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Copyright 2004 by Éditions Flammarion Copyright da tradução 2005 by Editora Globo SA Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma seja mecânico ou eletrônico fotocópia gravação etc nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados sem a expressa autorização da editora Texto fixado conforme as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Decreto Legislativo n 54 de 1995 Título original La civilization féodale de lan mil à la colonization de lAmerique Preparação Beatriz de Freitas Moreira Revisão Valquíria Della Pozza Maria Sylvia Corrêa Índice remissivo Luciano Marchiori Capa Ettore Bottini sobre iluminuras de Les trés riches heures du Duc de Berry 141016 dos irmãos Limbourg Musée Condé Château de Chantilly 3ª reimpressão 2011 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Baschet Jérôme A civilização feudal do ano 1000 à colonização da América Jérôme Baschet tradução Marcelo Rede prefácio Jacques Le Goff São Paulo Globo 2006 Título original La civilization féodale de lan mil à la colonization de lAmerique ISBN 9788525041395 1 Civilização medieval 2 Europa História medieval 3 Idade Média I Le Goff Jacques II Título 061863 CDD9401 Índice para catálogo sistemático 1 Civilização medieval História 9401 Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo S A Av Jaguaré 1485 05346902 São Paulo SP wwwglobolivroscombr Jérôme Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL Do ano mil à colonização da América tradução Marcelo Rede Professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense prefácio Jacques Le Goff EDITORA GLOBO matéria de artesanato e principalmente do trabalho com metais superior à do mundo romano asseguramlhes algumas vantagens e permitem que eles se aproveitem das fraquezas de um Império em dificuldade O termo invasões não é mais satisfatório do que o termo bárbaros Houve vários episódios sangrentos conflitos militares incursões violentas e ocupações de cidades certamente aqueles aos quais as narrativas dos cronistas deram maior relevo Entretanto a instalação dos povos germânicos deve ser imaginada sobretudo como uma infiltração lenta durando vários séculos como uma imigração progressiva e muitas vezes pacífica durante a qual os recémchegados se instalaram individualmente aproveitandose de seus talentos artesanais ou pondo sua força física a serviço da armada romana ou também em grupos numerosos beneficiandose então de um acordo com o Estado romano que lhes concedia o estatuto de povo federado O Império soube então em um primeiro momento absorver essa imigração ou compor com ela antes de desaparecer sob o efeito de suas próprias contradições exacerbadas à medida que a infiltração estrangeira se ampliava A historiografia recente demonstrouo bem a zona de fronteira limes ao norte do Império teve um papel marcante menos como separação como se imagina com frequência do que como espaço de trocas e interpenetração Do lado romano a presença de exércitos consideráveis e a implantação de um cordão de cidades importantes na retaguarda Paris Trèves Colônia estimulam a atividade dessas regiões e aumentam seu peso demográfico lançando assim sem dúvida as bases da importância adquirida pelo Noroeste da Europa a partir da Alta Idade Média Quanto aos grupos germânicos que vivem próximos do limes eles deixam de ser nômades e tornamse camponeses vivendo em aldeias e praticando o pastoreio o que lhes permite também serem guerreiros mais bem nutridos que os romanos Devido à sua sedentarização seu modo de vida é menos diferente do que se poderia crer daquele dos povos romanizados que aliás comercializam de bom grado com eles Assim quando as razias dos hunos vindos da Ásia Central se abatem sobre a Europa os visigodos que pedem autorização para entrar no Império são agricultores tão inquietos diante desse novo perigo quanto os próprios romanos A fronteira foi então o espaço em que romanos e não romanos habituaramse a se encontrar e a fazer trocas começando a dar à luz uma realidade intermediária ela tornase o eixo involuntário em torno do qual os mundos romanos e bárbaros convergiam Peter Brown Mais tarde a unidade imperial deslocase definitivamente cedendo o lugar no decorrer dos séculos V e VI a uma dezena de reinos germânicos Desde 42939 os vândalos instalamse no Norte da África com o estatuto de povo federado depois é a vez dos visigodos na Espanha e na Aquitânia dos ostrogodos na Itália com Teodorico que reina a partir de 493 dos burgúndios no Leste da Gália dos francos ao norte desta e na Baixa Renânia e finalmente a partir de 570 os anglos e os saxões que estabelecem na GrãBretanha com exceção dos territórios da Escócia da Irlanda e do País de Gales que permanecem celtas os numerosos reinos que se dilacerarão no decorrer da Alta Idade Média Kent Wessex Essex Ânglia Oriental Mercia Northumbria Sem conseguir de qualquer modo inverter a fragmentação que caracteriza então o Ocidente um fenômeno notável desse período é o aumento do poderio dos francos conduzidos pelos soberanos da dinastia merovíngia fundada por Clóvis 511 e ilustrada por Clotário 561 e Dagoberto 639 Os francos conseguem com efeito expulsar os visigodos da Aquitânia na batalha de Vouillé em 507 incorporar os territórios de outros povos especialmente aquele dos burgúndios em 534 para finalmente dominar o conjunto da Gália salvo a Armórica celta Eles adquirem assim uma primazia no seio dos reinos germânicos o que reforça ainda mais o peso já dominante demograficamente da Gália Um pouco mais tarde no decorrer do século VI os últimos dos povos germânicos a chegarem os lombardos instalamse na Itália contribuindo para arruinar a reconquista de uma parte do antigo Império do Ocidente levada a cabo pelo imperador do Oriente Justiniano 565 Mesmo após a instalação dos povos germânicos o Ocidente altomedieval continua a ser marcado pela instabilidade do povoamento e pela presença dos recémchegados A expansão muçulmana submerge a Península Ibérica e põe fim ao reino visigótico em 711 enquanto bandos armados muçulmanos avançam até o centro da Gália com a intenção de pilhar Tours até serem vencidos em Poitiers em 732 pelo chefe franco Carlos Martel o que os obriga a bater em retirada para além dos Pireneus Depois na segunda parte da Alta Idade Média é preciso mencionar as incursões tumultuosas dos húngaros no século x e sobretudo dos povos escandinavos também chamados vikings ou normandos literalmente os homens do Norte Guerreiros valentes e grandes navegadores estes últimos atacam incessantemente as costas da Inglaterra desde o fim do século VIII e submetem os reinos anglosaxões ao pagamento de um tributo até que o dinamarquês Cnut se imponha como rei de toda a Inglaterra 101635 No continente os homens do Norte aproveitamse do enfraquecimento do Império Carolíngio e a partir dos anos 840 não se contentam mais em atacar as regiões costeiras mas penetram profundamente em todo o oeste dos territórios francos evocando suas divindades pagãs e semeando pânico e destruição Finalmente os soberanos carolíngios são obrigados a ceder e o Tratado de SaintClairsurEpte 911 concede aos normandos a região que no Oeste da França tem ainda hoje seu nome Mas o expansionismo dos vikings não para por aí e a partir desta base continental o duque da Normandia Guilherme o Conquistador se lança sobre a Inglaterra da qual ele se torna rei na sequência da vitória obtida em Hastings 1066 sobre Haroldo que se esforçava para reconstruir um reino anglosaxão Por outro lado a família normanda dos Hauteville arriscase ainda mais longe conquistando o Sul da Itália com Roberto Guiscardo em 1061 e depois a Sicília em 1062 até que Roger II reunindo o conjunto desses territórios termine por obter o título de rei da Sicília da Apúlia e da Calábria em 1130 Finalmente os vikings da Escandinávia sob a condução do legendário Érico o Vermelho implantamse a partir do fim do primeiro milênio e por muitos séculos nas costas da Groenlândia que eles já denominam país verde A partir dali Leif Eriksson e seus homens aventuramse no início do século XI até os rios do Canadá e sem dúvida da Terra Nova mas são logo expulsos pelos seus habitantes Eles foram assim os primeiros europeus a pisar em solo americano mas sua aventura sem continuidade não teve o menor efeito histórico A fusão romanogermânica Voltemos um pouco atrás para sublinhar os efeitos da fragmentação da unidade romana e da instauração dos reinos germânicos O conjunto desses movimentos contribui para o deslocamento do centro de gravidade do mundo ocidental do Mediterrâneo para o Noroeste da Europa Aos fatores já evocados papel da antiga fronteira romana peso demográfico da Gália expansão dos francos é preciso juntar a conquista duradoura da Espanha pelos muçulmanos que controlam igualmente o conjunto do Mediterrâneo ocidental e a desorganização da Itália esgotada pelo insustentável projeto da reconquista justiniana e pela epidemia da peste que a devasta a partir de 570 e durante o século VII Desde então o papel principal na Europa cristã transferese para o Norte Outra consequência da desagregação do Império do Ocidente é o desaparecimento de todo o verdadeiro Estado Uma vez quebrada a unidade de Roma seu sistema fiscal desaba com ela O ocaso da estrutura fiscal romana é na verdade um dos fatores que favorecem a conquista pelos povos germânicos Mesmo se a dominação bárbara lhes custa do ponto de vista cultural as cidades percebem muito bem que ela é preferível ao peso crescente do fisco romano ao mesmo tempo que os reis germânicos se dão conta de que o preço a ser pago por uma conquista fácil é muitas vezes o de outorgar aos proprietários romanos privilégios fiscais tão amplos que o sistema fiscal foi destruído a partir do interior Chris Wickham O desabamento da estrutura fiscal fez do Ocidente a partir do meio do século VI um conjunto de regiões sem relação entre si e os reinos germânicos mesmo quando levam mais longe a conquista permanecem atrelados a essa profunda regionalização Eles são incapazes de restaurar o imposto ou mesmo de exercer um verdadeiro controle sobre seus territórios e sobre as elites locais Assim se os reis germânicos têm uma intensa atividade de codificação jurídica redigindo códigos e editos onde se misturam breviários de direito romano e compilações de costumes tradicionais de origem germânica lei sálica dos francos leis de Etelberto editos de Rotário etc esse frenesi jurídico corresponde à ausência de todo o poder real efetivo e toda tentativa séria de aplicação se revela um imenso fracasso A força de um rei germânico é essencialmente um poder de fato protegido por uma corte ligada a ele por um laço pessoal de fidelidade ele é um guerreiro inconteste conduzindo seus homens à vitória militar e à pilhagem O processo que confunde a coisa pública com as possessões privadas do soberano iniciado desde o século III conduziu no caso dos reis germânicos a uma completa confusão Resulta disso um patrimonialismo do poder que permite notadamente recompensar servidores fiéis através da concessão de um bem público Em resumo é impossível considerar Estados os reinos da Alta Idade Média Entretanto seria um engano crer que o fim do Império signifique a substituição completa das estruturas sociais e culturais de Roma por um universo importado próprio dos povos germânicos Mais do que isso constase um processo de convergência e de mistura do qual as elites romanas locais são sem nenhuma dúvida os atores principais Elas compreendem que lhes é possível manter suas posições sem o apoio de Roma desde que consintam em compor minimamente com os chefes de guerra germânicos É claro custalhes negociar com esses bárbaros vestidos de peles de animais e de cabelos longos que tudo ignoram dos refinamentos da civilização urbana Mas o interesse prevalece e os chefes bárbaros recebem sua parte da riqueza romana terras e escravos a ponto de tornaremse membros eminentes das elites locais Pouco a pouco e inicialmente na Espanha e na Gália as diferenças entre aristocratas romanos e chefes germânicos atenuamse e com maior intensidade ainda devido aos casamentos que com frequência unem suas linhagens Assim operase a unificação das elites que terminam por partilhar um estilo de vida comum cada vez mais militarizado mas também fundado sobre a propriedade da terra e o controle das cidades Essa fusão cultural romanogermânica é um dos traços fundamentais da Alta Idade Média e foi sem dúvida entre os francos que teve maior êxito o que é um dos ingredientes de sua expansão Essa fusão é de A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 53 Jérôme Baschet 52 Jérôme Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 51 resto precocemente ilustrada pelo selo de Childerico 481 o pai de Clóvis no qual o rei aparece retratado com os longos cabelos do chefe de guerra franco caindo sobre as pregas de uma toga romana Peter Brown A CONTURBAÇÃO DAS ESTRUTURAS ANTIGAS O declínio comercial e urbano As desordens ligadas aos movimentos migratórios e ao fim da unidade romana têm consequências econômicas de primeira importância A insegurança combinada à falta de espécimes monetários e à ausência de manutenção seguida pela destruição progressiva da rede de estradas romanas engendra o declínio e o quase desaparecimento do grande comércio antes tão importante no Império Evidentemente alguns produtos de luxo continuam a alimentar as cortes reais e as casas aristocráticas especiarias e produtos do Oriente armas e peles da Escandinávia escravos da GrãBretanha Sem a manutenção ainda que mínima de um fluxo de troca de longa distância não se poderia explicar o tesouro da tumba real de SuttonHoo Suffolk Inglaterra do século VII no qual foram encontrados armas e paramentos escandinavos peças de ouro da França prata de Constantinopla e seda da Síria Mas o esgotamento afeta o que compunha o essencial da circulação de mercadorias no Império ou seja os produtos alimentares de base como os cereais maciçamente importados da África para Roma e que serviam até mesmo ao abastecimento das tropas concentradas na fronteira norte ou ainda os produtos artesanais que circulavam amplamente entre as regiões Podese mencionar assim graças ao testemunho da arqueologia o caso da cerâmica africana que tinha invadido todo o mundo mediterrâneo durante o Baixo Império e cujas exportações embora poupadas pela conquista vândala declinam e desaparecem em meados do século VI abrindo caminho para o surgimento de estilos regionais de cerâmica Com efeito é do século VI que se deve datar o declínio maciço de todos os setores do artesanato exceto da metalurgia para a qual os povos germânicos contribuem com um conhecimento superior e o fim das ilhas de prosperidade econômica que tinham sido preservadas até então A produção realizase doravante em uma escala cada vez mais local o que acentua ainda mais o declínio das trocas A regionalização das atividades produtivas paralela à fragmentação política é justamente uma das características fundamentais da Alta Idade Média 54 Jérôme Baschet Junto com o grande comércio as cidades não menos emblemáticas da civilização romana conhecem um profundo declínio Suas dimensões reduzemse de modo considerável Roma que deve ter atingido 1 milhão de habitantes tem ainda 200 mil depois de 410 mas somente 50 mil no fim do século VI para tomar um outro exemplo bem mais comum uma cidade do centro da Gália como Clermont que antes se estendia por duzentos hectares encerra em estreitas muralhas um território reduzido a três hectares Desde 250 tem início a diminuição do ritmo das construções públicas que faziam as honras das cidades romanas e que cessam completamente após 400 com a exceção dos edifícios episcopais Os antigos edifícios públicos caem em ruínas e seus materiais são muitas vezes reutilizados para edificar igrejas ou casas particulares As elites senatoriais antes associadas ao prestígio da capital voltamse para os seus domínios villae enquanto as instituições urbanas como a curia antiga instância de governo autônomo das cidades vacilam diante do poder crescente dos bispos Em suma as cidades e com elas a cultura urbana que compunha o coração da civilização romana não são mais do que a sombra delas mesmas Mas a despeito de seu declínio considerável as cidades do Ocidente jamais desaparecem completamente Podese mesmo dizer que aproveitandose da fraqueza do controle exercido pelos reis germânicos elas se mantêm como os principais atores políticos no nível local durante os séculos VI a VIII Chris Wickham Seu papel é por certo apagado mas graças à ampla autonomia das elites urbanas e ao desenvolvimento da função episcopal elas conseguem sobreviver à crise final do sistema romano Enquanto as cidades declinam a ruralização constitui um traço essencial da Alta Idade Média As desordens já mencionadas são sentidas também nos campos e os séculos V e VI são caracterizados por uma crise de produção agrícola Seria porém imprudente estender essa conclusão ao conjunto do período considerado aqui Ao contrário apesar da raridade de fontes de informação os historiadores acumulam indícios que põem em causa a ideia tradicional de uma recessão generalizada dos campos durante a Alta Idade Média Evidentemente a diminuição de cerca de um terço do tamanho dos animais de criação entre o Baixo Império e a Alta Idade Média indica o recuo do grande domínio e o abandono da comercialização do rebanho em benefício de uma criação para uso local Entretanto constatase também durante a Alta Idade Média a difusão lenta de certas inovações técnicas moinho dágua instrumental metálico assim como uma leve expansão das superfícies cultivadas Tratase é claro de um primeiro desenvolvimento limitado e frágil muitas vezes interrompido e periodicamente posto em causa por circunstâncias adversas mas em todo caso fundamental na medida em que ele acumula as forças silenciosas que se afirmarão durante o período seguinte A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 55 O desaparecimento da escravidão O mais determinante sem dúvida são as profundas transformações das estruturas sociais rurais No mundo romano o essencial da produção agrícola era assegurado no quadro do grande domínio escravista Ora é justamente esse tipo de organização começando pela própria escravidão que desaparece Essa questão suscitou amplas discussões que ainda hoje estão longe de estar resolvidas e são esclarecidas apenas por informações imperfeitas Entretanto uma constatação essencial é capaz de obter unanimidade quando se atinge o século XI a escravidão que constituía a base da produção agrícola no Império Romano cessou de existir de modo que entre o fim da Antiguidade tardia e o fim da Alta Idade Média ocorre inequivavelmente o desaparecimento da escravidão produtiva por outro lado a escravidão doméstica que não tem nenhum papel na produção agrícola continua a existir notadamente nas cidades da Europa mediterrânica até o fim da Idade Média e mesmo depois Mas o acordo termina desde que se levantem três questões determinantes para compreender o desaparecimento da escravidão Por quê Quando Como As causas religiosas tradicionalmente evocadas tiveram sua importância limitada pela historiografia do último meio século De fato o cristianismo está longe de condenar a escravidão como atestam os escritos de são Paulo Pelo contrário ele se esforça para reforçar a sua legitimidade a tal ponto que teólogos como santo Agostinho e Isidoro de Sevilha tão essenciais para o pensamento medieval veem nela um castigo de Deus É verdade que a Igreja considera a libertação dos escravos manumissio um ato piedoso mas ela própria não dá o exemplo pois os escravos que possui em grande número são considerados pertencentes a Deus e assim não poderiam ser retirados de um senhor tão eminente para não mencionar o fato de que um papa como Gregório o Grande compra novos escravos Entretanto ainda que a Igreja em nada se oponha à escravidão a difusão das práticas cristãs modifica profundamente a percepção dos escravos e ameniza pouco a pouco sua exclusão da sociedade humana Com efeito se num primeiro momento a Igreja proíbe a redução à escravidão de um cristão a seguir ela reconhece que o escravo é um cristão este recebe o batismo sua alma deve portanto ser salva e ele partilha o mesmo lugar dos homens livres durante os ofícios Tal prática que diminui a separação entre livres e não livres tende a solapar os fundamentos ideológicos da escravidão ou seja a natureza infrahumana do escravo e sua dessocialização radical Pierre Bonnassie Causas militares também são tradicionalmente evocadas pois o fim das guerras romanas de conquista parece secar as fontes de abastecimento de escravos Mas as desordens do século V suscitam ao contrário uma alta do número de escravos e as guerras incessantes levadas a cabo pelos reinos germânicos entre si ou contra as populações anteriormente estabelecidas os celtas vítimas do avanço dos anglosaxões nas Ilhas Britânicas são massacrados condenados ao exílio na Armórica ou reduzidos à escravidão asseguram a manutenção de um manancial de novos fornecimentos ao longo dos séculos VI e VII do mesmo modo que no século IX as razias carolíngias na Boêmia e na Europa Central Mas enquanto o escravo antigo era um estrangeiro ignorando a língua de seus senhores não ocorre mais o mesmo com o escravo desse período com frequência capturado no decorrer de uma guerra entre vizinhos o que contribui ainda mais para reduzir sua dessocialização e a distância que o separa dos homens livres Rejeitando as explicações ligadas aos contextos religioso e militar a historiografia desde Marc Bloch insistiu sobre as causas econômicas do declínio da escravidão uma vez desaparecido o contexto bastante aberto da economia antiga que permitia obter grandes benefícios da produção agrícola a escravidão deixa de ser adaptada Os grandes proprietários se dão conta do custo e do peso da manutenção da mão de obra escrava que é preciso alimentar durante todo o ano inclusive durante as estações não produtivas Doravante revelase mais eficaz instalála em terrenos situados às margens do domínio o que lhe permite obter sua subsistência em troca de um trabalho realizado nas terras do senhor ou de uma parte da colheita obtida Tal é o processo de chasement já praticado no século III e bem atestado entre o século VI e o IX Ele leva à formação do grande domínio considerado a organização rural clássica da Alta Idade Média e em particular da época carolíngia Muitas vezes tão extenso como aqueles da Antiguidade por vezes superando 10 mil hectares ele se caracteriza por uma dualidade entre a reserva terra dominicata explorada diretamente pelo senhor graças à mão de obra servil e ao pesado trabalho que os camponeses vinculados devem realizar em suas terras em geral três dias por semana e os mansos mansi parcelas onde estes últimos são instalados e graças às quais eles asseguram sua subsistência Modificações importantes devem ser entretanto acrescentadas ao esquema acima A importância do grande domínio deve ser relativizada Se ele constitui a forma de organização que assegura de modo privilegiado o poderio dos grupos dominantes aristocracia e Igreja convém sublinhar a importância durante a Alta Idade Média de pequenos camponeses livres que cultivam terras independentes dos grandes domínios denominadas alódios Esses homens livres beneficiavamse de uma posição privilegiada particularmente em matéria judi ciária mas sobre eles pesam obrigações especialmente militares que são difíceis de suportar já que são bastante pobres É por isso que se enfatizou que eles deveriam se interessar de perto pelas possibilidades oferecidas pelas inovações técnicas e por tudo que pudesse aumentar sua produção Enquanto alguns his 56 Jérôme Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 57 toriadores associam o primeiro desenvolvimento dos campos a partir do século VIII aos grandes domínios outros se perguntam se ele não foi antes obra dos campos alodiais e se estes últimos não constituam então a maioria da população rural Em todo caso a dinâmica atinge os grandes domínios onde termina por acentuar o processo de vinculação chasement dos antigos escravos a descentralização de satélites que dependem do domínio principal e o enfraquecimento do controle sobre os mansos A dificuldade de organização dos grandes domínios e os inconvenientes da mão de obra escrava foram certamente causas decisivas da decadência da escravidão mas intervêm não no contexto de recessão suposto por Marc Bloch mas em interação com o relativo desenvolvimento posto em marcha pelo campesinato alodial Críticas posteriores à obra de Marc Bloch sugerem que as causas econômicas não são suficientes Assim alguns quiseram sublinhar que o fim da escravidão era a obra dos próprios escravos e de suas lutas de classe pela libertação Pierre Dockès Podese com efeito dar relevo à importância das guerras bagualdas revoltas de escravos que explodem no século III e depois em meados do século V assim como a revolta dos escravos das Astúrias em 770 ou ainda sublinhar que existem várias outras formas de resistência desde a reticência ante o trabalho ou simplesmente sua sabotagem até a fuga que no decorrer da Alta Idade Média se faz cada vez mais maciça suscitando preocupação crescente das camadas dominantes Entretanto tendo em vista a cronologia se é difícil atribuir o papel determinante às lutas dos dominados as observações de Pierre Dockès estimularam a sublinhar o papel das transformações políticas Com efeito a manutenção de um sistema de exploração tão rude como a escravidão supõe a existência de um aparelho de Estado forte garantindo sua reprodução pelas leis que lhe conferem legitimidade ideológica e pela existência de uma força repressiva utilizada ou não mas sempre ameaçadora indispensável para garantir a obediência dos dominados Do mesmo modo quando declinou o aparelho do Estado antigo os proprietários fundiários tiveram cada vez mais dificuldade em manter sua dominação sobre seus escravos É verdade que cada sobressalto do poder político inclusive ainda durante a época carolíngia parece propício a uma defesa da escravidão mas tratase sempre de tentativas limitadas