivo56 Essa percepção profunda que nos coloca em conexão com o todo só pode emergir quando suspendemos os conceitos e per mitimos assim que a experiência fale por si numa expressão imediata da existência É nessa condição existencial de pleni tude que a sexualidade se apresenta sem as censuras de um sis tema ideológico repressor e é também nesse ambiente que as pessoas trans podem se encontrar descobrindo uma identidade encoberta e reprimida assumindo a responsabilidade de se fazer a partir das escolhas que produzimos em nossas relações Considerações finais Observamos que a proximidade entre a construção da iden tidade das pessoas trans e a experiência espiritual é maior do que pode parecer na visão do senso comum e de alguns extra tos de uma ciência engessada em paradigmas da modernidade 55 TOURINHO Carlos Diógenes Côrtes A consciência e o mundo na fenomeno logia de Husserl influxos e impactos sobre as ciências humanas Estudos e Pesquisas em Psicologia v 12 n 3 Universidade Federal Fluminense UFF Niterói 2012 56 JUNG C G Os arquétipos e o inconsciente coletivo Petrópolis Vozes 2008 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 49 Para perceber esse vínculo no entanto é preciso compreender claramente o que seja o espírito pois esse conceito tem uma in terpretação bastante confusa por conta da apropriação deste por diferentes ideologias e pelas instituições religiosas que procuram submeter o espírito e a espiritualidade aos dogmas e doutrinas de suas tradições Aqui procuramos resgatar o conceito em sua raiz etimológi ca e na perspectiva hermenêutica da fenomenologia da religião Encontramos nele um significante da condição existencial de abertura que Heidegger chamava dasein e por isso uma condi ção essencial quando pensamos na construção da identidade que vamos produzindo em nosso caminho existencial incluindo aí a identidade de gênero Para as pessoas trans a possibilidade de viver sua sexualida de com liberdade e responsabilidade respaldadas pelos direitos civis de cidadãos só é possível quando o exercício da espiritua lidade não é reprimido nem por forças internas nem por forças externas ao sujeito Por isso a necessidade de lutarmos por uma sociedade que reconheça a autonomia dos indivíduos e a plura lidade existencial e tenha em suas ações de políticas públicas estratégias que garantam os direitos dessa população A garantia dos direitos dentro de uma realidade múltipla passa pela construção de ralações de equidade tanto entre os indivíduos quanto no que diz respeito à estrutura das políticas públicas em toda a sua extensão que envolve a educação saúde segurança lazer e seguridade social Lutar por essas garantias é mais do que uma convicção é um dever de todos aqueles que se comprometem com um mundo mais digno e justo mais saudável e mais humano Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 50 É por isso que precisamos construir uma Psicologia que alcan ce as demandas dessas pessoas que saiba ouvir suas angústias e seus desejos sem produzir estereótipos ou reproduzir padrões de respostas que atendam à manutenção de um processo de exclusão que leva este público à condição de marginalidade Uma Psicolo gia comprometida com a liberdade e com a promoção de direitos Essa Psicologia ao meu ver passa por uma ciência capaz de dialogar com outras racionalidades de absorver novos métodos e técnicas uma Psicologia que seja ela própria um exercício dessa espiritualidade livre e dinâmica que nos anima Um novo mundo exige uma nova Psicologia que assuma a condição de cri ticidade que o olhar e a escuta precisam ter diante da realidade Entendo que este é um processo longo difícil e até utópico em certa medida mas que não pode ser relegado por conta de sua complexidade pois senão perdemos o horizonte ético que nos conduz e uma psicólogoa sem ética se torna uma arma perigosa contra a humanidade Referências bibliográficas AMATUZZI Mauro M org Psicologia e espiritualidade São Paulo Paulus 2005 BAUMAN Zygmunt A cultura no mundo líquido moderno Rio de Janeiro Zahar Editores 2013 COELHO JUNIOR Nelson Ernesto FIGUEIREDO Luís Cláu dio Figuras da Intersubjetividade na constituição subjetiva dimen sões da alteridade Interações São Paulo v 9 n 17 p 928 2004 Disponível em httppepsicbvsaludorgscielophpscripts ciarttextpidS141329072004000100002lngptnrmi so Acesso em 16 mai 2017 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 51 HÖSLE Vittorio O sistema de Hegel o idealismo da subjetivida de e o problema da intersubjetividade São Paulo Loyola 2007 JAPIASSÚ Hilton MARCONDES Danilo Dicionário básico de Filosofia Rio de Janeiro Jorge Zahar 2008 JESUS Jaqueline Gomes de Orientações sobre a população transgênero conceitos e termos Brasília 2012 JUNG C G Os arquétipos e o inconsciente coletivo Petrópo lis Vozes 2008 MARZANOPARISOLI Maria M Pensar o corpo Petrópolis Vozes 2004 MEDEIROS FILHO Félix Antônio de A concepção de alma espírito na PréHistória um estudo semântico do Nostrático João Pessoa UFPB 2014 RODRIGUES Carla HEILBORN Maria Luiza Construindo Vera Cruz e desconstruindo gênero aproximações entre Pedro Almodó var e Judith Butler Sex Salud Soc Rio de Janeiro n 16 p 7385 2014 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscripts ciarttextpidS198464872014000100005lngennrmi so Acesso em 16 mai 2017 SCOTT 1998 op cit GROSSI Míriam Pillar Identidade de gêne ro e sexualidade Disponível em httpswwwresearchgatenet profileMiriamGrossipublication267977995IDENTIDA DEDEGENEROeSEXUALIDADElinks55fe19dc08ae ba1d9f69e6aaIDENTIDADEDEGENEROeSEXUALIDA DEpdf Acesso em 10 mai 2017 TOURINHO Carlos Diógenes Côrtes A consciência e o mun do na fenomenologia de Husserl influxos e impactos sobre as ciências humanas Estudos e Pesquisas em Psicologia v 12 n 3 Universidade Federal Fluminense UFF Niterói 2012 Excurso sobre o humano e seus desdobramentos como perspectiva do póshumano57 57 Este texto foi tema de apresentação oral no X Simpósio Internacional Filosófi coTeológico da FAJE Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia HENRIquE MARquES LOTT Graduado em Filosofia pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora 2004 e é mestre e doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora 2013 Realizou seu estágio doutoral em 2012 na modalidade Recherches Doctorales Libres junto à École des Hautes Études em Sciences Sociales EHSS de Paris com a bolsa sanduíche da Capes É também pósdoutor em Ciências da Religião pela PUC Minas 2017 tendo realizado seu estágio pósdoutoral com a bolsa do Programa Nacional de PósDoutorado PNPD da Capes Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 53 Resumo A reflexão que propomos neste texto parte de algumas con cepções filosóficas que permeiam a noção de humano e se des dobra numa análise discursiva que procura indicar uma perspec tiva de compreensão para tratarmos a noção contemporânea de póshumano Nossa análise acolhe um ponto de vista de ordem conceitual e especulativo que se divide em três momentos dis tintos No primeiro discorremos brevemente acerca da noção de humano tal como esta é concebida por nossa tradição filosófica Num segundo momento nos detemos em concepções filosóficas modernas e contemporâneas que indicam uma abertura possível para pensarmos a questão do póshumano como uma extensão da noção de humano Por fim ensaiamos um debate concer nente às implicações éticas e morais suscitadas pelos avanços das tecnociências e pela perspectiva do póshumano no campo das relações sociais Concluímos nossa análise apontando para a necessidade de um aprofundamento do debate em torno de questões relacionadas com a dignidade e a liberdade humana no âmbito das pesquisas científicas e da dinâmica social Palavraschave Humano Póshumano Tecnociência Ética Debate Introdução Testemunhamos atualmente a consolidação de um processo que nos coloca cada vez mais em confronto com as transforma ções técnicas e científicas transformações estas que vêm se radi Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 54 calizando especialmente nas últimas décadas quando registramos inegáveis avanços da ciência A nosso ver essa situação cria condi ções inéditas que permitem ao homem atual realizar experiências extremamente novas no âmbito de suas próprias criações Para alguns teóricos e cientistas confrontamonos hoje com a possibi lidade de criarmos um ser superior a nós mesmos um ser que poderá ultrapassar nossa própria condição de humanidade58 Essa busca de superação do humano vem alimentando os ideais e o imaginário simbólico de certas áreas das tecnociências áreas que por vezes se engajam em uma construção que alguns autores consideram como uma utopia póshumana BESNIER 2008 Estaríamos vivendo o início de uma nova era em que o ser humano começa a se transformar pouco a pouco em um ser que não é mais humano ou dito de outro modo um ser para além do humano Será que no futuro seremos substituídos por outros seres superiores a nós e deixaremos de existir Ou será que vamos nos tornar uma subes pécie inferior que vai coexistir com uma nova espécie superior que será criada por nós mesmos Essas são entre outras algumas questões que têm inquietado a imaginação de muitos cientistas e pesquisadores de diferenciadas áreas do conhecimento LANCE LIN 2012 Com o avanço das perspectivas delineadas pelo desen volvimento das tecnociências da comunicação da informação e de 58 Essa compreensão permeia atualmente vários ramos da ciência como a nano tecnologia a biologia a engenharia genética a neurociência e a informática aplicadas à dinâmica do conhecimento O Massachusetts Institute of Techology MIT localiza do em Cambridge é um importante centro científico que busca a superação da condi ção humana natural Uma de suas linhas de pesquisas mais destacadas é desenvolvida pelas unidades Sloan School of Management Lincoln Laboratory Computer Science and Artificial Intelligence Laboratory Media Lab e Whitehead Institute que elaboram e desenham a figura de um transhumano numa perspectiva futura de um homem desnaturalizado cf BESNIER 2008 p 4 Os primeiros grupos de pesquisa trans humana surgem nos anos de 1980 na Universidade da Califórnia em Los Angeles Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 55 pesquisas científicas diversas como as do campo da neurociência e da nanotecnologia entre outras somos impregnados de um modo ou de outro pelo imaginário póshumanista que se desenha no cenário contemporâneo BESNIER 2008 Trataremos dessas questões seguindo as linhas do roteiro que apresentamos no resumo acima Procuramos sondar primeira mente de modo bastante sucinto o que a tradição filosófica tem a nos dizer sobre o humano em suas linhas mais gerais como por exemplo as ideias de humano elaboradas a partir do composto corpo e alma sobre o corpo como máquina a racionalidade como alma e sobre o homem como ser histórico social e moral Des se modo procuramos preparar o terreno para adentrarmos nas concepções modernas e contemporâneas que discutimos na se gunda etapa de nossa reflexão quando então tratamos a respeito de algumas concepções acerca de humano e de póshumano no quadro das discussões mais recentes São discussões que a nosso ver apresentam por um lado novas apreensões e possibilidades de abordagens compreensivas e por outro dão continuidade ao legado da tradição humanística mantendo as antigas aspirações fi losóficas e teológicas no quadro idealizado pelo póshumanismo A partir dos aportes que reunimos no primeiro e no segundo momento deste texto conduzimos nossa atenção para um ter ceiro momento que aborda questões de cunho ético e moral e que implica direta ou indiretamente a prática da ciência atual Procuramos levar em conta nesse caso certas situações limites que nos colocam frente a frente com alguns efeitos produzidos pela ciência Situações que podem de uma parte nos proporcio nar significativos avanços mas de outra parte podem desfigurar nossa condição humana a ponto de colocar em risco nossa pró pria existência e nossa condição de sobrevivência No âmbito Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 56 dessas indagações fazemos a seguinte pergunta até que ponto é legitimamente aceitável permitir a desconfiguração do huma no em nome da ciência e até que ponto essa permissão fere ou não os direitos mais fundamentais historicamente conquistados como a igualdade a dignidade e a liberdade humanas Essa é a questão que conduz as discussões conclusivas que apresentamos no decorrer deste texto Gostaríamos de ressaltar que a trajetória que seguimos aqui foi conduzida por uma perspectiva ampla de diálogos e de interlocuções com diversos autores Noções filosóficas sobre o humano Começamos nossa reflexão com uma pergunta básica que sur ge no contexto cultural das origens da Filosofia ocidental o que é o homem e qual é a sua configuração como ser neste mundo Foi com os sofistas que se registrou pela primeira vez a centralidade das preocupações filosóficas com o homem A antropologia dos sofistas dava uma ênfase muito especial à dimensão espiritual do ser humano pois concebia que o espírito é o órgão através do qual o Homem apreende o mundo das coisas e se refere a ele JAEGER 2001 p 341 Protágoras por exemplo propunha um humanismo radical e explícito que segue o princípio do homo mesura Em sua obra Sobre a Verdade escreve a famosa frase O homem é a medida de todas as coisas πάντωνχρημάτωνμέτρ ονἄνθροπος apud FRAILLE 1965 p 230 Platão que conviveu com os sofistas mas não era um deles define o homem como sendo um composto de corpo e alma Sua concepção dualista compromete a unidade antropológica que no seu entender é resultante da ordem das ideias Platão realiza uma síntese da tradição filosófica anterior dos sofistas e de Sócrates A Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 57 seu ver é a ordem transcendente das ideias que permite explicar no homem a polaridade constitutiva da vida da alma psyché em sua condição terrena VAZ 1991 p 36 Na antropologia platô nica o corpo é compreendido como a parte sensível do homem em oposição à alma que é de natureza suprassensível O corpo é algo inferior uma espécie de matéria impura que não é mais do que um cárcere da alma e a alma por seu turno deve procurar fugir do corpo e nesse sentido ela escapa da morte pois é de na tureza imortal Para Platão Fédon 64c a morte do corpo abre o caminho para um novo ciclo de vida da alma Desse modo quando advém a morte corporal a alma como parte imortal foge rápida subsistindo sem se destruir escapando à morte Fédon 106e Aristóteles tal como Platão considerava que o homem é um ser composto syntheton de psyché e de soma A psyché é pois a perfeição ou ato entelécheia do corpo VAZ 1991 p 39 Con tudo diferente de seu mestre Aristóteles considerava que a alma era inseparável do corpo e que todas as afecções da alma ocor rem com um corpo De Anima 403a Em sua obra A Política 1253a Aristóteles dá outro tipo de definição na qual entende que o homem é naturalmente um animal político destinado a viver em sociedade e aquele que por instinto e não porque qual quer circunstância se inibe e deixa de fazer parte de uma cidade é um ser vil ou superior ao homem Segundo Aristóteles é a capa cidade de se expressar com palavras e a racionalidade que diferen ciam o homem de todos os outros animais desse modo ele é um animal racional um zôonlogikón Na concepção aristotélica O homem transcende de alguma maneira a natureza e não pode ser considerado simplesmente um ser natural VAZ 1991 p 40 No período medieval a antropologia teológica de Agostinho 1973 p 26 compreende o homem como o ápice de toda criação Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 58 do mundo Ele escreve em suas Confissões que Deus está no ho mem o homem em Deus Embora com clara influência do pensa mento platônico e sua concepção sobre corpo e alma a antropolo gia agostiniana diferenciavase daquela dos filósofos gregos Estes concebiam que o homem bom é aquele que sabe e conhece pois o bem e a virtude são ciência Para Agostinho ao contrário o homem bom é o que ama o que ama o que se deve amar AN TISERI REALE 1990 p 459 A antropologia agostiniana parte de premissas teológicas que implicam a assunção do corpo na unidade da natureza humana na qual o Verbo se encarnou e a resti tuição escatológica da unidade do homem tal como procedeu da Palavra criadora de Deus VAZ 1991 p 65 Tomás de Aquino por sua vez influenciado pela Filosofia de Aristóteles e de Santo Agostinho também elabora sua antropo logia baseada na concepção de que o homem é um animal racio nal composto de corpo e alma Para ele a alma humana realiza funções através do corpo porém não se mistura ao corpo pois é uma substância intelectual que se une ao corpo como forma TOMÁS 1996 p 266 A concepção de Tomás segue o viés aristotélico ao considerar que o entendimento humano está dire tamente ligado com o corpo A seu ver os sentidos corporais são órgãos de conhecimento que possibilitam o conhecimento inte lectual O homem como é um ser que está constitutivamente vinculado com um corpo material deve buscar nas coisas sen síveis cuja natureza é proporcional à sua um ponto de apoio para se elevar a Deus GILSON 2001 p 658 Com o advento da modernidade as questões sobre o humano se voltam radicalmente em direção à racionalidade É possível dizer que o pensamento modernista afirma que os seres humanos pertencem a um mundo governado por leis naturais que a razão descobre e às quais Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 59 ela mesma se submete TOURAINE 1992 p 5159 Descartes por exemplo considera que o homem é um ser composto de duas subs tâncias diferentes uma alma espiritual cuja essência é o pensamen to e um corpo cuja essência é a extensão À alma pertence somente o pensar O corpo é uma máquina regida por leis gerais e mecânicas FRAILE 1965 p 516 Para explicar o corpo Descartes se vale do modelo da máquina que funciona como os relógios as fontes arti ficiais os moinhos e outras semelhantes máquinas que não sendo feitas senão pelos homens não deixam de ter a força de se mover por elas mesmas DESCARTES sd p 807 O pensamento moderno vai desdobrar os rumos da antropologia racionalista que prolongará a tradição do zôonlogikón mas dandolhe um novo conteúdo pois nela o esquema mecanicista ou a primazia do modelo da máquina se estenderá à explicação da vida do homem VAZ 1991 p 81 A Filosofia Iluminista do século XVIII vai seguir por seu turno a ideia de um progresso da razão buscando interpretar as transfor mações que o homem realizou no campo social e cultural Trans formações estas que se afirmaram com o avanço da seculariza ção com a conquista do mundo histórico e com a formulação de novas ideias sobre o direito o contrato social e o Estado Para os filósofos das Luzes a razão é o ponto de encontro e o centro de expansão A razão é una e idêntica para todo o indivíduo pensante para toda a nação toda época toda a cultura CASSI RER 1997 p 2223 O uso da racionalidade aplicado às noções de Humanidade Civilização Tolerância Revolução entre outras são ideias diretrizes que estruturam o espaço mental da Ilustração Neste espaço o homem passa a ocupar o centro do qual irradiam as linhas da inteligibilidade VAZ 1991 p 95 59 Todas as traduções do francês e do espanhol para o português apresentadas neste texto foram realizadas por nós Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 60 Na esteira das ideias do Iluminismo a Filosofia de Kant segue considerando o ser humano pelo primado da racionalidade Con tudo para Kant o homem é motivado tanto por seus desejos cor porais e materiais como por sua racionalidade No seu entendi mento nossa condição como seres racionais indica que devemos estar bem conscientes de nossas obrigações e de que o valor moral surge somente da luta para realizálas Mas como animais estamos também vivamente preocupados com a felicidade DU DLEY 2013 p 65 Por um lado a noção de humano em Kant apresentase como uma antropologia de viés pragmático que é uma intenção típica da Ilustração alemã a de tornar a Filosofia útil para a vida Por outro lado segue as peculiaridades da concepção do homem do ponto de vista crítico permanecendo nesse caso na linha da tradição dualista própria da antropologia racionalista VAZ 1991 p 9798 Esses são os traços mais gerais que gostaríamos de destacar acerca das compreensões antropológicofilosóficas de nossa tra dição Com essa breve digressão procuramos preparar o terreno para darmos seguimento às questões que formam a parte central de nossa reflexão neste texto parte esta que versa a respeito do deslocamento das questões do humano para o póshumano Isso é o que veremos a partir desse momento Humano e póshumano concepções modernas e contemporâneas Grande parte do pensamento moderno e contemporâneo considera que o homem é um ser de transformação Essa é uma compreensão que perpassa uma longa tradição filosófica Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 61 que começa com os antigos filósofos gregos seguindo até Hegel Feuerbach e Marx além de Hanna Arendt dentre outros con temporâneos LOTT 2013 p 31 Na lógica dessa compreen são do homem como transformação é possível afirmar como faz o sociólogo austroamericano Peter Berger 2003 p 20 que o que aparece em qualquer momento histórico particular como natureza humana é da mesma forma um produto da atividade do homem para construir um mundo Podemos acrescentar que o homem é também e sempre foi um ser social que se confronta e se opõe ao mundo transformandoo e manipulandoo com o propósito de criar um ambiente habitável e favorável para sua existência Essa compreensão é parte do proje to intelectual elaborado pelo filósofo francês Marcel Gauchet que propõe uma compreensão do humano através de uma antropossociologia transcendental Antropo logia no sentido de teoria do humano disso que faz a humanidade do homem sociologia por que os dois aspectos parecem inevitavelmen te correlacionados transcendental enfim para designar a dimensão propriamente filosófica do conjunto a interrogação sobre as condições de possibilidade GAUCHET 2003 p 10 Gauchet desenvolve uma análise histórica e política que co meça com as sociedades primitivas ou arcaicas e chega aos dias atuais Em sua interpretação essas sociedades vivem o mito reli gioso na sua integralidade e praticam um tipo de religião que ele define como religião primeira No seu entender a religião pri meira configurase como uma forma de vestimenta de uma base Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 62 antropológica mais profunda que é o conflito Para Gauchet é o conflito social que leva o homem arcaico ou primitivo a recusar sua própria potência de criador e a negar a si mesmo para afirmar a figura de um todo outro o heterônomo Nas sociedades modernas e desencantadas ao contrário das sociedades primitivas o que predomina é o modelo autônomo que tem como característica a autoafirmação e o reconhecimen to do homem como ser de transformação e criação de mundo Segundo Gauchet 2007 p 133 com a modernidade e o pro cesso de desencantamento do mundo o homem passa a ter cada vez mais um domínio teórico e prático que muda e transforma sua própria natureza e os rumos de seu destino Numa outra interpretação a do filósofo francês Edgar Mo rin 1979 p 20 a ideia de natureza humana acabou sendo imobilizada por forças conservadoras com o propósito de ser mobilizada contra a mudança social Para Morin essas forças conservadoras se pautavam por uma ideologia do progresso e consideravam que para que houvesse mudança no homem não era preciso que houvesse mudança de natureza humana A seu ver em decorrência disso houve um esvaziamento de conteúdos no que concerne à noção de natureza humana Assim a na tureza humana aparece como um resíduo amorfo inerte monó tono tratase daquilo que o homem se subtraiu e não de modo algum daquilo que o fundamenta MORIN 1979 p 20 Essa concepção de esvaziamento da ideia de natureza huma na acena a nosso ver para algumas questões sobre o póshu mano Mas cabe perguntar primeiramente o que significa pós humano Tratase de uma utopia ou de uma realidade concreta e plausível Muitos consideram ter sido Nietzsche o precursor do póshumanismo Segundo o filósofo francês Serge Trottein Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 63 2006 p 1 Nietzsche teria dado o primeiro impulso ao questio nar os valores do humanismo e a propor um humanismo superior sua intenção era recuperar o antihumanismo como promessa de um retorno a um humanismo mais autêntico Segundo Trottein 2006 p 2 a crítica nietzschiana ao huma nismo não se restringe a ser um antihumanismo ela confrontase também com o póshumanismo e abre assim a perspectiva de su peração do humanismo clássico que digase de passagem já não atende mais à situação atual Com as novas tecnologias o homem adquiriu o poder da autotransformação e caminha para o rompi mento das fronteiras que definem a compreensão do homem como zôonlogikón e também como homem e máquina Ao que tudo indica após Nietzsche no âmbito da reflexão filosófica nós nos encontramos pela primeira vez em posição de produzir delibe radamente esse tipo supremo de humanidade GAUCHET 2007 Uma das primeiras elaborações concretas de póshumanis mo vem do filósofo alemão Peter Sloterdijk 1999 que causou grande impacto quando publicou seu livro Regras para o parque humano60 Nesse livro o autor lança a questão sobre como se or ganizar em um mundo onde seres híbridos deverão coabitar com seres humanos BESNIER 2008 p 3 Sloterdijk foi acusado de fazer a promoção do superhomem nietzschiano pelo viés de uma apologia de recursos às novas tecnologias em breve ele se encontraria acusado ou preso em flagrante delito de transhu manismo TROTTEIN 2006 p 4 Sua questão central versa sobre a incapacidade do humanismo pensar a essência do hu mano FERREIRA 2004 p 35 60 Muitos autores consideram essa obra de Sloterdijk como um marco fundamen tal nas discussões sobre o póshumanismo cf BESNIER 2008 TROTTEIN 2006 FERREIRA 2004 RABENHORST 2005 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 64 Sloterdijk parte de uma reflexão que começa com o humanismo clássico e se desenvolve na linha do póshumanismo que ele pro cura pensar a partir de Nietzsche e de Heidegger Seu livro Regras para o parque humano foi inspirado pela carta de Heidegger Sobre o humanismo sua intenção era oferecer uma resposta a esse texto e tentar reparar aquilo que a seu ver o texto resolutamente ignorou A história social do homem tocada pela questão do Ser e o redemoinho histórico na abertura da diferença ontológica que não é outro que a his tória das domesticações do homem o que Sloter dijk chama ainda a face escondida da clareira E é aí que intervém Zaratustra Nietzsche esboça o destino do futuro homem O pós humanismo é então a abertura de novas pos sibilidades de criação de adestramento de do mesticação do homem TROTTEIN 2006 p 3 Uma das questões discutidas por Sloterdijk diz respeito às novas tecnologias e às consequentes transformações que elas promovem A seus olhos o humanismo empreende uma luta contra a estupidez e o embrutecimento combatendo