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O discurso do combate às drogas e suas ideologias The discourse of the fight against drugs and its ideologies Richard Bucher Sandra RM Oliveira BUCHER R OLIVEIRA SRM O discurso do combate às drogas e suas ideologias Rev Saúde Pública 28 13745 1994 À luz de considerações científicas sobre o abuso de drogas discutese a ideologia dos textos sobre drogas que seguem uma orientação moralista e repressora a despeito das condições sóciohistóricas do consumo Colocamse em foco os sentidos nãoliterais para situar tais discursos no contexto da sua produção e para detectar neles formas de manutenção de poder presentes nas relações sociais Utilizase a teoria da análise do discurso como a metodologia apropriada para se desvendar os indicadores da ideologia que impõe aos textos sobre drogas uma determinada modalidade Os resultados revelam um discurso com propósitos claramente persuasivos direcionando e manipulando modos de ser e de ver na sociedade deixandose interpretar como parte interessada em um pesado sistema de conformismo social Concluise que a questão das drogas não é tratada em si mas enquanto mito construído usado para combater série de desvios da ordem social vigente Descritores Abuso de substâncias prevenção Linguagem Autoritarismo Considerações sobre o discurso do combate às drogas Entre as diversas abordagens da questão das drogas nas sociedades modernas destaca se aquela que enfatiza o combate às drogas apresentandoo como a única maneira capaz de enfrentar e erradicar o grave flagelo De ex pressão rigorosamente condenatória caracteri zase pela veemência de uma argumentação mais emotiva e alarmista do que serena e obje tiva mais sensacionalista do que científica mais moralista do que isenta de juízos valorativos Desta forma incita a uma cruzada antidrogas cuja beligerância encobre série de fatores que de certo contribuem decisivamente para a ex pansão do fenômeno Portanto ao invés de analisar o consumo de drogas em seus múltiplos determinantes para chegar a propostas preventivas pertinentes e prometedoras de eficácia tal abordagem limita se a preconizar uma repressão implacável res tringindose desta forma às drogas ilícitas Ora Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília Brasília DF Brasil Bolsista junto ao Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília Brasília DF Brasil SeparataReprints R Bucher PCLUnB 70910900 Brasília DF Brasil em muitos países entre os quais o Brasil são precisamente as substâncias lícitas as mais con sumidas e as mais fortes geradoras de abusos e dependências Tratase aí de um fato epidemio lógico inconteste a ser levado a sério diante da distorção do fenômeno introduzida pela prega ção tantas vezes piegas do combate às drogas Oporse a esta visão reducionista não signi fica no entanto entregarse à apologia do con sumo de substâncias psicoativas mas tão so mente defender uma análise objetiva e contex tualizada da situação das drogas em uma deter minada sociedade Não se trata pois da defesa de uma posição extremista de liberação de todas as drogas para um consumo indiscrimina do mas do respeito por uma experiência huma na milenar a ser examinada numa linha históri coantropológica para que se torne possível apreender suas significações modernas Constatase de fato que a cegueira da po sição repressiva radical traz mais estragos do que benefícios por fazer prevalecer uma visão unidimensional inapropriada para o trato do fenômeno em toda sua complexidade As nume rosas implicações ideológicas daquela visão não encontram o necessário contrapeso através de análises sociais profundas pertinentes e abran gentes Carlini Cotrim Pinski3 1989 Abordar a questão das drogas no enfoque combativo citado significa ainda não tratála como realidade a ser investigada mas sim trans formála em mito fabricado para cumprir deter minadas funções sociais Espalhada no bojo da cruzada antidrogas lhe é imputada nitida mente a função de bode expiatório fazendoa aparecer como responsável por grande parte dos revezes sociais produzse então uma misti ficação erigindose uma cortina de fumaça ao redor do pretendido flagelo o que impede seu dimensionamento correto e averigüável im prescindível para se ultrapassar o nível de pre conceitos prejulgamentos e visões preconcebi das ou ainda aquele de interpretações unidire cionais ou tendenciosas Bucher2 1992 Qualquer discurso que enfoca questões so ciais pode conforme os seus efeitos de sentido transformar ou manipular as representações co letivas com a finalidade de manter certas estru turas de poder da mesma forma pode modifi cálas visando à superação dessas mesmas es truturas Assim adquirem identidade particu lar aparecendo como formações que se defi nem pelos sentidos ideológicos que reiteram e que vão direcionar a sua função enunciativa Desencadeadas a partir da interação de opiniões diferentes sobre questões de interesse comum tais formações apresentam regularidades em seu funcionamento que permitem interpretálas como parte de uma matriz ideológica específi ca constituindo o que se denomina em Análise do Discurso de formação discursiva Aplicando esta concepção à discussão so bre drogas podese formular a hipótese segun do a qual determinados textos ainda que pro duzidos em setores diferentes constituem uma mesma formação discursiva promovendo a cir culação de uma série de sentidos específicos Estes no seu conjunto incorporam toda uma ideologia antidrogas plataforma para se divul garem e implantarem medidas de controle da queles fenômenos de consumo considerados no referido prisma ideológico como socialmen te indesejáveis e portanto exigindo repressão Oliveira10 1992 A partir dessas considerações propõese um recorte no extenso campo de produção sobre drogas submetendo à análise a forma ção discursiva do combate buscando com preender os seus processos de significação e a forma como influem na construção do senso comum do brasileiro a respeito da temática em pauta incluindo aí as repercussões no cam po da saúde pública A aproximação dáse através do conceito de ideologia enfatizada enquanto categoria ex plicativa do funcionamento dos discursos so ciais Em face deste termo controverso e plurí voco lançouse mão do discernimento de pola ridades positiva e negativa para incluir seus inúmeros significados em dois registros o des critivo e o crítico O primeiro enfoque referese a sistemas de pensamentos crenças valores ou cosmovisão por sua vez o sentido crítico aponta as idéias e atitudes postas ao serviço da sustentação das relações assimétricas de poder da injustiça social e da distribuição desigual de direitos e rendas Exploramse assim as relações entre ideo logia e linguagem ultrapassando a noção de linguagem como sistema de comunicação para correlacionála com os fenômenos conflitantes da estruturação social da qual ela própria faz parte Dessa maneira concebida a linguagem passa a ser definida como discurso ou seja como ato social ou ação que visa a produzir efeitos Fiorin5 1990 Se e verdade que nenhum discurso escapa do envolvimento com a dimensão ideológica discernir os dois enfoques citados propicia uma avaliação contingente dos efeitos de sentido dominantes permitindo compreender o alcan ce de determinado fenômeno social no caso o consumo de drogas Assim uma contextualiza ção desse consumo como fenômeno histórico e antropologicamente situado permite apreen der descritivamente seus sistemas de valores crenças e representações populares enquanto que uma análise crítica das produções sobre drogas proferidas por certas instâncias de po der ou de autoridade permite detectar tendên cias esforços e manipulações para proteger determinadas relações econômicas e políticas vigentes É com este intuito de avaliação crítica que textos representativos do discurso repressivo sobre drogas foram analisados no presente tra balho Ao visar as coerções institucionais que marcam tal produção discursiva levantaramse questões vinculadas ao poder institucional às práticas repressivas punitivas e assistenciais em saúde mental aos jogos de interesses políti cos e econômicos no comércio de drogas lícitas além das ilícitas ao papel do profissional nas áreas de saúde educação ação social justiça e pesquisa científica Dentre as numerosas contradições possí veis de se apontar na formação discursiva da cruzada antidroga destacaramse certos pressupostos inerentes à sua vinculação com as estruturas sociais e de poder que as engen dram e que asseguram sua divulgação pres supostos esses detentoras de configurações ideológicas cujos contornos mais precisos tentouse apreender Método Ideologia e análise do discurso Na investigação proposta optouse pela Análise do Discurso como instrumento adequa do para examinar a ligação entre a linguagem apresentada e a ideologia subjacente Sua meto dologia permite explicitar os processos comu nicativos construídos nos textos sobre drogas e detectar intenções secretas ou interesses escu sos em veicular idéias condenatórias radicais por razões que ultrapassam os efeitos nefastos do consumo de drogas em si A Teoria do Discurso apóiase no conceito de linguagem como sendo a materialidade apropriada à ideologia Sistematizada inicial mente por Pecheux12 1969 a Análise do Discurso somada à contribuição de autores como Bakhtin1 1970 Foucault78 19691971 Ducrot4 1972 e Fairclough6 1989 vem sendo amplamente utilizada para trabalhar os sentidos não literais