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Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 eISSN 22372083 DOI 101785122372083271359400 Da Carta de Princípios 1979 à Carta ao povo brasileiro 2002 variações ethicas1 do Partido dos Trabalhadores From the Charter of Principles 1979 to the Letter Adressed to Brazilian People 2002 ethical variations of the Workers Party Melliandro Mendes Galinari Universidade Federal de Ouro Preto Mariana Minas Gerais Brasil melliandroyahooit Luciana de Souza Pereira Universidade Federal de Ouro Preto Mariana Minas Gerais Brasil pereiraslucianagmailcom Resumo O Partido dos Trabalhadores PT no Brasil tem sido estudado por diversos historiadores e cientistas sociais além de ser avaliado constantemente pelas mídias e pelo senso comum quanto a mudanças de postura políticodiscursivas ao longo de sua existência Neste artigo temos como objetivo analisar o ethos institucional do PT em dois momentos históricos distintos a saber no momento precedente à sua fundação 1979 a partir da chamada Carta de Princípios e no ano eleitoral em que obteve a vitória para a Presidência da República 2002 com base na Carta ao Povo Brasileiro Com isso pretendese apontar como foram construídas retoricamente as diferentes imagens do partido nesses dois documentos estabelecendo um contraste linguísticodiscursivo panorâmico Inicialmente o artigo situa o surgimento do PT no contexto brasileiro e seu percurso até chegar à Presidência da República Em seguida 1 Vale ressaltar desde já que a palavra ethica grafada com h é uma derivação proposital da palavra grega ethos não devendo assim ser confundida com o vocábulo ética tal e qual entendido no senso comum ou seja como traço de boa moral ou honestidade As variações ethicas do Partido dos Trabalhadores nesse sentido dizem respeito tão somente às imagens de si decorrentes de seus discursos sejam elas quais forem sem que com isso haja uma atribuição de avaliações positivas ou negativas Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 360 no sentido de contextualizar as suas históricas mudanças são trazidos apontamentos de cientistas políticos e historiadores com o intuito de apresentar por amostragem pontos de vista controversos sobre as metamorfoses do PT Enfim o trabalho se atém à análise propriamente dita das cartas mencionadas no sentido de apreender como o ethos é construído enquanto dimensão retórica A conclusão mostra dentre outras coisas que na Carta de 1979 constróise um partido de feição radicalmente classista posicionandose ao lado das massas exploradas contra as elites dominantes Na Carta de 2002 por sua vez tal conflito é silenciado sobressaindose um ethos de caráter nacionalista e conciliador Palavraschave Partido dos Trabalhadores PT discurso Político Análise do Discurso ethos Retórica Abstract Since its foundation the Brazilian workers party PT has been studied by several historians and social scientists It has also been constantly probed by the media and common sense due to politicaldiscursive changes of its posture The purpose of his article is to analyse the institutional ethos of PT in two distinctive historical moments Firstly the moment before its foundation 1979 beginning with the so called Charter of Principles and secondly the election year when victory to the presidency of the republic was achieved 2002 based on the letter to the Brazilian people Thus it is intended to point in these two moments how the different images of the party were rhetorically constructed by establishing a linguisticdiscursive panoramic contrast Initially the article sets the partys origin in the Brazilian context and its course to the presidency of the republic Hence for contextualization of its historical changes notes of political scientists and historians are brought up with the intention of presenting by sampling controversial points of view on the party metamorphoses Ultimately this paper is concerned to the analysis of the letters which have been mentioned with the intention of apprehending how the ethos is constructed as a rhetorical dimension The conclusion shows amongst other things that in the 1979 letter a party radically classicist is built it also posits itself next to the exploited mass against the dominant elite In the 2002 letter however such conflict is silenced highlighting a nationalist and conciliator ethos Keywords Workers Party PT political discourse Discourse Analysis ethos Rhetoric Recebido em 02 de abril de 2018 Aprovado em 09 de setembro de 2018 361 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 1 Introdução Este artigo pretende averiguar a partir de uma análise discursiva como se deu retórica e linguisticamente uma guinada identitária na imagem institucional ou ethos do Partido dos Trabalhadores PT tendose como amostragem dois conhecidos documentos emitidos por essa instância política em anexo a Carta de Princípios assinada pela Comissão Provisória no dia 1 de maio de 1979 momento que antecedeu a fundação oficial da sigla em 10 de fevereiro de 1980 e a Carta ao Povo Brasileiro lançada à população em junho de 2002 em função das eleições presidenciais daquele ano disputadas por Luís Inácio Lula da Silva PT e José Serra PSDB dentre outros Para tanto usaremos como parâmetro teórico de análise a noção de ethos desenvolvida nos âmbitos teóricos da Retórica e da Análise do Discurso que pressupõe em termos gerais que toda tomada de palavra seja pelo conteúdo seja pela forma da enunciação implica direta ou indiretamente a construção de imagens de si Buscaremos ressaltar dessa forma que o ethos pode ser apreendido não apenas em função de um oradorlocutor individual mas também em relação a uma instância institucional como o PT e partidos políticos ou instituições em geral Em 1979 como se sabe o Presidente Figueiredo enviou finalmente para o Congresso em meio a pressões pela redemocratização do país a Lei Orgânica dos Partidos Políticos Sancionada no final daquele ano a Lei reestabelecia o pluripartidarismo no Brasil e dessa forma o bipartidarismo vigente no Regime Militar representado pela ARENA frente de apoio ao Regime autoritário e pelo MDB frente de oposição foi extinto dando voz e vez à estrutura partidária tal e qual conhecemos hoje2 2 A ARENA Aliança Renovadora Nacional se transformou no Partido Democrático Social PDS que em função de dissidências gerou o Partido da Frente Liberal PFL atual DEM Mais adiante o próprio PDS foi rebatizado algumas vezes até se tornar o Partido Progressista PP tal e qual conhecemos hoje Foi nessa mesma dinâmica que outros partidos foram surgindo como por exemplo o PSDB Quanto ao MDB Movimento Democrático Brasileiro houve apenas o acréscimo do p de Partido tornandose conhecido durante décadas como PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro Porém poucos meses antes do fechamento deste artigo no dia 19122017 decidiuse em convenção nacional da legenda que esta voltaria às origens rebatizandose como MDB sua designação atual Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 362 É nesse contexto que se pretende criar um partido novo o Partido dos Trabalhadores PT3 De acordo com alguns documentos de fundação teria sido a partir da desigualdade entre as classes sociais da necessidade da classe explorada oferecer resistência e se defender de forma organizada da opressão e dos privilégios das classes dominantes e ainda da carência de oferecer aos trabalhadores uma expressão política unitária que se solidificou fortemente a ideia de se instituir e construir um partido de base independente Isso porque o MDB partido que se opunha ao Regime Militar já não cumpria aos olhos da base idealizadora do PT o papel de funcionar autenticamente como um instrumento de luta dos trabalhadores em função de sua composição altamente heterogênea e contraditória isto é composta por setores empresariais e trabalhistas a um só tempo Nessa direção em 1º de maio de 1979 exatamente em um Dia do Trabalhador foi tornada pública a Carta de Princípios do PT4 no sentido de conduzir o movimento de consolidação e legalização do partido Segundo o documento o MDB por sua origem por sua ineficácia histórica pelo caráter de sua direção por seu programa prócapitalista mas sobretudo por sua composição social essencialmente contraditória em que se congregam industriais e operários fazendeiros e peões comerciantes e comerciários enfim classes sociais cujos interesses são incompatíveis e nas quais logicamente prevalecem em toda a linha os interesses dos patrões jamais poderá ser reformado A proposta que levantam algumas lideranças populares de tomar de assalto o MDB é muito mais que insensata é fruto de uma velha e trágica ilusão quanto ao caráter democrático de 3 Para exemplificar os movimentos que se articulavam e que viriam a contribuir para a origem do Partido dos Trabalhadores PT podemos falar da inquietação de eclesiásticos de esquerda da Igreja Católica quanto ao modelo autoritário e econômico vigente acrescentandose a liderança do Movimento Revolucionário Trotskista extinto oficialmente pelo Regime Militar e representações de grupos que participaram ativamente da luta contra o Regime como a Ala Vermelha do Partido Comunista do BrasilAlaPC do B a Ação Libertadora NacionalALN a Ação Popular Marxista LeninistaAPML o Partido Comunista Brasileiro RevolucionárioPCBR o Movimento de Emancipação do ProletariadoMEP 4 A Carta de Princípios do Partido dos Trabalhadores faz parte dos Anexos deste artigo e foi extraída do sítio httpswwwptorgbrwpcontentuploads201403 cartadeprincipiospdf Último acesso em 28 mar 2018 363 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 setores de nossas classes dominantes Aglomerado de composição altamente heterogênea e sob controle e direção de elites liberais conservadoras o MDB temse revelado num passado recente um conduto impróprio para expressão dos reais interesses das massas exploradas brasileiras Anexo I linhas 121133 Buscando portanto uma terceira via representativa isto é fora da dicotomia ilusória entre ARENA e MDB o Movimento PróPT aprovou em 10 de fevereiro de 1980 no Colégio SionSP o lançamento oficial da legenda Como sugere o Manifesto de Criação o Partido dos Trabalhadores nasceria da necessidade sentida por milhões de brasileiros de intervir na vida social e política do país para transformála da decisão dos explorados de lutar contra um sistema econômico e político que não pode resolver os seus problemas pois só existe para beneficiar uma minoria de privilegiados5 Com essa pequena introdução somada à própria leitura do Anexo I deste trabalho podemos ter já uma ideia da vitalidade da identidade e da energia dessa nova instituição tratavase de um partido de massas que visava atuar não apenas nas disputas eleitorais mas também no dia a dia dos trabalhadores dentro de uma nítida concepção de luta de classes No entanto com o passar dos anos mais claramente a partir da campanha presidencial de 2002 algumas contradições se apresentaram acompanhadas de vivas críticas de vários setores da esquerda A Coligação Lula Presidente 2002 teria sido composta tempos depois da Carta de Princípios justamente pelas mencionadas forças contraditórias num gesto de alianças políticas até então bastante criticado pela práxis usual do partido Além do PT do Partido Comunista do Brasil PC do B e do Partido Comunista Brasileiro PCB âmbitos tradicionais da esquerda a frente eleitoral encabeçada pela candidatura Lula em 2002 foi incrementada pelo Partido Liberal PL legenda do então candidato a vice o megaempresário José Alencar pelo Partido da Mobilização Nacional PMN incluindo ainda que extraoficialmente o apoio de outros setores conservadores como aqueles ligados à família de José Sarney PMDB 5 O Manifesto de Criação do Partido pode ser visto no sítio httpcsbhfpabramoorg bruploadsmanifestodelancamentopdf Último acesso em 28 mar 2018 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 364 quadros do Partido Trabalhista Brasileiro PTB e do Partido Progressista PP Interessantemente na Carta ao Povo Brasileiro6 de 2002 Anexo II um trecho é bastante representativo dessa polêmica estratégia política a crescente adesão à nossa candidatura assume cada vez mais o caráter de um movimento em defesa do Brasil de nossos direitos e anseios fundamentais enquanto nação independente Lideranças populares intelectuais artistas e religiosos dos mais variados matizes ideológicos declaram espontaneamente seu apoio a um projeto de mudança do Brasil Prefeitos e parlamentares de partidos não coligados com o PT anunciam seu apoio Parcelas significativas do empresariado vêm somarse ao nosso projeto Tratase de uma vasta coalizão em muitos aspectos suprapartidária que busca abrir novos horizontes para o país Anexo II linhas 3037 itálicos nossos O fato é que da Carta de 1979 à Carta de 2002 mudanças significativas no plano discursivo parecem ter acontecido e muito se tem falado durante essa trajetória em reconstrução de imagens ou ethos do PT o que vem dividindo as opiniões entre uma crítica visceral à legenda e no sentido oposto uma sofisticada justificativa política para corroborar essa guinada comportamental Nessa perspectiva cientistas políticos eou historiadores como Fausto 2012 Vianna 2006 Sader 2005 Reis 2007 Petit 2006 e Mattoso 2013 dentre outros além de atores políticos diversos e movimentos sociais têm apontado metamorfoses no discurso petista com argumentos que indicam discrepâncias significativas no decorrer dos anos ora pelo sabor das circunstâncias ora pelas transformações da realidade brasileira A partir desse controverso dilema e isentandonos de fazer uma contextualização histórica mais pormenorizada do PT entre 1979 e 2002 arco de tempo dos documentos em anexo buscaremos resgatar na sequência do artigo algumas vozes que se debruçaram sobre o problema da mudança de postura ethica do PT Com isso temos como objetivo concomitantemente i atestar a relevância sóciopolítica da questão aqui abordada em escala nacional ii fornecer um quadro contextual por amostragem de como o problema tem sido vistoavaliado e iii apresentar um parâmetro mínimo para as análises dos Anexos 6 A Carta ao Povo Brasileiro foi extraída do sítio httpnovofpabramoorgbruploads cartaaopovobrasileiropdf Último acesso em 28 mar 2018 365 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 presentes na terceira parte do artigo momento em que buscaremos apresentar a contribuição específica da Análise do Discurso e da Retórica para esse debate 2 As Críticas da Metamorfose as Metamorfoses da Crítica Inicialmente é comum observar que o PT teria passado pouco a pouco de partido de militantes a um partido de funcionários à medida que foi conquistando pleitos oficiais principalmente após a sua chegada à Presidência da República em 2002 os que antes eram líderes de movimentos sociais agora se tornam prefeitos assessores ou deputados os que antes alimentavam esses movimentos agora se veem como articuladores da política profissional Segundo Reis 2007 p 16 não se quer afirmar que estas metamorfoses tivessem se realizado de forma integral Que características presentes na gênese do PT tivessem se dissolvido no ar Mas é como se as novas referências estivessem agora predominando conferindo à dinâmica do Partido um rumo distinto diferentes e imprevistos horizontes Petit 2006 por exemplo nos fala dos encontros que Lula e seus assessores nutriram após ocupar a Presidência da República senão antes como sugere a Carta de 2002 com representantes de setores da elite econômica tais como empresários banqueiros etc no sentido de sinalizar que um Governo do PT se esforçaria para controlar a inflação acalmar os mercados eou garantir espaços para representações políticas estranhas à sua própria história construindo assim uma governabilidade de coalizão Nessa perspectiva alianças petistas foram vistas por pensadores como Fausto 2012 e Petit 2006 como oportunistas tais como as alianças com o PMDB ou concessões políticas feitas às bancadas Evangélica e Ruralista nas casas legislativas Tais acertos teriam impactado em medidas de cunho econômico que teriam conduzido o partido ao centro político ou até mesmo à direita como muitos sustentaram Isso nos levaria facilmente à percepção de que o PT teria modificado as teses que outrora eram defendidas assim como o seu discurso Ao mesmo tempo e paradoxalmente muitas das críticas não se abstiveram em admitir sem alguma polêmica os avanços dos governos Lula no plano da política social a partir de programas como o Bolsa Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 366 Família e o Fome Zero que dentre outras coisas retiraram milhões de pessoas da linha da pobreza a expansão do crédito para as classes médias e mais necessitadas a política de cotas a construção de novas universidades etc Ainda em um direcionamento crítico Sader 2005 considera que o Partido dos Trabalhadores teria surgido como uma legenda forte de esquerda mas que perdera essa força ao caminhar para o centro mantendo a continuidade da política econômica neoliberal do governo anterior de Fernando Henrique Cardoso PSDB Petit 2006 nos lembra voltando ao passado que o PT nas eleições de 1989 não obteve apoio significativo do empresariado brasileiro No entanto desde o início dos anos 1990 o partido teria iniciado uma modesta porém contínua aproximação com a classe empresarial do país Dessa forma na visão do cientista as candidaturas do PT de 1994 já teriam sido custeadas pela metade por empresários e banqueiros De um ponto de vista um pouco diferente Nobre 2013 afirma que no momento em que o governo de Fernando Henrique se aliou ao PFL hoje DEM foi estabelecida uma corrente de forças em que ao Partido dos Trabalhadores só restariam duas alternativas diante de eleições futuras permanecer na oposição indefinidamente ou caminhar em direção ao centro à maneira do PMDB Esse caminhar ao centro é um típico movimento do sistema político brasileiro e caracterizaria assim para o PT uma estratégia nova e mais flexível de alianças após três derrotas sucessivas de Lula à presidência do Brasil 1989 1994 e 1998 Nessa perspectiva já haveria no contexto das eleições presidenciais de 1994 uma sinalização de que o PT estaria prestes a tomar essa direção Nas palavras do pesquisador se permanecesse em oposição inflexível o PT estaria afastado do poder fosse por um longo período fosse indefinidamente mas garantindo com isso a polarização necessária para manter a estrutura fundamental do novo sistema Se ao contrário o PT fizesse o movimento em direção ao peemedebismo também a continuidade do novo arranjo deveria estar de alguma maneira garantida já que significaria a aceitação da lógica do Plano Real e seu novo padrão de desenvolvimento