as bestia lidades que as pulsões humanas são capazes de realizar Nesse caso tanto Heidegger quanto Sloterdijk acreditam que o hu manismo instaura uma retórica de civilização em que ao perigo da bestialização é oferecida a tranquilidade da domesticação FERREIRA 2004 p 34 Contudo ao procurar responder a Heidegger Sloterdijk introduz o póshumanismo no seio da clareira TROTTEIN 2006 p 3 Em seu entendimento o humanismo não foi capaz de coibir a bestialidade humana SLOTERDIJK 1999 p 32 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 65 Outra contribuição para a reflexão sobre o póshumanismo vem do filósofo norteamericano Francis Fukuyama 2003 au tor do livro Nosso futuro póshumano Fukuyama considera que com a queda do comunismo a história teria chegado ao fim e doravante caminhamos em uma nova história a história pós humana Na interpretação de Eduardo Rabenhorst Fukuyama procura refletir como a revolução biotecnológica abre caminho para um retorno a um ordenamento muito mais hie rárquico da sociedade Na nova sociedade o ser humano modificado geneticamente viria ao mundo com um status sui generis já que ele diferiria dos outros indivíduos da espécie Corremos o risco de ver surgir num futuro bem próximo uma sociedade dividida em camadas su periores ou inferiores não apenas do ponto de vista econômico mas sobretudo sob o prisma genético RABENHORST 2005 p 120121 Essa concepção indica que cedo ou tarde nós teremos uma superação biogenética da atual condição humana Todavia esse avanço científico pode gerar uma desigualdade no que diz res peito à distribuição ou seja alguns seriam privilegiados e ou tros não Além disso correse o risco da incerteza genética e de uma cruel divisão no interior da sociedade Diante dessa pos sibilidade funesta Fukuyama propõe uma outra fundamenta ção para a dignidade do homem ele toma como base a própria consciência entendida como combinação de razão linguagem emoção capacidade de deliberação e aptidão simbólica RABE NHORST 2005 p 121 Assim procedendo o filósofo nortea Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 66 mericano procura identificar o que entende ser uma qualidade humana essencial FUKUYAMA 2003 p 158 Outros estudiosos do póshumanismo como o filósofo e so ciólogo francês Hervé Fisher 2004 por exemplo consideram que o fantasma do póshumanismo não merece a referência ao humanismo que ele invoca O homem vem demonstrando de um modo progressivo ao longo de sua existência histórica o de sejo de ultrapassar seus próprios limites naturais Desse modo é possível considerar que o homem sempre tentou escapar de sua biologia O xamanismo e a religião exaltam sua relação com um mundo superior mágico ou religioso As religiões judaicocristãs inventaram uma auda ciosa visão de homem dotado de uma alma que o religa diretamente a Deus e que lhe permite parti cipar assim do ser de Deus FISHER 2004 p 2 Nesse sentido é possível dizer que a ideia de póshumano não é nova pois o desejo de ir além de si de transcender ao corpo e a esse mundo é algo antigo na espécie humana O que vemos com o pósmodernismo não difere muito disso tratase de um desejo que obedece a lógica da tecnociência para negar o que é próprio da humanidade seu enigma definitivo sua fragilidade sua irredutibilidade à matéria FISHER 2004 p 2 Como vimos mais acima Platão considerava o corpo como uma prisão da alma Descartes por sua vez desqualificava o corpo e o situava no nível mais animal de nosso ser Atualmente a obsessão do corpo perfeito não é talvez nada além de uma recusa do corpo E a tecnociência encara o desafio de realizar este fan Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 67 tasma BESNIER 2008 p 4 O póshumanismo persegue um ideal que pretende atingir um estágio da humanidade tecnológica cuja principal meta é a transcendência das limitações físicas e bio lógicas do humano FELINTO 2005 p 3 As novas tecnologias alimentam os sonhos de realizar o desejo do homem de ir além de si de ampliar sua inteligência sua força sua imunidade e sua capacidade física Alimentam também esse investimento imagi nário compensatório que nós operamos na tecnociência onde nós cultivamos a ilusão de ultrapassar nossos limites e de completar nosso ser irredutivelmente inacabado FISHER 2005 p 3 As técnicas de eugenia não são novas na história humana os gre gos antigos as utilizavam com destreza JAEGER 2001 Contudo os eugenistas do passado pretendiam fazer a raça humana mais pura mas ainda humana Os partidários do póshumanismo creem que chegou a hora de ir além de se buscar um estágio avançado em que não seríamos mais humanos RÜDIGER 2007 p 5 Todavia essa aspiração compartilha dos mesmos sonhos de superação de transfor mação e de transcendência que sempre tivemos Se tomarmos um ponto de vista fenomenológico será possível dizer que o homem é uma ideia histórica e não uma espécie natural A obstinação em des qualificar o corpo é uma atitude dependente de um pathos onde pre domina a vontade de desencarnação BESNIER 2008 p 5 O póshumano no contexto da dignidade e da liberdade humanas As concepções em torno do humano e do póshumano que acabamos de comentar suscitamnos reflexões sobre o campo da ética e das relações sociais A nosso ver será preciso refletir até que ponto o uso dos meios tecnológicos se legitima e até que pon Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 68 to esse uso se justifica por si mesmo Não temos como fechar os olhos para os inegáveis avanços científicos que testemunhamos e dos quais nos beneficiamos amplamente nos dias de hoje Con tudo quando o uso e a produção das tecnologias se desenvolvem sem a ponderação da reflexão ética quando instigam a realização da vontade egoísta dos indivíduos sem levar em conta a vida a liberdade e a dignidade do outro quando a produção dessas tec nologias tem por objetivo um uso com vistas a uma dominação vil e desumana nós certamente questionamos a legitimidade e a validade desse uso e dessa produção Como escreve Edgard Morin 1979 p 20 se somos obrigados hoje a reconhecer que todos os homens são homens a verdade é que excluímos imediatamente aqueles a quem chamamos desumanos MORIN 1979 p 20 O póshumanismo promete a possibilidade concreta de trans formar o ser humano através da tecnociência Essa possibilidade nos leva a refletir sobre dois caminhos distintos o primeiro é extre mamente positivo pois indica que podemos seguir uma rota que nos levará a uma segurança e a um bemestar cada vez maiores Nesse caso com os avanços da ciência será possível assegurar um desenvolvimento humano bastante favorável seja ele físico mental ambiental ou social O segundo caminho no entanto não é a nosso ver nada positivo porque é capaz de colocar em risco a própria vida e a dignidade humanas Nesse caso a ciência pode se colocar a serviço de interesses individuais egoístas e desumanos pode se deixar levar pela indiferença para com o sofrimento e as más condições do outro acentuando ainda mais a divisão social e a dominação política econômica técnica e científica A promessa utópica do póshumanismo nos coloca em um cam po de incertezas no qual não sabemos o preço a pagar e não conhe cemos quais as consequências que teremos que nos confrontar no futuro O termo póshumano nos causa de fato estranheza Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 69 porque significa após o homem isto é significa uma situação futura em que não haverá mais humano Por esse motivo autores como Hervé Fisher por exemplo preferem falar de hiperhumano em contraposição a póshumano Em sua concepção O hiperhumanismo não se inscreve no espa ço social pela confrontação ele é consciente da multiplicidade de espaços e de tempos sociais aos quais ele pertence O hiperhumanismo marca a passagem da solidão à solidariedade Ele afirma o valor da interdependência entre os ho mens entre as nações e entre os homens e o Uni verso Nosso medo de uma catástrofe final aparentemente inevitável que está na base do sentimento do trágico atual nos incita a bus car nossa salvação no crescimento de uma ética de responsabilidade dividida O sentido de res ponsabilidade nasce da consciência dos vínculos entre nós e os outros entre nossos atos e suas consequências FISHER 2004 p 4 Atos e consequências estes que são certamente legítimos quando advêm de pesquisas científicas que levam em conta a consciência ética e que procuram preservar a dignidade e a liber dade dos indivíduos Em outras palavras somos do parecer que são especialmente válidas as pesquisas que levam em conta a ele vação da dignidade humana e trabalham para evitar a bestialidade a opressão e as desigualdades Sob essa ótica podemos considerar que a ética passa à frente da lógica da tecnociência Contudo precisamos estar bem atentos porque infelizmente a tecnociên cia é muito mais poderosa que a ética FISHER 2004 p 7 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 70 Sendo assim é preciso debater e aprofundar as questões que envolvem a dignidade humana e a tecnociência Não podemos deixar que a tecnociência neutralize a consciência ética e a delete por completo A dignidade humana é segundo o filósofo alemão Jürgen Habermas uma questão incontornável que tem um forte significado nas relações interpessoais de reconhecimento recí proco e no relacionamento igualitário entre as pessoas HABER MAS 2004 p 47 As tecnociências nos colocam diante do perigo de chegarmos a ponto de não nos compreendermos mais como seres vivos eticamente livres e moralmente iguais orientados por normas e fundamentos HABERMAS 2004 p 57 Para o filósofo alemão é de fundamental importância ponde rar discutir e procurar saber até que ponto as tecnologias podem e devem alterar a natureza humana pois corremos o risco de perder a dimensão ética e moral da espécie Em seu entender as intervenções eugênicas de aperfeiçoamento pre judicam a liberdade ética na medida em que sub metem a pessoa em questão a intenções fixadas por terceiros que ela rejeita mas que são irreversíveis impedindoa de se compreender como autor único de sua própria vida HABERMAS 2004 p 87 No entendimento de Habermas as pesquisas genéticas de veriam incorporar um arcabouço ético e moral que preservasse a dignidade humana e que nos desse no presente a perspectiva de uma consciência futura livrandonos das promessas da eu genia liberal que se pautam pela lei da oferta e da procura No seu parecer é preciso impor limites para as pesquisas e práticas da eugenia isso porque especialmente nas sociedades liberais Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 71 seriam os mercados que regidos por interesses lucrativos e pe las preferências da demanda deixariam as decisões eugênicas às escolhas individuais dos pais e de modo geral aos desejos anárquicos de fregueses e clientes HABERMAS 2004 p 68 Para o filósofo alemão só deveriam ser aceitas as práticas de eugenia que não colocassem em risco e não limitassem a autono mia e a igualdade entre os indivíduos Em sua compreensão as pesquisas e as práticas científicas que visam o aperfeiçoamento humano não podem ser normalizadas de modo legítimo no âm bito de uma sociedade pluralista e democraticamente constituí da que concebe a todo cidadão igual direito a uma conduta de vida autônoma HABERMAS 2004 p 9192 Conclusão No caminho que trilhamos ao logo deste texto procuramos exercitar uma interpretaçãocompreensão sobre a noção de hu mano que se desdobrou em seguida na noção contemporânea de póshumano Em nosso entendimento a ideia de póshumano segue no geral uma linha de continuidade que nasce do desejo humano de superação de si mesmo desejo este que digase de passagem acompanha o homem desde suas origens Contudo assinalamos que a situação atual em que vivemos que traz a marca indelével dos avanços das tecnociências indica a possibilidade de alterarmos radicalmente a constituição biogenética do ser humano Vivemos assim uma situação iné dita em nossa história em que por um lado podemos mais do que nunca colher grandes benefícios mas por outro corremos o risco iminente de criarmos a nossa própria extinção dentro dos laboratórios de pesquisas científicas Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 72 Ademais corremos também o risco de diminuir a dignidade humana e de restringirmos sua autonomia sua liberdade e o seu sentido de igualdade Em virtude disso consideramos que é pre ciso continuar aprofundando o debate em torno das questões que permeiam o fazer científico Em suma somos do parecer que se de fato desejamos nos livrar dessa velha carcaça do hu mano não podemos deixar que esse desejo se consolide sem a mediação da reflexão ética Referências bibliográficas AGOSTINHO Confissões Os Pensadores São Paulo Abril Cultural 1973 ANTISERI Dario REALE Giovanni História da Filosofia vol I São Paulo Paulus 1990 AQUINO Tomás de Suma contra os gentios Porto Alegre EDIPUCRS 1996 ARISTÓTELES A Política São Paulo Atena Editora 1944 De anima Rio de Janeiro Editora 34 2006 BERGER Peter O dossel sagrado elementos para uma teoria sociológica da religião São Paulo Paulus 1985 BESNIER JeanMichel Que nous annoncent les utopies du posthumanisme Philosophie Management Compteren du Séminaire du 2510 08 p 115 Disponível em wwwphiloso phiemanagementcom Acesso em 18 mai 2014 CASSIRER Ernest A Filosofia do Iluminismo Campinas Uni camp 1997 DESCARTES René Traité de lHomme Paris Édition de la Pléiade sd Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 73 DUDLEY Will Idealismo alemão Petrópolis Vozes 2013 FELINTO Erick O PósHumano Incipiente Uma Ficção Co municacional da Cibercultura Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 2005 Disponível em httpwwwportcomintercomorgbrpdfs10849249003545 2962099631814065767000406pdf Acesso em 05 jun 2014 FERREIRA Jonatas A condição póshumana ou como pular sobre a nossa própria sombra Política Trabalho Revista de Ciências Sociais nº 21 outubro 2004 p 3142 Disponível em httpperiodicosufpbbrojsindexphppoliticaetrabalhoarti cleview6555 Acesso em 09 jun 2014 FISHER Hervé Lhyperhumanisme contre le posthumanisme Revue Argument 2004 Disponível em httpwwwrevuear gumentcaarticle20040301272lhyperhumanismecontrele posthumanismehtml Acesso em 08 jun 2014 FRAILE Guillermo Historia de la Filosofia v I Madrid Biblio teca de Autores Cristianos 1965 FUKUYAMA Francis Nosso futuro póshumano Rio de Janei ro Rocco 2003 GAUCHET Marcel La condition historique Paris Stok 2003 La démocratie contre elemême Paris Gallimard 2002 Lavènement de la démocratie II La crise du libéralis me Paris Gallimard 2007 GILSON Etienne A Filosofia na Idade Média São Paulo Mar tins Fontes 2001 HABERMAS Jürgen O futuro da natureza humana São Paulo Martins Fontes 2003 HEIDEGGER Martin Sobre o humanismo Os Pensadores São Paulo Abril Cultural 1983 p 147175 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 74 JAEGER Werner Paideia a Formação do Homem Grego São Paulo Martins Fontes 2001 LANCELIN Aude Bienvenue dans le monde posthuman Ma rianne 2012 p 19 Disponível em httpwwwmariannenet Bienvenuedanslemondeposthumaina214436html Aces so em 14 mai 2014 LOTT Henrique Marques A dinâmica do desencanto do mun do a saída da religião e a emergência da modernidade em Marcel Gauchet Tese Doutorado em Ciência da Religião Universi dade Federal de Juiz de Fora 2013 MORIN Edgar O Enigma do Homem Rio de Janeiro Zahar Editores 1979 PLATÃO Fédon Os Pensadores São Paulo Abril Cultural 1983 RABENHORST Eduardo R A dignidade do homem e os peri gos da pósmodernidade Verba Juris ano 4 n 4 jandez 2005 p 105126 RÜDIGUER Francisco Breve história do póshumanismo Ele mentos de genealogia e criticismo Compós abril 2007 p 117 Disponível em httpwwwcomposorgbrseerindexphpe composarticleviewFile145146 Acesso em 09 jun 2014 SLOTERDIJK Peter Regras para o parque humano Uma res posta à carta de Heidegger sobre o humanismo São Paulo Esta ção Liberdade 2000 TOURAINE Alain Critique de la modernité Paris Fayard 1992 TROTTEIN Serge Le posthumanisme de Nietzscheréflexions sur un trait dunion Noesis 102006 p 18 Disponível em httpnoesisrevuesorg662 Acesso em 06 jun 2014 VAZ Henrique Cláudio de Lima Antropologia filosófica v 1 São Paulo Edições Loyola 1991 Por uma espiritualidade de enfrentamento ao fundamentalismo MARCuS MAREANO Bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará UECE Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia FAJE Doutor em Teologia pela Universidade Católica de LovainaBélgica Professor de Teologia na PUCMG Padre da Arquidiocese de Belo Horizonte Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 76 Introdução Em culturas tão plurais e em tempos de alguns valores hu manos considerados ainda temos que estranhar o fundamenta lismo a inflexibilidade e a indisposição à mudança por parte de alguns grupos e setores da sociedade O presente texto discute o atual fenômeno no âmbito das re ligiões e propõe a experiência espiritual como enfrentamento a esse atual desafio Dentre as diferentes formas de fundamenta lismo a mais escandalosa é o fundamentalismo religioso pois pratica intolerância e violência de onde se espera promoção de justiça e paz A preocupação de retornar aos fundamentos como queria o movimento protestante do início do século XX que deu origem ao fundamentalismo pode ser mais benéfica se tal fundamento for o espírito ao invés da letra dos textos A reflexão se desenvolve a fim de propor sinais para uma es piritualidade que se oponha ao fundamentalismo O primeiro ponto aborda a pertinência desse tema em diversos âmbitos e estratos sociais sobretudo o fundamentalismo religioso que in felizmente observamos no Brasil Em seguida contextualizamos nosso momento presente denominado de pósmodernidade e o lugar que a religião ocupa nele Finalmente elencamos alguns tópicos principais como indicativos para uma espiritualidade pós moderna de contraposição ao fundamentalismo o pluralismo re ligioso a dimensão ética e o enfrentamento ao fundamentalismo Consequência de uma conferência e de um debate subse quente o texto não pretende ser exaustivo ou defender uma tese estrita sobre o tema O escopo do trabalho é mais indicativo e discursivo do que conclusivo e busca oferecer assinalações para ampliação da discussão Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 77 A questão dos fundamentalismos Não é necessário muito esforço de pesquisa para sentir a ur gência do tema no Brasil e no mundo Constantemente escu tamos e lemos notícias que remetem às diversas ações funda mentalistas no âmbito moral político econômico e sobretudo religioso As consequências são nefastas para todas as pessoas A história da humanidade traz marcas de inúmeros episódios de intolerância religiosa as cruzadas a rivalidade entre católicos e evan gélicos em diferentes países o extermínio de grupos minoritários os grupos fundamentalistas muçulmanos entre outros61 Poderíamos aprender com os erros passados no entanto ainda nos assustamos como ressalta Armstrong 2001 p 484 Hoje o fundamentalismo faz parte do mundo moderno Representa uma decepção uma alie nação uma ansiedade uma raiva generalizada que nenhum gover no pode ignorar sem correr risco Até agora os esforços para lidar com o fundamentalismo não tiveram muito sucesso Especificamente no Brasil neste momento histórico em que vi vemos destacamos duas atitudes principais dentre muitas decor rentes de fundamentalismo A primeira e talvez a mais momen tânea é a polarização políticopartidária entre direita e esquerda entre poderosos economicamente e ascendentes socialmente en tre golpistas e golpeados TELLES 2017 p 195205 A reflexão sobre esse tópico ainda se desenvolve e os eventos ainda aconte cem à espera de um desfecho DULCI 2017 p 169171 Outra atitude fundamentalista que destacamos se situa na esfera religiosa O Brasil é um país predominantemente cristão 61 Uma melhor análise e maiores exemplos de fundamentalismo nas diferentes religiões VASCONCELLOS Pedro Fundamentalismos matrizes presenças e inquie tações São Paulo Paulinas 2008 p 5584 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 78 e vergonhosamente ainda por aprender a conviver melhor com as diferentes crenças especialmente as de matrizes africanas principais vítimas de intolerância religiosa Algumas notícias recentes demonstram como o fundamen talismo religioso cristão promove desrespeitos e provoca vítimas nas outras religiões Dentre tantas notícias destacase a seguinte De janeiro a março deste ano os casos de intole rância religiosa cresceram mais de 56 no estado do Rio de Janeiro em comparação ao primeiro tri mestre de 2017 Em valores absolutos o número subiu de 16 para 25 denúncias no período segun do a Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos SEDHMI A capital concentra 55 das denúncias seguida por Nova Iguaçu e Duque de Caxias ambos na Bai xada Fluminense com 125 e 53 respectiva mente O tipo de violência mais praticado é a dis criminação 32 Depois aparecem depredação de lugares ou imagens 20 e difamação 108 As religiões de matrizes africanas são os principais alvos candomblé 30 e umbanda 2262 Se por um lado alguns poucos se desrespeitam e até matam em nome de Deus e da religião outros muitos buscam um caminho de rea lização humana plenitude paz e felicidade Pessoas querem viver em harmonia consigo mesmas com os outros e com a criação A espiritua lidade é a via e superação dos absurdos de algumas pessoas religiosas 62 Casos de intolerância religiosa sobem 56 no estado do Rio Disponível em httpagenciabrasilebccombrdireitoshumanosnoticia201805casosdeintole ranciareligiosasobem56noestadodorio Acesso em 18 jun 18 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 79 Religião e pósmodernidade Desde o início do novo milênio nós nos situamos em tempos de rápidas mudanças socioculturais O que era exato firme e consistente passa por um estado de liquefação A pósmoderni dade se consolida como novo tempo Situamonos nesse momento incógnito da nossa história As realidades estão dissolvidas e misturadas por isso a metáfora da fluidez conforme o uso difundido por Zygmunt Bauman 2001 p 71063 Nós recebemos uma herança de um processo de secu larização desde a modernidade64 O pensamento atual conside ra caducas e superadas as questões modernas por exemplo verdade absoluta moral universal supremacia da razão e cinde com a tradição O passado não importa e o futuro não interessa O que existe é o presente Por essa razão um tempo de insta bilidade crises moral fé economia política meio ambiente religião e um relativismo pertinente Do ponto de vista das religiões nós passamos de tempos da morte de Deus para uma revanche religiosa Ouvese falar cada vez mais frequentemente de um regresso do religioso ou do sagrado E é já costume caracterizar a nossa época precisa mente por esse regresso o que a tornaria uma época de atitude pósmoderna isto é superadora de uma correspondente atitude 63 Sobre a dificuldade de precisão do conceito pósmodernidade A denominação de pósmodernidade aplicada ao final do século XX e à transição do segundo milênio para o terceiro tornouse patrimônio comum a múltiplos âmbitos da cultura e da sociedade Por isso mesmo tornase extremamente difícil uma caracterização precisa desse concei to DUQUE João Manuel Dizer Deus na pósmodernidade Lisboa Alcalá 2003 p 5 64 Sobre o processo de secularização e suas consequências na contemporaneidade MONICO Lisete Secularização ateísmo e pluralismo religioso nas sociedades oci dentais contemporâneas Horizonte Belo Horizonte v 13 n 40 p 20642095 outdez 2015 Especialmente o tópico sobre a secularização MONICO 2015 p 20672069 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 80 moderna que se diz por sua natureza adversa ao religioso e ao sagrado DUQUE 2003 p 163 A proliferação das crenças responde à necessidade de recom por a partir do indivíduo e de seus problemas algo do sentido perdido A religião na contemporaneidade se caracteriza entre ou tras coisas pela difusão de crenças individualistas uma reconsi deração institucional da religiosidade e uma nova religiosidade flu tuante de elaborações sincréticas HERVIERLÉGER 2008 p 2025 Assistimos a um processo de desregulação das religiões As novas gerações se opõem às antigas gerações Há lacunas diferentes e enormes entre uma geração e outra que representam verdadeiras rupturas culturais Os pais ou responsáveis rejeitam transmitir alguma fé para os filhos e deixam para eles a escolha da religião Ou ainda os mais antigos não têm mais certezas de fé ou vivem crenças pessoais distinta das instituições O que antes era oferecido e aceito como pronto e indiscutível hoje necessita de um esclarecimento e uma opção refletida Os que creem hoje fazem com maior convicção A responsabilidade de escolher o próprio rumo pesa sobre o indivíduo pasmo diante de múltiplas alternativas Por isso a emergência de fundamenta lismos e de um tradicionalismo estéril reflexos da pouca capaci dade de diálogo com o presente Repetemse modelos velhos sob uma nova roupagem enquanto não se aceita os atuais desafios O indivíduo atual deseja uma experiência pessoal que correspon da aos seus anseios profundos e lhe forneça consolo e sentido de exis tência perene para sua vida Independentemente de denominação religiosa o ser humano anseia por algo da ordem da transcendência Ela é uma experiência porque este saber de cunho atemático mas inevitável é momento e Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 81 condição de possibilidade de toda e qualquer experiência concreta de qualquer objeto que seja Essa experiência é chamada transcenden tal porque faz parte das estruturas necessárias e não suprimíveis do próprio sujeito que conhece e porque consiste precisamente na ultrapassagem de determinado grupo de possíveis objetos ou de categorias A experiência transcendental é a ex periência da transcendência experiência na qual a estrutura do sujeito e consequentemente tam bém a estrutura última de todo objeto concebível de conhecimento está presente conjuntamente e na identidade RAHNER 1989 p 33 Embora os pensadores de diferentes tempos da história tenham apontado essa dimensão humana no momento presente ela se tor na destacada pela reação ao racionalismo histórico anterior e pelo enfraquecimento das grandes instituições sociais O ser humano possui uma sede de Deus Para corresponder a tal sede busca hu mana pelo espiritual devese considerar também a água espiritual e a forma de satisfação os meios para satisfação Portanto qual es piritualidade corresponderia melhor ao nosso tempo pósmoderno Por uma espiritualidade na pósmodernidade A pergunta complexa não merece uma resposta simplória nem definitiva pois o fenômeno exige ampla pesquisa Entretanto elencamos algumas características basilares para uma espiritua lidade na pósmodernidade especialmente para o enfrentamen to do fundamentalismo Compreendendo espiritualidade como movimento humano para a transcendência Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 82 Pluralismo religioso O primeiro tópico a ser considerado é o pluralismo religioso aludido acima Os tempos não são de hegemonia de uma de nominação nem de uma única maneira de relacionarse com a transcendência