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Quilombos identidade étnica e territorialidade Untitled1 2442009 1634 1 Quilombos identidade étnica e territorialidade ELIANE CANTARINO ODWYER organizadora ABA FGV EDITORA ISBN 8522503753 Copyright Eliane Cantarino ODwyer Direitos desta edição reservados à EDITORA FGV Praia de Botafogo 190 14º andar 22253900 Rio de Janeiro Brasil Tels 0800217777 0XX2125595543 Fax 0XX2125595532 email editorafgvbr httpwwwfgvbreditora Impresso no Brasil Printed in Brazil Todos os direitos reservados A reprodução não autorizada desta publicação no todo ou em parte constitui violação do copyright Lei nº 5988 1ª edição 2002 EDITORAÇÃO ELETRÔNICA FA Editoração Eletrônica REVISÃO Eni Valentim Torres CAPA Ricardo Bouillet e Sergio de Carvalho Filgueiras FOTO DA CAPA Quilombos do Trombetas ErepecuruCuminá Pará APOIO Fundação Ford Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique SimonsenFGV Quilombos identidade étnica e territorialidade Eliane Cantarino ODwyer organizadora Rio de Janeiro Editora FGV 2002 296p Coedição Associação Brasileira de Antropologia Inclui bibliografia 1 Quilombos Brasil I ODwyer Eliane Cantarino II Fundação Getulio Vargas CDD 3260981 Dedico a organização deste livro aos quilombos do rio ErepecuruCuminá aqui representados na foto da capa por d Maria Roberta da comunidade negra de Jauari no Pará Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 5 Sumário Apresentação 9 Yonne de Freitas Leite e Ruben George Oliven Introdução 13 Os quilombos e a prática profissional dos antropólogos Eliane Cantarino ODwyer 1Os quilombos e as novas etnias 43 Alfredo Wagner Berno de Almeida 2Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba uma comunidade negra rural no oeste baiano 83 Sheila Brasileiro e José Augusto Sampaio 3Conceição das Crioulas Salgueiro PE 109 Vânia Rocha Fialho de Paiva e Souza 4Quilombo do Laudêncio município de São Mateus ES 141 Osvaldo Martins de Oliveira 5Jamary dos Pretos município de Turiaçu MA 173 Eliane Cantarino ODwyer e José Paulo Freire de Carvalho Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 7 6Furnas de Dionísio MS 213 Maria de Lourdes Bandeira e Triana de Veneza Sodré e Dantas 7Os quilombos do Trombetas e do ErepecuruCuminá 255 Eliane Cantarino ODwyer Anexo Breves considerações sobre o Decreto no 391201 281 Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira Sobre os autores 291 Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 8 Apresentação A diretoria da Associação Brasileira de Antropologia ABA eleita para o biênio 19982000 escolheu os direitos humanos como tema de sua gestão Tal escolha foi ditada não só pela celebração em 1998 do 50o aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem mas também pela experiência reflexiva e prática acumulada pelos an tropólogos na defesa dos grupos minoritários estudados a fim de que se cumpram os princípios da Carta Universal da qual o país é signatá rio expressos também na Constituição de 1988 O projeto Terra de Quilombos que na gestão 199496 reto mou o diálogo com a Fundação Ford foi a mola da negociação em preendida pela diretoria recémeleita de uma nova dotação destinada a dois projetos coordenados por Regina Célia Reyes Novaes na área dos direitos humanos a continuação do projeto Terra de Quilombos sob a direção de Eliane Cantarino ODwyer e a manutenção do prê mio Antropologia e Direitos Humanos Sob o tema geral direitos humanos e cidadania a contribuição dos antropólogos dois livros reunindo os resultados desses projetos foram publicados pela atual diretoria presidida por Ruben George Oliven a quem coube dar continuidade administrativa e financeira à dotação da Fundação Ford para a gestão 19982000 O primeiro deles intitulado Direitos humanos temas e perspectivas e organizado por Regina Célia Reyes Novaes inclui os pronunciamentos dos mem bros da Comissão de Direitos Humanos da ABA o levantamento Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 9 Quilombos 10 feito por Ludmilla Catella de experiências inovadoras feitas por an tropólogos na área dos direitos humanos e por fim as palestras pro feridas por especialistas especialmente convidados para o curso de formação aberto ao grande público O segundo livro Antropologia e direitos humanos organizado por Regina Novaes e Roberto Kant de Lima apresenta as monografias vencedoras do prêmio Antropologia e Direitos Humanos nas categorias de mestre e de doutor O presente volume também financiado pelo Projeto ABAFord reúne os resultados do subprojeto Terra de quilombos O envolvimento da ABA com as comunidades negras remanescentes de quilombos cujos direitos territoriais foram assegurados pela Constituição de 1988 tem uma longa história que se traduz formalmente na institucionali zação em 1994 do Grupo de Trabalho Terras de Quilombo ampli ado em 1996 com a criação da Comissão de Terras de Quilombos A finalidade da comissão era organizar e planejar as ações da ABA com relação a essa problemática bem como assessorar a diretoria em ações externas que exigissem contato com órgãos do Judiciário e do Minis tério Público visando a garantir o cumprimento das recomendações constantes em laudos de antropólogosperitos nos processos de