econômico subordinado para o país NOBRE 2013 p 54 Podemos observar que este percurso de caminhar ao centro ou à direita como denunciaram os mais radicais é tradicional na política brasileira Mais do que isso o conteúdo citado seria também 367 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 a base de algumas justificativas desta vez enunciadas como positivas da mudança de postura do PT o partido precisaria chegar ao poder para realizar transformações sociais defendidas historicamente ainda que parcialmente Entretanto na conjuntura brasileira tal escalada não seria possível se o partido continuasse a insistir naquela imagem dura inflexível e radical de sua fundação Mesmo assim Vianna 2006 p 94 considera que em 1998 a esquerda brasileira ainda se abstinha de consolidar alianças na direção do centro político Chegando em 2002 a esquerda busca o centro seja em sua política de alianças seja no discurso moderado Nessa linha de raciocínio o autor aponta a importância da articulação do PT na conquista do pleito eleitoral de 2002 ao afirmar que o movimento de ida ao centro por parte do PT pôde credenciá lo a estabelecer alianças com significativos setores dessa tradição republicana VIANNA 2006 p 98 Dessa maneira e voltando às críticas constantemente nos é dito que o PT teria entrado no pleito de 2002 para vencer a disputa a qualquer preço não se importando com os novos rumos aos quais o partido se subordinaria Reis 2007 p 17 acrescenta nesse sentido que o PT preparouse profissionalmente para a campanha de 2002 Na condição de grande partido que já era arrecadou finanças consideráveis Em seguida moderou o discurso político um processo que já vinha se desdobrando desde a campanha de 1994 mas que alcançaria em 2002 com a Carta aos Brasileiros um novo patamar Finalmente articulou assessoria de marketing que viabilizaria a proposta do candidato através dos meios de comunicação além de tratar do seu visual despindo Lula de quaisquer vestígios que o pudessem assimilar a uma liderança radical itálicos do autor Dessa forma estudiosos apontam o ano de 2002 como um marco na materialização das mudanças de direção do Partido dos Trabalhadores tanto com a moderação de pautas de cunho mais radical de esquerda quanto com a atuação de profissionais de marketing que puderam atuar na imagem e na própria campanha de um modo geral Considerando as consequências da vitória de Lula Iasi 2014a visualiza a gestão do PT por outro ângulo considerando que quando o assunto era a questão social o governo buscou proximidade com setores da grande burguesia monopolista Para ele nessa dinâmica parte da burguesia teria sequestrado a representação da classe trabalhadora Assim a gestão Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 368 do PT teria ofuscado a importância da luta de classes tão alimentada por ele em sua fundação e anos posteriores priorizando uma administração mais preocupada com o capital Para o autor essas ações limitaram o governo do PT que atalhou pelo caminho do reformismo fraco em detrimento de um reformismo forte Dessa forma para não romper com as exigências do mundo do capital isto é com os anseios da burguesia monopolista o governo petista precisou contingenciar consideravelmente as demandas dos trabalhadores Consequentemente o PT arquitetado tradicionalmente sob um viés socialista ou de defesa dos direitos e interesses dos oprimidos teria se transformado no articulador da burguesia monopolista no país Iasi 2014b afirma desse modo que na gestão do PT o Brasil teria finalmente transitado do status da dominação burguesa sem hegemonia para o status de dominação burguesa com hegemonia Nas palavras do pesquisador o preço da governabilidade e do aparente sucesso de governo é o desarme das condições políticas organizativas e de consciência de classe que poderiam apontar para uma ruptura com a ordem do capital O que presenciamos aqui é paradoxalmente o fato que a experiência do PT se não levou à meta socialista suposta inicialmente cumpriu factualmente uma outra tarefa encerrou o ciclo de consolidação da revolução burguesa no Brasil IASI 2014b p 17 Isso pode ser explicado também em função de várias críticas que partidos políticos tidos como mais à esquerda tais como o PCB o PSTU ou o PSOL por exemplo fizeram à gestão petista após 2002 o partido teria investido no aumento de crédito e na solução dos impasses sociais mais pela via do consumismo desenfreado do que por reformas estruturais profundas como as reformas política agrária urbana previdenciária e tributária mais pela via do ajuste do salário mínimo acima da inflação do que pelos caminhos de um salário mínimo tal e qual sugerido por exemplo pelo DIEESE Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos7 Nesse sentido Safatle 2013 7 No link a seguir se pode ver o valor do salário mínimo sugerido pelo DIEESE baseado na cesta básica desde 1994 httpwwwdieeseorgbranalisecestabasica salarioMinimohtml 369 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 avalia de forma também crítica que o governo do PT 20032010 demonstrou uma evidente incapacidade de gerenciar os impasses do presidencialismo de coalizão brasileiro Para ele é como se a governabilidade justificasse a acomodação final da esquerda nacional a uma semidemocracia imobilista de baixa participação popular direta e com eleições que só se ganha mobilizando de maneira espúria a força financeira com seus corruptores de sempre SAFATLE 2013 p 14 Por outro lado Mattoso 2013 considera que o que houve foi um novo modelo de política que de maneira sutil deixava de priorizar a indústria e o crescimento econômico sob o viés das exportações priorizava um pouco diferentemente a expansão do mercado interno valorizando o papel do Estado popularizando o crédito e ampliando as políticas sociais nos primeiros 10 anos em que esteve à frente do país Dessa maneira o governo buscava mostrar o reconhecimento geral de que as políticas sociais beneficiavam além da inclusão social a redução da desigualdade e da pobreza favorecendo a economia e o crescimento do PIB Nessa direção o pesquisador faz a seguinte consideração de cariz mais positivo na verdade o evidente sucesso dos governos eleitos após 2002 não se deveu exclusivamente à esfera da economia ou do social mas ao uso de políticas inovadoras capazes de articular o econômico e o social e potencializar o crescimento a produtividade e a institucionalidade gerando algo inexistente ao longo das duas décadas anteriores o desenvolvimento Depois de anos de neoliberalismo de subordinação aos interesses rentistas e de ausência de políticas econômicas pródesenvolvimento fortaleceuse o uso de políticas desenvolvimentistas e de combate à pobreza mais intensamente após 2006 com a mais efetiva articulação do econômico e do social e com o enfrentamento das crises internacionais com políticas inovadoras e anticíclicas MATTOSO 2013 p119120 Como se vê até aqui estamos longe de um consenso sobre o problema ou melhor são complexas as críticas da mudança assim como as mudanças da crítica Sem entrar em maiores detalhes esse pequeno panorama pôde nos dar uma ideia mínima da relevância da questão aqui abordada assim como da densidade eou variedade de pontos de vista Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 370 mais ou menos negativos ou positivos O que podemos perceber com esses apontamentos é que a transformação do Partido dos Trabalhadores salta aos olhos daqueles que acompanham o percurso da legenda ou seja a mudança em si não é contestada embora essa transformação venha acompanhada de julgamentos distintos nos planos social e acadêmico Como se pode constatar o problema é bastante complexo e não desprovido de emotividade se observamos os julgamentos variados da metamorfose discursiva e comportamental do PT Outro complicador é o que poderíamos entender por certos termos citados neste artigo que dizem respeito a uma filosofia políticodiscursiva tais como direita esquerda e até mesmo centro Nesse caso Bobbio 1995 nos esclarece que a tão difundida dicotomia direita e esquerda foi considerada obsoleta por vários pensadores após a queda do muro de Berlim Não obstante afirmar isso categoricamente seria algo temerário uma vez que a díade se encontra no cerne do debate político contemporâneo sendo reivindicada como bandeira por vários setores políticos e movimentos sociais Dito de outra forma os termos direita e esquerda são ainda largamente utilizados para fazer menção a diferenças no pensar e no agir políticos O ponto complicador é que não se pode chegar a uma verdade definitiva ou essencial sobre o binômio visto que direita e esquerda não são conceitos absolutos mas historicamente relativos BOBBIO 1995 p 81 Citando Marco Revelli o autor ainda arremata Direita e esquerda não são conceitos absolutos São conceitos relativos Não são conceitos substantivos ou ontológicos Não são qualidades intrínsecas ao universo político São lugares do espaço político Representam uma determinada topologia política que nada tem a ver com a ontologia política Não se é de direita ou de esquerda no mesmo sentido em que se diz que se é comunista liberal ou católico Em outros termos direita e esquerda não são palavras que designam conteúdos fixados de uma vez para sempre BOBBIO 1995 p 9192 Esse é um grande problema que também atravessa o nosso objeto de análise enquanto muitos definem o PT da Carta de 2002 como uma instituição que caminhou para o centro e até mesmo para a direita seus partidários continuam reivindicando a etiqueta de partido de esquerda não obstante mudanças significativas tenham ocorrido no discurso e no agir político da legenda desde a Carta de 1979 Sendo assim não cabe a este trabalho definir categoricamente o que seria direita ou esquerda 371 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 pois se trata de noções históricas cambiantes Prova disso é que são catalogadas várias tipologias de direita autoritária conservadora liberal etc e esquerda reformista revolucionária para ficar com dois exemplos Com a ajuda de Bobbio no entanto poderíamos traçar linhas ou princípios gerais que poderiam pelo menos funcionar como um guia básico para a nossa reflexão independentemente das flutuações históricas Nesse sentido o autor com base em outros tantos pensadores nos informa que a direita possui ainda um apego sistemático à tradição ou seja às práticas tradicionais e conservadoras do fazer político agarrandose correntemente à manutenção da ordem e às hierarquias ou desigualdades sociais Isso implica obviamente dizer que as suas práticas efetivas no campo social caminhariam nessa direção independentemente de qualquer discurso eleitoral Já os valores da esquerda desembocariam na emancipação dos homens principalmente dos mais explorados no sentido de libertar os indivíduos das amarras impostas pelos privilégios de raça casta classe etc Essa diferenciação básica apesar de problemática parece estar na origem das críticas ao PT vistas acima principalmente a partir de 2002 O seu vínculo ao campo da tradição estaria denunciado pela aliança ao empresariado representada como já visto pelo vice de Lula José Alencar mas também pela apregoada continuidade da política econômica neoliberal de Fernando Henrique Cardoso passando pelas concessões a setores conservadores como as bancadas evangélica e ruralista Parece ser nesse sentido curiosamente até mesmo a avaliação positiva empreendida por Vianna 2006 p 98 ao afirmar que o movimento de ida ao centro por parte do PT pôde credenciálo a estabelecer alianças com significativos setores dessa tradição republicana grifo nosso No entanto como foi afirmado setores de diversos movimentos sociais como o Movimento dos Sem Terra não sem críticas pontuais e apoiadores do PT ainda continuaram a considerálo mesmo assim como um partido autenticamente de esquerda o que prova mais uma vez que os conceitos são cambiantes e que não caberia a este trabalho encerrar ou julgar essa questão Nesse caso os critérios para se definir o seu estatuto legítimo de esquerda estariam no combate à pobreza e na amplitude das políticas sociais Contornando essa questão portanto nosso objetivo a seguir será apenas mostrar de forma panorâmica o que uma leitura retóricodiscursiva poderia acrescentar sobre o entendimento Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 372 das mudanças simbólicas do partido a partir de nossos Anexos até mesmo para contribuir para debates futuros 3 O que dizem as cartas o ethos do PT em perspectivas Como se sabe o ethos se define retoricamente como as imagens de si decorrentes de acontecimentos discursivos AMOSSY 2008 2010 Como diria Maingueneau 2008 os textos orais e escritos atribuem explicita ou implicitamente um tom específico ou uma determinada corporalidade aos seus enunciadores não apenas em função do conteúdo que escolhemproferem mas também em função de como eles enunciam o que nos coloca diante de seleções linguísticas significativas do ponto de vista retórico Por conta dos limites deste artigo e por ser uma noção já bastante abordada em textos sobre a Retórica e a Análise do Discurso não faremos uma explanação teórica mais ampla sobre a noção de ethos Ao leitor não familiarizado com a questão sugerimos a consulta dos textos de Galinari 2012 Maingueneau 2008 e Amossy 2008 com os quais este artigo se encontra em consonância Sendo assim a seguir buscaremos mostrar em termos bem gerais as imagens partidárias produzidas pelas Cartas do PT de 1979 e 2002 respectivamente8 Em termos linguísticos buscaremos nos ancorar em mecanismos diversos presentes nos textos mas em um grau um pouco maior nos chamados índices de modalização direcionandoos para a construção do ethos com alguns esclarecimentos conceituais oportunos em notas de rodapé9 8 Por serem textos relativamente extensos não faremos uma análise minuciosa linha a linha mas apenas discutiremos alguns trechos que julgamos serem representativos do conjunto de cada obra Nessa perspectiva o artigo também não contém um investimento teórico denso sobre o ethos e demais categorias conceituais da linguística Por um lado por se tratarem de categorias já bastante conhecidas e por outro para que a análise de nosso objeto principal o conteúdo dos Anexos não fique prejudicada 9 O fenômeno linguístico da modalização permitenos realizar o caminho que vai do enunciado à enunciação Tratase aqui de uma série de elementos da língua que não se referem propriamente ao que se diz ou seja ao conteúdo asseverado pelas sentenças mas ao como se diz Para tanto a linguagem possui termos ou expressões modalizadoras que nos ajudam a apreender no discurso as marcas linguísticas de sua instância produtora Os índices linguísticos de modalização podem ser de várias ordens a organização frástica assertiva interrogativa imperativa exclamativa modos e tempos verbais expressões adverbiais predicados cristalizados com adjetivos é 373 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 31 A Carta de 1979 Anexo I No Anexo I de 1º de maio de 1979 notase que a modalidade enunciativa10 predominante é composta por asserções em 3ª pessoa intercaladas em alguns momentos com o uso do nós linhas 5562 e 144151 sobretudo O manejo dominante da 3ª pessoa promoveria a nosso ver um certo efeito de objetividade para o discurso seja para se descrever o próprio PT como se este estivesse fora da enunciação seja para se construir uma análise crítica da conjuntura brasileira tematizando pontos fulcrais como a própria sociedade a exploração dos oprimidos pelas elites os processos de luta dos trabalhadores ou os perfis políticos de partidos como o PTB e o MDB Vejamos um trecho inicial a ideia da formação de um partido só dos trabalhadores é tão antiga quanto a própria classe trabalhadora Numa sociedade como a nossa baseada na exploração e na desigualdade entre as classes os explorados e oprimidos têm permanente necessidade de se manter organizados à parte para que lhes seja possível oferecer resistência séria à desenfreada sede de opressão e de privilégios das classes dominantes Anexo I linhas 16 Além da tematização da nova ideia de formação de um partido só de trabalhadores organizados à parte11 o fragmento é sintomático de um conteúdo um eles que se encontra repisado durante toda a Carta de alta relevância para a edificação do ethos Tratase da dicotomia certo é preciso é necessário performativos eu ordeno eu prometo eu te proíbo verbos auxiliares poder dever ter quede haver de precisar de verbos de atitude proposicional eu creio eu sei eu duvido eu acho a entonação e demais marcadores prosódicos etc Para maiores detalhes ver Neves 2011 Paveau e Sarfati 2006 e Galinari 2018 10 A partir de Perelman OlbrechtsTyteca 2002 p 182184 além de outros estudos variados em linguística podemos dizer que as modalidades enunciativas referem se ao manejo dos pronomes pessoais de modo a mostrar um maior ou menor grau de subjetividadeobjetividade no discurso Nesse caso a enunciação em 1ª pessoa produziria um efeito de subjetividade a enunciação em 2ª pessoa um efeito de interlocução a enunciação em 3ª pessoa um efeito de objetividade 11 Expressões adverbiais como à parte ou só fazem parte das modalidades epistêmicas comentadas mais adiante neste artigo Neste momento o foco incide sobre a modalidade enunciativa em terceira pessoa que permite ao texto tratar de referentes no mundo social e político Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 374 retórica profunda e de feições classistas entre os de baixo e os de cima linhas 111113 Os primeiros colocados sempre na dinâmica da luta seriam os explorados e oprimidos como se vê no fragmento acima Esses objetos de referência encontramse atualizados ao longo de todo o texto designados por outras expressões retóricas o operariado e os setores proletarizados de nossa população linhas 1314 o povo brasileiro linha 63 as massas trabalhadoras exploradas e oprimidas linhas 113 144 192 e 233 Já os de cima por seu turno apresentados na citação anterior como as classes dominantes atualizamse também no desenrolar do texto a partir do uso de expressões também carregadas de sentido os patrões e o governo linha 27 os partidos e governos criados e dirigidos pelos patrões e pelas elites políticas linhas 6768 como o PTB de Vargas e o MDB com seu programa prócapitalista os detentores do poder linha 91 as elites privilegiadas linha 165 o modelo econômico vigente linha 156 e os setores do empresariado nacional linhas 198199 Dessa forma o novo partido se funda radicalmente com um ethos classista isto é engajado na luta pelos trabalhadores e além disso corajoso colocandose de forma destemida à disposição dos mais necessitados para os embates necessários contra os famigerados patrões e os programas