dos enuncia dos com base no reconhecimento da dimen são sóciohistórica da linguagem Na sua origem a Teoria da Análise do Discurso tal como idealizada por Pecheux12 aparece ligada à dimensão políticoideológica suas premissas básicas apoiamse na concep ção da linguagem ter um modo de constitui ção profundamente histórico não sendo pos sível dissociálo do conjunto das práticas hu manas Por esta razão saber quem fala para quem fala em que situação de que lugar da sociedade com que intento são elementos de suma importância no processo comunicativo Na constituição dos significados manifes tamse as coerções ideológicas que incidem so bre a linguagem Nas chamadas ordens do dis curso Foucault8 1971 expressamse determi nadas condições sóciohistóricas que impreg nam as formações discursivas enquanto con junto de regras limitadas no tempo e no espaço e que definem as condições de exercício da função enunciativa Os discursos que reiteram processos socialmente cristalizados podem ser apreendidos como partes de uma mesma ma triz determinando regularidades definidas pela relação que mantém com a ideologia Tais idéias chaves servem para a compreen são da ideologia e das injunções de poder no discurso repressivo sobre drogas Repertorian do esse discurso no espaço específico onde se articulam linguagem e ideologia é possível res saltar os processos de significação que regem o imaginário social sobre drogas no Brasil Para tanto série de características lingüísticas relati vas ao vocabulário e à gramática são considera das marcas para o entendimento analítico de tais processos O presente trabalho no entanto não se limita à análise da superfície lingüística mas examina também as propriedades discursi vas que se situam além das marcas formais Examinandose a relação do texto com o discurso e com o contexto atingemse três ní veis de análise conforme três níveis de organi zação a situação social do momento imediato a instituição social enquanto matriz do discur so o nível mais amplo da sociedade como um todo e das suas ideologias O procedimento completo da análise passa pelas etapas da des crição interpretação e explicação segundo Fairclough6 abrangendo vocabulário gramáti ca e estrutura textual visando a revelar tanto os esquemas classificatórios quanto as combina ções das formas lingüísticas Na análise contextual do discurso repressi vo sobre drogas aparece como particularmente relevante para a apreensão dos sentidos implíci tos o exame dos pressupostos e dos subentendi dos Estes se deixam considerar como estraté gias lingüísticas e retóricas para neutralizar pos síveis conseqüências de uma compreensão lite ral dos atos da fala Assim querendo dizer mais do que se diz ou apagando sentidos pelo silen ciamento de aspectos cruciais do consumo de drogas é possível produzir representações con venientes a uma determinada formação social O nãodito por exemplo sob a vertente do implí cito diz x querendo dizer y e aquela do antiimplícito diz x querendo silenciar y pode determinar certas significações ocultadas no discurso oficial Orlandi4 1990 A fim de clarear a trama discursiva que sustenta a idéia do combate às drogas e apon tar os elementos usados para dirigir a opinião pública rumo ao entendimento certo da ques tão são colocadas na base da investigação per guntas como que elementos são articulados para se chegar a uma representação ideologica mente orientada da droga que dados são silen ciados quais outros superdimensionados que relações de poder estão em jogo Material Os textos analisados Foi desenvolvida uma análise prévia de um conjunto de textos sobre drogas lançandose mão de uma leitura assistemática que acabou determinando a composição do corpus Os tex tos foram selecionados pelas especificidades e regularidades discursivas correspondendo às características da formação impregnada pelo Leitmotiv do combate às drogas Assim a re corrência de determinadas particularidades lin guísticas retóricas e temáticas serviu para dife renciar e agrupar os textos como partes de um mesmo processo de divulgação ideológica Na presente análise destacaramse as seguin tes características induzindo à escolha das unida des de pesquisa e das categorias de referência 1 Silenciamento acerca das questões so ciais que concorrem para os fenômenos de uso abuso e dependência de drogas 2 Desconsideração da motivação do usuá rio da sua dimensão subjetiva 3 Simplificação do fenômeno das drogas apontando elementos unidimensionais na etio logia da dependência 4 Centralização exclusiva no produto tóxi co ilícito 5 Tratamento genérico dos efeitos da droga pela lei do tudo ou nada sem especifi cação do produto do padrão de uso da per sonalidade e história de vida do usuário do contexto 6 Associação dramática freqüente entre droga e sexo droga e crime droga e loucura droga e morte 7 Omissão do fato de que a droga pode propiciar prazer sensações agradáveis facilida des de comunicação e relaxamento 8 Omissão ou descaso a respeito do uso e abuso de medicamentos psicotrópicos e outras drogas lícitas 9 Crença na intervenção heróica e desinte ressada que livrará a comunidade e o país defi nitivamente das drogas 10 Recomendação de atividades religiosas morais patrióticas e esportivas como estraté gias de prevenção ou mesmo como vacinas De acordo com a prevalência desses temas foram feitos cortes em três instâncias de produ ções discursivas textos americanos divulgados no Brasil documentos oficiais brasileiros e tex tos da imprensa brasileira Os textos seleciona dos para a análise foram Documentos de produção americana a O Presidente Bush adverte estudantes sobre o consumo de drogas Brasília Embaixada Americana Tradução do documento edita do pelo USIS United States Information Service 1989 b Escola sem drogas Brasília Embaixada Ame ricana Tradução do documento editado pelo US Department of Education 1989 Documentação oficial brasileira c PREVIDA Programa de Prevenção Educa ção e Vida subsídios para o educador Bra sília CONENDF 1991 d MURAD JE Como manter sua escola longe das drogas Belo Horizonte ABRAÇOPRE VIDA 1989 Produção jornalística e Império do pó Jornal do Brasil 260292 p 10 f Na carteira ao lado VEJA 270391 p 4248 Com base na interpretação e explicação dos elementos lingüísticos da estrutura argumenta tiva e dos implícitos desses textos foi possível apreender os elementos cruciais da ideologia que formenta a sua produção e os sustenta Resultados da análise O combate às drogas como construção ideológica Os resultados demonstram que há série de regularidades discursivas comuns aos textos ana ABRAÇO Associação Comunitária de Pais e Mestres para Prevenção ao Abuso de Drogas PREVIDA Programa de Prevenção Educação e Vida lisados e a muitos outros sobre o assunto em particular na imprensa cotidiana que se ligam entre si cooperando na fixação de sentidos ideologicamente comprometidos Estes por sua vez propiciam práticas que atendem às necessidades de controle social e de manuten ção de certos padrões da ordem vigente Os textos remetemnos a uma visão precon ceituosa repressora e por vezes moralista obtendo aceitação nos segmentos políticos e públicos que se destacam seja pelo desconheci mento do tema seja pelas tendências conserva doras ou antiliberais O autoritarismo e a mo nossemia são marcas que direcionam suas ope rações verbais dirigidas aos leitores com obje tivos claramente persuasivos visando a exercer influência decisiva sobre as suas representações como de fato qualquer discurso de propagan da ou de publicidade As produções funcionam então como cúmplices nas explicações e justi ficações dessa visão preconcebida da questão das drogas Podese concluir que os textos analisados fazem parte de um grande conjunto denomina do formação discursiva antidrogas Enquanto entidade global ela é abstrata e inacessível mas se deixa conhecer através dos textos particula res dando corpo material ao seu funcionamento Enumeramse em seguida os principais efeitos de sentido construídos neste discurso detectados pela análise praticada 1 Segundo sua retórica argumentativa des tacase como primeira função a meta da persua são Termos expressivos e combinações lin güísticas diversas estão voltados para a constru ção de um sentido dominante Palavras carrega das de conteúdos ameaçadores como sinistro luta guerra espúrio crime morte e outros são usadas com freqüência ajudando a construir enunciados de teor passional o que dificulta uma avaliação sóbria da problemática Outros recursos como a reiteração e o argumento de autoridade capazes de promo ver o discurso como consensual colaboram para levar o sujeito a aderir à concepção pro posta Por exemplo enunciados do tipo O Presidente Bush deu uma lição aos estudantes norteamericanos sobre responsabilidade e maturidadetexto a p1 introduzem perso nagens importantes como estratégia de valo rização da mensagem É o chamado argumen to de autoridade que fortalece o efeito persua sivo na medida do prestígio que se associar ao lugar de fala do orador no caso o Presidente dos EUA Exercem também função decisiva pois criam um efeito verdade os números e os dados estatísticos freqüentemente apresenta dos sem citar a fonte É comum a referência a números de grande porte de forma a alarmar mais do que informar como ilustra o seguinte exemplo Pesquisas mostram que o uso de drogas entre as crianças é dez vezes mais prevalente do que os pais suspeitam b p2 Vêse pois mensagens que não têm por objetivo informar