e cada vez menos capazes de frear uma evolução cada vez mais irresistível Assim é uma mutação global ao mesmo tempo econômica social e política que conduz os senhores a transformar grandes domínios que haviam se tornado incontroláveis e pouco adaptados às novas realidades e a renunciar progressivamente à exploração direta do rebanho humano A cronologia da extinção da escravidão não está menos sujeita à controvérsia Podese entretanto renunciar às teses mais extremas Assim a maior parte dos historiadores marxistas obnubilados pelos escritos dos clássicos do materialismo histórico associa o fim do escravagismo à crise do Império Romano que se supõe ter marcado nos séculos III a V a transição decisiva do modo de produção antigo para o modo de produção feudal Mas as pesquisas realizadas desde há mais de meio século demonstraram o caráter insustentável dessa tese uma vez que numerosas fontes atestam a manutenção maciça durante a Alta Idade Média de uma escravidão essencialmente idêntica àquela da Antiguidade Assim nas leis germânicas dos séculos VI a VIII a condição infrahumana do escravo é reiterada sem modificações substanciais o escravo é comparado a um animal como o confirmam as frequentes menções que dele são feitas nas rubricas consagradas ao gado A fim de obter sua obediência pelo terror ele pode ser espancado mutilado ablação do nariz das orelhas dos lábios ou scalpo opções que têm a vantagem de não diminuir sua força de trabalho e mesmo morto se necessário Ele é privado de todo direito de propriedade plena não pode se casar e seus filhos pertencem a seu senhor que pode vendêlos a seu critério Enfim a interdição das relações sexuais do escravo com uma mulher livre equiparadas a um ato de bestialidade punível com a morte dos dois culpados confirma a segregação radical de que são vítimas os escravos Assim a manutenção da escravidão produtiva durante a Alta Idade Média é bem atestada mas nem por isso se poderia pensar em empurrar seu desaparecimento para o extremo fim do século X ou mesmo para o início do século XI como o faz notadamente Guy Bois É possível que por volta do ano mil ainda existam escravos nos domínios rurais denominados nos textos servus ou mancipium mas além do fato de podermos discutir sua situação sua importância é doravante limitada até mesmo marginal e eles deixaram de sustentar o essencial das tarefas produtivas Admitirseá então com Pierre Bonnassie que a extinção do regime escravagista é uma longa história que se estende por toda a Alta Idade Média O essencial do processo consumase sem dúvida entre os séculos V e VIII enquanto os testemunhos dos séculos IX e X manifestam os últimos esforços para salvar um sistema que se tornara insustentável e que finalmente agoniza e morre definitivamente Tendo já evocado as principais modalidades de extinção da escravidão serão suficientes apenas algumas observações complementares sobre esse ponto Uma das vias é a liberação dos escravos manumissio que passam a engrossar as fileiras desse pequeno campesinato livre ao qual se pode atribuir o primeiro crescimento dos campos da Alta Idade Média Entretanto a liberação nem sempre se dá sem restrições e a prática bastante frequente da manumissio cum obsequio prevê uma ressalva de obediência e a obrigação de prestar serviços ao senhor 58 Jérôme Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 59 to egípcio de quem ele descreve em suas Instituições cenobitas as realizações penitenciais e a sabedoria enquanto santo Honorato funda não longe dali o monastério de Lerins rígida escola onde são formados os filhos da aristocracia meridional destinados à carreira episcopal Mas é sobretudo no século VI que as fundações monásticas se multiplicam como tantas outras iniciativas particulares assumidas com frequência pelos bispos ou por vezes a título privado Assim Cesário bispo de Arles cria em 512 um monastério para sua irmã e outras duzentas monjas para as mulheres muitas vezes originárias da aristocracia o ideal fundamental é a preservação da virgindade Em meados do mesmo século Cassiodoro 490580 funda um monastério no Sul da Itália o qual busca ser sobretudo um lugar de cultura consagrado à preservação da retórica e da gramática latinas e à difusão da literatura cristã Um pouco mais tarde Gregório o Grande saído de uma família romana renuncia à sua carreira de funcionário imperial e decide transformar sua casa no Aventino em um retiro onde leva uma vida de penitência extremamente severa Várias obras que se esforçam para codificar as regras da vida monástica circulam na Itália desse tempo tais como a anônima Regra do senhor ou a Regra de são Bento destinada a ter um futuro mais glorioso Morto em 547 este é apenas um fundador dentre outros e seu monastério do Monte Cassino é destruído pouco tempo depois pelos lombardos Sem dúvida é Gregório o Grande o verdadeiro inventor da figura de Bento de quem ele conta a vida e os milagres no livro II de seus Diálogos em 594 preparando assim a origem mais tardia do movimento monástico que será chamado beneditino Enfim mais ao norte em 590 Colombano um santo homem vindo da Irlanda funda Luxeuil nos Vosges onde a aristocracia franca faz educar seus filhos Por volta de 600 existem ao todo cerca de duzentos monastérios na Gália e um século depois mais 320 alguns dos quais são imensamente ricos possuindo por vezes até 20 mil hectares de terras O conjunto desses estabelecimentos geralmente fundados em lugares isolados permite ao cristianismo fincar pé nos campos ao lado da rede urbana dos bispos existe agora uma plantação rural de fundações monásticas O sucesso dessa instituição é considerável A tal ponto que no século VI a palavra conversão adquire um novo sentido Ela não significa mais apenas a adesão a uma nova fé mas também a escolha de uma vida resolutamente distinta marcada pela entrada em um monastério Com efeito se os primeiros discípulos de Cristo eram uma elite cuja escolha árdua podia ser vista como sinal seguro da eleição divina a partir de agora em uma sociedade tornada inteiramente cristã alguns se perguntam se a qualidade de cristão é uma garantia suficiente para alcançar a salvação Como conseguir pois a própria salvação em meio das atribulações do mundo secular Como se preservar do pecado quando se participa dos negócios de um tempo tumultuoso Aos laicos devotos o ideal de vida cristão parece cada vez mais inacessível e mesmo a carreira eclesiástica estreitamente ligada às preocupações mundanas parece muito pouco segura A exigência de uma escola mais rude impõese esta será o monastério lugar de estudo e de prece de mortificação de si mesmo pela obediência alienante ao abade pela penitência e pela privação Espiritual e ideologicamente a aparição do movimento monástico é então o contragolpe da formação de uma sociedade que se quer inteiramente cristã mas se admite necessariamente imperfeita Ele é o refúgio de um ideal ascético em meio a um mundo que a teologia moral de Agostinho e de Gregório entrega à onipresença do pecado Mas ele é também o instrumento de um aprofundamento da cristianização do espaço ocidental e da penetração da Igreja nos campos A luta contra o paganismo Através de que processos ocorreu a conversão do Ocidente ao cristianismo Ao que tudo indica o batismo de um rei e de alguns guerreiros não é suficiente para tornar um povo cristão Por volta de 500 o cristianismo é ainda essencialmente uma religião das cidades e bastante imperfeita pois por exemplo em 495 ainda são celebradas em Roma as Lupercais festas pagãs de purificação ao longo das quais os jovens aristocratas correm nus através da cidade Para se ter uma ideia basta saber que é então que a palavra pagão ganha o sentido cristão que conhecemos ainda hoje No entanto como sublinha a História contra os pagãos de Orósio pagão paganus é também o homem do pagus o camponês Assim o politeísmo antigo é considerado uma crença de homens rurais atrasados Ele não somente é uma ilusão fora de moda como já o havia dito Constantino mas além disso é um resquício rural objeto do desprezo dos citadinos Para os cristãos os deuses antigos existem mas são demônios que é preciso caçar A expulsão dos demônios encontrase então no centro de toda narrativa de propagação da fé cristã contra o paganismo A primeira forma disso é o batismo que tanto quanto uma adesão a Deus é uma renúncia a Satã e aos demônios do paganismo Eu renuncio a todas as obras do diabo Thunor Wotan e Saxnot diz uma fórmula para o batismo dos saxões Mas ele é geralmente insuficiente e é por isso que o exorcismo que visa caçar os demônios alojados no corpo dos fiéis é praticado em grande escala por clérigos especializados A outra modalidade decisiva é a destruição dos templos pagãos de seus altares e estátuas a fim de expulsar deles os demônios São Martinho de Tours é o próprio exemplo do bispo aplicado a essa dupla tarefa como exorcista e como destruidor de templos É também o caso de são Marcel de Paris cuja legenda diz triunfar sobre um temido dragão que encarna sem dúvida tanto o diabo e o paganismo como as forças de uma natureza insubmissa que o santo consegue domar Ele aparece então como um herói duplamente civilizador encarnando conjuntamente a vitória do cristianismo sobre o paganismo e do homem sobre a natureza No entanto esse primeiro procedimento é insuficiente É provável que muitos dos cristãos da Alta Idade Média partilhassem as dúvidas dos auditores de Agostinho se é certo que o Deus único do cristianismo governa as coisas superiores aquelas do céu e do além seria também evidente que ele se preocupe com negócios prosaicos e naturais deste mundo aqui embaixo Não seria necessário pensar ao contrário que estas são regidas por espíritos inferiores Um século mais tarde os sermões de Cesário de Arles 470542 dão uma versão típica dessa preocupação dos clérigos em sua luta contra um paganismo que persiste mesmo quando os templos foram destruídos e os ídolos quebrados Seus restos é este o sentido da palavra superstitio estão em todos os lugares como tantos outros maus costumes e hábitos sacrílegos que é necessário erradicar A dificuldade mais grave diz respeito sem dúvida à sacralidade difusa do mundo natural que os pagãos percebem como impregnado de forças sobrenaturais Ainda em 690 na Espanha é preciso transferir para as igrejas as oferendas votivas acumuladas em torno de árvores sagradas de fontes em cruzamentos ou no topo das colinas A visão cristã do mundo impõe dessacralizar totalmente a natureza submetendoa inteiramente ao homem Mas isso seria possível num mundo tão ruralizado como o da Idade Média O culto dos santos que segundo a doutrina da Igreja teriam o seu poder derivado do próprio Deus é certamente o único compromisso eficaz e aceitável diante desse desafio impossível Com efeito se os ares daqui de baixo continuam habitados pelos demônios os bons cristãos devem se recusar a se aliar com eles como o fazem alguns e devem se confiar aos santos capazes de controlálos e também sem dúvida de certa maneira de substituílos e encarnar o conjunto dessas potências intermediárias entre os homens e Deus Sua ação concreta se faz presente em todos os lugares da cristandade de modo que através de seus gestos sensíveis as múltiplas manifestações de uma sacralidade difusa podem ser consideradas a expressão da vontade de Deus Essas dificuldades voltam à tona cada vez que a fronteira da cristandade avança e põe os clérigos diante de um paganismo ainda vivo ou superficialmente encoberto Durante os séculos da Alta Idade Média duas atitudes complementares são logo postas em marcha destruir e desviar A primeira é acompanhada de preferência por uma substituição como o gesto realizado por são Bonifácio quando em 730 ele derruba o carvalho de Thunor e depois utiliza as tábuas tiradas dessa árvore sagrada dos saxões para construir no mesmo lugar um oratório dedicado a são Pedro A segunda opção não menos eficaz procura pontos de contato que permitam que o cristianismo recubra o paganismo de um modo menos brutal Podese por exemplo tolerar a crença na virtude protetora dos amuletos desde que estes carreguem a cruz Mas é sobretudo o culto dos santos que tem aqui o papel decisivo permitindo uma cristianização relativamente fácil de numerosas crenças e ritos pagãos mais do que destruir um lugar de culto antigo confereselhe uma sacralidade legítima afirmando que se trata de uma árvore benzida por são Martinho ou de uma fonte onde se vê o traço do casco de seu asno Assim o culto dos santos deu ao cristianismo uma excepcional maleabilidade para iniciar com uma mistura de sucesso e de realismo sua luta sempre renovada contra o paganismo Para dizer a verdade essa maleabilidade marca também o limite da conversão do Ocidente medieval ao cristianismo e da formação de uma sociedade cristã no seio da qual a Igreja começa a adquirir uma posição dominante Sua luta contra o paganismo é ao mesmo tempo um triunfo à imagem dos santos abatendo os dragões e uma meia vitória pois ela se impõe somente ao preço de um sério compromisso com uma visão de mundo enraizada no mundo rural animada por ritos agrários e impregnada por um sobrenatural onipresente O RENASCIMENTO CAROLÍNGIO SÉCULOS VIII E IX Os defensores da visão obscurantista da Idade Média surpreenderseão ao constatar que uma expressão amplamente consagrada pela tradição historiográfica evoca um renascimento em pleno coração dos séculos mais sombrios das trevas medievais Mas como se disse a Idade Média é um longo rosário de renascimentos e o desejo de um retorno à Antiguidade que é a essência desse ideal não é o apanágio dos séculos XV e XVI ele se manifesta desde o fim do século VIII pôde em 751 pôr fim ao reinado de Childerico o último rei merovíngio da linhagem de Clóvis e proclamarse rei dos francos em seu lugar o soberano deposto tem sua barba raspada e é privado de sua longa cabeleira símbolo do poder dos chefes francos Para tanto Pepino beneficiase do acordo com o bispo de Roma que procura o apoio da potência franca contra os lombardos que ameaçam invadir Roma O pontífice renova pessoalmente a coroação de Pepino em 754 acrescentando a ela além disso a unção à maneira dos reis do Antigo Testamento conferindo dessa forma ao soberano franco o benefício de uma sacralidade divina legitimada pela Igreja Começa a se urdir assim uma aliança decisiva entre a monarquia franca e o pontífice romano Com a morte de Pepino seu filho Carlos Magno herda o trono dos francos e inaugura um reinado particularmente longo 768814 Ele se lança em uma vasta política de conquista militar de início na Itália onde vence os lombardos e apossase de sua coroa depois contra os saxões que haviam permanecido pagãos e cuja resistência obstinada impõe a Carlos Magno 32 anos de campanhas de uma violência extrema onde se mesclam massacres e deportações terror e conversões forçadas O resultado importante para a história da Europa é a conquista da Germânia e sua integração à cristandade Enfim Carlos Magno leva a guerra mais longe contra os eslavos da Polônia e da Hungria e contra os avaros mas tendo essencialmente um objetivo defensivo É por essa mesma razão que ele avança ao Sul dos Pireneus a fim de constituir a marca hispânica frágil zona de proteção contra os muçulmanos Não podemos crer entretanto que ele teve como projeto iniciar a reconquista da Península Ibérica como quis fazer crer a lenda à qual a Canção de Rolando conferiu eco considerável a partir do fim do século XI Na base dessa narrativa épica emblemática da cultura medieval encontrase apenas um fato histórico sem importância o aniquilamento em 778 da retaguarda conduzida pelo sobrinho de Carlos Magno sob os golpes dos bascos que controlavam então as montanhas dos Pireneus Seja como for Carlos Magno consegue reunificar uma parte considerável do antigo Império do Ocidente a Gália a Itália setentrional e central a Renânia à qual ele junta a Germânia ilustração III a seguir Ele dispõe de recursos excepcionais e de um poder inédito desde o fim de Roma Em 796 empreende a construção de seu palácio em AixlaChapelle cuja localização confirma a alteração do centro de gravidade para a Europa do Noroeste que já era sensível desde a primeira afirmação do poderio franco três séculos antes O plano desse palácio centrado sobre uma grande sala circular inspirase com uma clara intenção política na igrejapalácio de São Vital de Ravena legado de Justiniano Também não é uma coincidência que Carlos Magno se encontre em Roma no dia de Natal do ano 800 importante aniversário do nascimento de Cristo Entretanto a coroação imperial que ocorreu nesse dia desenrolase em circunstâncias ambíguas e pouco claras a tal ponto que alguns historiadores sugerem que o papa teria posto a coroa imperial sobre a cabeça de Carlos Magno de surpresa e quase à sua revelia Em todo caso é provável que a coroação imperial respondesse mais a uma iniciativa de Leão III do que a uma intenção de Carlos Magno Com efeito além de confirmar a aliança já estabelecida em 751 o papa sinaliza ao franco que este tem sua dignidade a partir da Igreja Ele se esforça com isso em manter seu controle sobre um poder que se tornou considerável e que se exercia excessivamente longe de Roma para o seu gosto Além do mais para o bispo de Roma tratase de uma maneira de romper os laços com o imperador de Constantinopla que deixa de encarnar a universalidade ideal da ordem cristã a partir do momento em que reina um outro imperador legitimado por Roma Tal distanciamento não poderia ter ocorrido se Constantinopla não se encontrasse enfraquecida como se verá abaixo pela crise iconoclasta e pela pressão muçulmana Mas são as consequências que importam aqui o bispo de Roma deixa de estar sob a dependência de uma autoridade longínqua a partir de 800 ele não mais data seus documentos em função dos anos de reinado do imperador do Oriente como havia feito III O Mediterrâneo das três civilizações o Islã Bizâncio e o Império Carolíngio no início do século IX até então mais decididamente ainda do que no tempo de Gregório ele se volta para o Ocidente onde começa a dispor de poder real O evento do ano 800 significa então a ruptura de uma das últimas pontes entre Oriente e Ocidente cujo distanciamento progressivo conduzirá ao cisma de 1054 entre as Igrejas católica e ortodoxa O evento significa também uma emergência do papado como verdadeiro poder Ao longo do século IX graças à aliança com o imperador carolíngio o papa começa a exercer um papel considerável nos negócios ocidentais Nisso ele se beneficia da possessão do Patrimônio de São Pedro território que atravessa a Itália central de Roma a Ravena concedido e legitimado pelos soberanos carolíngios graças à redação de uma das mais célebres falsificações da história a suposta doação de Constantino De resto talvez resida nisso o significado maior do Império Carolíngio uma primeira afirmação do papado e mais amplamente da Igreja ocidental Se mesmo antes a Igreja havia se apoiado no poder real esforçandose para institucionalizar e acentuar a distância que o separava do grupo aristocrático agora é o papa que consagra o poderio da dinastia carolíngia e dela recebe em troca a confirmação de sua base territorial e material O momento carolíngio repousa assim sobre uma aliança entre o Império e a Igreja que assegura através de uma troca equilibrada de serviços e apoios o desenvolvimento conjunto de um e de outro O imperador que nomeia bispos e abades dispõe de uma ampla rede de 180 igrejascatedrais e cerca de setecentos monastérios que são uma das bases mais firmes de sua ação Numerosos clérigos lhe aportam uma ajuda direta em sua obra de governo pois eles são os personagens principais de sua corte e põem a seu serviço suas competências e sua erudição Enfim a Igreja encarregase de manter a aura do poder imperial legitimandoo pela consagração e esforçandose sempre por fazer com que as ações do imperador apareçam como as de um príncipe cristão agindo conforme a vontade divina Em troca a Igreja beneficiase de uma proteção sem igual garantida por certificados de imunidade que conferem às terras da Igreja uma autonomia judiciária e fiscal subtraindoas da intervenção do poder real ou imperial sem falar da decisão carolíngia de 779 que torna obrigatório o dízimo destinado à manutenção do clero A partir dali a Igreja pode aumentar e consumir sua organização Instigado por Pepino o Breve Chrodegang de Metz organiza os clérigos das catedrais agora numerosos em cabidos quer dizer em comunidades de cônegos submetidos a uma regra de vida coletiva e quase monástica enquanto Bento abade de Aniana se esforça para homogeneizar os estatutos dos monastérios que se põem sob a Regra de são Bento Muitos dos traços da instituição eclesial dos séculos posteriores esboçamse no Império Carolíngio do mesmo modo que muitas das regras pelas quais a Igreja pretende ordenar a sociedade cristã especialmente no que diz respeito às estruturas de parentesco segunda parte capítulo V Voltemos no entanto ao Império do qual a Igreja não é o único pilar Entre os poderes do imperador o principal é sem dúvida o de convocar no mês de maio de cada ano todos os homens livres para o combate Formase assim por alguns meses de campanha o exército ao qual o imperador deve suas conquistas Mas é duvidoso que se reúnam a cada vez todos os homens com os quais o imperador pode teoricamente contar cerca de 40 mil De resto logo ele renuncia a exigir de todos tal obrigação sobretudo porque numerosos homens livres bastante pobres não dispõem dos recursos necessários para adquirir um armamento pesado e custoso Quanto à imagem de uma administração bem organizada e fortemente centralizada como sugerem as capitulares nome dado às decisões imperiais transmitidas para as províncias ela é sem dúvida ilusória O Império é de fato dividido em trezentos pagi à frente dos quais estão os condes enquanto as zonas fronteiriças são defendidas por duques ou marqueses Mas na verdade o essencial do controle das províncias é confiado às aristocracias locais ou por vezes a guerreiros que o imperador quer compensar e que vivem dos rendimentos de seus cargos O controle dos territórios repousa no essencial sobre os laços de fidelidade pessoal solenizados por um juramento ou pela recomendação vassálica entre o imperador e os aristocratas encarregados das províncias De fato a ideologia carolíngia formulada pelos clérigos subordina o grupo aristocrático ao soberano considerado a única fonte das honras em particular o encargo das províncias o fato de deter tais honras e de servir ao imperador tornase então um elemento fundamental do poder da aristocracia que define e legitima sua posição A despeito da fraqueza política do Império a unidade reencontrada permite importantes avanços Além de um primeiro desenvolvimento das zonas rurais acompanhado de um salto demográfico desde os séculos VIII e IX observase uma retomada do grande comércio Mas este é obra sobretudo de mercadores exteriores ao Império no Sul os muçulmanos que ainda abastecem de produtos orientais as cortes principescas ou imperiais no Norte os navegadores escandinavos que importam madeiras peles e armas Assim Dorestad no mar do Norte se torna o principal porto da Europa onde se estabelecem as trocas entre o continente as Ilhas Britânicas e os reinos escandinavos Embora elas permaneçam no essencial exteriores ao Império tais correntes comerciais obrigam a uma reorganização monetária De fato Carlos Magno toma uma decisão de grande importância para os séculos medievais renunciando à cunhagem do ouro e impondo um sistema fundado sobre a prata metal menos raro e mais adaptado ao nível real das trocas A libra de prata é então fixada em 491 gra mas 50 a mais que na Antiguidade com sua divisão em vinte soldos de doze denários cada um que serão a base da organização monetária durante toda a Idade Média Prestígio imperial e unificação cristã É no domínio do pensamento do livro e da liturgia que o renascimento carolíngio conhece seus sucessos mais duradouros Seu centro é a corte de Carlos Magno e depois a de seu filho Luís o Piedoso para onde convergem os grandes letrados que se põem a serviço do imperador e que continuam a servilo quando recebem um importante cargo eclesiástico É o caso de Alcuíno vindo de York e principal inspirador dos círculos de letrados que cercam Carlos Magno até ser nomeado abade de São Martinho de Tours de Teodolfo nomeado bispo de Orleans e um pouco mais tarde de Agobardo feito bispo de Lyon ou de Rábano Mauro abade de Fulda cuja obra destinada a ter enorme sucesso dá continuidade à ambição enciclopédica de Isidoro de Sevilla que fora na Espanha visigótica o primeiro autor cristão a tentar reunir sobretudo em suas Etimologias a totalidade dos conhecimentos disponíveis Se o imaginário popular confere a Carlos Magno o mérito ou demérito de ter inventado a escola a realidade é mais modesta a Admonitio generalis de 789 contentase em impor a cada catedral e a cada monastério a obrigação de se dotar de um centro de estudos De resto o próprio Carlos Magno é o primeiro soberano medieval que aprendeu a ler mas não a escrever No contexto de seu tempo já era bastante De fato o objetivo principal dos letrados carolíngios é o de ler e difundir os textos fundamentais do cristianismo Tratase de dispor de exemplares mais numerosos e mais confiáveis de livros essenciais em primeiro lugar as Sagradas Escrituras mas também os manuscritos litúrgicos indispensáveis à celebração do culto bem como os clássicos da literatura cristã Para tanto não basta proceder como ordena Carlos Magno a uma revisão do texto da Bíblia cuja tradução latina realizada por são Jerônimo a Vulgata tinha sido alterada ao longo dos séculos Dois instrumentos são igualmente indispensáveis O primeiro é uma escrita de melhor qualidade É por isso que os clérigos carolíngios generalizam o uso da minúscula carolina um tipo de letra menor e mais elegante que aquela dos séculos anteriores o que torna os livros ao mesmo tempo mais manuseáveis e mais legíveis Por uma bela ironia da história essa caligrafia maravilhará os humanistas do século XV que a tomarão por vezes por uma criação da Antiguidade clássica e a utilizarão para desenhar os primeiros caracteres de impressão Além