prócapitalistas da burguesia dominante Tratase assim de um partido só de trabalhadores organizados à parte advérbios que modalizam um tom convicto quando combinado ao estilo assertivo em 3ª pessoa assegurando categoricamente um ethos de partido de massas expressão presente explicitamente na linha 192 Nessa toada na continuidade do fragmento acima apresentado o PT se mostra também seguro em relação àquilo que diz isto é sem deixar margens para dúvidas descrevendo após a linha 7 o processo emancipatório de combate dos trabalhadores contra o jugo servil da elite incluindo as greves deflagradas as tentativas de sabotagem do governo e dos patrões o posicionamento de outros partidos a situação do país etc Podemos acrescentar que essa análise de conjuntura descrita minuciosamente não apenas no início mas também ao longo de toda a Carta de 1979 daria retoricamente ao PT e seus signatários ares de expertise de conhecimento aprofundado da realidade brasileira apontando tanto para um ethos politizado quanto para a imagem quase técnica oriunda do vocabulário dos cientistas sociais de um bom observador crítico de seu tempo e de sua história 375 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 Em função do quadro político brasileiro da opressão sofrida pelos mais necessitados o novo partido é posto como se vê também na citação anterior como uma necessidade de sobrevivência da classe operária têm permanente necessidade de mostrando mais uma vez o grau acentuado de certeza e de convicção da instância oratória engajamento que se repete a seguir é por isso que a ideia de um partido dos trabalhadores ressurgindo no bojo das greves do ano passado e anunciado na reunião intersindical de Porto Alegre em 19 de janeiro de 1979 tende a ganhar hoje uma irresistível popularidade Porque se trata hoje mais do que nunca de uma necessidade objetiva para os trabalhadores Anexo I linhas 4649 Devemos entender a irresistível popularidade do PT justamente diante do quadro adverso para os mais pobres quadro descrito em praticamente toda a Carta o que necessariamente exige uma organização à parte da classe trabalhadora Dessa forma o ethos de conhecimento aprofundado da realidade brasileira dos pobres e de consciência política assim como de firmeza e engajamento classista teria despertado determinadas reações dos outros partidos que ostentariam fachadas democráticas para usar uma expressão da linha 68 receosos do crescimento da nova sigla As classes dominantes portanto cientes da organização partidária crescente dos trabalhadores ou melhor do próprio PT se apressam a sair a campo com suas propostas de PTB Mas essas propostas demagógicas já não conseguem iludir os trabalhadores que nem de longe se sensibilizaram com elas Esse fato comprova que os trabalhadores brasileiros estão cansados das velhas fórmulas políticas elaboradas para eles Agora chegou a vez de o trabalhador formular e construir ele próprio seu país e seu futuro Anexo I linhas 5055 O trecho é bastante significativo mais uma vez do comportamento enunciativo ou ethos da nova instância partidária mostranos uma arguta capacidade de análise conjuntural do país perscrutando as dinâmicas sociais de ação e reação de forças políticas antagônicas Uma postura firme de coragem e empenho se apresenta assim em forma de denúncia de propostas demagógicas vãs incapazes de iludir a classe trabalhadora o que corrobora um ethos de enunciador seguro convicto e propenso Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 376 a transmitir confiança a quem o lê ou escuta Além do tom assertivo em 3ª pessoa com verbos semanticamente carregados no presente do indicativo esse ethos é amplificado pelo uso de modalidades linguísticas epistêmicas12 tais como na citação acima a expressão adverbial nem de longe agora chegou a vez de ou ainda fórmulas como esse fato comprova que com as quais o enunciador mostra um grau acentuado de certezafirmeza diante do conteúdo asseverado Expressões ou advérbios já salientados como só à parte e têm permanente necessidade de também atestam esse grau acentuado de certeza epistêmica podendo assumir também um caráter deôntico de palavra de ordem apontando mais uma vez para um ethos convictomilitante Procedimentos semelhantes são adotados quando o assunto é o MDB com o acréscimo das chamadas modalidades apreciativas13 em itálico o MDB por sua origem por sua ineficácia histórica pelo caráter de sua direção por seu programa prócapitalista mas sobretudo por sua composição social essencialmente contraditória em que se congregam industriais e operários fazendeiros e peões comerciantes e comerciários enfim classes sociais cujos 12 As chamadas modalidades epistêmicas com base em Neves 2011 se caracterizam como elementos linguísticos imbuídos de um valor modal referente à possibilidade e à necessidade em termos da expressão do conhecimento e da crença da certeza e da incerteza do possível e do impossível Uma série de advérbios ou expressões adverbiais as caracterizam certamente possivelmente com certeza quem sabe talvez etc dando ao enunciador um caráter convicto ou duvidoso diante do conteúdo proposicional asseverado 13 A partir de Paveau e Sarfati 2006 podemos afirmar que as modalidades apreciativas são caracterizadas por uma série variada de expressões nomessubstantivos adjetivos advérbios e até mesmo verbos propícios a qualificar algo Dito de outra forma ao serem escolhidos ou combinados tais elementos podem apreciar seres objetos ou eventos mostrando de certa forma a subjetividade do enunciador ou o seu ethos diante dos referentes construídos pelo discurso Nesse sentido é importante esclarecer que certas expressões já destacadas acima produzidas em uma moldura enunciativa em terceira pessoa como os de baixo os explorados e oprimidos versus os de cima as classes dominantes as elites privilegiadas etc são exemplos vivos de modos de apreciação específicos Não podemos esquecer que as modalidades se interpenetram e só possuem sentido em um contexto em que por exemplo o efeito de objetividade em terceira pessoa pode formar um quadro enunciativo propício para a emergência retórica de qualificadores de elementos no mundo 377 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 interesses são incompatíveis e nas quais logicamente prevalecem em toda a linha os interesses dos patrões jamais poderá ser reformado A proposta que levantam algumas lideranças populares de tomar de assalto o MDB é muito mais que insensata é fruto de uma velha e trágica ilusão quanto ao caráter democrático de setores de nossas classes dominantes Aglomerado de composição altamente heterogênea e sob controle e direção de elites liberais conservadoras o MDB temse revelado num passado recente um conduto impróprio para expressão dos reais interesses das massas exploradas brasileiras Anexo I linhas 121133 Itálico nosso Aqui podemos encontrar portanto além dos indícios epistêmicos de acentuada convicção e militância jamais poderá ser é muito mais que algo representativo do que acontece no documento como um todo uma série de expressões nominais e adjetivas em itálico destinadas a qualificar fenômenos sociais da realidade brasileira no caso o MDB reforçando um ethos de conhecimento profundo e crítico do contexto político nacional com feições de enfrentamento corajosamente classista Passando adiante essa seria a moldura ethica de uma série de atos de fala emparelhados sistematicamente da linha 156 até o final do documento trecho também preenchido por diversos indícios de convicção epistêmica Referimonos à repetição exaustiva obstinada de uma mesma estrutura sintática significativa tendo como sujeito o PT ou o Partido dos Trabalhadores e uma predicação verbal asseverativa A nosso ver esse longo repisar sintático presente do começo ao fim do trecho assinalado seria capaz de somar às dimensões ethicas já vistas um caráter obstinado e incansável o que poderia demonstrar institucionalmente tenacidade firmeza e empenho pela própria forma da enunciação Sem entrar em maiores detalhes pela extensão do trecho referido basta atentarmonos para os seguintes fragmentos o PT sempre como sujeito denuncia linha 156 defende linha 159 entende linhas 162 166 e 174 proclama linhas 171 177 e 184 afirma linha 186 e 211 se declara linha 190 e 230 recusase linha 197 definese linhas 208 e 210 não pretende linhas 207 e 227 se constituirá linha 215 respeitará linha 216 irá promover linha 220 etc Ressaltamos aqui o tom explícito de promessa dos últimos quatro verbos assinalados a maior parte deles conjugada no futuro o que assinala um ethos de engajamento e compromisso público mas não apenas outros atos de fala se interpenetram sempre a partir da linha 156 num misto de Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 378 promessas asserçõesdefinições declarações proclamações denúncias recusas etc mostrandonos um partido assertivamente sem patrões linha 195 predestinado a acabar com a relação de exploração do homem pelo homem linha 205 além de solidário para com as massas oprimidas do mundo linhas 232233 Dito isso cabenos ressaltar ainda um último aspecto do ethos também presente na Carta de 1979 em particular nos trechos enunciados na primeira pessoa do plural nós dirigentes sindicais não pretendemos ser donos do PT mesmo porque acreditamos sinceramente existir entre os trabalhadores militantes de base mais capacitados e devotados a quem caberá a tarefa de construir e liderar nosso partido Estamos apenas procurando usar nossa autoridade moral e política para tentar abrir um caminho próprio para o conjunto dos trabalhadores Temos a consciência de que nesse papel neste momento somos insubstituíveis e somente em vista disso é que nós reivindicamos o papel de lançadores do PT Anexo I linhas 5562 Itálico nosso A primeira pessoa do plural nós reforça mais claramente um ethos de enunciador coletivo até mesmo pela assinatura no final do documento a Comissão Nacional Provisória No entanto esse nós é bem delineado por um aposto singular os dirigentes sindicais o que confere à nascente instituição uma imagem não apenas classista mas sobretudo de sindicalistas Curiosamente mesmo assim tal instância busca produzir um efeito de modéstia e de posicionamento democrático inclusivo não reivindicam para si uma propriedade do partido pois acreditam ser essa a tarefa dos próprios trabalhadores postos como mais capacitados e devotados para conduzir o seu próprio combate O PT se colocaria assim como uma instância aberta inclusiva e democrática sendo os dirigentes sindicais insubstituíveis mas apenas na medida em que cumprem um papel de pontapé inicial para a fundação da legenda devido à sua autoridade moral e política de defensores históricos da classe trabalhadora Isso só viria corroborar mais uma vez o ethos classista e coletivo que vínhamos sublinhando para o partido ainda não personificado simbolicamente na figura singular de um líder como o próprio Lula por exemplo Como veremos a seguir algo diverso acontece em termos de ethos na Carta ao Povo Brasileiro de 2002 379 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 32 A Carta de 2002 Anexo II Como se sabe a Carta ao povo brasileiro assinada por Luiz Inácio Lula da Silva data de 22 de junho de 2002 momento precedente às eleições presidenciais daquele ano No plano enunciativo não notamos uma predominância quase exclusiva de asserções em 3ª pessoa ele como vimos no Anexo I Tal modalidade enunciativa embora significativa convive agora com mais intensidade com o uso da 1ª pessoa do plural nós e ainda com a aparição emblemática da 1ª pessoa do singular eu Essa mixagem enunciativa do Anexo II já pode ser notada nas palavras iniciais a partir das quais mostraremos como se dá a construção de referentes importantes e significativos para o ethos do PT nesse documento em contraste com a Carta de 1979 o Brasil quer mudar Mudar para crescer incluir pacificar Mudar para conquistar o desenvolvimento econômico que hoje não temos e a justiça social que tanto almejamos Há em nosso país uma poderosa vontade popular de encerrar o atual ciclo econômico e político Se em algum momento ao longo dos anos 90 o atual modelo conseguiu despertar esperanças de progresso econômico e social hoje a decepção com os seus resultados é enorme Oito anos depois o povo brasileiro faz o balanço e verifica que as promessas fundamentais foram descumpridas e as esperanças frustradas Anexo II linhas 18 Itálico nosso Sem perder de vista a pertença do texto a um ano eleitoral 2002 assim como a sua possibilidade de interferência no ethos institucional do PT e não apenas do candidato Lula que não é o nosso objeto específico podemos observar que o referente central aqui talhado já não é mais composto pela mesma dicotomia encontrada anteriormente A pujante antítese cunhada em 1979 entre os de cima e os de baixo ou seja entre as elites dominantes e as massas exploradas encontrase agora substituída por outra forma de polarização o atual modelo linhas 5 14 18 26 49 61 representado pelas gestões de Fernando Henrique Cardoso PSDB e o novo modelo linha 54 aglutinado pela figura de Lula ou melhor pela nossa candidatura linha 30 A gestão do PSDB também atualizada como atual ciclo econômico e político linhas 34 governo Fernando Henrique Cardoso linha 67 ou simplesmente como atual governo linhas 88 e 123 é descrita de forma objetiva e crítica em diversas partes do Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 380 documento O atual modelo é figurado por exemplo como uma enorme decepção por frustrar esperanças e descumprir promessas linhas 58 é posto como um modelo político esgotado e fracassado tendo submetido o país ao risco iminente de uma estagnação crônica linhas 1319 foi incapaz de tomar as necessárias medidas corajosas e cuidadosas para a mudança que a sociedade desejava linhas 2426 nesse sentido é posto também como responsável pela crise econômica financeira e social pela qual o país atravessava por não tomar as providências pertinentes diante das turbulências do mercado linhas 6062 6870 8892 De forma semelhante ao Anexo I notamos no PT a partir da assinatura de Lula um ethos firme de partido crítico combativo e engajado num projeto político para o país dada a riqueza de modalidades apreciativas presentes nos trechos assinalados acima Encenase com tudo isso mais uma vez uma imagem enunciativa de conhecedor profundo tanto da realidade brasileira quanto de seus adversários Mas o que chama a atenção nessa dinâmica é o desaparecimento do ethos classista de outrora Ou seja o combate se dá agora entre modelos de gestão atual modelo x novo modelo e não mais entre classes sociais que deveriam organizarse à parte os de cima x os de baixo Isso fica ainda mais claro em trechos como os seguintes O Brasil quer mudar Mudar para crescer incluir pacificar Anexo II linha 1 Itálico nosso A crescente adesão à nossa candidatura assume cada vez mais o caráter de um movimento em defesa do Brasil de nossos direitos e anseios fundamentais enquanto nação independente Lideranças populares intelectuais artistas e religiosos dos mais variados matizes ideológicos declaram espontaneamente seu apoio a um projeto de mudança do Brasil Prefeitos e parlamentares de partidos não coligados com o PT anunciam seu apoio Parcelas significativas do empresariado vêm somarse ao nosso projeto Tratase de uma vasta coalizão em muitos aspectos suprapartidária que busca abrir novos horizontes para o país Anexo II linhas 3037 Itálico nosso Em primeiro lugar curiosamente notamos que termos como operariado trabalhadores massas exploradas oprimidas setores proletarizados etc além da palavra luta não se encontram grafados no Anexo II que opta por expressões mais genéricasabstratas 381 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 para se referir à população esvaziadas de um possível conteúdo classista tais como o Brasil linha 1 nosso povo linha 9 povo brasileiro vide título linhas 7 38 10614 O mesmo se pode averiguar em relação a expressões como classes dominantes elites patrões etc também silenciadas no texto de 2002 Sendo assim poderíamos cogitar que no lugar do ethos classista de antes temos agora a construção retórica de um caráter mais nacionalista para o partido o Brasil defesa do Brasil nosso povo povo brasileiro baseado em uma política de coalização e pacificação dos conflitos ideológicos Além dos termos acima em itálico atestam essa postura ethica pacificadoranacionalistaconciliadora expressões como autêntica aliança pelo país linha 57 a disposição para dialogar com todos os segmentos da sociedade e com o próprio governo linha 105 a proposta de construção de um Brasil mais solidário e fraterno um Brasil de todos linha 119 além do gran finale enunciado por Lula chamo todos os que querem o bem do Brasil a se unirem em torno de um programa de mudanças corajosas e responsáveis linhas 156157 itálico nosso Contrariamente aos velhos tempos portanto o PT outrora ancorado em uma autoridade moral e política de sindicalistas isto é de defensores históricos da classe trabalhadora a serviço de uma organização partidária dos oprimidos independente assume agora o papel de aglutinador de uma vasta coalizão suprapartidária composta por setores ideologicamente difusos empresários e trabalhadores setores de variados matizes ideológicos etc Como nos mostram mais uma vez os termos em itálico acima tratase de uma postura institucional ou ethos diametralmente oposta às imagens de si projetadas pelo Anexo I como ressaltamos Anexo I linhas 121133 o que se rechaçava em 1979 era justamente a crença ilusória na possibilidade de qualquer partido de composição sócioideológica heterogênea no caso o MDB representar verdadeiramente as camadas exploradas Em 2002 porém a luta de classes e a exortação a uma organização à parte dos trabalhadores como solução de mudança e bemestar social são substituídas pelas ideias patrióticas de solidariedade fraternidade e união de todos em prol de mudanças corajosas e responsáveis 14 A palavra massas encontrase na linha 41 mas associada ao consumo de massas e não a uma classe social laboriosa propriamente dita Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 382 Encaixandose ao que parece no próprio perfil anteriormente combatido o PT de 2002 também aparenta ostentar diferentemente de seus primórdios um conhecimento aprofundado mas desta vez no plano jurídicoeconômico eou financeiroadministrativo o que possivelmente esclarece o significado da expressão mudanças responsáveis referida logo acima Se antes os jargões predominantes eram aqueles do cientista social propensos a descrever sóciopoliticamente a conjuntura em que se vivia e a situação dos explorados dentro de um viés acentuadamente classista a corporalidade do enunciador