mas convencer limitando a possibilidade de elaboração de uma concepção própria por parte do leitor É dessa forma que se constrói o discurso do consenso pelo qual transmitemse idéias como partilhadas virtual mente por todos investindoas do papel de um axioma do qual não se pode ou deve duvidar Assim sendo os textos induzem uma verdadeira subordinação intelectual o leitor mergulha no movimento de combate às drogas sem se dar conta uma vez que este é apresentado se não apregoado como único caminho para enfren tar e resolver a questão do consumo 2 O tom autoritário e alarmista imprimido aos textos que materializam o discurso em pau ta traz como resultado a idéia de um saber único e exclusivo A tendência de se apresentar como detentor da verdade está então duplamente pre sente pelo caráter formal da produção mas também pela força dos argumentos veiculados O discurso autoritário é o campo da certeza do imperativo categórico que manifesta um saber supremo levando o interlocutor a aceitálo como verdade Impedese por conseguinte a expansão de um pensamento mais crítico seja individual seja social ou comunitário Uma das maneiras pelas quais os produtores de textos conseguem impor os seus argumentos dáse com a utilização de verbos como tenho encontrado estou convencido acredito preci samos que exprimem uma atitude de convic ção marcando a posição autoritária do locutor Reforça tal análise a presença de termos como trincheira combate perigoso danoso insinuando guerra e sofrimento Estas são asso ciadas às drogas para provocar um clima de repúdio incondicional subsidiando enuncia dos do tipo O consumo de drogas não é um fato novo na história da humanidade atualmente ob servase um incremento crescente do seu consu mo gerando grandes problemas sociais e de saú de como a violência a marginalidade a prostitui ção a autodestruição e morte c p 15 O enunciado acima usa o recurso linguísti co denominado de paralelismo que repete uma certa estrutura para reforçar uma idéia acentuando o seu efeito a violência a margina lidade a prostituição a autodestruição e mor te Faz dessa forma emergir o sentido de que a droga é hoje o único fator causal de problemas que por outras razões sempre estiveram pre sentes na história da humanidade 3 Uma das técnicas fundamentais na construção do discurso antidroga são os si lenciamentos utilizados seja para omitir deli beradamente algo seja para fala superficial mente de um fato que poderia enfraquecer a argumentação Assim falase muito da droga ilícita omitindose falar das drogas lícitas as mais consumidas no mundo inteiro e as mais perniciosas para a saúde pública Aplicase indiscriminadamente o termo droga induzin do o leitor a incluir nesta categoria apenas os produtos ilícitos pela associação permanente com palavras como tráfico posse busca apreensão aplicação da lei notificação e ou tras termos que excluem qualquer possibili dade de vínculo com a substância alcoólica ou outro produto legalmente aceito Assim no enunciado apelou para que tomassem parte na luta contra os narcóti cos a p 1 o termo luta pela sua associação com narcóticos faz referência ao narcotráfi co somado à ausência de informações sobre contexto tipo e padrão de uso do produto determina a inclusão de todas as drogas em uma mesma categoria e reduz a uma única forma de consumo toda a gama de possibilida des de uso desde o consumo ocasional ou recreativo até o dependente Em que pesem referências ocasionais ao consumo de álcool fumo psicofármacos e sol ventes o efeito de sentido criado é de que só a droga ilegal é problema Transmitindose a idéia de que existem duas categorias de substân cias as perigosas ilegais e outras benignas beneficiase implicitamente a indústria farma cêutica e o comércio das substâncias lícitas 4 Uma outra idéia chave diz respeito à apresentação do cidadão em particular jovem como ser indefeso necessitando de orientação e proteção O nosso papel é fazer prevenção e tentar ajudar os alunos que caem nessa f p46 Ou ainda Precisamos continuar a propiciar apoio e orientação aos jovens para que façam escolhas sãs b pVI Enfatizase dessa forma o relacionamento vertical provedorreceptor ou ainda paternalista articulado à perfeição com o modelo da sociedade disciplinar cuja racionalida de estimula o controle institucional a relação autoritária o enquadramento dos indivíduos sem participação criativa sem responsabilidade civil e sem pensamento crítico No parágrafo Se as bocas funcionam nos morros administradas por traficantes que ater rorizam comunidades indefesas explorando e pervertendo menores os consumidores prolife ram em todas as camadas sociaise p 10 vêse da mesma forma a construção de sujeitos sociais frágeis otários ou vitimados Notese o vocábu lo indefesas modificando radicalmente o termo comunidade transmitindo a idéia de inércia passividade vulnerabilidade Embora na pers pectiva sociológica o termo comunidade carac terize um agrupamento com forte coesão afeti va com capacidade de organização ativa e trans formadora prevalece no texto o sentido de fragilidade e sujeição Insistindo sobre a passividade como inevi tável implicando em negar qualquer possibili dade de autonomia pessoal incentivase como efeito adicional toda uma desmobilização so cial É como se diante da ameaça das drogas o cidadão por sua ingenuidade e incapacidade de defesa precisasse da intervenção regulado ra das autoridades benevolentes e competen tes Desta forma ilustrase e estimulase a longa trajetória da submissão obediente às nor mas disciplinares rumo à construção de cor pos dóceis Foucault9 1975 5 Outra característica marcante dos textos analisados diz respeito àquelas construções so bre drogas que as apresentam como um mal em si independentemente do uso que delas se faz das ações subjetivas e dos processos sociais Utilizando os recursos lingüísticos de persona lização nominalização metáforas apresen tamse os fenômenos como desvinculados de outros fatores que intervêm na dinâmica dos comportamentos de consumo Os enunciados abaixo exemplificam a per sonificação figura de linguagem pela qual os seres inanimados agem como se fossem pessoas Aplicada à droga emprestalhe vida e ação im pedindo que fosse percebida como parte de um processo social As drogas ameaçam a vida de nossos filhos causam ruptura em nossas escolas e desagregam famílias b p41 Ou Não existe a escola onde a droga nao entra f p43 Apagase assim a subordinação do consu mo de drogas às dinâmicas social e individual necessárias à sua configuração como proble ma Eventos sociais historicidade motivações e decisões pessoais são negligenciados em be nefício de determinadas lógicas simplistas que inexistentes por não serem diretamente ex plicitadas nos textos não podem ser contesta dos tão pouco que as formas de controle social que encetam Na sociedade atual a individualidade inco moda Desta forma ela é submetida a um meca nismo disciplinar que a vilipendia como desvio da norma para que se possa assegurar a homo geneização das multiplicidades humanas Ne cessitando de um campo social homogêneo os poderes hegemônicos políticos mas sobretudo econômicos não conseguem conviver com as diferenças marcandoas enfaticamente para po der normatizálas Mas eis o paradoxo com a coerção normalizadora a diferença se acentua e faz o sujeito aparecer como desviante Ve lho13 1978 6 Outro sentido prevalente referese a uma visão do mundo simplista e maniqueista Seus autores referenciados por ideologias represso ras e moralistas enveredem então com facilida de pelo campo do dogmatismo absoluto con siderando a verdade como propriedade pessoal Usam verbos na forma imperativa e termos como jamais nunca que insinuam uma posição de certeza de verdade de supremacia das afir mações expressas Ensine aos seus filhos desde criança a dizer não Mostrelhes que o uso de drogas é perigoso Jamais permitam que os filhos me nores façam uso de bebidas alcoólicasd p8 Tais enunciados ensinam e ordenam com tamanha convicção que não resta ao leitor se não acatar e submeterse à força da argumenta ção construída no texto Simultaneamente são evitados os advérbios modalizadores possivel mente provavelmente ou verbos no futuro do pretérito o que revela o postulado de uma visão transparente da realidade Prevalecem então os verbos na forma pre sente atestando significados absolutos verda des incontestáveis que não necessitam de inter pretação O uso ocasional de drogas é respon sável pelas vítimas na guerra das drogasa p1 as instituições principalmente a família estão sofrendo uma de suas piores crises c p 15 o traficante está na sala de aula sentado na carteira ao lado do estudante a quem irá oferecer maconha ou cocaína f p43 Com a separação maniqueista do mundo em dois blocos compactos e inconciliáveis o mundo dos bons e o mundo dos maus ao exemplo das fábulas de mocinhos e bandidos os autores de tais textos legitimam os próprios papéis protetores dos bons cidadãos cujos comportamentos correspondem às expectati vas de normalidade e perseguidores dos vi ciados e traficantes e outros desviantes de normas cujos comportamentos são incrimina dos de ameaçarem a ordem social Vilipendiando representantes de diferen ças como desviantes criase todo um sistema de acusação podendo funcionar como estratégia valiosa para a manutenção de certos poderes discriminatórios São acusações que uma vez formalizadas implicam um elaborado ritual de exorcização segundo o exemplo bem conhe cido do bode