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EDWARD W SAID 1UFRGSBCBSCSH l n r 1 íyf41 C So3 e J vA Jtj2 19Iso l tt1i tat r 2 1 PilQO1 2 O 0 tIi9 lSOcX O DatazlZ5Yl rrA I H5 r 1 ORIENTALISMO o ORIENTE COMO INVENfAO DOOCIDENTE Traducáo TOMÁS ROSA BUENO la reimpressao CoMPANHIA DAs LETRAs INTRODUrAO 1 Em urna visita a Beirute durante a terrível guerra civil de 19756 uro jornalista francés escreveu coro pesar sobre a devastada área cen tral da cidade que ela parecera outrora pertencer ao Oriente de Chateaubriand ou Nerval Ele tinha razáo sobre o lugar é claro especialmente no que dizia respeitoa uroeuropeu O Oriente eraQJ1ªiie urna inven5ao euro12éia e fora desde a Antigüidade um lugar de ro ñiancedeseres exóticos de memórias e paisagens obsessivas de expe notáveis Estava agoradesaparecendo acontecera de urocerto modo o seu tempo havia passado Talvez parecesse irrelevante que os próprios orientais tivessem alguma coisa ero jogo nesse processo que mesmo no tempo de Chateaubríand e Nerval houvesse orientais vivendo lá e que agora erarn eles que estavam sofrendo o principal para uro visitante europeu era urna representacáo européia do Oriente e da sua ruina contemporánea tanto uro como a outra coro uro significado ca mum privilegiado para o jornalista e seus leitores franceses Os americanosnao sentem exatamentea mesma coisa pelo Orien te quepara elesestá 3ssoCiadomüIto maisprovaveImenteao Ex tremo Oriente China e Japáo principalmente Ao contrário dos ame ricanos os franceses e os britanicos e em menor medida os alemáes os russos espanhóis portugueses italianos e suícos tiveram urna lóngatridí9iío daquIIoquédeverei chamar de orientalismo um modo de resolver o Oriente 1ue está baseado no lugar especial ocupado pelo Oriente na experiencia ocidental européia O Oriente nao está apenas adjaceiite á Europa também onde estáo localizadas as maioresJúih rics mais tiªas c16nias européias a fonte das suas ciilia5es e línguas seu c0lcorrente cultural e urna das suas mais profundas recorrentes imagens do Outro Além disso o Oriente ajudou a definir a 13 lz 1 1 li 1 1 Europa ou o Ocidente CIILOua imagem idéia personalidade e experiencia de contrastContudo nada desse Oriente é meramente imaginativoOOfÍeIfté é parte integrante da civilizacáo e da cultura materiais da Europa O Oriente expressreprsentaesse papel cul tara e até mesmo idClogicJ11entecomo t1tpdlde dio COI119 apoio de instituioes vocabulário erudicáo imagístca doutrina e até burocracias e estiioscoloñiis Ero comparacáo o entendimento ame rICanodoOriél1te parecerá consideravelmente menos denso embora as nossas recentes aventuras japonesa coreana e indochinesa deveriam agora estar criando urna percepcáo oriental mais sóbria mais rea lista Mais ainda o grande aumento da importancia do papel econó mico e politico dos americanos no Oriente Próximo o Oriente Médio assume urna grande POr9aO do nosso entendimento desse Oriente Ficará claro para o leitor e ainda mais claro ao longo das muitas páginas que seguern que por orientalismo eu entendo diversas coisas todas elas na minha opiniáo interdependentes A designacáo mais prontamente aceita para o rientalismo é académica e com efeito essa etiqueta ainda é adequada em algumas instituicóes académicas Qualquer um que de aulas escreva ou pesquise sobre o Oriente e isso é válido seja a pessoa antropóloga socióloga historiadora ou filóloga nos aspectos específico ou geral é um orientalista e aquilo que ele ou ela faz é orientalismo Comparado com estudos orientais ou estudos de área é verdade que o termo orientalismo hoje em dia vem caindo na preferencia dos especialistas tanto por ser vago e geral de mais quanto por ser conotativo da arrogante atitude executiva do colo nialismo europeu do século XIX e inicio do século XX Mesmo assim sao escritos livros e organizados congressos com o Oriente como foco principal e com o orientalista em sua versáo nova ou antiga como a principal autoridade A questáo é que mesmo que nao sobreva cmo antigamente o orintalismoo1tinua a viyeacdamntJJYs de suas doutrinas e teses sobre o Oriente e o oriental RelacionadtadiaoalcfetnTca cujos destinos transmi gracóes especíalizacóes e transrnissóes sao em parte o tema deste es tudo está um sentido mais geral para o orientalismo O orientalismo é um estilo de pensamento baseado em urna distincáo ontológica e epis temológica feita entre o Oriente e a maior parte do tempo o Oci dente Desse modo urna enorme massa de escritores entre os quais estáo poetas romancistas filósofos teóricos políticos economistas e administradores imperiais aceitou a dístincáo básica entre Oriente e Ocidente como o ponto de partida para elaboradas teorias épicos ro mances descricóes sociais e relatos políticos a respeito do Oriente dos seus pOYOS costumes mente destino e assim por diante Este orien 14 talismo pode acomodar Esquilo digamos e Victor Hugo Dante e Karl Marx Um pouco mais adiante nesta introducáo tratarei dos problemas metodológicos que encontramos em um campo tao amplamente in terpretado quanto este a intercambio entre os sentidos académico e mais ou menos ima ginativo do orientalismo é constante e desde o final do século XVIII tem havido um comércio considerável totalmente disciplinado tal vez até regulado entre os dois Neste ponto eu chego ao terceiro sentido do orientalismo que é algo mais histórica e materialmente defi riídoquequalquer dos outros dois TomaiidO ofirial do séculoxvm comoum poriiode partidutgrosseiramentedefinido o orienta lismo pode ser discutido e analisadocomo a instituicáo organizada para negociar comOriente negociar com ele fazendo declaracñes a seu respeito autorizando opinióes sbre el dscreº9oJ9iQüªºcJ9ºJ governandoo emresumoo or1entalismmo um estilo ocidental para dominar reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente Descobri que neste caso é útil empregar a n09aO de discurso de MichelFoucault tal como é descrita por ele naArqueologia do saber e em vig pu para identificar o orientalismoAminha alegacáo é que sem examinar o orientalismo como um discuw nao se pode entender a disciplina enormemente sistemática por meio da qual a cultura européia conse guiu administrar e até produzir o Oriente política sociológica ideológica cientifica e imaginativamente durante o período pósIlumi nísmo Alérn do mais o orientalismo tinha urna posicáo de tal autori dade que eu acredito que ninguém que escrevesse pensasse ou atuasse sobre o Oriente podia fazélo sem levar em conta as límítacóes ao peno samento e aacáo impostas pelo orientalismo Em resumo por causa do orientalismo o Oriente nao era e nao é um tema livre de pensamento e de acáo Isso nao quer dizer que o orientalismo determine de modo unilateral o que pode ser dito sobre o Oriente mas que ele é toda a rede deintereseslinevitavelmente faz valer seu prestigio e portanto sempre se envolve toda vez que aquela entidade peculiar o Oriente esteja em questáo Como riso acontece é o que este iivrotnta demons Trar1ntatambém mostrar que a cultura européia ganhou em forca e identidade comparandose com o Oriente como umaespécíe ele identi dadesuosntUtae atéliismosuitrrfura clandestina Histórica e culturalmente há urna diferenca quantitativa e qua litativa entre o envolvimento francobritánico no Oriente e até o período de ascendencia americana após a Segunda Guerra o envol vimento de todas as demais potencias européias e atlánticas Portanto falar de orientalismo é falar principalmente embora nao exclusiva mente de urna empresa cultural francesa e británica um projeto cujas 15 j dimensóes abarcam reinos tao díspares quanto a própria imaginacáo toda a Índia e o Levante os textos biblicos e as terras bíblicas o co mércio de especiarias exércitos coloniais e urna longa tradicáo de admi nistradores coloníaís uro formidável corpus académico inúmeros pe ritos e trabalnadores orientais um professorado oriental um com plexo aparato de idéias orientais despotismo oriental esplendor oriental crueldade sensualidade orientáis diversas seitas filosofias e sabedorias orientais domesticadas para uso europeu local a lista pode ser estendida mais ou menos indefinidamente O que quero mos trar é que o orientalismo deriva de urna proximidade particular que se deu entre a Inglaterra e a Franca e o Oriente que até o início do século passado significara apenas a Índia e as terras bíblicas A partir do inicio do século XIX até o final da Segunda Guerra a Franca e a Inglaterra dominaram o Oriente e o orientalismo desde a Segunda Guerra os Estados Unidos tém dominado o Oriente e o abordam do mesmo modo que a Franca e a Inglaterra o fizeram outrora Dessa proximidade cuja dinámica é enormemente produtiva mesmo que sempre demonstre a forca comparativamente maior do Ocidente britá nico francés ou americano vem o grande corpo de textos que eu chamo de orientalistas Deve ser dito imediatamente que