da Carta de 2002 para usar uma terminologia de Maingueneau 2008 já irradiaria uma expertise técnica característica dos campos econômico e mercadológico Sem entrar em detalhes notamos isso em diversas e exaustivas expressões próprias dessas esferas que se interpenetram continuamente na manutenção temática de tópicos de gestão ao longo do texto15 voltar a crescer gerar empregos redução de nossa vulnerabilidade externa mercado interno consumo de massas novo contrato social crescimento com estabilidade respeito aos contratos mercado financeiro dívida interna e externa endividamento público nervosismo dos mercados especulação Banco central aplicações financeiras investidores populismo cambial ancora fiscal finanças públicas exportações importações combate à inflação geração de empregos juro alto oscilação cambial dívida pública equilíbrio fiscal superávit primário etc Como se pode notar o ethos aqui projetado embora não descarte a questão social se sedimenta substancialmente dentro da competência na área financial e econômica possibilitando uma imagem partidária favorável no que tange ao mérito da gestão eficiente responsável e competente Por um lado podese cogitar teríamos com tal atitude uma resposta ou promessa diante da crise econômica e do nervosismo dos mercados que abalavam a sociedade brasileira em 2002 o chamado Risco Brasil Isso porque pairava no ar como se sabe uma suposta ameaça de que Lula com a sua vitória não honraria os contratos podendo assim arremessar o Brasil em apuros jurídicoinstitucionais Mas por outro lado essa nova postura ethica teria visado eleitoralmente 15 Vide principalmente mas não apenas os fragmentos entre as linhas 1923 3841 5674 8083 8896 e praticamente todo o trecho em que Lula fala em primeira pessoa a partir da linha 114 até o final do documento 383 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 construir uma imagem do PT não apenas afeita à competência estrita na área políticosocial como rezava a sua reputação ou ethos prévio precisavase associar a legenda também a uma capacidade de gestão eficiente e responsável É nesse quadro descrito até agora caracterizado por uma imagem enunciativa nacionalista suprapartidária e técnica do ponto de vista econômicoadministrativo que o PT se lança como modelo alternativo à gestão atual com a promessa de mudar o Brasil O comportamento promissivo e oscilante entre ousadia plano social e responsabilidade plano econômico pode ser constatado de modo bem representativo nos seguintes trechos o novo modelo não poderá ser produto de decisões unilaterais do governo tal como ocorre hoje nem será implementado por decreto de modo voluntarista Será fruto de uma ampla negociação nacional que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país a um novo contrato social capaz de assegurar o crescimento com estabilidade Anexo II linhas 5460 Itálico nosso Quero agora reafirmar esse compromisso histórico com o combate à inflação mas acompanhado do crescimento da geração de empregos e da distribuição de renda construindo um Brasil mais solidário e fraterno um Brasil de todos Anexo II linhas 117119 Itálico nosso Há outro caminho possível É o caminho do crescimento econômico com estabilidade e responsabilidade social As mudanças que forem necessárias serão feitas democraticamente dentro dos marcos institucionais Vamos ordenar as contas públicas e mantêlas sob controle Mas acima de tudo vamos fazer um Compromisso pela Produção pelo emprego e por justiça social Anexo II linhas 148152 Itálico nosso Fica claro aqui a partir das expressões e conectivos em itálico mas com e a assunção de um ethos conciliador e aglutinador de um novo contrato social capaz de alcançar pretensamente as tão sonhadasousadas mudanças sociais responsabilidade social geração de emprego distribuição de renda justiça social porém mas com estabilidade econômica e controle da inflação É nesse sentido também que podemos entender as diversas promessas equilibradas entre a ousadia plano social e a responsabilidade plano econômico tais como o incremento da atividade econômica com políticas sociais consistentes Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 384 e criativas o compromisso com as reformas estruturais tributária agrária previdenciária trabalhista e urbana linhas 3848 a valorização do agronegócio e a um só tempo da agricultura familiar linhas 9798 a promoção do equilíbrio fiscal eou preservação do superávit primário como meio para o crescimento e não como fim linhas 131137 Com tudo isso emerge a convicção política de que um Brasil de todos poderia ser construído apenas com medidas capazes aparentemente de agradar a totalidade absoluta das frações da sociedade plasmadas solidariamente em uma única entidade abstrata o povo o Brasil Dito isso podemos ainda afirmar que além desse ethos de conciliação nacionalista nãoclassista imbuído de uma competência técnica tanto na área social quanto sobretudo no campo responsável da gestão técnica econômica e jurídica o PT se diferencia em 2002 apresentandonos uma imagem institucional já encarnada na figura emblemática do líder Esse efeito de personificação do partido é possibilitado podemos cogitar seja pela assinatura particular de Lula e não mais da instituição como em 1979 seja pela enunciação em primeira pessoa do singular principalmente e do plural Como todos os brasileiros quero a verdade completa Acredito que o atual governo colocou o país novamente em um impasse Lembremse todos em 1998 o governo para não admitir o fracasso do seu populismo cambial escondeu uma informação decisiva A de que o real estava artificialmente valorizado e de que o país estava sujeito a um ataque especulativo de proporções inéditas Estamos de novo atravessando um cenário semelhante Anexo II linhas 8893 Itálico nosso Ninguém precisa me ensinar a importância do controle da inflação Iniciei minha vida sindical indignado com o processo de corrosão do poder de comprar dos salários dos trabalhadores Anexo II linhas 114116 Itálico nosso Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos Anexo II linhas 135137 Itálico nosso O Brasil precisa navegar no mar aberto do desenvolvimento econômico e social É com essa convicção que chamo todos os que querem o bem do Brasil a se unirem em torno de um programa de 385 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 mudanças corajosas e responsáveis Anexo II linhas 155157 Itálico nosso A primeira pessoa do plural é oscilante em todo o documento ora o nós inclui em seu espectro semântico o enunciador Lula o PT e os interlocutores a nação brasileira estamos de novo atravessando um cenário semelhante ora se reserva apenas a Lula e o PT como na promessa vamos preservar o superávit primário Mas o fato é que Lula se faz presente em todos esses usos e particularmente se impõe de forma inequívoca como figura de destaque a partir do eu que se aflora em diversos fragmentos É interessante observar que esse novo ethos do PT personificado na figura do líder carismático tem sido denominado por muitos estudiosos das ciências políticas como lulismo fenômeno que conta singelamente ao lado de outros recursos retóricos com a assunção generalizada da primeira pessoa em documentos do partido Não é por acaso que segundo Ricci 2010 p 23 o lulismo teve início na campanha de 1994 mas atingiu sua configuração como engenharia política em 2002 quando se arquitetou a campanha presidencial cristalizandose com a divulgação da Carta ao Povo Brasileiro em junho daquele ano Alterou profundamente o projeto inicial petista que se orientava por um discurso estratégico afiliado à lógica dos movimentos sociais que emergiram nos anos 1980 que por sua vez sustentavamse na declarada autonomia política e na organização horizontalizada com prevalência dos mecanismos de democracia direta cujo discurso assentavase no antiinstitucionalismo e anticapitalismo Dessa forma é possível notar um projeto vertical de poder em vias de se institucionalizar principalmente com a vitória de Lula nas eleições de 2002 sendo o lulismo uma estratégia retórica significativa nesse processo O PT assim fundese com a imagem de seu principal expoente a partir de uma via carismática de identificação diante da população como um todo como se vê nos trechos já assinalados como todos os brasileiros Lula quer a verdade com todos os brasileiros nós atravessa um cenário de crise e acredita na mudança a partir do esforço e da consciência de todos o líder sabe ainda como ninguém ou melhor como os mais pobres dos malefícios da inflação Dessa forma com essa autoridade pessoal e não mais sindical um PT encarnado na figura de Lula conclama a nação para se unir ao redor Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 386 de um programa de mudanças corajosas e responsáveis Em suma o apanágio da esperança como instrumento de mudança deixaria de ser a organização políticoinstitucional coletiva e à parte o partido como em 1979 para se cristalizar no indivíduo e em sua epopeia pessoal a pessoa como em 2002 Enfim tecemos até aqui um cenário de variação ethica do Partido dos Trabalhares da Carta de 1979 à Carta de 2002 Mesmo sem ter condições por questões de limites de abordar mais detalhadamente os dois documentos acreditamos termos tido condições de salientar essas mudanças em termos gerais e significativos com o auxílio de alguns elementos linguísticodiscursivos Dessa forma passamos finalmente às nossas derradeiras reflexões 4 Considerações finais Podemos afirmar que mudanças discursivas significativas ocorreram ao longo dos anos nas imagens de si do Partido dos Trabalhadores Em ambos os Anexos analisados notamos a presença substantiva de um ethos engajado militante e convicto diante dos conteúdos asseverados em função de asserções sólidas e de ocorrências de mecanismos linguísticos de forte sobrecarga epistêmica e apreciativa O tom de promessa atravessa com variações de conteúdo ambos os documentos Entretanto as diferenças na postura parecem ser bem maiores no que tange a várias outras questões politicamente relevantes Em termos gerais a Carta de 1979 nos apresenta um partido de feição radicalmente classista desnudando o conflito entre as elites e as massas exploradas os de cima x os de baixo Aproximandose dos menos favorecidos repisando a ideia de uma organização independente com o povo trabalhador o PT se coloca como um partido de massas e como um instrumento coletivo de luta no sentido de acabar com a exploração do homem pelo homem Nessa perspectiva tratase de um partido sem patrões assentado em uma representatividade pluraldeliberativa democrática ou seja não encarnada ainda nesse ou naquele expoente individual de liderança Notamos assim com a ajuda de Bobbio 1995 que nesta Carta a postura do PT se enquadra mais prototipicamente pelo menos nos ideais básicos da chamada esquerda pois voltandose explicitamente contra a tradição de exploração do homem pelo homem encarna a ideia de emancipação e de libertação da classe trabalhadora 387 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 A Carta de 2002 por sua vez nos apresenta um ethos de envergadura nacionalista e de feições pacificadoras silenciando o conflito entre as classes sociais colocando em seu lugar uma dialética de modelos de gestão atual modelo x novo modelo o partido constrói para si uma imagem de administrador eficiente pautada numa vasta erudição em terminologias financeirasmercadológicas Em defesa do Brasil e erigindose como um aglutinador de uma vasta coalizão suprapartidária formada por todas as classes patrões e empregados o PT ao mesmo tempo assenta o seu caráter na figura emblemática de Lula Tal personagem no lugar do partido passaria a ser o fiador das esperanças de mudança política Isso a principio vincularia o partido ou aproximaria do campo da tradição nacionalismo conciliação de classes personalismo etc âmbito prototípico da chamada direita ou centro para alguns No entanto não nos cabe aqui produzir categoricamente essa classificação uma vez que como vimos os conceitos de direita e esquerda são relativos e cambiantes historicamente Construindo mais uma ponte com o conteúdo da segunda parte deste artigo restaria saber se tais mudanças ethicas foram positivas necessárias ou se representaram uma traição ao povo trabalhador constituindo na melhor das hipóteses um erro profundo da legenda ao longo da história Dito de outra forma seriam mesmo essas variações discursivas representativas da consolidação da burguesia monopolista no país a partir de uma governabilidade que teria desarmado as condições políticas organizativas e de consciência de classe dos trabalhadores IASI 2014b Teriam dessa forma conduzido a esquerda nacional a uma semidemocracia imobilista de baixa participação popular direta e com eleições que só se ganha mobilizando de maneira espúria a força financeira com seus corruptores de sempre SAFATLE 2013 p 14 Ou tais variações ethicas que viam se delineando desde 1994 seriam representativas de uma estratégia nova necessária e mais flexível de alianças após três derrotas sucessivas de Lula à presidência do Brasil partindose do pressuposto de que o partido precisaria chegar ao poder para realizar pelo menos parte das transformações sociais defendidas historicamente Nessa perspectiva teriam sido importantes positivas as articulações políticas do PT na conquista do pleito eleitoral de 2002 tendo o movimento de ida ao centro credenciado o partido a estabelecer alianças com setores significativos de nossa tradição republicana VIANNA 2006 p 98 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 388 Optamos neste trabalho por deixar tais questões em aberto Não nos cabe aqui dizer se tais mudanças sóciodiscursivas foram positivas ou negativas como muito se discute nas esferas sociais e acadêmicas do Brasil mas apenas ressaltar como as variações ethicas do PT realmente se deram por contraste Acreditamos que a simples chamada de atenção para os textos analisados ainda pouco explorados possui grande valor não só no sentido de evidenciar que as Ciências da Linguagem e uma Revista como esta têm algo a contribuir para as discussões políticas mas também para reforçar a necessidade de sempre recolocar a questão na ordem do dia devido a sua relevância social naquilo que concerne aos comportamentos discursivos pertinentes às esquerdas em geral e em particular ao PT dentro de sua história Vivemos no momento de fechamento deste texto um período conturbado em que a Presidenta do Brasil Dilma Rousseff PT foi afastada por um processo de impeachment tendo assumido o seu lugar em 2016 o VicePresidente Michel Temer PMDB Como se sabe isso deu vazão a grandes discussões sobre a viabilidade ou não de alianças por parte da chamada esquerda com partidos mais ao centro ou até mesmo de direita além de suas possíveis consequências econômicas sociais e políticas Dessa forma acreditamos que o trabalho pode ser pertinente tanto para a compreensão teórica do ethos associado às instituições partidárias quanto para servir de material para a reflexão sobre comportamentos políticodiscursivos mais interessantes ao futuro de nosso país Declaração de Contribuição de Cada Autor Declarase para os devidos fins que os dois autores Melliandro Mendes Galinari e Luciana de Souza Pereira contribuíram igualmente na confecção de todas as partes do artigo desde a feitura idealização e reformulação da parte teórica até as análises e reanálises do objeto de investigação incluindo a escrita e a reescrita conjuntas 389 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 Referências AMOSSY Ruth Largumentation dans le discours 3 ed Paris Armand Colin 2010 AMOSSY R O ethos na intersecção das disciplinas retórica pragmática sociologia dos campos In AMOSSY R Org Imagens de si no discurso a construção do ethos São Paulo Contexto 2008 p 119144 BOBBIO N Direita e esquerda razões e significados de uma distinção política São Paulo Editora da Universidade Estadual Paulista 1995 FAUSTO B A História do Brasil São Paulo Editora da Universidade de São Paulo 2012 GALINARI M M Sobre ethos e AD tour teórico críticas terminologias Revista Delta Documentação e Estudos em Linguística Teórica e Aplicada São Paulo v 28 n 1 p 5168 2012 GALINARI M M O Funcionamento RetóricoDiscursivo dos Índices de Modalização a construção do ethos In Rivista di Studi Portoghesi e Brasiliani PISAROMA Fabrizio Serra Editore v XX p 8597 2018 IASI M L O escravo da Casa Grande e o desprezo pela esquerda Rio de Janeiro jun 2014a Disponível em httpblogdaboitempocom br20140616oescravodacasagrandeeodesprezopelaesquerda Acesso em 10 fev 2016 IASI M L O PT e a Revolução Burguesa no Brasil 2014b Disponível em httpsdocsgooglecomfiled0Bs4202oxQXfNzkxN2hWb2VQSlE editpli1 Acesso em 11 fev 2016 MAINGUENEAU D Ethos cenografia incorporação In AMOSSY R Org Imagens de si no discurso a construção do ethos São Paulo Contexto 2008 p 6992 MATTOSO J Dez Anos depois In SADER E Org 10 Anos de Governos Pósneoliberais no Brasil Lula e Dilma São Paulo Boitempo 2013 p 115125 NEVES M H M Imprimir marcas na linguagem Ou a modalização na linguagem In Texto e Gramática São Paulo Contexto 2011 p 151221 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 390 NOBRE M Imobilismo em movimento da abertura democrática ao governo Dilma São Paulo Companhia das Letras 2013 PAVEAU M A SARFATI G E As grandes teorias da linguística São Carlos Claraluz 2006 p 182184 PERELMAN C OLBRECHTSTYTECA L Tratado da argumentação a nova retórica São Paulo Martins Fontes 2002 PETIT P A esquerda petista os intelectuais e o governo Lula In DIAS M R PÉREZ J M S Org Antes do vendaval um diagnóstico do governo Lula antes da crise política de 2005 Porto Alegre EDIPUCRS 2006 p 179220 REIS D A O Partido dos Trabalhadores trajetória metamorfoses perspectivas 2007 Disponível em httpwwwhistoriauffbr culturaspoliticasfilesdaniel4pdf Acesso em 06 out 2014 RICCI R Lulismo da era dos movimentos sociais à ascensão da nova classe média brasileira Brasília Fundação Astrojildo Pereira 2010 SADER E Brasil A Esquerda e o Governo Lula São Paulo maio 2005 Disponível em httpwwwvoltairenetorgarticle125237html Acesso em 08 set 2015 SAFATLE V A esquerda que não teme dizer seu nome São Paulo Três Estrelas 2013 VIANNA L W Esquerda brasileira e tradição republicana estudos de conjuntura sobre a era FHC Lula Rio de Janeiro Revan 2006 391 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 ANEXOS Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 392 393 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 394 395 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 396 397 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 398 399 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 400