expiatório envolvendo todo um aparato institucional respaldado pela lei isto é pela possibilidade de coerção e punição Viciado em particular contém toda uma acusação moral que assume explicitamente uma dimensão policial e política Implicitamen te carrega uma acusação totalizadora pondo em dúvida não apenas a cidadania mas a própria humanidade do usuário de drogas Rotulado como maconheiro ou marginal passa a ser visto como alguém que atenta contra a moral e os bons costumes mas também contra as pró prias instituições o que faz dele um ser antiso cial Vítimas de uma tal estigmatização os dro gaditos são considerados como desviantes e transformamse a partir daí em excluídos da convivência social pacífica em função de prin cípios rígidos impostos mantidos e manipula dos ideologicamente Conclusão Combate às drogas para quê As análises dos mecanismos de poder envol vidos no discurso de combate às drogas indicam formas de um processo disciplinar referentes a um contexto autoritário discriminatório e re pressivo Seus textos contribuem com o traba lho político senão policial de sujeição do cida dão a um determinado ideário de harmonia so cial ajudando a encobrir as contradições ineren tes às sociedades modernas e sustentando rela ções de força estabelecidas entre certos grupos sociais Ele contrasta em particular com a abor dagem do problema das drogas que o situa no âmbito da saúde pública enquanto ameaça não à ordem social mas à saúde da população no sentido amplo visando em particular os danos causados pelos abusos de álcool e fumo O discurso em pauta não se constitui por tanto como uma simples idéia um conheci mento objetivo e benéfico ou uma ideal idade discursiva sobre drogas e seus inegáveis malefí cios Sua ação mais eficaz consiste no papel de disciplinarização das pessoas na medida em que compactua com normas de conduta consti tutivas de um amplo projeto normalizador das relações sociais Apontando a possibilidade e a ameaça de condutas desviantes fundase a pres crição normativa que desencadeia o controle a intervenção e a exclusão Reproduzse assim a cada instante as con dições de possibilidades de implantação na sociedade de uma estratégia de normalização fundada numa razão aparentemente concreta e irrefutável o indivíduo social reduzido à sua condição de usuário ou dependente de drogas reduzido em suma a ser um viciado em função de um não conformismo qualquer Dessa forma as justificativas explicações recomendações e argumentos que o discurso de combate às drogas usa ou inventa para desestimular o consumo devem ser entendidos menos em razão do próprio fenômeno e mais em função das estruturas de poder e do sistema de normas dominantes que impõem a suprema cia da ordem moral social e econômica vigente Em suma esta formação discursiva apre sentase como uma abordagem unilateral e res tritiva de natureza persuasiva que fortalece posições radicais contra usuários e dependen tes Atémse fundamentalmente à propagação de duas metas por um lado veicular explica ções e recomendações que garantam a adapta ção dos cidadãos à ordem social concebida como entidade ahistórica inquestionável imu tável e ideal por outro a de prover interven ções repressoras e punitivas que excluem o sujeito diferente apontado como uma ameaça às instituições e à sociedade como um todo A dimensão ideológica permeia o conjunto desses textos vinculando suas formas e idéias a sistemas de poder presentes nas relações so ciais necessitando de controles eficazes Etica mente descompromissado com o ser humano e sua existência constrói um quadro de moralis mo que se baseia na intolerância quanto à plu ralidade das opções e visões por não se fundar numa ética humanista tornase incapaz de ca minhar em direção a valores representativos de liberdade e dignidade esteios de uma convivên cia democrática se não harmoniosa pelo menos norteada pelos ideais de justiça e respeito às diferenças O modelo repressivo apregoado pelo dis curso antidroga deve ser questionado não ape nas pela sua comprovada ineficácia em diminuir o consumo de drogas e em contribuir significa tivamente para resolver as questões de saúde pública que levanta mas por impor um sistema de intervenção injusto e freqüentemente desu mano Obcecados pela idéia de combater as drogas ilícitas por mecanismos jurídicos e poli ciais o que significa de fato redução da pro blemática social e sanitarista do abuso de drogas ao combate ao narcotráfico os adeptos deste discurso esquecemse da dimensão humana bem como da necessidade de modelos de pre venção e tratamento que valorizem a vida e a pessoa dentro de um contexto abrangente de ecologia humana Esquecemse ainda de que não existe ne nhuma razão nem filosófica nem farmacológi ca nem antropológica nem alopata nem ho meopata de se posicionar contra as drogas visto que essas são neutras em si e que eventuais problemas decorrem das condições de consu mo adotadas por determinados sujeitos esque cemse afinal que ser do contra raramente representa uma contribuição construtiva mas sim uma postura defensiva em prol por exem plo mais do status quo do que das mudanças estruturais necessárias para que as sociedades se tornem menos desequilibradas e injustas A idéia do contra merece uma última aná lise até que ponto o discurso antidroga não satisfaz a uma antiga mas sempre viva necessi dade dos detentores de poder aquela de preci sar de um inimigo se não externo então interno à sociedadeAfinal a atual onda de intolerância diante das drogas iniciouse nos Estados Unidos após a derrota no Vietnam onde os narcóticos em particular os opiáceos tinham um papel não desprezível devidamente apontado pelos defensores da gloria militar americana A potencialidade explicativa da in culpação das substâncias psicoativas ilícitas foi sem dúvida realçada com o desaparecimento do grande inimigo externo o comunismo e seus poderes militares O embate belicista deslocouse desde en tão de preferência para o plano do narcotráfi co inimigo econômico poderoso bem organi zado e bem protegido superado pelos merca dos do petróleo e dos armamentos mas capaz de desestabilizar as economias de mercado oci dentais pela instalação de poderes paralelos Esta nova vertente da ameaça às hegemonias estabelecidas no ocidente suscitou colossais es tratégias de combate transferidas de outros campos de batalha com certeza não pelo peri go das drogas em si mas pelo envolvimento macroeconômico que as caracteriza Eis talvez um outro sentido e não dos mais inocentes da dimensão ideológica detectada no discurso de combate às drogas Pela sua preva lência no setor das políticas públicas o ser humano mais uma vez sai perdendo descartado que é diante de interesses apresentados como superiores àqueles da saúde pública senão como suprahumanos Fica a questão inquie tante de saber quem seria afinal o verdadeiro inimigo do homem este sim a ser investido no interesse da humanidade e dos direitos do ho mem como alvo de um combate mais nobre e mais ético do que aquele dirigido aparente mente às drogas e aos seus mitos BUCHER R OLIVEIRA S R M The discourse of the fight against drugs and its ideologies Rev Saúde Pública 28 13745 1994 The ideological contents of the literature on drug consumption and addiction with a moralistic and enforcement approach are analysed from a scientific and public health point of view A nonliteral sense is brought out so that the discourse may be understood in its original context and its links with the forms of power present in social relations The theory of discourse analysis is used as the appropriate methodology by which the ideological indicators that impose on the texts on drugs a predetermined bias are to be found The results clearly reveal a persuasive discourse that has the propose of directing and manipulating ways of being and seeing in society allowing the authors to be seen as interested parties in a heavyhanded system for the maintenance of the social status quo The conclusion is that in these tests it is not really the drug question in itself that is dealt with but rather a mythical construction used do combat social deviation Keywords Substance abuse prevention and control Language Authoritarianism Referências Bibliográficas 1 BAKHTIN M Problemas da poética de Dostoieviski Rio de Janeiro Forense Universitária 1981 2 BUCIIER R Drogas e drogadição no Brasil Porto Alegre Altes Médicas 1992 3 CARLINICOTRIN B PINSKI I Prevenção ao abuso de drogas na escola uma revisão da literatura inter nacional recente Cad Pesq 69 4852 1989 4 DUCROT O Princípios de semântica lingüística São Paulo Cultrix 1988 Original 1972 5 FIORIN JL Linguagem e ideologia São Paulo Ática 1990 6 FAIRCLOUGH N Linguage and power London Loug man 1989 7 FOUCAULT M A arqueologia do saber Rio de Janeiro ForenseUniversitária 1987 Original 1969 8 FOUCAULT M Lordre du discours París Gallimard 1971 9 FOUCAULT M Vigiar e punir Petrópolis Vozes 1988 Original 1975 10 OLIVEIRA SRM Ideologia no discurso sobre as drogas Brasília 1992 Dissertação de Mestrado Universi dade de Braília 11 ORNALDI EP Terra à vista discurso do confronto velho e novo mundo Campinas Cortez 1990 12 PECIIEUX M Analyse automatique du discours Paris Dunod 1969 13 VELHO G Duas categorias de acusação na cultura brasileira contemporânea In Figueira S coordSo ciedade e doença mental Rio de Janeiro Campus 1978 p 3745 Recebido para publicação em 1241993 Reapresentado em 24 11993 Aprovado para publicação em 731994