Cada vez surgem novas religiões ou novas for mas de viver a religiosidade De forma evidente a religião transfigurouse fragmentouse e multiplicouse embora cada fragmento não tenha efeitos maiores nas socie dades laicas permanecendo através das suas cir culações simbólicas do mistério das práticas e dos ritos mesmo em atividades grupos ou pro jetos não explicitamente tidos como religiosos Na atualidade das sociedades pósseculares uti lizando a designação emblemática de Habermas identificase uma abundância de novas direções religiosas e filosóficas uma expansão acelerada de vários grupos religiosos ou meramente de apelos para distintos modus vivendi Quando um ritual um simbolismo e uma estrutura institu cional são radicalmente modificados resulta um novo movimento religioso ao qual os membros facilmente tanto aderem como abandonam em função da resposta a necessidades ou a desejos pessoais MONICO 2015 p 2078 Assim um indivíduo que hoje busca alguma espiritualidade se depara com a variedade de ofertas Cada pessoa escolhe confor me lhe apraz Ao invés de uma religiosidade universal estamos caminhando para uma religiosidade profundamente pessoal uma Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 83 religiosidade a partir da qual cada um poderá encontrar sua lin guagem pessoal própria e mais específica para se dirigir a Deus FRANKL 2011 p 111 Prezase pela experiência mais do que pela normatização A dificuldade se encontra na solidez na pereni dade e no compromisso com a própria dimensão espiritual As religiões podem propor uma espiritualidade sadia que hu manize e integre o ser humano65 Dessa forma cumprese a tarefa dessas instituições que é a de ligar no sentido de relacionar re ligare a transcendência e a imanência o invisível e o visível o divino e o humano Do contrário a experiência religiosa tornase uma patologia gerando fanatismo e fundamentalismo e adoe cendo as pessoas e a sociedade O remédio é o desafio de cultivar uma experiência transcendental adequada e perene Por isso uma espiritualidade não pode ser um anestésico humano Um movimento espiritual conflui para uma prática de vida melhora da As religiões contribuem para um mundo melhor se a espiritualida de aponta para uma ética e o que se experimenta por uns instantes deriva em melhores ações de seres humanos inebriados pelo mistério Dimensão ética Nos tempos atuais muitas pessoas procuram viver eticamen te sem alguma vinculação religiosa institucional Ou ainda fre quentam algumas instituições religiosas sem viver genuinamente 65 Luiz Carlos Susin apresenta alguns critérios para uma espiritualidade saudável a árvore e os frutos isto é as consequências práticas de uma espiritualidade a livre decisão do amor liberdade e autonomia para viver qualquer tipo de fé SUSIN Luiz Carlos O ato de religião como virtude e seus vícios sobre fundamentalismo fanatis mo esquizocrentes In MILLEN Maria Inês de Castro ZACHARIAS Ronaldo org Fundamentalismo desafios à ética teológica Aparecida Santuário 2017 p 195 222 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 84 os preceitos religiosos A religião fica à serviço dos gostos indivi duais e não parece ser mais necessária para a felicidade humana A ética pode substituir uma fé ou uma vivência religiosa Cada vez mais cresce o número de pessoas que vivem bem mas não participam das religiões ou sequer dizem acreditar em Deus Por esse motivo diferentes propostas aparecem como alternati vas como por exemplo a espiritualidade ateia do filósofo André ComteSponville Uma espiritualidade da fidelidade antes da fé da ação antes que da esperança sim a ação pode se tornar um exercício espiritual tanto os trabalhos nos mosteiros quanto as artes marciais no oriente do amor enfim antes que do medo ou da submissão 2006 p 150 Ou ainda a proposta de uma espi ritualidade laica de Luc Ferry O amor é claro é o mais visível e mais forte não só por se encarnar em relações com outras pessoas mas também por animar todas as demais ordens do direito à ética passando pela arte a cultura e a ciência FERRY 2012 p 200 Seja pelos conhecidos discursos das religiões seja por refle xões que as dispensam a espiritualidade supera as instituições e conduz à prática do amor O ser humano que anseia uma ex periência transcendental aspira amar e sentirse amado para além e a partir das limitadas experiências sensoriais de amor Portanto o espiritual incide na práxis cotidiana da vida o trans cendente me remete ao drama real vivido e me insere nele de maneira diferente para atuar mais eficazmente O ato deve ser todo da pessoa humana mas como se fosse todo dependente da vontade transcendental em uma síntese en tre as vontades humana e divina na qual uma não pode nada sem a outra BLONDEL 1893 p 385 A ação é o ponto de encontro e de cooperação e o lugar de comunhão entre o ser hu mano e sua destinação própria Deus onde o homem ascende à Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 85 finalidade para a qual foi criado e o meio pelo qual se configura ao infinito que é o princípio e o fim da ação humana A comu nhão com o divino é a consumação da ação plenamente realizada pela participação no amor A orientação e a finalidade da ação humana se dirigem para essa realidade absoluta infinita e comumente nomeada por deus66 Mesmo a práxis sendo múltipla e transitiva ela anseia uma uni dade que a atrai e a impulsiona adiante O ser humano é livre na medida em que age conforme sua própria orientação e finalidade Não obstante ainda se praticam crueldades em nome de Deus e das religiões cultivamse ódios guerras conflitos e divisões O que poderia ser para humanização e melhoramento humano às vezes se torna combustível para inflamar rupturas sociais em nome de uma verdade O amor fica teórico e presente apenas nos discursos e a vida desses crentes fundamentalistas causa mais estranhamento do que admiração Se por um lado muitas pessoas das religiões disseminam caos por outro a espiritualidade representa resistência luta pacífica e oposição aos destroços como exemplo importantes expoentes da nossa história recente de diferentes denominações Mahat ma Gandhi Dalai Lama Asia Bibi Papa Francisco Thich Nhat Hanh Madre Tereza de Calcutá entre outros Enfrentamento ao fundamentalismo Os discursos de grupos fundamentalistas trazem o nome de deus e justificam as atrocidades por causa de uma falsa fé Por 66 Com essa grafia queremos comunicar a ideia de Deus de maneira não confes sional por uma religião específica Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 86 detrás há uma imagem equivocada de Deus como soberano in finito e onipotente que opera tudo e faz com que todas as coisas ocorram conforme seus desígnios Os líderes usam disso para manipular os grupos em prol de seu propósito de poder Então como pensar uma imagem de Deus que se oponha a essa realidade desumanizante Como uma relação com a divin dade supera o fundamentalismo doentio que ainda temos notí cias e se dispõe para uma aventura com o mistério Nossas maneiras de nomear o mistério são variadas deus transcendência inefável etc no entanto o humano percebe uma realidade para além de si mesmo da qual tem sede e almeja uma relação As religiões podem ajudar nesse caminho renovan do o próprio discurso considerando o momento atual e história real na qual o divino se manifesta Aqui neste aquém da subjetividade descons truída encontramonos sós e ao mesmo tempo acompanhados Sós em nossa liberdade pensan te e acompanhados na sensibilidade de outros corpos Sós no luto mas acompanhados de nos sos mortos e dos vivos a que com pena e com gozo entre mesclados sempre mal conhece mos e amamos Um lugar que não é lugar um sentido que é sem sentido um ser que não ente nem super ente mas abismo do ser Teremos de dar esse salto no vazio uma fé que não é crença que se engana anelando possuir um objeto de latria mas fé que é confiança in condicional no outro Uma esperança que não espera nada e no entanto dá todo na aposta de Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 87 um amanhã Um amor que não é correspondido porque não tem medida mas só sabe ser pura doação Tal será o lugar para falar da revelação divina no meio dos escombros da pósmoderni dade MENDOZAÁLVAREZ 2016 p 4244 Podemos pensar em deus como quem verdadeiramente se situa na realidade humana e padece o drama de todos Assim será possível encontrar uma finalidade para as adversidades e força para o enfrentamento cotidiano como Zizek arguemnta Schelling já havia escrito Deus é uma vida e não apenas um ser Mas toda vida tem um destino e está sujeita ao sofrimento e ao devir Sem um conceito de Deus que sofre humanamente toda a história permanece incompreensível Por quê Porque o sofrimento de Deus indica que ele está envolvido na história é afetado por ela e não apenas um mestre transcendente que controla tudo lá de cima o sofrimento de Deus significa que a história humana não é apenas um teatro de sombras mas sim o lugar de uma luta real a luta que o próprio absoluto está envolvido e em que seu destino é decidido ZIZEK 2016 p 132 Um deus sofrente agride o imaginário comum no qual se habituou a imaginar o divino como um espírito perfeitíssimo onipotente onisciente e onipresente Assim como as grandes instituições sociais a maneira de viver os valores e a sociedade estão em crise por conta das aceleradas mudanças da pósmoder nidade da mesma forma a imagem de deus deve ser repensada Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 88 e discutida sempre As buscas pelo mistério continuam por parte do ser humano e as repostas possíveis devem assumir as novas questões e os indivíduos gestados nessa cultura Os desafios presentes não são piores do que os de outros mo mentos na história A ousadia de um encontro com o mistério contribui para refletirmos além dos horizontes estreitos do espa ço e tempo em que nos situamos A experiência espiritual eleva nossas mentes ilumina nossos olhares e fortalece nosso ser para o empenho por uma existência abundante de sentido de ser Assim deus não é um ídolo propriedade de alguma deno minação religiosa ou alguém que suscite guerras desrespeitos e rivalidades para melhor ser adorado As características da nossa sociedade contemporânea apontam para uma experiência huma na de um deus percebido nas tramas da história e na vivência da complexidade do tempo Um deus mais na terra do que nos céus menos ontológico e mais existencial presente no interior das pessoas mais do que nos templos religiosos que se conhece pelas relações mais do que pelos discursos Assim teríamos uma espiritualidade verdadeira ao invés da intolerância religiosa Considerações finais Finalmente podemos nos questionar Que lições podemos tirar do passado que nos ajudem a enfrentar mais criativamente no futuro os medos que o fundamentalismo encerra ARMS TRONG 2001 p 484 O barulho rouco dos fundamentalistas parece ser mais forte do que as ações das pessoas que fazem uma experiência trans cendental Se comparamos quantitativamente e qualificativa Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 89 mente os espiritualizados que fazem verdadeira experiência espiritual exercem melhor sua humanidade que outros que que rem impor uma religião própria para todos aqueles deixam me lhor herança para os humanos pósteros do que estes Um caminho de superação das barbáries fundamentalistas deve ser a espiritualidade A experiência humana sobressai aos discursos religiosos Podemos enaltecer antes o conteúdo o mis tério de um deus do que as etiquetas denominações religio sas A beleza dos cultos e liturgias das diferentes religiões as preces feitas de maneiras próprias e a vivência do amor ocultam as marcas deixadas pelos atos fundamentalistas A pósmodernidade desafianos para novas compreensões das religiões e de deus Seremos tanto mais inseridos no mundo presente quanto mais o escutamos e dialogamos comsobre ele Nele fazemos a experiência espiritual e para ele tal ato se volta Por isso a esperança de uma consistente espiritualidade supera o medo do fundamentalismo Se infelizmente ainda se noticiam atos de violência por causa da religião a espiritualidade deve chegar de maneira eloquente no enfrentamento dessa realidade como um rio que quanto mais profundas são as águas mais si lenciosas perenes e fecundas vitalizando tudo por onde passa Então o presente se torna melhor com o que aprendemos do passado e pouco a pouco construímos um futuro menos intole rante e mais espiritual Se cada indivíduo possui uma tendência a integrarse cada experiência com o mistério potencializa isso e gera a paz que a humanidade almeja Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 90 Referências bibliográficas ARMSTRONG Karen Em nome de Deus o fundamentalismo no judaísmo no cristianismo e no islamismo São Paulo Compa nhia das Letras 2001 BAUMAN Zygmunt Modernidade líquida Rio de Janeiro Jor ge Zahar 2001 BLONDEL Maurice LAction essai dune science de la prati que et dune critique de la vie Paris 1893 COMTESPONVILLE André LEsprit de lathéisme introduc tion à une espiritualité sans Dieu Paris Albin 2006 DULCI Otávio Brasil 2016 para onde vamos In SOUZA Ro bson PENZIM Adriana ALVES Claudemir org Democracia em crise o Brasil contemporâneo Belo Horizonte PUCMG 2017 p 151171 FERRY Luc O homemdeus ou o sentido da vida Rio de Janei ro DIFEL 2012 FRANKL Viktor A presença ignorada de Deus 13ª ed Petrópo lis Vozes 2011 HERVIERLÉGER Danièle O peregrino e o convertido a reli gião em movimento Petrópolis Vozes 2008 MENDOZAÁLVAREZ Carlos Deus Ineffabilis uma Teologia pósmoderna da revelaçãodo fim dos tempos São Paulo É Rea lizações 2016 MONICO Lisete Secularização ateísmo e pluralismo religio so nas sociedades ocidentais contemporâneas Horizonte Belo Horizonte v 13 n 40 2015 p 20642095 RAHNER Karl Curso fundamental da fé 2ª ed São Paulo Paulus 1989 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 91 SUSIN Luiz Carlos O ato de religião como virtude e seus ví cios sobre fundamentalismo fanatismo esquizocrentes In MILLEN Maria Inês de Castro ZACHARIAS Ronaldo org Fundamentalismo desafios à ética teológica Aparecida Santuá rio 2017 p 195 222 TELLES Helcimara Crise política ou crise na política O pro cesso de impeachment da presidente Dilma Rousseff e seus des dobramentos apolíticos In SOUZA Robson PENZIM Adria na ALVES Claudemir org Democracia em crise o Brasil contemporâneo Belo Horizonte PUCMG 2017 p 173206 VASCONCELLOS Pedro Fundamentalismos matrizes pre senças e inquietações São Paulo Paulinas 2008 ZIZEK Slavoj Apenas um Deus que sofre pode nos salvar In GUNJEVIC Boris ZIZEK Slavoj O sofrimento de Deus inver sões apocalípticas Belo Horizonte Autêntica 2016 p 129160 O malestar na sociedade e seus efeitos sobre os matrimônios católicos contemporâneos a proposta de mediação religiosa do Encontro de Casais com Cristo DENIS COTTA FORMIGA Mestrando em Ciências da Religião na PUC Minas e bolsista desta Bolsa Assistencial Stricto Sensu Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 93 Resumo O presente estudo visa analisar os aspectos advindos do males tar da sociedade contemporânea e seus impactos sobre os vínculos amorosos mais especificamente sobre os matrimônios cristãocató licos Nessa premissa salientase o serviço escola da Igreja Católica a saber o Encontro de Casais com Cristo ECC que tenta instau rar uma mediação religiosa em prol da consolidação do sacramento do matrimônio De acordo com a hipótese desta pesquisa o ECC preza por uma ressignificação do matrimônio de seus participantes contudo salientamse problemáticas para a instauração deste objeti vo Observase que tais problemáticas são derivadas em certo grau aos sentidos produzidos nos indivíduos pelo malestar na sociedade contemporânea de acordo com o prisma psicanalítico No que tan ge ao referencial teórico utilizado esta pesquisa se fundamenta em duas subdisciplinas das Ciências da Religião a saber a Sociologia da Religião e a Psicologia da Religião no intuito de propor um diá logo teórico entre ambas Neste sentido no tocante à subdisciplina de Psicologia da Religião este trabalho se utilizará da abordagem psicanalítica freudiana tratada pelo psicanalista brasileiro Joel Bir man que propõe um diálogo com o pensamento do sociólogo Max Weber referente ao processo de desencantamento do mundo Além disso este estudo visa salientar a concepção freudiana referente à concepção de amor narcísico e de amor anaclítico que são elucida das na obra Sobre o narcisismo de autoria de Sigmund Freud e que serão abordadas posteriormente neste trabalho Palavraschave ECC Matrimônio Sociedade Contemporânea Psicanálise Malestar Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 94 Introdução As Ciências da Religião CR constituem um vasto campo do saber que se dedica a uma análise científica da religião e que preza pelo estudo empírico dos aspectos individuais e sociais dos fenôme nos religiosos No âmbito epistemológico o campo das CR é cons tituído de uma árvore do conhecimento composta de oito subáreas cada qual com uma metodologia e aporte teórico próprios Dessa forma por intermédio da subárea da Psicologia da Religião preten dese analisar os aspectos subjetivos dos indivíduos participantes e os efeitos psicológicos produzidos por este serviço escola da Igreja Católica intitulado Encontro de Casais com Cristo ECC Além disso este estudo visa apresentar sob um prisma psicanalítico o contexto em que se encontra o sujeito desamparado e em males tar Assim este indivíduo de acordo com suas necessidades pode recorrer a uma mediação religiosa como o ECC em busca de res postas para seu sofrimento emocional e amoroso Primordialmente devese salientar qual é o discurso religioso difundido por esse serviço da Igreja Católica para que posterior mente se possa realizar a inferência com o desencantamento reli gioso De uma forma geral podese dizer que o discurso religioso oriundo do ECC preza sobretudo pela evangelização da família e pelo fortalecimento dos laços matrimoniais de seus participantes Na premissa de promover o cuidado matrimonial dos casais paroquianos surgiu o Encontro de Casais com Cristo Essa ação pastoral familiar foi idealizada nacionalmente pelo Padre Alfonso Pastore que iniciou o projeto em 1970 na Paróquia Nossa Se nhora do Rosário na Vila Pompeia em São Paulo SP Segundo Pastore 2000 o propósito do ECC seria de uma forma geral realizar um chamado da igreja para que seus fiéis se atentassem à importância da família e do casamento Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 95 Nesse contexto o discurso utilizado pela Igreja Católica e mais propriamente pela ação do ECC segue em uma direção oposta ao discurso proferido pela sociedade contemporâneaconsumo e que em algum grau podem fragilizar os laços amorosos como é o caso do conceito de amor narcisista elucidado por Sigmund Freud Visão psicanalítica freudiana sobre os impactos da sociedade contemporânea sobre os matrimônios católicos É de suma importância inicialmente realizar um aporte teó rico da presente pesquisa sob a perspectiva das Ciências Psi cológicas da Religião e sua interpretação da subjetividade e da conduta dos indivíduos em contexto religioso Assim uma Psico logia da Religião não deve se pautar pela crítica ou pela defesa da religião mas pelo seu serviço de conhecimento científico Em outros termos tratase de realizar o estudo científico des critivo e objetivo do fenômeno religioso no que se refere ao com portamento humano RODRIGUES GOMES 2013 p 333 Cabe ressaltar outro ponto de referência neste trabalho a saber o conceito de sociedade contemporânea que segundo Agamben 2009 recorre inicialmente ao conceito de Nietzsche que vislumbra o que é ser contemporâneo como intempestivo Assim o autor relembra que para Nietzsche o ser contemporâ neo possui como uma de suas principais características a sua inadequação ao seu próprio tempo em outros termos o indiví duo não se identifica com o contexto temporal em que vive Um exemplo disso é o próprio Nietzsche que considerava suas ideias à frente de seu contexto histórico Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 96 Dessa forma para o autor supracitado o ser contemporâneo é aquele que pertence verdadeiramente ao seu tempo é verda deiramente contemporâneo ele é capaz mais do que os outros de perceber e apreender o seu tempo AGAMBEN 2009 p58 59 O referido autor ainda propõe outra forma a qual se pode definir a contemporaneidade assim contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo para nele perceber não as luzes mas o escuro AGAMBEN 2009 p 62 Nesse sentido Agamben 2009 salienta que a escuridão nes se contexto não se remete à inércia ou à falta de visibilidade do ser contemporâneo ao contrário diz respeito à capacidade de ver aspectos de seu tempo que estão encobertos nessa escuridão Em outros termos o sujeito contemporâneo segundo o pensamento do autor supracitado é capaz de vislumbrar aspectos obscuros de sua realidade social aspectos estes que na maioria das vezes se encontram ocultos à uma analise superficial das esferas sociais Em suma segundo o pensamento do autor supramencionado o sujeito contemporâneo deve aprender com a escuridão do presente e trazer a luz da interpretação do passado Por isso a im portância de se recorrer à história para que assim possa ilumi nar as trevas da contemporaneidade e dessa forma interpretar o tempo presente de uma melhor forma Nessa guisa com o intuito de tratar o afastamento dos casais da paróquia e ao mesmo tempo em que propõe um diálogo entre a Igre ja e a sociedade contemporânea o Encontro de Casais com Cristo se mostra como uma espécie de mediação religiosa com enfoque no sacramento matrimonial frente ao malestar social que pode impactar direita ou indiretamente o casamento dos paroquianos Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 97 Dessa forma antes de se analisar os aspectos psicológicos e emocionais que podem ser observados nesse Encontro salienta se a necessidade de contextualizar o enfoque inicial que se pro põe o ECC Católico Este se fundamenta de uma forma geral em três etapas cada qual com suas particularidades e direciona das a alcançar um determinado objetivo A primeira etapa é caracterizada por desempenhar a quebra de gelo é o momento da convocação dos casais afastados da igreja e do início do processo de ressignificação do matrimônio A segunda etapa é o reencontro tratando da proposta de com promisso com a Igreja focase no engajamento de casais da pa róquia no ECC A terceira etapa enfim possui um enfoque na reflexão das estruturas injustas da sociedade Ao tratar do contexto de desencantamento do mundo67 o psicanalista brasileiro Joel Birman aponta que este referido es tado de desencantamento traz ao sujeito um sentimento de desamparo que em outros termos pode ser descrito como certa descrença para com os aspectos sociais abrangendo os relacio namentos interpessoais e sua própria condição humana Nes se sentido serão tratados no próximo tópico deste trabalho os possíveis diálogos entre as teorias weberiana e freudiana no que cerne ao conceito de desencantamento do mundo Podese inclusive retomar ao conceito da castração realizada pela figura paterna para dialogar com esse processo do sujeito desen cantado Na concepção freudiana Deus seria para o sujeito a repre 67 O conceito sociológico de desencantamento do mundo foi utilizado amplamen te por Max Weber No entanto o psicanalista freudiano Joel Birman se utiliza desse mesmo termo para realizar uma dialética entre a visão weberiana e a freudiana funda mentandose principalmente na obra Malestar na civilização de Sigmund Freud Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 98 sentação do pai simbólico68 no qual são refletidasdepositadas todas as suas experiências medostraumas e recalques inconscientes Dessa forma o sujeito pode perder a referência de Deus da religião ou até mesmo de si Esse estado no qual o sujeito neurótico vivencia o desencantamento pode prejudicálo em di versas esferas de sua vida entre elas as relações interpessoais e sociais Nesse viés os indivíduos desencantados se encon tram com as referências de normas e valores presentes no su perego69 fragilizado Assim sem a repressão de que certa forma servia como estrato psíquico controlador de sua conduta social o sujeito acaba dividido e sem qualidades no que tange à sua persona sociocultural BIRMAN 1998 Nesse viés se encontra um dos maiores desafios da ação da Igreja Católica e mais especificamente do ECC A problemática que se apresenta é de como propiciar a este sujeito desencantado uma ressignificação do sacramento matrimonial Como relembra Schuchter 2014 de acordo com o pensamento weberiano o desencantamento religioso também pode ser visto na mudança de paradigma entre o homem e a sua ideia de salvação Dessa forma se há uma negação por parte do sujeito da ne cessidade da Igreja de seus líderes religiosos assim como dos 68 Na visão psicanalítica freudiana Deus seria a representação simbólica paterna tanto em níveis de experiência do sujeito quanto de idealizações feitas à essa imagem que podem variar desde a concepção de um pai amoroso até a de um pai extrema mente severo e repressor 69 A segunda tópica freudiana estabelece que todo sujeito possui três esferas de ordem psíquica que controlam e moldam sua conduta assim como as experiências vividas Assim de forma geral o ID é reservatório das pulsões de vida e morte é estritamente regido pelo princípio do prazer O ego estabelece o equilíbrio entre as exigências do ID e às ordens do superego é regido pelo princípio da realidade é o regulador O superego originase com o complexo de Édipo a partir da internalização das proibições seu conteúdo se refere às exigências sociais e culturais BOCK 2009 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 99 sacramentos instituídos este indivíduo se encontra em um pro cesso de racionalização religiosa que pode ser concebida como aspecto do desencantamento religioso A partir dessa premissa o ECC possui dois principais desa fios o primeiro seria a tentativa de propiciar um reencantamento religioso desse sujeito procurando instaurar ou reavivar senti mentos idealizações que façam com que esse indivíduo retorne à Igreja e professe sua fé cristãcatólica O segundo desafio es taria relacionado à proposta de ressignificação70 do sacramento do matrimônio que preza por uma nova visão ou renovação do amor inicial vivido no início do vínculo amoroso Ao se pensar nas problemáticas e dilemas entre eles o de sencantamento do mundo que levaram esses indivíduos a parti ciparem desse encontro para casais podese analisar os possíveis impactos emocionais gerados inicialmente nesses indivíduos ao serem submetidos a esse discurso religioso Discurso este que é pautado pela figura de um Deuspai amoroso e que se preocupa com a união da família e sobretudo com o sacramen to71 do matrimônio Nesse contexto em que se apresentam casais que em sua maioria se encontram emocionalmente fragilizados as mensa gens difundidas nas palestras da primeira etapa do ECC em um primeiro momento podem propiciar uma eclosão de