disso é na época carolíngia que os escribas passam a ter o hábito de separar as palavras umas das outras assim como as frases graças a um sistema de pontuação ao contrário do sistema antigo que o ignorava totalmente Essas inovações de aparência modesta constituem na verdade grandes avanços na história das técnicas intelectuais Graças a essas modificações e a uma melhor organização dos scriptoria onde os monges que se dedicam às cópias dos manuscritos trabalham agora em equipes partilhando entre si as diversas seções de uma mesma obra a produção de livros aumenta de modo considerável estimase que cerca de 50 mil manuscritos foram copiados na Europa do século IX O essencial dessas obras responde à necessidade do culto cristão mas outras menos numerosas é verdade pertencem à literatura latina clássica Elas são copiadas porque permitem aprender as regras do bom latim é por isso que Loup de Ferrières um abade do século IX preocupase em encontrar os melhores manuscritos de Cícero Mas esses livros informam também sobre o passado pagão que os cristãos têm necessidade de conhecer certamente para melhor afastaremse dele quer se trate do passado de Roma quer do dos povos germânicos do qual dá testemunho por exemplo a História de Amiano Marcelino que não conheceríamos hoje se um monge de Fulda não a tivesse copiado no século IX É preciso então relembrar este fato em geral esquecido é aos clérigos copistas da Alta Idade Média e a seu trabalho obstinado em um meio não obstante pouco favorável que devemos a conservação do essencial da literatura latina antiga Outro instrumento decisivo da propagação dos textos antigos é a manutenção de um conhecimento satisfatório das regras do latim o que faz da gramática e da retórica as disciplinas mestras do saber carolíngio Em um momento em que a língua latina evolui de modo diferente segundo as regiões os clérigos carolíngios tomam uma decisão que sela o destino linguístico da Europa Eles optam por restaurar a língua latina não exatamente em sua pureza clássica mas ao menos em sua versão corrigida ainda que simplificada Eles consideram esta escolha indispensável à transmissão de um texto bíblico correto e à compreensão dos fundamentos do pensamento cristão Mas ao mesmo tempo eles reconhecem que as línguas faladas pelas populações distanciamse inexoravelmente do bom latim a ponto de recomendarem que os sermões sejam traduzidos para as diferentes línguas vulgares de suas audiências Assim eles abrem a via ao bilinguismo que caracteriza toda a Idade Média com de um lado uma multiplicidade de línguas vernáculas faladas localmente pela população e de outro uma língua erudita aquela do texto sagrado e da Igreja tornada incompreensível para o comum dos fiéis Essa dualidade linguística aprofunda então o fosso entre os clérigos e os laicos assegurando ao mesmo tempo uma unidade marcante à Igreja ocidental É sem dúvida a reforma litúrgica que melhor expressa o sentido do esforço carolíngio Para ela convergem ao mesmo tempo o desenvolvimento das técnicas que permitem dispor de livros mais numerosos em sua forma e mais seguros quanto ao seu conteúdo a vontade de unificação que é a sequência do projeto imperial e enfim a convergência de interesses entre Roma e Aix Na Europa de meados do século VIII existia uma grande diversidade de tradições litúrgicas cada região tendo desenvolvido maneiras particulares de celebrar as festas e os ritos cristãos Dizer que existiam liturgias romanas galicanas e visigóticas daria apenas uma imagem incompleta dessa diversidade Mas a partir do momento em que existe um Império que se propõe a fazer respeitar a Lei divina necessariamente única em todos os lugares não é mais possível deixar um negócio tão essencial à mercê da diversidade dos costumes locais Logicamente a escolha dos soberanos carolíngios consiste então em voltaremse para Roma com o projeto de estender ao conjunto do Império a liturgia que ali era utilizada O sacramentário livro indispensável à celebração da missa que contém todas as fórmulas que o sacerdote deve pronunciar é o instrumento de base dessa reforma litúrgica E finalmente é o sacramentário dito gregoriano pois ele é abusivamente atribuído a Gregório o Grande enviado pelo papa a Carlos Magno e revisado por Bento de Aniana que se impõe no Ocidente cristão e permite a unificação desejada pelo imperador Do mesmo modo a reforma litúrgica questão fundamental para a Igreja é realizada através de uma aliança entre Aix e Roma servindo aos interesses conjuntos dos dois poderes e manifestando o novo papel e o prestígio conferido ao papa no Ocidente Lançado pela corte de Carlos Magno e fortalecido sob o reinado de Luís o Piedoso o renascimento artístico inseparável de uma visão da ordem social sob a condução do poder eclesial e imperial fazse sentir em todos os domínios A arquitetura inova construindo igrejas muito mais imponentes e poderosas muitas vezes caracterizadas como a abadia de Centula SaintRiquier pela presença de dois maciços de igual importância um oriental dedicado aos santos e o outro ocidental dedicado ao santo Salvador Carol Heitz Além de manifestar o desejo de associar os dois polos do culto cristão Cristo e os santos este dispositivo bem como a multiplicação das capelas e dos altares ilustra o desenvolvimento de uma liturgia cada vez mais elaborada que codifica cuidadosamente as procissões e os ciclos anuais de celebrações Por outro lado ele prepara as robustas fachadas flanqueadas por duas torres do período românico e contribui para a afirmação do plano cruciforme que então suplanta o plano basilical retangular com uma abside semicircular na extremidade herdada da arquitetura civil imperial e dominante até então Desde o século VIII o sucesso do culto dos santos obriga por vezes a ampliar as igrejas de peregrinação e a esboçar reformas que favoreçam o acesso dos fiéis às relíquias Quanto às imagens elas impregnamse de reminiscências clássicas especialmente o gosto pelos plissados delicados que conferem às figuras dos evangelistas com frequência representados nos manuscritos bíblicos com um aspecto de escribas antigos um dinamismo poderoso e uma forte energia corporal evocando a intensidade da inspiração divina figura 2 na p 37 Poderseia igualmente multiplicar os exemplos no domínio literário Assim Eginhardo redige a biografia de Carlos Magno tomando como modelo a Vida de Augusto de Suetônio O poeta Angilberto fazse chamar de Homero enquanto o círculo de letrados da corte imperial orgulhosos por possuírem obras clássicas como Cícero Salústio ou Terêncio é comparado à Academia ateniense por Alcuíno Horácio Enfim em todos os domínios em AixRavena e em torno de Carlos MagnoAugusto morrese de vontade de fazer reviver a Antiguidade pois ela é por excelência a época do esplendor do Império Tratase de multiplicar os sinais que são também reivindicações políticas da restauração imperial renovatio imperii e que fazem de Carlos Magno e de seu filho os dignos sucessores dos imperadores de Roma estando entendido que tal referência encontra sua legitimidade na unidade finalmente realizada do Império e da Igreja A experiência carolíngia foi de curta duração Ela mantémse e consolidase em certos aspectos durante o reinado de Luís o Piedoso 81440 mas com a sua morte a concepção patrimonial do poder conduz à partilha de Verdun em 843 que divide o Império entre seus três filhos Se este tratado é importante para a França ocidental esboço do futuro reino da França do qual fixa por vários séculos as fronteiras orientais no eixo RódanoSaône ele não chega a apaziguar as rivalidades no seio da dinastia carolíngia que apenas se ampliam A estas dificuldades somamse as desordens provocadas pelas incursões normandas e a pressão sobre a fronteira oriental bem como o rápido agravamento das fraquezas internas do Império cujas províncias se revelam cada vez mais incontroláveis O imperador não consegue assegurar a fidelidade dos condes e de outros aristocratas encarregados das unidades territoriais mesmo ao preço de concessões importantes como a promessa de não destituir o dignitário ou o compromisso de escolher seu filho após sua morte Nada funciona a tendência centrífuga é irreversível Desde meados do século IX os condes começam a despeito das interdições imperiais a erigir suas próprias torres ou castelos e também a lançar as bases de um poder autônomo Em 888 quando morre o imperador Carlos o Gordo ninguém se preocupa em lhe dar um sucessor O episódio tem seus admiradores incondicionais e seus mais céticos juízes que o percebem como um breve parêntese ou até mesmo como um acidente o que é inegável em termos de unificação política mas sem dúvida muito modesto se consideraramos outras aquisições mais duráveis Questionase por vezes se o Império Carolíngio marca o fim da Antiguidade ou o início da Idade Média Alguns postulam uma forte continuidade entre o Império Romano e aquele de Carlos Magno e chegam por vezes a afirmar que os carolíngios dispunham de um sistema fiscal idêntico ao do Baixo Império e que a Igreja era apenas um agente do governo imperial Tais visões que romantizam ao extremo o mundo carolíngio repousam sobre uma leitura de fontes que foi seriamente criticada e que parece dificilmente sustentável Parece mais razoável então perceber o episódio carolíngio como sendo ao mesmo tempo o resultado das transformações dos séculos da Alta Idade Média no mínimo porque a escolha de AixlaChapelle como capital imperial institucionalizó o peso adquirido pela Europa do Noroeste e uma primeira síntese que prepara o despontar dos séculos posteriores da Idade Média retomada da produção e das trocas uso do juramento de fidelidade como base da organização política e sobretudo afirmação da Igreja Através de sua aliança com o reino depois Império dos francos a Igreja consolida sua organização e lança as bases de sua posição dominante no seio da sociedade dízimo reforma dos cabidos das catedrais reforço dos grandes monastérios unificação litúrgica fixação e difusão dos textos de base e dos instrumentos gramaticais indispensáveis para a manutenção de uma unidade linguística erudita da cristandade afirmação da autoridade romana definição das regras do casamento e do parentesco O MEDITERRÂNEO DAS TRÊS CIVILIZAÇÕES Antes de terminar este capítulo gostaria de alargar o campo de visão tanto cronológica como geograficamente a fim de situar os amplos espaços no interior dos quais se produzem a formação e depois o desenvolvimento da cristandade ocidental É indispensável evocar ao menos sucintamente os poderosos vizinhos em meio aos quais esta conquistou seu lugar com grande dificuldade ilustração III na p 71 O declínio bizantino Do ponto de vista de Constantinopla não existe nenhum Império do Oriente e a fortiori nenhum Império Bizantino nome que lhe é dado pelos conquistadores turcos Nela o que estava em questão era simplesmente apenas o Império Romano o único possível o mesmo de Augusto Diocleciano e Constantino ou seja a Roma Eterna transferida para a nova capital fundada por este último Esta continuidade reivindicada esta afirmação de permanência a despeito de todas as transformações é uma característica decisiva deste Império que chamamos bizantino e que se pretende tão somente romano Isto é sem dúvida justificado para a época de Leão I 457527 e Justiniano 52765 pois o Império vive então um período de esplendor ao mesmo tempo que o Ocidente conhece um de seus momentos de maior confusão Sua riqueza é considerável e ele controla toda a bacia oriental do Mediterrâneo a Grécia a Anatólia a Síria a Palestina e sobretudo o rico Egito que envia para Constantinopla um imposto anual de 80 mil toneladas de grãos A reconquista de Justiniano que recupera temporariamente as costas do Adriático a Itália e o Norte da África apoiase sobre esse poderio e manifesta a intenção de manter o Ocidente sob sua tutela e portanto de governar o conjunto da cristandade Mas a epidemia de peste a partir de 542 dizima o Império e a reconquista fracassa Em pouco tempo sobram apenas alguns fragmentos dele o exarcado de Ravena posto avançado de Constantinopla no Ocidente criado em 584 e que cai nas mãos dos lombardos em 751 a laguna de Veneza onde surgirá uma cidaderefúgio antinatural mas que goza de vantagens conferidas por sua autonomia ante os poderes ocidentais e por um laço privilegiado com o Império do Oriente a Sicília conquistada pelos muçulmanos ao longo do século IX e a Calábria que os normandos arrancam de Constantinopla em 1071 com a tomada de Bari Desde o princípio do século VII os ventos mudam devido ao avanço dos persas que tomam Damasco e Jerusalém em 61314 e depois da ofensiva do Islã que leva à perda da Síria e do Egito Se acrescentarmos ao norte a pressão dos eslavos e logo depois dos búlgaros em face dos quais o imperador Nicéforo encontra a morte em 811 Bizâncio aparece como um Império sitiado reduzido doravante a uma parte dos Bálcãs e à Anatólia e cuja população é agora essencialmente grega É nesse contexto de graves ameaças exteriores que a crise iconoclasta divide longamente o Império 730843 Para os imperadores iconoclastas o culto às imagens é a causa das infelicidades do Império e o povo dos que foram batizados deve tal como os hebreus do Antigo Testamento reencontrar a benevolência de Deus expurgando suas tendências idólatras Mais tarde depois da vitória definitiva dos partidários das imagens que a tradição chama de Triunfo da Ortodoxia 843 assistese a uma recuperação que se prolonga até o início do século IX É o esplendor macedônio especialmente sob Basílio I 86786 Leão VI 886912 e Basílio II 9761025 O poder imperial poderoso e estável chega a recuperar certos territórios como Creta e Chipre e momentaneamente a Síria e a Palestina a Bulgária oriental e depois a ocidental A Igreja de Cons 16 J L Copiadora Copyright 2003 dos autores História na sala de aula conceitos práticas e propostas Todos os direitos desta edição reservados à Editora Contexto Editora Pinsky Ltda Preparação de originais Leonardo Seiji Miyahara Revisão Vera Quintanilha Capa Antonio Kehl Diagramação Carla Castilho Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil História na sala de aula conceitos práticas e propostas Leandro Karnal org 5ed São Paulo Contexto 2007 Bibliografia ISBN 8572442162 1 História Estudo e ensino 2 Sala de aula Direção 3 Prática de ensino I Karnal Leandro 030545 CDD907 Índice para catálogo sistemático 1 História Estudo e ensino 907 EDITORA CONTEXTO Diretor editorial Jaime Pinsky Rua Dr José Elias 520 Alto da Lapa 05083030 São Paulo SP PABX 11 3832 5838 contextoeditoracontextocombr wwweditoracontextocombr 2007 Proibida a reprodução total ou parcial Os infratores serão processados na forma da lei REPENSANDO A IDADE MÉDIA NO ENSINO DE HISTÓRIA JOSÉ RIVAIR MACEDO A historiadora Régine Pernoud contanos uma anedota exemplar a respeito da banalização da imagem da Idade Média no século XX Em certa ocasião acompanhava um sobrinho seu a um desses cursos em que os pais são admitidos para poderem depois obrigar os filhos a trabalhar quando ouviu a professora conduzir a aula de História da seguinte maneira A professora Como se chamavam os camponeses na Idade Média A classe em coro Chamavamse servos A professora E que é que eles faziam Que é que eles tinham A classe Tinham doenças A professora Que doenças Jérome Jérome grave A peste A professora E mais Emmanuel Emmanuel entusiasta A cólera A professora Vocês sabem muito bem a lição de História concluiu pacificamente Passemos à Geografia 1 No livro O mito da Idade Média a historiadora francesa Régine Pernoud procura desfazer uma série de malentendidos preconceitos juízos apressados e lugarescomuns relativos aos mil anos de história européia situados entre os séculos V e XV Entretanto em que pesem os 17 HISTÓRIA NA SALA DE AULA reiterados esclarecimentos de historiadores especializados na pesquisa sobre a Idade Média a respeito dos estereótipos que envolvem aquele período muitos preconceitos ainda persistem MIL ANOS DE TREVAS Sabese hoje que a visão retrospectiva da Europa medieval como uma idade das trevas foi elaborada por eruditos renascentistas e sobretudo por eruditos iluministas Sabese que essa visão esteve condicionada por uma perspectiva racionalista liberal e anticlerical num momento em que ser humanista significa colocar em questão os pressupostos teocêntricos defendidos pelos representantes da Igreja defender o avanço das luzes da razão e do progresso Ocorre que desde pelo menos o princípio do século XX as pesquisas acadêmicas sobre História Política Social Econômica e Cultural as pesquisas no campo da Filologia e da Literatura da Filosofia e das Artes têm demonstrado inúmeros traços originais da Europa durante a Idade Média e tais pesquisas contribuíram decisivamente para reabilitar aquele período aos olhos dos estudiosos Hoje nenhum erudito defenderia com seriedade aqueles velhos chavões Isso não quer dizer que os estereótipos relacionados com a Idade Média tenham desaparecido Estes explicam inclusive um certo fascínio da arte e da cultura de massas por essa obscura Idade Média na qual pululam magos e fadas duendes e elfos dragões cavaleiros errantes e aventuras fabulosas Explica o sucesso de obras romanescas envolvendo os mistérios e segredos da poderosa Igreja o outro lado da cavalaria com seu código de ética e com os nobres sentimentos dos cavaleiros andantes Explica o sucesso de jogos de videogame e de computador relativos às conquistas de territórios por príncipes guerreiros com a ação de forças sobrenaturais de caráter mágico Em todos esses casos a Idade Média constitui apenas um pretexto para a criação ficcional a imaginação e o divertimento Uma certa idéia de Idade Média subsiste entre nós por esse viés Mas qual o papel da escola e da História que aí é ensinada na difusão de conhecimentos relativos ao período Antes caberia perguntar qual Idade Média vem a ser divulgada nos bancos escolares e qual a pertinência de seu ensino num país como o Brasil que não participou diretamente de uma experiência histórica propriamente medieval Na perspectiva aberta pelos Parâmetros Curriculares Nacionais PCNs para a área de História pouco espaço está reservado ao tratamento cronológico dos eventos situados entre os séculos V e XV da História Européia Nada a estranhar uma vez que se sabe que de acordo com os PCNs os eventos e os sujeitos históricos encontramse incluídos em contextos variados subordinados a pressupostos pedagógicos e conceitos muito abrangentes destinados a promover a apreensão da realidade social com base nas múltiplas dimensões temporais na diversidade étnica e cultural Entretanto embora ausente na listagem de conteúdos do terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental porque a ênfase deixou de recair na noção de período histórico certas questões relativas à Idade Média podem perfeitamente vir a ser exploradas em sala de aula como apontaremos páginas adiante Não obstante os PCNs quando se observam os programas e planos contidos nos livros didáticos destinados ao estudo da História no ensino fundamental e médio temse que as linhas de rumo que norteiam a reprodução do conhecimento relativo à Idade Média européia estão ligadas à evolução das formas de governo isto é o governo temporal dos reinos e do império e o governo espiritualtemporal da Igreja Prendemse também à configuração dos grupos sociais com particular ênfase nas relações de dominação entre senhores feudais e camponeses ou então na formação e decadência do feudalismo e a germinação do capitalismo moderno No que respeita às formas de governo os livros apresentam a caracterização de tratados conflitos diplomáticos e batalhas ou seja os marcos temporais tradicionais da história política Quanto aos aspectos mais gerais quer dizer aqueles empregados na identificação de estruturas sociais e econômicas prepondera um certo mecanicismo e um certo maniqueísmo Diferentemente da posição vigente entre os especialistas em História Medieval para quem o feudalismo a sociedade feudal ou o sistema feudal não passam de conceitos operatórios de análise nos livros didáticos esses conceitos acabam conferindo uma lógica ao desenvolvimento histórico de toda a Europa como se houvesse um mesmo feudalismo ou uma mesma sociedade feudal nos quatro cantos do continente ficando a sugestão de que o ingresso na Era Moderna dependeu da superação do atraso feudal Nesse tipo de abordagem do feudalismo o rei aparece sempre fraco e os senhores feudais fortes as regras do jogo vindo a se alterar apenas no momento a partir do qual o rei aliase com a burguesia Nas relações de dominação entre senhores e camponeses por outro lado ambos os grupos parecem compactos e claramente definidos os senhores como arrogantes e opressores os camponeses às vezes confundidos pura e simplesmente com servos como oprimidos e passivos inertes e inertes Não se reivindica aqui necessariamente a renovação conceitual e temática resultante do avanço dos estudos medievais É evidente que nos últimos trinta anos muito se pesquisou a respeito das especificidades nacionais e regionais da Europa Medieval dos grupos sociais etários e de gênero na Idade Média muito se debateu a respeito dos sistemas de valores das formas culturais das representações e dos traços do imaginário medieval A Idade Média ensinada na escola todavia não é a Idade Média dos pesquisadores Nesse caso a função social da História tem estatuto diferente do conhecimento erudito e acadêmico continuando a estar ligado à constituição da memória da nação do Estado moderno e da supremacia ocidental no mundo2 Seu objetivo último é demonstrar as razões explícitas ou implícitas pelas quais os sucessores dos bárbaros que saquearam o Império Romano no século V ou seja a maior unidade política constituída até aquele momento viessem a se tornar mil anos depois os descobridores e conquistadores da África do Extremo Oriente e da América UMA HISTÓRIA VISTA DE CIMA E DO CENTRO Em meados do século XVI a representação plana da terra elaborada pelo humanista Gerhard Mercator 15121594 que inspirou o atual planisfério situava geograficamente a Europa no centro do mundo não obstante a forma esférica da Terra Algum tempo depois o erudito alemão Christophe Keller publicou um livro denominado História da Idade Média desde os tempos de Constantino o Grande até a tomada de Constantinopla pelos turcos inventando desse modo o rótulo e a delimitação cronológica do período e situando a Europa no centro da linha de tempo da humanidade que daí em diante passaria a se confundir com os desígnios europeus naquilo que alguns ensaístas denominaram ocidentalização do mundo3 Com efeito para os europeus a Idade Média corresponde às origens ao momento em que aquilo que um dia viria a ser chamado de Europa ganhou seus contornos políticos e culturais Numa visão em retrospecto ali estão os traços originais das nações contemporâneas sua diversidade étnicocultural seus problemas de delimitação de fronteiras suas instituições representativas cortes assembléias parlamentos Embora herdeiros das noções grecoromanas de política e de cidadania os Estados europeus não se confundiram com as cidadesestado nem com os impérios da Antigüidade mas organizaramse com base no modelo do reino cristão Para o medievalista Jacques Heers nunca existiu uma Idade Média francesa Aquilo que se convencionou chamar por esse nome teria sido a elaboração de eruditos dos séculos XVIXVIII dos criadores de programas escolares e autores de manuais didáticos dos séculos XIX e XX A linha de rumo básica a orientar a imagem da Idade Média teria se desenvolvido em função da existência de poderes centrais unitários e fortes Ao estudar aquele período recuado no tempo o que interessava em última instância era valorizar o modelo de governo contemporâneo ao estudo quer dizer a república e sua capacidade de oferecer paz e segurança social aos cidadãos Os méritos desse Estado rigidamente estruturado acabavam sendo ressaltados quando seu modelo de organização vinha a ser comparado com aquilo que parecia o seu contrário a anarquia feudal Nas próprias palavras do historiador a imagem do feudalismo sempre foi manchada pelo vício abominável da completa dissolução do poder e todo o sistema tem sido acusado e condenado devido à sua própria natureza fonte de anarquias e desgraças4 tratase pois de julgamentos a posteriori cuja função é mirandose no passado enaltecer o presente Além disso para os europeus a Idade Média equivale ao período de formação de uma identidade supranacional de fundo cristão momento em que se alicerçam costumes e práticas coletivas orientadas por uma fé que se quer única e una Em nome dessa fé os ocidentais fizeram as cruzadas e cortaram os oceanos Foi essa mesma fé que associada à razão entendase à razão aristotélica promoveu desde pelo menos o século XIII o nascimento do pensamento científico moderno articulando o saber e a técnica responsável por sua supremacia diante de diversas culturas por ocasião das grandes navegações Essa supremacia diante de outros povos e a pretensão de estar no centro do mundo teve consequências inclusive para a Europa Conforme um dos grandes medievalistas da atualidade Jacques Le Goff É notório pareceme através destas propostas onde o historiador se alia ao cidadão que o debate pela Europa não está entre a tradição e a modernidade Está no bom uso das tradições no recurso às heranças como força de inspiração como ponto de apoio para manter e renovar uma outra tradição europeia a da criatividade Um dos maus demônios da Europa tentoua com demasiada frequéncia a confundir a civilização européia com a civilização universal a querer um mundo à sua imagem Se a Europa quer ser um modelo para o mundo moderno deve respeitar o próximo abrirse aos outros Foi abrindose aos outros que desde os gregos antigos ela fez grandes coisas5 PARA UMA DESCOLONIZAÇÃO DO ENSINO DA IDADE MÉDIA Marc Ferro nos relata os vínculos profundos existentes entre a História transmitida nas escolas e a formação ou deformação da consciência social e política em áreas coloniais Entre outros exemplos ca culturais tão profícuas cujo melhor exemplo no campo intelectual é a conhecida Escola de Tradutores de Toledo