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O discurso do combate às drogas e suas ideologias The discourse of the fight against drugs and its ideologies Richard Bucher Sandra RM Oliveira BUCHER R OLIVEIRA SRM O discurso do combate às drogas e suas ideologias Rev Saúde Pública 28 13745 1994 À luz de considerações científicas sobre o abuso de drogas discutese a ideologia dos textos sobre drogas que seguem uma orientação moralista e repressora a despeito das condições sóciohistóricas do consumo Colocamse em foco os sentidos nãoliterais para situar tais discursos no contexto da sua produção e para detectar neles formas de manutenção de poder presentes nas relações sociais Utilizase a teoria da análise do discurso como a metodologia apropriada para se desvendar os indicadores da ideologia que impõe aos textos sobre drogas uma determinada modalidade Os resultados revelam um discurso com propósitos claramente persuasivos direcionando e manipulando modos de ser e de ver na sociedade deixandose interpretar como parte interessada em um pesado sistema de conformismo social Concluise que a questão das drogas não é tratada em si mas enquanto mito construído usado para combater série de desvios da ordem social vigente Descritores Abuso de substâncias prevenção Linguagem Autoritarismo Considerações sobre o discurso do combate às drogas Entre as diversas abordagens da questão das drogas nas sociedades modernas destaca se aquela que enfatiza o combate às drogas apresentandoo como a única maneira capaz de enfrentar e erradicar o grave flagelo De ex pressão rigorosamente condenatória caracteri zase pela veemência de uma argumentação mais emotiva e alarmista do que serena e obje tiva mais sensacionalista do que científica mais moralista do que isenta de juízos valorativos Desta forma incita a uma cruzada antidrogas cuja beligerância encobre série de fatores que de certo contribuem decisivamente para a ex pansão do fenômeno Portanto ao invés de analisar o consumo de drogas em seus múltiplos determinantes para chegar a propostas preventivas pertinentes e prometedoras de eficácia tal abordagem limita se a preconizar uma repressão implacável res tringindose desta forma às drogas ilícitas Ora Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília Brasília DF Brasil Bolsista junto ao Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília Brasília DF Brasil SeparataReprints R Bucher PCLUnB 70910900 Brasília DF Brasil em muitos países entre os quais o Brasil são precisamente as substâncias lícitas as mais con sumidas e as mais fortes geradoras de abusos e dependências Tratase aí de um fato epidemio lógico inconteste a ser levado a sério diante da distorção do fenômeno introduzida pela prega ção tantas vezes piegas do combate às drogas Oporse a esta visão reducionista não signi fica no entanto entregarse à apologia do con sumo de substâncias psicoativas mas tão so mente defender uma análise objetiva e contex tualizada da situação das drogas em uma deter minada sociedade Não se trata pois da defesa de uma posição extremista de liberação de todas as drogas para um consumo indiscrimina do mas do respeito por uma experiência huma na milenar a ser examinada numa linha históri coantropológica para que se torne possível apreender suas significações modernas Constatase de fato que a cegueira da po sição repressiva radical traz mais estragos do que benefícios por fazer prevalecer uma visão unidimensional inapropriada para o trato do fenômeno em toda sua complexidade As nume rosas implicações ideológicas daquela visão não encontram o necessário contrapeso através de análises sociais profundas pertinentes e abran gentes Carlini Cotrim Pinski3 1989 Abordar a questão das drogas no enfoque combativo citado significa ainda não tratála como realidade a ser investigada mas sim trans formála em mito fabricado para cumprir deter minadas funções sociais Espalhada no bojo da cruzada antidrogas lhe é imputada nitida mente a função de bode expiatório fazendoa aparecer como responsável por grande parte dos revezes sociais produzse então uma misti ficação erigindose uma cortina de fumaça ao redor do pretendido flagelo o que impede seu dimensionamento correto e averigüável im prescindível para se ultrapassar o nível de pre conceitos prejulgamentos e visões preconcebi das ou ainda aquele de interpretações unidire cionais ou tendenciosas Bucher2 1992 Qualquer discurso que enfoca questões so ciais pode conforme os seus efeitos de sentido transformar ou manipular as representações co letivas com a finalidade de manter certas estru turas de poder da mesma forma pode modifi cálas visando à superação dessas mesmas es truturas Assim adquirem identidade particu lar aparecendo como formações que se defi nem pelos sentidos ideológicos que reiteram e que vão direcionar a sua função enunciativa Desencadeadas a partir da interação de opiniões diferentes sobre questões de interesse comum tais formações apresentam regularidades em seu funcionamento que permitem interpretálas como parte de uma matriz ideológica específi ca constituindo o que se denomina em Análise do Discurso de formação discursiva Aplicando esta concepção à discussão so bre drogas podese formular a hipótese segun do a qual determinados textos ainda que pro duzidos em setores diferentes constituem uma mesma formação discursiva promovendo a cir culação de uma série de sentidos específicos Estes no seu conjunto incorporam toda uma ideologia antidrogas plataforma para se divul garem e implantarem medidas de controle da queles fenômenos de consumo considerados no referido prisma ideológico como socialmen te indesejáveis e portanto exigindo repressão Oliveira10 1992 A partir dessas considerações propõese um recorte no extenso campo de produção sobre drogas submetendo à análise a forma ção discursiva do combate buscando com preender os seus processos de significação e a forma como influem na construção do senso comum do brasileiro a respeito da temática em pauta incluindo aí as repercussões no cam po da saúde pública A aproximação dáse através do conceito de ideologia enfatizada enquanto categoria ex plicativa do funcionamento dos discursos so ciais Em face deste termo controverso e plurí voco lançouse mão do discernimento de pola ridades positiva e negativa para incluir seus inúmeros significados em dois registros o des critivo e o crítico O primeiro enfoque referese a sistemas de pensamentos crenças valores ou cosmovisão por sua vez o sentido crítico aponta as idéias e atitudes postas ao serviço da sustentação das relações assimétricas de poder da injustiça social e da distribuição desigual de direitos e rendas Exploramse assim as relações entre ideo logia e linguagem ultrapassando a noção de linguagem como sistema de comunicação para correlacionála com os fenômenos conflitantes da estruturação social da qual ela própria faz parte Dessa maneira concebida a linguagem passa a ser definida como discurso ou seja como ato social ou ação que visa a produzir efeitos Fiorin5 1990 Se e verdade que nenhum discurso escapa do envolvimento com a dimensão ideológica discernir os dois enfoques citados propicia uma avaliação contingente dos efeitos de sentido dominantes permitindo compreender o alcan ce de determinado fenômeno social no caso o consumo de drogas Assim uma contextualiza ção desse consumo como fenômeno histórico e antropologicamente situado permite apreen der descritivamente seus sistemas de valores crenças e representações populares enquanto que uma análise crítica das produções sobre drogas proferidas por certas instâncias de po der ou de autoridade permite detectar tendên cias esforços e manipulações para proteger determinadas relações econômicas e políticas vigentes É com este intuito de avaliação crítica que textos representativos do discurso repressivo sobre drogas foram analisados no presente tra balho Ao visar as coerções institucionais que marcam tal produção discursiva levantaramse questões vinculadas ao poder institucional às práticas repressivas punitivas e assistenciais em saúde mental aos jogos de interesses políti cos e econômicos no comércio de drogas lícitas além das ilícitas ao papel do profissional nas áreas de saúde educação ação social justiça e pesquisa científica Dentre as numerosas contradições possí veis de se apontar na formação discursiva da cruzada antidroga destacaramse certos pressupostos inerentes à sua vinculação com as estruturas sociais e de poder que as engen dram e que asseguram sua divulgação pres supostos esses detentoras de configurações ideológicas cujos contornos mais precisos tentouse apreender Método Ideologia e análise do discurso Na investigação proposta optouse pela Análise do Discurso como instrumento adequa do para examinar a ligação entre a linguagem apresentada e a ideologia subjacente Sua meto dologia permite explicitar os processos comu nicativos construídos nos textos sobre drogas e detectar intenções secretas ou interesses escu sos em veicular idéias condenatórias radicais por razões que ultrapassam os efeitos nefastos do consumo de drogas em si A Teoria do Discurso apóiase no conceito de linguagem como sendo a materialidade apropriada à ideologia Sistematizada inicial mente por Pecheux12 1969 a Análise do Discurso somada à contribuição de autores como Bakhtin1 1970 Foucault78 19691971 Ducrot4 1972 e Fairclough6 1989 vem sendo amplamente utilizada para trabalhar os sentidos não literais