mesmo com o generoso número de livros e autores que eu examino há um número muito maior que tive simplesmente de deixar de fora Meu argumento contudo nao de pende nem de um exaustivo catálogo de textos que tratam do Oriente nem de um conjunto claramente delimitado de textos autores e idéias que juntos formam o cánone orientalista Baseeime em vez disso em urna alternativa metodológica diferente cuja espinha dorsal de certo modo é o conjunto de generalizacées históricas que estive até agora fazendo nesta Introducáo Sao essas generalizacóes que quero agora discutir com mais detalhe analítico JI Comecei com a suposicáo de que o Oriente nao é um fato inerte da natureza Nao está meramente lá assim como o próprio Ocidente nao está apenas lá Devemos levar a sério a notável observacáo de Vico segundo a qual os homens fazem sua própria história e que só podem conhecer o que fízeram e aplicála a geografía como entidades geo gráficas e culturais para nao falar das entidadeshist6ricas fugares reglOese setores geográficostaís como otOrjente e o Oci tensió feítos pelo homem Portante ssilll como o prÓrjºQci 16 dente o Oriente é urna idéiatelll 1Jmahistóriae urna tradicáo de pensamento imagística e vocabulário que lhe deram realidade e PJi SeriaiJoepara0Ocij11e XSdlJasentidades geiiidesemodo apóiam e em certa medida refletem urnaaotra Issoposto elevemosprosseguírdeclarando urna soma de qualifi ca5es razoáveis Em primeiro lugar seria um erro concluir que o Onente era essencilnte1PJdéiªIº11ªrjªQ seID urna reali dade correspondente Quando Disraeli disse em seu romance Tado que o Leste era urna carreíra queria dizer que interessarse pelo Leste era urnacoisa que os jovens ocidentais brilhantes descobririam ser Urna paixáo avassaladora nao se deve interpretar que ele disse que o Leste era apenas Urna carreira para ocidentais Existiam e existem cul turas e nacóes localizadas no Leste e suas vidas histórias e costumes tém urna realidade croa obviamente maior que qualquer coisa que pu desse ser dita a respeito no Ocidente Sobre esse fato este estudo do orientalismo tem muito pouco a contribuir além de reconhecélo taci tamente Maso fenómeno do orientalismo tal como eu oestudo aquí traUlprillcipalmente nao de urna correspondencia entre o orientalismo e o Orientejnasda consistencia interna do orientalismo e suas idéias sobre oQriente o Leste como carreira a despeito ou além de qualquer correspondencia ou falta de com uro Oriente real Quero mostrar que a declaracáo de Disraeli referese principalmente a essa consisten cía criada essa constelacáo regular de idéias como a coisa proeminente em relacáo ao Oriente e nao ao seu mero ser como coloca a frase de Wallace Stevens Urna segunda qualificacáo é que as idéias culturas ehistórias nao podrnldas 9u Jiimaiint a sua cOllfij1Jaodedreja tarnINa Achar que o Orienre foii ou u it orientalizado e credarqlletIs coisaoPspecª necessidade ºajmªSÜlao é agi de mfé diioentIiQQcidente e o Oriente é urna relacáo de dorninacáo de graus variados de urna complexa hege monia e é indicada com total precisáo no título do clássico de K M Panikkar Asia and Western dominance A dominaciio ocidental na Asia O Oriente foi orientalizado nao só porque se descobriu que ele era oriental ern todos aqueles aspectos considerados camo lugares cornuns por um europeu tnédio do século XIX mas também porque podia ser isto é permitia ser Jeito oriental Há muito pouca anuencia por exemplo no fato de que o encontro de Flaubert cornurna cortesá egípcia tenha produzído um modelo amplamente ínfluente da mulher oriental ela nunca íalou de si mesma nunca representou suas emocóes presenca ou história Ele falou por ela e a representou Ele 17 era estrangeiro comparativamente rico homem e estes eram fatos his tóricos de dominacáo que permitiram nao apenas que ele possuísse Kuchuk Hanem físicamente como também que ele falasse por ela e contasse aos seus leitores de que rnaneiraela era típicamente oriental Mínha argumentacáo é que a situacáo de íorca de Flaubert em relacáo a Kuchuk Hanem náo é um exemplo isolado É urna representacáo passável do padráo de forca relativa entre o Leste e o Oeste e do dis curso sobre o Oriente que esse padráo permitía Isso nos leva aterceíra qualíficacáo Nao se deve nunca supor que a estrutura do orientalismo nao passaºjOJlmªejtlUturaI1JIilisu dimitos que caso fosse dítaa verdade sQ1JrEiªml1ll vntoEU meSníoacredíto que o orialisJ1lQé rnaíspartícularmente válido CoIDOUmslnTao podereQIeuatlantico sobre o Orienteque comoumdiscürso verídicoobrOriene que é o que em sua forma académica oditlfiser Apesar disso o que ternos de respeitar e tentar apreender é a fora nua e sólida do discurso orienta ísta sseus los muito íntimos com as instituioes sócioºfuníce políticas capacitantes e a sua temível durabilidade Minal ququer sistema de idéias que possa permanecer inalterado como sabedofle sépode ensínar em cdernias livos cn u14Jldese íns titutos de relacóes exteriores desQeo período de Emest Renan no final dadécadadeI840 atéopresente nos Estados Unidos deveser algo maís formidável que urna mera coie9iíode mentiras O orientalismo por tanto iiAoé ilrna fantasía avoada da Europa sobre o Oriente masum corpocriado de teoría e prafiCaem que houve por multasgoesum considerável ínvestímento material O investimento continuado fez do orientalismo como sistema de conhecimento sobre o Oriente urna tela aceitável para filtrar o Oriente para a consciencia ocidental assim como esse mesmo investimento multiplicou na verdade tornou real mente produtivas aieclar9esilelºm a partir doQrien te para a cultura geral Gramsci fez a proveitosa distincáo entre as sociedades civil e polí tica em que a primeira é feita de afiliacóes voluntárias ou pelo menos racionais e naocoercitivas como escolas familias e sindicatos e a úl tima de instituicóes estatais exército policía burocracia central cujo papel na entidade política é a dominacáo direta A cultura é claro será vista operando nos marcos da sociedade civil onde a influencia das ídéías ínstituicóes e outras pessoas nao atua por meio da domina cáo mas por aquilo que Gramsci chama de consenso Em qualquer sociedade náototalitária entáo certas formas culturais predominam sobre outras do mesmo modo que certas idéias sao mais infiuentes que outras a forma dessa lideranca cultural é o que Gramsci identificou 18 rl como hegemonía um conceito indispensável para qualquer entendi mento da vida cultural no Ocidente industrial É a hegemonía ou me lhor o resultado da hegemonia em acáo que confere ao orientalismo a durabilidade e a íorca sobre as quais estive falando até agora O oríen talisrnunca está longe daquilo que Denys Hay chamou de idéjada EQPa3 uma noao coletiva que identHiaalíñ6s euopeus emcon traste com todos aqueles náoeuropeusiedaatopdeserargiimen terillilaI colllPonente na cultura européiaépredsamente o que toiiiaessa cultura hegemónica tanto na Europa quanto fora dela idéi identidade européia como sendo superior em comparacáo com todos os POyOS e culturas náoeuropeus AIém disso está a hege monia das idéias européias sobre o Oriente que por sua vez reiteravam a superioridade européia sobre o atraso oriental desconsiderando nor malmente a possibilidade de que um pensador mais independente ou mais cético pudesse ter opiníóes diferentes sobre a questáo De maneira bastante constante o orientalismo depende para a sua estratégia dessa superioridade posicional flexível que púe o oei 1tal em toda urna série relaoes possfyeis coro o Oriente seme lerca jamais a vantagem relativa E por que deveria ter sido dife rente especialmente durante o período de extraordinária ascendencia européia do final da Renascenca até o presente O cientista o erudito o missionário o negociante ou o soldado estavam no Oriente ou pensa vam nele porque podiam estar tú ou podiam pensar sobre ele com muito pouca resistencia da part do Oriente Sob o titulo geral de co nhecimento do Oriente e com a cobertura da hegemonia ocidental sobre o Oriente durante o período que comeca no final do século XVIII surge um complexo Oriente adequado para estudos na academia para exposicáo no museu para reconstrucáo no departamento colonial para ílustracáo teórica em teses antropológicas biológicas lingüísticas ra ciais e históricas sobre a humanidade e o universo para exemplos de teorias económicas e sociológicas de desenvolvimento revolucáo per sonalidade cultural e caráter nacional ou religioso Além dísso o exame imaginativo das coisas orientais estava baseado mais ou menos exclusi vamente em urna consciencia européia soberana de cuja inconteste centralidade surgiu um mundo oriental primeiro de acordo com idéias gerais sobre quem e o que era oriental depois segundo urna lógica deta lhada governada nao apenas pela realidade empírica mas por um con junto de desejos repressóes investimentos e projecóes Se podemos indicar