emoções li gadas ao arrependimento à carência afetiva entre outros aspec tos que de alguma forma remetem ao passado ou ao presente do relacionamento do casal 70 Neologismo que se refere à atribuição de um novo significado de algo 71 A definição de sacramento é atribuída a Santo Agostinho e é resumida como um sinal externo e visível de uma graça interior e espiritual NOVO DICIONÁRIO DE TEOLOGIA 2011 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 100 Como referenciado anteriormente esses encontros podem instaurar em seus participantes a importância da empatia do vín culo amoroso em que o amor narcísico dá lugar ao amor anaclí tico E é aqui neste exato ponto que se vislumbra a contribuição teórica de Freud o presente estudo Segundo a concepção psicanalítica freudiana o amor narcí sico pode ser entendido em um sentido egocêntrico no qual o sujeito só ama alguém que reflete sua imagem como o reflexo de um espelho Em outros termos no amor narcísico o sujeito só ama quando se reconhece no outro Podese dizer que ama a si mesmo refletidoa noa parceiro a Outro tipo de amor apresentado por Freud 1914 199672 é o anaclítico em que ao contrário do narcísico o sujeito identifica no outro a diferença e dessa forma ama a diferença do outro Esse tipo de amor pode ser compreendido como um enfoque no outro ou seja o sujeito é ciente das diferenças entre ele e a outra pessoa não necessitando ver refletida sua imagem noa parceiroa para amáloa até pelo contrário o que ele deseja é a diferença Diante dessa perspectiva o autor salienta que para superar esse amor mercantilista baseado em bens de consumo é neces sária uma ressignificação deste Deve ser encarado como uma arte que exige humildade e esforço de ambas as partes envolvidas para que assim se possa criar a possibilidade de um amor anaclítico Em suma com base na teoria psicanalítica de Freud é pos sível associar a proposta do ECC Católico por meio da concep ção de ressignificação do casamento nesse viés o processo de atribuição de um novo significado para o matrimônio que se dá 72 A primeira data entre colchetes se refere à publicação original da obra e a se gunda entre parênteses remete à data da obra consultada Nas demais citações serão elucidadas somente a data da obra consultada Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 101 por meio do discurso religioso do ECC Nessa premissa o amor narcísico precisa ser superado extinguido do casamento para que assim possa dar lugar ao amor anaclítico O desencantamento do mundo uma proposta de diálogo entre a sociologia weberiana e a psicanálise freudiana Através de uma análise da Psicologia da Religião e mais espe cificamente da abordagem psicanalítica podese contextualizar o desencantamento religioso tratado por Weber na Sociologia como um dos fatores que podem propiciar o aspecto de fragilidade desses laços amorosos Nessa perspectiva se os indivíduos se encontram afastados da Igreja eou não se atêm ao matrimônio enquanto sacra mento notase uma mudança na conduta desses sujeitos Para uma melhor compreensão do conceito weberiano de desencantamento do mundo cabe ressaltar a figura do filósofo e sociólogo brasileiro Carlos Eduardo Sell que discorre sobre esse conceito da teoria weberiana Primordialmente Sell 2015 aponta que antes de se compreender a concepção de secularis mo na obra sociológica de Weber devese atentar aos dois ideais que estão quase sempre associados ao processo de secularização sendo a racionalização e o desencantamento do mundo No pensamento weberiano o conceito de desencantamento do mundo pode ser entendido em duas esferas o desencantamento religioso entendido como desmafigicação do desencantamento científico entendido como perda do sentido Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 102 identificando pois dois significados no concei to elide o fato de que também a ciência repousa sobre a desmafigicação SELL 2015 p 1617 Segundo Sell 2015 o conceito de secularização na obra webe riana é um tanto quanto fraco se for vislumbrado enquanto termo o processo de secularização pode ser encontrado ao se abarcar de forma mais holística sua obra Na tentativa de elucidar como a secularização é entendida na obra de Weber Sell 2015 p 22 aponta que esse processo é dividido em uma estrutura bidi mensional a secularização tanto os processos de ruptura quanto de continuidade entre o moderno e suas raízes religiosas No intuito de instaurar a dialética entre a Sociologia e a psi canálise este trabalho apresenta a visão freudiana sobre o de sencantamento do mundo Assim de acordo com Birman 1998 p 141 o desencantamento pode ser concebido como a racionalização do mundo pela ciência e o correlato esvaziamento dos deuses que encantavam o mundo produzem no sujeito um desamparo originário e inevitável Segundo o autor supracitado esse conceito freudiano é difundido sobretudo na obra O mal estar na civilização publicada originalmente em 1929 Nesta Sigmund Freud apesar de não utilizar propriamente o termo de sencantamento do mundo ressalta que o sujeito na modernida de se encontra destituído de suas potencialidades e desta forma é destinado ao desamparo e ao malestar BIRMAN 1998 Nesse sentido de esvaziamento ao qual o sujeito se encontra no desencantamento a religião perde o seu status de proteção e de salvação para esse indivíduo Assim a fantasia da proteção de um Deuspai não é mais alcançada eou vislumbrada por esse sujeito que padece então de um desamparo inevitável como re lembra a teoria freudiana Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 103 Para se tratar do caráter do desencantamento no viés psica nalítico é de suma importância frisar a ideia de religião expressa por Freud que é concebida como uma neurose infantil do su jeito Ao retomar sua concepção de religião enquanto neurose infantil Freud 1929 2011 p 1773 esclarece que o homem comum entende como sua reli gião o sistema de doutrinas e promessas que de um lado lhe esclarece os enigmas deste mundo com invejável perfeição e de outra lhe garante que uma solícita Providência velará por sua vida e compensará numa outra existência as even tuais frustrações desta A partir desse fragmento o autor supracitado nos remete ao pensamento de que o sujeito ao perder o encantamento pela religião ou até mesma ao encarála como uma neurose infantil pode se lançar ao malestar eou ao desprazer E assim para evi tar o desprazer o sujeito busca o sentido da vida que segundo Freud 2011 é permeado pela procura da felicidadeprazer No entanto de acordo com o autor em foco a felicidade não é eter na mas sim passageira em outros termos as pessoas não são felizes mas estão felizes dada a ideia de fenômeno episódico Através de seu pensamento Freud 2011 aponta que a bus ca pelo prazer em certas ocasiões pode levar os indivíduos a procurar na religião um alento para o seu estado de desamparo mesmo que como paliativo Seguindo essa concepção observa 73 A primeira data entre colchetes se refere à publicação original da obra e a se gunda entre parênteses remete à data da obra consultada Nas demais citações serão elucidadas somente a data da obra consultada Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 104 se que grande número de pessoas empreende conjuntamen te a tentativa de assegurar a felicidade e protegerse do sofrimen to através de uma delirante modificação da realidade Devemos caracterizar como tal delírio de massa também as religiões da humanidade FREUD 2011 p 26 No tocante ao pensamento da expressão desancamento do mundo a análise da obra freudiana O malestar na civilização mesmo sem utilizar essa expressão fornece subsídios para um processo dialético entre a sociologia e psicanálise Freud 2011 estabelece primordialmente que a busca pelo prazer não se limi ta somente ao campo religioso salientando que essa procura se dirige aos demais constructos socioculturais como a ciência e a arte mesmo que ambas fracassem no quesito promoção da felicidade duradoura Neste intuito a concepção freudiana elu cida que por mais que arte possa ser fonte de momentos de alegria não é capaz de produzir mais que um passageiro alheamento às durezas da vida não sendo forte o bastante para fazer esquecer a miséria real FREUD 2011 p 25 Nesse sentido Birman 1998 concebe o desencantamento religioso como uma tentativa do sujeito de fingir para si mesmo eou para as outras pessoas que ele ainda se encontra firme mente ligado à religião mas no entanto já se encontra apartado dela há algum tempo Dessa maneira o pensamento freudiano concebe o processo de racionalização da religião que acaba por instaurar novas perspectivas acerca da necessidade de significa ção da religião para o homem Então o sujeito ao migrar sua crença para a nova religião que se apresenta a saber a ciência moderna acaba por se sentir de samparado por não encontrar nela as respostas que procurava para o anseio de sua alma Nesse viés o intuito científico de fornecer Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 105 ao homem as respostas sobre a verdadeira Arte verdadeira Natureza o verdadeiro Deus ou mesmo a verdadeira Felicidade fracassa miseravelmente SCHUCHTER 2014 p 46 Diante desse paradigma o sujeito neurótico insatisfeito com as repostas dadas pela ciência moderna se volta para sua incompletu de e se encontra novamente desamparado Esse estado de desam paro pode muitas vezes levar esse sujeito à tentativa de retorno à ilusão religiosa que pode ser vislumbrada pela ideia de reen cantamento Nessa guisa percebese segundo o pensamento de Schuchter 2014 que o processo de desencantamento do mundo instaura de alguma forma a necessidade de um reencantamento Em outros termos nessa concepção observase que desencantamento não é nenhum processo linear e irreversível Tratase de um longo proces so conduzido principalmente pela religião de salvação judaicocristã e pela ciência grega e mo derna no qual o desencantamento e o reencan tamento estimulamse mutuamente mas no qual também a constelação fundamental das esferas de valor e ordens de vida veemse profundamente alteradas SCHUCHTER 2014 p 4950 Ao analisar o pensamento do sociólogo Schuchter 2014 po dese perceber a proposta de diálogo entre a teoria psicanalítica freudiana e a sociológica weberiana em que ambos tratam de um duplo desamparo do sujeito ou em outros termos um duplo de sencantamento No paradigma sociológico observase o conceito de desencantamento já na perspectiva freudiana vislumbrase o malestar social ou desprazer e sua busca pela felicidade Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 106 Conclusão Por intermédio dos teóricos utilizados neste trabalho podese observar características marcantes da sociedade contemporânea e sua relação com o âmbito religioso Com o propósito de esta belecer um diálogo entre pensadores clássicos como o sociólogo Max Weber e o psicanalista Sigmund Freud percebese que o indivíduo contemporâneo se encontra não desencantado mas duplamente desencantado74 Nessa perspectiva percebese os desafios enfrentados pelo ECC na contemporaneidade ao tentar promover uma consoli dação do sacramento matrimonial que por sua vez se encon tra permeado por um contexto sociocultural caracterizado pelo desprazer Assim os vínculos amorosos e religiosos apresentam aspectos de porosidade ou nos termos de Bauman formas lí quidas tanto no âmbito social quanto nas formas de relaciona mento como elucidado em sua obra intitulada Amor Líquido Em suma este estudo visa salientar que caso a religião deseje continuar relevante ao viés sociocultural ao qual está inserida é de suma importância a promoção do diálogo Igrejasocieda de Como dito anteriormente neste trabalho os sujeitos não possuem a mesma visão de mundo e além disso a socieda de contemporânea também dispõe de seus deuses e ideologias religiosas que são amplamente divulgadas como substitutas às tradições religiosas ditas tradicionais Nesse impasse o sujeito pósmoderno se encontra entre um verdadeiro cardápio religioso a la carte em que o sincretismo 74 Esse duplo desencantamento se refere primeiramente à religião e aos aspec tos míticos em geral e posteriormente o segundo desencantamento com a ciência e as promessas da modernidade Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 107 religioso eou ideológico aparece como mais uma opção às restri ções de instituições religiosas ortodoxas Sendo assim as insti tuições religiosas tradicionais tendem a afrouxar seus discursos com o intuito de acomodar esse sujeito duplamente desencan tando mas que em certa medida ainda recorre à religião como reduto contra o desamparo e ao malestar da contemporaneidade Referências bibliográficas AGAMBEN Giorgio O que é o contemporâneo In O que é o contemporâneo e outros ensaios Chapecó Argos 2009 BAUMAN Z Amor líquido Rio de Janeiro Zahar 2004 BAUMAN Z Modernidade líquida Rio de Janeiro Zahar 2001 BIRMAN J O malestar na modernidade e a psica nálise a psicanálise à prova do social PHYSIS Re vista Saúde Coletiva v 8 n 1 1998 p 123144 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciar ttextpidS010373311998000100007lngennrmiso Acesso em 27 set 2017 BOCK A M B et al Psicologias uma introdução ao estudo de Psicologia 14 ed São Paulo Saraiva 2009 FREUD S 1996a Sobre o narcisismo uma introdução Edi ção Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud v 9 Rio de Janeiro Imago Originalmente pu blicado em 1914 FREUD S 2011 O malestar na civilização São Paulo Com panhia das Letras Originalmente publicado em 1929 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 108 RODRIGUES C C L GOMES A M A Teorias clássicas da Psicologia da Religião In PASSOS J D USARSKI F Com pêndio de Ciência da Religião São Paulo Paulinas 2013 p 333340 SCHUCHTER W O desencantamento do mundo Seis estudos sobre Max Weber Rio de Janeiro UFRJ 2014 SELL C E A secularização como sociologia do moderno Max Weber a religião e o Brasil no contexto modernoglobal Revista Brasileira de Sociologia v 03 n06 juldez 2015 Desafios e possibilidades da experiência de encontro interreligioso uma investigação fenomenológica YuRI ELIAS GASPAR Doutorado em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais Brasil 2014 Professor adjunto da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri Campus JK MIGuEL MAHFOuD Doutorado em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Brasil 1996 Professor associado aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 110 Introdução Embora haja tanto desencontro pela vida a vida é arte do encontro já dizia o grande poeta Vinícius de Moraes 1988 Não foi por acaso que invertemos a ordem dos famosos versos pois triste é constatar que de fato o desencontro é tanto e tem chamado tanto a nossa atenção fazendose presente nas rela ções entre pessoas grupos comunidades povos países Triste também é perceber que diante de tantos desencontros muitas pessoas cansadas e machucadas reafirmam que a vida é a im possibilidade do encontro Mas permitindonos retomar à mesma canção de Vinícius a tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste não Não uma esperança vazia ideológica ou ilusória pois a ferida aberta de um desencontro reacende a chama da nossa espera por reais experiências de encontro é assim como a luz no coração É com essa chama que reconhecemos não só como os desencontros nos ferem mas como os encontros podem efetivamente nos corres ponder Aqui podemos nos encontrar inclusive conosco mesmos e nos abrir para reconhecer a arte da vida do encontro e no encontro Embora haja tantas possibilidades de encontrosvida uma mo dalidade em especial nos interessa o encontro entre diferentes Não de qualquer diferença mas daquela seria mesmo diferen ça que se joga na raiz que tende a tocar no horizonte último da vida a diferença interreligiosa Já é perceptível nesta primeira problematização o emergir de uma provocação a diferença é um fato mas a experiência do encontro pode revelar uma proximidade surpreendente Na diferença pode emergir uma unidade No relacionamento interreligioso o desencontro tem sido uma constante além de ser em algumas situações assustado Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 111 ramente perigoso TEIXEIRA 2010 A tensão toma a cena no desenrolar da relação podendo se concretizar implícita ou ex plicitamente por meio de formas diversas estranhamentos pre conceitos discordâncias mágoas brigas ódios guerras santas genocídios Tensão que se revela tanto no relacionamento in terpessoal quanto em modalidades mais amplas de relação social Tensão por vezes velada por vezes assumida religião não se discute afirma o antigo ditado Tensão por vezes incentivada o que pode tanto dificultar a constituição e manutenção do rela cionamento baseado no reconhecimento recíproco quanto levar em última consequência a verdadeiras batalhas Inclusive mui tas das guerras foram e continuam sendo justificadas em nome de Deus tenha Ele o nome que for frente àqueles que não compartilham daquela crença Enquanto aparecem em vários países e entre países situações de desencontro e violência sus citadas pela diferença religiosa não só a relação entre pessoas povos e países se vê ameaçada como também a própria existên cia do ser humano Tanto que muitos dizem e propõem que seria melhor que a religião não fizesse parte da vida das pessoas grupos e nações em síntese que não existisse já que ela seria o fator que gera mais desencontro e violência Se no relacionamento interreligioso o desencontro é dramático e por vezes trágico o encontro quando se realiza mesmo mar cado por tensões pode ser gerador de vida ocasião de reconheci mento de uma proximidade fundamental na diferença que pode lançar provocações para a totalidade da vida Acontecimento que surpreende a todos os envolvidos por mais que seja planejado ele instaura uma novidade que pode abrir novos caminhos para o relacionamento interreligioso Desenrolandose em nível inter pessoal o encontro interreligioso pode inundar a constituição das Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 112 relações sociais mais amplas contribuindo para a constituição de uma cultura que o favoreça Desenrolandose em nível macro so cial ou sendo proposto por figuras e instituições de referência o encontro interreligioso pode se constituir como recurso cultural para a transformação dos relacionamentos cotidianos Tanto é assim que nos últimos anos ampliaramse os esfor ços para promover explicitamente o encontro interreligioso São iniciativas que nasceram de diferentes tradições religiosas e em diversas partes do mundo experiências em ato que evidenciam a urgência e a radicalidade do encontro como resposta a tantos desencontros oferecendo indicações preciosas para a constitui ção do relacionamento frutífero com o diferente na diferença e para construir um mundo mais humano Não se trata de propos tas genéricas de como deveria ser a relação interreligiosa mas de situações concretas que evidenciam o valor de contemplar a experiência para dela aprender como o encontro pode aconte cer A importância de investigar efetivos encontros interreligio sos é evidenciada por Sodré 2007 ao destacar que experiências concretas de acolhimento e diálogo entre sujeitos de diferentes perspectivas religiosas podem se tornar exemplos vivos que mos tram a possibilidade de aprofundamento da experiência religiosa no reconhecimento da alteridade e no respeito à pluralidade de manifestações da religiosidade Nesse sentido o Brasil apresenta uma realidade particular mente interessante e provocadora marcada tanto por uma inten sa e multifacetada convivência entre pessoas de religiões diferen tes quanto por inúmeros exemplos de encontros interreligiosos que estruturam relacionamentos baseados contemporaneamente no reconhecimento e enriquecimento mútuo e na vivência da própria religiosidade na relação com a alteridade Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 113 A partir dessa problematização realizamos pesquisa de doutora do Gaspar 2014 com o objetivo de investigar a constituição e o di namismo próprio da experiência de encontro interreligioso a partir de quem pôde vivenciar unidade dentro da diversidade de posições religiosas Para tanto adotamos a Fenomenologia Clássica de Ed mund Husserl 2006 2012 e Edith Stein 2003 2005 como base de nosso referencial teóricometodológico Ales Bello 2004 e en trevistamos seis pessoas que de fato carregam essa experiência de encontro interreligioso consigo Vejamos quem são essas pessoas75 Dom Bernardo católico é prior de um mosteiro trapista no Brasil Ele é neto de imigrantes judeus da Europa Oriental Cria do num ambiente tipicamente americano foi também formado segundo as tradições judaicas Mesmo reconhecendo o valor do Judaísmo em sua formação maravilhouse pela presença de Je sus e converteuse ao Catolicismo após uma passagem pela Igre ja Presbiteriana Interessado na vida monástica primeiramente se tornou padre jesuíta para só depois tornarse monge trapista Carolina budista é participante ativa da SokaGakkai Internatio nal onde é responsável por acompanhar os membros dessa organiza ção especialmente as jovens budistas de sua faixa etária É em casa o lugar por excelência onde sua convivência interreligiosa acontece Filha de pais católicos Carolina transformou a resistência inicial em simpatia diálogo e boa convivência Mesmo permanecendo católica praticante sua mãe não se opôs que Carolina se convertesse ao Bu dismo e também participa de algumas reuniões da SokaGakkai Criado no meio evangélico Davi desde muito cedo participou ativamente da vida da Igreja interessandose na adolescência pelos 75 A partir da autorização dos entrevistados optamos por manter seus nomes pró prios reais na apresentação dos resultados pois compreendemos que a pessoalidade encarnada em cada história é desta forma melhor respeitada Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 114 caminhos teológico e pastoral Enquanto estudou em colégios con fessionais teve oportunidade de se relacionar com pessoas de ou tras perspectivas religiosas Na graduação em Psicologia aprofun dou relacionamentos dessa natureza especialmente com católicos e espíritas cultivando a amizade e a disponibilidade para conviver e aprender com o outro Aprofundandose na própria perspectiva tornouse mestre em Teologia e pastor sem abandonar o percurso já feito busca integrar a contribuição das duas vertentes em que se formou Assim hoje atua como psicólogo clínico e é um dos líderes de uma comunidade evangélica bem como continua a cultivar sua abertura para se relacionar com o diferente participando de algu mas modalidades de diálogo interreligioso entre outras iniciativas José Luiz espírita carrega uma trajetória familiar interessante De católicos nãopraticantes ele sua mãe e irmãos converteram se ao Espiritismo Anos mais tarde a mãe e os irmãos tornaram se evangélicos batistas enquanto ele permanece espírita Seu pai mesmo por não frequentar nenhuma religião é descrito como ex tremamente espiritualizado e dedicado ao bem do próximo Com pletando o quadro sua esposa oriunda de uma tradicional família mineira é católica ministra da eucaristia e seus filhos também são católicos praticantes E é nesse seio familiar que José Luiz reafirma sua experiência de boa convivência interreligiosa Miriam é descendente de imigrantes judeus que se refugiaram no Brasil devido às perseguições das duas Guerras Mundiais Ela foi criada num lar judaico e formada numa escola e comunidade judaicas Nutrindose dessa raiz Miriam se abre e se apropria de outras perspectivas religiosas tais como Budismo Espiritismo e Catolicismo retoma elementos de sua tradição judaica e realiza uma síntese pessoal de todas as tradições religiosas que herdou e encontrou em sua trajetória Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 115 Silvia candomblecista realizou longo percurso dentro do universo protestante formandose em Teologia e atuando como reverenda na área pastoral Além de teóloga Silvia também é fi lósofa mestre em Ciências da Religião e doutoranda em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres Gênero Feminismo Ao in vestigar gênero raça e poder tendo como universo o Candomblé tornouse filha de santo e hoje mesmo afastada das instituições evangélicas em que inicialmente se formou e atuou continua mantendo a convivência com pessoas desse movimento evangé lico e também ministra aulas numa faculdade ecumênica As entrevistas foram realizadas individualmente tendo como ponto de partida a seguinte pergunta Gostaria que você me con tasse a sua experiência religiosa descrevendo tanto a sua história de adesão à sua perspectiva religiosa quanto de relacionamento com pessoas de outras religiões Quando necessário os sujeitos foram convidados a esclarecer pontos de especial interesse para a pesquisa A transcrição dos relatos foi analisada fenomenologica mente e os resultados foram organizados em narrativas de modo a acompanhar e aprofundar a trajetória da vivência religiosa de cada sujeito e os encontros interreligiosos por eles vivenciados Para os fins deste capítulo optamos por apresentar a genera lização qualitativa dos resultados alcançados Tratase da expe riênciatipo Van der Leew 1964 da constituição do encontro interreligioso que apreendemos a partir da análise das entrevis tas Buscamos explicitar as tensões e as possibilidades caracte rísticas da experiência de encontro interreligioso que emergiram na descrição da vivência e da elaboração da pessoa em sua rela ção com a alteridade religiosa76 76 Quando se mostrou pertinente inserimos notas de rodapé mostrando como nossas compreensões se articulam com contribuições teóricas Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 116 A constituição da experiência de encontro interreligioso Aceitando o desafio de analisar experiências religiosas e in terreligiosas de nossos seis sujeitos adentramos um universo plural multifacetado cheio de nuances tensões descobertas e aberturas A diversidade se apresentou a nós em múltiplos tons em tantas formas possíveis de viver a fé de elaborar experiên cias de se posicionar no mundo de configurar relações O con tato com a alteridade e em particular com a alteridade religiosa também pôde ser apreendido em sua riqueza de possibilidades provocandonos em nosso ensejo de delinear como pode se reali zar a unidade dentro da diversidade religiosa No impacto com uma alteridade religiosa a pessoa colhe uma provocação Não fica impassível diante do que se lhe apresenta de algum modo o real a solicita Mas não se trata de qualquer solicitação já que ela se vê tocada num ponto radical de sua constituição é a resposta pessoalmente reconhecida às pergun tas últimas que se coloca em jogo é a sua compreensão da to talidade da vida e do fundamento do seu ser que toma a cena nessa modalidade de relação Em síntese é a sua experiência religiosa77 que se apresenta e de algum modo é solicitada no impacto com a alteridade Como evidencia José Luiz em sua ex periência Meus dois filhos católicos têm um conceito de vida bem ético Todo mundo elogia Então para mim é o que basta Se os outros estão vendo assim se eu sei como