dos enuncia dos com base no reconhecimento da dimen são sóciohistórica da linguagem Na sua origem a Teoria da Análise do Discurso tal como idealizada por Pecheux12 aparece ligada à dimensão políticoideológica suas premissas básicas apoiamse na concep ção da linguagem ter um modo de constitui ção profundamente histórico não sendo pos sível dissociálo do conjunto das práticas hu manas Por esta razão saber quem fala para quem fala em que situação de que lugar da sociedade com que intento são elementos de suma importância no processo comunicativo Na constituição dos significados manifes tamse as coerções ideológicas que incidem so bre a linguagem Nas chamadas ordens do dis curso Foucault8 1971 expressamse determi nadas condições sóciohistóricas que impreg nam as formações discursivas enquanto con junto de regras limitadas no tempo e no espaço e que definem as condições de exercício da função enunciativa Os discursos que reiteram processos socialmente cristalizados podem ser apreendidos como partes de uma mesma ma triz determinando regularidades definidas pela relação que mantém com a ideologia Tais idéias chaves servem para a compreen são da ideologia e das injunções de poder no discurso repressivo sobre drogas Repertorian do esse discurso no espaço específico onde se articulam linguagem e ideologia é possível res saltar os processos de significação que regem o imaginário social sobre drogas no Brasil Para tanto série de características lingüísticas relati vas ao vocabulário e à gramática são considera das marcas para o entendimento analítico de tais processos O presente trabalho no entanto não se limita à análise da superfície lingüística mas examina também as propriedades discursi vas que se situam além das marcas formais Examinandose a relação do texto com o discurso e com o contexto atingemse três ní veis de análise conforme três níveis de organi zação a situação social do momento imediato a instituição social enquanto matriz do discur so o nível mais amplo da sociedade como um todo e das suas ideologias O procedimento completo da análise passa pelas etapas da des crição interpretação e explicação segundo Fairclough6 abrangendo vocabulário gramáti ca e estrutura textual visando a revelar tanto os esquemas classificatórios quanto as combina ções das formas lingüísticas Na análise contextual do discurso repressi vo sobre drogas aparece como particularmente relevante para a apreensão dos sentidos implíci tos o exame dos pressupostos e dos subentendi dos Estes se deixam considerar como estraté gias lingüísticas e retóricas para neutralizar pos síveis conseqüências de uma compreensão lite ral dos atos da fala Assim querendo dizer mais do que se diz ou apagando sentidos pelo silen ciamento de aspectos cruciais do consumo de drogas é possível produzir representações con venientes a uma determinada formação social O nãodito por exemplo sob a vertente do implí cito diz x querendo dizer y e aquela do antiimplícito diz x querendo silenciar y pode determinar certas significações ocultadas no discurso oficial Orlandi4 1990 A fim de clarear a trama discursiva que sustenta a idéia do combate às drogas e apon tar os elementos usados para dirigir a opinião pública rumo ao entendimento certo da ques tão são colocadas na base da investigação per guntas como que elementos são articulados para se chegar a uma representação ideologica mente orientada da droga que dados são silen ciados quais outros superdimensionados que relações de poder estão em jogo Material Os textos analisados Foi desenvolvida uma análise prévia de um conjunto de textos sobre drogas lançandose mão de uma leitura assistemática que acabou determinando a composição do corpus Os tex tos foram selecionados pelas especificidades e regularidades discursivas correspondendo às características da formação impregnada pelo Leitmotiv do combate às drogas Assim a re corrência de determinadas particularidades lin guísticas retóricas e temáticas serviu para dife renciar e agrupar os textos como partes de um mesmo processo de divulgação ideológica Na presente análise destacaramse as seguin tes características induzindo à escolha das unida des de pesquisa e das categorias de referência 1 Silenciamento acerca das questões so ciais que concorrem para os fenômenos de uso abuso e dependência de drogas 2 Desconsideração da motivação do usuá rio da sua dimensão subjetiva 3 Simplificação do fenômeno das drogas apontando elementos unidimensionais na etio logia da dependência 4 Centralização exclusiva no produto tóxi co ilícito 5 Tratamento genérico dos efeitos da droga pela lei do tudo ou nada sem especifi cação do produto do padrão de uso da per sonalidade e história de vida do usuário do contexto 6 Associação dramática freqüente entre droga e sexo droga e crime droga e loucura droga e morte 7 Omissão do fato de que a droga pode propiciar prazer sensações agradáveis facilida des de comunicação e relaxamento 8 Omissão ou descaso a respeito do uso e abuso de medicamentos psicotrópicos e outras drogas lícitas 9 Crença na intervenção heróica e desinte ressada que livrará a comunidade e o país defi nitivamente das drogas 10 Recomendação de atividades religiosas morais patrióticas e esportivas como estraté gias de prevenção ou mesmo como vacinas De acordo com a prevalência desses temas foram feitos cortes em três instâncias de produ ções discursivas textos americanos divulgados no Brasil documentos oficiais brasileiros e tex tos da imprensa brasileira Os textos seleciona dos para a análise foram Documentos de produção americana a O Presidente Bush adverte estudantes sobre o consumo de drogas Brasília Embaixada Americana Tradução do documento edita do pelo USIS United States Information Service 1989 b Escola sem drogas Brasília Embaixada Ame ricana Tradução do documento editado pelo US Department of Education 1989 Documentação oficial brasileira c PREVIDA Programa de Prevenção Educa ção e Vida subsídios para o educador Bra sília CONENDF 1991 d MURAD JE Como manter sua escola longe das drogas Belo Horizonte ABRAÇOPRE VIDA 1989 Produção jornalística e Império do pó Jornal do Brasil 260292 p 10 f Na carteira ao lado VEJA 270391 p 4248 Com base na interpretação e explicação dos elementos lingüísticos da estrutura argumenta tiva e dos implícitos desses textos foi possível apreender os elementos cruciais da ideologia que formenta a sua produção e os sustenta Resultados da análise O combate às drogas como construção ideológica Os resultados demonstram que há série de regularidades discursivas comuns aos textos ana ABRAÇO Associação Comunitária de Pais e Mestres para Prevenção ao Abuso de Drogas PREVIDA Programa de Prevenção Educação e Vida lisados e a muitos outros sobre o assunto em particular na imprensa cotidiana que se ligam entre si cooperando na fixação de sentidos ideologicamente comprometidos Estes por sua vez propiciam práticas que atendem às necessidades de controle social e de manuten ção de certos padrões da ordem vigente Os textos remetemnos a uma visão precon ceituosa repressora e por vezes moralista obtendo aceitação nos segmentos políticos e públicos que se destacam seja pelo desconheci mento do tema seja pelas tendências conserva doras ou antiliberais O autoritarismo e a mo nossemia são marcas que direcionam suas ope rações verbais dirigidas aos leitores com obje tivos claramente persuasivos visando a exercer influência decisiva sobre as suas representações como de fato qualquer discurso de propagan da ou de publicidade As produções funcionam então como cúmplices nas explicações e justi ficações dessa visão preconcebida da questão das drogas Podese concluir que os textos analisados fazem parte de um grande conjunto denomina do formação discursiva antidrogas Enquanto entidade global ela é abstrata e inacessível mas se deixa conhecer através dos textos particula res dando corpo material ao seu funcionamento Enumeramse em seguida os principais efeitos de sentido construídos neste discurso detectados pela análise praticada 1 Segundo sua retórica argumentativa des tacase como primeira função a meta da persua são Termos expressivos e combinações lin güísticas diversas estão voltados para a constru ção de um sentido dominante Palavras carrega das de conteúdos ameaçadores como sinistro luta guerra espúrio crime morte e outros são usadas com freqüência ajudando a construir enunciados de teor passional o que dificulta uma avaliação sóbria da problemática Outros recursos como a reiteração e o argumento de autoridade capazes de promo ver o discurso como consensual colaboram para levar o sujeito a aderir à concepção pro posta Por exemplo enunciados do tipo O Presidente Bush deu uma lição aos estudantes norteamericanos sobre responsabilidade e maturidadetexto a p1 introduzem perso nagens importantes como estratégia de valo rização da mensagem É o chamado argumen to de autoridade que fortalece o efeito persua sivo na medida do prestígio que se associar ao lugar de fala do orador no caso o Presidente dos EUA Exercem também função decisiva pois criam um efeito verdade os números e os dados estatísticos freqüentemente apresenta dos sem citar a fonte É comum a referência a números de grande porte de forma a alarmar mais do que informar como ilustra o seguinte exemplo Pesquisas mostram que o uso de drogas entre as crianças é dez vezes mais prevalente do que os pais suspeitam b p2 Vêse pois mensagens que não têm por objetivo informar