grandes obras orientalistas de genuína erudicáo tais como a Chrestomathie arabe Crestomatia árabe de Silvestre de Sacy OU o Account of the manners and customs ofthe modem egyptians Relato das maneiras e costumes dos modernos egipcios de Edward William 19 Lane ternos de observar também que as idéias raciais de Renan e Go bineau tiveram a mesma origem assim como uro grande número de novelas pornográficas vitorianas ver a análise de The lustful turk O turco luxurioso de Steven Marcus E contudo devemos perguntarnos repetidamente se o que im porta no orientalismo é o grupo geral de idéias atropelando a massa de material o qua nao se pode negar está permeado de doutrinas de superioridade européia vários tipos de racismo imperialismo e afins vísóes dogmáticas do oriental como um tipo de abstracáo ideal e inalterável ou o trabaho muito mais variado produzido por quase incontáveis escritores individuais que podem ser tomados como exem plos individuais de autores tratando do Oriente De certo modo as duas alternativas geral e particular sao na verdade duas perspectivas sobre o mesmo material nos dois exemplos teriamos de tratar com pioneiros no ramo como William Jones coro grandes artistas como Nerval ou Flaubert E por que nao seria possivel usar ambas as perspectivas jun tas ou urna após a outra Nao haveria uro óbvio perigo de distorcáo precisamente do mesmo tipo para o qua o orientalismo sempre teve inclinacáo se um nivel de descricáo gera demais ou específico demais fosse mantido sistematicamente Meus dais temores sao a distorcáo e a falta de precisáo OU antes o tipo de distorcáo produzido por urna generalidade dogmática demais e por um foco localizado positivista demais Ao tentar lidar com esses problemas tentei lidar com tres aspectos principais da minha própria realidade contemporánea que me parecem apontar a saida das dificul dades metodológicas ou de perspectiva que estive discutindo dificul dades que nos poderiam forcar no primeiro exemplo a escrever urna polémica grosseira em um nível de descricáo tao inaceitavelmente geral que nao valeria o esíorco OU no segundo exemplo a escrever urna série tao detalhada e atomística de análises que perderia totalmente de vista as linhas gerais de íorca que informam o campo dandolhe a sua espe cial irrefutabilidade Como entáo reconhecer a individualidade e reconciliála com o seu contexto geral e hegemónico inteligente e de modo algum passivo ou meramente ditatorial III Mencionei tres aspectos da minha realidade contemporánea tenho agora de explicáIos e discutiIos brevemente de maneira que se possa ver como cheguei a um curso determinado de pesquisa e escrita 20 1 A distinciio entre conhecimento puro e conhecimento político É muito fácil argumentar que o conhecimento sobre Shakespeare ou Wordsworth nao é político enquanto o conhecimento sobre a China ou a Uniáo Soviética contemporáneas o é A minha própria designacáo for mal e profissional é humanista um título que indica as humanidades como o meu campo e portanto a improvável eventualidade de que haja qualquer coisa de político no que eu íaco nesse campo É claro que todas essas etiquetas e termos quase nao tém matizes quando os uso aqui mas a verdade geral do que estou assinalando é acredito eu amplamente aceita Urna das razóes para que se diga que um huma nista que escreve sobre Wordsworth ou um editor cuja especialidade é Keats nao está envolvido em nada de político é que o que ele faz nao parece ter qualquer efeito direto sobre a realidade em um sentido cor rente Um erudito cujo campo é a economia soviética trabalha em urna área altamente carregada em que há muito interesse do governo e o que ele possa produzir em materia de estudos ou propostas será apro veitado por quem toma decisñes por funcionários do governo por eco nomistas institucionais e por peritos em inforrnacáo A distincáo entre humanistas e pessoas cujo trabalho tem implicacóes políticas ou significacáo política pode ser ampliada pela afirrnacáo de que a cor ideológica do primeiro é urna questáo de importancia incidental para a política embora possivelmente de grande importancia para os seus co legas no mesmo campo que podem ter objecóes ao seu stalinismo ou fascismo ou liberalismo tranqüilo demais ao passo que a ideologia do último está diretamente implicada no seu material de fato na mo derna academia a economia a política e a sociologia sao ciencias ideo lógicas e portanto é considerada como inequivocamente política Mesmo assim a imposicáo determinante sobre a maior parte do conhecimento produzido no Ocídente contemporáneo e aquí estou fa lando principalmente sobre os Estados Unidos é de que ele seja apolí tico ou seja erudito académico imparcial e acima de qualquer crenca doutrinária engajada ou limitada Nao se pode objetar com essa ambi cáo em teoría talvez mas na prática a realidade é muito mais proble mática Ninguém nunca descobriu um método para separar o erudito das circunstáncias da vida do fato do seu envolvimento consciente ou inconsciente com urna classe com um conjunto de crencas urna po sicáo social ou da mera atividade de ser um membro da sociedade Tudo isso continua a ter influencia no que ele faz profissionalmente ainda que naturalmente a sua pesquisa e os frutos dela tentem alean car um nível de relativa liberdade com respeito as inibicóes e restricóes da crua realidade cotidiana Pois existe um conhecimento que é menos em vez de mais parcial que o indivíduo com as circunstancias emba 21 j racosas e perturbadoras de sua vida que O produz Mas nem por isso esse conhecimento é automaticamente apolítico Se as discussóes de literatura ou de filologia c1ássica estáo ou nao carregadas de significado político ou o tém indiretamente é uma questáo muito ampla que eu tentei tratar com algum detalhe ernoutra parteiO que me interessa agora é sugerir como o consenso hberl geral djue o verdadeiro conheciento é fundamentalmte apoh tico e de que ao contrário o conhecirnento abertamente político nao e conhecimento verdadeiro obscurece as circunstancias politicas ex tremamente organizadas ainda que de modo obscuro que predomi nam quando o conhecimento é produzido Ninguém ganha em entendi mento disso hoje ero dia quando o termo político é usado como urna etiqueta para desacreditar qualquer trabalho que ouse iolar o prto colo de pretensa objetividade suprapolítica Podeos dlZer pnmlo que a sociedade civil reconhece uma graduacáo de lportcla pOltia nos vários campos de conhecimento Ero certa medida a importancia política atribuida a um campo vem da possibilidade d sua ireta ta ducáo ero termos económicos mas ero urna escala maior a importan cia política vem da proximidade de um campo em relacáo a fontes ve ficáveis de poder na sociedade política Desse modo um estudo econo mico do potencial energético a longo prazo da Uniáo Soviética e os seus efeitos sobre a capacidade militar tem probabilidades de ser encomen dado pelo Departamento de Defesa adquirindo com isso um tipo de categoria politica impossivel para um estudo dos primeiros trabalhos de ñccáo de Tolstoi parcialmente financiado por ua fund9ao No entanto ambos os estudos pertencem ao que a sociedade civil reco nhece como uro campo similar estudos russos embora uro dos traba lhos possa ser feíto por uro economista muito conseador e o outro por um historiador literário radical O que quo dizer aql ue Rússia como tema geral tem prioridade política sobre distincóes mais sutis como economia ou história literária porque a sacie dade política no sentido de Gramsci infiltrase em doínios da socie dade civil tais como a academia e saturaos com signiíicacóes que lhe dizem respeito diretamente Nao quera continuar a sublinhar isso ero niveis teóricos gerais pareceme que o valor e a credibilidade da minha argumentacáo podem ser demonstrados se forem muito mais específicos do mesmo modo por exemplo como Noam Chomsky estudou a conexác instrumenta entre a Guerra do Vietná e a nocáo de erudicáo objetiva tal como f01 aplicada na pesquisa militar patrocinada pelo Estado Ora posto que a Inglaterra a Franca e mais recentemente os Estados Unidos sao poderes imperiais suas sociedades políticas transmitem as suas socie 22 dades civis um sentimento de urgencia como se fosse urna infusáo poli tica direta onde e quando quer que quest5es relativas aos seus interes ses imperiais estejam em jogo Duvido que seja controverso por exem plo dizer que um ingles na India ou no Egito no final do século XIX tinha por estes paises um interesse que nunca estava muito afastado da sua condicáo na mente dele de col8nias británicas Dizer isso pode parecer muito diferente de dizer que todo conhecimento académico sobre a india e o Egito está de algum modo marcado e violado pelo fato político vulgar e no entanto isso é o que estou dizendo neste estudo do orientalismo Pois se for verdade que nenhuma producáo de