em boa parte responsável pela difusão do conhecimento grego no Ocidente por meio de obras árabes convertidas ao latim por tradutores judeus Para o professor de História e seus alunos o panorama histórico da Europa pode vir a ser um excelente laboratório de estudo das razões e circunstâncias do desenvolvimento técnico e cultural Com efeito não deixa de ser interessante propor reflexões a respeito daquele período recuado de nós por pelo menos meio milênio quando a parte européia que hoje constitui um centro econômico mundial viase às voltas com problemas perfeitamente atuais vividos pelos países pobres como fome e crises de abastecimento periódicos baixo nível tecnológico e surtos recorrentes de doenças infectocontagiosas Para nós será sempre importante refletir sobre as alternativas encontradas para problemas como a desigualdade social entre ricos e pobres e o problema do abandono infantil cujas raízes históricas ultrapassam os limites cronológicos da própria Idade Média Dessa perspectiva aquele tempo poderá vir a constituir um importante referencial de estudo para compreendermos por aproximação ou por distanciamento como nós próprios lidamos com nossos dilemas sociais8 A IMAGEM E A PALAVRA NO ENSINO DA IDADE MÉDIA Outra maneira de escapar da camisadeforça dos fatos exclusivamente políticos é refletir a respeito da atualidade do legado cultural da Idade Média Aparentemente distante se observada do ponto de vista político social e econômico ela nos parece muito mais próxima quando levamos em conta os comportamentos e atitudes mentais coletivos Aos estudantes de ensino fundamental e médio em geral adolescentes talvez seria interessante e motivador saber que algumas concepções afetivas que lhes são caras como o amor e a amizade têm também uma historicidade e que suas raízes podem ser buscadas no medievo ou que certos padrões de conduta valorizados por eles como a honra e a fidelidade guardam algo do mundo feudal em que apareceram9 A comunicação eletrônica e a informática têm sido as responsáveis por importante divulgação da Idade Média e dos estudos medievais A edição eletrônica de textos tem colocado à disposição dos pesquisadores uma quantidade impressionante de fontes primárias relativas ao período histórico sobretudo aquelas fontes produzidas pelos membros da Igreja Na internet estão disponíveis páginas de instituições que se dedicam a preservar a memória medieval entre elas a Ordem de Cavalaria do Sagrado Portugal httpwwwocsppt que organiza encontros periódicos de recriação histórica em Portugal inclusive promovendo torneios e espetáculos Estão também disponíveis na rede informações a respeito de pesquisadores e instituições ligadas ao estudo do medievo como a Associação Brasileira de Estudos Medievais fundada em 1995 e responsável pela promoção de publicações e eventos acadêmicos periódicos ao estudo e à pesquisa de História Filosofia Literatura e Arte da Idade Média httpwwwabremhecombr Devese ainda mencionar a existência de revistas eletrônicas dedicadas especialmente ao período histórico como Brathair Revista Eletrônica de Estudos Celtas e Germânicos httpwwwbrathaircjbnet e a Revista Mirabilia na qual constam publicações de artigos científicos sobre a Antigüidade e a Idade Média httprevistamirabiliacom Mas para o contato com o universo medieval em sala de aula convém repensar a própria linguagem Nada mais estranho do que valerse exclusivamente do escrito para se ter acesso ao modo de vida de uma época em que a maioria das pessoas era analfabeta Por isso houve quem defendesse tratarse a Idade Média de uma civilização dos gestos ou de uma civilização da palavra e da voz Um bom caminho para se compreender essas proposições é segundo pensamos explorar no ensino outras possibilidades de comunicação como a imagem e a oralidade Nem sempre o objetivo da História é buscar estabelecer semelhanças e identidades com o presente O confronto com as diferenças e a diversidade dos modos de vida dos seres humanos ao longo de outros períodos da História em outras civilizações ou regiões culturais pode nos revelar nossa própria originalidade e nos capacitar melhor a ver o lugar que ocupamos na história da humanidade Confrontados com as diferenças e com a diversidade dos modos de vida das pessoas de outros tempos e lugares teríamos como discernir melhor nossa própria originalidade e perceber melhor nossa própria posição no processo histórico universal Como nos ensina o medievalista russo Aron Gurevich caso parecenos positiva a projeção de filmes cuja trama sugere o confronto entre o passado e o presente isto é quando personagens de diferentes épocas entram em contato como vem a ocorrer com o bem elaborado Navigator uma odisseia no tempo dirigido por Vincent Ward Distribuição Look Vídeo ou com a excelente comédia Os visitantes eles não nasceram ontem do diretor francês JeanMarie Poirée Distribuição Abril Vídeo No caso de trabalho didático com o filme Os visitantes o professor poderá com bastante proveito estimular a discussão a respeito das mudanças e continuidades em diferentes temporalidades uma vez que a película tem em seu enredo a história de dois indivíduos do século XII um nobre e um servo transportados involuntariamente para o século XX Tornase possível pois confrontar certos problemas do século XII desigualdade social no feudalismo com problemas contemporâneos desequilíbrios sociais desequilíbrio ambiental desequilíbrio urbano verificar as possíveis reações de pessoas de diferentes épocas diante de situações novas e inusitadas observar os condicionamentos históricos no comportamento das pessoas e grupos O universo medieval pode ser retratado contudo por meio da iconografia quer dizer das imagens de pinturas e esculturas e da arquitetura Na Idade Média ninguém duvidava que além de serem belas as obras de arte tinham também uma função didática Na opinião dos letrados aquilo que as pessoas simples não pudessem entender por meio da escrita deveria ser aprendido com as figuras Para Honório de Autun respeitável pensador do século XII o objetivo da pintura era triplo servia antes de tudo para embelezar a casa de Deus as igrejas mas também para rememorar a vida dos santos e por fim para o deleite dos incultos porque a pintura em suas palavras era a literatura dos laicos As imagens desse modo revestiamse de caráter educativo pedagógico A linguagem adotada procurava colocar em evidência símbolos e signos dotados de mensagens explícitas ou implícitas traduzindo o sistema ideológico do qual a Igreja se fazia a guardiã Trabalhar hoje com as imagens produzidas na Idade Média significa entrar em contato com um importante código de comunicação visual Assim sendo uma atividade proveitosa seria a coleta e seleção de imagens significativas do cotidiano medieval por meio da reprodução de miniaturas e iluminuras vitrais afrescos e tímpanos de igrejas alguns facilmente encontrados em livros ou em materiais de multimídia Ao serem priorizadas no ensino elas deixam de ser vistas apenas como suporte da informação escrita passando a ser um testemunho direto do mundo medieval O caminho inverso também pode vir a ser promissor quer dizer o estímulo para que os estudantes se aproximem do universo medieval praticando a comunicação por imagens expressando suas idéias sentimentos e valores relativos ao medievo valendose igualmente do desenho e da pintura Civilização dos gestos e da imagem a Idade Média foi também uma civilização da palavra e da voz Diferente do pensamento moderno que valoriza a inovação e a mudança e que concebe o velho como algo ultrapassado o pensamento medieval valoriza a constância e a permanência vendo o passado como algo a ser imitado Por isso os medievais buscavam sempre estabelecer conexões entre o velho e o novo entre o que passou e o que estava por vir Na bela expressão de Bernardo de Chartres eminente professor do princípio do século XII Somos anões nos ombros de gigantes Quer dizer que embora menos importantes do que os antigos os contemporâneos podiam ver mais longe devido ao conhecimento acumulado que receberam Entre os letrados o texto era invocado como um meio de se estabelecer o conhecimento e a verdade mas para os integrantes das camadas populares era a palavra o principal meio de comunicação Por ela é que se garantiam pactos e se estabeleciam compromissos que se expressavam os modos de existência que se preservava a memória coletiva Herdamos da Idade Média nosso gosto por ouvir boas histórias boas narrativas boas canções Aquele foi o tempo da oralidade da palavra transmitida de boca em boca dos costumes transmitidos e preservados de geração em geração Foi também o tempo da vocalidade isto é da valorização do emprego da voz e sua sonoridade A vocalidade estava no uso da voz e dos gestos por parte dos jograis recitadores de poesia cantores instrumentistas dos artistas das cortes principescas e das ruas atores de comédias contadores de estórias Parte significativa daquilo que se convencionou chamar de literatura medieval tem sua raiz na oralidade quer se trate de canções de gesta ou das cantigas dos trovadores o próprio nome diz cantigas canções ou dos contos narrativos de conteúdo moral Há alguns repertórios de contos fábulas e romances medievais traduzidos para o português moderno Que melhor maneira de aproximarse do universo mental de uma época do que ter acesso ao que se contava e ao que se ouvia Uma boa proposta de estudo das formas de sensibilidade e do imaginário medieval consiste na leitura e posterior dramatização dos contos narrativos Algumas coletâneas deles como os Contos de Cantuária escritos no século XIV por Geoffrey Chaucer apresentamnos situações romanescas envolvendo os diferentes grupos sociais do período nobres cavaleiros burgueses camponeses Há ainda os contos de aventura e amor escritos por Maria de França no século XII ou os contos cômicos denominados fabliaux que eram contados nas feiras estradas castelos portas de igrejas Tratase de testemunhos importantes das representações coletivas da Idade Média Por seu intermédio o leitor certamente reconhecerá situações que lhe permitirá refletir um pouco mais acerca do modo de agir e de pensar medieval Com propósito didático o professor poderá selecionar uma dessas histórias e oferecêla aos alunos Na leitura e apresentação deverá instigálos a imaginar as cenas e personagens estimular questionamentos destacar detalhes orientálos para que formulem idéias gerais a respeito da história e do contexto para que confrontem os dados narrados com as características ou particularidades do período a que se refere A seguir os alunos poderão com proveito apropriarse do conteúdo e do enredo da história e reformular sua linguagem teatralizandoa ou transformandoa em imagem visual Vejamos por exemplo a fábula intitulada o Livro das bestas escrito no final do século XIII pelo filósofo catalão Raimundo Lúlio 13121316 Tratase de uma grande alegoria da sociedade medieval através de uma história do tempo em que os bichos falavam Na corte do leão estão a raposa o urso o leopardo a serpente o lobo entre outros animais Eles representam os diferentes grupos do reino e suas ações alianças e confrontos variam de acordo com os interesses e as posições que ocupam em relação ao rei Assim a fábula animal pode vir a ser uma boa entrada para chegarse aos problemas da sociedade medieval O recurso da alegoria como um meio de estabelecer a crítica social continua a ser empregado na modernidade como se pode ver na fábula política escrita por Georges Orwell chamada A revolução dos bichos Para encerrar cumpre reconhecer o alcance das proposições anteriores Antes de serem fórmulas prontas ou o fruto de uma reflexão teórica aprofundada sobre o assunto são apenas considerações feitas à luz da experiência pessoal em sala de aula Esperase que possam contribuir de algum modo para o repensar do ensino desse período tão pouco conhecido entre nós mas que muito tem a nos oferecer e a nos ensinar 11 Se desejar conhecer outros endereços eletrônicos além dos motores de busca da própria internet vale a pena consultar publicações especializadas de pesquisa como o livro de Ivan Esperança Rocha Mil sites de História Antiga e Arqueologia São Paulo Arte e Ciência 1997 12 Aron Gurevich As categorias da cultura medieval Lisboa Editorial Camkinho 1990 p 15 13 Umberto Eco Arte e beleza na estética medieval Porto Alegre Ed Globo 1989 p 29 14 Paul Zumthor A letra e a voz a literatura medieval São Paulo Companhia das Letras 1993 15 Eis alguns textos medievais traduzidos Lais de Maria de França São Paulo Martins Fontes 1993 Pequenas fábulas medievais fabliaux dos séculos XIII e XIV Trad Rosemary C Abílio São Paulo Martins Fontes 1995 Poema do Cid Trad Maria do Socorro Almeida Rio de Janeiro Livraria Francisco Alves 1988 Alcassino e Nicoleta Trad Marcela Mortara Rio de Janeiro Ed Francisco Alves 1989 Chrétien de Troyes Romances da Távola Redonda Trad Rosemary C Abílio São Paulo Martins Fontes 1991 Geoffrey Chaucer Os contos de Cantudria São Paulo T A Queiroz Editor 1991 16 Raimundo Lúlio Livro das bestas Trad Cláudio Giordano e Esteve Jaulent São Paulo Edições LoyolaEditora Giordano 1990 Sugestões de leitura 1 Dicionários e documentos LOYN H R Dicionário da Idade Média Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1989 LE GOFF Jacques SCHMITT JeanClaude Orgs Dicionário temático do Ocidente Medieval São Paulo EDUSCImprensa Oficial do Estado 2002 MCEVEDY Colin Atlas de História Medieval São Paulo Edusp 1983 PEDREROSÁNCHEZ Maria Guadalupe Org História da Idade Média textos e testemunhas São Paulo Ed da Unesp 2000 ESPINOSA Fernanda Antologia de textos históricos medievais Lisboa Livraria Sá da Costa 1972 MONGELLI Lenia Márcia de Medeiros Org Fontes primárias da Idade Média São Paulo Ed Ibis 1999 2 v 2 Obras gerais FRANCO JR Hilário A Idade Média nascimento 2ª ed rev e aum São Paulo Brasiliense 2000 BATISTA NETO Jônatas História da Baixa Idade Média São Paulo Ed Ática 1992 RUCUQUI Adeline História Medieval da Península Ibérica Lisboa Editorial Estampa 1995 LE GOFF Jacques Org O homem medieval Lisboa Editorial Estampa 1989 DUBY Georges A Europa na Idade Média São Paulo Martins Fontes 1989 3 Livros paradidáticos MACEDO José Rivair Movimentos populares na Idade Média 13ª reimp São Paulo Contexto 1999 MACEDO José Rivair Viver nas cidades medievais São Paulo Editora Moderna 1999 Coleção Desafios VALLE RIBEIRO Daniel A cristandade do Ocidente Medieval São Paulo Atual Editora 1998 Discutindo a História ANDRADE FILHO Ruy Os muçulmanos na Península Ibérica São Paulo Ed Contexto 1989 Coleção Repensando a História FRANCO JR Hilário Feudalismo uma sociedade religiosa guerreira e camponesa São Paulo Editora Moderna 1999 Coleção Polêmica FAUSTINO Evandro Mentalidade medieval São Paulo Editora Moderna 2001 Coleção Desafios REZENDE Cyro de Barros Guerra e guerreiros na Idade Média São Paulo Ed Contexto 1989 Coleção Repensando a História 4 Material audiovisual REVISTA CARAS Enciclopédia multimídia de arte universal Volume 4 Arte bárbara bizantina e islâmica volume 5 Românico e gótico 2 CDsROM Secretos quero descobrir música ibérica da Idade Média e do Renascimento Cancioneiro Sepharadita judaicoespanhol Trovadores medievais Conjunto de Câmara de Porto Alegre Porto Alegre Prefeitura de Porto AlegreFUMPROARTE 1996 Tempo de descobertas Conjunto de Câmara de Porto Alegre Porto Alegre Prefeitura de Porto AlegreFUMPROARTE 1999 História da humanidade 5 os tempos medievais Distribuidora SBJ 1994 História geral da arte Gênios da pintura Bosch e Brueghel IMASOLEdiciones del Prado 1995 Repensando a Idade Média no ensino de História José Rivair Macedo O conhecimento sobre o período histórico situado entre os séculos V e XV é permeado por ideias preconceituosas e ficcionais entretanto diversos historiadores especializados na pesquisa sobre a Idade Média buscam desmistificar estes estereótipos que ainda estão relacionados com esta época da história europeia Neste contexto a concepção de idade das trevas foi criada por eruditos e eruditos renascentistas e eruditos iluministas que possuíam a visão racionalista liberal e anticlerical todavia esta ideia desenvolvida não condiz com a verdade mais ela ainda é repassada para a sociedade visando acusar o passado e seu modelo de organização para enaltecer esse Estado e o presente Todavia a Idade Média é a origem das características políticas e culturais da Europa na qual a identidade supranacional guiada pela fé única e una baseada no cristianismo foi gerada na Idade Média e esta fé fomentou o pensamento científico moderno a busca pela supremacia da cultura europeia sobre diversas culturas a criação de uma consciência europeia e a busca pelo centro do mundo Neste contexto de valorização do presente e ocultação de aspectos relevantes do passado salientase que o ensino da história não é neutro e a forma com que a Idade Média é ensinada nas escolas está relacionada à conveniência de países europeus Ou seja o ensino da história é colonizado e busca satisfazer interesses de alguns países França Inglaterra Alemanha e Itália Desta forma os Parâmetros Curriculares Nacionais não destina muito espaço para os eventos situados entre os séculos V e XV da História Europeia e esta lacuna busca repassar aos estudantes as formas de governo história política as configurações dos grupos sociais com destaque nas relações de dominação entre os senhores feudais e os camponeses e a formação e decadência do feudalismo e o surgimento do capitalismo moderno sugestionando que a Era Moderna é resultado da superação do atraso feudal Sendo assim o estudo social da época é composto da estigmatização das figuras sociais que compunham aquela sociedade na qual o rei era caracterizado como fraco os senhores feudais como fortes arrogantes e opressores e os camponeses como oprimidos e passivos Sendo assim a escola busca preservar a memória da nação do Estado Moderno e da supremacia ocidental do mundo enquanto os pesquisadores possuem o objetivo de debater os sistemas de valores das formas culturais das representações e dos traços do imaginário medieval No entanto a satisfação de interesses de alguns países europeus prejudica a disseminação de conhecimentos relevantes como o legado cultural da Idade Média e aspectos históricos da Península Ibérica que possui relevância para a sociedade brasileira uma vez que a cultura brasileira pertence ao conjunto cultural iberoamericano e o seu ensino revelam aspectos importantes que possuem relação com aspectos presentes do Brasil como a formação de identidades coletivas na América Latina Ademais dilemas atuais vividos por países pobres foram vividos por países ricos durante a Idade Média e o seu estudo propiciaria um referencial de estudos para enfrentar dilemas atuais se estes fossem explanados de forma contundente nas escolas Entretanto a comunicação eletrônica e a Informática estão sendo fatores preponderantes para ajustar estas lacunas pois são meios de divulgação da Idade Média e dos estudos medievais Outro problema do ensino da História sobre este período é a forma com que esta época é exposta aos alunos Uma vez que os professores explicam este período histórico por meio da escrita exclusivamente todavia a sociedade era composta por uma maioria analfabeta logo para alcançar uma visão holística sobre o assunto é necessário o estudo complementado pela oralidade e pelas imagens Contudo é preciso ser cauteloso com a utilização de filmes para explanar uma história pois a cinematografia possui mais relevância no momento em que foi produzido que o momento que se deseja retratar Sendo assim os filmes não devem ser utilizados como forma de ensino e sim como meio de propiciar a reflexão dos estudantes sobre mudanças e permanências de ações nas diferentes épocas Sendo assim um meio eficaz de demonstrar diferentes contextos é a iconografia ou seja imagens de pinturas esculturas e arquitetura do período analisado Desta forma o contato com as imagens possibilita uma didática eficaz que proporciona o contato com mensagens implícitas e explicitas formulas na época Logo os profissionais da educação devem buscar miniaturas iluminuras vitrais afrescos e tímpanos de igrejas para apresentarem em suas aulas pois a oralidade é uma característica significativa da Idade Média e esta oralidade originou a chamada literatura medieval que é composto por pontos narrativos de conteúdo moral contos fábulas romances medievais entre outros Este legado possui relevância atual pois ele é formado por relatos de representações coletivas que possibilitam a reflexão sobre o modo de agir e pensar medieval A partir dos argumentos supracitados tornase evidente que é necessário repensar as atuais fórmulas de ensino e valorizar o conhecimento que pode ser agregado nas matrizes curriculares buscando aprofundar os estudos da Idade Média que atualmente é desvalorizado mas possui muito para ensinar A CIVILIZAÇÃO FEUDAL Ao narrar a instalação dos povos germânicos os cronistas agregaram mais relevância para as ocupações violentas fazendo com que a narrativa não represente totalmente com a verdade pois ela foi realizada de forma lenta progressiva e muitas vezes pacíficas na qual o Império absolveu e aproveitouse dessa imigração pois agregava ao império talentos artesanais e força física Sendo assim as fronteiras não eram lugares de constantes combates e sim um local em que romanos e não romanos realizavam encontros e trocas habitualmente Sendo assim a instalação dos povos germânicos é composta por momentos marcados pela violência e momentos marcados pela cordialidade Todavia a instalação efetiva dos povos germânicos e a queda do governo Romano Ocidental e o início da Alta Idade Média não foram eventos históricos que marcaram o fim da instabilidade de povoamento naquela região Pois aquelas regiões se tornaram desarticuladas com o fracasso da estrutura fiscal de Roma e mesmo havendo esforços na criação de sistemas legislativos por parte dos reinos germânicos as ações não obtinham êxito em virtude da não distinção entre vida pública e vida privada dos soberanos gerando a patrimonialização do poder e acentuando o processo de regionalização impossibilitando a criação de Estados Durante a Alta Idade Média a ruralização foi fomentada e o desenvolvimento comercial e urbano passou por uma situação de declínio em virtude do aumento da insegurança nas cidades que motivaram migração massiva para as vilas rurais fortificadas Outros fatores relevantes foram a desvalorização monetária e a diminuição na circulação econômica de produtos de subsistência Todavia a mesma época é marcada pelas lentas inovações técnicas e a gradativa expansão das áreas cultivadas demonstrando que apesar dos problemas enfrentados ele possuiu desenvolvimento gradual Um dilema enfrentado durante o estudo do período analisado é sobre a manutenção ou erradicação da escravidão uma vez que não há um consenso historiográfico Todavia o autor Baschet defende que houve o fim da escravidão produtiva e agrícola e a manutenção da escravidão domestica Outra divergência é a cronologia de extinção da escravidão uma vez que as corrente marxistas que apontando que o fim da escravidão é consequência da Queda do Império Ocidental Enquanto muitas fontes atestam que na Alta Idade Media mantinha a escravidão com características similares as da Antiguidade Por sua vez o autor do texto analisado defende que a extinção completa do sistema escravagista caracterizase como um fenômeno complexo em que não ocorreu de forma abrupta e sim de forma gradual e com interferência de diversos setores da sociedade Sendo assim o âmbito religioso é marcado pelo impacto do cristianismo que modificava algumas percepções que permeavam aquela sociedade mas mantinha outras ideias Ou seja esta doutrina religiosa legitimava a manutenção da escravidão mas modificava a ideia que se tinha sobre os escravos na vida social possibilitando o direito ao batismo e a participação na ritualística cristã Por outro lado os militares também possuem influência nas mudanças que ocorreram em relação a escravidão uma vez que o fim das guerras romanas de conquista gerou o aumento no preço dos escravos visto que estas guerras eram fontes de abastecimento dessa mão de obra Fazendo com que esse comércio fosse restabelecido pelas guerras nos reinos germânicos do século V todavia essas guerras do século V modificaram a origem dos escravos que deixaram de ser estrangeiros e passaram a ser habitantes das circunvizinhanças fazendo com que as semelhanças culturais proporcionassem uma socialização mais facilitada e uma redução da exclusão Por sua vez o declínio econômico decorrente da decadência do Império inviabilizava a aquisição e manutenção de escravos uma vez que o Estado passa a não ter condições de conferir legitimidade ideológica e assegurar uma força repressiva Outro ponto abordado pelo texto analisado é a conversão dos reis germânicos na qual a Igreja enquanto instituição sociopolítica passou por um processo de expansão e desenvolvimento em que as populações vão paulatinamente se convertendo e aderindo ao novo credo Este processo fortaleceu o poder da Igreja e ela conseguiu se manter mesmo quando a instituição estatal enfraqueceu Sendo assim os bispos passam a reunir em si a autoridade religiosa e política gerando o fenômeno nomeado pelo autor como aristocratização da igreja Este fortalecimento da Igreja gerou a marginalização das religiões pagãs e sua demonização Ademais o poder da Igreja a tornou uma figura influente e necessária para a realização de transformações sociais propiciando a criação de alianças com o Estado como a aliança entre a Igreja e o poderoso Império Franco gerando a emersão do sistema do papado e as trocas equilibradas entre Igreja e Estado favorecendo o crescimento das duas instituições Desta forma o novo sistema imperial gerou inovações e desenvolvimentos culturais como a fixação e a cunhagem da libra da prata avanços nas técnicas intelectuais aumento na produção de livros entre outras Sendo assim o texto analisado busca desconstruir e problematizar a imagem consolidada no imaginário social acerca do medievo e demonstrar que esta época não é símbolo de absoluto declínio e falta de evolução