eles são e aos olhos de 77 Segundo Giussani 2009 a experiência religiosa compreendida enquanto ex periência humana se articula ao senso religioso descrito como a capacidade que a ra zão tem de exprimir a própria natureza profunda na interrogação última A experiência religiosa se constitui então como resposta às perguntas últimas no relacionamento do eu com uma Presença misteriosa reconhecida como fonte de sentido Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 117 Deus também é o que basta Se eles vão acreditar no que eu acredi to Às vezes eu ficava um pouco apreensivo com eles em termos de limitação de visão mas hoje não Acho que a ideia espírita te abre formas de enxergar muito diferente Impacto que poderia ser desconsiderado para não ser vivido e elaborado já que alguém assustado receoso ou ferido poderia fechar os olhos para a realidade que se apresenta No entanto não foi isso que apreendemos Impactada a pessoa pode decidir ainda que implicitamente acolher a provocação que lhe chega dando espaço para que a relação continue a se delinear continue a se constituir Nesse ponto o outro efetivamente adentra seu universo das mais diferentes formas Formas que muitas vezes a machucam como quando a pessoa vive uma experiência de não correspondência com algum ponto radicalmente significativo que estrutura o seu ser no mundo A provocação acolhida que poderia se tornar uma ocasião de en contro se constitui então como experiência de desencontro in terreligioso ou desencontro entre quem abraça alguma religião e um contexto social supostamente laico A tensão da diferença inicialmente percebida se instaura e passa a dar o tom da relação Não se trata de uma experiência tranquila a pessoa vive a dor por se dar conta de uma realidade que não lhe corresponde por estar imersa numa relação na qual não há espaço para a reciprocidade em que ela possa expressar livremente a própria religiosidade sem ser julgada negativamente ou sem que o outro lhe tente subjugar Nessas modalidades de relação Dom Bernardo se vê manipula do Carolina julgada preconceituosamente Davi hostilizado José Luiz desrespeitado Miriam desconsiderada Silvia discriminada Carregando essa dor por não se perceber considerada e bus cando cuidar do que lhe é radicalmente significativo a pessoa Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 118 pode se posicionar mantendo a distância inicialmente perce bida por vezes silenciando por vezes evitando o conflito e as discussões polêmicas em torno da questão religiosa por vezes marcando a diferença entre as perspectivas em jogo por vezes desqualificando a intenção do outro e por vezes exigindo respei to Não se trata de reação impulsiva já que ela percebendose incomodada desconsiderada enganada ou ofendida colhe um juízo de não correspondência e afirma na relação o que lhe é radical Como pontua Silvia Não quero enxotar ninguém Se é do outro tá Mas assim não entra na minha individualidade por que a minha essência No que é essência para mim nisso eu sou radical então não toca porque eu já estou definida Em sua elaboração quando não se vê considerada em seu cen tro não faz sentido para a pessoa continuar na relação ou manter o modo como esta se estrutura naquele momento ou ainda aceitar as suas implicações Dom Bernardo não pode colocar entre pa rênteses a verdade que reconheceu Carolina não quer viver sem diálogo Davi não aceita relativizar tudo José Luiz não prostitui seus princípios Miriam não pode abrir mão do que para ela é mais importante Silvia não admite que entrem em sua essência Não se trata de um posicionamento fácil uma vez que a pes soa por vezes vive o drama de se distanciar ou mesmo de pre cisar romper relações que lhe são significativas Consequências não necessariamente desejadas mas que se mostraram necessá rias ou inevitáveis para que ela conseguisse afirmar o que com preende ser central para si em termos de vivência religiosa Não obstante mesmo nesses momentos de distanciamento e ruptura colhemos o desejo de continuar a cuidar do outro de alguma for ma Tanto que Dom Bernardo compreendendo a posição de sua família pede a Deus para que tudo se resolva Carolina dian Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 119 te da resistência inicial continua a desejar a harmonia em seu ambiente e a se mobilizar para tanto Davi cultiva a esperança de que o relacionamento seja efetivamente respeitoso e pessoal José Luiz e Silvia permanecerem se relacionando mesmo após tentativas de conversão ou conflitos Miriam busca compreender e respeitar a posição de seus familiares e de seu agora exmarido Ainda diante de relações de desencontro a pessoa ao retomar o fundamento do próprio ser o valor do outro para a realização de si e a correspondência pessoal de uma experiência de encontro se posiciona diante do outro afirmando a sua abertura a sua dis ponibilidade para o encontro interreligioso e buscando dar sua contribuição para que a relação se estruture em outros termos É nesse sentido que Carolina afirma Com o tempo com o meu comportamento com as questões positivas que o Budismo foi ge rando na minha vida fui mostrando para eles que as coisas podiam ser de outra forma E aí a gente começou a entrar em harmonia e dialogar e eu me converti dois anos depois Diante de uma experiência de desencontro a pessoa reconhe ce um ponto fundamental e decide afirmálo como ocasião para provocar o outro solicitando que ele reconsidere sua posição ini cial de fechamento Marcando a própria posição espera e busca uma correspondência Assim explicita as razões da própria religiosidade para supe rar preconceitos evidencia pontos compartilhados para possibi litar o reconhecimento de uma proximidade solicita o outro a considerar fatores inicialmente não problematizados buscando criar uma nova possibilidade de relação aceita suspender certos princípios para afirmar outros mais fundamentais podendo in clusive ceder para não criar atrito em nome da boa convivência protela a adesão a algo significativo para respeitar o momento do Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 120 outro muda o próprio comportamento na relação para evidenciar o bem de sua religião com o intuito de quebrar resistências e pro mover o diálogo Muitas são as possibilidades diferentes modos de buscar um mesmo objetivo a transformação daquela relação de desencontro em encontro Ao se colocar nessa posição diante do outro a pessoa não necessariamente elimina a tensão inicial mas esta não dá mais o tom da relação Ao atuar sua abertura afirma uma possibilida de dando testemunho da sua posição como uma proposta que espera uma resposta78 E quando ela se coloca nessa posição o encontro pode realmente acontecer e a relação efetivamente fru tificar Dom Bernardo transforma separação em reaproximação Carolina resistência em simpatia Davi rejeição em proximida de José Luiz desrespeito em boa convivência Miriam descon sideração em aceitação Silvia discriminação em respeito É justamente a possibilidade do emergir da novidade no im pacto com a alteridade religiosa que no fim abre caminho para a constituição da experiência de encontro interreligioso Qual é a dinâmica própria dessa experiência Eis que algo acontece assim se inicia a experiência de encon tro79 A pessoa é surpreendida por um acontecimento que abre novas possibilidades para si Seja quando algo imprevisto irrom pe em seu universo seja quando a própria pessoa busca ativa mente o que lhe interessa Seja quando se trata de um primeiro contato ou quando ela redescobre algo que já estava presente 78 Segundo Giussani 2004 o processo educativo efetivamente se estrutura na medida em que o sujeito responde à proposta recebida a partir de um critério pessoal 79 Tanto Guardini 2002 quanto Romano 2008 evidenciam que está no aconteci mento a força de provocação do encontro Nesse sentido o encontro é sempre novo mes mo que seja com a situação de sempre pois emerge dentro de um horizonte diferente de significado e criativo pois nos abre para algo que transcende o que está estabelecido Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 121 em seu horizonte uma situação cotidiana uma relação que lhe é familiar Seja por uma via ou por outra o encontro se constitui na experiência na medida em que a pessoa colhe uma provocação para si que desperta um dinamismo na qual se vê pessoalmente envolvida Em suas elaborações Davi diz meus amigos espí ritas me lembram que eu sou amado Incrível isso né Eu me lembro de uma conversa que tive com Roberta E ela citou literalmente Paulo a Timóteo que fala o espírito que Deus nos deu não é de temor mas de poder amor e equilíbrio Eu falo uai se Roberta tem capacidade de citar o apóstolo Paulo assim para com preender a minha experiência Pô fala sério risos Como é que eu vou ficar longe Então foram experiências humanas grandes que nos fazem querer estar perto Em síntese o encontro interreligioso é o emergir da novidade que surpreende mesmo quando se trata de algo já desejado ou quando se desenrola numa relação já existente Dom Bernardo se impacta com a música cristã que anuncia o nascimento do Rei de Israel Carolina se encanta com a abertura e maturidade do primo evangélico Davi se surpreende com a amiga espírita que cita o Evangelho para compreender a sua experiência José Luiz admira o modo como sua esposa católica vive a própria religiosidade Miriam se maravilha com a leitura do livro do católico Giussani Silvia ainda pastora se desconcerta diante da liberdade da mãe de santo Esse primeiro impacto surpreendente com a alteridade que instaura uma novidade já é vivido como experiência de corres pondência mesmo que seja apenas intuída sinalizada vislum brada Ainda que perceba um estranhamento inicial ou que não compreenda claramente os significados de tal provocação a pessoa já vive uma correspondência pessoal intui algo pelo qual vale a pena se lançar e se mobiliza para ir em direção ao que se Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 122 insinuou em sua experiência Miriam assim nos relata uma de suas experiências de encontro Eu sentei e a moça deu o Johrei imposição de mãos Bom são 15 minutos que a gente fica lá Da hora que sentei até a hora que levantei eu chorava Eu chora va eu chorava e vinha um calor Não sabia por que chorava Eu só senti um peso saindo um peso saindo assim um alívio Eu falei tem alguma coisa estranha nisso eu quero saber o que é Dom Bernardo mesmo sem saber se maravilhava ao escutar o nome de Jesus quando criança e mais velho procura conhecer mais a fundo este homem Carolina receosa por não concordar com al gumas crenças de sua tia católica se dispõe a dialogar abertamente Davi achando a missa horrível continua a frequentála com o gosto de compartilhar e de oferecer o seu olhar José Luiz estranhando o casamento permanece participando da cerimônia porque direciona seu olhar à sua esposa considerandose um convidado muito espe cial Silvia ainda pastora mesmo incomodada continua pesquisan do querendo compreender mais a fundo o Candomblé Portanto é por viver e vislumbrar algo correspondente para si que a pessoa colhe uma realização por participar daquele encon tro se dispondo então a continuar a se envolver a levar a sério a provocação recebida a se empenhar para aprofundar a relação Mesmo quando a novidade que nasce do encontro instaura uma tensão ou traz problemas na convivência com outros a pessoa permanece sustentando sua posição de abertura80 por carregar uma evidência de correspondência presente naquela relação Tratase de uma novidade que a um só tempo desconcerta e atrai surpreendida a pessoa é provocada a retomar com vitalida 80 Sobre a constituição de uma experiência de abertura que nasce do impacto com o real confira o livro O senso religioso de Luigi Giussani 2009 e o livro Experiência Elementar em Psicologia aprendendo a reconhecer de Miguel Mahfoud 2012 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 123 de o que lhe acontece O novo solicita coloca questões explicita tensões desperta elaborações abre caminhos No entanto a pes soa não se perde nessa provocação a todo tempo está verificando o que lhe acontece tendo como crivo uma referência pessoal de modo a se certificar se é real e verdadeira aquela hipótese por ela encontrada aquela correspondência inicialmente vivida Não se trata de uma verificação qualquer já que a pessoa jus tamente por se encontrar diante de uma alteridade religiosa é so licitada a reelaborar um ponto radical da própria compreensão de si e do mundo Nesse sentido ela não se abre para o encontro com o outro por estar distraída por não se interessar ou por decidir não aderir a nada para não se alienar como forma de mostrar suposta abertura Pelo contrário tendo escolhido entrevistar sujeitos enrai zados na própria tradição pudemos apreender como a pessoa que tem presentes as próprias referências pessoais e que tem clareza do que lhe faz sentido pode realizar esse movimento de verifi car o que acontece com as próprias referências abrindose para a novidade que nasce do encontro Como diz Dom Bernardo É interessante descobrir que é possível ter uma relação visceral a duas realidades diferentes Por um lado é impossível imaginar minha vida sem Jesus Ele é a minha salvação Por outro lado uma reação típica quando leio num jornal sobre um crime cometido a primeira coisa que meu coração diz é tomara que não seja judeu risos Porque há essa preocupação e essa identificação Houve uma época em que eu imaginava que com o passar do tempo eu ficaria cada vez mais católico e menos judeu mas faz anos anos e anos E nem quero que seja assim É uma riqueza para mim Diversas são as possibilidades de verificar o que acontece A verificação pode se dar na convivência cotidiana numa ação conjunta com um objetivo comum na partilha de práticas reli Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 124 giosas no diálogo explícito Por vezes inclusive a pessoa recorre a companhias para ajudála a sustentar sua disponibilidade para o outro e a verificar de modo aberto Independente do espaço e dos recursos para que isto aconteça a pessoa realiza um movi mento de comparação entre a sua referência pessoal e aquilo que encontra de modo a colher um juízo para si naquela experiência E a pessoa reelabora também a própria identidade no encontro com o outro81 é na relação em si e não fora dela que ela se vê solicita da a se contemplar e redescobrir Um processo que pode conduzir aos mais diversos resultados A pessoa pode reafirmar retomar ou reinter pretar a própria posição e a tradição religiosa da qual faz parte pode identificar proximidades distâncias e possibilidades de relacionamen to se apropriar de contribuições do outro para aprofundar a própria perspectiva pode articular criativamente elementos religiosos eou culturais das diferentes religiões em jogo pode assimilar os fatores que fazem sentido para si integrando e sintetizando de modo próprio reconhecer uma dupla inserção que pode assumir diferentes formas pode até mesmo reconhecer e aderir à religião anunciada pelo outro Diante dessa multiplicidade de possibilidades de elaboração colhemos uma mesma raiz um posicionamento no qual a pes soa verificando afirma o que emerge como mais verdadeiro para si como mais correspondente Novamente não se trata de um processo puramente intimista ou racionalista já que a verifica ção é despertada vivida e sustentada pela relação é diante da alteridade que a pessoa se posiciona No encontro com o outro ao realizar essa verificação a pessoa identifica e afirma uma experiência ainda mais central uma verda 81 Para a compreensão de diferentes formas de reelaboração da própria identidade a partir do impacto e da relação com o outro confira as elaborações realizadas por Pierre Sanchis 2012 sobre a dinâmica do sincretismo Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 125 de ainda mais radical82 que se configura como ponto fundante de sua abertura para a diversidade que sustenta sua fidelidade à cor respondência vivida Essa experiência emerge como critério que possibilita com que a pessoa dê continuidade ao encontro vivido com a alteridade e afirme plenamente o valor de si do outro da relação e da vida mesma O ponto fundante para Dom Bernardo é a confiança em Deus Para Carolina a convivência harmoniosa a felicidade e a paz Para Davi a afirmação do caráter relacional de Deus amor primário e a valorização da humanidade comum Para José Luiz a centralidade da justiça divina e da moral cristã Para Miriam o fato de sermos todos filhos de Deus e estarmos em bus ca de algo Para Silvia a marca mística e a possibilidade de reco nhecer a manifestação de Deus de várias formas em vários lugares Cada qual a seu modo seja numa relação com o transcendente seja numa relação mais profunda consigo mesmo identifica numa experiência radical que também é relacional o fator estruturante da relação O encontro com o outro solicita a pessoa a retomar o fundamento do seu ser que acaba se revelando em sua elaboração como o fundamento de todo ser A pessoa ao identificar a raiz da própria verdade ancorada em sua religiosidade e elaborada a partir do encontro com o outro entende identificar também a raiz de toda verdade fonte a partir da qual cada sujeito individual ou coletivo ou cada religião pode se estruturar A partir desse reconhecimento a pessoa vive uma realização também por no confronto com o dife rente retomar a verdade que encontrou de forma mais profunda e por se dar conta de sua abertura para afirmar a si mesma e ao outro 82 Reconhecemos em Teixeira 2002 elaboração semelhante O diálogo interre ligioso faculta assim a experiência rica e inovadora de celebração de uma verdade que é mais elevada e mais profunda que a verdade parcial reivindicada pelos interlocu tores em questão ainda que os mesmos possam estar persuadidos de seu engajamento incondicional com sua verdade particular p 160 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 126 O reconhecimento desse critério nuclear se configura como base também para que a pessoa permaneça perto mesmo na dife rença afirme o valor do outro mesmo não concordando com sua crença se posicione com liberdade explicitando pontos de discor dância dentro do relacionamento se disponha a dialogar sobre te mas polêmicos elabore criticamente as perspectivas religiosas em jogo como ocasião de crescimento mútuo Dom Bernardo embora veja limites intransponíveis entre Catolicismo e Judaísmo deseja que este último continue existindo Carolina ao ler o livro que sua tia lhe deu afirma com liberdade que pensa de outra forma Davi mesmo não compartilhando algumas crenças permanece perto dos pentecostais católicos e espíritas José Luiz diante do convite de sua irmã para ir à igreja com carinho diz não Miriam permanece perto de quem lhe faz bem mesmo que este adote um caminho diferente Silvia continua convivendo bem com pessoas vinculadas à instituição religiosa com a qual teve grandes atritos A percepção e a elaboração da diferença não eliminam o valor do outro e da relação Pelo contrário é por meio da relação83 que a pessoa encontra elementos para elaborar e é na relação que ela vive o gosto de ser ela mesma de valorizar o outro em seu cami nhar e de ter liberdade para compartilhar a vida numa relação de proximidade marcada pelo profundo respeito Dentre os modos encontrados para lidar com a existência e convivência de polos opostos na relação apreendemos o humor84 como um caminho em que o malestar gerado pela tensão da di ferença pode ser enfrentado sem deixar nada de fora ao mesmo 83 Segundo Donati 2009 o relacionamento que nasce do encontro interreligioso pode se tornar um bem na medida em que possibilita o reconhecimento e a transfor mação recíproca 84 Encontramos em Frankl 2003 elaboração semelhante Para o referido autor o humor pode ser um importante recurso para enfrentar o sofrimento Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 127 tempo em que se busca manter o relacionamento Em outras pa lavras a pessoa diante da tensão da diferença recorre ao humor como instrumento para ajudála a enfrentar o que é dramático ou inquietante sem deixar de cuidar da relação Dom Bernardo chega mesmo a explicitar que esta é uma herança judaica quanto mais importante a questão maior o elemento humo rístico Carolina afirma que é o Budismo e ri ciente de que torna superlativa a afirmação da própria identidade como estratégia para enfrentar preconceitos Em situações em que a tensão se apresenta Davi faz piadas e joga com as palavras dando leveza à relação sem renunciar ao exame dos pontos críticos José Luiz brinca com a esposa e com quem lhe pergunta sobre os filhos propondo o diálogo como espaço para se posicionar livremente e para respeitar o caminho do outro Miriam também brinca anunciando que em algum momento vai dar tilt forma de lidar com o drama da sua abertura a tudo em opo sição à necessidade humana por alguma delimitação E Silvia a todo tempo debocha e se diverte seja ironizando a própria experiência e o incômodo quanto aos deveres que tem que cumprir seja brincando de amarrar a disparidade de suas pertenças em títulos que tentam dar conta da sua complexidade uma forma de responder que é muito sua e que está também presente nas coletividades em que ela se insere Vivenciando o encontro sem esconder a tensão que lhe é pró pria a pessoa descobre o valor e a dignidade daquilo que encontra e quando é o caso do outro que encontrou admirandose por ele ser quem é Como afirma José Luiz Como a minha esposa é uma pessoa muito ética de princípios bem definidos a gente convive bem em função disso Eu respeito muito a sua forma o seu empenho as suas ideias apesar de não acreditar no que ela acredita Isso é a verdadeira função da religião se você acredita vai incorporar aquilo na sua vida procurando ser melhor em função do que acredita Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 128 Valorização que se dirige por vezes ao fato do outro ser uma boa pessoa por vezes à coerência e fidelidade com a qual vive a própria religiosidade por vezes à beleza e verdade da perspectiva religiosa a que adere Nesse sentido o outro emerge não só como um anexo mas como parte constitutiva do caminhar da pessoa que a enriquece fortalece e realiza85 Dom Bernardo se alegra pelo reestabelecimento do relacionamento com sua família Carolina se maravilha com a participação da mãe em sua cerimônia de con versão Davi se reconhece amado a partir das amizades que tem José Luiz se orgulha das pessoas de sua família Miriam é grata àqueles que lhe abriram caminho Silvia vive o gosto por indicar a amiga para a entrevista repetindo que sua história é um celeiro Justamente por reconhecer o valor do outro para si a pessoa por vezes carrega o desejo de que ele compartilhe a verdade e a realização daquilo que ela vive como pudemos acompanhar na posição de Dom Bernardo diante de seus pais Carolina diante de sua mãe Davi diante de seus amigos José Luiz diante de seus filhos Miriam diante do marido e Silvia diante da sociedade No entanto ao retomar que o sentido da relação é a realização de si e do outro e ao perceber que este sentido está presente no modo como a relação tem se configurado a pessoa reafirma que em bora carregue esse desejo há um respeito pela posição do outro Em sua elaboração é mais realizador inclusive para si mesma quando o encontro se fundamenta numa reciprocidade na qual cada um se sente reconhecido e respeitado em sua posição É a partir desse respeito que o encontro pode ser inclusive ocasião de mudança e transformação 85 Sobre o reconhecimento da centralidade do outro para a constituição de si mes mo confira o livro O eu renasce no encontro de Luigi Giussani 2010 e o livro Experiên cia Elementar em Psicologia aprendendo a reconhecer de Miguel Mahfoud 2012 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 129 Encontro interreligioso em que a pessoa não só descobre o valor do outro para si como também descobre a si mesma com um novo frescor A relação é vivida como ocasião preciosa para redescobrir os próprios valores colher novos aprendizados apreender o que é central e periférico afirmar o que não pode abrir mão aprofundar a própria verdade reconhecer contribui ções possíveis encontrar sentidos para o viver É também por isso que nessas modalidades de relação a pessoa se empenha para continuar a aprofundar esta para cuidar de si do outro e da quilo que encontrou porque de certa maneira o encontro acaba estruturando o modo como a própria pessoa se concebe Além disso a experiência de encontro interreligioso não se en cerra em si mesma de uma situação circunscrita a pessoa tocada no centro do seu ser num movimento de abertura começa a ela borar a tirar consequências cada vez mais amplas daquele encon tro nos mais diferentes âmbitos Como explicita Davi Quando brota um diálogo a partir de um relacionamento não conversamos só como ideia mas conversamos de um para um reconhecendo que no final da história é a comunhão que faz o ser É a questão da Trindade Porque Pai Filho e Espírito Santo produzem vida a partir do relacio namento desde o início da história É disso que estamos falando de relacionamentos fecundos porque são pessoais Dom Bernardo a partir da relação visceral que reconhece em si examina as possibilidades de articulação entre Judaísmo e Ca tolicismo Carolina do diálogo com seus familiares amplia os horizontes para enfrentar muitas questões dentre as quais a pos sibilidade da convivência harmoniosa e da paz mundial mesmo que existam conflitos e diferenças Davi refletindo sobre cada encontro vivido ao mesmo tempo elabora questões teológicas e problematiza os fundamentos que viabilizam o diálogo interreli Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 130 gioso José Luiz a partir da boa convivência com seus familiares se põe a pensar sobre a importância da diferença para o cresci mento da humanidade Miriam no encontro com o Johrei Cen ter se abre para a espiritualidade reconhecendo uma primeira virada em sua vida Silvia em sua convivência com os batistas problematiza criticamente os modos com os quais a religião pode ser perversa Tratase de um movimento de reflexividade que brota da relação e a retroalimenta abrindo caminho para novos encontros provocações verificações posicionamentos elabora ções reflexões mais amplas e assim por diante E o encontro não se encerra em si mesmo também porque passa a ser desejado A pessoa provocada pela experiência de encontro mobilizase para que o mesmo continue a acontecer seja na mes ma relação onde se deu seja em outras É também por isso que Dom Bernardo propõe a seus companheiros monges a leitura do livro Sobre o Céu e a Terra86 que narra um diálogo interreligioso entre o Papa Francisco e um rabino de Buenos Aires e a visita ao Museu do Holocausto Que Carolina se dispõe ao diálogo com ou tros familiares com membros de sua organização e interessados no Budismo Que Davi se dedica a cultivar as amizades com as pessoas que são profundamente próximas e profundamente diferentes Que José Luiz busca manter a boa convivência com toda a sua família mesmo quando a