mas convencer limitando a possibilidade de elaboração de uma concepção própria por parte do leitor É dessa forma que se constrói o discurso do consenso pelo qual transmitemse idéias como partilhadas virtual mente por todos investindoas do papel de um axioma do qual não se pode ou deve duvidar Assim sendo os textos induzem uma verdadeira subordinação intelectual o leitor mergulha no movimento de combate às drogas sem se dar conta uma vez que este é apresentado se não apregoado como único caminho para enfren tar e resolver a questão do consumo 2 O tom autoritário e alarmista imprimido aos textos que materializam o discurso em pau ta traz como resultado a idéia de um saber único e exclusivo A tendência de se apresentar como detentor da verdade está então duplamente pre sente pelo caráter formal da produção mas também pela força dos argumentos veiculados O discurso autoritário é o campo da certeza do imperativo categórico que manifesta um saber supremo levando o interlocutor a aceitálo como verdade Impedese por conseguinte a expansão de um pensamento mais crítico seja individual seja social ou comunitário Uma das maneiras pelas quais os produtores de textos conseguem impor os seus argumentos dáse com a utilização de verbos como tenho encontrado estou convencido acredito preci samos que exprimem uma atitude de convic ção marcando a posição autoritária do locutor Reforça tal análise a presença de termos como trincheira combate perigoso danoso insinuando guerra e sofrimento Estas são asso ciadas às drogas para provocar um clima de repúdio incondicional subsidiando enuncia dos do tipo O consumo de drogas não é um fato novo na história da humanidade atualmente ob servase um incremento crescente do seu consu mo gerando grandes problemas sociais e de saú de como a violência a marginalidade a prostitui ção a autodestruição e morte c p 15 O enunciado acima usa o recurso linguísti co denominado de paralelismo que repete uma certa estrutura para reforçar uma idéia acentuando o seu efeito a violência a margina lidade a prostituição a autodestruição e mor te Faz dessa forma emergir o sentido de que a droga é hoje o único fator causal de problemas que por outras razões sempre estiveram pre sentes na história da humanidade 3 Uma das técnicas fundamentais na construção do discurso antidroga são os si lenciamentos utilizados seja para omitir deli beradamente algo seja para fala superficial mente de um fato que poderia enfraquecer a argumentação Assim falase muito da droga ilícita omitindose falar das drogas lícitas as mais consumidas no mundo inteiro e as mais perniciosas para a saúde pública Aplicase indiscriminadamente o termo droga induzin do o leitor a incluir nesta categoria apenas os produtos ilícitos pela associação permanente com palavras como tráfico posse busca apreensão aplicação da lei notificação e ou tras termos que excluem qualquer possibili dade de vínculo com a substância alcoólica ou outro produto legalmente aceito Assim no enunciado apelou para que tomassem parte na luta contra os narcóti cos a p 1 o termo luta pela sua associação com narcóticos faz referência ao narcotráfi co somado à ausência de informações sobre contexto tipo e padrão de uso do produto determina a inclusão de todas as drogas em uma mesma categoria e reduz a uma única forma de consumo toda a gama de possibilida des de uso desde o consumo ocasional ou recreativo até o dependente Em que pesem referências ocasionais ao consumo de álcool fumo psicofármacos e sol ventes o efeito de sentido criado é de que só a droga ilegal é problema Transmitindose a idéia de que existem duas categorias de substân cias as perigosas ilegais e outras benignas beneficiase implicitamente a indústria farma cêutica e o comércio das substâncias lícitas 4 Uma outra idéia chave diz respeito à apresentação do cidadão em particular jovem como ser indefeso necessitando de orientação e proteção O nosso papel é fazer prevenção e tentar ajudar os alunos que caem nessa f p46 Ou ainda Precisamos continuar a propiciar apoio e orientação aos jovens para que façam escolhas sãs b pVI Enfatizase dessa forma o relacionamento vertical provedorreceptor ou ainda paternalista articulado à perfeição com o modelo da sociedade disciplinar cuja racionalida de estimula o controle institucional a relação autoritária o enquadramento dos indivíduos sem participação criativa sem responsabilidade civil e sem pensamento crítico No parágrafo Se as bocas funcionam nos morros administradas por traficantes que ater rorizam comunidades indefesas explorando e pervertendo menores os consumidores prolife ram em todas as camadas sociaise p 10 vêse da mesma forma a construção de sujeitos sociais frágeis otários ou vitimados Notese o vocábu lo indefesas modificando radicalmente o termo comunidade transmitindo a idéia de inércia passividade vulnerabilidade Embora na pers pectiva sociológica o termo comunidade carac terize um agrupamento com forte coesão afeti va com capacidade de organização ativa e trans formadora prevalece no texto o sentido de fragilidade e sujeição Insistindo sobre a passividade como inevi tável implicando em negar qualquer possibili dade de autonomia pessoal incentivase como efeito adicional toda uma desmobilização so cial É como se diante da ameaça das drogas o cidadão por sua ingenuidade e incapacidade de defesa precisasse da intervenção regulado ra das autoridades benevolentes e competen tes Desta forma ilustrase e estimulase a longa trajetória da submissão obediente às nor mas disciplinares rumo à construção de cor pos dóceis Foucault9 1975 5 Outra característica marcante dos textos analisados diz respeito àquelas construções so bre drogas que as apresentam como um mal em si independentemente do uso que delas se faz das ações subjetivas e dos processos sociais Utilizando os recursos lingüísticos de persona lização nominalização metáforas apresen tamse os fenômenos como desvinculados de outros fatores que intervêm na dinâmica dos comportamentos de consumo Os enunciados abaixo exemplificam a per sonificação figura de linguagem pela qual os seres inanimados agem como se fossem pessoas Aplicada à droga emprestalhe vida e ação im pedindo que fosse percebida como parte de um processo social As drogas ameaçam a vida de nossos filhos causam ruptura em nossas escolas e desagregam famílias b p41 Ou Não existe a escola onde a droga nao entra f p43 Apagase assim a subordinação do consu mo de drogas às dinâmicas social e individual necessárias à sua configuração como proble ma Eventos sociais historicidade motivações e decisões pessoais são negligenciados em be nefício de determinadas lógicas simplistas que inexistentes por não serem diretamente ex plicitadas nos textos não podem ser contesta dos tão pouco que as formas de controle social que encetam Na sociedade atual a individualidade inco moda Desta forma ela é submetida a um meca nismo disciplinar que a vilipendia como desvio da norma para que se possa assegurar a homo geneização das multiplicidades humanas Ne cessitando de um campo social homogêneo os poderes hegemônicos políticos mas sobretudo econômicos não conseguem conviver com as diferenças marcandoas enfaticamente para po der normatizálas Mas eis o paradoxo com a coerção normalizadora a diferença se acentua e faz o sujeito aparecer como desviante Ve lho13 1978 6 Outro sentido prevalente referese a uma visão do mundo simplista e maniqueista Seus autores referenciados por ideologias represso ras e moralistas enveredem então com facilida de pelo campo do dogmatismo absoluto con siderando a verdade como propriedade pessoal Usam verbos na forma imperativa e termos como jamais nunca que insinuam uma posição de certeza de verdade de supremacia das afir mações expressas Ensine aos seus filhos desde criança a dizer não Mostrelhes que o uso de drogas é perigoso Jamais permitam que os filhos me nores façam uso de bebidas alcoólicasd p8 Tais enunciados ensinam e ordenam com tamanha convicção que não resta ao leitor se não acatar e submeterse à força da argumenta ção construída no texto Simultaneamente são evitados os advérbios modalizadores possivel mente provavelmente ou verbos no futuro do pretérito o que revela o postulado de uma visão transparente da realidade Prevalecem então os verbos na forma pre sente atestando significados absolutos verda des incontestáveis que não necessitam de inter pretação O uso ocasional de drogas é respon sável pelas vítimas na guerra das drogasa p1 as instituições principalmente a família estão sofrendo uma de suas piores crises c p 15 o traficante está na sala de aula sentado na carteira ao lado do estudante a quem irá oferecer maconha ou cocaína f p43 Com a separação maniqueista do mundo em dois blocos compactos e inconciliáveis o mundo dos bons e o mundo dos maus ao exemplo das fábulas de mocinhos e bandidos os autores de tais textos legitimam os próprios papéis protetores dos bons cidadãos cujos comportamentos correspondem às expectati vas de normalidade e perseguidores dos vi ciados e traficantes e outros desviantes de normas cujos comportamentos são incrimina dos de ameaçarem a ordem social Vilipendiando representantes de diferen ças como desviantes criase todo um sistema de acusação podendo funcionar como estratégia valiosa para a manutenção de certos poderes discriminatórios São acusações que uma vez formalizadas implicam um elaborado ritual de exorcização segundo o exemplo bem conhe cido do bode