conhecimento nas ciencias humanas pode jamais ignorar ou negar o envolvimento de seu autor como sujeito humano em suas pr6prias cir cunstancias deve entáo ser verdade também que para um europeu ou um americano que esteja estudando o Oriente nao pode haver negacáo das círcunstáncias mais importantes da realidade dele que ele chega ao Oriente primeiramente como um europeu ou um americano e de pois como individuo E ser um europeu ou um americano nessa situa 9ao nao é de modo algum um fato inerte Queria e quer dizer estar consciente ainda que vagamente de se fazer parte de urna potencia com interesses definidos no Oriente e mais importante de que se per tence a uma parle da terra com uma hist6ria definida de envolvimento no Oriente quase desde os tempos de Homero Colocadas desse modo essas realidades políticas sao ainda inde finidas e gerais demais para serem realmente interessantes Qualquer um estaria de acordo com elas sem necessariamente estar de acordo que elas eram muito importantes por exemplo para Flaubert quando ele estava escrevendo Salammb6 ou para H A R Gibb quando ele escreveu Modern trends in Islam ICorrentes modernas do islá O pro blema é que há uma distancia grande demais entre o grande fato domi nante tal como o descrevi e os detalhes da vida cotidiana que gover nam a disciplina minuciosa de um romance ou de um texto erudito quando estáo sendo escritos Se desde o comeco porém eliminarmos qualquer nocáo de que os grandes fatos podem ser mecánica e deter ministicamente aplicados a questóes tao complexas como a cultura e as idéias comecaremos entáo a abordar um tipo interessante de estudo A minha idéia é que o interesse europeu e depois americano pelo I Oriente era político de acordó com alguns de seus asp históricos 6bvios que clescrvfaqºi masque IoiacÜura q criou esse interesse I que agiu dinamiámente emtz com as indisfar9adas fundamen tacóes políticas económicas e militares para fazer do Oriente o lugar variado e complicado que ele obviamente era no campo qúéeu chamo de orientalismo 23 Portanto o orientalismo nao é um mero tema político de estudos ou campo refletido passivamente pela cultura pela erudicáo e pelas instituicñes nem é uma ampla e difusa colecáo de textos sobre o Oriente nem é representativo ou expressivo de algum nefando compló imperialista ocidental para subjugar o mundo oriental É antes uma distribuiciio de consciencia geopolítica em textosestéticos erudi tosocºnomicos sociológicos históricos e filolgicosé umaelaboraao nao só de urna distincáo geográfica básica o mundo é feito de duas metades o Ocidente e o Oriente como também de toda uma série de interesses que através de meios como a deseoberta erudita a recons trucáo filológica a análise psicológica e a descricáo paisagística e socio lógica o orientalismo DaD apenas cria como mantém ele é ero vez de expressar urna certa vontade ou intenciio de entender e ero alguns casos controlar manipular e até incorporar aquilo que é uro mundo 1 manifestamente diferente ou alternativo e novo é acima de tudo uro discurso que DaD está de maneiraalgumaerorelacáo direta corres pondente ao poder politico em si mesmo mas que antes é produzido e existe em um intercambio desigual com vários tipos de poder moldado em certa medida pelo intercambio com o poder politico como uma ordem colonial ou imperial com o poder intelectual como as ciencias reinantes da lingüística comparada ou anatomía ou qualquer urna das modernas ciencias ligadas a decisáo política com o poder cultural como as ortodoxias e cánones de gosto textos e valores com o poder moral como as idéias sobre o que nós fazemos e o que eles nao podem fazer ou entender como nós fazemos Coro efeito o meu verdadeiro argumento é que o orientalismo é e nao apenas repre senta uma considerável dirnensáo da moderna cultura políticointe lectual e como tal tem menos a ver com o Oriente que com o nosso lnundo Por ser o orientalismo uro fato político e cultural entáo ele nao existe em algum tipo de vácuo de arquivo muito pelo contrário acho que pode ser demonstrado que o que é pensado dito ou até mesmo feito sobre o Oriente segue e talvez ocorre dentro dos limites de certas linhas distintas e intelectualmente conhecíveis Também nesse ponto um grau considerável de matízacáo e elaboracáo pode ser visto em acáo entre as pressóes superestruturais mais amplas e os detalhes de compo sicáo os fatos de textualidade A maioria dos eruditos humanistas está perfeitamente avontade pareceme com a nocáo de que os textos exis tem em contextos que existe algo como a intertextualidade que a pres sao das convencées dos predecessores e dos estilos retóricos limitam aquilo que Walter Benjamin chamou de sobretaxacáo da pessoa pro dutiva em nome do l princípio da criatividade segundo o qual se 24 acredita que o poeta produz sua obra sozinho e tirandoa da sua mente pura Existe contudo uma resistencia em admitir que as coacóes poli tícas institucionais e ideológicas agem igualmente sobre o autor índi L vidual Um humanista considerará interessante para qualquer estu dioso de Balzac o fato de que este tenha sido influenciado na Comédia humana pelo conflito entre Geoffroy SaintHilaire e Cuvier mas o mesmo tipo de pressáo sobre Balzac exercída pelo monarquismo pro fundamente reacíonário parece diminuir de alguma maneira vaga o seu genio líterárío e portanto ter menor valor para uro estudo sé rio De maneira similar como Harry Bracken vem demonstrando incansavelmente os filósofos podem conduzir suas discussóes sobre Locke Hume e o empirismo sem jamaís levar em consideraeáo o fato de que há uma conexáo explícita nesses escritores clássicos entre suas doutrinas filosóficas e a teoria racial as justiñcacóes da escravidáo e a defesa da exploracáo colonial Estes sao meios bastante comuns pelos quais a erudicáo contemporánea se mantém pura Talvez seja verdade que a maioria das tentativas de esfregar o nanz da cultura na lama da política tenha sido rudemente iconoclasta talvez também a interpretacao social da literatura em meu próprio campo nao tenha acompanhado simplesmente os enormes avances da análise textual detalhada Mas nao há como escapar ao fato de que os estudos literários em geral e os teóricos marxistas americanos em par ticular tém evitado o esforco de fechar seriamente a brecha entre os níveis básico e superestrutural na erudicáo textual e histórica em outra ocasiáo cheguei até a dizer que o establishment literáriocultural como um todo tinha declarado estar fora dos limites o estudo sério do impe rialismo e da cultura Pois o orientalismo póenos diretamente frente a esta questáo isto é faznos perceber que o imperialismo político domina todo umcampo de estudo imagínacáo e ínstituicóes erudi L tas de tal modo que torna o fato impossível de ser ignorado inte lectual e historicamente No entanto haverá sempre o perene meca nismo de escape de dizer que um erudito literário e um filósofo por exemplo sao treinados respectivamente em literatura e em filosofia nao em politica ou análise ideológica Em outras palavras o argumento especialista pode agír com muita eficácia para bloquear a perspectiva mais ampla e na minha opiniáo mais séria intelectualmente Pareceme haver aqui uma simples resposta em duas partes a ser dada pelo menos no que diz respeito ao estudo do imperialismo e da culturaou orientalismo Em primeiro lugar quase todos os escritores do século XIX e o mesmo vale para muitos escritores de periodos ante riores estavam extraordinariamente conscientes do fato do império esse é uro tema nao muito bem estudado mas nao será preciso rnuito tempo para um moderno especialista vitoriano admitir que her6is cul turais liberais como John Stuart Mili Arnold Carlyle Newman Ma caulay Ruskín George Eliot e até Dickens tinham opinióes definidas sobre raca e imperialismo facilmente detectáveis em acáo nos seus es critos De modo que até mesmo um especialista deve enfrentar o conhe cimento que Mili por exemplo deixou claro em On liberty e em Repre sentative government Sobre a liberdade Governo representativo de que as opinióes que ele expressava nesses livros nao podiam ser apli cadas na India ele foi funcionário do India Office durante grande parte de sua vida afinal de contas porque os indianos eram inferiores em termos de civilízacáo se nao de raca a mesmo tipo de paradoxo pode ser encontrado em Marx como tento mostrar neste livro Em segundo lugar acreditar que a política na forma de imperialismo tem influencia sobre a producáo de literatura erudicáo teoria social e a escrita da hist6ria de modo algum equivale a dizer que a cultura é urna coisa diminulda oudenegrida Muito pelo contrário tudo o que eu quero éfuiréque podmos entender melhor a persistencia e a durabi lidade de sistemas hegemónicos saturantes como a cultura quando nos damos conta de que as suas coacóes internas sobre escritores e pensa dores eram