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Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 eISSN 22372083 DOI 101785122372083271359400 Da Carta de Princípios 1979 à Carta ao povo brasileiro 2002 variações ethicas1 do Partido dos Trabalhadores From the Charter of Principles 1979 to the Letter Adressed to Brazilian People 2002 ethical variations of the Workers Party Melliandro Mendes Galinari Universidade Federal de Ouro Preto Mariana Minas Gerais Brasil melliandroyahooit Luciana de Souza Pereira Universidade Federal de Ouro Preto Mariana Minas Gerais Brasil pereiraslucianagmailcom Resumo O Partido dos Trabalhadores PT no Brasil tem sido estudado por diversos historiadores e cientistas sociais além de ser avaliado constantemente pelas mídias e pelo senso comum quanto a mudanças de postura políticodiscursivas ao longo de sua existência Neste artigo temos como objetivo analisar o ethos institucional do PT em dois momentos históricos distintos a saber no momento precedente à sua fundação 1979 a partir da chamada Carta de Princípios e no ano eleitoral em que obteve a vitória para a Presidência da República 2002 com base na Carta ao Povo Brasileiro Com isso pretendese apontar como foram construídas retoricamente as diferentes imagens do partido nesses dois documentos estabelecendo um contraste linguísticodiscursivo panorâmico Inicialmente o artigo situa o surgimento do PT no contexto brasileiro e seu percurso até chegar à Presidência da República Em seguida 1 Vale ressaltar desde já que a palavra ethica grafada com h é uma derivação proposital da palavra grega ethos não devendo assim ser confundida com o vocábulo ética tal e qual entendido no senso comum ou seja como traço de boa moral ou honestidade As variações ethicas do Partido dos Trabalhadores nesse sentido dizem respeito tão somente às imagens de si decorrentes de seus discursos sejam elas quais forem sem que com isso haja uma atribuição de avaliações positivas ou negativas Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 360 no sentido de contextualizar as suas históricas mudanças são trazidos apontamentos de cientistas políticos e historiadores com o intuito de apresentar por amostragem pontos de vista controversos sobre as metamorfoses do PT Enfim o trabalho se atém à análise propriamente dita das cartas mencionadas no sentido de apreender como o ethos é construído enquanto dimensão retórica A conclusão mostra dentre outras coisas que na Carta de 1979 constróise um partido de feição radicalmente classista posicionandose ao lado das massas exploradas contra as elites dominantes Na Carta de 2002 por sua vez tal conflito é silenciado sobressaindose um ethos de caráter nacionalista e conciliador Palavraschave Partido dos Trabalhadores PT discurso Político Análise do Discurso ethos Retórica Abstract Since its foundation the Brazilian workers party PT has been studied by several historians and social scientists It has also been constantly probed by the media and common sense due to politicaldiscursive changes of its posture The purpose of his article is to analyse the institutional ethos of PT in two distinctive historical moments Firstly the moment before its foundation 1979 beginning with the so called Charter of Principles and secondly the election year when victory to the presidency of the republic was achieved 2002 based on the letter to the Brazilian people Thus it is intended to point in these two moments how the different images of the party were rhetorically constructed by establishing a linguisticdiscursive panoramic contrast Initially the article sets the partys origin in the Brazilian context and its course to the presidency of the republic Hence for contextualization of its historical changes notes of political scientists and historians are brought up with the intention of presenting by sampling controversial points of view on the party metamorphoses Ultimately this paper is concerned to the analysis of the letters which have been mentioned with the intention of apprehending how the ethos is constructed as a rhetorical dimension The conclusion shows amongst other things that in the 1979 letter a party radically classicist is built it also posits itself next to the exploited mass against the dominant elite In the 2002 letter however such conflict is silenced highlighting a nationalist and conciliator ethos Keywords Workers Party PT political discourse Discourse Analysis ethos Rhetoric Recebido em 02 de abril de 2018 Aprovado em 09 de setembro de 2018 361 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 1 Introdução Este artigo pretende averiguar a partir de uma análise discursiva como se deu retórica e linguisticamente uma guinada identitária na imagem institucional ou ethos do Partido dos Trabalhadores PT tendose como amostragem dois conhecidos documentos emitidos por essa instância política em anexo a Carta de Princípios assinada pela Comissão Provisória no dia 1 de maio de 1979 momento que antecedeu a fundação oficial da sigla em 10 de fevereiro de 1980 e a Carta ao Povo Brasileiro lançada à população em junho de 2002 em função das eleições presidenciais daquele ano disputadas por Luís Inácio Lula da Silva PT e José Serra PSDB dentre outros Para tanto usaremos como parâmetro teórico de análise a noção de ethos desenvolvida nos âmbitos teóricos da Retórica e da Análise do Discurso que pressupõe em termos gerais que toda tomada de palavra seja pelo conteúdo seja pela forma da enunciação implica direta ou indiretamente a construção de imagens de si Buscaremos ressaltar dessa forma que o ethos pode ser apreendido não apenas em função de um oradorlocutor individual mas também em relação a uma instância institucional como o PT e partidos políticos ou instituições em geral Em 1979 como se sabe o Presidente Figueiredo enviou finalmente para o Congresso em meio a pressões pela redemocratização do país a Lei Orgânica dos Partidos Políticos Sancionada no final daquele ano a Lei reestabelecia o pluripartidarismo no Brasil e dessa forma o bipartidarismo vigente no Regime Militar representado pela ARENA frente de apoio ao Regime autoritário e pelo MDB frente de oposição foi extinto dando voz e vez à estrutura partidária tal e qual conhecemos hoje2 2 A ARENA Aliança Renovadora Nacional se transformou no Partido Democrático Social PDS que em função de dissidências gerou o Partido da Frente Liberal PFL atual DEM Mais adiante o próprio PDS foi rebatizado algumas vezes até se tornar o Partido Progressista PP tal e qual conhecemos hoje Foi nessa mesma dinâmica que outros partidos foram surgindo como por exemplo o PSDB Quanto ao MDB Movimento Democrático Brasileiro houve apenas o acréscimo do p de Partido tornandose conhecido durante décadas como PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro Porém poucos meses antes do fechamento deste artigo no dia 19122017 decidiuse em convenção nacional da legenda que esta voltaria às origens rebatizandose como MDB sua designação atual Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 362 É nesse contexto que se pretende criar um partido novo o Partido dos Trabalhadores PT3 De acordo com alguns documentos de fundação teria sido a partir da desigualdade entre as classes sociais da necessidade da classe explorada oferecer resistência e se defender de forma organizada da opressão e dos privilégios das classes dominantes e ainda da carência de oferecer aos trabalhadores uma expressão política unitária que se solidificou fortemente a ideia de se instituir e construir um partido de base independente Isso porque o MDB partido que se opunha ao Regime Militar já não cumpria aos olhos da base idealizadora do PT o papel de funcionar autenticamente como um instrumento de luta dos trabalhadores em função de sua composição altamente heterogênea e contraditória isto é composta por setores empresariais e trabalhistas a um só tempo Nessa direção em 1º de maio de 1979 exatamente em um Dia do Trabalhador foi tornada pública a Carta de Princípios do PT4 no sentido de conduzir o movimento de consolidação e legalização do partido Segundo o documento o MDB por sua origem por sua ineficácia histórica pelo caráter de sua direção por seu programa prócapitalista mas sobretudo por sua composição social essencialmente contraditória em que se congregam industriais e operários fazendeiros e peões comerciantes e comerciários enfim classes sociais cujos interesses são incompatíveis e nas quais logicamente prevalecem em toda a linha os interesses dos patrões jamais poderá ser reformado A proposta que levantam algumas lideranças populares de tomar de assalto o MDB é muito mais que insensata é fruto de uma velha e trágica ilusão quanto ao caráter democrático de 3 Para exemplificar os movimentos que se articulavam e que viriam a contribuir para a origem do Partido dos Trabalhadores PT podemos falar da inquietação de eclesiásticos de esquerda da Igreja Católica quanto ao modelo autoritário e econômico vigente acrescentandose a liderança do Movimento Revolucionário Trotskista extinto oficialmente pelo Regime Militar e representações de grupos que participaram ativamente da luta contra o Regime como a Ala Vermelha do Partido Comunista do BrasilAlaPC do B a Ação Libertadora NacionalALN a Ação Popular Marxista LeninistaAPML o Partido Comunista Brasileiro RevolucionárioPCBR o Movimento de Emancipação do ProletariadoMEP 4 A Carta de Princípios do Partido dos Trabalhadores faz parte dos Anexos deste artigo e foi extraída do sítio httpswwwptorgbrwpcontentuploads201403 cartadeprincipiospdf Último acesso em 28 mar 2018 363 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 setores de nossas classes dominantes Aglomerado de composição altamente heterogênea e sob controle e direção de elites liberais conservadoras o MDB temse revelado num passado recente um conduto impróprio para expressão dos reais interesses das massas exploradas brasileiras Anexo I linhas 121133 Buscando portanto uma terceira via representativa isto é fora da dicotomia ilusória entre ARENA e MDB o Movimento PróPT aprovou em 10 de fevereiro de 1980 no Colégio SionSP o lançamento oficial da legenda Como sugere o Manifesto de Criação o Partido dos Trabalhadores nasceria da necessidade sentida por milhões de brasileiros de intervir na vida social e política do país para transformála da decisão dos explorados de lutar contra um sistema econômico e político que não pode resolver os seus problemas pois só existe para beneficiar uma minoria de privilegiados5 Com essa pequena introdução somada à própria leitura do Anexo I deste trabalho podemos ter já uma ideia da vitalidade da identidade e da energia dessa nova instituição tratavase de um partido de massas que visava atuar não apenas nas disputas eleitorais mas também no dia a dia dos trabalhadores dentro de uma nítida concepção de luta de classes No entanto com o passar dos anos mais claramente a partir da campanha presidencial de 2002 algumas contradições se apresentaram acompanhadas de vivas críticas de vários setores da esquerda A Coligação Lula Presidente 2002 teria sido composta tempos depois da Carta de Princípios justamente pelas mencionadas forças contraditórias num gesto de alianças políticas até então bastante criticado pela práxis usual do partido Além do PT do Partido Comunista do Brasil PC do B e do Partido Comunista Brasileiro PCB âmbitos tradicionais da esquerda a frente eleitoral encabeçada pela candidatura Lula em 2002 foi incrementada pelo Partido Liberal PL legenda do então candidato a vice o megaempresário José Alencar pelo Partido da Mobilização Nacional PMN incluindo ainda que extraoficialmente o apoio de outros setores conservadores como aqueles ligados à família de José Sarney PMDB 5 O Manifesto de Criação do Partido pode ser visto no sítio httpcsbhfpabramoorg bruploadsmanifestodelancamentopdf Último acesso em 28 mar 2018 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 364 quadros do Partido Trabalhista Brasileiro PTB e do Partido Progressista PP Interessantemente na Carta ao Povo Brasileiro6 de 2002 Anexo II um trecho é bastante representativo dessa polêmica estratégia política a crescente adesão à nossa candidatura assume cada vez mais o caráter de um movimento em defesa do Brasil de nossos direitos e anseios fundamentais enquanto nação independente Lideranças populares intelectuais artistas e religiosos dos mais variados matizes ideológicos declaram espontaneamente seu apoio a um projeto de mudança do Brasil Prefeitos e parlamentares de partidos não coligados com o PT anunciam seu apoio Parcelas significativas do empresariado vêm somarse ao nosso projeto Tratase de uma vasta coalizão em muitos aspectos suprapartidária que busca abrir novos horizontes para o país Anexo II linhas 3037 itálicos nossos O fato é que da Carta de 1979 à Carta de 2002 mudanças significativas no plano discursivo parecem ter acontecido e muito se tem falado durante essa trajetória em reconstrução de imagens ou ethos do PT o que vem dividindo as opiniões entre uma crítica visceral à legenda e no sentido oposto uma sofisticada justificativa política para corroborar essa guinada comportamental Nessa perspectiva cientistas políticos eou historiadores como Fausto 2012 Vianna 2006 Sader 2005 Reis 2007 Petit 2006 e Mattoso 2013 dentre outros além de atores políticos diversos e movimentos sociais têm apontado metamorfoses no discurso petista com argumentos que indicam discrepâncias significativas no decorrer dos anos ora pelo sabor das circunstâncias ora pelas transformações da realidade brasileira A partir desse controverso dilema e isentandonos de fazer uma contextualização histórica mais pormenorizada do PT entre 1979 e 2002 arco de tempo dos documentos em anexo buscaremos resgatar na sequência do artigo algumas vozes que se debruçaram sobre o problema da mudança de postura ethica do PT Com isso temos como objetivo concomitantemente i atestar a relevância sóciopolítica da questão aqui abordada em escala nacional ii fornecer um quadro contextual por amostragem de como o problema tem sido vistoavaliado e iii apresentar um parâmetro mínimo para as análises dos Anexos 6 A Carta ao Povo Brasileiro foi extraída do sítio httpnovofpabramoorgbruploads cartaaopovobrasileiropdf Último acesso em 28 mar 2018 365 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 presentes na terceira parte do artigo momento em que buscaremos apresentar a contribuição específica da Análise do Discurso e da Retórica para esse debate 2 As Críticas da Metamorfose as Metamorfoses da Crítica Inicialmente é comum observar que o PT teria passado pouco a pouco de partido de militantes a um partido de funcionários à medida que foi conquistando pleitos oficiais principalmente após a sua chegada à Presidência da República em 2002 os que antes eram líderes de movimentos sociais agora se tornam prefeitos assessores ou deputados os que antes alimentavam esses movimentos agora se veem como articuladores da política profissional Segundo Reis 2007 p 16 não se quer afirmar que estas metamorfoses tivessem se realizado de forma integral Que características presentes na gênese do PT tivessem se dissolvido no ar Mas é como se as novas referências estivessem agora predominando conferindo à dinâmica do Partido um rumo distinto diferentes e imprevistos horizontes Petit 2006 por exemplo nos fala dos encontros que Lula e seus assessores nutriram após ocupar a Presidência da República senão antes como sugere a Carta de 2002 com representantes de setores da elite econômica tais como empresários banqueiros etc no sentido de sinalizar que um Governo do PT se esforçaria para controlar a inflação acalmar os mercados eou garantir espaços para representações políticas estranhas à sua própria história construindo assim uma governabilidade de coalizão Nessa perspectiva alianças petistas foram vistas por pensadores como Fausto 2012 e Petit 2006 como oportunistas tais como as alianças com o PMDB ou concessões políticas feitas às bancadas Evangélica e Ruralista nas casas legislativas Tais acertos teriam impactado em medidas de cunho econômico que teriam conduzido o partido ao centro político ou até mesmo à direita como muitos sustentaram Isso nos levaria facilmente à percepção de que o PT teria modificado as teses que outrora eram defendidas assim como o seu discurso Ao mesmo tempo e paradoxalmente muitas das críticas não se abstiveram em admitir sem alguma polêmica os avanços dos governos Lula no plano da política social a partir de programas como o Bolsa Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 366 Família e o Fome Zero que dentre outras coisas retiraram milhões de pessoas da linha da pobreza a expansão do crédito para as classes médias e mais necessitadas a política de cotas a construção de novas universidades etc Ainda em um direcionamento crítico Sader 2005 considera que o Partido dos Trabalhadores teria surgido como uma legenda forte de esquerda mas que perdera essa força ao caminhar para o centro mantendo a continuidade da política econômica neoliberal do governo anterior de Fernando Henrique Cardoso PSDB Petit 2006 nos lembra voltando ao passado que o PT nas eleições de 1989 não obteve apoio significativo do empresariado brasileiro No entanto desde o início dos anos 1990 o partido teria iniciado uma modesta porém contínua aproximação com a classe empresarial do país Dessa forma na visão do cientista as candidaturas do PT de 1994 já teriam sido custeadas pela metade por empresários e banqueiros De um ponto de vista um pouco diferente Nobre 2013 afirma que no momento em que o governo de Fernando Henrique se aliou ao PFL hoje DEM foi estabelecida uma corrente de forças em que ao Partido dos Trabalhadores só restariam duas alternativas diante de eleições futuras permanecer na oposição indefinidamente ou caminhar em direção ao centro à maneira do PMDB Esse caminhar ao centro é um típico movimento do sistema político brasileiro e caracterizaria assim para o PT uma estratégia nova e mais flexível de alianças após três derrotas sucessivas de Lula à presidência do Brasil 1989 1994 e 1998 Nessa perspectiva já haveria no contexto das eleições presidenciais de 1994 uma sinalização de que o PT estaria prestes a tomar essa direção Nas palavras do pesquisador se permanecesse em oposição inflexível o PT estaria afastado do poder fosse por um longo período fosse indefinidamente mas garantindo com isso a polarização necessária para manter a estrutura fundamental do novo sistema Se ao contrário o PT fizesse o movimento em direção ao peemedebismo também a continuidade do novo arranjo deveria estar de alguma maneira garantida já que significaria a aceitação da lógica do Plano Real e seu novo padrão de desenvolvimento econômico subordinado para