curiosidade não é construtiva Que Miriam per manece indo a fundo nas perspectivas religiosas que encontrou sem abandonar as suas raízes Que Silvia continua mantendo os laços com os evangélicos O ponto é que o encontro se torna uma expe riência significativa na qual a pessoa por viver uma correspondência profunda se empenha para que ele continue de algum modo 86 Bergoglio J Skorka A 2013 Sobre o Céu e a Terra as reflexões do novo Papa sobre a família a fé e o papel da Igreja S M Dlinsky Trad São Paulo Paralela Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 131 Diante desse encontro tão provocador a pessoa também se sente grata por se ver integrante de uma relação que a ultrapassa e constitui Seja quando há evidente realização seja quando a dor se faz presente como é o caso de Silvia com os metodistas a pessoa colhe um juízo de gratidão por de algum modo viver uma correspondência gratidão por encontrar um sentido para si naquele encontro gratidão pela história que com seus dramas e riquezas é a sua história o caminho que a formou Gratidão que sinaliza que o encontro é vivido como sendo de algum modo dado mesmo que seja buscado construído trans formado Há um posicionamento de abertura da pessoa sem o qual ele não pode acontecer ao mesmo tempo em que seu empe nho não pode garantir que ele se dê Um acontecimento no qual a pessoa ativa recebe um dom Considerações finais Partimos do objetivo de investigar os fatores constitutivos e a dinâmica característica da experiência de encontro interreligio so E dentro da diversidade de rostos e trajetórias encontramos um fio comum o delineamento de um percurso sempre encarna do de modo único e justamente por isso propriamente humano Percurso que revela uma unidade de experiência em sua vitalida de percurso em que o encontro interreligioso é acontecimento que provoca abre novas possibilidades em que a pessoa nesse encontro com a alteridade religiosa vive uma correspondência e vai em direção a ela confronta o que encontrou com as próprias referências colhe um juízo reelabora a própria identidade e se posiciona afirmando o que é radical identificando uma verdade mais central que a reconecta consigo com o outro e com a vida Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 132 Vivendo uma realização a pessoa elabora tira consequências deseja a continuidade é grata A partir desse percurso colhemos também convites chama dos a se abrir à relação antes de julgar o outro a se deixar provo car por sua presença a verificar na convivência Pois é na relação com o outro e com a vida que o encontro pode acontecer prenhe de possibilidades novas Embora haja tanto desencontro este trabalho se constituiu como uma ocasião de encontro com pessoas com experiências com compreensões da realidade humana Encontros a partir dos quais esperamos que possa se constituir uma contribuição real ao nosso campo e à nossa sociedade Encontros aos quais somos imensamente gratos De fato embora haja tanto desencontro pela vida o encontro se mostrou a nós por meio desta pesquisa uma arte que embe leza a vida Referências bibliográficas ALES BELLO A Fenomenologia e ciências humanas Psicologia História Religião M Mahfoud M Massimi Trads Bauru SP Edusc Publicação original de 2004 DONATI P Teoria relazionale della società i concetti di base Milano Franco Angeli 2009 FRANKL V E Psicoterapia e sentido da vida fundamentos da lo goterapia e análise existencial 3ª ed A M Castro Trad São Paulo Quadrante 2003 Publicação original de 1946 GASPAR Y E Unidade na diversidade investigação fenomeno lógica de experiências de encontro interreligioso 2014 Tese de Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 133 Doutorado Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Univer sidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte GIUSSANI L Educar é um risco como criação de personalidade e de história N Oliveira Trad São Paulo Companhia Ilimita da Publicação original de 1977 GIUSSANI L O senso religioso P A E Oliveira Trad 2009 Brasília Universa Publicação original de 1986 GIUSSANI L Lio rinasce in un incontro 2010 Milano BUR GUARDINI R O encontro J P Peres Trad Em L Cogo C C C Chaves Orgs Curso de extensão em educação infantil 2002 p 204212 Belo Horizonte AVSI HUSSERL E Ideias para uma fenomenologia pura e para uma fi losofia fenomenológica 2006 M Suzuki Trad Aparecida SP Ideias e Letras Publicação original póstuma de 1952 HUSSERL E A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental uma introdução à filosofia fenomenológica 2012 D F Ferrer Trad São Paulo Forense Universitária Publica ção original póstuma de 1954 MAHFOUD M Experiência elementar em Psicologia aprenden do a reconhecer 2012 Brasília Universa Belo Horizonte Artesã MORAES V Samba da benção Em A arte de Vinícius de Moraes CD 1988 Rio de Janeiro Polygram ROMANO C Lo posible y el acontecimiento introducción a la hermenéutica acontecial A Fornari P Meno E Muñoz Trads 2008 Santiago Chile Universidad Alberto Hurtado Publicação original de 2008 SANCHIS P O som Brasil uma tessitura sincrética Em M Massimi Org Psicologia cultura e história perspectivas em diá logo 2012 p 1554 Rio de Janeiro Outras Letras Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 134 SODRÉ O Monges em diálogo a caminho do Absoluto estudo psicossocial do diálogo interreligioso monástico 2005 Tese de Doutorado Programa de PósGraduação em Psicologia Clínica Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Rio de Janei ro STEIN E Estructura de la persona humana Em E Stein Obras completas vIV escritos antropológicos y pedagógicos 2003 p 555749 F J Sancho e col Trads Vitoria Espanha El Carmen Originais de 193233 STEIN E Contribuiciones a la fundamentación filosófica de la psicología y de las ciencias del espíritu Em E Stein Obras com pletas vII escritos filosóficos etapa fenomenológica 19151920 2005 p 207520 F J Sancho e col Trads Burgos Espanha Monte Carmelo Originais de 1922 TEIXEIRA F L C Diálogo interreligioso o desafio da acolhida da diferença Perspectiva Teológica 34 93 2002 p 155177 TEIXEIRA F L C O Pluralismo Religioso e a Ameaça Funda mentalista Numen revista de estudos e pesquisa da religião 10 1 2010 p 924 VAN DER LEEUW G Fenomenología de la religión E de la Peña Trad 1964 México Fondo de Cultura Económica Pu blicação original de 1933 Somos mudança Meditação saúde espiritual e transformação social WANDERSON XAVIER MENDES Psicólogo licenciado em Psicologia professor de Yoga membro do CIT e Clerot Desenvolve atividade transdiciplinar no NASCE UFMG e LIASEUFMG Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 136 Neste preâmbulo gosto de sugerir inestimável e promissora exortação Quem tiver olhos para ver veja Ouvidos para ouvir ouça A Meditação é uma arte e técnica milenar um processo que vem se desenvolvendo há milhares de anos junto a povos pri mitivos que a receberam eou elaboraram com o propósito de provocar experiências não ordinárias de tomada de consciência de verdadeira unidade do reino de Luz e dimensões da verdade e sabedoria dentro de nós mesmos a chamada auto realização nosso direito inato e muitas vezes inconsciente Esse reino de Luz sentimento oceânico embora não tenha encontrado eco no espírito investigativo do precursor da psicanálise moti vou interlocuções penetrantes dele com seu correspondente o escritor Romain Rolland que se revelaram de sensível importân cia ao estudioso do tema que embora muitas vezes ambíguas não obstante evidenciam um campo de estudo de fundamental importância para compreensão dos limites e alcances da teoria psicanalítica a respeito do misticismo BORGES 2008 Tal experiência denominada mais tarde Experiência de Platô por Abraham Maslow FADIMAN E FRAGER 2002 A Consciência Cósmica por R M Bucke WEIL 2003 vem sendo decifrada meticulosamente pela Psicologia desde que representantes dessa jovem ciência nomes da envergadura do já citado Maslow como Grof Viktor Frankl Vich Murphy Jourard e também o citado Fadiman fundaram a Revista de Psicologia Transpessoal e iniciaram o movimento sob a liderança de Antony Sutich o que configurou a Quarta Força em Psicologia em 1969 Tudo está relatado em Pierre Weil Os Mutantes Uma Nova Hu manidade para um Novo Milênio WEIL 2003 op cit e em Elias Boainaim Tornarse Transpessoal BOAINAIM 1998 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 137 Hoje é cada vez mais evidente e acessível a um número cada vez maior de pessoas a existência de indícios em relatos de antigas escrituras do Oriente Norte da Índia que um ex traordinário aborígene conhecido em tal região como SadaShiva foi quem começou a difusão desse processo Tal meditação sub jetiva estendeuse veladamente de modo sistemático e rigoroso a partir do Oriente através da literatura da arte da dança e da medicina configurando uma ciência milenar holística da vida ANANDA MARGA 2008 Recentemente começa a ser investigado verificado e compro vado de modo inequívoco também pelas Ciências Acadêmicas que TANTRA nome original dessa Ciência Eterna ao longo de muitos anos foi à maneira do que ocorreu com o modelo filosó fico e científico do Ocidente fragmentandose em disciplinas cada vez mais especializadas conformando os diversos ramos do Yoga que estiveram mais ou menos integrados Por exemplo Kar ma Yoga que enfatiza a ação e o serviço ao próximo Jnana Yoga que enfatiza o autoconhecimento e Bhakti Yoga que cultiva a devoção amorosa ao Ser a Suprema e Essencial Consciência Infinita e Eterna que como dito acima habita mais ou menos conscientemente o nosso interior ANANDA MARGA 2009 CG Jung príncipe herdeiro do legado freudiano relata que as diversas formas do Yoga Tântrico e seu rico simbolismo lhe forne ceram material comparativo preciosíssimo para a interpretação do inconsciente coletivo JUNG 2012 E assim vemos aquele que iluminou o túnel aberto por seu predecessor render créditos à sabedoria perene do Oriente Sabese muito mais que suficientemente o que disse este Ser que marcou profunda e indelevelmente sua passagem em aC e dC neste planeta Ele nos provocou agudamente esti Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 138 mulando em nós preciosas percepções e efetivas mudanças Em certa ocasião num breve simples e sublime exemplo Ele nos disse no tempo certo nada há de oculto que não venha a ser manifesto e nada em segredo que não venha à luz do dia Se alguém tem ouvidos para ouvir ouça Marcos 4 22 23 Agora é o tempo para reconhecer então que após SadaShiva há aproximadamente 3500 anos práticas meditativas e valores espirituais foram difundidos entre os devotos de Krishna atra vés dentre outros métodos do cantar do Mantra vibração acús tica sagrada Hare Krishna PRABHUPADA 2009 que con tinua a ser ouvido ainda hoje E de evidenciar também como o Mantra contemporâneo Baba Nam Kevalam e um sistema sofisticado de práticas e valores espirituais resgatado da Tradi ção Tântrica pelo Yogue Sri SriAnandamurti 19211990 fun dador da Ananda Marga foi difundido globalmente atravessou continentes propagandose a partir da missão de renunciantes incansáveis monges monjas e abnegados discípulos gestan do sutilmente uma revolução silenciosa a qual se encontra em pleno curso ANANDA MARGA 2019 Causarnosia estranheza citar Yogues e Mantras num trabalho científico Não fora o exponencial aumento das citações de renoma dos pesquisadores das neurociências e variados outros campos de investigação de vanguarda que vêm empreendendo a árdua tarefa de desvendar o que até há pouco mantinhase abrigado no oculto Observemos com acuidade o que se constatou em recente artigo publicado ao tratar de modificações de estados psíquicos e físicos uma destas ações compreende o direcio namento da atenção através da introspecção a qual se pode alcançar mediante diversas estra Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 139 tégias Por exemplo por meio do som como nos Mantras REBOIRAS Y GRZONA 2015 Mantendonos amparados pela arqueologia podemos reconhe cer também que há 2600 anos Sidharta Buddha Gautama o Príncipe de Kapilavastu através de um extraordinário esforço e valorosa renúncia enveredou por práticas meditativas Dhyana de Tantra Yoga que se desdobrou no Chna na China Chem na Corea e Zen no Japão SARKAR 1997 Por qual razão ainda hesitamos em tratar sob enfoque psicológico o legado prin cipesco do Budismo uma vez que John KabbatZinn sobejamente demonstrou nos laboratórios de redução de estresse em Harvard resultados muito positivos da prática da Plena Atenção sobre pa cientes oncológicos cardiológicos ou com transtornos de ansieda de depressão drogadicão e dor KABBATZINN 2017 Ou ainda A experiência protagonizada por Mathieu Ri card francês doutorado em biologia molecular no Instituto Pasteur que abandonou sua car reira científica para concentrarse na prática do budismo no Himalaya Mais tarde Ricard e outros meditadores profissionais com mais de 2 mil horas de prática submeteramse a múltiplos estudos de ressonância magnética e eletroence falograma de duzentos canais nos quais se ob servaram níveis muito superiores de emoções positivas evidenciadas pelo aumento do meta bolismo do córtex préfrontal em relação a um grupo controle da população em geral Estu dos tais que foram replicados em meditadores Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 140 novatos e referenciaram os mesmos benefícios REBOIRAS Y GRZONA 2015 A literatura Taoísta representada pelo precursor LaoTsé Mes tre Lao exposta no Tao Te King a Via Iluminadora veio tam bém permitir aos estudiosos apontar que a meditação já existia na antiga China de forma sistematizada e comsistente pelo me nos há cerca de 2500 anos TAO TE KING 2001 Ainda mais próximo de nossa ancestralidade Outras experiências como as Xamânicas nome dado pelos antropólogos relatam que grupos como por exemplo os Kung do deserto de Kalahari na África valemse de experiências como a privação de sentidos experiências que acontecem a noite sons de tambores e outros instrumentos além da respiração intensiva e profunda para entrar no denominado êxtase Desta feita com finalidade de obter a cura pes soal e da comunidade KATZ 1982 Podem ser ainda mais familiares as experiências propostas e reveladas por Ieshouade Nazaré a partir de Israel desde que aprofundemos nosso acesso a elas através do trabalho interno penetrando profundamente em suas camadasconchas muitas vezes inocentes ingênuas e superficiais e atinjamos o seu cerne A prática do Hesicasmo tradição contemplativa do Cristianis mo Ortodoxo Católico Oriental com o uso da palavra vibração acústica sagrada Kyrie EleisonChrystieEleison associado à postura e respiração profunda há muito esquecidas segura mente nos aponta um caminho de mudança acertado propagado Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 141 por JeanYves Leloup no Escritos sobre o Hesicasmo LELOUP 2003 assim como revela ser o Caminho de Místicos que deci fraram o mistério da verdade por experiência direta como João da Cruz Tereza DÁvila Francisco e Clara de Assis da Tradição Romana Ressaltase ainda os recentes e inestimáveis estudos resgatados do Clássico Nuvens do NãoSaber por Monges Trapis tas Tradição Centrante in Keating 2005 Também os protestantes mais progressistas os quais talvez fos sem melhor denominados de nossos irmãos separados exortam nos além da prática da oração aos Momentos de Silêncio a Sós com Deus IBC sd Sem dúvida uma vasta tecnologia teo lógica significativos avanços na intimidade das Igrejas da mesma UniTrindade dos quais podemos se quisermos nos conscientizar e aprofundar de modo rigoroso e sistemático através de uma verda deira Ciência do Espiritual que desponta altaneira Ora o que delineamos até aqui expõe um novo olhar um per curso que une ciência e espiritualidade Tratase de fenômeno complexo e multifacetado vivenciado sob a forma de princípios rituais símbolos institucionalizados ou não que ultrapassaram fronteiras culturais revelando algo maior há muito in defi nido como onipresente infinito ou inefável e que começou a partir de um novo paradigma a ser melhor compreendido pela ciência acadêmica artigos e publicações e a tecnociência to mografia eletroencefalograma de 200 canais ressonância mag nética que o acompanha Necessário percurso uma vez que o universo como uma máquina já não satisfaz a mente daqueles que tiveram tal mecanismo frequentemente acoplado ao pulso substituído pelo efeito piezoeléctrico do cristal de quartzo Mas a metáfora não é o que melhor nos acudirá neste mo mento Portanto mantenhamos a nossa caligrafia firme nas linhas Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 142 da história o Yoga do Maha grande Bharata a Índia Antiga revi sitado pela ciência moderna e a religião comparada permitenos num abraço transdisciplinar aliar o mais antigo ao mais atual como nos ensina Roberto Crema em Antigos e Novos Tera peutas CREMA 2002 um manual de verdadeira pacificação de espíritos belicosos há muito movidos pelo fanatismo da dia bolização a divisão que tem atrasado o discernimento do Uno uma vez que promove embates ao disputar a propriedade disso que buscamos decifrar Embates estes manifestos em múltiplos igrejismos embates de religiões e psicologismos embates de teorias psicológicas grupismos que PR Sarkar denomina de sóciosentimento no NeoHumanismo Ecologia Espirituali dade e Expansão Mental SARKAR 2001 Ora para aprofundar ainda mais a nossa reflexão sem exas perarmos ao nosso leitor competente é imperativo que expla nemos sem demora qual o fundamento da nossa metodologia pois assim ele poderá acompanhar o nosso raciocínio opondo um mínimo de resistência a qual o seu espírito investigador criterio so porventura já tenha incorrido É a UNESCO órgão das Nações Unidas responsável pela Educação Ciência e Cultura no mundo que nos respalda mais convenientemente ao recomendar o diálogo entre a Ciência a Arte a Filosofia e a Tradição Espiritual por meio da Declaração de Veneza 1986 Documento sintetizado após o Simpósio Ciên cia e as fronteiras do Conhecimento prólogo do nosso passado cultural que reuniu 19 expoentes de todas as partes e distintas especialidades do mundo entre os quais dois detentores de prê mios Nobel Esse Simpósio contou ainda com a participação do eminente matemático brasileiro Ubiratan DAmbrósio SOM MERMAN 2008 Ainda em Sommerman dentre numerosos Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 143 colóquios congressos pesquisas e publicações sobre o tema destacamos dados da Carta da Transdisciplinaridade de 1994 assinada no Primeiro Congresso Mundial da Transdisciplinari dade em Portugal por 62 participantes advindos de 14 países além dos dados dos anais do Congresso de Locarno 1997 No Congresso de Locarno 1997 foram definidos os três pila res metodológicos da pesquisa transdisciplinar 1 Complexidade 2 Lógica do Terceiro Incluído e 3 Diferentes Níveis de Realidade A Declaração de Veneza 1986 aduz em seu Artigo 11 UNI PAZ 2011 Rigor Abertura e Tolerância são características fundamentais da atitude e da visão transdisci plinar O rigor na argumentação que leva em conta todos os dados é a melhor barreira contra possíveis desvios A abertura comporta a acei tação do desconhecido do inesperado e do im previsível A tolerância é o reconhecimento do direito às ideias e verdades contrárias às nossas Já em Anexo 1 também a Declaração de Veneza em seu Ar tigo 2 reconhece UNIPAZ 2000 O conhecimento científico no seu próprio ímpeto atingiu o ponto em que ele pode começar um diá logo com outras formas de conhecimento Nesse sentido e mesmo admitindo as diferenças funda mentais entre Ciência e Tradição reconhecemos ambas em complementaridade e não em contradi ção Esse novo e enriquecedor intercâmbio entre Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 144 ciência e as diferentes tradições do mundo abre as portas para uma nova visão da humanidade E assim sem receio devidamente munidos dessa promissora visão transdisciplinar podemos agora com a coerência congruên cia e fôlego do investigador ousado e sobretudo bem preparado imergir um passo a mais na viagem que os mestres da consciên cia ousaram traçar e percorrer a viagem interior a si mesmo Um número cada vez maior de cuidadores poderá assim familiarizar se com a cartografia transpessoal de consciência apresentada no recém lançado Meditação o que dizem os Cientistas e Sábios da monja psicóloga e antropóloga de Harvard Susan Andrews AN DREWS 2018 que abrange não só consciente e inconsciente mas também a nossa dimensão superconsciente transpessoal nível tão ou mais saudável quanto o autor do Introdução à Psi cologia do Ser ousara sonhar MASLOW 1962 Ken Wilber co nhecido pela profundidade e originalidade de sua produção nada mais nada menos como o Einstein da Consciência através do seu Espectro da Consciência 2007 e do seu Psicologia Integral 2002 é outro autor ocidental que também enfocou as cinco ca madas da mente à luz da Psicologia Transpessoal Eis uma síntese de Andrews em diálogo com psicólogos oci dentais e com Sarkar da Escola Tântrica que é por ela designa do reiteradamente como a fonte de sua inspiração ANDREWS 2018 FADIMAM E FRAGER 1986 SARKAR 2007 Sabese que a mente na perspectiva da Psicanálise Freudiana é situada em 3 camadas ID ego e superego Também é notório que a Escola Ocidental costuma se referenciar a ela como cons ciente subconsciente e inconsciente e importantes representan tes da Escola Oriental segundo Wilber também a configuraram Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 145 em 3 níveis a saber Mente Densa Mente Sutil e Mente Causal O representante da Escola Tântrica emprega o termo Kosa como sinônimo de camada Sendo a consciente sensóriomotora ou no original Sânscrito KamamayaKosa mente de desejos Kama Desejo a primeira camada A segunda camada subconsciente abriga ManomayaKosa a ca mada lógica ou do intelecto Man Pensar onde se alojam pensa mentos mais profundos Até aqui nada de novo Ocorre que na carto grafia Tântrica há um terceiro nível e é o superconsciente que abriga ainda outras três Kosas AtimanasaKosa a camada supramental do mínio da intuição e criatividade Ati Supra VijnánamayaKosa cha mada de mente do conhecimento especial Vi especial e Jnána conhecimento capaz de promover o verdadeiro discernimento do que é a realidade perene e um efêmero espetáculo o que leva ao de sapego espontâneo E HiranyamayaKosa camada dourada todas as autênticas tradições e caminhos espirituais dedicam elevado apreço a essa camada iluminada cuja linguagem se encontra mais próxima do silêncio convidando a uma escuta ainda mais profunda e ampliada Hiranya dourado Ao trilharmos esses três degraus nos aproxima remos assim da Psicologia de inteireza a qual consideramos mais apta a tratar do ser humano em sua totalidade E talvez se ousarmos superar preconceitos e rótulos ultrapas sados muitos dos seres extraordinários citados acima já foram equivocadamente rotulados como portadores de severas patolo gias e ideais caducos de cientificidade indo além de estarre cedores dogmas científicos e religiosos a experiência nos mostre que essas vivências retiram a espiritualidade unicamente da re ligião a qual na maior parte da sua história não foi senão outra forma de adaptação ao mundo material ainda que matriz e fonte de alimento da espiritualidade Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 146 Nós precisamos ser a mudança que queremos ver no mundo M Gandhi E talvez nós possamos assim vêlo e ouvilo em todo lugar na nossa casa nova na nossa nova aldeia global E esse pontinho azul sofrido e sagrado será assim um pouco mais dignamente ha bitável até quiçá volte a ser um Por isso e muito mais ousamos e convidamos você a eliminar a pobreza a estreiteza e toda mani pulação e condicionamento material ou espiritual e dizer eu sou tu és e nós somos mudança num grande Sangachadvam mover juntos Sem igrejismos ou psicologismos Num mutirão de curadores como exorta a Organização Mundial de Saúde OMS Pois chegado é o tempo de diminuir a competição e enaltecer a cooperação Para o nosso bemestar e o bemestar de tudo e de todos E já que como vimos a arte é parte integrante da abor dagem transdisciplinar convidamos o leitor a manter o seu olhar que vê atento à poesia de Crema 2002 Novo milênio novo olhar Mudar o mundo é mudar o olhar Do olhar que estreita e subtrai para o olhar que amplia e engrandece Do olhar que julga e condena para o olhar que compreende e perdoa Do olhar que teme e se esquiva para o olhar que confia e atreve Do olhar que separa e exclui Para o olhar que acolhe e religa Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 147 Todos os olhares num só Olhar O olhar da inocência e o olhar da vigilância O olhar da justiça E o olhar da Misericórdia Todos os olhares num só Olhar Olhar de criança que brinca na Primavera olhar do adulto que labora no Verão olhar maduro que oferta no Outono olhar de prece e de silêncio no Inverno O olhar de quem nasce O olhar de quem passa O olhar de quem parte Olhares da existência no Olhar da Essência Todos os olhares num só Olhar Dançar de roda na órbita do olhar dançar de guerreiro em volta da fogueira do olhar dançar de Ser no olhar do Amor Dançar e brincar de olhar Olhar o porvir Do Instante que nasce Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 148 no coração palpitante da transmutação Viva o novo olhar Olhe a vida de novo Novo olhar novo viver Mudar o mundo É mudar o olhar É alto olhar Altar do olhar É ousar viver É viver no ousar É amar viver É viver para amar Só então partir Para o Grande Olhar Todos os olhares num só Olhar Num mesmo Olhar Supremo Olhar Olhar Referências bibliográficas ANANDA MARGA A Liberação da Mente através do Tantra Yoga 3ª Ed SP Ananda Marga Publicações 2008 ANANDA MARGA História 2019 Disponível em www anandamargaorgbranandamarga Acesso em 18 fev 2019 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 149 ANANDA MARGA Introdução ao Tantra Yoga Distrito Fede ral Editora Ananda Marga Yoga e Meditação 2009 ANDREWS Susan Meditação o que dizem os Cientistas e Sá bios São Paulo Visão Futuro 2018 BÍBLIA DE JERUSÁLEM Escritos da Tradição JudaicoCris tã 2004 BORGES Vitor Santiago Sentimento Oceânico Um estudo da Experiência Religiosa a partir de Freud e Romain Rolland Dissertação de Mestrado defendida e aprovada na Universidade Católica de Brasília Distrito Federal 2008 CREMA Roberto Antigos e Novos Terapeutas Rio de Janeiro Vozes 2002 FADIMAM J e FRAGER R Teorias da Personalidade Editora Harbra 1986 IBC Caderno de Reflexão Momentos a Sós com Deus Igreja Batista Central de Belo Horizonte sd JOHNSON Willard Do Xamanismo à Ciência Uma História da Meditação São Paulo Cultrix 1995 JUNG CG Obras Completas v 115 Psicologia e Religião Ocidental e OrientalPsicologia e Religião Oriental Vozes 2012 JUNIOR BOAINAIM Elias Tornarse Transpessoal Trans cendência e Espiritualidade na obra de Carl Rogers São Paulo Summus Editorial 1998 KABATZINN John Atenção Plena para Iniciantes Rio de Ja neiro Sextante 2017 KATZ Richard Boiling Energy Community Healing Among the Kalahari Kung Harvard University Press 1982 KEATING Thomas Mente Aberta Coração Aberto A