produtivas e nao unilateralmente inibidoras Esta é a idéia que Gramsci Foucault e Rayrnond Williams estiveram tentando ilus trar cada um a sua maneira Até mesmo urna ou duas páginas de Williams sobre os usos do Império em The long revolution lA longa revolucáo dizemnos mais sobre a riqueza cultural do século XIX que muitos volumes de análises textuais herméticaslO Estudo o orientalismo portanto como um intercambio díná mico entre autores individuais e os grandes interesses políticos molda dos pelos tres grandes impérios británico francés americano em cujos territ6rios intelectuais e imaginativos a escrita foi produzida a que mais me interessa como estudioso nao é a verdade política nua mas o deta1he assim como na verdade o que nos interessa em alguém como Lane ou Flaubert ou Renan nao é a para ele indiscutível ver dade de que os ocidentais sao superiores aos orientais mas a evidencia profundamente trabalhada e modulada do seu trabalho detalhado nos marcos do enorme espaco aberto por essa verdade Ternos apenas de lembrarque o Manners and customs ofthe modern egyptians de Lane é um clássico da observacáo hist6rica e antropol6gica devido ao seu estilo e aos seus detalhes enormemente inteligentes e brilhantes e náo por causa da sua simples reflexáo da superíorídade racial para enten der o que estou dizendo aquí r a tipo de questóes políticas colocadas pelo orientalismo por tanto é o seguinte que outros tipos de energias intelectuais estéticas 26 b eruitas e culturais participaram da formacáo de urna tradicáo impe rialista como a orientalista Como foi que a filologia a lexicografia a história a biología a teoria económica e política a criacáo de ro mances e a poesía lírica entraram para o servico da visáo amplamente imperialista que o orientalismo tern do mundo Que rnudancas modu lacóes refinamentos e até revolucóes tém lugar no interior do orienta lismo Qual é neste contexto o significado da originalidade da conti nuidade da individualidade Como é que o orientalismo se transmite e reproduz de urna época para outra Finalmente como podemos tratar o fenómeno cultural e histórico do orientalismo como uro tipo de obra humana in duzida e DaD UID mero raciocínio incondicionado em toda a sua complexidade hist6rica detalhe e valor sem ao mesmo tempo perder de vista a alianca entre o trabalho cultural as ten dencias políticas e o estado e as realidades específicas da dominacáo Governado por tais preocupacóes um estudo humanístico pode diri girse responsavelmente a política e a cultura Mas isso nao quer dizer que esse estudo estabelece urna regra firme e segura sobre a relacáo entre o conhecimento e a política O que eu afirmo é que cada investigacáo humanística deve formular a natureza dessa cone xáo no contexto específico do estudo do tema e das suas circuns tancias históricas 2 A questiio metodológica Em um livro anterior dediquei muita reflexáo e análise importancia metodológica para o trabalho nas cien cias humanas de se encontrar e formular um primeiro passo um ponto de partida um princípio inicial Urna grande licáo que eu aprendi e tentei transmitir é que nao existe nada parecido com um ponto de partida meramente dado ou simplesmente disponível para cada projeto devem ser feitos os come cos de tal modo que estes lhes permitam urna seqüéncía Em nenhum ponto da minha experiencia a dificuldade dessa licáo foi sentida mais conscientemente com que sucesso ou fracasso nao posso dizer real mente que neste estudo sobre o orientalismo A idéia de comecar de fato o ato de cornecar implica necessariamente um ato de delimitacño por meio do qual algo é cortado de urna grande massa de material separado dessa massa e transformado em urna representacáo do ponto de partida do comeco além de ser esse comeco para o estudante de textos urna tal nocáo de delimitacáo inaugural é a idéia do problemá tico de Louis Althusser urna unidade determinada específica de um texto ou grupo de textos que é algo que surge mediante a análiseF Porém no caso do orientalismo ao contrário do caso dos textos de Marx que é o que Althusser estuda nao há apenas o problema de en contrar um ponto de partida ou problemático mas também a questáo 27 I i I il 1 de assinalar quais textos autores e períodos sao os mais adequados para o estudo Pareceume urna tolice tentar urna história narrativa enciclopé dica do orientalismo primeiramente porque se a minha linha mestra fosse a idéia européia do Oriente nao haveria virtualmente nenhum limite para o material com o qual eu teria de lidar em segundo lugar porque o próprio modelo narrativo nao servia os meus interesses descri tivos e políticos terceiro porque em livros como La renaissance orien tale A renascenca oriental de Raymond Schwab Die Arabischen Studien in Europa bis in den Anfang des 20 Jahrhunderts Os estudos árabes na Europa até o início do século XX de Johan Fück e mais recentemente The matter ofAraby in medieval England A questáo da Arábia na Inglaterra medieval 13 de Dorothee Metlitzki já existem trabalhos enciclopédicos sobre certos aspectos do encontro Europa Oriente que tornam o trabalho do critico no contexto intelectual e politico geral que eu esbocei acima dilerente Havia ainda o problema de dimínuir um arquivo bem repleto para dimensóes administráveis e mais importante esbocar algo pare cido com urna ordem intelectual nesse grupo de textos sem ao mesmo tempo seguir urna ordem insensatamente cronológica O meu ponto de partida íoi portanto a experiencia británica francesa e americana no Oriente considerada como urna unidade o que fez essa experiencia possível em termos de base intelectual e histórica e qual a qualidade e o caráter dessa experiencia Por razóes que discutirei mais tarde limi tei o já limitado mas ainda desordenadamente grande conjunto de questóes relativas aexperiencia anglofrancoamericana dos árabes e do isla que durante quase mil anos representaram o Oriente Assim que isso foi leito urna grande parte do Oriente pareceu ter sido elimínada india Japáo China e outras regióes do Extremo Oriente nao porque essas regióes nao fossem importantes o que elas obviamente foram mas porque se podía discutír a experiencia européia do Oriente Próximo ou do isla separadamente de sua experiencia no Extremo Oriente Porém em certos momentos dessa história européia geral de interesse pelo Leste partes determínadas do Oriente como o Egito a Síria e a Arábia nao podem ser discutidas sem também se estudar o envolvimento europeu nas partes mais distantes das quais a Pérsia e a India eram as mais importantes relativo a isso um caso notável é a co nexáo entre o Egito e a india pelo menos no que diz respeito a Ingla terra dos séculos XVIII e XIX Igualmente o papel francés na deci fracáo do ZendAvesta a proemínéncia de Paris como um centro de estudos de sánscrito durante a primeira década do século XIX o fato de que o interesse de Napoleáo no Oriente dependía do seu sentído do 28 IIL papel británico na Índia todos esses interesses do Extremo Oriente influenciaram diretamente o interesse francés pelo Oriente Próximo pelo isla e pelos árabes A Inglaterra e a Franca dominaram o Mediterráneo oriental desde o fínal do século XVII em diante mas a mínha discussáo dessa domínacáo e desse interesse sistemático nao faz justica a a as impor tantes contribuicóes ao orientalismo da Alemanha da Itália da Espa nha e de Portugal e b o lato de que um dos ímportantes impulsos para o estudo do Oriente no século XVIII foi a revolucáo nos estudos bíbli cos estimulada por pioneiros variadamente interessantes como obispo Lowth Eichhorn Herder e Michaelis Em prímeiro lugar tive de me concentrar rigorosamente no material francobritánico e mais tarde no americano pois parecia inevitavelmente verdadeiro nao só que a Ingla terra e a Franca eram as nacóes pioneiras no Oriente e nos estudos orientais como também que essas posicóes de vanguarda foram man tidas gracas as duas maiores redes coloniais da história anterior ao século XX a posicáo oriental americana desde a Segunda Guerra adap touse bastante envergonhadamente creio aos lugares escavados pelas duas potencias européias anteriores Além disso acredito tam bém que a enorme qualidade consistencia e massa dos trabalhos britá nicos franceses e americanos sobre o Oriente erguemnos acima do trabalho sem dúvida crucial feito na Alemanha na Itália na Rússía e em outros lugares Mas acho que também é verdade que os passos mais importantes da erudicáo oriental foram dados primeiramente na Ingla terra ou na Franca e depois elaborados pelos alemáes Silvestre de Sacy por exemplo nao foi apenas o primeiro orientalista europeu mo derno e institucional que escreveu sobre o isla a literatura árabe a religiáo drusa e a Pérsia sassánida foi também o professor de Cham pollion e de Franz Bopp o fundador da lingüística comparada alemá Urna reivindicacáo semelhante de príoridade