expiatório envolvendo todo um aparato institucional respaldado pela lei isto é pela possibilidade de coerção e punição Viciado em particular contém toda uma acusação moral que assume explicitamente uma dimensão policial e política Implicitamen te carrega uma acusação totalizadora pondo em dúvida não apenas a cidadania mas a própria humanidade do usuário de drogas Rotulado como maconheiro ou marginal passa a ser visto como alguém que atenta contra a moral e os bons costumes mas também contra as pró prias instituições o que faz dele um ser antiso cial Vítimas de uma tal estigmatização os dro gaditos são considerados como desviantes e transformamse a partir daí em excluídos da convivência social pacífica em função de prin cípios rígidos impostos mantidos e manipula dos ideologicamente Conclusão Combate às drogas para quê As análises dos mecanismos de poder envol vidos no discurso de combate às drogas indicam formas de um processo disciplinar referentes a um contexto autoritário discriminatório e re pressivo Seus textos contribuem com o traba lho político senão policial de sujeição do cida dão a um determinado ideário de harmonia so cial ajudando a encobrir as contradições ineren tes às sociedades modernas e sustentando rela ções de força estabelecidas entre certos grupos sociais Ele contrasta em particular com a abor dagem do problema das drogas que o situa no âmbito da saúde pública enquanto ameaça não à ordem social mas à saúde da população no sentido amplo visando em particular os danos causados pelos abusos de álcool e fumo O discurso em pauta não se constitui por tanto como uma simples idéia um conheci mento objetivo e benéfico ou uma ideal idade discursiva sobre drogas e seus inegáveis malefí cios Sua ação mais eficaz consiste no papel de disciplinarização das pessoas na medida em que compactua com normas de conduta consti tutivas de um amplo projeto normalizador das relações sociais Apontando a possibilidade e a ameaça de condutas desviantes fundase a pres crição normativa que desencadeia o controle a intervenção e a exclusão Reproduzse assim a cada instante as con dições de possibilidades de implantação na sociedade de uma estratégia de normalização fundada numa razão aparentemente concreta e irrefutável o indivíduo social reduzido à sua condição de usuário ou dependente de drogas reduzido em suma a ser um viciado em função de um não conformismo qualquer Dessa forma as justificativas explicações recomendações e argumentos que o discurso de combate às drogas usa ou inventa para desestimular o consumo devem ser entendidos menos em razão do próprio fenômeno e mais em função das estruturas de poder e do sistema de normas dominantes que impõem a suprema cia da ordem moral social e econômica vigente Em suma esta formação discursiva apre sentase como uma abordagem unilateral e res tritiva de natureza persuasiva que fortalece posições radicais contra usuários e dependen tes Atémse fundamentalmente à propagação de duas metas por um lado veicular explica ções e recomendações que garantam a adapta ção dos cidadãos à ordem social concebida como entidade ahistórica inquestionável imu tável e ideal por outro a de prover interven ções repressoras e punitivas que excluem o sujeito diferente apontado como uma ameaça às instituições e à sociedade como um todo A dimensão ideológica permeia o conjunto desses textos vinculando suas formas e idéias a sistemas de poder presentes nas relações so ciais necessitando de controles eficazes Etica mente descompromissado com o ser humano e sua existência constrói um quadro de moralis mo que se baseia na intolerância quanto à plu ralidade das opções e visões por não se fundar numa ética humanista tornase incapaz de ca minhar em direção a valores representativos de liberdade e dignidade esteios de uma convivên cia democrática se não harmoniosa pelo menos norteada pelos ideais de justiça e respeito às diferenças O modelo repressivo apregoado pelo dis curso antidroga deve ser questionado não ape nas pela sua comprovada ineficácia em diminuir o consumo de drogas e em contribuir significa tivamente para resolver as questões de saúde pública que levanta mas por impor um sistema de intervenção injusto e freqüentemente desu mano Obcecados pela idéia de combater as drogas ilícitas por mecanismos jurídicos e poli ciais o que significa de fato redução da pro blemática social e sanitarista do abuso de drogas ao combate ao narcotráfico os adeptos deste discurso esquecemse da dimensão humana bem como da necessidade de modelos de pre venção e tratamento que valorizem a vida e a pessoa dentro de um contexto abrangente de ecologia humana Esquecemse ainda de que não existe ne nhuma razão nem filosófica nem farmacológi ca nem antropológica nem alopata nem ho meopata de se posicionar contra as drogas visto que essas são neutras em si e que eventuais problemas decorrem das condições de consu mo adotadas por determinados sujeitos esque cemse afinal que ser do contra raramente representa uma contribuição construtiva mas sim uma postura defensiva em prol por exem plo mais do status quo do que das mudanças estruturais necessárias para que as sociedades se tornem menos desequilibradas e injustas A idéia do contra merece uma última aná lise até que ponto o discurso antidroga não satisfaz a uma antiga mas sempre viva necessi dade dos detentores de poder aquela de preci sar de um inimigo se não externo então interno à sociedadeAfinal a atual onda de intolerância diante das drogas iniciouse nos Estados Unidos após a derrota no Vietnam onde os narcóticos em particular os opiáceos tinham um papel não desprezível devidamente apontado pelos defensores da gloria militar americana A potencialidade explicativa da in culpação das substâncias psicoativas ilícitas foi sem dúvida realçada com o desaparecimento do grande inimigo externo o comunismo e seus poderes militares O embate belicista deslocouse desde en tão de preferência para o plano do narcotráfi co inimigo econômico poderoso bem organi zado e bem protegido superado pelos merca dos do petróleo e dos armamentos mas capaz de desestabilizar as economias de mercado oci dentais pela instalação de poderes paralelos Esta nova vertente da ameaça às hegemonias estabelecidas no ocidente suscitou colossais es tratégias de combate transferidas de outros campos de batalha com certeza não pelo peri go das drogas em si mas pelo envolvimento macroeconômico que as caracteriza Eis talvez um outro sentido e não dos mais inocentes da dimensão ideológica detectada no discurso de combate às drogas Pela sua preva lência no setor das políticas públicas o ser humano mais uma vez sai perdendo descartado que é diante de interesses apresentados como superiores àqueles da saúde pública senão como suprahumanos Fica a questão inquie tante de saber quem seria afinal o verdadeiro inimigo do homem este sim a ser investido no interesse da humanidade e dos direitos do ho mem como alvo de um combate mais nobre e mais ético do que aquele dirigido aparente mente às drogas e aos seus mitos BUCHER R OLIVEIRA S R M The discourse of the fight against drugs and its ideologies Rev Saúde Pública 28 13745 1994 The ideological contents of the literature on drug consumption and addiction with a moralistic and enforcement approach are analysed from a scientific and public health point of view A nonliteral sense is brought out so that the discourse may be understood in its original context and its links with the forms of power present in social relations The theory of discourse analysis is used as the appropriate methodology by which the ideological indicators that impose on the texts on drugs a predetermined bias are to be found The results clearly reveal a persuasive discourse that has the propose of directing and manipulating ways of being and seeing in society allowing the authors to be seen as interested parties in a heavyhanded system for the maintenance of the social status quo The conclusion is that in these tests it is not really the drug question in itself that is dealt with but rather a mythical construction used do combat social deviation Keywords Substance abuse prevention and control Language Authoritarianism Referências Bibliográficas 1 BAKHTIN M Problemas da poética de Dostoieviski Rio de Janeiro Forense Universitária 1981 2 BUCIIER R Drogas e drogadição no Brasil Porto Alegre Altes Médicas 1992 3 CARLINICOTRIN B PINSKI I Prevenção ao abuso de drogas na escola uma revisão da literatura inter nacional recente Cad Pesq 69 4852 1989 4 DUCROT O Princípios de semântica lingüística São Paulo Cultrix 1988 Original 1972 5 FIORIN JL Linguagem e ideologia São Paulo Ática 1990 6 FAIRCLOUGH N Linguage and power London Loug man 1989 7 FOUCAULT M A arqueologia do saber Rio de Janeiro ForenseUniversitária 1987 Original 1969 8 FOUCAULT M Lordre du discours París Gallimard 1971 9 FOUCAULT M Vigiar e punir Petrópolis Vozes 1988 Original 1975 10 OLIVEIRA SRM Ideologia no discurso sobre as drogas Brasília 1992 Dissertação de Mestrado Universi dade de Braília 11 ORNALDI EP Terra à vista discurso do confronto velho e novo mundo Campinas Cortez 1990 12 PECIIEUX M Analyse automatique du discours Paris Dunod 1969 13 VELHO G Duas categorias de acusação na cultura brasileira contemporânea In Figueira S coordSo ciedade e doença mental Rio de Janeiro Campus 1978 p 3745 Recebido para publicação em 1241993 Reapresentado em 24 11993 Aprovado para publicação em 731994