o país NOBRE 2013 p 54 Podemos observar que este percurso de caminhar ao centro ou à direita como denunciaram os mais radicais é tradicional na política brasileira Mais do que isso o conteúdo citado seria também 367 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 a base de algumas justificativas desta vez enunciadas como positivas da mudança de postura do PT o partido precisaria chegar ao poder para realizar transformações sociais defendidas historicamente ainda que parcialmente Entretanto na conjuntura brasileira tal escalada não seria possível se o partido continuasse a insistir naquela imagem dura inflexível e radical de sua fundação Mesmo assim Vianna 2006 p 94 considera que em 1998 a esquerda brasileira ainda se abstinha de consolidar alianças na direção do centro político Chegando em 2002 a esquerda busca o centro seja em sua política de alianças seja no discurso moderado Nessa linha de raciocínio o autor aponta a importância da articulação do PT na conquista do pleito eleitoral de 2002 ao afirmar que o movimento de ida ao centro por parte do PT pôde credenciá lo a estabelecer alianças com significativos setores dessa tradição republicana VIANNA 2006 p 98 Dessa maneira e voltando às críticas constantemente nos é dito que o PT teria entrado no pleito de 2002 para vencer a disputa a qualquer preço não se importando com os novos rumos aos quais o partido se subordinaria Reis 2007 p 17 acrescenta nesse sentido que o PT preparouse profissionalmente para a campanha de 2002 Na condição de grande partido que já era arrecadou finanças consideráveis Em seguida moderou o discurso político um processo que já vinha se desdobrando desde a campanha de 1994 mas que alcançaria em 2002 com a Carta aos Brasileiros um novo patamar Finalmente articulou assessoria de marketing que viabilizaria a proposta do candidato através dos meios de comunicação além de tratar do seu visual despindo Lula de quaisquer vestígios que o pudessem assimilar a uma liderança radical itálicos do autor Dessa forma estudiosos apontam o ano de 2002 como um marco na materialização das mudanças de direção do Partido dos Trabalhadores tanto com a moderação de pautas de cunho mais radical de esquerda quanto com a atuação de profissionais de marketing que puderam atuar na imagem e na própria campanha de um modo geral Considerando as consequências da vitória de Lula Iasi 2014a visualiza a gestão do PT por outro ângulo considerando que quando o assunto era a questão social o governo buscou proximidade com setores da grande burguesia monopolista Para ele nessa dinâmica parte da burguesia teria sequestrado a representação da classe trabalhadora Assim a gestão Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 368 do PT teria ofuscado a importância da luta de classes tão alimentada por ele em sua fundação e anos posteriores priorizando uma administração mais preocupada com o capital Para o autor essas ações limitaram o governo do PT que atalhou pelo caminho do reformismo fraco em detrimento de um reformismo forte Dessa forma para não romper com as exigências do mundo do capital isto é com os anseios da burguesia monopolista o governo petista precisou contingenciar consideravelmente as demandas dos trabalhadores Consequentemente o PT arquitetado tradicionalmente sob um viés socialista ou de defesa dos direitos e interesses dos oprimidos teria se transformado no articulador da burguesia monopolista no país Iasi 2014b afirma desse modo que na gestão do PT o Brasil teria finalmente transitado do status da dominação burguesa sem hegemonia para o status de dominação burguesa com hegemonia Nas palavras do pesquisador o preço da governabilidade e do aparente sucesso de governo é o desarme das condições políticas organizativas e de consciência de classe que poderiam apontar para uma ruptura com a ordem do capital O que presenciamos aqui é paradoxalmente o fato que a experiência do PT se não levou à meta socialista suposta inicialmente cumpriu factualmente uma outra tarefa encerrou o ciclo de consolidação da revolução burguesa no Brasil IASI 2014b p 17 Isso pode ser explicado também em função de várias críticas que partidos políticos tidos como mais à esquerda tais como o PCB o PSTU ou o PSOL por exemplo fizeram à gestão petista após 2002 o partido teria investido no aumento de crédito e na solução dos impasses sociais mais pela via do consumismo desenfreado do que por reformas estruturais profundas como as reformas política agrária urbana previdenciária e tributária mais pela via do ajuste do salário mínimo acima da inflação do que pelos caminhos de um salário mínimo tal e qual sugerido por exemplo pelo DIEESE Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos7 Nesse sentido Safatle 2013 7 No link a seguir se pode ver o valor do salário mínimo sugerido pelo DIEESE baseado na cesta básica desde 1994 httpwwwdieeseorgbranalisecestabasica salarioMinimohtml 369 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 avalia de forma também crítica que o governo do PT 20032010 demonstrou uma evidente incapacidade de gerenciar os impasses do presidencialismo de coalizão brasileiro Para ele é como se a governabilidade justificasse a acomodação final da esquerda nacional a uma semidemocracia imobilista de baixa participação popular direta e com eleições que só se ganha mobilizando de maneira espúria a força financeira com seus corruptores de sempre SAFATLE 2013 p 14 Por outro lado Mattoso 2013 considera que o que houve foi um novo modelo de política que de maneira sutil deixava de priorizar a indústria e o crescimento econômico sob o viés das exportações priorizava um pouco diferentemente a expansão do mercado interno valorizando o papel do Estado popularizando o crédito e ampliando as políticas sociais nos primeiros 10 anos em que esteve à frente do país Dessa maneira o governo buscava mostrar o reconhecimento geral de que as políticas sociais beneficiavam além da inclusão social a redução da desigualdade e da pobreza favorecendo a economia e o crescimento do PIB Nessa direção o pesquisador faz a seguinte consideração de cariz mais positivo na verdade o evidente sucesso dos governos eleitos após 2002 não se deveu exclusivamente à esfera da economia ou do social mas ao uso de políticas inovadoras capazes de articular o econômico e o social e potencializar o crescimento a produtividade e a institucionalidade gerando algo inexistente ao longo das duas décadas anteriores o desenvolvimento Depois de anos de neoliberalismo de subordinação aos interesses rentistas e de ausência de políticas econômicas pródesenvolvimento fortaleceuse o uso de políticas desenvolvimentistas e de combate à pobreza mais intensamente após 2006 com a mais efetiva articulação do econômico e do social e com o enfrentamento das crises internacionais com políticas inovadoras e anticíclicas MATTOSO 2013 p119120 Como se vê até aqui estamos longe de um consenso sobre o problema ou melhor são complexas as críticas da mudança assim como as mudanças da crítica Sem entrar em maiores detalhes esse pequeno panorama pôde nos dar uma ideia mínima da relevância da questão aqui abordada assim como da densidade eou variedade de pontos de vista Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 370 mais ou menos negativos ou positivos O que podemos perceber com esses apontamentos é que a transformação do Partido dos Trabalhadores salta aos olhos daqueles que acompanham o percurso da legenda ou seja a mudança em si não é contestada embora essa transformação venha acompanhada de julgamentos distintos nos planos social e acadêmico Como se pode constatar o problema é bastante complexo e não desprovido de emotividade se observamos os julgamentos variados da metamorfose discursiva e comportamental do PT Outro complicador é o que poderíamos entender por certos termos citados neste artigo que dizem respeito a uma filosofia políticodiscursiva tais como direita esquerda e até mesmo centro Nesse caso Bobbio 1995 nos esclarece que a tão difundida dicotomia direita e esquerda foi considerada obsoleta por vários pensadores após a queda do muro de Berlim Não obstante afirmar isso categoricamente seria algo temerário uma vez que a díade se encontra no cerne do debate político contemporâneo sendo reivindicada como bandeira por vários setores políticos e movimentos sociais Dito de outra forma os termos direita e esquerda são ainda largamente utilizados para fazer menção a diferenças no pensar e no agir políticos O ponto complicador é que não se pode chegar a uma verdade definitiva ou essencial sobre o binômio visto que direita e esquerda não são conceitos absolutos mas historicamente relativos BOBBIO 1995 p 81 Citando Marco Revelli o autor ainda arremata Direita e esquerda não são conceitos absolutos São conceitos relativos Não são conceitos substantivos ou ontológicos Não são qualidades intrínsecas ao universo político São lugares do espaço político Representam uma determinada topologia política que nada tem a ver com a ontologia política Não se é de direita ou de esquerda no mesmo sentido em que se diz que se é comunista liberal ou católico Em outros termos direita e esquerda não são palavras que designam conteúdos fixados de uma vez para sempre BOBBIO 1995 p 9192 Esse é um grande problema que também atravessa o nosso objeto de análise enquanto muitos definem o PT da Carta de 2002 como uma instituição que caminhou para o centro e até mesmo para a direita seus partidários continuam reivindicando a etiqueta de partido de esquerda não obstante mudanças significativas tenham ocorrido no discurso e no agir político da legenda desde a Carta de 1979 Sendo assim não cabe a este trabalho definir categoricamente o que seria direita ou esquerda 371 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 pois se trata de noções históricas cambiantes Prova disso é que são catalogadas várias tipologias de direita autoritária conservadora liberal etc e esquerda reformista revolucionária para ficar com dois exemplos Com a ajuda de Bobbio no entanto poderíamos traçar linhas ou princípios gerais que poderiam pelo menos funcionar como um guia básico para a nossa reflexão independentemente das flutuações históricas Nesse sentido o autor com base em outros tantos pensadores nos informa que a direita possui ainda um apego sistemático à tradição ou seja às práticas tradicionais e conservadoras do fazer político agarrandose correntemente à manutenção da ordem e às hierarquias ou desigualdades sociais Isso implica obviamente dizer que as suas práticas efetivas no campo social caminhariam nessa direção independentemente de qualquer discurso eleitoral Já os valores da esquerda desembocariam na emancipação dos homens principalmente dos mais explorados no sentido de libertar os indivíduos das amarras impostas pelos privilégios de raça casta classe etc Essa diferenciação básica apesar de problemática parece estar na origem das críticas ao PT vistas acima principalmente a partir de 2002 O seu vínculo ao campo da tradição estaria denunciado pela aliança ao empresariado representada como já visto pelo vice de Lula José Alencar mas também pela apregoada continuidade da política econômica neoliberal de Fernando Henrique Cardoso passando pelas concessões a setores conservadores como as bancadas evangélica e ruralista Parece ser nesse sentido curiosamente até mesmo a avaliação positiva empreendida por Vianna 2006 p 98 ao afirmar que o movimento de ida ao centro por parte do PT pôde credenciálo a estabelecer alianças com significativos setores dessa tradição republicana grifo nosso No entanto como foi afirmado setores de diversos movimentos sociais como o Movimento dos Sem Terra não sem críticas pontuais e apoiadores do PT ainda continuaram a considerálo mesmo assim como um partido autenticamente de esquerda o que prova mais uma vez que os conceitos são cambiantes e que não caberia a este trabalho encerrar ou julgar essa questão Nesse caso os critérios para se definir o seu estatuto legítimo de esquerda estariam no combate à pobreza e na amplitude das políticas sociais Contornando essa questão portanto nosso objetivo a seguir será apenas mostrar de forma panorâmica o que uma leitura retóricodiscursiva poderia acrescentar sobre o entendimento Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 372 das mudanças simbólicas do partido a partir de nossos Anexos até mesmo para contribuir para debates futuros 3 O que dizem as cartas o ethos do PT em perspectivas Como se sabe o ethos se define retoricamente como as imagens de si decorrentes de acontecimentos discursivos AMOSSY 2008 2010 Como diria Maingueneau 2008 os textos orais e escritos atribuem explicita ou implicitamente um tom específico ou uma determinada corporalidade aos seus enunciadores não apenas em função do conteúdo que escolhemproferem mas também em função de como eles enunciam o que nos coloca diante de seleções linguísticas significativas do ponto de vista retórico Por conta dos limites deste artigo e por ser uma noção já bastante abordada em textos sobre a Retórica e a Análise do Discurso não faremos uma explanação teórica mais ampla sobre a noção de ethos Ao leitor não familiarizado com a questão sugerimos a consulta dos textos de Galinari 2012 Maingueneau 2008 e Amossy 2008 com os quais este artigo se encontra em consonância Sendo assim a seguir buscaremos mostrar em termos bem gerais as imagens partidárias produzidas pelas Cartas do PT de 1979 e 2002 respectivamente8 Em termos linguísticos buscaremos nos ancorar em mecanismos diversos presentes nos textos mas em um grau um pouco maior nos chamados índices de modalização direcionandoos para a construção do ethos com alguns esclarecimentos conceituais oportunos em notas de rodapé9 8 Por serem textos relativamente extensos não faremos uma análise minuciosa linha a linha mas apenas discutiremos alguns trechos que julgamos serem representativos do conjunto de cada obra Nessa perspectiva o artigo também não contém um investimento teórico denso sobre o ethos e demais categorias conceituais da linguística Por um lado por se tratarem de categorias já bastante conhecidas e por outro para que a análise de nosso objeto principal o conteúdo dos Anexos não fique prejudicada 9 O fenômeno linguístico da modalização permitenos realizar o caminho que vai do enunciado à enunciação Tratase aqui de uma série de elementos da língua que não se referem propriamente ao que se diz ou seja ao conteúdo asseverado pelas sentenças mas ao como se diz Para tanto a linguagem possui termos ou expressões modalizadoras que nos ajudam a apreender no discurso as marcas linguísticas de sua instância produtora Os índices linguísticos de modalização podem ser de várias ordens a organização frástica assertiva interrogativa imperativa exclamativa modos e tempos verbais expressões adverbiais predicados cristalizados com adjetivos é 373 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 31 A Carta de 1979 Anexo I No Anexo I de 1º de maio de 1979 notase que a modalidade enunciativa10 predominante é composta por asserções em 3ª pessoa intercaladas em alguns momentos com o uso do nós linhas 5562 e 144151 sobretudo O manejo dominante da 3ª pessoa promoveria a nosso ver um certo efeito de objetividade para o discurso seja para se descrever o próprio PT como se este estivesse fora da enunciação seja para se construir uma análise crítica da conjuntura brasileira tematizando pontos fulcrais como a própria sociedade a exploração dos oprimidos pelas elites os processos de luta dos trabalhadores ou os perfis políticos de partidos como o PTB e o MDB Vejamos um trecho inicial a ideia da formação de um partido só dos trabalhadores é tão antiga quanto a própria classe trabalhadora Numa sociedade como a nossa baseada na exploração e na desigualdade entre as classes os explorados e oprimidos têm permanente necessidade de se manter organizados à parte para que lhes seja possível oferecer resistência séria à desenfreada sede de opressão e de privilégios das classes dominantes Anexo I linhas 16 Além da tematização da nova ideia de formação de um partido só de trabalhadores organizados à parte11 o fragmento é sintomático de um conteúdo um eles que se encontra repisado durante toda a Carta de alta relevância para a edificação do ethos Tratase da dicotomia certo é preciso é necessário performativos eu ordeno eu prometo eu te proíbo verbos auxiliares poder dever ter quede haver de precisar de verbos de atitude proposicional eu creio eu sei eu duvido eu acho a entonação e demais marcadores prosódicos etc Para maiores detalhes ver Neves 2011 Paveau e Sarfati 2006 e Galinari 2018 10 A partir de Perelman OlbrechtsTyteca 2002 p 182184 além de outros estudos variados em linguística podemos dizer que as modalidades enunciativas referem se ao manejo dos pronomes pessoais de modo a mostrar um maior ou menor grau de subjetividadeobjetividade no discurso Nesse caso a enunciação em 1ª pessoa produziria um efeito de subjetividade a enunciação em 2ª pessoa um efeito de interlocução a enunciação em 3ª pessoa um efeito de objetividade 11 Expressões adverbiais como à parte ou só fazem parte das modalidades epistêmicas comentadas mais adiante neste artigo Neste momento o foco incide sobre a modalidade enunciativa em terceira pessoa que permite ao texto tratar de referentes no mundo social e político Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 374 retórica profunda e de feições classistas entre os de baixo e os de cima linhas 111113 Os primeiros colocados sempre na dinâmica da luta seriam os explorados e oprimidos como se vê no fragmento acima Esses objetos de referência encontramse atualizados ao longo de todo o texto designados por outras expressões retóricas o operariado e os setores proletarizados de nossa população linhas 1314 o povo brasileiro linha 63 as massas trabalhadoras exploradas e oprimidas linhas 113 144 192 e 233 Já os de cima por seu turno apresentados na citação anterior como as classes dominantes atualizamse também no desenrolar do texto a partir do uso de expressões também carregadas de sentido os patrões e o governo linha 27 os partidos e governos criados e dirigidos pelos patrões e pelas elites políticas linhas 6768 como o PTB de Vargas e o MDB com seu programa prócapitalista os detentores do poder linha 91 as elites privilegiadas linha 165 o modelo econômico vigente linha 156 e os setores do empresariado nacional linhas 198199 Dessa forma o novo partido se funda radicalmente com um ethos classista isto é engajado na luta pelos trabalhadores e além disso corajoso colocandose de forma destemida à disposição dos mais necessitados para os embates necessários contra os famigerados patrões e os programas prócapitalistas da burguesia