e subseqüente proemi néncia pode ser feita a respeito de William Jones e Edward William Lane Em segundo lugar e aquí as falhas do meu estudo sobre o orientalismo sáo amplamente compensadas houve alguns trabalhos recentes ímportantes sobre a base de erudicáo bíblica do surgimento daquilo que chamei de oríentalismo moderno O melhor e mais ilumi nadoramente relevante é o impressionante Kubla Khan and the fall ofJerusalem Kubla Khan e a queda de Jerusalém de E S Shaffer um estudo indispensável sobre a origem do romantismo e a atividade íntelectual que sustenta grande parte do que acontece em Coleridge Browning e George Eliot Em certa medida a obra de Shaf fer é urn refinamento dos esbocos encontrados em Schwab mediante a 29 articulacáo do material relevante que se encontra nos estudiosos bíbli cos alernáes e o uso desse material para interpretar de modo inteli gente e sempre interessante o trabalho de tres grandes escritores britá nicos Mas falta no liVTO urna indícacáo do viés politico assim como ideológico dado ao material oriental pelos escritores franceses e britá nicos coro os quais me ocupo principalmente além disso ao contrário rde Shaffer eu tento elucidar os desenvolvimentos subseqüentes do orientalismo académico e também literário que tem a ver com a cone Kilo entre o orientalismo británico e francés por uro lado e o surgi mento de um imperialismo de orientacáo explicitamente colonial pelo outro Queratambém mostrarcomo todas essas primeiras questóes sao mais ou menos reproduzidas pelo orientalismo americano depois da Segunda Guerra Há no entanto um aspecto possivelmente enganador no meu estudo quando além de alguma referencia ocasional nao discuto exaustivamente os desenvolvimentos alemáes posteriores ao período inaugural dominado por Sacy Qualquer trabalho que tente prover um entendimento do orientalismo académico e de pouca atencáo a eruditos como Steinthal Mül1er Becker Goldziher Brockelmann Noldeke para mencionar só UDS quantos deve ser censurado e eu mesmo me censuro liberalmente Lamento particularmente nao ter dado mais im portancia ao grande prestigio cientifico atribuido aerudicáo alemá por volta de meados do século XIX o desconhecimento desse prestigio foi transformado em uma denúncia dos estudiosos insulares británicos por George Eliot Tenho em mente o inesquecível retrato do sr Casaubon emMiddlemarch Uma das razóes pelas quais Casaubon náoconsegue terminar a sua Chave para Todas as Mitologias é segundo o seu primo Will Ladislaw que ele desconhece a erudicáo alemá Pois nao só Ca saubon escolheu um tema tao mutável quanto a química novas des cobertas estáo constantemente criando novos pontos de vista ele está assumindo uma tarefa semelhante a uma reíutacáo de Paracelsus porque sabe como é ele nao é um orientalista 15 Eliot nao estava errado ao insinuar que por volta de 1830 época em que Middlemarch é ambientado a erudicáo alemá atingira a sua plena proeminéncia européia Contudo em nenhum momento na eru dicáo alemá durante os primeiros dois tercos do século XIX poderia ter se desenvolvido urna parceria íntima entre os orientalistas e um interesse nacional prolongado e sustentado pelo Oriente Nao havia nada na Alemanha que correspondesse a presenca anglofrancesa na India no Levante na África do Norte Mais ainda o Oriente alemáo era quase exc1usivamente um Oriente erudito ou pelo menos c1ássico era tema lírico fantástico novelesco até mas nunca real da maneira como o Egito e a Síria eram reais para Chateaubríand Lane Lamar tine Burton Disraeli ou Nerval Há um certo siguificado no fato de que dois dos mais renomados trabalhos alemáes sobre o Oriente o Westóstlicher Diwan Diva orientalocidentall de Goethe e o Über die Sprache und Weisheit der Indier Da lingua e sabedoria dos hindusl de Friedrich Schlegel eram baseados respectivamente em uma vía r gem pelo Reno e em horas passadas em bibliotecas parisienses O que a erudicáo oriental alerná fez foi refinar e elaborar técnicas que seriam aplicadas a textos mitos idéias e linguas literalmente colhidas no LOriente pela Inglaterra e pela Franca imperiais O que o orientalismo alemáo tinha em comum com o orienta lismo anglofrancés e mais tarde com o americano era urna espécie de autoridade sobre o Oriente no interior da cultura ocidental Essa auto ridade deve ser tema em grande parte de qualquer descricáo do orien 1 talismo e o é neste estudo Até o nome orientalismo sugere um estilo de especíalízacáo séria pesada até quando eu o aplico aos cientistas so ciais americanos de hoje visto que eles nao chamam a si mesmos de orientalistas o meu uso da palavra é anómalo é com o fim de chamar a atencáo para a maneira como os peritos no Oriente Médio ainda podem nutrirse dos vestigios da posicáo intelectual do orientalismo l na Europa do século XIX Nao h nIa decll1istrioso o e natural na utridae Elaé i forIrradiada disseminada e mstrumental e persuasiva tern pO19aoestabeecepadr5es d gto e valor é virtualmenteincisti1 guível de certas idéias que dignifica como verdadeiras e das tradi Y 90esperep90es e juízos que forma transmite reproduz Acima de tudo a autoridade pode e realmente deve ser analisadá Todos esses atributos da autoridade sao válidos para o orientalismo e muitodou eu faco neste estudo é descrever tanto a autoridade histórica quanto as autoridades pessoais do orientalismo Os meus principais dispositivos metodológicos para o estudo da autoridade sao o que se pode chamar de localizaciio estratégica que é mmI0 descrever aao do autorem um texto com relacáo ao ateraJ oriental sobre o qualeteesereve e e formaciio estratégica que 2 é uma maneira de analisar a relacáo entre textos e o modo pelo qual 0C V sdetxtos tipos de textos e até géneros textuais adquírem massa Y jensldade eIlr referencial entre si e depois na cultura mais geral Euuso a nocáo de estratégia simplesmentepraJdentificaro prblema que tem de enfrentar todo escritor sobre o Oriente comQªilleendelo c94Iº11l0 nao ser derrotado ouesmagado peJaSUarobli ldadelelllsua xknsAOnelassuasaterradoras dimensñes ºual qr eessoa que escreva sobre o Oriente descm relao 30 31 ao Oriente traduzida para o seu texto essa localizacáo inclui o ipo de voz narrativa que ela adota o tipo desruturaque constroí o tipos de imagens temas moiVosque circulam no seu texto tudo SS resu mindose amodos deliberados de dirigirse ao leitor de dominar o Oriente e linalmenféderepresentálo ou de lalar no seu lugar Nada dissoaotece DO abstrato todavía Todo aquele que escreve sobre Oriente e isso vale até para Homero presume algum antecedente órietalgum conhecimentoprévio do Oriente ao qual ele se relere e no qual ele se baseia Além disso cada trabalho sobre o Onente s filia a outros trabalhos audiencias ínstituícóes e ao próprio Orient O conjunto de rela90eselltre obras audiencias e all1sasctos parti culares do Oriente portanto constitui urna formacáo anahsavel por exemploos estudos filológicos asantologias de extrato de literatura oriental de livros de viagens de fantasias orientais c9snsan tempo no discurso e nas institui90e escolas bibliotecas servicos di plomáticoslheCoiifereloLae autoridade Está claro esperoque minha preocupa9ao com a utondade nao implica urna análise do que está oculto no text nentahsta mas ntes urna análise da superficie do texto sua extenondade com relacáo o que descreve Nao acho que essa idéia possa ser enfatizada dernais O orientalismoterosuas premissas na exterioridade ou seja no fato de que o orientalista poeta ou erudito faz coro que o Oriente fa1 des creve o Oriente torna os seus mistérios simples por e para o clente Ele nunca se preocupacoroo Orientea DaD sercomo causapnmerra do que ele diz O que ele diz e escreve devido ao lato de ser dilo eescno quer indicar que o orientalista está fora do Oriente tanto exstenclal como moralmente O principal produto dessa extenondade e claro a representa9ao já na peca de Esquilo Os persas o Oriente transfor mado de um distante e muitas vezes ameacador Outro ero fgurs qe sao relativamente familiares no caso de Esquilo mullieres orientats aflitas A dramática imediaticidade da representacáo em Os persas obscurece o fato de que a audiencia está assistindo a urna demonstra cáo altamente artificial daquilo que um naooriental translrmou em um simbolo de todo o Oriente A minha análise do texto orientalista portanto enfatiza a evidencia que de modo algum é nisíl de t representacóes comoreErfsentOffies e náo como descricées naturais do Oriente Essa evidencia pode ser encontrada com exatamente a mesma preminenciano chamada texto verdadeiro hist6ria ná1ises filológicas tratados politicos como no texto abertamente artístico cía ramente imaginativo O que se deve procurr sao os stl1os flgras e linguagem os cenários mecanismos narrativos S clrcunstancla hl tóricas e sociais e niio a correcáo da representaao nem a sua fideli 32 dade a algum grande