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Copyright 2004 by Éditions Flammarion Copyright da tradução 2005 by Editora Globo SA Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma seja mecânico ou eletrônico fotocópia gravação etc nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados sem a expressa autorização da editora Texto fixado conforme as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Decreto Legislativo n 54 de 1995 Título original La civilization féodale de lan mil à la colonization de lAmerique Preparação Beatriz de Freitas Moreira Revisão Valquíria Della Pozza Maria Sylvia Corrêa Índice remissivo Luciano Marchiori Capa Ettore Bottini sobre iluminuras de Les trés riches heures du Duc de Berry 141016 dos irmãos Limbourg Musée Condé Château de Chantilly 3ª reimpressão 2011 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Baschet Jérôme A civilização feudal do ano 1000 à colonização da América Jérôme Baschet tradução Marcelo Rede prefácio Jacques Le Goff São Paulo Globo 2006 Título original La civilization féodale de lan mil à la colonization de lAmerique ISBN 9788525041395 1 Civilização medieval 2 Europa História medieval 3 Idade Média I Le Goff Jacques II Título 061863 CDD9401 Índice para catálogo sistemático 1 Civilização medieval História 9401 Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo S A Av Jaguaré 1485 05346902 São Paulo SP wwwglobolivroscombr Jérôme Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL Do ano mil à colonização da América tradução Marcelo Rede Professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense prefácio Jacques Le Goff EDITORA GLOBO matéria de artesanato e principalmente do trabalho com metais superior à do mundo romano asseguramlhes algumas vantagens e permitem que eles se aproveitem das fraquezas de um Império em dificuldade O termo invasões não é mais satisfatório do que o termo bárbaros Houve vários episódios sangrentos conflitos militares incursões violentas e ocupações de cidades certamente aqueles aos quais as narrativas dos cronistas deram maior relevo Entretanto a instalação dos povos germânicos deve ser imaginada sobretudo como uma infiltração lenta durando vários séculos como uma imigração progressiva e muitas vezes pacífica durante a qual os recémchegados se instalaram individualmente aproveitandose de seus talentos artesanais ou pondo sua força física a serviço da armada romana ou também em grupos numerosos beneficiandose então de um acordo com o Estado romano que lhes concedia o estatuto de povo federado O Império soube então em um primeiro momento absorver essa imigração ou compor com ela antes de desaparecer sob o efeito de suas próprias contradições exacerbadas à medida que a infiltração estrangeira se ampliava A historiografia recente demonstrouo bem a zona de fronteira limes ao norte do Império teve um papel marcante menos como separação como se imagina com frequência do que como espaço de trocas e interpenetração Do lado romano a presença de exércitos consideráveis e a implantação de um cordão de cidades importantes na retaguarda Paris Trèves Colônia estimulam a atividade dessas regiões e aumentam seu peso demográfico lançando assim sem dúvida as bases da importância adquirida pelo Noroeste da Europa a partir da Alta Idade Média Quanto aos grupos germânicos que vivem próximos do limes eles deixam de ser nômades e tornamse camponeses vivendo em aldeias e praticando o pastoreio o que lhes permite também serem guerreiros mais bem nutridos que os romanos Devido à sua sedentarização seu modo de vida é menos diferente do que se poderia crer daquele dos povos romanizados que aliás comercializam de bom grado com eles Assim quando as razias dos hunos vindos da Ásia Central se abatem sobre a Europa os visigodos que pedem autorização para entrar no Império são agricultores tão inquietos diante desse novo perigo quanto os próprios romanos A fronteira foi então o espaço em que romanos e não romanos habituaramse a se encontrar e a fazer trocas começando a dar à luz uma realidade intermediária ela tornase o eixo involuntário em torno do qual os mundos romanos e bárbaros convergiam Peter Brown Mais tarde a unidade imperial deslocase definitivamente cedendo o lugar no decorrer dos séculos V e VI a uma dezena de reinos germânicos Desde 42939 os vândalos instalamse no Norte da África com o estatuto de povo federado depois é a vez dos visigodos na Espanha e na Aquitânia dos ostrogodos na Itália com Teodorico que reina a partir de 493 dos burgúndios no Leste da Gália dos francos ao norte desta e na Baixa Renânia e finalmente a partir de 570 os anglos e os saxões que estabelecem na GrãBretanha com exceção dos territórios da Escócia da Irlanda e do País de Gales que permanecem celtas os numerosos reinos que se dilacerarão no decorrer da Alta Idade Média Kent Wessex Essex Ânglia Oriental Mercia Northumbria Sem conseguir de qualquer modo inverter a fragmentação que caracteriza então o Ocidente um fenômeno notável desse período é o aumento do poderio dos francos conduzidos pelos soberanos da dinastia merovíngia fundada por Clóvis 511 e ilustrada por Clotário 561 e Dagoberto 639 Os francos conseguem com efeito expulsar os visigodos da Aquitânia na batalha de Vouillé em 507 incorporar os territórios de outros povos especialmente aquele dos burgúndios em 534 para finalmente dominar o conjunto da Gália salvo a Armórica celta Eles adquirem assim uma primazia no seio dos reinos germânicos o que reforça ainda mais o peso já dominante demograficamente da Gália Um pouco mais tarde no decorrer do século VI os últimos dos povos germânicos a chegarem os lombardos instalamse na Itália contribuindo para arruinar a reconquista de uma parte do antigo Império do Ocidente levada a cabo pelo imperador do Oriente Justiniano 565 Mesmo após a instalação dos povos germânicos o Ocidente altomedieval continua a ser marcado pela instabilidade do povoamento e pela presença dos recémchegados A expansão muçulmana submerge a Península Ibérica e põe fim ao reino visigótico em 711 enquanto bandos armados muçulmanos avançam até o centro da Gália com a intenção de pilhar Tours até serem vencidos em Poitiers em 732 pelo chefe franco Carlos Martel o que os obriga a bater em retirada para além dos Pireneus Depois na segunda parte da Alta Idade Média é preciso mencionar as incursões tumultuosas dos húngaros no século x e sobretudo dos povos escandinavos também chamados vikings ou normandos literalmente os homens do Norte Guerreiros valentes e grandes navegadores estes últimos atacam incessantemente as costas da Inglaterra desde o fim do século VIII e submetem os reinos anglosaxões ao pagamento de um tributo até que o dinamarquês Cnut se imponha como rei de toda a Inglaterra 101635 No continente os homens do Norte aproveitamse do enfraquecimento do Império Carolíngio e a partir dos anos 840 não se contentam mais em atacar as regiões costeiras mas penetram profundamente em todo o oeste dos territórios francos evocando suas divindades pagãs e semeando pânico e destruição Finalmente os soberanos carolíngios são obrigados a ceder e o Tratado de SaintClairsurEpte 911 concede aos normandos a região que no Oeste da França tem ainda hoje seu nome Mas o expansionismo dos vikings não para por aí e a partir desta base continental o duque da Normandia Guilherme o Conquistador se lança sobre a Inglaterra da qual ele se torna rei na sequência da vitória obtida em Hastings 1066 sobre Haroldo que se esforçava para reconstruir um reino anglosaxão Por outro lado a família normanda dos Hauteville arriscase ainda mais longe conquistando o Sul da Itália com Roberto Guiscardo em 1061 e depois a Sicília em 1062 até que Roger II reunindo o conjunto desses territórios termine por obter o título de rei da Sicília da Apúlia e da Calábria em 1130 Finalmente os vikings da Escandinávia sob a condução do legendário Érico o Vermelho implantamse a partir do fim do primeiro milênio e por muitos séculos nas costas da Groenlândia que eles já denominam país verde A partir dali Leif Eriksson e seus homens aventuramse no início do século XI até os rios do Canadá e sem dúvida da Terra Nova mas são logo expulsos pelos seus habitantes Eles foram assim os primeiros europeus a pisar em solo americano mas sua aventura sem continuidade não teve o menor efeito histórico A fusão romanogermânica Voltemos um pouco atrás para sublinhar os efeitos da fragmentação da unidade romana e da instauração dos reinos germânicos O conjunto desses movimentos contribui para o deslocamento do centro de gravidade do mundo ocidental do Mediterrâneo para o Noroeste da Europa Aos fatores já evocados papel da antiga fronteira romana peso demográfico da Gália expansão dos francos é preciso juntar a conquista duradoura da Espanha pelos muçulmanos que controlam igualmente o conjunto do Mediterrâneo ocidental e a desorganização da Itália esgotada pelo insustentável projeto da reconquista justiniana e pela epidemia da peste que a devasta a partir de 570 e durante o século VII Desde então o papel principal na Europa cristã transferese para o Norte Outra consequência da desagregação do Império do Ocidente é o desaparecimento de todo o verdadeiro Estado Uma vez quebrada a unidade de Roma seu sistema fiscal desaba com ela O ocaso da estrutura fiscal romana é na verdade um dos fatores que favorecem a conquista pelos povos germânicos Mesmo se a dominação bárbara lhes custa do ponto de vista cultural as cidades percebem muito bem que ela é preferível ao peso crescente do fisco romano ao mesmo tempo que os reis germânicos se dão conta de que o preço a ser pago por uma conquista fácil é muitas vezes o de outorgar aos proprietários romanos privilégios fiscais tão amplos que o sistema fiscal foi destruído a partir do interior Chris Wickham O desabamento da estrutura fiscal fez do Ocidente a partir do meio do século VI um conjunto de regiões sem relação entre si e os reinos germânicos mesmo quando levam mais longe a conquista permanecem atrelados a essa profunda regionalização Eles são incapazes de restaurar o imposto ou mesmo de exercer um verdadeiro controle sobre seus territórios e sobre as elites locais Assim se os reis germânicos têm uma intensa atividade de codificação jurídica redigindo códigos e editos onde se misturam breviários de direito romano e compilações de costumes tradicionais de origem germânica lei sálica dos francos leis de Etelberto editos de Rotário etc esse frenesi jurídico corresponde à ausência de todo o poder real efetivo e toda tentativa séria de aplicação se revela um imenso fracasso A força de um rei germânico é essencialmente um poder de fato protegido por uma corte ligada a ele por um laço pessoal de fidelidade ele é um guerreiro inconteste conduzindo seus homens à vitória militar e à pilhagem O processo que confunde a coisa pública com as possessões privadas do soberano iniciado desde o século III conduziu no caso dos reis germânicos a uma completa confusão Resulta disso um patrimonialismo do poder que permite notadamente recompensar servidores fiéis através da concessão de um bem público Em resumo é impossível considerar Estados os reinos da Alta Idade Média Entretanto seria um engano crer que o fim do Império signifique a substituição completa das estruturas sociais e culturais de Roma por um universo importado próprio dos povos germânicos Mais do que isso constase um processo de convergência e de mistura do qual as elites romanas locais são sem nenhuma dúvida os atores principais Elas compreendem que lhes é possível manter suas posições sem o apoio de Roma desde que consintam em compor minimamente com os chefes de guerra germânicos É claro custalhes negociar com esses bárbaros vestidos de peles de animais e de cabelos longos que tudo ignoram dos refinamentos da civilização urbana Mas o interesse prevalece e os chefes bárbaros recebem sua parte da riqueza romana terras e escravos a ponto de tornaremse membros eminentes das elites locais Pouco a pouco e inicialmente na Espanha e na Gália as diferenças entre aristocratas romanos e chefes germânicos atenuamse e com maior intensidade ainda devido aos casamentos que com frequência unem suas linhagens Assim operase a unificação das elites que terminam por partilhar um estilo de vida comum cada vez mais militarizado mas também fundado sobre a propriedade da terra e o controle das cidades Essa fusão cultural romanogermânica é um dos traços fundamentais da Alta Idade Média e foi sem dúvida entre os francos que teve maior êxito o que é um dos ingredientes de sua expansão Essa fusão é de A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 53 Jérôme Baschet 52 Jérôme Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 51 resto precocemente ilustrada pelo selo de Childerico 481 o pai de Clóvis no qual o rei aparece retratado com os longos cabelos do chefe de guerra franco caindo sobre as pregas de uma toga romana Peter Brown A CONTURBAÇÃO DAS ESTRUTURAS ANTIGAS O declínio comercial e urbano As desordens ligadas aos movimentos migratórios e ao fim da unidade romana têm consequências econômicas de primeira importância A insegurança combinada à falta de espécimes monetários e à ausência de manutenção seguida pela destruição progressiva da rede de estradas romanas engendra o declínio e o quase desaparecimento do grande comércio antes tão importante no Império Evidentemente alguns produtos de luxo continuam a alimentar as cortes reais e as casas aristocráticas especiarias e produtos do Oriente armas e peles da Escandinávia escravos da GrãBretanha Sem a manutenção ainda que mínima de um fluxo de troca de longa distância não se poderia explicar o tesouro da tumba real de SuttonHoo Suffolk Inglaterra do século VII no qual foram encontrados armas e paramentos escandinavos peças de ouro da França prata de Constantinopla e seda da Síria Mas o esgotamento afeta o que compunha o essencial da circulação de mercadorias no Império ou seja os produtos alimentares de base como os cereais maciçamente importados da África para Roma e que serviam até mesmo ao abastecimento das tropas concentradas na fronteira norte ou ainda os produtos artesanais que circulavam amplamente entre as regiões Podese mencionar assim graças ao testemunho da arqueologia o caso da cerâmica africana que tinha invadido todo o mundo mediterrâneo durante o Baixo Império e cujas exportações embora poupadas pela conquista vândala declinam e desaparecem em meados do século VI abrindo caminho para o surgimento de estilos regionais de cerâmica Com efeito é do século VI que se deve datar o declínio maciço de todos os setores do artesanato exceto da metalurgia para a qual os povos germânicos contribuem com um conhecimento superior e o fim das ilhas de prosperidade econômica que tinham sido preservadas até então A produção realizase doravante em uma escala cada vez mais local o que acentua ainda mais o declínio das trocas A regionalização das atividades produtivas paralela à fragmentação política é justamente uma das características fundamentais da Alta Idade Média 54 Jérôme Baschet Junto com o grande comércio as cidades não menos emblemáticas da civilização romana conhecem um profundo declínio Suas dimensões reduzemse de modo considerável Roma que deve ter atingido 1 milhão de habitantes tem ainda 200 mil depois de 410 mas somente 50 mil no fim do século VI para tomar um outro exemplo bem mais comum uma cidade do centro da Gália como Clermont que antes se estendia por duzentos hectares encerra em estreitas muralhas um território reduzido a três hectares Desde 250 tem início a diminuição do ritmo das construções públicas que faziam as honras das cidades romanas e que cessam completamente após 400 com a exceção dos edifícios episcopais Os antigos edifícios públicos caem em ruínas e seus materiais são muitas vezes reutilizados para edificar igrejas ou casas particulares As elites senatoriais antes associadas ao prestígio da capital voltamse para os seus domínios villae enquanto as instituições urbanas como a curia antiga instância de governo autônomo das cidades vacilam diante do poder crescente dos bispos Em suma as cidades e com elas a cultura urbana que compunha o coração da civilização romana não são mais do que a sombra delas mesmas Mas a despeito de seu declínio considerável as cidades do Ocidente jamais desaparecem completamente Podese mesmo dizer que aproveitandose da fraqueza do controle exercido pelos reis germânicos elas se mantêm como os principais atores políticos no nível local durante os séculos VI a VIII Chris Wickham Seu papel é por certo apagado mas graças à ampla autonomia das elites urbanas e ao desenvolvimento da função episcopal elas conseguem sobreviver à crise final do sistema romano Enquanto as cidades declinam a ruralização constitui um traço essencial da Alta Idade Média As desordens já mencionadas são sentidas também nos campos e os séculos V e VI são caracterizados por uma crise de produção agrícola Seria porém imprudente estender essa conclusão ao conjunto do período considerado aqui Ao contrário apesar da raridade de fontes de informação os historiadores acumulam indícios que põem em causa a ideia tradicional de uma recessão generalizada dos campos durante a Alta Idade Média Evidentemente a diminuição de cerca de um terço do tamanho dos animais de criação entre o Baixo Império e a Alta Idade Média indica o recuo do grande domínio e o abandono da comercialização do rebanho em benefício de uma criação para uso local Entretanto constatase também durante a Alta Idade Média a difusão lenta de certas inovações técnicas moinho dágua instrumental metálico assim como uma leve expansão das superfícies cultivadas Tratase é claro de um primeiro desenvolvimento limitado e frágil muitas vezes interrompido e periodicamente posto em causa por circunstâncias adversas mas em todo caso fundamental na medida em que ele acumula as forças silenciosas que se afirmarão durante o período seguinte A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 55 O desaparecimento da escravidão O mais determinante sem dúvida são as profundas transformações das estruturas sociais rurais No mundo romano o essencial da produção agrícola era assegurado no quadro do grande domínio escravista Ora é justamente esse tipo de organização começando pela própria escravidão que desaparece Essa questão suscitou amplas discussões que ainda hoje estão longe de estar resolvidas e são esclarecidas apenas por informações imperfeitas Entretanto uma constatação essencial é capaz de obter unanimidade quando se atinge o século XI a escravidão que constituía a base da produção agrícola no Império Romano cessou de existir de modo que entre o fim da Antiguidade tardia e o fim da Alta Idade Média ocorre inequivavelmente o desaparecimento da escravidão produtiva por outro lado a escravidão doméstica que não tem nenhum papel na produção agrícola continua a existir notadamente nas cidades da Europa mediterrânica até o fim da Idade Média e mesmo depois Mas o acordo termina desde que se levantem três questões determinantes para compreender o desaparecimento da escravidão Por quê Quando Como As causas religiosas tradicionalmente evocadas tiveram sua importância limitada pela historiografia do último meio século De fato o cristianismo está longe de condenar a escravidão como atestam os escritos de são Paulo Pelo contrário ele se esforça para reforçar a sua legitimidade a tal ponto que teólogos como santo Agostinho e Isidoro de Sevilha tão essenciais para o pensamento medieval veem nela um castigo de Deus É verdade que a Igreja considera a libertação dos escravos manumissio um ato piedoso mas ela própria não dá o exemplo pois os escravos que possui em grande número são considerados pertencentes a Deus e assim não poderiam ser retirados de um senhor tão eminente para não mencionar o fato de que um papa como Gregório o Grande compra novos escravos Entretanto ainda que a Igreja em nada se oponha à escravidão a difusão das práticas cristãs modifica profundamente a percepção dos escravos e ameniza pouco a pouco sua exclusão da sociedade humana Com efeito se num primeiro momento a Igreja proíbe a redução à escravidão de um cristão a seguir ela reconhece que o escravo é um cristão este recebe o batismo sua alma deve portanto ser salva e ele partilha o mesmo lugar dos homens livres durante os ofícios Tal prática que diminui a separação entre livres e não livres tende a solapar os fundamentos ideológicos da escravidão ou seja a natureza infrahumana do escravo e sua dessocialização radical Pierre Bonnassie Causas militares também são tradicionalmente evocadas pois o fim das guerras romanas de conquista parece secar as fontes de abastecimento de escravos Mas as desordens do século V suscitam ao contrário uma alta do número de escravos e as guerras incessantes levadas a cabo pelos reinos germânicos entre si ou contra as populações anteriormente estabelecidas os celtas vítimas do avanço dos anglosaxões nas Ilhas Britânicas são massacrados condenados ao exílio na Armórica ou reduzidos à escravidão asseguram a manutenção de um manancial de novos fornecimentos ao longo dos séculos VI e VII do mesmo modo que no século IX as razias carolíngias na Boêmia e na Europa Central Mas enquanto o escravo antigo era um estrangeiro ignorando a língua de seus senhores não ocorre mais o mesmo com o escravo desse período com frequência capturado no decorrer de uma guerra entre vizinhos o que contribui ainda mais para reduzir sua dessocialização e a distância que o separa dos homens livres Rejeitando as explicações ligadas aos contextos religioso e militar a historiografia desde Marc Bloch insistiu sobre as causas econômicas do declínio da escravidão uma vez desaparecido o contexto bastante aberto da economia antiga que permitia obter grandes benefícios da produção agrícola a escravidão deixa de ser adaptada Os grandes proprietários se dão conta do custo e do peso da manutenção da mão de obra escrava que é preciso alimentar durante todo o ano inclusive durante as estações não produtivas Doravante revelase mais eficaz instalála em terrenos situados às margens do domínio o que lhe permite obter sua subsistência em troca de um trabalho realizado nas terras do senhor ou de uma parte da colheita obtida Tal é o processo de chasement já praticado no século III e bem atestado entre o século VI e o IX Ele leva à formação do grande domínio considerado a organização rural clássica da Alta Idade Média e em particular da época carolíngia Muitas vezes tão extenso como aqueles da Antiguidade por vezes superando 10 mil hectares ele se caracteriza por uma dualidade entre a reserva terra dominicata explorada diretamente pelo senhor graças à mão de obra servil e ao pesado trabalho que os camponeses vinculados devem realizar em suas terras em geral três dias por semana e os mansos mansi parcelas onde estes últimos são instalados e graças às quais eles asseguram sua subsistência Modificações importantes devem ser entretanto acrescentadas ao esquema acima A importância do grande domínio deve ser relativizada Se ele constitui a forma de organização que assegura de modo privilegiado o poderio dos grupos dominantes aristocracia e Igreja convém sublinhar a importância durante a Alta Idade Média de pequenos camponeses livres que cultivam terras independentes dos grandes domínios denominadas alódios Esses homens livres beneficiavamse de uma posição privilegiada particularmente em matéria judi ciária mas sobre eles pesam obrigações especialmente militares que são difíceis de suportar já que são bastante pobres É por isso que se enfatizou que eles deveriam se interessar de perto pelas possibilidades oferecidas pelas inovações técnicas e por tudo que pudesse aumentar sua produção Enquanto alguns his 56 Jérôme Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 57 toriadores associam o primeiro desenvolvimento dos campos a partir do século VIII aos grandes domínios outros se perguntam se ele não foi antes obra dos campos alodiais e se estes últimos não constituam então a maioria da população rural Em todo caso a dinâmica atinge os grandes domínios onde termina por acentuar o processo de vinculação chasement dos antigos escravos a descentralização de satélites que dependem do domínio principal e o enfraquecimento do controle sobre os mansos A dificuldade de organização dos grandes domínios e os inconvenientes da mão de obra escrava foram certamente causas decisivas da decadência da escravidão mas intervêm não no contexto de recessão suposto por Marc Bloch mas em interação com o relativo desenvolvimento posto em marcha pelo campesinato alodial Críticas posteriores à obra de Marc Bloch sugerem que as causas econômicas não são suficientes Assim alguns quiseram sublinhar que o fim da escravidão era a obra dos próprios escravos e de suas lutas de classe pela libertação Pierre Dockès Podese com efeito dar relevo à importância das guerras bagualdas revoltas de escravos que explodem no século III e depois em meados do século V assim como a revolta dos escravos das Astúrias em 770 ou ainda sublinhar que existem várias outras formas de resistência desde a reticência ante o trabalho ou simplesmente sua sabotagem até a fuga que no decorrer da Alta Idade Média se faz cada vez mais maciça suscitando preocupação crescente das camadas dominantes Entretanto tendo em vista a cronologia se é difícil atribuir o papel determinante às lutas dos dominados as observações de Pierre Dockès estimularam a sublinhar o papel das transformações políticas Com efeito a manutenção de um sistema de exploração tão rude como a escravidão supõe a existência de um aparelho de Estado forte garantindo sua reprodução pelas leis que lhe conferem legitimidade ideológica e pela existência de uma força repressiva utilizada ou não mas sempre ameaçadora indispensável para garantir a obediência dos dominados Do mesmo modo quando declinou o aparelho do Estado antigo os proprietários fundiários tiveram cada vez mais dificuldade em manter sua dominação sobre seus escravos É verdade que cada sobressalto do poder político inclusive ainda durante a época carolíngia parece propício a uma defesa da escravidão mas tratase sempre de tentativas limitadas