Dimen Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 150 são Contemplativa do Evangelho Loyola São Paulo 2005 LELOUP JeanYves Escritos sobre o Hesicasmo Uma Tradi ção Contemplativa Esquecida Rio de Janeiro Vozes 2003 MASLOW Abraham Harold Introdução à Psicologia do Ser El dorado 1962 PRABHUPADA Srila O cantar de Hare Krsna Baktivedanta Book Trust 2009 REBOIRAS Fabiana GRZONA Estebán Práticas Meditativas para a Redução do Estresse O BemEstar como Competência dos Profis sionais de Saúde Revista del Hospital Italiano de Buenos Aires 2015 SARKAR PRANANDAMURTI SHRII SHRII Psicologia do Yoga São Paulo Editora Ananda Marga Yoga e Meditação 2007 SARKAR PRANANDAMURTI SHRII SHRII Discourses on Tantra v 1 Calcuta Ananda Marga Publications 1997 SARKAR PRANANDAMURTI SHRII SHRII NeoHuma nismo Ecologia Espiritualidade e Expansão Mental São Paulo Ananda Marga Publicações 2001 SOMMERMAN Américo Inter ou Transdiciplinaridade Ques tões Fundamentais da Educação São Paulo Paulus 2008 TSÉ LAO Tao Te King O Livro do Tao e sua Virtude Versão integral e comentários São Paulo Attar 2001 UNIPAZ Manual da Formação Transdiciplinar São Paulo UNI PAZ 2000 WEIL Pierre Os Mutantes Uma nova humanidade para um novo milênio Campinas Verus 2003 WILBER Ken O Espectro da Consciência São Paulo Cultrix 2007 Psicologia Integral Consciência Espírito Psicolo gia Terapia São Paulo Cultrix 2002 A dimensão de espiritualidade e o enfrentamento ao fundamentalismo discutindo as relações de poder GuARACI M SANTO Psicólogo e especialista em Psicanálise e Direito pela Newton Paiva Especializado em Direito Público pela Newton Paiva Anamages Mestre e doutorando em Ciências da Religião membro do Grupo de Pesquisa Religião Pluralismo e Diálogo Interreligioso REPLUDI PUC Minas e do Fórum Inter Religioso contra a Violência e a Discriminação CONICMG CENARABMG Pastoral e DEC PUC Minas Educafro UFM CUTMG Exsecretário e vicepresidente da Associação de Umbanda e Candomblé do Estado de Minas Gerais Tateturia n kise Sacerdote candomblecista na Nação de Angola tradição africana Bantu rei de congado e umbandista Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 152 Introdução Um convite à reflexão como a espiritualidade pode contribuir para o enfrentamento ao fundamentalismo mais especificamente o religioso Em que medida a Psicologia pode tratar de temas atuais que se pautam em fundamentalismos como racismo xenofobia homofobia e intolerância religiosa É a partir dessas indagações que pretendemos construir uma relação dialogal com os pares e público aqui presentes no Psicologia em Foco 2018 a convite do CRP04 por meio do Professor Reinaldo da Silva Junior coordena dor da Comissão Psicologia Laicidade Espiritualidade Religião e Outros Saberes Tradicionais Clerot do qual faço parte Ao falarmos de Psicologia deixamos claro que não se trata de uma generalização desta pelo contrário acreditamos na impor tância de salvaguardar as especificidades de cada corrente teóri ca que compõe os saberes psicológicos Entretanto é fato uma finalidade comum entre eles indiferente do eixo epistemológico a que pertencem estes têm como premissa o cuidar de seres humanos por meio técnicas especificas Cuidado que acredita mos que deva ser feito de forma ética e profissional respeitando as singularidades de cada caso e seguindo as normas e técnicas propostas por cada epistemologia Quanto aos seres humanos sujeitos e suas demandas estes podem apresentar dificuldades relacionais com seus semelhan tes as quais muitas vezes são fruto da falta de conhecimento acerca de si eou do outro A isto se junta a característica das sociedades contemporâneas de oferecer em um mesmo ambien te histórico geográfico diferentes maneiras de compreender o mundo o que impede que o sujeito se adeque calmamente a uma moral de época Uma das respostas possíveis a essas ques Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 153 tões que levantamos é o fundamentalismo Como efeito temos assistido a uma crescente onda de comportamentos fundamen talistas nas relações sociais politicas e religiosas entre outras Segundo Magali Cunha 2017 o termo fundamentalista deuse primeiramente por Curtis Lee Laws editor e próximo da Igreja Batista Esse termo foi empregado para retratar um movi mento teológico protestante conservador contrário ao liberalismo teológico e científico inaugurado pela modernidade Movimento que segundo a autora o qual resultou em uma obra de doze vo lumes intitulada Os Fundamentos um testemunho para Verdade A obra objetivava defender os fundamentos da fé cristã pautan dose nas escrituras sagradas desta Neste viés ela defende um Jesus divinizado e a literalidade de seus milagres isso sem uma mínima possibilidade de contextualização e atualização de seus pressupostos e narrativas Ademais ignorava os teólogos liberais da época abertos ao progresso científico e as inovações propos tas pela modernidade em prol da justiça e da paz Esse ignorar representava uma rigidez de comportamentos que não permitiam a abertura a outras realidades e perspectivas socioculturais e religiosas ou sequer as consideravam possíveis de existir O que sinalizava uma indisposição ao outro negan dose assim a possibilidade de qualquer tipo de diálogo Como resultado disso abriase um campo propício ao extremismo e ao fanatismo fomentando atos de intolerância Hoje recorrentemente nos deparamos com o termo funda mentalismo associado prioritariamente ao mundo Islâmico a partir de atos terroristas cometidos pelo Estado Islâmico e outros grupos fundamentalistas eou terroristas Com isso incorremos numa rotulação genérica se consideramos que existem outras for mas de comportamentos fundamentalistas que podem ter carac Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 154 terísticas extremistas e fanáticas por meio de ações autoritárias e passionais ou não E que atos de cunho fundamentalistas não se circunscrevem somente aos campos religiosos ou políticos No Brasil é cada vez mais recorrente o uso desse termo como forma de nomear grupos evangélicos religiosos eou políticos dentre outros que defendem um conservadorismo contrário aos direitos de livres expressões sexuais organizações familiares e religiosas entre outras em nome de fundamentos confessionais específicos como os cristãos católicos e protestantes em suas di versas variações O que por sua vez pode potencializar conflitos sociais políticos e religiosos Exemplo disso são os atos de homicídios das populações jo vens negras e LGBT além dos ataques a afroreligiosos e seus terreiros também com registros de ações semelhantes que in felizmente estão se tornando comuns em nome de verdades in flexíveis e descontextualizadas no Brasil Atos estes de extrema perversidade e violência contra a dignidade e a vida humana Com efeito a essa realidade Cunha Carta Capital 2017 ressalta ser necessário diferenciar a defesa de doutrinas e prin cípios do fanatismo religioso ou político para que possamos ser justos em nossas construções acerca do tema fundamentalismo Sabemos que para os seres humanos é importante nesse mundo moderno e competitivo fundamentarse bem por meio de suas crenças e valores religiosos ou não a fim de orientar a pró pria existência Contudo como explicitamente isso é feito e sua finalidade é que precisa ser assistido Para tanto nos perguntamos a espiritualidade em interlocução com as Ciências Psicológicas pode ser pensada como um recurso efetivo a fim de promover os fundamentos teóricos de determinados segmentos como os teoló gicos a uma perspectiva essencialmente mais humana Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 155 Segundo Teixeira 2005 p15 a espiritualidade não é algo que ocorre para além da esfera do humano mas algo que toca em profundidade sua vida e experiência Nesse sentido entendemos a espiritualidade como uma ma nifestação intrinsicamente humana que corrobora para uma bus ca de sentido existencial subjetivamente Teixeira 2005 afirma ainda que esta é uma energia não perceptível ao ser e contudo instigao ao trabalho de seguir e atingir uma condição espiritual universal Ações que podem acontecer fora ou dentro de uma conformação religiosa Isso difere a espiritualidade da religiosi dade já que esta se caracteriza pela busca de sentido por meio da prática religiosa mediada por ritos A religiosidade é a forma que os seres humanos elegem de acordo com suas perspectivas e afinidades de expressar subjetivamente em atos suas crenças e valores religiosos confessionais fundamentos e dogmas sagra dos visando orientar suas vidas cotidianas Conjuntamente espiritualidade e religiosidade podem colo car os sujeitos a serviço do outro e da comunidade Uma dinâmi ca que confere de forma subjetiva legitimação a existência dos seres humanos TEIXEIRA 2005 p 16 Quanto à religião esta é entendida aqui como instituição onde a normatização de seus valores se faz legitimada por uma doutrina mor codificada em escrituras sagradas eou registrada formalmente Contudo entendemos que existem formas de mani festações da espiritualidade busca de sentido que culturalmente não se enquadram nas categorias que privilegiam registros escri tos Bem como se organizam a partir do princípio de interrelação e interação contínua entre o mundo material e o espiritual como por exemplo as religiões de matrizes africanas Estas religiões en tendem que o religarse não é possível pois para elas nunca se Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 156 perde a ligação com o divino Elas acreditam que a vida é contínua e perpassa os mundos visível e invisível dinamicamente e que o sa grado se manifesta no ser humano e em sua vida cotidianamente Temos ainda outras religiões que são nomeadas por seus prati cantes como muito particulares uma bricolagem individual e cole tiva de crenças desembocando em uma crescente gama de novas denominações religiosas para ilustrar citamos o Umbandaime Uma mescla de práticas umbandista ameríndias orientais e dai mistas que passam a compor o cenário das religiões minoritárias e que como tal estão sujeitas às pressões fundamentalistas dos setores homogêneos religiosos e políticos dentre outros Por consequência à pluralidade crescente de opções religio sas e de uma carência de sentido o sujeito pode responder se abrindo às diferenças ou adotando posturas fundamentalistas As posturas fundamentalistas se ligam a duas estratégias defensi vas a estratégia de gueto onde se busca o afastamento de pes soas e situações que não fazem parte daquela religião específica e a estratégia da cruzada onde se tenta resgatar o mundo e as pessoas através de conversões e mudanças nas práticas sociais TEIXEIRA 2007 Essa segunda estratégia pode ser utilizada conjuntamente a atos de violência tanto simbólica quanto física Mariz 2013 aponta que as religiões mais conservadoras den tro dos campos católico e evangélico tendem a demonizar as re ligiões da nova era e as religiões com matrizes africanas Dentro dessas mesmas religiões cristãs existem buscadores de diálogo principalmente nos setores mais intelectualizados que entendem que o contato com outras religiosidades pode reavivar sua fé A saber as religiões de matrizes africanas são no Brasil o principal alvo de preconceitos religiosos A cada três dias uma queixa de intolerância religiosa chega à Secretaria de Direitos Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 157 Humanos da Presidência da República No ranking das denún cias por intolerância religiosa entre 2011 e 2014 encontramos que a intolerância às religiões de matrizes africanas são as cam peãs em denúncias totalizando 75 seguidas pelas manifestações cristãs evangélicas com 58 espíritas com 27 e católicas na casa dos 22 registros Folha de São Paulo 27062015 Segundo Silva 2007 isso acontece por meio de atos que caracterizam uma Guerra Santa como Ataques feitos no âmbito dos cultos das igrejas neopentecostais e em seus meios de divulgação e proselitismo agressões físicas in loco contra terreiros e seus membros ataques às cerimônias religiosas afrobrasileiras realizadas em locais pú blicos ou a símbolos dessas religiões existentes em tais espaços ataques a outros símbolos da herança africana no Brasil que tenham alguma relação com as religiões afrobrasileiras e as rea ções públicas políticas e judiciais dos adeptos das religiões afrobrasileiras SILVA 2007 p 10 Historicamente perseguidas as religiões de matrizes africanas carregam em si uma herança colonial de exclusão e a margina lidade de suas práticas e etnia estas classificadas pelas classes dominantes da época como ainda hoje como sendo desprezíveis e inferiores QUEIROZ 1989 Sendo assim a discriminação e perseguição aos negros e suas práticas é histórica no Brasil CORRÊA 2001 QUEIROZ 1989 A saber nos primórdios das escolas científicas no Brasil nos períodos imperial e republicano os negros eram tidos como in Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 158 feriores aos brancos uma posição de afirmação da escravidão e desqualificação desse povo Uma forma do governo dominante de se manter por meio de um racismo pseudocientífico fomenta do e instrumentalizado pelas elites dos períodos citados Forma excludente que mesmo durante a república e a abolição da es cravatura permaneceu intrínseca na estrutura do Estado assim como das classes dominantes do país Assim qualquer manifestação religiosa ou não relacionada à cultura africana era recachada sob o pretexto que elas faziam apologia ao mal eou a própria demonização do negro escravizado e seus descendentes Nesse contexto religiões de matrizes africanas como o can domblé foram perseguidas veementes por meio de políticas es pecíficas de repressão das atividades religiosas ou culturais dos negros CORRÊA 2001 p 43 Como por exemplo a necessi dade de autorização policial feita nas delegacias de bons costumes e diversão da Polícia Civil até os anos 1980 para que os terreiros pudessem fazer seus rituais e festejos dentro da lei e da ordem Dentre as práticas das comunidades negras no Brasil as do candomblé se destacaram visto que se apresentaram como uma forma de resistência pois salvaguardaram as maneiras de ser e pensar que constituíram seu patrimônio específico im pedindo que a cultura ocidental fortemente hegemônica QUEIROZ 1989 p 33 Práticas que contribuíram para o não aniquilar coletivo das identidades étnicas e religiosas dos africa nos escravizados e seus descendentes Entender as perseguições das igrejas pentecostais às religiões de matrizes africanas umbanda e candomblé nos auxilia no entendi mento sobre a atual intolerância religiosa Para SOARES 1990 es sas igrejas cristãs modernas buscam imbuir seus fiéis do espírito do Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 159 combate ao mal e a partir disso as religiões africanas ficam expos tas a atos extremistas oriundos dos fiéis das igrejas neopentecostais Para a autora a fé cristã neopentecostal é inflexível quanto à sua não abertura ao diálogo com as religiões afrobrasileiras Realidade que tenciona muito o campo religioso nacional e traz muitos prejuízos financeiros e psicológicos aos afroreligiosos por meio de ataques verbais e físicos que também se estendem aos seus terreiros Nesse aspecto lançamos mão do conceito de poder foucaultia no Para Foucault poder não é algo que se possui inerentemente e sim função de exercer suas vontades no contato com outros dentro de uma determinada situação concreta O poder está o tempo todo sendo alvo de disputas A Guerra Santa acima citada é estratégia de tomar e manter para um grupo religioso o poder de nomearse como única religião aceitável Outro conceito do mesmo autor que podemos utilizar é o de panóptico apresentado por Bentham e uti lizado por Foucault Um modelo de prisão que permite vigilância a partir de uma conformação geográfica onde os sujeitos presos são sempre possíveis de serem vistos Podemos ampliar este conceito para qualquer situação onde o olhar sobre o outro demonize eou menospreze os diferentes e permita vigiálos no intuito de tolher suas manifestações Isto vem ocorrendo com as religiões de matrizes africanas O preconceito a discriminação e a falta de informação sobre as manifestações da cultura afrobrasileira faz com que mui tos considerem legítimo esse poder que tem a possibilidade tanto de vigiar quanto de constituir sobre aqueles que vigiam a respeito deles um saber FOUCAULT 2008 p 88 A intolerância religiosa parece estar ligada à construção des sas verdades sobre os rituais do candomblé e umbanda Apesar da divisão atual de poder de nossa sociedade deixar em vantagem as religiões fundamentalistas extremistas sobre as afrobrasilei Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 160 ras novos arranjos são possíveis a partir de ações concretas de empoderamento dessas religiões Uma primeira ação é aumen tar o conhecimento sobre essas religiões combatendo as ideias equivocadas construídas por discursos fanáticos e de ódio Na intenção de conhecer melhor as manifestações religiosas de matriz africana elencaremos alguns de seus princípios os quais se chocam com as posturas exclusivistas e fundamentalis tas e por isso acabam as colocando como alvo de discursos de ódio Dentre eles temos O Princípio da Diversidade que tem como premissa que os seres humanos são diferentes por natureza O que reforça tanto o respeito à alteridade quanto a necessidade de complementação dos diferentes na vida comunitária e codependente entre os se res do mundo visível e destes com os do mundo invisível O Princípio da Ancestralidade provedora do ngunzo na língua africana de tradição Bantu87 ou axéno dialeto Yorubá88 a força vi tal como sendo a realidade fundante dessas religiões e que permite compreender suas vidas cotidianas Todo ancestral tem um passa do terreno foi antepassado mas nem todo antepassado foi ou será ancestral Para os povos africanos e também para os afroreligiosos brasileiros sua cosmovisão está centralizada nos ancestrais e é a par tir disso que suas as relações sociais são instituídas 87 Bantu Banto especificação étnicolinguística que corresponde aos países localizados na parte subequatorial do continente Africano correspondente a países como Moçambique Angola e República do Congo e outros Tradições das religiões de matrizes africanas como as Congadas as Folias de Reis mesmo que consideradas como manifestações culturais populares sabemos que elas se constituem a religiosi dade por meio da descendência africana e os candomblés de Angola no Brasil 88 Grupo étnico e linguístico localizado ao norte no continente africano composto por países como Nigéria Benim Costa do Marfim e etc de onde se originam os candomblés de tradição Yorubá e Nagô com os terreiros de Jeje Kêtu Efón e outros no Brasil Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 161 Por fim e não menos importante o Princípio Religioso como forma de ser e viver A religião como razão primeira das culturas africanas de tradição Yorubá e Bantu entre outras é constituída por meio das memórias e codificada pela oralidade Esta oralida de que é mais fluida que o saber expresso nos livros sagrados se adapta às novas configurações sociais ao mesmo tempo em que repete o mito de fundação da religião Não é de se espantar que isto os partidários do fundamentalismo Neste sentido entendemos que o diálogo interreligioso a partir de seus princípios norteadores como proposto a seguir pode de forma cuidadosa auxiliar em nossa reflexão foco Isto por acredi tarmos que assumir o reconhecimento da necessidade de cons truções de novos saberes de forma transversal e compartilhada é dar o primeiro passo para abrirse ao encontro com o outro Panasiewick 2003 apresenta quatro níveis de encontro inter religioso com suas respectivas formas de diálogo a nível existencial presença e testemunho Diz respeito à vivência espontânea e natural dos valores internalizados pelos fiéis no interior de uma tradição cultural e religiosa a partir da convivência com eles em ambientes não religiosos É por isso que os fundamentalistas insistem na postura de gueto relacional procurando afastar seus membros do contato com pessoas e atos por eles nomeados como mundanos b nível místico oração e contemplação No nível mítico as pessoas são chamadas a participar dos rituais de outras religiões Neste nível compartilhase a experiência comunitária e a expe riência contemplativa da fé perante o Ser além das diferentes metodologias de se aproximar do Absoluto c nível ético libertação e promoção do ser humano É o nível do diálogo das ações e da colaboração com objetivos de caráter Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 162 humanitário social econômico e político que se orientem para o eu PANASIEWICK 2003 p 50 Entendemos o nível da ética propício para um tratar de ques tões com evidências religiosas fundamentalistas Visto que tanto por meio da ética pessoal quando o ser humano usa valores que privilegiam o respeito ao outro antes de qualquer teoria e tam bém da ética profissional preconizada pelo Código de Ética pro posto pelo Conselho Federal de Psicologia podemos construir posturas contra o preconceito e para além conseguimos ver a partir da narrativa do consulente uma possibilidade de trabalho que privilegie a reflexão um deslocamento do discurso ou até mesmo uma ressignificação subjetiva acerca da problemática em questão Uma escuta sem proselitismo e com suspensão de juízo de valor é instrumento de suma importância neste cenário Res saltamos que as verdades são relacionais e como tal devem ser consideradas como vetores que indicam por onde e de que forma a questão deve ser conduzida e na melhor das hipóteses sanada d nível teológico enriquecimento e aplicação dos patrimônios religiosos O diálogo dos especialistas O objetivo é confrontar aprofundar e enriquecer os respectivos patrimônios religiosos como também aplicar os recursos aí contidos aos problemas que se põem à Humanidade no decurso da sua História PANA SIEWICK 2003 p 50 Falando da valoração interreligiosa Vigil 2006 afirma que as pessoas podem utilizar três formas diferentes de valorar as outras visões frente à própria visão religiosa formas exclusivis tas inclusivistas e pluralistas A postura exclusivista é aquela que afirma que só a própria crença ou cosmovisão propicia a salvação eou reflete com clareza a verdade Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 163 O inclusivismo inclui as religiões de mesma base por exem plo todas as religiões cristãs no rol das possibilidades de salva ção e outras cosmovisões parecidas no rol das verdadeiras Além disso alguns pensadores incluem também religiões não cristãs como as religiões afrobrasileiras pois elas teriam um cristianis mo anônimo que manteria características cristãs sem nomeálas desta forma A terceira postura é a do pluralismo O pluralismo afirma que a salvação está em Deus Afirma também que cada cultura per cebe alguns aspectos de Deus e ignora outros visto que Deus é inacessível à mente humana Assim todas as religiões apesar de não serem iguais seriam verdadeiras pois ofereceriam uma leitura de partes desse divino Existem algumas disposições e condições para que o diálogo interreligioso seja possível são elas o respeito ao outro em sua identidade própria a fidelidade à sua própria identidade cer ta igualdade entre os parceiros consciência de humanidade e a abertura de valor de alteridade A partir disso entendemos que a espiritualidade produ ção de sentidos relacionais concomitantemente com as prá ticas psicológicas pode ser instrumento de enfretamento ao fundamentalismo Elencamos como possibilidades de intervenção psicológica nesses campos de conflitos promoção de diálogos mediação de conflitos reflexões contra as introjeções de preconceitos religio sos ensino nas universidades sobre questões religiosas e suas influências nas práticas psicológicas além da formulação e apoio a leis específicas como papel dos Conselhos Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 164 Considerações finais Temos no cenário brasileiro atual grandes desafios dentre eles o de sermos responsáveis e justos em nossas reflexões e consequentemente em nossas ações Nesse sentido devemos nos esforçar para diferenciar a defesa de fundamentos políticos eou religiosos e outros conservadores ou não de atos extremos ou fanáticos expressos verbal ou fisicamente de forma violenta Sendo assim o tratar psicológico de posições fundamenta listas que se apresentam em nossos cotidianos sobre racismo xenofobia homofobia e outras depende do conhecimento e aceitação das diferenças de uma consciência crítica profissio nal e humana No caso da religião entendemos que não há uma religião em abstrato as religiões se apresentam à Psicologia de modo geral corporificadas em pessoas e organizações São essas pessoas e organizações os locus de intervenção do saber psicoló gico mais do que as doutrinas locus de intervenções teológicas As práticas fundamentalistas violentas e discursos de ódio co metidos contra grupos minoritários como as religiões de matri zes africanas surgem em contexto de competitividade religiosa nos moldes do mercado de consumo ancoradas nas vontades de angariar poder e dinheiro Essas religiões neste contexto sofrem de dupla desvantagem Primeiro por carregarem uma menos va lia ligada culturalmente à herança africana e segundo por não fazerem proselitismo pois não se colocam como melhores que outras religiões e oferecerem seus produtos simbólicos sem a necessidade de conversão Quanto à espiritualidade dimensão do sentido quando bem trabalhada coloca os seres humanos diante à uma vivência re lacional com outros seres humanos visto que o eu se define Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 165 frente ao não eu Essa relação com respeito à alteridade é em no nosso entendimento a principal arma no combate aos funda mentalismos Cabe à Psicologia como ciência e prática social se debruçar sobre essa questão e criar metodologias que facilitem a vivência do diálogo e do respeito à diferença Referências bibliográficas CORRÊA M As Ilusões da Liberdade a escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil Bragança Paulista EDUSF 2000 CUNHA Magali do N Precisamos falar sobre fundamentalis mo In Diálogos da Fé Disponível em httpswwwcartaca pitalcombrblogsdialogosdafeprecisamosfalarsobrefunda mentalismo Acesso em 03 abr 2018 FOUCAULT Michel A Verdade e as formas jurídicas Rio de Janeiro Nau Editora 2002 MARIZ Cecília Loreto Instituições tradicionais e movimentos emergentes In PASSOS João Décio USARSKI Frank Com pêndio de Ciência da Religião São Paulo PaulusPaulinas 2013 PANASIEWICK Roberlei Os níveis ou formas de diálogo inter religioso uma leitura a partir da Teologia cristã Belo Horizonte Revista Horizonte v 2 n 3 p 240261 abrjun 2003 Dispo nível em httpperiodicospucminasbrindexphphorizonte articleview597624 Acesso em 02 ago 2016 QUEIROZ MIP Identidade Cultural Identidade Nacional no Brasil Ver Social USP S Paulo 1l 2946 Sem 1989 QUEIRUGA Andrés Torres O encontro entre as religiões In QUEIRUGA Andrés Torres Autocompreensão cristã diálogo das religiões São Paulo Paulinas 2007 