original A exterioridade da representacáo é sem pre governada por alguma versáo do truísmo segundo o qual se o Oriente pudesse representar si mesmo ele o faria visto que nao pode a representacáo cumpre a tarefa para o Ocidente e faute de mieux para o pobre Oriente Sie konnen sich nicht vertreten sie müssen vertreten werden Nao podem representar a si mesmos devem ser representados como escreveu Marx ero O dezoito brumário de Luís Bonaparte Outra razáo para insistir na exterioridade é que eu acho que é preciso esclarecer sobre o discurso cultural e o intercambio no interior de urna cultura que o que costuma circular nao é verdade mas repre sentacáo Nao é necessário demonstrar de novo que a própria lingua gem é um sistema altamente organizado e codificado que emprega muitos dispositivos para exprimir indicar intercambiar mensagens e inforrnacáo representar e assim por diante Em qualquer exemplo pelo menos da linguagem escrita nao existe nada do genero de urna presenca recebida mas sim urna represenca ou urna representacáo O valor a eficácia a forca e a aparente veracidade de urna declaracáo escrita sobre o Oriente portanto baseiamse muito pouco no próprio Oriente e nao podem instrumentalmente depender dele como tal Ao contrário a declaracáo escrita é urna presenca para o leitor em virtude de ter excluído deslocado e tornado supérfluo qualquer tipo de coisa autentica como o Oriente Desse modo todo o orientalismo está fora do Oriente e alastado dele que o orientalismo tenha qualquer sentido depende mais do Ocidente que do Oriente e esse sentido é diretamente tributário das várias técnicas ocidentais de representacáo que tornam o Oriente visível claro e lá no discurso sobre ele E essas representacóes utilizamse para os seus eleitos de instituicóes tradi cóes convencóes e códigos consentidos e nao de um distante e amorfo Oriente A diferenca entre as representacóes do Oriente anteriores ao úl timo terco do século XVIII e as posteriores a esse período isto é as que pertencem ao que chamo de orientalismo moderno é que o alcance da representacáo aumentou enormemente no último período É verdade que depois de William Jones e AnquetilDuperron e depois da expedí 9ao egípcia de Napoleáo a Europa ficou conhecendo o Oriente mais cientificamente para nele viver com mais autoridade e disciplina como nunca antes Mas o que importava para a Europa era a maior esfera de acáo e o refinamento muito maior que dava as suas técnicas para rece ber o Oriente Quando por volta do final do século XVIII o Oriente revelou definitivamente a idade das suas linguas ultrapassando assim as datas do pedigree divino do hebraico foi um grupo de europeus que 33 fez a descoberta passoua amante para outros estudiosos e preservoua na nova ciencia da filologia indoeuropéia Nasceu assim urna nova e poderosa ciencia para ver o Oriente lingüístico e coro ela como mos trou Foucault eroA ordem das coisas toda urnaredede interesses cien tíficos correlatos Do mesmo modo William Beckford Byron Goethe e Hugo reestruturaram o Oriente coro a sua arte e tornaram as suas luzes cores e pessoas visíveis por meio das suas imagens ritmos e mo tivos Na melhor das hipóteses o Oriente real provocou a visáo no escritor raramente ele a guían orientalismo reagiu mais acultura que o produziu que ao seu objeto putativo que também foi produzido pelo Ocidente Desse modo a história do orientalismo tem urna consistencia interna e um conjunto altamente articulado de relacóes com a cultura dominante que o ro deia Conseqüentemente minha análise tenta mostrar o formato e a organízacáo interna do campo seus pioneiros suas autoridades pa triarcais textos canónicos idéias doxológicas figuras exemplares se guidores elaboradores e novas autoridades tento também explicar como o orientalismo tomou emprestado e foi freqüentemente informado por idéias fortes doutrinas e tendencias dominantes da cultura Houve assim e há um Oriente lingüístico um Oriente freudiano um Oriente spengleriano uro Oriente darwiniano uro Oriente racista e assim por diante Mas nuncahouve nadaparecidoccmumOriente puro ou incondicionado 90 mesmo modonunca houve urna forma imaterial de Oriente e finito menos algo tao inocente corno ma idéia do Oriente É nessa conviccáo subjacente e nas suas conseqüén cias metodológicas que estáa minha diferenca em relacáo aos estudio sos dedicados ahistória das idéias Pois a enfase e a forma executiva e acima de tudo a efetividade material das afirrnacóes do discurso orientalista sao possíveis em modos que qualquer história hermética das idéias tende completamente a reduzir Sem essas énfases e sem essa efetividade material o orientalismo seria apenas mais urna idéia quan do é e foi muito mais que isso Decidi portanto examinar nao sóos tra balhos eruditos mas também as obras literárias as passagens políticas os textos jornalísticos livros de viagens estudos religiosos e filológicos Em outras palavras minha perspectiva híbrida é amplamente histó rica e antropológica considerando que eu acredito que todos os tex tos sao materiais e circunstanciais em maneiras que variam é claro de genero a genero e de período histórico a período histórico 1 Ao contrário porém de Michel Foucault a cujo trabalho devo muito acredito que existe urna marca determinante dos escritores indi viduais sobre o qué de outro modo seria um anónimo corpo coletivo de textos que constituem urna formacáo discursiva como o orientalismo 34 L A unidade do amplo conjunto de textos que eu analiso é em parte de vida ao fato de que freqüentemente eles se referem uns aos outros afinal de contas o orientalismo é um sistema feito para citar obras e autores O livro Manners and customs 01 the modern egyptians foi lido e citado por figuras tao variadas como Nerval Flaubert e Richard Burton Era urna autoridade de uso imperativo para qualquer um que escrevesse ou pensasse sobre o Oriente nao apenas sobre o Egito quando Nerval toma passagens emprestadas verbatim do Modern egyp tians é COm o propósito de usar a autoridade de Lane para ajudáIo a descrever Cenas de aldeias na Siria nao no Egito A autoridade de Lane e as oportunidades para citálo discriminada ou indiscriminadamente estavam lá porque o orientalismo podia conferir ao seu texto o tipo de aceitacáo distributiva que ele teve Nao há modo contudo de entender a aceitacáo de Lane sem entender também as caracteristicas peculiares do texto dele isso é igualmente válido para Renan Sacy Lamartine e Schlegel e um grupo de outros escritores influentes Foucault acha que em geral o texto ou autor individual conta muito pouco empiri camente no caso do orientalismo e talvez em nenhuma outra parte considero que nao é assim Conseqüentemente a minha análise ern prega leituras textuais detalhadas cuja meta é revelar a dialética entre o texto ou autor individual e a complexa forrnacáo coletiva para a qual a sua obra é urna contribuicáo Embora porém essa análise inclua urna ampla selecáo de escri tores este livro ainda está longe de urna história completa ou um relato geral do orientalismo A trama de um discurso tao espesso como o orientalismo sobreviveu e funcionou na sociedade ocidental devido a sua riqueza tudo o que fiz foi descrever partes dessa trama em certos momentos e meramente sugerir a existencia de um todo maior deta lhado interessante semeado de figuras textos e acontecimentos fasci nantes Consoleime acreditando que este livro é um entre vários e esperando que haja estudiosos e críticos que queiram escrever outros Há ainda um ensaio geral a ser escrito sobre imperialismo e cultura outros estudos examinaráo mais profundamente a conexáo entre orien talismo e pedagogia ou o orientalismo italiano holandés alernáo ou suíco ou a dinámica entre erudicáo e escrita imaginativa ou a relacáo entre idéias administrativas e disciplina intelectual Talvez a tarea mais importante de todas seria o estudo das alternativas contemporá neas para o orientalismo que investigue como se podem estudar outras culturas e outros POyOS desde urna perspectiva libertária ou náorepres siva e náomanipulatíva Nesse caso porém teríamos de reestudartodo o complexo problema de conhecimento e poder Essas sao todas tareas deixadas embaracosamente incompletas neste estudo 35 A última e talvez autoadulante observacáo sobre o método que quera fazer aquí é que escrevi este livro pensando ero vários públicos Para estudantes de literatura e crítica o orientalismo oferece um mara vilhoso exemplo de interrelacáo entre a sociedade a história e a tex tualidade além disso o papel cultural do Oriente no Ocidente liga o orientalismo aideología apolítica e alógica do poder questñes de im portancia acho para a comunidade literária Para os estudantes con temporáneos do Oriente das universidades aos centros de decisáo poli tica escrevi com dais objetivos em mente um apresentarlhes sua pró pria genealogía