dominante Tratase assim de um partido só de trabalhadores organizados à parte advérbios que modalizam um tom convicto quando combinado ao estilo assertivo em 3ª pessoa assegurando categoricamente um ethos de partido de massas expressão presente explicitamente na linha 192 Nessa toada na continuidade do fragmento acima apresentado o PT se mostra também seguro em relação àquilo que diz isto é sem deixar margens para dúvidas descrevendo após a linha 7 o processo emancipatório de combate dos trabalhadores contra o jugo servil da elite incluindo as greves deflagradas as tentativas de sabotagem do governo e dos patrões o posicionamento de outros partidos a situação do país etc Podemos acrescentar que essa análise de conjuntura descrita minuciosamente não apenas no início mas também ao longo de toda a Carta de 1979 daria retoricamente ao PT e seus signatários ares de expertise de conhecimento aprofundado da realidade brasileira apontando tanto para um ethos politizado quanto para a imagem quase técnica oriunda do vocabulário dos cientistas sociais de um bom observador crítico de seu tempo e de sua história 375 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 Em função do quadro político brasileiro da opressão sofrida pelos mais necessitados o novo partido é posto como se vê também na citação anterior como uma necessidade de sobrevivência da classe operária têm permanente necessidade de mostrando mais uma vez o grau acentuado de certeza e de convicção da instância oratória engajamento que se repete a seguir é por isso que a ideia de um partido dos trabalhadores ressurgindo no bojo das greves do ano passado e anunciado na reunião intersindical de Porto Alegre em 19 de janeiro de 1979 tende a ganhar hoje uma irresistível popularidade Porque se trata hoje mais do que nunca de uma necessidade objetiva para os trabalhadores Anexo I linhas 4649 Devemos entender a irresistível popularidade do PT justamente diante do quadro adverso para os mais pobres quadro descrito em praticamente toda a Carta o que necessariamente exige uma organização à parte da classe trabalhadora Dessa forma o ethos de conhecimento aprofundado da realidade brasileira dos pobres e de consciência política assim como de firmeza e engajamento classista teria despertado determinadas reações dos outros partidos que ostentariam fachadas democráticas para usar uma expressão da linha 68 receosos do crescimento da nova sigla As classes dominantes portanto cientes da organização partidária crescente dos trabalhadores ou melhor do próprio PT se apressam a sair a campo com suas propostas de PTB Mas essas propostas demagógicas já não conseguem iludir os trabalhadores que nem de longe se sensibilizaram com elas Esse fato comprova que os trabalhadores brasileiros estão cansados das velhas fórmulas políticas elaboradas para eles Agora chegou a vez de o trabalhador formular e construir ele próprio seu país e seu futuro Anexo I linhas 5055 O trecho é bastante significativo mais uma vez do comportamento enunciativo ou ethos da nova instância partidária mostranos uma arguta capacidade de análise conjuntural do país perscrutando as dinâmicas sociais de ação e reação de forças políticas antagônicas Uma postura firme de coragem e empenho se apresenta assim em forma de denúncia de propostas demagógicas vãs incapazes de iludir a classe trabalhadora o que corrobora um ethos de enunciador seguro convicto e propenso Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 376 a transmitir confiança a quem o lê ou escuta Além do tom assertivo em 3ª pessoa com verbos semanticamente carregados no presente do indicativo esse ethos é amplificado pelo uso de modalidades linguísticas epistêmicas12 tais como na citação acima a expressão adverbial nem de longe agora chegou a vez de ou ainda fórmulas como esse fato comprova que com as quais o enunciador mostra um grau acentuado de certezafirmeza diante do conteúdo asseverado Expressões ou advérbios já salientados como só à parte e têm permanente necessidade de também atestam esse grau acentuado de certeza epistêmica podendo assumir também um caráter deôntico de palavra de ordem apontando mais uma vez para um ethos convictomilitante Procedimentos semelhantes são adotados quando o assunto é o MDB com o acréscimo das chamadas modalidades apreciativas13 em itálico o MDB por sua origem por sua ineficácia histórica pelo caráter de sua direção por seu programa prócapitalista mas sobretudo por sua composição social essencialmente contraditória em que se congregam industriais e operários fazendeiros e peões comerciantes e comerciários enfim classes sociais cujos 12 As chamadas modalidades epistêmicas com base em Neves 2011 se caracterizam como elementos linguísticos imbuídos de um valor modal referente à possibilidade e à necessidade em termos da expressão do conhecimento e da crença da certeza e da incerteza do possível e do impossível Uma série de advérbios ou expressões adverbiais as caracterizam certamente possivelmente com certeza quem sabe talvez etc dando ao enunciador um caráter convicto ou duvidoso diante do conteúdo proposicional asseverado 13 A partir de Paveau e Sarfati 2006 podemos afirmar que as modalidades apreciativas são caracterizadas por uma série variada de expressões nomessubstantivos adjetivos advérbios e até mesmo verbos propícios a qualificar algo Dito de outra forma ao serem escolhidos ou combinados tais elementos podem apreciar seres objetos ou eventos mostrando de certa forma a subjetividade do enunciador ou o seu ethos diante dos referentes construídos pelo discurso Nesse sentido é importante esclarecer que certas expressões já destacadas acima produzidas em uma moldura enunciativa em terceira pessoa como os de baixo os explorados e oprimidos versus os de cima as classes dominantes as elites privilegiadas etc são exemplos vivos de modos de apreciação específicos Não podemos esquecer que as modalidades se interpenetram e só possuem sentido em um contexto em que por exemplo o efeito de objetividade em terceira pessoa pode formar um quadro enunciativo propício para a emergência retórica de qualificadores de elementos no mundo 377 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 interesses são incompatíveis e nas quais logicamente prevalecem em toda a linha os interesses dos patrões jamais poderá ser reformado A proposta que levantam algumas lideranças populares de tomar de assalto o MDB é muito mais que insensata é fruto de uma velha e trágica ilusão quanto ao caráter democrático de setores de nossas classes dominantes Aglomerado de composição altamente heterogênea e sob controle e direção de elites liberais conservadoras o MDB temse revelado num passado recente um conduto impróprio para expressão dos reais interesses das massas exploradas brasileiras Anexo I linhas 121133 Itálico nosso Aqui podemos encontrar portanto além dos indícios epistêmicos de acentuada convicção e militância jamais poderá ser é muito mais que algo representativo do que acontece no documento como um todo uma série de expressões nominais e adjetivas em itálico destinadas a qualificar fenômenos sociais da realidade brasileira no caso o MDB reforçando um ethos de conhecimento profundo e crítico do contexto político nacional com feições de enfrentamento corajosamente classista Passando adiante essa seria a moldura ethica de uma série de atos de fala emparelhados sistematicamente da linha 156 até o final do documento trecho também preenchido por diversos indícios de convicção epistêmica Referimonos à repetição exaustiva obstinada de uma mesma estrutura sintática significativa tendo como sujeito o PT ou o Partido dos Trabalhadores e uma predicação verbal asseverativa A nosso ver esse longo repisar sintático presente do começo ao fim do trecho assinalado seria capaz de somar às dimensões ethicas já vistas um caráter obstinado e incansável o que poderia demonstrar institucionalmente tenacidade firmeza e empenho pela própria forma da enunciação Sem entrar em maiores detalhes pela extensão do trecho referido basta atentarmonos para os seguintes fragmentos o PT sempre como sujeito denuncia linha 156 defende linha 159 entende linhas 162 166 e 174 proclama linhas 171 177 e 184 afirma linha 186 e 211 se declara linha 190 e 230 recusase linha 197 definese linhas 208 e 210 não pretende linhas 207 e 227 se constituirá linha 215 respeitará linha 216 irá promover linha 220 etc Ressaltamos aqui o tom explícito de promessa dos últimos quatro verbos assinalados a maior parte deles conjugada no futuro o que assinala um ethos de engajamento e compromisso público mas não apenas outros atos de fala se interpenetram sempre a partir da linha 156 num misto de Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 378 promessas asserçõesdefinições declarações proclamações denúncias recusas etc mostrandonos um partido assertivamente sem patrões linha 195 predestinado a acabar com a relação de exploração do homem pelo homem linha 205 além de solidário para com as massas oprimidas do mundo linhas 232233 Dito isso cabenos ressaltar ainda um último aspecto do ethos também presente na Carta de 1979 em particular nos trechos enunciados na primeira pessoa do plural nós dirigentes sindicais não pretendemos ser donos do PT mesmo porque acreditamos sinceramente existir entre os trabalhadores militantes de base mais capacitados e devotados a quem caberá a tarefa de construir e liderar nosso partido Estamos apenas procurando usar nossa autoridade moral e política para tentar abrir um caminho próprio para o conjunto dos trabalhadores Temos a consciência de que nesse papel neste momento somos insubstituíveis e somente em vista disso é que nós reivindicamos o papel de lançadores do PT Anexo I linhas 5562 Itálico nosso A primeira pessoa do plural nós reforça mais claramente um ethos de enunciador coletivo até mesmo pela assinatura no final do documento a Comissão Nacional Provisória No entanto esse nós é bem delineado por um aposto singular os dirigentes sindicais o que confere à nascente instituição uma imagem não apenas classista mas sobretudo de sindicalistas Curiosamente mesmo assim tal instância busca produzir um efeito de modéstia e de posicionamento democrático inclusivo não reivindicam para si uma propriedade do partido pois acreditam ser essa a tarefa dos próprios trabalhadores postos como mais capacitados e devotados para conduzir o seu próprio combate O PT se colocaria assim como uma instância aberta inclusiva e democrática sendo os dirigentes sindicais insubstituíveis mas apenas na medida em que cumprem um papel de pontapé inicial para a fundação da legenda devido à sua autoridade moral e política de defensores históricos da classe trabalhadora Isso só viria corroborar mais uma vez o ethos classista e coletivo que vínhamos sublinhando para o partido ainda não personificado simbolicamente na figura singular de um líder como o próprio Lula por exemplo Como veremos a seguir algo diverso acontece em termos de ethos na Carta ao Povo Brasileiro de 2002 379 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 32 A Carta de 2002 Anexo II Como se sabe a Carta ao povo brasileiro assinada por Luiz Inácio Lula da Silva data de 22 de junho de 2002 momento precedente às eleições presidenciais daquele ano No plano enunciativo não notamos uma predominância quase exclusiva de asserções em 3ª pessoa ele como vimos no Anexo I Tal modalidade enunciativa embora significativa convive agora com mais intensidade com o uso da 1ª pessoa do plural nós e ainda com a aparição emblemática da 1ª pessoa do singular eu Essa mixagem enunciativa do Anexo II já pode ser notada nas palavras iniciais a partir das quais mostraremos como se dá a construção de referentes importantes e significativos para o ethos do PT nesse documento em contraste com a Carta de 1979 o Brasil quer mudar Mudar para crescer incluir pacificar Mudar para conquistar o desenvolvimento econômico que hoje não temos e a justiça social que tanto almejamos Há em nosso país uma poderosa vontade popular de encerrar o atual ciclo econômico e político Se em algum momento ao longo dos anos 90 o atual modelo conseguiu despertar esperanças de progresso econômico e social hoje a decepção com os seus resultados é enorme Oito anos depois o povo brasileiro faz o balanço e verifica que as promessas fundamentais foram descumpridas e as esperanças frustradas Anexo II linhas 18 Itálico nosso Sem perder de vista a pertença do texto a um ano eleitoral 2002 assim como a sua possibilidade de interferência no ethos institucional do PT e não apenas do candidato Lula que não é o nosso objeto específico podemos observar que o referente central aqui talhado já não é mais composto pela mesma dicotomia encontrada anteriormente A pujante antítese cunhada em 1979 entre os de cima e os de baixo ou seja entre as elites dominantes e as massas exploradas encontrase agora substituída por outra forma de polarização o atual modelo linhas 5 14 18 26 49 61 representado pelas gestões de Fernando Henrique Cardoso PSDB e o novo modelo linha 54 aglutinado pela figura de Lula ou melhor pela nossa candidatura linha 30 A gestão do PSDB também atualizada como atual ciclo econômico e político linhas 34 governo Fernando Henrique Cardoso linha 67 ou simplesmente como atual governo linhas 88 e 123 é descrita de forma objetiva e crítica em diversas partes do Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 380 documento O atual modelo é figurado por exemplo como uma enorme decepção por frustrar esperanças e descumprir promessas linhas 58 é posto como um modelo político esgotado e fracassado tendo submetido o país ao risco iminente de uma estagnação crônica linhas 1319 foi incapaz de tomar as necessárias medidas corajosas e cuidadosas para a mudança que a sociedade desejava linhas 2426 nesse sentido é posto também como responsável pela crise econômica financeira e social pela qual o país atravessava por não tomar as providências pertinentes diante das turbulências do mercado linhas 6062 6870 8892 De forma semelhante ao Anexo I notamos no PT a partir da assinatura de Lula um ethos firme de partido crítico combativo e engajado num projeto político para o país dada a riqueza de modalidades apreciativas presentes nos trechos assinalados acima Encenase com tudo isso mais uma vez uma imagem enunciativa de conhecedor profundo tanto da realidade brasileira quanto de seus adversários Mas o que chama a atenção nessa dinâmica é o desaparecimento do ethos classista de outrora Ou seja o combate se dá agora entre modelos de gestão atual modelo x novo modelo e não mais entre classes sociais que deveriam organizarse à parte os de cima x os de baixo Isso fica ainda mais claro em trechos como os seguintes O Brasil quer mudar Mudar para crescer incluir pacificar Anexo II linha 1 Itálico nosso A crescente adesão à nossa candidatura assume cada vez mais o caráter de um movimento em defesa do Brasil de nossos direitos e anseios fundamentais enquanto nação independente Lideranças populares intelectuais artistas e religiosos dos mais variados matizes ideológicos declaram espontaneamente seu apoio a um projeto de mudança do Brasil Prefeitos e parlamentares de partidos não coligados com o PT anunciam seu apoio Parcelas significativas do empresariado vêm somarse ao nosso projeto Tratase de uma vasta coalizão em muitos aspectos suprapartidária que busca abrir novos horizontes para o país Anexo II linhas 3037 Itálico nosso Em primeiro lugar curiosamente notamos que termos como operariado trabalhadores massas exploradas oprimidas setores proletarizados etc além da palavra luta não se encontram grafados no Anexo II que opta por expressões mais genéricasabstratas 381 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 para se referir à população esvaziadas de um possível conteúdo classista tais como o Brasil linha 1 nosso povo linha 9 povo brasileiro vide título linhas 7 38 10614 O mesmo se pode averiguar em relação a expressões como classes dominantes elites patrões etc também silenciadas no texto de 2002 Sendo assim poderíamos cogitar que no lugar do ethos classista de antes temos agora a construção retórica de um caráter mais nacionalista para o partido o Brasil defesa do Brasil nosso povo povo brasileiro baseado em uma política de coalização e pacificação dos conflitos ideológicos Além dos termos acima em itálico atestam essa postura ethica pacificadoranacionalistaconciliadora expressões como autêntica aliança pelo país linha 57 a disposição para dialogar com todos os segmentos da sociedade e com o próprio governo linha 105 a proposta de construção de um Brasil mais solidário e fraterno um Brasil de todos linha 119 além do gran finale enunciado por Lula chamo todos os que querem o bem do Brasil a se unirem em torno de um programa de mudanças corajosas e responsáveis linhas 156157 itálico nosso Contrariamente aos velhos tempos portanto o PT outrora ancorado em uma autoridade moral e política de sindicalistas isto é de defensores históricos da classe trabalhadora a serviço de uma organização partidária dos oprimidos independente assume agora o papel de aglutinador de uma vasta coalizão suprapartidária composta por setores ideologicamente difusos empresários e trabalhadores setores de variados matizes ideológicos etc Como nos mostram mais uma vez os termos em itálico acima tratase de uma postura institucional ou ethos diametralmente oposta às imagens de si projetadas pelo Anexo I como ressaltamos Anexo I linhas 121133 o que se rechaçava em 1979 era justamente a crença ilusória na possibilidade de qualquer partido de composição sócioideológica heterogênea no caso o MDB representar verdadeiramente as camadas exploradas Em 2002 porém a luta de classes e a exortação a uma organização à parte dos trabalhadores como solução de mudança e bemestar social são substituídas pelas ideias patrióticas de solidariedade fraternidade e união de todos em prol de mudanças corajosas e responsáveis 14 A palavra massas encontrase na linha 41 mas associada ao consumo de massas e não a uma classe social laboriosa propriamente dita Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 382 Encaixandose ao que parece no próprio perfil anteriormente combatido o PT de 2002 também aparenta ostentar diferentemente de seus primórdios um conhecimento aprofundado mas desta vez no plano jurídicoeconômico eou financeiroadministrativo o que possivelmente esclarece o significado da expressão mudanças responsáveis referida logo acima Se antes os jargões predominantes eram aqueles do cientista social propensos a descrever sóciopoliticamente a conjuntura em que se vivia e a situação dos explorados dentro de um viés acentuadamente classista a corporalidade do enunciador da Carta de 2002 para