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 166 SILVA Vagner Gonçalves Da Prefácio ou Notícias de uma Guerra Nada Particular os ataques neopentecostais às religiões afrobrasileiras e aos símbolos da herança africana no Brasil In Intolerância Religiosa impactos do neopentecostalismo no cam po religioso afrobrasileiro São Paulo Edusp 2007 SOARES Mariza de Carvalho Guerra Santa no País do Sin cretismo In Sinais dos tempos diversidade religiosa no Brasil Cadernos do ISER 23751041990 SCHWARCZ Lilia Moritz O Espetáculo das Raças Cientistas Instituições e Questão Racial no Brasil 18701930 São Paulo Companhia das Letras 1993 TEIXEIRA Faustino O Pluralismo Religioso e a Ameaça Fun damentalista Numen revista de estudos e pesquisa da religião Juiz de Fora v 10 n 1 e 2 p 924 2007 TEIXEIRA Faustino MENEZES Renata Religiões em Movi mento o Censo de 2010 Petrópolis RJ Vozes p 1736 2013 VIGIL José M Teologia do pluralismo religioso para uma relei tura pluralista do cristianismo São Paulo Paulus 2006 Terapia no mundo antigo e suas implicações para um diálogo entre Psicologia e Teologia DAVI C RIbEIRO LIN Doutorado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia Brasil 2019 Psicólogo Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 168 Introdução Este artigo recupera a ideia de terapia na antiguidade visando reconhecer referências de saber interdisciplinar e caminhos de diálogo para a Psicologia Em outras palavras porque a Filoso fia antiga e a Teologia patrística têm uma concepção elaborada de terapia da alma muitos séculos antes da Psicologia fazerse ciência a relação entre Psicologia e outros campos do saber não é necessariamente uma história de conflito inevitável mas pode abrirse a um diálogo interdisciplinar de cooperação e enrique cimento mútuo Se a Psicologia quiser manter um ouvido atento em tempos de polarização e radicalismos no campo religioso e científico ela é convidada a cultivar um diálogo respeitoso entre diferentes campos do saber mantendo tanto uma postura epis temológica clara quanto intencionalmente evitando uma miopia histórica que desconhece as potencialidades e limites de tradi ções e saberes anteriores a própria ciência psicológica No atual contexto brasileiro fomentar um caminho de interdisciplinari dade entre Teologia e Psicologia tornase necessário diante do crescente processo de disjunção e ausência de diálogo entre fé religiosa e ciência ou uma sobreposição que não compreende a singularidade de cada enfoque A terapia na antiguidade Pierre Hadot destaca que a Filosofia no mundo antigo se rela cionava a uma escolha de um modo de vida em comunidade inte grando discurso filosófico como teoria com uma prática existen cial Consequentemente a Filosofia antiga difere radicalmente daquilo que conhecemos por Filosofia no século XXI era uma Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 169 escolha por um caminho filosófico não como um apêndice da reflexão mas seu ponto de partida integrada a uma visão global de certo modo de viver89 O discurso filosófico na antiguidade relacionavase a uma escolha de opção existencial nunca feita por um indivíduo isolado mas orientado por uma escola rumo a um ideal de felicidade Exigia uma mudança de estilo de vida e conversão do ser como uma preparação para a sabedoria90 Uma essencial tarefa das diferentes escolas filosóficas relacionavase a justificar essa escolha existencial incorporando sua visão de mundo à prática na qual o discurso filosófico expressava um ca minho terapêutico de um tipo de vida escolhida A Filosofia na antiguidade clássica tinha como tarefa principal a terapia da alma Cícero 10643 aC orador filósofo e políti co romano descreve a necessidade de se despertar no paciente um conhecimento sobre a ambiguidade de seu próprio estado de enfermidade A alma julga sobre si mesma quando justamente o que nela julga está doente91 Ao contrário da Filosofia mo derna que se ocupou mais com fundamentações normativas a ética antiga centrouse na busca da felicidade e do sumo bem e desembocou em um desenvolvimento de uma ars vivendi uma metodologia terapêutica para se alcançar a meta de uma vida92 A consequência é que a Filosofia antiga tomou para si a necessi dade da criação de métodos que conduzissem um ser humano ao caminho da felicidade propondo um autoconhecimento e mé todos terapêuticos pelos quais o homem tornavase cônscio de sua enfermidade e assim poderia ser conduzido ao caminho da 89 Hadot Pierre What Is Ancient Philosophy Cambridge Harvard University Press 2002 3 90 Ibid 4 91 Cicero Tusculana e disputationes III 1 92 Johannes Brachtendorf Confissões de Agostinho São Paulo Loyola 2008 14 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 170 felicidade Portanto aquilo que hoje conhecemos como parte do objeto de estudo e prática da Psicologia era na antiguidade uma ocupação filosófica O papel do terapeuta na era helenística era ocupado por guias filosóficos que curavam através da palavra o discurso precisava adequarse ao estado do paciente e o uso da retórica buscava um ideal de florescimento não como um Deus nem como um animal mas como um humano Conversas pes soais com um sábio filósofo buscavam harmonia com o universo em uma concepção na qual a Psicologia e a física não se distan ciavam mas participam da mesma ordem cosmológica em vistas a uma opção existencial de realização da felicidade humana Podese afirmar que aquilo que conhecemos hoje como práti ca psicoterapêutica não era totalmente compreendida no mundo antigo no entanto suas raízes têm uma longa tradição na história das ideias psicológicas Uma incipiente psicoterapia foi desen volvida na antiguidade nos campos da história médica Filoso fia e da Teologia na tradição judaicocristã Também é relevante notar que mesmo no mundo antigo as disciplinas já estavam encontrando suas especificidades Hipócrates que encarnou os valores do que é hoje a profissão médica tendeu a destacar o tratamento somático embora ele se esforçasse por ter mente e corpo sadios Os filósofos em contraste eram hábeis na cura através de belas palavras na arte da retórica A tradição filosófica da terapia helenística também foi deno minada como psicagogia um sistema de cuidado dedicado ao desenvolvimento holístico do seguidor Como bem sintetiza Paul Kolbet a psicagogia referese a tradições de terapia filosofi camente articuladas comuns na literatura helenística relativas a como uma pessoa amadurecida leva os menos maduros a per ceber e internalizar a sabedoria por si mesmos Essas tradições Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 171 além disso enfatizam que para o discurso terapêutico ser eficaz ele deve se basear no conhecimento e persuadir adaptandose de maneiras específicas tanto ao estado psíquico do receptor como à ocasião particular93 Consequentemente não é difícil perceber como esse ideal cultural também influenciou o cristia nismo e a seguinte articulação teológica A psicagogia também foi apropriada por judeus e cristãos que interessados em desen volver meios para o desenvolvimento da pessoa humana a partir da perspectiva da fé integraram a tradição judaicocristã com os ensinamentos da Filosofia helenística Fílon e os terapeutas de Alexandria viveram no primeiro século da era cristã em um caldeirão de encontro entre cultura grega e tradição judaica Reconhecendo que a tarefa da Filosofia era tera pêutica e integrandoa no judaísmo helenístico cultivou um mo delo integrado da unidade da pessoa Seu modelo de saúde não se limitava ao corpo ou retirava o olhar das dimensões psíquica e es piritual da vida mas buscavase um cuidado com a pessoa humana em seu corpo alma e espírito terapeutas com uma antropologia holística buscando o cuidado de ser em suas dimensões corporal psíquica e espiritual em sua integralidade constitutiva94 Ao tera peuta cabe uma escuta que não é somente um ato corporal mas a condição para a saúde psíquica e que se revela uma postura espi ritual95 O ouvir é o primeiro chamado da shema hebraica Ouve ó Israel A consequência é que se institui um modelo antropoló gico holístico com escuta integral que inspira na atualidade um trabalho em conjunto de diferentes disciplinas como medicina 93 Paul R Kolbet Augustine and the Cure of Souls Revising a Classical Ideal Notre Dame University of Notre Dame Press 2010 8 94 JeanYves Leloup Prendresoin de lêtre Philonet les thérapeutes dAlexandrie Pa ris Albin Michel 1999 95 Ibid 83 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 172 Psicologia e espiritualidade Fílon efetua uma síntese terapêutica entre as tradições da antropologia judaica e a helenística exemplo de uma prática na tradição de matriz judaicocristã que ao inserir se em um diálogo com a cultura helênica de maneira frutífera se posiciona contra um olhar fragmentado ao indivíduo e a favor do cuidado com a pessoa inteira Com o desenvolvimento da fé cristã em um corpo de saber e perspectiva teológica a Teologia valida o ideal filosófico de terapia e o apropria dentro da tradição cristã Na interação entre a heran ça grecoromana e a tradição judaicocristã filósofos cristãos aco lhem para si práticas da Filosofia helenística e o adaptam afirman do a fé cristã como a verdadeira philosophia Agostinho 354430 orador e retórico na corte imperial de Milão e posteriormente bis po de Hipona era consciente de que as palavras não somente in formam mas performam e moldam a direção dos afetos Em uma de suas cartas ele recomenda um tratamento da vida interior algo que parece aproximarse de uma recomendação a psicoterapia em dias atuais se esses problemas te incomodam assim como eles me perturbam discutaos com algum médico do coração cordis medico caso encontres alguém onde moras ou quando fores a Ro ma96 Agostinho é possivelmente o maior responsável na adap tação cristã do modelo clássico de terapia Apesar de conservar os mesmos ideais por sabedoria que herdou da leitura de Cícero Agostinho vê no Christus Medicus o modelo do sábio médico fi losófico a encarnação de Cristo sua humanidade permitiu uma troca na qual os seres humanos trazem suas doenças mas através de sua identificação com as feridas humanas Cristo os dá vida A consequência é que Agostinho retém o ideal filosófico e ao mes mo tempo traz a ideia de terapia para a Cristologia e a Teologia 96 Santo Agostinho ep 956 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 173 Confissões uma expressão autobiográfica de um narrar sobre si dentro de um horizonte relacionalterapêutico descreve a jor nada da conversão da vida interior de Santo Agostinho em di reção a uma vida relacional mais autêntica Sua conversão ao deixar a carreira como um profissional do mercado da oratória e retórica é também um novo jeito de se comunicar com o mundo um manifesto de uma vida interior que abandonou a manipula ção das palavras visando o ganho pessoal Agostinho percebese como alguém que é feito a partir de relações de acolhimento e graça Suas noções elaboradas sobre interioridade memória e um ideal comunitário de transformação da vida interior sinalizam que a antiguidade tanto na Filosofia quanto na Teologia já era dotada de modelos psicológicos complexos Apesar de não terem um caráter científico moderno limitados pelo próprio avanço e horizonte dos antigos séculos tanto a Filosofia helenística quan to a Teologia patrística se propunham a cuidar da pessoa humana e de seus processos psíquicos Como aponta Paul Kolbet situar Agostinho como antigo terapeuta ou pelo menos um protote rapeuta permitenos compreender a complexidade de um saber psicológico de outra época e ao mesmo tempo tomar consciên cia de nossas próprias pressuposições Ao tomar uma tradição filosófica complexa como a da Filosofia clássica e produzir um modelo filosófico teológico profundo como o descrito em Confis sões Agostinho de Hipona aponta para a possibilidade de pessoas com um conhecimento teológico produzirem um saber psicológi co aprofundado contendo elementos originais Um dos desafios da na contemporaneidade e da nossa pro fissão enquanto psicoterapeutas é que podemos sofrer de uma miopia histórica Enquanto ciência nascida no século XIX ge rada na confluência das ciências naturais Filosofia e estudo da Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 174 fisiologia a Psicologia estabeleceu uma necessária relação de di ferenciação Entretanto distinção não significa necessariamente banimento de diálogo mas clareza e limites necessários Pelo nosso desconhecimento do saber psicológico anterior ao século XIX a Psicologia pode fecharse em uma atitude de afastamento em vez de mutuo enriquecimento com campos como a Filosofia e a Teologia Apesar das transformações históricas nos diferen tes campos do conhecimento e da distância entre antiguidade e contemporaneidade Teologia Filosofia e Psicologia podem participar de um diálogo interdisciplinar fecundo reconhecendo limites e possibilidades se retém tanto epistemologias próprias e claras quanto uma abertura a construção de pontes de contato A ideia de conflito inevitável entre saber científico e a es piritualidade é também fruto de uma ciência nascida em um momento histórico que reforçou a distância entre a ciência e a expressão religiosa No século XIX com o desenvolvimento de ciência e de uma classe distinta o cientista ganha força o dis curso de confronto inevitável entre ciência e comando religioso A nova classe de cientistas questiona a autoridade da igreja as ciências nascidas no século XIX e início do século XX tenderam a se estabelecer em contraposição à linguagem religiosa A ideia de conflito inevitável carrega também contornos de substituição de saberes como exemplificada pelo cientista natural e evolucio nista Thomas Huxley Seus textos científicos são descritos como sermões e o museu de história natural é a catedral da nature za A Psicologia nasce nesse contexto do século XIX com uma visão de conflito entre ciência e fé Em O Futuro de Uma Ilusão de 1927 Sigmund Freud parte do princípio de que a religião foi criada pelo homem por motivos de auto conservação por seus desejos pulsionais é uma projeção de sua orfandade de um nar Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 175 cisismo infantil e portanto o ser humano precisa da descrença para abrirse à liberdade Há de se notar que a crítica de Freud é válida quando a religiosidade reproduz medos infantis e não permite um amadurecimento humano Entretanto nem todos os psicanalistas que correspondiam com Freud compartilhavam de sua mesma visão sobre a questão religiosa como no caso do pastor reformado teólogo e psicanalista Oskar Pfister com quem Freud manteve uma amizade e extensa correspondência por trin ta anos Como se evidencia na rica correspondência entre am bos as dissonâncias não impediram um diálogo fecundo97 Caminhos de interdisciplinaridade A primeira condição necessária para que a Psicologia se reconhe ça como um saber em diálogo é uma clareza epistemológica entre o campo religioso e o científico No excelente texto Ser cristão e ser psicólogo endereçado ao Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos CPPC a psicanalista e doutora em Teologia Karin Wondracek des creve diferentes modos de interação entre Psicologia e fé em um contínuo que vai desde perigosos atalhos de junção a dissociações reativas98 Wondracek também discute o aporte da Psicologia da religião as contribuições propriamente teológicas e como algumas junções entre Psicologia e fé podem ser prejudiciais O argumento reforça que não é justo que se use no consultório oração aos santos bíblia mediunidade ou florais exotéricos ao invés de sua abordagem teórica abandonando Freud Rogers Gestalt substituindo a técnica pela religião É desleal e antiético quando profissionais religiosos 97 Karin Wondracek O amor e seus destinos a contribuição de Oskar Pfister para o diálogo entre psicanálise e teologia São Leopoldo ESTSinodal 2005 98 Karin Wondracek Ser cristão e ser psicólogo em Psicoteologia 2º semestre 2013 Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 176 não levam a ciência a sério e a metodologia terapêutica de sua abor dagem deixam a formação que receberam nos anos de graduação em Psicologia transformando um espaço de escuta em outro de pregação A máxima bíblica de graça recebestes de graça dai tam bém se aplica parafraseando as palavras do próprio Cristo não se pode esperar ganho financeiro quando se usa uma mensagem es piritual como método de intervenção terapêutica O próprio Cristo criticou os líderes religiosos de seu tempo que em nome de uma religião neurótica impunham fardos sobre os mais simples Apesar dos atuais esvaziamentos na compreensão dos limites entre saberes paradoxalmente a própria tradição teológica é rica nesta interface interdisciplinar que respeita as balizas de ambos os campos Desde o Concílio da Calcedônia do ano de 451 que arti culou mais profundamente a dupla natureza de Cristo mantendo tanto sua natureza divina e humana articulamse teologicamente duas dimensões diversas sem perder a validade e singularidade de ambas O concílio não apenas conceitua uma verdade a respeito das duas naturezas do Cristo mas se torna um paradigma para dialogar campos e diferentes saberes99 Ao recuperar o paradigma proposto por Calcedônia o teólogo de Princeton James Loder é um exemplo de capacidade de diálogo interdisciplinar entre Psico logia e Teologia a partir da antropologia teológica100 Há de se perceber portanto que a ausência de um básico conhecimento teológico entre profissionais que se dizem cristãos fomenta a incapacidade de diálogo entre os campos religioso e o científico Não é o saber teológico ou a expressão da doutrina o problema mas uma superficial religiosidade que não permi 99 Ibid 1314 100 James E Loder The Logic of the Spirit Human Development in Theological Perspective San Francisco JosseyBass 1998 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 177 te um aprofundamento na mesma Infelizmente uma devoção cristã que pouco conhece a própria tradição teológica seja ela Católica ou Protestante pode reduzirse em um fechamento uma redoma antiintelectualista que impede o aprofundamento interdisciplinar Há entretanto dentro dos recursos da própria tradição religiosa elementos que facilitam e provocam o diálogo respeitoso com a ciência e a Psicologia A fé cristã assim como a experiência espiritual em diferentes religiões busca o floresci mento da experiência humana e do bem comum de toda socie dade e como objetivo de cuidar da pessoa e de seu mundo e se insere em objetivos semelhantes ao que se propõe a Psicologia Por outro lado pareceme que uma atenção à questão religio sa e as expressões da espiritualidade humana precisam achar es paço nos diálogos da Psicologia As perguntas mais fundamentais sobre o sentido de vida transcendência e o absolutamente outro parecem fazer parte da vivência humana ao longo dos séculos e possivelmente de toda constituição humana Se em reação ao fundamentalismo religioso pressupomos que a experiência religiosa certamente tem elementos patológicos não acompa nhamos a experiência humana dos nossos pacientes O risco é invalidarmos a experiência religiosa quando ela é expressão hu mana de uma busca por sentido e transcendência Se conside rarmos que a vivência religiosa é doentia ela já se constitui um olhar terapêutico enviesado e para nós já tem a partir de nosso olhar presente o futuro de uma ilusão Infelizmente porém se desvalidamos previamente a experiência de fé da pessoa corre mos o risco de não realizarmos a contemplação desinteressada da epoché fenomenológica de Husserl ou a aceitação incondicional de Carl Rogers não acompanhamos a pessoa Não acolhemos o sofrimento e a nossa capacidade de empatia fica reduzida Não Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 178 proponho que vejamos todos os processos religiosos na clínica psicológica como saudáveis mas que mantenhamos a abertura de toda boa ciência ao mistério da vida que se apresenta A pergunta sobre Deus e o sentido da vida parece perpassar a própria constituição da experiência humana quer a acolhamos ou não ela não deixará os consultórios de Psicologia À essa separação que não acompanha a pessoa que faz da disjunção entre Psicolo gia e fé o seu objetivo primeiro também podemos tragicamente chamar de fundamentalismo Creio que em épocas de polarização como a nossa precisamos rejeitar os dois fundamentalismos o re ligioso e o secular em nome de um diálogo respeitoso que consi dere a integridade do conhecimento científico Paralelamente os psicólogos na clínica são chamados a recusar respostas prontas e permanecer diante do mistério pois como indica AnconaLopez o símbolo religioso a palavra e o rito excedem a capacidade de com preensão racional a inclusão da experiência religiosa na clínica psicológica exige abertura para a metáfora para os símbolos para o desconhecido para o reconhecimento do instante fugaz em que um significado restaurado tornase pleno de vida101 Conclusão Dizer que não é possível praticar psicoterapia e ao mesmo tempo cultivar uma abertura à dimensão religiosa dos clientes é uma atitude reducionista e constituise como miopia histórica Ao longo dos séculos desde a antiguidade pessoas que culti vavam princípios filosóficos e valores religiosos se envolveram 101 AnconaLopes Marília Religião e psicologia clínica quatro atitudes básicas In Massimi M Mahfoud M Diante do mistério Psicologia e senso religioso São Paulo Loyola 1999 85 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 179 para contribuir para o avanço da cultura arte e ciência porque viam em sua vocação profissional um modo de cultivar e servir no mundo e ao bem comum Aqueles entre nós com uma vivência espiritual fecunda carregam uma consciência de que a vida in clui a dimensão do mistério sem transcendência seja ela através da arte ou da experiência espiritual os valores da sociedade pas sam a ser guiados por uma sociedade capitalista e materialista que adoece a saúde emocional O caminho da interdisciplinaridade entre Teologia e Psicolo gia tornase urgente diante do crescente processo de disjunção entre fé e ciência e sobreposição que não compreende a singu laridade de cada enfoque Um caminho de diálogo profícuo entre ciência psicológica e fé dependerá da formação de profissionais em Psicologia que tenham um respeito à dimensão humana em sua procura por transcendência e sentido consequentemente estarão abertos a acolher a busca contida na experiência religiosa dos seus clientes Cabe à Psicologia não somente reforçar as sin gularidades de cada campo mas em uma atitude de humildade diante das fontes que recebemos do passado abrirse a interdis ciplinaridade incluindo pessoas com uma espiritualidade viva que queiram contribuir à Psicologia cultivando rigor acadêmico e prática profissional ética Referências bibliográficas AGOSTINHO Santo Confissões São Paulo Paulus 1984 AGOSTINHO Santo Epistola 96 In Library of Latin Texts CLCLT5 Moderante Paul Tombeur Turnhout Brepols 2002 3 CDROMS Database Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 180 ANCONALOPES Marília Religião e Psicologia clínica quatro atitudes básicas In Mahfoud M Massimi M Diante do mis tério Psicologia e senso religioso São Paulo Loyola 1999 BRACHTENDORF Johannes Confissões de Agostinho São Paulo Loyola 2008 CICERO Ciceros Tusculan Disputations Also Treatises On The Nature Of The Gods And On The Commonwealth Project Gu tenberg 2005 FREUD Sigmund O futuro de uma ilusão Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud vol XXI Rio de Janeiro Imago 1996 HADOT Pierre What Is Ancient Philosophy Cambridge Har vard University Press 2002 KOLBET Paul R Augustine and the Cure of Souls Revising a Classical Ideal Notre Dame University of Notre Dame Press 2010 LELOUP JeanYves Prendresoin de lêtre Philonet les thérapeu tesdAlexandrie Paris Albin Michel 1999 LODER James E The Logic of the Spirit Human Development in Theological Perspective San Francisco JosseyBass 1998 WONDRACEK Karin Ser cristão e ser psicólogo Psicoteolo gia 2º semestre 2013 815 WONDRACEK Karin O amor e seus destinos a contribuição de Oskar Pfister para o diálogo entre psicanálise e Teologia São Leopoldo ESTSinodal 2005 Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 181 ANEXO I Nota de posicionamento sobre laicidade e religião No momento histórico vivido pelo país a Psicologia brasileira ciência e profissão vem a público apresentar seu posiciona mento frente a uma das temáticas mais relevantes para a manu tenção das instituições democráticas que garantem o Estado de direito conforme prevê o Artigo 5º da Constituição Federal a laicidade do Estado e a liberdade religiosa O CRPMG como autarquia pública preocupado em zelar pelo Estado de direito e pelas instituições democráticas gosta ria de reforçar os princípios fundamentais do Código de Ética Profissional dasos Psicólogasos especificamente o parágrafo primeiro O psicólogo baseará seu trabalho no respeito e na pro moção da liberdade da dignidade da igualdade e da integridade do ser humano apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos Entendemos que o Estado laico é o modelo social que nos garante as condições de direito que precisamos defender é atra vés da laicidade do Estado que a diversidade religiosa pode ser garantida e legitimada como manifestação da pluralidade étnica que define a construção de nosso povo Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais 182 O CRPMG reconhece a importância dos fenômenos cultu rais na formação da subjetividade e por isso legitima as tradições religiosas em toda a sua diversidade como fenômenos importan tes para a compreensão do ser humano Por isso defendemos a laicidade do Estado como condição fundamental para que o direito à diversidade religiosa seja garantido É preciso ainda ressaltar a laicidade da própria Psicologia que enquanto ciência fundamenta a construção de seu saber na pesquisa rigorosa e metodologicamente estruturada e comprova damente eficaz Não podemos portanto utilizar de preceitos de fé ou dogmas teológicos na produção de nosso saber e de nosso fazer como Psicólogasos AO profissional da Psicologia no exercício de sua prática deve saber respeitar as pessoas com quem trabalha reconhecen do suas histórias e trajetória existencial não impondo ao outro seus próprios valores como preconiza a alínea b do artigo 2º do Código de Ética Ao psicólogo é vedado induzir a convicções políticas filosóficas morais ideológicas religiosas de orienta ção sexual ou a qualquer tipo de preconceito quando do exercí cio de suas funções profissionais Por isso a identidade profissional dao psicólogao não deve estar vinculada à sua tradição religiosa sendo inapropriada a uti lização de termos como Psicologia espírita Psicologia cristã Psicologia umbandista Psicologia budista E no exercício de sua prática é preciso que suas convicções religiosas não condu zam o processo que deve ser orientado pelas técnicas produzidas pela ciência psicológica Psicologia laicidade espiritualidade religião e outras tradições encontrando caminhos para o diálogo 183 CAPA lombadaindd 1 06Aug19 100959 AM