intelectual em um modo que ainda nao foi feíto dais criticar com a esperanca de provocar a discussáo as suposicóes muitas vezes inquestionadas das quais grande parte do trabalho deles depende Para o leitor em geral este estudo trata de questóes que sem pre atraem a atencáo todas elas conectadas nao só com as concepcóes e tratamentos ocidentais do Outro mas também com o papel singular mente importante da cultura ocidental no que Vico chamou de mundo de nacóes Por último para leitores do chamada Terceiro Mundo este estudo se propóe como um passo em direcáo a um entendimento nao tanto da política ocidental e do mundo náoocidental nessa política como daarra do discurso cultural ocidental urna íorca muitas vezes considerada erroneamente como algo decorativo ou superestrutu ral Minha esperanca é ilustrar a formidável estrutura da dorninacáo cultural e especificamente para povos outrora dominados os perigos e tentacóes de se empregar essa estrutura sobre si mesmo e sobre os outros Os tres langas capítulos e as doze unidades mais curtas em que se divide este livro tém a intencáo de facilitar a exposicáo tanto quanto possível O capítulo 1 O ámbito do orientalismo traca um amplo círculo em torno de todas as dimensóes do tema tanto em termos de tempo e experiencia históricos como em termos de temas filosóficos e políticos O capítulo 2 Estruturas e reestruturas orientalistas tenta acompanhar o desenvolvimento do orientalismo moderno mediante urna descricáo amplamente cronológica e também mediante a descri cáo de um conjunto de mecanismos comuns 11 obra de importantes poe tas artistas e eruditos O capítulo 3 O orientalismo hoje comeca ande termina o anterior por volta de 1870 Este é o periodo da grande expansáo colonial para o Oriente que culmina na Segunda Guerra A última secáo do terceiro capítulo caracteriza o deslocamento da hege monia británica e francesa para a americana nessa secáo finalmente eu tento esbocar as atuais realidades intelectuais e sociais do orienta lismo nos Estados Unidos 3 A dimensiio pessoal Nos Cadernos do cárcere Gramsci diz 36 o ponto de partida daelaboracáo crítica é a consciencia do que se é real mente e é o conhecete a ti mesmo como um produto do processo histórico até o momento que depositou em ti urna infinidade de traeos sem deixar um inventário Inexplicavelmente a única traducáo inglesa disponível deixa o comentário de Gramsci nisso quando na verdade o texto italiano con clui agregando Portanto é imperativo no início compilar tal inven tário 16 Muito do meu investimento pessoal neste estudo deriva da minha consciencia de ser um oriental como urna crianca que cresceu em duas colonias británicas Toda a minha educacáo nessas colonias Pa lestina e Egito e nos Estados Unidos foi ocidental e no entanto aquela profunda primeira impressáo permaneceu De muitas maneiras o meu estudo do orientalismo foi urna tentativa de inventariar ero mim o oriental os traeos dessa cultural cuja dorninacáo foi um fator tao poderoso na vida de todos os orientais É por isso que para miro o Oriente islámico teve de ser o centro da atencáo Se o que consegui é ou nao o inventário receitado por Gramsci nao cabe a mim julgar embora me tenha parecido importante estar consciente de estar tentando fazer um Enquanto isso tao severa e racionalmente quanto pude tentei manter urna consciencia crítica além de empregar os instrumentos de pesquisa histórica humanística e cultural de que a minha educacáo me tornou o afortunado beneficiário Em nada disso contudo perdi ja mais de vista a realidade cultural do envolvimento pessoal de ter sido constituído como um oriental As circunstancias históricas que tornaram possível tal estudo sao bastante complexas e aqui só posso enumeráIas esquematicamente Qualquer pessoa que tenha residido no Ocidente desde os anos SO particularmente nos Estados Unidos terá atravessado urna era de extraordinária turbulencia nas relacóes entre o Leste e o Oeste Nin guém terá deixado de notar de que modo Leste sempre quis dizer pe rigo e ameaca durante esse período mesmo que fosse o Oriente tradi cional além da Rússia Nas universidades um número crescente de programas e institutos de estudos de área tornou o estudo erudito do Oriente um ramo da política nacional Os negócios públicos deste pais incluem um saudável interesse pelo Oriente tanto pela sua importan cia estratégica e política quanto pelo seu tradicional exotismo Se o mundo tornouse imediatamente acessível para o cidadáo ocidental que vive na era eletróníca o Oriente também ficou mais próximo e talvez seja agora menos um mito que um lugar permeado por interesses oci dentais e especialmente americanos 37 1 1 tera de certo modo como ser humano portanto DaD é para mirourna questáo exclusivamente académica mas é urna questáo intelectual de urna importancia bastante óbvia Fui capaz de utilizar os meus interes ses políticos e humanísticos na análise e na descricáo de urna questáo bem terrena a ascensáo desenvolvimento e consolidacáo do orientalis mo Com demasiada freqüéncia supóese que a literatura e a cultura sao política e até historicamente inocentes para mím as coisas pare cem diferentes e certamente omeuestudo doorientalismoconvenceume e espero que convenca os meus colegas literários de que a sociedade e a cultura literária só podem ser entendidas e estudadas juntas Além disso e por urna lógica quase inelutável encontreime escrevendo a história de um estranho e secreto partidário do antisemitismo ociden tal Que esse antisemitismo e tal como o discuti em sua versáo isla mica o orientalismo se parecem intimamente é urna verdade histórica cultural e política que precisa apenas ser mencionada para um árabe palestino a fim de que sua ironia seja perfeitamente entendida Mas eu também gostaria de ter contribuído aqui com um melhor entendimento da maneira como a dorninacáo cultural operou Se isso estimular um novo tipo de relacóes com o Oriente se na verdade isso eliminar o Oriente e o Ocidente como um todo teremos avancado um poueo no processo daquilo que Raymond Williams chamou de desaprendí zado do modo dominativo inerente l Um aspecto do mundo eletrónico pósmoderno é que houve um reforce dos estereótipos pelos quais o Oriente é visto A televisáo os filmes e todos os recursos da mídia íorcaram a informacáo para dentro de moldes cada vez mais padronizados No que diz respeito ao Oriente a padronizacáo e a estereotipacáo cultural intensificaram o domínio da demonologia académica e imaginativa do Oriente misterioso Em lugar algum isso é mais verdadeiro que nos modos como o Oriente Próximo é compreendido Tres coisas contribuíram para transformar até mesmo a mais simples percepcáo dos árabes e do isla em urna ques tao altamente politizada quase áspera urna a história do preconceito popular antiárabe e antiislámíco no Ocidente imediatamente rene tido na história do orientalismo duas a luta entre os árabes e o sio nismo israelita e os seus efeitos sobre o judeu americano bem como sobre a cultura liberal e a populacáo em geral tres a quase total ausencia de qualquer posicáo cultural que tornasse possível seja iden tificarse com os árabes e com o isla seja discutilos com isencáo Além disso quase nao é preciso dizer que posto que o Oriente Médio está hoje identificado com a política das Grandes Potencias com a política do petróleo e com a dicotomia simplista do democrático e amante da liberdade Israel e os árabes maus totalitários e terroristas as chances de qualquer coisa parecida com urna visáo clara de sobre o que se está falando quando se está falando sobre o Oriente Próximo sao depressi vamente pequenas As minhas próprias experiencias nessas questóes sao parte do que me fez escrever este livro A vida de um árabe palestino no Ocidente especialmente nos Estados Unidos é desanimadora Existe aqui um consenso quase unánime de que politicamente ele nao existe e quando é admitido que ele existe é como uro incomodo ou como uro oriental A teia do racismo dos estereótipos culturais do imperialismo político e da ideologia desumanizante que contém o árabe ou o muculmano é realmente muito forte e é esta teia que cada palestino veio a sentir como seu destino singularmente punitivo O que tornou as coisas piores para ele foi observar que ninguém que esteja academicamente envolvido com o Oriente Próximo ou seja nenhum orientalista nos Estados Unidos identificouse convictamente com os árabes cultural e politi camente houve corocerteza identificacées eroalguns níveis mas estas nunca assumiramurnaforma aceítável como a identificacáo liberal americanacoroo sionismo e corogrande freqüéncia íoram invalidadas por sua associacáo com interesses políticos e económicos desacreditados companhias petrolíferas e arabistas do Departamento de Estado por exemplo ou com a religiáo O nexo de conhecimento e poder que cria o oriental e o obli 38 L 39 i I li 1