e cada vez menos capazes de frear uma evolução cada vez mais irresistível Assim é uma mutação global ao mesmo tempo econômica social e política que conduz os senhores a transformar grandes domínios que haviam se tornado incontroláveis e pouco adaptados às novas realidades e a renunciar progressivamente à exploração direta do rebanho humano A cronologia da extinção da escravidão não está menos sujeita à controvérsia Podese entretanto renunciar às teses mais extremas Assim a maior parte dos historiadores marxistas obnubilados pelos escritos dos clássicos do materialismo histórico associa o fim do escravagismo à crise do Império Romano que se supõe ter marcado nos séculos III a V a transição decisiva do modo de produção antigo para o modo de produção feudal Mas as pesquisas realizadas desde há mais de meio século demonstraram o caráter insustentável dessa tese uma vez que numerosas fontes atestam a manutenção maciça durante a Alta Idade Média de uma escravidão essencialmente idêntica àquela da Antiguidade Assim nas leis germânicas dos séculos VI a VIII a condição infrahumana do escravo é reiterada sem modificações substanciais o escravo é comparado a um animal como o confirmam as frequentes menções que dele são feitas nas rubricas consagradas ao gado A fim de obter sua obediência pelo terror ele pode ser espancado mutilado ablação do nariz das orelhas dos lábios ou scalpo opções que têm a vantagem de não diminuir sua força de trabalho e mesmo morto se necessário Ele é privado de todo direito de propriedade plena não pode se casar e seus filhos pertencem a seu senhor que pode vendêlos a seu critério Enfim a interdição das relações sexuais do escravo com uma mulher livre equiparadas a um ato de bestialidade punível com a morte dos dois culpados confirma a segregação radical de que são vítimas os escravos Assim a manutenção da escravidão produtiva durante a Alta Idade Média é bem atestada mas nem por isso se poderia pensar em empurrar seu desaparecimento para o extremo fim do século X ou mesmo para o início do século XI como o faz notadamente Guy Bois É possível que por volta do ano mil ainda existam escravos nos domínios rurais denominados nos textos servus ou mancipium mas além do fato de podermos discutir sua situação sua importância é doravante limitada até mesmo marginal e eles deixaram de sustentar o essencial das tarefas produtivas Admitirseá então com Pierre Bonnassie que a extinção do regime escravagista é uma longa história que se estende por toda a Alta Idade Média O essencial do processo consumase sem dúvida entre os séculos V e VIII enquanto os testemunhos dos séculos IX e X manifestam os últimos esforços para salvar um sistema que se tornara insustentável e que finalmente agoniza e morre definitivamente Tendo já evocado as principais modalidades de extinção da escravidão serão suficientes apenas algumas observações complementares sobre esse ponto Uma das vias é a liberação dos escravos manumissio que passam a engrossar as fileiras desse pequeno campesinato livre ao qual se pode atribuir o primeiro crescimento dos campos da Alta Idade Média Entretanto a liberação nem sempre se dá sem restrições e a prática bastante frequente da manumissio cum obsequio prevê uma ressalva de obediência e a obrigação de prestar serviços ao senhor 58 Jérôme Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 59 to egípcio de quem ele descreve em suas Instituições cenobitas as realizações penitenciais e a sabedoria enquanto santo Honorato funda não longe dali o monastério de Lerins rígida escola onde são formados os filhos da aristocracia meridional destinados à carreira episcopal Mas é sobretudo no século VI que as fundações monásticas se multiplicam como tantas outras iniciativas particulares assumidas com frequência pelos bispos ou por vezes a título privado Assim Cesário bispo de Arles cria em 512 um monastério para sua irmã e outras duzentas monjas para as mulheres muitas vezes originárias da aristocracia o ideal fundamental é a preservação da virgindade Em meados do mesmo século Cassiodoro 490580 funda um monastério no Sul da Itália o qual busca ser sobretudo um lugar de cultura consagrado à preservação da retórica e da gramática latinas e à difusão da literatura cristã Um pouco mais tarde Gregório o Grande saído de uma família romana renuncia à sua carreira de funcionário imperial e decide transformar sua casa no Aventino em um retiro onde leva uma vida de penitência extremamente severa Várias obras que se esforçam para codificar as regras da vida monástica circulam na Itália desse tempo tais como a anônima Regra do senhor ou a Regra de são Bento destinada a ter um futuro mais glorioso Morto em 547 este é apenas um fundador dentre outros e seu monastério do Monte Cassino é destruído pouco tempo depois pelos lombardos Sem dúvida é Gregório o Grande o verdadeiro inventor da figura de Bento de quem ele conta a vida e os milagres no livro II de seus Diálogos em 594 preparando assim a origem mais tardia do movimento monástico que será chamado beneditino Enfim mais ao norte em 590 Colombano um santo homem vindo da Irlanda funda Luxeuil nos Vosges onde a aristocracia franca faz educar seus filhos Por volta de 600 existem ao todo cerca de duzentos monastérios na Gália e um século depois mais 320 alguns dos quais são imensamente ricos possuindo por vezes até 20 mil hectares de terras O conjunto desses estabelecimentos geralmente fundados em lugares isolados permite ao cristianismo fincar pé nos campos ao lado da rede urbana dos bispos existe agora uma plantação rural de fundações monásticas O sucesso dessa instituição é considerável A tal ponto que no século VI a palavra conversão adquire um novo sentido Ela não significa mais apenas a adesão a uma nova fé mas também a escolha de uma vida resolutamente distinta marcada pela entrada em um monastério Com efeito se os primeiros discípulos de Cristo eram uma elite cuja escolha árdua podia ser vista como sinal seguro da eleição divina a partir de agora em uma sociedade tornada inteiramente cristã alguns se perguntam se a qualidade de cristão é uma garantia suficiente para alcançar a salvação Como conseguir pois a própria salvação em meio das atribulações do mundo secular Como se preservar do pecado quando se participa dos negócios de um tempo tumultuoso Aos laicos devotos o ideal de vida cristão parece cada vez mais inacessível e mesmo a carreira eclesiástica estreitamente ligada às preocupações mundanas parece muito pouco segura A exigência de uma escola mais rude impõese esta será o monastério lugar de estudo e de prece de mortificação de si mesmo pela obediência alienante ao abade pela penitência e pela privação Espiritual e ideologicamente a aparição do movimento monástico é então o contragolpe da formação de uma sociedade que se quer inteiramente cristã mas se admite necessariamente imperfeita Ele é o refúgio de um ideal ascético em meio a um mundo que a teologia moral de Agostinho e de Gregório entrega à onipresença do pecado Mas ele é também o instrumento de um aprofundamento da cristianização do espaço ocidental e da penetração da Igreja nos campos A luta contra o paganismo Através de que processos ocorreu a conversão do Ocidente ao cristianismo Ao que tudo indica o batismo de um rei e de alguns guerreiros não é suficiente para tornar um povo cristão Por volta de 500 o cristianismo é ainda essencialmente uma religião das cidades e bastante imperfeita pois por exemplo em 495 ainda são celebradas em Roma as Lupercais festas pagãs de purificação ao longo das quais os jovens aristocratas correm nus através da cidade Para se ter uma ideia basta saber que é então que a palavra pagão ganha o sentido cristão que conhecemos ainda hoje No entanto como sublinha a História contra os pagãos de Orósio pagão paganus é também o homem do pagus o camponês Assim o politeísmo antigo é considerado uma crença de homens rurais atrasados Ele não somente é uma ilusão fora de moda como já o havia dito Constantino mas além disso é um resquício rural objeto do desprezo dos citadinos Para os cristãos os deuses antigos existem mas são demônios que é preciso caçar A expulsão dos demônios encontrase então no centro de toda narrativa de propagação da fé cristã contra o paganismo A primeira forma disso é o batismo que tanto quanto uma adesão a Deus é uma renúncia a Satã e aos demônios do paganismo Eu renuncio a todas as obras do diabo Thunor Wotan e Saxnot diz uma fórmula para o batismo dos saxões Mas ele é geralmente insuficiente e é por isso que o exorcismo que visa caçar os demônios alojados no corpo dos fiéis é praticado em grande escala por clérigos especializados A outra modalidade decisiva é a destruição dos templos pagãos de seus altares e estátuas a fim de expulsar deles os demônios São Martinho de Tours é o próprio exemplo do bispo aplicado a essa dupla tarefa como exorcista e como destruidor de templos É também o caso de são Marcel de Paris cuja legenda diz triunfar sobre um temido dragão que encarna sem dúvida tanto o diabo e o paganismo como as forças de uma natureza insubmissa que o santo consegue domar Ele aparece então como um herói duplamente civilizador encarnando conjuntamente a vitória do cristianismo sobre o paganismo e do homem sobre a natureza No entanto esse primeiro procedimento é insuficiente É provável que muitos dos cristãos da Alta Idade Média partilhassem as dúvidas dos auditores de Agostinho se é certo que o Deus único do cristianismo governa as coisas superiores aquelas do céu e do além seria também evidente que ele se preocupe com negócios prosaicos e naturais deste mundo aqui embaixo Não seria necessário pensar ao contrário que estas são regidas por espíritos inferiores Um século mais tarde os sermões de Cesário de Arles 470542 dão uma versão típica dessa preocupação dos clérigos em sua luta contra um paganismo que persiste mesmo quando os templos foram destruídos e os ídolos quebrados Seus restos é este o sentido da palavra superstitio estão em todos os lugares como tantos outros maus costumes e hábitos sacrílegos que é necessário erradicar A dificuldade mais grave diz respeito sem dúvida à sacralidade difusa do mundo natural que os pagãos percebem como impregnado de forças sobrenaturais Ainda em 690 na Espanha é preciso transferir para as igrejas as oferendas votivas acumuladas em torno de árvores sagradas de fontes em cruzamentos ou no topo das colinas A visão cristã do mundo impõe dessacralizar totalmente a natureza submetendoa inteiramente ao homem Mas isso seria possível num mundo tão ruralizado como o da Idade Média O culto dos santos que segundo a doutrina da Igreja teriam o seu poder derivado do próprio Deus é certamente o único compromisso eficaz e aceitável diante desse desafio impossível Com efeito se os ares daqui de baixo continuam habitados pelos demônios os bons cristãos devem se recusar a se aliar com eles como o fazem alguns e devem se confiar aos santos capazes de controlálos e também sem dúvida de certa maneira de substituílos e encarnar o conjunto dessas potências intermediárias entre os homens e Deus Sua ação concreta se faz presente em todos os lugares da cristandade de modo que através de seus gestos sensíveis as múltiplas manifestações de uma sacralidade difusa podem ser consideradas a expressão da vontade de Deus Essas dificuldades voltam à tona cada vez que a fronteira da cristandade avança e põe os clérigos diante de um paganismo ainda vivo ou superficialmente encoberto Durante os séculos da Alta Idade Média duas atitudes complementares são logo postas em marcha destruir e desviar A primeira é acompanhada de preferência por uma substituição como o gesto realizado por são Bonifácio quando em 730 ele derruba o carvalho de Thunor e depois utiliza as tábuas tiradas dessa árvore sagrada dos saxões para construir no mesmo lugar um oratório dedicado a são Pedro A segunda opção não menos eficaz procura pontos de contato que permitam que o cristianismo recubra o paganismo de um modo menos brutal Podese por exemplo tolerar a crença na virtude protetora dos amuletos desde que estes carreguem a cruz Mas é sobretudo o culto dos santos que tem aqui o papel decisivo permitindo uma cristianização relativamente fácil de numerosas crenças e ritos pagãos mais do que destruir um lugar de culto antigo confereselhe uma sacralidade legítima afirmando que se trata de uma árvore benzida por são Martinho ou de uma fonte onde se vê o traço do casco de seu asno Assim o culto dos santos deu ao cristianismo uma excepcional maleabilidade para iniciar com uma mistura de sucesso e de realismo sua luta sempre renovada contra o paganismo Para dizer a verdade essa maleabilidade marca também o limite da conversão do Ocidente medieval ao cristianismo e da formação de uma sociedade cristã no seio da qual a Igreja começa a adquirir uma posição dominante Sua luta contra o paganismo é ao mesmo tempo um triunfo à imagem dos santos abatendo os dragões e uma meia vitória pois ela se impõe somente ao preço de um sério compromisso com uma visão de mundo enraizada no mundo rural animada por ritos agrários e impregnada por um sobrenatural onipresente O RENASCIMENTO CAROLÍNGIO SÉCULOS VIII E IX Os defensores da visão obscurantista da Idade Média surpreenderseão ao constatar que uma expressão amplamente consagrada pela tradição historiográfica evoca um renascimento em pleno coração dos séculos mais sombrios das trevas medievais Mas como se disse a Idade Média é um longo rosário de renascimentos e o desejo de um retorno à Antiguidade que é a essência desse ideal não é o apanágio dos séculos XV e XVI ele se manifesta desde o fim do século VIII pôde em 751 pôr fim ao reinado de Childerico o último rei merovíngio da linhagem de Clóvis e proclamarse rei dos francos em seu lugar o soberano deposto tem sua barba raspada e é privado de sua longa cabeleira símbolo do poder dos chefes francos Para tanto Pepino beneficiase do acordo com o bispo de Roma que procura o apoio da potência franca contra os lombardos que ameaçam invadir Roma O pontífice renova pessoalmente a coroação de Pepino em 754 acrescentando a ela além disso a unção à maneira dos reis do Antigo Testamento conferindo dessa forma ao soberano franco o benefício de uma sacralidade divina legitimada pela Igreja Começa a se urdir assim uma aliança decisiva entre a monarquia franca e o pontífice romano Com a morte de Pepino seu filho Carlos Magno herda o trono dos francos e inaugura um reinado particularmente longo 768814 Ele se lança em uma vasta política de conquista militar de início na Itália onde vence os lombardos e apossase de sua coroa depois contra os saxões que haviam permanecido pagãos e cuja resistência obstinada impõe a Carlos Magno 32 anos de campanhas de uma violência extrema onde se mesclam massacres e deportações terror e conversões forçadas O resultado importante para a história da Europa é a conquista da Germânia e sua integração à cristandade Enfim Carlos Magno leva a guerra mais longe contra os eslavos da Polônia e da Hungria e contra os avaros mas tendo essencialmente um objetivo defensivo É por essa mesma razão que ele avança ao Sul dos Pireneus a fim de constituir a marca hispânica frágil zona de proteção contra os muçulmanos Não podemos crer entretanto que ele teve como projeto iniciar a reconquista da Península Ibérica como quis fazer crer a lenda à qual a Canção de Rolando conferiu eco considerável a partir do fim do século XI Na base dessa narrativa épica emblemática da cultura medieval encontrase apenas um fato histórico sem importância o aniquilamento em 778 da retaguarda conduzida pelo sobrinho de Carlos Magno sob os golpes dos bascos que controlavam então as montanhas dos Pireneus Seja como for Carlos Magno consegue reunificar uma parte considerável do antigo Império do Ocidente a Gália a Itália setentrional e central a Renânia à qual ele junta a Germânia ilustração III a seguir Ele dispõe de recursos excepcionais e de um poder inédito desde o fim de Roma Em 796 empreende a construção de seu palácio em AixlaChapelle cuja localização confirma a alteração do centro de gravidade para a Europa do Noroeste que já era sensível desde a primeira afirmação do poderio franco três séculos antes O plano desse palácio centrado sobre uma grande sala circular inspirase com uma clara intenção política na igrejapalácio de São Vital de Ravena legado de Justiniano Também não é uma coincidência que Carlos Magno se encontre em Roma no dia de Natal do ano 800 importante aniversário do nascimento de Cristo Entretanto a coroação imperial que ocorreu nesse dia desenrolase em circunstâncias ambíguas e pouco claras a tal ponto que alguns historiadores sugerem que o papa teria posto a coroa imperial sobre a cabeça de Carlos Magno de surpresa e quase à sua revelia Em todo caso é provável que a coroação imperial respondesse mais a uma iniciativa de Leão III do que a uma intenção de Carlos Magno Com efeito além de confirmar a aliança já estabelecida em 751 o papa sinaliza ao franco que este tem sua dignidade a partir da Igreja Ele se esforça com isso em manter seu controle sobre um poder que se tornou considerável e que se exercia excessivamente longe de Roma para o seu gosto Além do mais para o bispo de Roma tratase de uma maneira de romper os laços com o imperador de Constantinopla que deixa de encarnar a universalidade ideal da ordem cristã a partir do momento em que reina um outro imperador legitimado por Roma Tal distanciamento não poderia ter ocorrido se Constantinopla não se encontrasse enfraquecida como se verá abaixo pela crise iconoclasta e pela pressão muçulmana Mas são as consequências que importam aqui o bispo de Roma deixa de estar sob a dependência de uma autoridade longínqua a partir de 800 ele não mais data seus documentos em função dos anos de reinado do imperador do Oriente como havia feito III O Mediterrâneo das três civilizações o Islã Bizâncio e o Império Carolíngio no início do século IX até então mais decididamente ainda do que no tempo de Gregório ele se volta para o Ocidente onde começa a dispor de poder real O evento do ano 800 significa então a ruptura de uma das últimas pontes entre Oriente e Ocidente cujo distanciamento progressivo conduzirá ao cisma de 1054 entre as Igrejas católica e ortodoxa O evento significa também uma emergência do papado como verdadeiro poder Ao longo do século IX graças à aliança com o imperador carolíngio o papa começa a exercer um papel considerável nos negócios ocidentais Nisso ele se beneficia da possessão do Patrimônio de São Pedro território que atravessa a Itália central de Roma a Ravena concedido e legitimado pelos soberanos carolíngios graças à redação de uma das mais célebres falsificações da história a suposta doação de Constantino De resto talvez resida nisso o significado maior do Império Carolíngio uma primeira afirmação do papado e mais amplamente da Igreja ocidental Se mesmo antes a Igreja havia se apoiado no poder real esforçandose para institucionalizar e acentuar a distância que o separava do grupo aristocrático agora é o papa que consagra o poderio da dinastia carolíngia e dela recebe em troca a confirmação de sua base territorial e material O momento carolíngio repousa assim sobre uma aliança entre o Império e a Igreja que assegura através de uma troca equilibrada de serviços e apoios o desenvolvimento conjunto de um e de outro O imperador que nomeia bispos e abades dispõe de uma ampla rede de 180 igrejascatedrais e cerca de setecentos monastérios que são uma das bases mais firmes de sua ação Numerosos clérigos lhe aportam uma ajuda direta em sua obra de governo pois eles são os personagens principais de sua corte e põem a seu serviço suas competências e sua erudição Enfim a Igreja encarregase de manter a aura do poder imperial legitimandoo pela consagração e esforçandose sempre por fazer com que as ações do imperador apareçam como as de um príncipe cristão agindo conforme a vontade divina Em troca a Igreja beneficiase de uma proteção sem igual garantida por certificados de imunidade que conferem às terras da Igreja uma autonomia judiciária e fiscal subtraindoas da intervenção do poder real ou imperial sem falar da decisão carolíngia de 779 que torna obrigatório o dízimo destinado à manutenção do clero A partir dali a Igreja pode aumentar e consumir sua organização Instigado por Pepino o Breve Chrodegang de Metz organiza os clérigos das catedrais agora numerosos em cabidos quer dizer em comunidades de cônegos submetidos a uma regra de vida coletiva e quase monástica enquanto Bento abade de Aniana se esforça para homogeneizar os estatutos dos monastérios que se põem sob a Regra de são Bento Muitos dos traços da instituição eclesial dos séculos posteriores esboçamse no Império Carolíngio do mesmo modo que muitas das regras pelas quais a Igreja pretende ordenar a sociedade cristã especialmente no que diz respeito às estruturas de parentesco segunda parte capítulo V Voltemos no entanto ao Império do qual a Igreja não é o único pilar Entre os poderes do imperador o principal é sem dúvida o de convocar no mês de maio de cada ano todos os homens livres para o combate Formase assim por alguns meses de campanha o exército ao qual o imperador deve suas conquistas Mas é duvidoso que se reúnam a cada vez todos os homens com os quais o imperador pode teoricamente contar cerca de 40 mil De resto logo ele renuncia a exigir de todos tal obrigação sobretudo porque numerosos homens livres bastante pobres não dispõem dos recursos necessários para adquirir um armamento pesado e custoso Quanto à imagem de uma administração bem organizada e fortemente centralizada como sugerem as capitulares nome dado às decisões imperiais transmitidas para as províncias ela é sem dúvida ilusória O Império é de fato dividido em trezentos pagi à frente dos quais estão os condes enquanto as zonas fronteiriças são defendidas por duques ou marqueses Mas na verdade o essencial do controle das províncias é confiado às aristocracias locais ou por vezes a guerreiros que o imperador quer compensar e que vivem dos rendimentos de seus cargos O controle dos territórios repousa no essencial sobre os laços de fidelidade pessoal solenizados por um juramento ou pela recomendação vassálica entre o imperador e os aristocratas encarregados das províncias De fato a ideologia carolíngia formulada pelos clérigos subordina o grupo aristocrático ao soberano considerado a única fonte das honras em particular o encargo das províncias o fato de deter tais honras e de servir ao imperador tornase então um elemento fundamental do poder da aristocracia que define e legitima sua posição A despeito da fraqueza política do Império a unidade reencontrada permite importantes avanços Além de um primeiro desenvolvimento das zonas rurais acompanhado de um salto demográfico desde os séculos VIII e IX observase uma retomada do grande comércio Mas este é obra sobretudo de mercadores exteriores ao Império no Sul os muçulmanos que ainda abastecem de produtos orientais as cortes principescas ou imperiais no Norte os navegadores escandinavos que importam madeiras peles e armas Assim Dorestad no mar do Norte se torna o principal porto da Europa onde se estabelecem as trocas entre o continente as Ilhas Britânicas e os reinos escandinavos Embora elas permaneçam no essencial exteriores ao Império tais correntes comerciais obrigam a uma reorganização monetária De fato Carlos Magno toma uma decisão de grande importância para os séculos medievais renunciando à cunhagem do ouro e impondo um sistema fundado sobre a prata metal menos raro e mais adaptado ao nível real das trocas A libra de prata é então fixada em 491 gra mas 50 a mais que na Antiguidade com sua divisão em vinte soldos de doze denários cada um que serão a base da organização monetária durante toda a Idade Média Prestígio imperial e unificação cristã É no domínio do pensamento do livro e da liturgia que o renascimento carolíngio conhece seus sucessos mais duradouros Seu centro é a corte de Carlos Magno e depois a de seu filho Luís o Piedoso para onde convergem os grandes letrados que se põem a serviço do imperador e que continuam a servilo quando recebem um importante cargo eclesiástico É o caso de Alcuíno vindo de York e principal inspirador dos círculos de letrados que cercam Carlos Magno até ser nomeado abade de São Martinho de Tours de Teodolfo nomeado bispo de Orleans e um pouco mais tarde de Agobardo feito bispo de Lyon ou de Rábano Mauro abade de Fulda cuja obra destinada a ter enorme sucesso dá continuidade à ambição enciclopédica de Isidoro de Sevilla que fora na Espanha visigótica o primeiro autor cristão a tentar reunir sobretudo em suas Etimologias a totalidade dos conhecimentos disponíveis Se o imaginário popular confere a Carlos Magno o mérito ou demérito de ter inventado a escola a realidade é mais modesta a Admonitio generalis de 789 contentase em impor a cada catedral e a cada monastério a obrigação de se dotar de um centro de estudos De resto o próprio Carlos Magno é o primeiro soberano medieval que aprendeu a ler mas não a escrever No contexto de seu tempo já era bastante De fato o objetivo principal dos letrados carolíngios é o de ler e difundir os textos fundamentais do cristianismo Tratase de dispor de exemplares mais numerosos e mais confiáveis de livros essenciais em primeiro lugar as Sagradas Escrituras mas também os manuscritos litúrgicos indispensáveis à celebração do culto bem como os clássicos da literatura cristã Para tanto não basta proceder como ordena Carlos Magno a uma revisão do texto da Bíblia cuja tradução latina realizada por são Jerônimo a Vulgata tinha sido alterada ao longo dos séculos Dois instrumentos são igualmente indispensáveis O primeiro é uma escrita de melhor qualidade É por isso que os clérigos carolíngios generalizam o uso da minúscula carolina um tipo de letra menor e mais elegante que aquela dos séculos anteriores o que torna os livros ao mesmo tempo mais manuseáveis e mais legíveis Por uma bela ironia da história essa caligrafia maravilhará os humanistas do século XV que a tomarão por vezes por uma criação da Antiguidade clássica e a utilizarão para desenhar os primeiros caracteres de impressão Além