usar uma terminologia de Maingueneau 2008 já irradiaria uma expertise técnica característica dos campos econômico e mercadológico Sem entrar em detalhes notamos isso em diversas e exaustivas expressões próprias dessas esferas que se interpenetram continuamente na manutenção temática de tópicos de gestão ao longo do texto15 voltar a crescer gerar empregos redução de nossa vulnerabilidade externa mercado interno consumo de massas novo contrato social crescimento com estabilidade respeito aos contratos mercado financeiro dívida interna e externa endividamento público nervosismo dos mercados especulação Banco central aplicações financeiras investidores populismo cambial ancora fiscal finanças públicas exportações importações combate à inflação geração de empregos juro alto oscilação cambial dívida pública equilíbrio fiscal superávit primário etc Como se pode notar o ethos aqui projetado embora não descarte a questão social se sedimenta substancialmente dentro da competência na área financial e econômica possibilitando uma imagem partidária favorável no que tange ao mérito da gestão eficiente responsável e competente Por um lado podese cogitar teríamos com tal atitude uma resposta ou promessa diante da crise econômica e do nervosismo dos mercados que abalavam a sociedade brasileira em 2002 o chamado Risco Brasil Isso porque pairava no ar como se sabe uma suposta ameaça de que Lula com a sua vitória não honraria os contratos podendo assim arremessar o Brasil em apuros jurídicoinstitucionais Mas por outro lado essa nova postura ethica teria visado eleitoralmente 15 Vide principalmente mas não apenas os fragmentos entre as linhas 1923 3841 5674 8083 8896 e praticamente todo o trecho em que Lula fala em primeira pessoa a partir da linha 114 até o final do documento 383 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 construir uma imagem do PT não apenas afeita à competência estrita na área políticosocial como rezava a sua reputação ou ethos prévio precisavase associar a legenda também a uma capacidade de gestão eficiente e responsável É nesse quadro descrito até agora caracterizado por uma imagem enunciativa nacionalista suprapartidária e técnica do ponto de vista econômicoadministrativo que o PT se lança como modelo alternativo à gestão atual com a promessa de mudar o Brasil O comportamento promissivo e oscilante entre ousadia plano social e responsabilidade plano econômico pode ser constatado de modo bem representativo nos seguintes trechos o novo modelo não poderá ser produto de decisões unilaterais do governo tal como ocorre hoje nem será implementado por decreto de modo voluntarista Será fruto de uma ampla negociação nacional que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país a um novo contrato social capaz de assegurar o crescimento com estabilidade Anexo II linhas 5460 Itálico nosso Quero agora reafirmar esse compromisso histórico com o combate à inflação mas acompanhado do crescimento da geração de empregos e da distribuição de renda construindo um Brasil mais solidário e fraterno um Brasil de todos Anexo II linhas 117119 Itálico nosso Há outro caminho possível É o caminho do crescimento econômico com estabilidade e responsabilidade social As mudanças que forem necessárias serão feitas democraticamente dentro dos marcos institucionais Vamos ordenar as contas públicas e mantêlas sob controle Mas acima de tudo vamos fazer um Compromisso pela Produção pelo emprego e por justiça social Anexo II linhas 148152 Itálico nosso Fica claro aqui a partir das expressões e conectivos em itálico mas com e a assunção de um ethos conciliador e aglutinador de um novo contrato social capaz de alcançar pretensamente as tão sonhadasousadas mudanças sociais responsabilidade social geração de emprego distribuição de renda justiça social porém mas com estabilidade econômica e controle da inflação É nesse sentido também que podemos entender as diversas promessas equilibradas entre a ousadia plano social e a responsabilidade plano econômico tais como o incremento da atividade econômica com políticas sociais consistentes Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 384 e criativas o compromisso com as reformas estruturais tributária agrária previdenciária trabalhista e urbana linhas 3848 a valorização do agronegócio e a um só tempo da agricultura familiar linhas 9798 a promoção do equilíbrio fiscal eou preservação do superávit primário como meio para o crescimento e não como fim linhas 131137 Com tudo isso emerge a convicção política de que um Brasil de todos poderia ser construído apenas com medidas capazes aparentemente de agradar a totalidade absoluta das frações da sociedade plasmadas solidariamente em uma única entidade abstrata o povo o Brasil Dito isso podemos ainda afirmar que além desse ethos de conciliação nacionalista nãoclassista imbuído de uma competência técnica tanto na área social quanto sobretudo no campo responsável da gestão técnica econômica e jurídica o PT se diferencia em 2002 apresentandonos uma imagem institucional já encarnada na figura emblemática do líder Esse efeito de personificação do partido é possibilitado podemos cogitar seja pela assinatura particular de Lula e não mais da instituição como em 1979 seja pela enunciação em primeira pessoa do singular principalmente e do plural Como todos os brasileiros quero a verdade completa Acredito que o atual governo colocou o país novamente em um impasse Lembremse todos em 1998 o governo para não admitir o fracasso do seu populismo cambial escondeu uma informação decisiva A de que o real estava artificialmente valorizado e de que o país estava sujeito a um ataque especulativo de proporções inéditas Estamos de novo atravessando um cenário semelhante Anexo II linhas 8893 Itálico nosso Ninguém precisa me ensinar a importância do controle da inflação Iniciei minha vida sindical indignado com o processo de corrosão do poder de comprar dos salários dos trabalhadores Anexo II linhas 114116 Itálico nosso Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos Anexo II linhas 135137 Itálico nosso O Brasil precisa navegar no mar aberto do desenvolvimento econômico e social É com essa convicção que chamo todos os que querem o bem do Brasil a se unirem em torno de um programa de 385 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 mudanças corajosas e responsáveis Anexo II linhas 155157 Itálico nosso A primeira pessoa do plural é oscilante em todo o documento ora o nós inclui em seu espectro semântico o enunciador Lula o PT e os interlocutores a nação brasileira estamos de novo atravessando um cenário semelhante ora se reserva apenas a Lula e o PT como na promessa vamos preservar o superávit primário Mas o fato é que Lula se faz presente em todos esses usos e particularmente se impõe de forma inequívoca como figura de destaque a partir do eu que se aflora em diversos fragmentos É interessante observar que esse novo ethos do PT personificado na figura do líder carismático tem sido denominado por muitos estudiosos das ciências políticas como lulismo fenômeno que conta singelamente ao lado de outros recursos retóricos com a assunção generalizada da primeira pessoa em documentos do partido Não é por acaso que segundo Ricci 2010 p 23 o lulismo teve início na campanha de 1994 mas atingiu sua configuração como engenharia política em 2002 quando se arquitetou a campanha presidencial cristalizandose com a divulgação da Carta ao Povo Brasileiro em junho daquele ano Alterou profundamente o projeto inicial petista que se orientava por um discurso estratégico afiliado à lógica dos movimentos sociais que emergiram nos anos 1980 que por sua vez sustentavamse na declarada autonomia política e na organização horizontalizada com prevalência dos mecanismos de democracia direta cujo discurso assentavase no antiinstitucionalismo e anticapitalismo Dessa forma é possível notar um projeto vertical de poder em vias de se institucionalizar principalmente com a vitória de Lula nas eleições de 2002 sendo o lulismo uma estratégia retórica significativa nesse processo O PT assim fundese com a imagem de seu principal expoente a partir de uma via carismática de identificação diante da população como um todo como se vê nos trechos já assinalados como todos os brasileiros Lula quer a verdade com todos os brasileiros nós atravessa um cenário de crise e acredita na mudança a partir do esforço e da consciência de todos o líder sabe ainda como ninguém ou melhor como os mais pobres dos malefícios da inflação Dessa forma com essa autoridade pessoal e não mais sindical um PT encarnado na figura de Lula conclama a nação para se unir ao redor Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 386 de um programa de mudanças corajosas e responsáveis Em suma o apanágio da esperança como instrumento de mudança deixaria de ser a organização políticoinstitucional coletiva e à parte o partido como em 1979 para se cristalizar no indivíduo e em sua epopeia pessoal a pessoa como em 2002 Enfim tecemos até aqui um cenário de variação ethica do Partido dos Trabalhares da Carta de 1979 à Carta de 2002 Mesmo sem ter condições por questões de limites de abordar mais detalhadamente os dois documentos acreditamos termos tido condições de salientar essas mudanças em termos gerais e significativos com o auxílio de alguns elementos linguísticodiscursivos Dessa forma passamos finalmente às nossas derradeiras reflexões 4 Considerações finais Podemos afirmar que mudanças discursivas significativas ocorreram ao longo dos anos nas imagens de si do Partido dos Trabalhadores Em ambos os Anexos analisados notamos a presença substantiva de um ethos engajado militante e convicto diante dos conteúdos asseverados em função de asserções sólidas e de ocorrências de mecanismos linguísticos de forte sobrecarga epistêmica e apreciativa O tom de promessa atravessa com variações de conteúdo ambos os documentos Entretanto as diferenças na postura parecem ser bem maiores no que tange a várias outras questões politicamente relevantes Em termos gerais a Carta de 1979 nos apresenta um partido de feição radicalmente classista desnudando o conflito entre as elites e as massas exploradas os de cima x os de baixo Aproximandose dos menos favorecidos repisando a ideia de uma organização independente com o povo trabalhador o PT se coloca como um partido de massas e como um instrumento coletivo de luta no sentido de acabar com a exploração do homem pelo homem Nessa perspectiva tratase de um partido sem patrões assentado em uma representatividade pluraldeliberativa democrática ou seja não encarnada ainda nesse ou naquele expoente individual de liderança Notamos assim com a ajuda de Bobbio 1995 que nesta Carta a postura do PT se enquadra mais prototipicamente pelo menos nos ideais básicos da chamada esquerda pois voltandose explicitamente contra a tradição de exploração do homem pelo homem encarna a ideia de emancipação e de libertação da classe trabalhadora 387 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 A Carta de 2002 por sua vez nos apresenta um ethos de envergadura nacionalista e de feições pacificadoras silenciando o conflito entre as classes sociais colocando em seu lugar uma dialética de modelos de gestão atual modelo x novo modelo o partido constrói para si uma imagem de administrador eficiente pautada numa vasta erudição em terminologias financeirasmercadológicas Em defesa do Brasil e erigindose como um aglutinador de uma vasta coalizão suprapartidária formada por todas as classes patrões e empregados o PT ao mesmo tempo assenta o seu caráter na figura emblemática de Lula Tal personagem no lugar do partido passaria a ser o fiador das esperanças de mudança política Isso a principio vincularia o partido ou aproximaria do campo da tradição nacionalismo conciliação de classes personalismo etc âmbito prototípico da chamada direita ou centro para alguns No entanto não nos cabe aqui produzir categoricamente essa classificação uma vez que como vimos os conceitos de direita e esquerda são relativos e cambiantes historicamente Construindo mais uma ponte com o conteúdo da segunda parte deste artigo restaria saber se tais mudanças ethicas foram positivas necessárias ou se representaram uma traição ao povo trabalhador constituindo na melhor das hipóteses um erro profundo da legenda ao longo da história Dito de outra forma seriam mesmo essas variações discursivas representativas da consolidação da burguesia monopolista no país a partir de uma governabilidade que teria desarmado as condições políticas organizativas e de consciência de classe dos trabalhadores IASI 2014b Teriam dessa forma conduzido a esquerda nacional a uma semidemocracia imobilista de baixa participação popular direta e com eleições que só se ganha mobilizando de maneira espúria a força financeira com seus corruptores de sempre SAFATLE 2013 p 14 Ou tais variações ethicas que viam se delineando desde 1994 seriam representativas de uma estratégia nova necessária e mais flexível de alianças após três derrotas sucessivas de Lula à presidência do Brasil partindose do pressuposto de que o partido precisaria chegar ao poder para realizar pelo menos parte das transformações sociais defendidas historicamente Nessa perspectiva teriam sido importantes positivas as articulações políticas do PT na conquista do pleito eleitoral de 2002 tendo o movimento de ida ao centro credenciado o partido a estabelecer alianças com setores significativos de nossa tradição republicana VIANNA 2006 p 98 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 388 Optamos neste trabalho por deixar tais questões em aberto Não nos cabe aqui dizer se tais mudanças sóciodiscursivas foram positivas ou negativas como muito se discute nas esferas sociais e acadêmicas do Brasil mas apenas ressaltar como as variações ethicas do PT realmente se deram por contraste Acreditamos que a simples chamada de atenção para os textos analisados ainda pouco explorados possui grande valor não só no sentido de evidenciar que as Ciências da Linguagem e uma Revista como esta têm algo a contribuir para as discussões políticas mas também para reforçar a necessidade de sempre recolocar a questão na ordem do dia devido a sua relevância social naquilo que concerne aos comportamentos discursivos pertinentes às esquerdas em geral e em particular ao PT dentro de sua história Vivemos no momento de fechamento deste texto um período conturbado em que a Presidenta do Brasil Dilma Rousseff PT foi afastada por um processo de impeachment tendo assumido o seu lugar em 2016 o VicePresidente Michel Temer PMDB Como se sabe isso deu vazão a grandes discussões sobre a viabilidade ou não de alianças por parte da chamada esquerda com partidos mais ao centro ou até mesmo de direita além de suas possíveis consequências econômicas sociais e políticas Dessa forma acreditamos que o trabalho pode ser pertinente tanto para a compreensão teórica do ethos associado às instituições partidárias quanto para servir de material para a reflexão sobre comportamentos políticodiscursivos mais interessantes ao futuro de nosso país Declaração de Contribuição de Cada Autor Declarase para os devidos fins que os dois autores Melliandro Mendes Galinari e Luciana de Souza Pereira contribuíram igualmente na confecção de todas as partes do artigo desde a feitura idealização e reformulação da parte teórica até as análises e reanálises do objeto de investigação incluindo a escrita e a reescrita conjuntas 389 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 Referências AMOSSY Ruth Largumentation dans le discours 3 ed Paris Armand Colin 2010 AMOSSY R O ethos na intersecção das disciplinas retórica pragmática sociologia dos campos In AMOSSY R Org Imagens de si no discurso a construção do ethos São Paulo Contexto 2008 p 119144 BOBBIO N Direita e esquerda razões e significados de uma distinção política São Paulo Editora da Universidade Estadual Paulista 1995 FAUSTO B A História do Brasil São Paulo Editora da Universidade de São Paulo 2012 GALINARI M M Sobre ethos e AD tour teórico críticas terminologias Revista Delta Documentação e Estudos em Linguística Teórica e Aplicada São Paulo v 28 n 1 p 5168 2012 GALINARI M M O Funcionamento RetóricoDiscursivo dos Índices de Modalização a construção do ethos In Rivista di Studi Portoghesi e Brasiliani PISAROMA Fabrizio Serra Editore v XX p 8597 2018 IASI M L O escravo da Casa Grande e o desprezo pela esquerda Rio de Janeiro jun 2014a Disponível em httpblogdaboitempocom br20140616oescravodacasagrandeeodesprezopelaesquerda Acesso em 10 fev 2016 IASI M L O PT e a Revolução Burguesa no Brasil 2014b Disponível em httpsdocsgooglecomfiled0Bs4202oxQXfNzkxN2hWb2VQSlE editpli1 Acesso em 11 fev 2016 MAINGUENEAU D Ethos cenografia incorporação In AMOSSY R Org Imagens de si no discurso a construção do ethos São Paulo Contexto 2008 p 6992 MATTOSO J Dez Anos depois In SADER E Org 10 Anos de Governos Pósneoliberais no Brasil Lula e Dilma São Paulo Boitempo 2013 p 115125 NEVES M H M Imprimir marcas na linguagem Ou a modalização na linguagem In Texto e Gramática São Paulo Contexto 2011 p 151221 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 390 NOBRE M Imobilismo em movimento da abertura democrática ao governo Dilma São Paulo Companhia das Letras 2013 PAVEAU M A SARFATI G E As grandes teorias da linguística São Carlos Claraluz 2006 p 182184 PERELMAN C OLBRECHTSTYTECA L Tratado da argumentação a nova retórica São Paulo Martins Fontes 2002 PETIT P A esquerda petista os intelectuais e o governo Lula In DIAS M R PÉREZ J M S Org Antes do vendaval um diagnóstico do governo Lula antes da crise política de 2005 Porto Alegre EDIPUCRS 2006 p 179220 REIS D A O Partido dos Trabalhadores trajetória metamorfoses perspectivas 2007 Disponível em httpwwwhistoriauffbr culturaspoliticasfilesdaniel4pdf Acesso em 06 out 2014 RICCI R Lulismo da era dos movimentos sociais à ascensão da nova classe média brasileira Brasília Fundação Astrojildo Pereira 2010 SADER E Brasil A Esquerda e o Governo Lula São Paulo maio 2005 Disponível em httpwwwvoltairenetorgarticle125237html Acesso em 08 set 2015 SAFATLE V A esquerda que não teme dizer seu nome São Paulo Três Estrelas 2013 VIANNA L W Esquerda brasileira e tradição republicana estudos de conjuntura sobre a era FHC Lula Rio de Janeiro Revan 2006 391 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 ANEXOS Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 392 393 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 394 395 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 396 397 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 398 399 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 Rev Estud Ling Belo Horizonte v 27 n 1 p 359400 2019 400