disso é na época carolíngia que os escribas passam a ter o hábito de separar as palavras umas das outras assim como as frases graças a um sistema de pontuação ao contrário do sistema antigo que o ignorava totalmente Essas inovações de aparência modesta constituem na verdade grandes avanços na história das técnicas intelectuais Graças a essas modificações e a uma melhor organização dos scriptoria onde os monges que se dedicam às cópias dos manuscritos trabalham agora em equipes partilhando entre si as diversas seções de uma mesma obra a produção de livros aumenta de modo considerável estimase que cerca de 50 mil manuscritos foram copiados na Europa do século IX O essencial dessas obras responde à necessidade do culto cristão mas outras menos numerosas é verdade pertencem à literatura latina clássica Elas são copiadas porque permitem aprender as regras do bom latim é por isso que Loup de Ferrières um abade do século IX preocupase em encontrar os melhores manuscritos de Cícero Mas esses livros informam também sobre o passado pagão que os cristãos têm necessidade de conhecer certamente para melhor afastaremse dele quer se trate do passado de Roma quer do dos povos germânicos do qual dá testemunho por exemplo a História de Amiano Marcelino que não conheceríamos hoje se um monge de Fulda não a tivesse copiado no século IX É preciso então relembrar este fato em geral esquecido é aos clérigos copistas da Alta Idade Média e a seu trabalho obstinado em um meio não obstante pouco favorável que devemos a conservação do essencial da literatura latina antiga Outro instrumento decisivo da propagação dos textos antigos é a manutenção de um conhecimento satisfatório das regras do latim o que faz da gramática e da retórica as disciplinas mestras do saber carolíngio Em um momento em que a língua latina evolui de modo diferente segundo as regiões os clérigos carolíngios tomam uma decisão que sela o destino linguístico da Europa Eles optam por restaurar a língua latina não exatamente em sua pureza clássica mas ao menos em sua versão corrigida ainda que simplificada Eles consideram esta escolha indispensável à transmissão de um texto bíblico correto e à compreensão dos fundamentos do pensamento cristão Mas ao mesmo tempo eles reconhecem que as línguas faladas pelas populações distanciamse inexoravelmente do bom latim a ponto de recomendarem que os sermões sejam traduzidos para as diferentes línguas vulgares de suas audiências Assim eles abrem a via ao bilinguismo que caracteriza toda a Idade Média com de um lado uma multiplicidade de línguas vernáculas faladas localmente pela população e de outro uma língua erudita aquela do texto sagrado e da Igreja tornada incompreensível para o comum dos fiéis Essa dualidade linguística aprofunda então o fosso entre os clérigos e os laicos assegurando ao mesmo tempo uma unidade marcante à Igreja ocidental É sem dúvida a reforma litúrgica que melhor expressa o sentido do esforço carolíngio Para ela convergem ao mesmo tempo o desenvolvimento das técnicas que permitem dispor de livros mais numerosos em sua forma e mais seguros quanto ao seu conteúdo a vontade de unificação que é a sequência do projeto imperial e enfim a convergência de interesses entre Roma e Aix Na Europa de meados do século VIII existia uma grande diversidade de tradições litúrgicas cada região tendo desenvolvido maneiras particulares de celebrar as festas e os ritos cristãos Dizer que existiam liturgias romanas galicanas e visigóticas daria apenas uma imagem incompleta dessa diversidade Mas a partir do momento em que existe um Império que se propõe a fazer respeitar a Lei divina necessariamente única em todos os lugares não é mais possível deixar um negócio tão essencial à mercê da diversidade dos costumes locais Logicamente a escolha dos soberanos carolíngios consiste então em voltaremse para Roma com o projeto de estender ao conjunto do Império a liturgia que ali era utilizada O sacramentário livro indispensável à celebração da missa que contém todas as fórmulas que o sacerdote deve pronunciar é o instrumento de base dessa reforma litúrgica E finalmente é o sacramentário dito gregoriano pois ele é abusivamente atribuído a Gregório o Grande enviado pelo papa a Carlos Magno e revisado por Bento de Aniana que se impõe no Ocidente cristão e permite a unificação desejada pelo imperador Do mesmo modo a reforma litúrgica questão fundamental para a Igreja é realizada através de uma aliança entre Aix e Roma servindo aos interesses conjuntos dos dois poderes e manifestando o novo papel e o prestígio conferido ao papa no Ocidente Lançado pela corte de Carlos Magno e fortalecido sob o reinado de Luís o Piedoso o renascimento artístico inseparável de uma visão da ordem social sob a condução do poder eclesial e imperial fazse sentir em todos os domínios A arquitetura inova construindo igrejas muito mais imponentes e poderosas muitas vezes caracterizadas como a abadia de Centula SaintRiquier pela presença de dois maciços de igual importância um oriental dedicado aos santos e o outro ocidental dedicado ao santo Salvador Carol Heitz Além de manifestar o desejo de associar os dois polos do culto cristão Cristo e os santos este dispositivo bem como a multiplicação das capelas e dos altares ilustra o desenvolvimento de uma liturgia cada vez mais elaborada que codifica cuidadosamente as procissões e os ciclos anuais de celebrações Por outro lado ele prepara as robustas fachadas flanqueadas por duas torres do período românico e contribui para a afirmação do plano cruciforme que então suplanta o plano basilical retangular com uma abside semicircular na extremidade herdada da arquitetura civil imperial e dominante até então Desde o século VIII o sucesso do culto dos santos obriga por vezes a ampliar as igrejas de peregrinação e a esboçar reformas que favoreçam o acesso dos fiéis às relíquias Quanto às imagens elas impregnamse de reminiscências clássicas especialmente o gosto pelos plissados delicados que conferem às figuras dos evangelistas com frequência representados nos manuscritos bíblicos com um aspecto de escribas antigos um dinamismo poderoso e uma forte energia corporal evocando a intensidade da inspiração divina figura 2 na p 37 Poderseia igualmente multiplicar os exemplos no domínio literário Assim Eginhardo redige a biografia de Carlos Magno tomando como modelo a Vida de Augusto de Suetônio O poeta Angilberto fazse chamar de Homero enquanto o círculo de letrados da corte imperial orgulhosos por possuírem obras clássicas como Cícero Salústio ou Terêncio é comparado à Academia ateniense por Alcuíno Horácio Enfim em todos os domínios em AixRavena e em torno de Carlos MagnoAugusto morrese de vontade de fazer reviver a Antiguidade pois ela é por excelência a época do esplendor do Império Tratase de multiplicar os sinais que são também reivindicações políticas da restauração imperial renovatio imperii e que fazem de Carlos Magno e de seu filho os dignos sucessores dos imperadores de Roma estando entendido que tal referência encontra sua legitimidade na unidade finalmente realizada do Império e da Igreja A experiência carolíngia foi de curta duração Ela mantémse e consolidase em certos aspectos durante o reinado de Luís o Piedoso 81440 mas com a sua morte a concepção patrimonial do poder conduz à partilha de Verdun em 843 que divide o Império entre seus três filhos Se este tratado é importante para a França ocidental esboço do futuro reino da França do qual fixa por vários séculos as fronteiras orientais no eixo RódanoSaône ele não chega a apaziguar as rivalidades no seio da dinastia carolíngia que apenas se ampliam A estas dificuldades somamse as desordens provocadas pelas incursões normandas e a pressão sobre a fronteira oriental bem como o rápido agravamento das fraquezas internas do Império cujas províncias se revelam cada vez mais incontroláveis O imperador não consegue assegurar a fidelidade dos condes e de outros aristocratas encarregados das unidades territoriais mesmo ao preço de concessões importantes como a promessa de não destituir o dignitário ou o compromisso de escolher seu filho após sua morte Nada funciona a tendência centrífuga é irreversível Desde meados do século IX os condes começam a despeito das interdições imperiais a erigir suas próprias torres ou castelos e também a lançar as bases de um poder autônomo Em 888 quando morre o imperador Carlos o Gordo ninguém se preocupa em lhe dar um sucessor O episódio tem seus admiradores incondicionais e seus mais céticos juízes que o percebem como um breve parêntese ou até mesmo como um acidente o que é inegável em termos de unificação política mas sem dúvida muito modesto se consideraramos outras aquisições mais duráveis Questionase por vezes se o Império Carolíngio marca o fim da Antiguidade ou o início da Idade Média Alguns postulam uma forte continuidade entre o Império Romano e aquele de Carlos Magno e chegam por vezes a afirmar que os carolíngios dispunham de um sistema fiscal idêntico ao do Baixo Império e que a Igreja era apenas um agente do governo imperial Tais visões que romantizam ao extremo o mundo carolíngio repousam sobre uma leitura de fontes que foi seriamente criticada e que parece dificilmente sustentável Parece mais razoável então perceber o episódio carolíngio como sendo ao mesmo tempo o resultado das transformações dos séculos da Alta Idade Média no mínimo porque a escolha de AixlaChapelle como capital imperial institucionalizó o peso adquirido pela Europa do Noroeste e uma primeira síntese que prepara o despontar dos séculos posteriores da Idade Média retomada da produção e das trocas uso do juramento de fidelidade como base da organização política e sobretudo afirmação da Igreja Através de sua aliança com o reino depois Império dos francos a Igreja consolida sua organização e lança as bases de sua posição dominante no seio da sociedade dízimo reforma dos cabidos das catedrais reforço dos grandes monastérios unificação litúrgica fixação e difusão dos textos de base e dos instrumentos gramaticais indispensáveis para a manutenção de uma unidade linguística erudita da cristandade afirmação da autoridade romana definição das regras do casamento e do parentesco O MEDITERRÂNEO DAS TRÊS CIVILIZAÇÕES Antes de terminar este capítulo gostaria de alargar o campo de visão tanto cronológica como geograficamente a fim de situar os amplos espaços no interior dos quais se produzem a formação e depois o desenvolvimento da cristandade ocidental É indispensável evocar ao menos sucintamente os poderosos vizinhos em meio aos quais esta conquistou seu lugar com grande dificuldade ilustração III na p 71 O declínio bizantino Do ponto de vista de Constantinopla não existe nenhum Império do Oriente e a fortiori nenhum Império Bizantino nome que lhe é dado pelos conquistadores turcos Nela o que estava em questão era simplesmente apenas o Império Romano o único possível o mesmo de Augusto Diocleciano e Constantino ou seja a Roma Eterna transferida para a nova capital fundada por este último Esta continuidade reivindicada esta afirmação de permanência a despeito de todas as transformações é uma característica decisiva deste Império que chamamos bizantino e que se pretende tão somente romano Isto é sem dúvida justificado para a época de Leão I 457527 e Justiniano 52765 pois o Império vive então um período de esplendor ao mesmo tempo que o Ocidente conhece um de seus momentos de maior confusão Sua riqueza é considerável e ele controla toda a bacia oriental do Mediterrâneo a Grécia a Anatólia a Síria a Palestina e sobretudo o rico Egito que envia para Constantinopla um imposto anual de 80 mil toneladas de grãos A reconquista de Justiniano que recupera temporariamente as costas do Adriático a Itália e o Norte da África apoiase sobre esse poderio e manifesta a intenção de manter o Ocidente sob sua tutela e portanto de governar o conjunto da cristandade Mas a epidemia de peste a partir de 542 dizima o Império e a reconquista fracassa Em pouco tempo sobram apenas alguns fragmentos dele o exarcado de Ravena posto avançado de Constantinopla no Ocidente criado em 584 e que cai nas mãos dos lombardos em 751 a laguna de Veneza onde surgirá uma cidaderefúgio antinatural mas que goza de vantagens conferidas por sua autonomia ante os poderes ocidentais e por um laço privilegiado com o Império do Oriente a Sicília conquistada pelos muçulmanos ao longo do século IX e a Calábria que os normandos arrancam de Constantinopla em 1071 com a tomada de Bari Desde o princípio do século VII os ventos mudam devido ao avanço dos persas que tomam Damasco e Jerusalém em 61314 e depois da ofensiva do Islã que leva à perda da Síria e do Egito Se acrescentarmos ao norte a pressão dos eslavos e logo depois dos búlgaros em face dos quais o imperador Nicéforo encontra a morte em 811 Bizâncio aparece como um Império sitiado reduzido doravante a uma parte dos Bálcãs e à Anatólia e cuja população é agora essencialmente grega É nesse contexto de graves ameaças exteriores que a crise iconoclasta divide longamente o Império 730843 Para os imperadores iconoclastas o culto às imagens é a causa das infelicidades do Império e o povo dos que foram batizados deve tal como os hebreus do Antigo Testamento reencontrar a benevolência de Deus expurgando suas tendências idólatras Mais tarde depois da vitória definitiva dos partidários das imagens que a tradição chama de Triunfo da Ortodoxia 843 assistese a uma recuperação que se prolonga até o início do século IX É o esplendor macedônio especialmente sob Basílio I 86786 Leão VI 886912 e Basílio II 9761025 O poder imperial poderoso e estável chega a recuperar certos territórios como Creta e Chipre e momentaneamente a Síria e a Palestina a Bulgária oriental e depois a ocidental A Igreja de Cons 16 J L Copiadora Copyright 2003 dos autores História na sala de aula conceitos práticas e propostas Todos os direitos desta edição reservados à Editora Contexto Editora Pinsky Ltda Preparação de originais Leonardo Seiji Miyahara Revisão Vera Quintanilha Capa Antonio Kehl Diagramação Carla Castilho Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil História na sala de aula conceitos práticas e propostas Leandro Karnal org 5ed São Paulo Contexto 2007 Bibliografia ISBN 8572442162 1 História Estudo e ensino 2 Sala de aula Direção 3 Prática de ensino I Karnal Leandro 030545 CDD907 Índice para catálogo sistemático 1 História Estudo e ensino 907 EDITORA CONTEXTO Diretor editorial Jaime Pinsky Rua Dr José Elias 520 Alto da Lapa 05083030 São Paulo SP PABX 11 3832 5838 contextoeditoracontextocombr wwweditoracontextocombr 2007 Proibida a reprodução total ou parcial Os infratores serão processados na forma da lei REPENSANDO A IDADE MÉDIA NO ENSINO DE HISTÓRIA JOSÉ RIVAIR MACEDO A historiadora Régine Pernoud contanos uma anedota exemplar a respeito da banalização da imagem da Idade Média no século XX Em certa ocasião acompanhava um sobrinho seu a um desses cursos em que os pais são admitidos para poderem depois obrigar os filhos a trabalhar quando ouviu a professora conduzir a aula de História da seguinte maneira A professora Como se chamavam os camponeses na Idade Média A classe em coro Chamavamse servos A professora E que é que eles faziam Que é que eles tinham A classe Tinham doenças A professora Que doenças Jérome Jérome grave A peste A professora E mais Emmanuel Emmanuel entusiasta A cólera A professora Vocês sabem muito bem a lição de História concluiu pacificamente Passemos à Geografia 1 No livro O mito da Idade Média a historiadora francesa Régine Pernoud procura desfazer uma série de malentendidos preconceitos juízos apressados e lugarescomuns relativos aos mil anos de história européia situados entre os séculos V e XV Entretanto em que pesem os 17 HISTÓRIA NA SALA DE AULA reiterados esclarecimentos de historiadores especializados na pesquisa sobre a Idade Média a respeito dos estereótipos que envolvem aquele período muitos preconceitos ainda persistem MIL ANOS DE TREVAS Sabese hoje que a visão retrospectiva da Europa medieval como uma idade das trevas foi elaborada por eruditos renascentistas e sobretudo por eruditos iluministas Sabese que essa visão esteve condicionada por uma perspectiva racionalista liberal e anticlerical num momento em que ser humanista significa colocar em questão os pressupostos teocêntricos defendidos pelos representantes da Igreja defender o avanço das luzes da razão e do progresso Ocorre que desde pelo menos o princípio do século XX as pesquisas acadêmicas sobre História Política Social Econômica e Cultural as pesquisas no campo da Filologia e da Literatura da Filosofia e das Artes têm demonstrado inúmeros traços originais da Europa durante a Idade Média e tais pesquisas contribuíram decisivamente para reabilitar aquele período aos olhos dos estudiosos Hoje nenhum erudito defenderia com seriedade aqueles velhos chavões Isso não quer dizer que os estereótipos relacionados com a Idade Média tenham desaparecido Estes explicam inclusive um certo fascínio da arte e da cultura de massas por essa obscura Idade Média na qual pululam magos e fadas duendes e elfos dragões cavaleiros errantes e aventuras fabulosas Explica o sucesso de obras romanescas envolvendo os mistérios e segredos da poderosa Igreja o outro lado da cavalaria com seu código de ética e com os nobres sentimentos dos cavaleiros andantes Explica o sucesso de jogos de videogame e de computador relativos às conquistas de territórios por príncipes guerreiros com a ação de forças sobrenaturais de caráter mágico Em todos esses casos a Idade Média constitui apenas um pretexto para a criação ficcional a imaginação e o divertimento Uma certa idéia de Idade Média subsiste entre nós por esse viés Mas qual o papel da escola e da História que aí é ensinada na difusão de conhecimentos relativos ao período Antes caberia perguntar qual Idade Média vem a ser divulgada nos bancos escolares e qual a pertinência de seu ensino num país como o Brasil que não participou diretamente de uma experiência histórica propriamente medieval Na perspectiva aberta pelos Parâmetros Curriculares Nacionais PCNs para a área de História pouco espaço está reservado ao tratamento cronológico dos eventos situados entre os séculos V e XV da História Européia Nada a estranhar uma vez que se sabe que de acordo com os PCNs os eventos e os sujeitos históricos encontramse incluídos em contextos variados subordinados a pressupostos pedagógicos e conceitos muito abrangentes destinados a promover a apreensão da realidade social com base nas múltiplas dimensões temporais na diversidade étnica e cultural Entretanto embora ausente na listagem de conteúdos do terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental porque a ênfase deixou de recair na noção de período histórico certas questões relativas à Idade Média podem perfeitamente vir a ser exploradas em sala de aula como apontaremos páginas adiante Não obstante os PCNs quando se observam os programas e planos contidos nos livros didáticos destinados ao estudo da História no ensino fundamental e médio temse que as linhas de rumo que norteiam a reprodução do conhecimento relativo à Idade Média européia estão ligadas à evolução das formas de governo isto é o governo temporal dos reinos e do império e o governo espiritualtemporal da Igreja Prendemse também à configuração dos grupos sociais com particular ênfase nas relações de dominação entre senhores feudais e camponeses ou então na formação e decadência do feudalismo e a germinação do capitalismo moderno No que respeita às formas de governo os livros apresentam a caracterização de tratados conflitos diplomáticos e batalhas ou seja os marcos temporais tradicionais da história política Quanto aos aspectos mais gerais quer dizer aqueles empregados na identificação de estruturas sociais e econômicas prepondera um certo mecanicismo e um certo maniqueísmo Diferentemente da posição vigente entre os especialistas em História Medieval para quem o feudalismo a sociedade feudal ou o sistema feudal não passam de conceitos operatórios de análise nos livros didáticos esses conceitos acabam conferindo uma lógica ao desenvolvimento histórico de toda a Europa como se houvesse um mesmo feudalismo ou uma mesma sociedade feudal nos quatro cantos do continente ficando a sugestão de que o ingresso na Era Moderna dependeu da superação do atraso feudal Nesse tipo de abordagem do feudalismo o rei aparece sempre fraco e os senhores feudais fortes as regras do jogo vindo a se alterar apenas no momento a partir do qual o rei aliase com a burguesia Nas relações de dominação entre senhores e camponeses por outro lado ambos os grupos parecem compactos e claramente definidos os senhores como arrogantes e opressores os camponeses às vezes confundidos pura e simplesmente com servos como oprimidos e passivos inertes e inertes Não se reivindica aqui necessariamente a renovação conceitual e temática resultante do avanço dos estudos medievais É evidente que nos últimos trinta anos muito se pesquisou a respeito das especificidades nacionais e regionais da Europa Medieval dos grupos sociais etários e de gênero na Idade Média muito se debateu a respeito dos sistemas de valores das formas culturais das representações e dos traços do imaginário medieval A Idade Média ensinada na escola todavia não é a Idade Média dos pesquisadores Nesse caso a função social da História tem estatuto diferente do conhecimento erudito e acadêmico continuando a estar ligado à constituição da memória da nação do Estado moderno e da supremacia ocidental no mundo2 Seu objetivo último é demonstrar as razões explícitas ou implícitas pelas quais os sucessores dos bárbaros que saquearam o Império Romano no século V ou seja a maior unidade política constituída até aquele momento viessem a se tornar mil anos depois os descobridores e conquistadores da África do Extremo Oriente e da América UMA HISTÓRIA VISTA DE CIMA E DO CENTRO Em meados do século XVI a representação plana da terra elaborada pelo humanista Gerhard Mercator 15121594 que inspirou o atual planisfério situava geograficamente a Europa no centro do mundo não obstante a forma esférica da Terra Algum tempo depois o erudito alemão Christophe Keller publicou um livro denominado História da Idade Média desde os tempos de Constantino o Grande até a tomada de Constantinopla pelos turcos inventando desse modo o rótulo e a delimitação cronológica do período e situando a Europa no centro da linha de tempo da humanidade que daí em diante passaria a se confundir com os desígnios europeus naquilo que alguns ensaístas denominaram ocidentalização do mundo3 Com efeito para os europeus a Idade Média corresponde às origens ao momento em que aquilo que um dia viria a ser chamado de Europa ganhou seus contornos políticos e culturais Numa visão em retrospecto ali estão os traços originais das nações contemporâneas sua diversidade étnicocultural seus problemas de delimitação de fronteiras suas instituições representativas cortes assembléias parlamentos Embora herdeiros das noções grecoromanas de política e de cidadania os Estados europeus não se confundiram com as cidadesestado nem com os impérios da Antigüidade mas organizaramse com base no modelo do reino cristão Para o medievalista Jacques Heers nunca existiu uma Idade Média francesa Aquilo que se convencionou chamar por esse nome teria sido a elaboração de eruditos dos séculos XVIXVIII dos criadores de programas escolares e autores de manuais didáticos dos séculos XIX e XX A linha de rumo básica a orientar a imagem da Idade Média teria se desenvolvido em função da existência de poderes centrais unitários e fortes Ao estudar aquele período recuado no tempo o que interessava em última instância era valorizar o modelo de governo contemporâneo ao estudo quer dizer a república e sua capacidade de oferecer paz e segurança social aos cidadãos Os méritos desse Estado rigidamente estruturado acabavam sendo ressaltados quando seu modelo de organização vinha a ser comparado com aquilo que parecia o seu contrário a anarquia feudal Nas próprias palavras do historiador a imagem do feudalismo sempre foi manchada pelo vício abominável da completa dissolução do poder e todo o sistema tem sido acusado e condenado devido à sua própria natureza fonte de anarquias e desgraças4 tratase pois de julgamentos a posteriori cuja função é mirandose no passado enaltecer o presente Além disso para os europeus a Idade Média equivale ao período de formação de uma identidade supranacional de fundo cristão momento em que se alicerçam costumes e práticas coletivas orientadas por uma fé que se quer única e una Em nome dessa fé os ocidentais fizeram as cruzadas e cortaram os oceanos Foi essa mesma fé que associada à razão entendase à razão aristotélica promoveu desde pelo menos o século XIII o nascimento do pensamento científico moderno articulando o saber e a técnica responsável por sua supremacia diante de diversas culturas por ocasião das grandes navegações Essa supremacia diante de outros povos e a pretensão de estar no centro do mundo teve consequências inclusive para a Europa Conforme um dos grandes medievalistas da atualidade Jacques Le Goff É notório pareceme através destas propostas onde o historiador se alia ao cidadão que o debate pela Europa não está entre a tradição e a modernidade Está no bom uso das tradições no recurso às heranças como força de inspiração como ponto de apoio para manter e renovar uma outra tradição europeia a da criatividade Um dos maus demônios da Europa tentoua com demasiada frequéncia a confundir a civilização européia com a civilização universal a querer um mundo à sua imagem Se a Europa quer ser um modelo para o mundo moderno deve respeitar o próximo abrirse aos outros Foi abrindose aos outros que desde os gregos antigos ela fez grandes coisas5 PARA UMA DESCOLONIZAÇÃO DO ENSINO DA IDADE MÉDIA Marc Ferro nos relata os vínculos profundos existentes entre a História transmitida nas escolas e a formação ou deformação da consciência social e política em áreas coloniais Entre outros exemplos ca culturais tão profícuas cujo melhor exemplo no campo intelectual é a conhecida Escola de Tradutores de Toledo em boa parte responsável pela difusão do conhecimento grego no Ocidente por meio de obras árabes convertidas ao latim por tradutores judeus Para o professor de História e seus alunos o panorama histórico da Europa pode vir a ser um excelente laboratório de estudo das razões e circunstâncias do desenvolvimento técnico e cultural Com efeito não deixa de ser interessante propor reflexões a respeito daquele período recuado de nós por pelo menos meio milênio quando a parte européia que hoje constitui um centro econômico mundial viase às voltas com problemas perfeitamente atuais vividos pelos países pobres como fome e crises de abastecimento periódicos baixo nível tecnológico e surtos recorrentes de doenças infectocontagiosas Para nós será sempre importante refletir sobre as alternativas encontradas para problemas como a desigualdade social entre ricos e pobres e o problema do abandono infantil cujas raízes históricas ultrapassam os limites cronológicos da própria Idade Média Dessa perspectiva aquele tempo poderá vir a constituir um importante referencial de estudo para compreendermos por aproximação ou por distanciamento como nós próprios lidamos com nossos dilemas sociais8 A IMAGEM E A PALAVRA NO ENSINO DA IDADE MÉDIA Outra maneira de escapar da camisadeforça dos fatos exclusivamente políticos é refletir a respeito da atualidade do legado cultural da Idade Média Aparentemente distante se observada do ponto de vista político social e econômico ela nos parece muito mais próxima quando levamos em conta os comportamentos e atitudes mentais coletivos Aos estudantes de ensino fundamental e médio em geral adolescentes talvez seria interessante e motivador saber que algumas concepções afetivas que lhes são caras como o amor e a amizade têm também uma historicidade e que suas raízes podem ser buscadas no medievo ou que certos padrões de conduta valorizados por eles como a honra e a fidelidade guardam algo do mundo feudal em que apareceram9 A comunicação eletrônica e a informática têm sido as responsáveis por importante divulgação da Idade Média e dos estudos medievais A edição eletrônica de textos tem colocado à disposição dos pesquisadores uma quantidade impressionante de fontes primárias relativas ao período histórico sobretudo aquelas fontes produzidas pelos membros da Igreja Na internet estão disponíveis páginas de instituições que se dedicam a preservar a memória medieval entre elas a Ordem de Cavalaria do Sagrado Portugal httpwwwocsppt que organiza encontros periódicos de recriação histórica em Portugal inclusive promovendo torneios e espetáculos Estão também disponíveis na rede informações a respeito de pesquisadores e instituições ligadas ao estudo do medievo como a Associação Brasileira de Estudos Medievais fundada em 1995 e responsável pela promoção de publicações e eventos acadêmicos periódicos ao estudo e à pesquisa de História Filosofia Literatura e Arte da Idade Média httpwwwabremhecombr Devese ainda mencionar a existência de revistas eletrônicas dedicadas especialmente ao período histórico como Brathair Revista Eletrônica de Estudos Celtas e Germânicos httpwwwbrathaircjbnet e a Revista Mirabilia na qual constam publicações de artigos científicos sobre a Antigüidade e a Idade Média httprevistamirabiliacom Mas para o contato com o universo medieval em sala de aula convém repensar a própria linguagem Nada mais estranho do que valerse exclusivamente do escrito para se ter acesso ao modo de vida de uma época em que a maioria das pessoas era analfabeta Por isso houve quem defendesse tratarse a Idade Média de uma civilização dos gestos ou de uma civilização da palavra e da voz Um bom caminho para se compreender essas proposições é segundo pensamos explorar no ensino outras possibilidades de comunicação como a imagem e a oralidade Nem sempre o objetivo da História é buscar estabelecer semelhanças e identidades com o presente O confronto com as diferenças e a diversidade dos modos de vida dos seres humanos ao longo de outros períodos da História em outras civilizações ou regiões culturais pode nos revelar nossa própria originalidade e nos capacitar melhor a ver o lugar que ocupamos na história da humanidade Confrontados com as diferenças e com a diversidade dos modos de vida das pessoas de outros tempos e lugares teríamos como discernir melhor nossa própria originalidade e perceber melhor nossa própria posição no processo histórico universal Como nos ensina o medievalista russo Aron Gurevich caso parecenos positiva a projeção de filmes cuja trama sugere o confronto entre o passado e o presente isto é quando personagens de diferentes épocas entram em contato como vem a ocorrer com o bem elaborado Navigator uma odisseia no tempo dirigido por Vincent Ward Distribuição Look Vídeo ou com a excelente comédia Os visitantes eles não nasceram ontem do diretor francês JeanMarie Poirée Distribuição Abril Vídeo No caso de trabalho didático com o filme Os visitantes o professor poderá com bastante proveito estimular a discussão a respeito das mudanças e continuidades em diferentes temporalidades uma vez que a película tem em seu enredo a história de dois indivíduos do século XII um nobre e um servo transportados involuntariamente para o século XX Tornase possível pois confrontar certos problemas do século XII desigualdade social no feudalismo com problemas contemporâneos desequilíbrios sociais desequilíbrio ambiental desequilíbrio urbano verificar as possíveis reações de pessoas de diferentes épocas diante de situações novas e inusitadas observar os condicionamentos históricos no comportamento das pessoas e grupos O universo medieval pode ser retratado contudo por meio da iconografia quer dizer das imagens de pinturas e esculturas e da arquitetura Na Idade Média ninguém duvidava que além de serem belas as obras de arte tinham também uma função didática Na opinião dos letrados aquilo que as pessoas simples não pudessem entender por meio da escrita deveria ser aprendido com as figuras Para Honório de Autun respeitável pensador do século XII o objetivo da pintura era triplo servia antes de tudo para embelezar a casa de Deus as igrejas mas também para rememorar a vida dos santos e por fim para o deleite dos incultos porque a pintura em suas palavras era a literatura dos laicos As imagens desse modo revestiamse de caráter educativo pedagógico A linguagem adotada procurava colocar em evidência símbolos e signos dotados de mensagens explícitas ou implícitas traduzindo o sistema ideológico do qual a Igreja se fazia a guardiã Trabalhar hoje com as imagens produzidas na Idade Média significa entrar em contato com um importante código de comunicação visual Assim sendo uma atividade proveitosa seria a coleta e seleção de imagens significativas do cotidiano medieval por meio da reprodução de miniaturas e iluminuras vitrais afrescos e tímpanos de igrejas alguns facilmente encontrados em livros ou em materiais de multimídia Ao serem priorizadas no ensino elas deixam de ser vistas apenas como suporte da informação escrita passando a ser um testemunho direto do mundo medieval O caminho inverso também pode vir a ser promissor quer dizer o estímulo para que os estudantes se aproximem do universo medieval praticando a comunicação por imagens expressando suas idéias sentimentos e valores relativos ao medievo valendose igualmente do desenho e da pintura Civilização dos gestos e da imagem a Idade Média foi também uma civilização da palavra e da voz Diferente do pensamento moderno que valoriza a inovação e a mudança e que concebe o velho como algo ultrapassado o pensamento medieval valoriza a constância e a permanência vendo o passado como algo a ser imitado Por isso os medievais buscavam sempre estabelecer conexões entre o velho e o novo entre o que passou e o que estava por vir Na bela expressão de Bernardo de Chartres eminente professor do princípio do século XII Somos anões nos ombros de gigantes Quer dizer que embora menos importantes do que os antigos os contemporâneos podiam ver mais longe devido ao conhecimento acumulado que receberam Entre os letrados o texto era invocado como um meio de se estabelecer o conhecimento e a verdade mas para os integrantes das camadas populares era a palavra o principal meio de comunicação Por ela é que se garantiam pactos e se estabeleciam compromissos que se expressavam os modos de existência que se preservava a memória coletiva Herdamos da Idade Média nosso gosto por ouvir boas histórias boas narrativas boas canções Aquele foi o tempo da oralidade da palavra transmitida de boca em boca dos costumes transmitidos e preservados de geração em geração Foi também o tempo da vocalidade isto é da valorização do emprego da voz e sua sonoridade A vocalidade estava no uso da voz e dos gestos por parte dos jograis recitadores de poesia cantores instrumentistas dos artistas das cortes principescas e das ruas atores de comédias contadores de estórias Parte significativa daquilo que se convencionou chamar de literatura medieval tem sua raiz na oralidade quer se trate de canções de gesta ou das cantigas dos trovadores o próprio nome diz cantigas canções ou dos contos narrativos de conteúdo moral Há alguns repertórios de contos fábulas e romances medievais traduzidos para o português moderno Que melhor maneira de aproximarse do universo mental de uma época do que ter acesso ao que se contava e ao que se ouvia Uma boa proposta de estudo das formas de sensibilidade e do imaginário medieval consiste na leitura e posterior dramatização dos contos narrativos Algumas coletâneas deles como os Contos de Cantuária escritos no século XIV por Geoffrey Chaucer apresentamnos situações romanescas envolvendo os diferentes grupos sociais do período nobres cavaleiros burgueses camponeses Há ainda os contos de aventura e amor escritos por Maria de França no século XII ou os contos cômicos denominados fabliaux que eram contados nas feiras estradas castelos portas de igrejas Tratase de testemunhos importantes das representações coletivas da Idade Média Por seu intermédio o leitor certamente reconhecerá situações que lhe permitirá refletir um pouco mais acerca do modo de agir e de pensar medieval Com propósito didático o professor poderá selecionar uma dessas histórias e oferecêla aos alunos Na leitura e apresentação deverá instigálos a imaginar as cenas e personagens estimular questionamentos destacar detalhes orientálos para que formulem idéias gerais a respeito da história e do contexto para que confrontem os dados narrados com as características ou particularidades do período a que se refere A seguir os alunos poderão com proveito apropriarse do conteúdo e do enredo da história e reformular sua linguagem teatralizandoa ou transformandoa em imagem visual Vejamos por exemplo a fábula intitulada o Livro das bestas escrito no final do século XIII pelo filósofo catalão Raimundo Lúlio 13121316 Tratase de uma grande alegoria da sociedade medieval através de uma história do tempo em que os bichos falavam Na corte do leão estão a raposa o urso o leopardo a serpente o lobo entre outros animais Eles representam os diferentes grupos do reino e suas ações alianças e confrontos variam de acordo com os interesses e as posições que ocupam em relação ao rei Assim a fábula animal pode vir a ser uma boa entrada para chegarse aos problemas da sociedade medieval O recurso da alegoria como um meio de estabelecer a crítica social continua a ser empregado na modernidade como se pode ver na fábula política escrita por Georges Orwell chamada A revolução dos bichos Para encerrar cumpre reconhecer o alcance das proposições anteriores Antes de serem fórmulas prontas ou o fruto de uma reflexão teórica aprofundada sobre o assunto são apenas considerações feitas à luz da experiência pessoal em sala de aula Esperase que possam contribuir de algum modo para o repensar do ensino desse período tão pouco conhecido entre nós mas que muito tem a nos oferecer e a nos ensinar 11 Se desejar conhecer outros endereços eletrônicos além dos motores de busca da própria internet vale a pena consultar publicações especializadas de pesquisa como o livro de Ivan Esperança Rocha Mil sites de História Antiga e Arqueologia São Paulo Arte e Ciência 1997 12 Aron Gurevich As categorias da cultura medieval Lisboa Editorial Camkinho 1990 p 15 13 Umberto Eco Arte e beleza na estética medieval Porto Alegre Ed Globo 1989 p 29 14 Paul Zumthor A letra e a voz a literatura medieval São Paulo Companhia das Letras 1993 15 Eis alguns textos medievais traduzidos Lais de Maria de França São Paulo Martins Fontes 1993 Pequenas fábulas medievais fabliaux dos séculos XIII e XIV Trad Rosemary C Abílio São Paulo Martins Fontes 1995 Poema do Cid Trad Maria do Socorro Almeida Rio de Janeiro Livraria Francisco Alves 1988 Alcassino e Nicoleta Trad Marcela Mortara Rio de Janeiro Ed Francisco Alves 1989 Chrétien de Troyes Romances da Távola Redonda Trad Rosemary C Abílio São Paulo Martins Fontes 1991 Geoffrey Chaucer Os contos de Cantudria São Paulo T A Queiroz Editor 1991 16 Raimundo Lúlio Livro das bestas Trad Cláudio Giordano e Esteve Jaulent São Paulo Edições LoyolaEditora Giordano 1990 Sugestões de leitura 1 Dicionários e documentos LOYN H R Dicionário da Idade Média Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1989 LE GOFF Jacques SCHMITT JeanClaude Orgs Dicionário temático do Ocidente Medieval São Paulo EDUSCImprensa Oficial do Estado 2002 MCEVEDY Colin Atlas de História Medieval São Paulo Edusp 1983 PEDREROSÁNCHEZ Maria Guadalupe Org História da Idade Média textos e testemunhas São Paulo Ed da Unesp 2000 ESPINOSA Fernanda Antologia de textos históricos medievais Lisboa Livraria Sá da Costa 1972 MONGELLI Lenia Márcia de Medeiros Org Fontes primárias da Idade Média São Paulo Ed Ibis 1999 2 v 2 Obras gerais FRANCO JR Hilário A Idade Média nascimento 2ª ed rev e aum São Paulo Brasiliense 2000 BATISTA NETO Jônatas História da Baixa Idade Média São Paulo Ed Ática 1992 RUCUQUI Adeline História Medieval da Península Ibérica Lisboa Editorial Estampa 1995 LE GOFF Jacques Org O homem medieval Lisboa Editorial Estampa 1989 DUBY Georges A Europa na Idade Média São Paulo Martins Fontes 1989 3 Livros paradidáticos MACEDO José Rivair Movimentos populares na Idade Média 13ª reimp São Paulo Contexto 1999 MACEDO José Rivair Viver nas cidades medievais São Paulo Editora Moderna 1999 Coleção Desafios VALLE RIBEIRO Daniel A cristandade do Ocidente Medieval São Paulo Atual Editora 1998 Discutindo a História ANDRADE FILHO Ruy Os muçulmanos na Península Ibérica São Paulo Ed Contexto 1989 Coleção Repensando a História FRANCO JR Hilário Feudalismo uma sociedade religiosa guerreira e camponesa São Paulo Editora Moderna 1999 Coleção Polêmica FAUSTINO Evandro Mentalidade medieval São Paulo Editora Moderna 2001 Coleção Desafios REZENDE Cyro de Barros Guerra e guerreiros na Idade Média São Paulo Ed Contexto 1989 Coleção Repensando a História 4 Material audiovisual REVISTA CARAS Enciclopédia multimídia de arte universal Volume 4 Arte bárbara bizantina e islâmica volume 5 Românico e gótico 2 CDsROM Secretos quero descobrir música ibérica da Idade Média e do Renascimento Cancioneiro Sepharadita judaicoespanhol Trovadores medievais Conjunto de Câmara de Porto Alegre Porto Alegre Prefeitura de Porto AlegreFUMPROARTE 1996 Tempo de descobertas Conjunto de Câmara de Porto Alegre Porto Alegre Prefeitura de Porto AlegreFUMPROARTE 1999 História da humanidade 5 os tempos medievais Distribuidora SBJ 1994 História geral da arte Gênios da pintura Bosch e Brueghel IMASOLEdiciones del Prado 1995 Repensando a Idade Média no ensino de História José Rivair Macedo O conhecimento sobre o período histórico situado entre os séculos V e XV é permeado por ideias preconceituosas e ficcionais entretanto diversos historiadores especializados na pesquisa sobre a Idade Média buscam desmistificar estes estereótipos que ainda estão relacionados com esta época da história europeia Neste contexto a concepção de idade das trevas foi criada por eruditos e eruditos renascentistas e eruditos iluministas que possuíam a visão racionalista liberal e anticlerical todavia esta ideia desenvolvida não condiz com a verdade mais ela ainda é repassada para a sociedade visando acusar o passado e seu modelo de organização para enaltecer esse Estado e o presente Todavia a Idade Média é a origem das características políticas e culturais da Europa na qual a identidade supranacional guiada pela fé única e una baseada no cristianismo foi gerada na Idade Média e esta fé fomentou o pensamento científico moderno a busca pela supremacia da cultura europeia sobre diversas culturas a criação de uma consciência europeia e a busca pelo centro do mundo Neste contexto de valorização do presente e ocultação de aspectos relevantes do passado salientase que o ensino da história não é neutro e a forma com que a Idade Média é ensinada nas escolas está relacionada à conveniência de países europeus Ou seja o ensino da história é colonizado e busca satisfazer interesses de alguns países França Inglaterra Alemanha e Itália Desta forma os Parâmetros Curriculares Nacionais não destina muito espaço para os eventos situados entre os séculos V e XV da História Europeia e esta lacuna busca repassar aos estudantes as formas de governo história política as configurações dos grupos sociais com destaque nas relações de dominação entre os senhores feudais e os camponeses e a formação e decadência do feudalismo e o surgimento do capitalismo moderno sugestionando que a Era Moderna é resultado da superação do atraso feudal Sendo assim o estudo social da época é composto da estigmatização das figuras sociais que compunham aquela sociedade na qual o rei era caracterizado como fraco os senhores feudais como fortes arrogantes e opressores e os camponeses como oprimidos e passivos Sendo assim a escola busca preservar a memória da nação do Estado Moderno e da supremacia ocidental do mundo enquanto os pesquisadores possuem o objetivo de debater os sistemas de valores das formas culturais das representações e dos traços do imaginário medieval No entanto a satisfação de interesses de alguns países europeus prejudica a disseminação de conhecimentos relevantes como o legado cultural da Idade Média e aspectos históricos da Península Ibérica que possui relevância para a sociedade brasileira uma vez que a cultura brasileira pertence ao conjunto cultural iberoamericano e o seu ensino revelam aspectos importantes que possuem relação com aspectos presentes do Brasil como a formação de identidades coletivas na América Latina Ademais dilemas atuais vividos por países pobres foram vividos por países ricos durante a Idade Média e o seu estudo propiciaria um referencial de estudos para enfrentar dilemas atuais se estes fossem explanados de forma contundente nas escolas Entretanto a comunicação eletrônica e a Informática estão sendo fatores preponderantes para ajustar estas lacunas pois são meios de divulgação da Idade Média e dos estudos medievais Outro problema do ensino da História sobre este período é a forma com que esta época é exposta aos alunos Uma vez que os professores explicam este período histórico por meio da escrita exclusivamente todavia a sociedade era composta por uma maioria analfabeta logo para alcançar uma visão holística sobre o assunto é necessário o estudo complementado pela oralidade e pelas imagens Contudo é preciso ser cauteloso com a utilização de filmes para explanar uma história pois a cinematografia possui mais relevância no momento em que foi produzido que o momento que se deseja retratar Sendo assim os filmes não devem ser utilizados como forma de ensino e sim como meio de propiciar a reflexão dos estudantes sobre mudanças e permanências de ações nas diferentes épocas Sendo assim um meio eficaz de demonstrar diferentes contextos é a iconografia ou seja imagens de pinturas esculturas e arquitetura do período analisado Desta forma o contato com as imagens possibilita uma didática eficaz que proporciona o contato com mensagens implícitas e explicitas formulas na época Logo os profissionais da educação devem buscar miniaturas iluminuras vitrais afrescos e tímpanos de igrejas para apresentarem em suas aulas pois a oralidade é uma característica significativa da Idade Média e esta oralidade originou a chamada literatura medieval que é composto por pontos narrativos de conteúdo moral contos fábulas romances medievais entre outros Este legado possui relevância atual pois ele é formado por relatos de representações coletivas que possibilitam a reflexão sobre o modo de agir e pensar medieval A partir dos argumentos supracitados tornase evidente que é necessário repensar as atuais fórmulas de ensino e valorizar o conhecimento que pode ser agregado nas matrizes curriculares buscando aprofundar os estudos da Idade Média que atualmente é desvalorizado mas possui muito para ensinar A CIVILIZAÇÃO FEUDAL Ao narrar a instalação dos povos germânicos os cronistas agregaram mais relevância para as ocupações violentas fazendo com que a narrativa não represente totalmente com a verdade pois ela foi realizada de forma lenta progressiva e muitas vezes pacíficas na qual o Império absolveu e aproveitouse dessa imigração pois agregava ao império talentos artesanais e força física Sendo assim as fronteiras não eram lugares de constantes combates e sim um local em que romanos e não romanos realizavam encontros e trocas habitualmente Sendo assim a instalação dos povos germânicos é composta por momentos marcados pela violência e momentos marcados pela cordialidade Todavia a instalação efetiva dos povos germânicos e a queda do governo Romano Ocidental e o início da Alta Idade Média não foram eventos históricos que marcaram o fim da instabilidade de povoamento naquela região Pois aquelas regiões se tornaram desarticuladas com o fracasso da estrutura fiscal de Roma e mesmo havendo esforços na criação de sistemas legislativos por parte dos reinos germânicos as ações não obtinham êxito em virtude da não distinção entre vida pública e vida privada dos soberanos gerando a patrimonialização do poder e acentuando o processo de regionalização impossibilitando a criação de Estados Durante a Alta Idade Média a ruralização foi fomentada e o desenvolvimento comercial e urbano passou por uma situação de declínio em virtude do aumento da insegurança nas cidades que motivaram migração massiva para as vilas rurais fortificadas Outros fatores relevantes foram a desvalorização monetária e a diminuição na circulação econômica de produtos de subsistência Todavia a mesma época é marcada pelas lentas inovações técnicas e a gradativa expansão das áreas cultivadas demonstrando que apesar dos problemas enfrentados ele possuiu desenvolvimento gradual Um dilema enfrentado durante o estudo do período analisado é sobre a manutenção ou erradicação da escravidão uma vez que não há um consenso historiográfico Todavia o autor Baschet defende que houve o fim da escravidão produtiva e agrícola e a manutenção da escravidão domestica Outra divergência é a cronologia de extinção da escravidão uma vez que as corrente marxistas que apontando que o fim da escravidão é consequência da Queda do Império Ocidental Enquanto muitas fontes atestam que na Alta Idade Media mantinha a escravidão com características similares as da Antiguidade Por sua vez o autor do texto analisado defende que a extinção completa do sistema escravagista caracterizase como um fenômeno complexo em que não ocorreu de forma abrupta e sim de forma gradual e com interferência de diversos setores da sociedade Sendo assim o âmbito religioso é marcado pelo impacto do cristianismo que modificava algumas percepções que permeavam aquela sociedade mas mantinha outras ideias Ou seja esta doutrina religiosa legitimava a manutenção da escravidão mas modificava a ideia que se tinha sobre os escravos na vida social possibilitando o direito ao batismo e a participação na ritualística cristã Por outro lado os militares também possuem influência nas mudanças que ocorreram em relação a escravidão uma vez que o fim das guerras romanas de conquista gerou o aumento no preço dos escravos visto que estas guerras eram fontes de abastecimento dessa mão de obra Fazendo com que esse comércio fosse restabelecido pelas guerras nos reinos germânicos do século V todavia essas guerras do século V modificaram a origem dos escravos que deixaram de ser estrangeiros e passaram a ser habitantes das circunvizinhanças fazendo com que as semelhanças culturais proporcionassem uma socialização mais facilitada e uma redução da exclusão Por sua vez o declínio econômico decorrente da decadência do Império inviabilizava a aquisição e manutenção de escravos uma vez que o Estado passa a não ter condições de conferir legitimidade ideológica e assegurar uma força repressiva Outro ponto abordado pelo texto analisado é a conversão dos reis germânicos na qual a Igreja enquanto instituição sociopolítica passou por um processo de expansão e desenvolvimento em que as populações vão paulatinamente se convertendo e aderindo ao novo credo Este processo fortaleceu o poder da Igreja e ela conseguiu se manter mesmo quando a instituição estatal enfraqueceu Sendo assim os bispos passam a reunir em si a autoridade religiosa e política gerando o fenômeno nomeado pelo autor como aristocratização da igreja Este fortalecimento da Igreja gerou a marginalização das religiões pagãs e sua demonização Ademais o poder da Igreja a tornou uma figura influente e necessária para a realização de transformações sociais propiciando a criação de alianças com o Estado como a aliança entre a Igreja e o poderoso Império Franco gerando a emersão do sistema do papado e as trocas equilibradas entre Igreja e Estado favorecendo o crescimento das duas instituições Desta forma o novo sistema imperial gerou inovações e desenvolvimentos culturais como a fixação e a cunhagem da libra da prata avanços nas técnicas intelectuais aumento na produção de livros entre outras Sendo assim o texto analisado busca desconstruir e problematizar a imagem consolidada no imaginário social acerca do medievo e demonstrar que esta época não é símbolo de absoluto declínio e falta de evolução