reco nhecimento e demarcação desses territórios A gestão 19982000 fez se representar na Comissão de Assuntos da Terra de modo a incluir a questão das terras de quilombos tanto quanto a das terras indíge nas no problema da distribuição da terra no país isto é na insolú vel questão agrária que no campo tem ocasionado tantos conflitos com mortes impunes e muitas vezes anunciadas Dois encontros realizados no período 19982000 e patrocina dos pelo Projeto ABAFord antecederam e informaram a publica ção de Quilombos identidade étnica e territorialidade O primeiro o seminá rio Comunidades Étnicas Políticas de Estado e o Trabalho do Antropólogo realizado na Universidade Federal Fluminense UFF em 1o e 2 de junho de 2000 contou com a participação de 12 profis sionais envolvidos com o tema representantes do Ministério Público e um convidado especial dr Alban Bensa pesquisador da École Normale SupérieureLaboratoire de lÉcole des Hautes Études que debateu os trabalhos apresentados O segundo teve lugar na XXII Reunião Brasileira de Antropologia Universidade de Brasília 10 a Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 10 Apresentação 11 1972000 com o fórum de pesquisa Relatórios de Identificação e Laudos Antropológicos quando foram apresentados trabalhos sobre identificação e demarcação de terras indígenas e de quilombos A clara e criteriosa introdução de Eliane Cantarino ODwyer a este volume conduzirá o leitor pelos meandros teóricos e práticos da participação dos antropólogos nos projetos de identificação de terras de quilombos e os artigos aqui reunidos fornecem um guia vivo das etapas a serem cumpridas nesse mister Agradecemos a Eliane Cantarino ODwyer por seu empenho e denodo na condução deste trabalho e por ter mostrado à diretoria do período 19982000 os caminhos da administração da Fundação Ford Sua experiência anterior a nós transmitida de maneira generosa ace lerou a negociação que com sucesso mantivemos com a presidência os assessores e o corpo técnico e administrativo da Fundação Aos colegas que colaboraram neste volume e nos encontros que o antece deram relatando suas experiências e seus acertos e desacertos o nosso reconhecimento Nossos sinceros agradecimentos à Fundação Ford por sua doação que certamente reverterá em prol dessas populações historicamente so fridas e espoliadas em seus direitos e na sua condição humana Yonne de Freitas Leite Presidente da gestão 19982000 Ruben George Oliven Presidente da gestão 200002 Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 11 Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 12 Introdução Eliane Cantarino ODwyer Os quilombos e a prática profissional dos antropólogos Até recentemente o termo quilombo era de uso quase exclusivo de historiadores e demais especialistas que por meio da documentação disponível ou inédita procuravam construir novas abordagens e in terpretações sobre o nosso passado como nação A partir da Constituição brasileira de 1988 o quilombo adquire uma significação atualizada ao ser inscrito no art 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ADCT para conferir di reitos territoriais aos remanescentes de quilombos que estejam ocupando suas terras sendolhes garantida a titulação definitiva pelo Estado brasileiro Assim quilombo ou remanescente de quilombo termos usados para con ferir direitos territoriais permitem através de várias aproximações desenhar uma cartografia inédita na atualidade reinventando novas figuras do social1 Como não se trata de expressão que denomine indivíduos grupos ou populações no contexto atual seu emprego na Constituição Federal levanta a seguinte questão quem são os chama dos remanescentes de quilombos cujos direitos são atribuídos pelo dispositivo legal 1 Revel 19987 Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 13 Quilombos 14 Pode parecer paradoxal que os antropólogos que marcaram suas distâncias e rupturas com a historiografia ao definir seu campo de estudos por um corte sincrônico no presente etnográfico tenham sido colocados no centro dos debates sobre a conceituação de quilombo e sobre a identificação daqueles qualificados como remanescentes de quilombos para fins de aplicação do preceito constitucional Acontece porém que o texto constitucional não evoca apenas uma identidade histórica que pode ser assumida e acionada na for ma da lei Segundo o texto é preciso sobretudo que esses sujeitos históricos presumíveis existam no presente e tenham como condição básica o fato de ocupar uma terra que por direito deverá ser em seu nome titulada como reza o art 68 do ADCT da Constituição Fede ral de 1988 Assim qualquer invocação do passado deve correspon der a uma forma atual de existência capaz de realizarse a partir de outros sistemas de relações que marcam seu lugar num universo so cial determinado Tal aspecto presencial focalizado pela legislação tem levado os antropólogos a seguir um princípio básico fazer o reconhecimento teórico e encontrar o lugar conceitual do passado no presente2 O fato de o pressuposto legal referirse a um conjunto possível de indi víduos ou atores sociais organizados em conformidade com sua si tuação atual permite conceituálos numa perspectiva antropológica mais recente como grupos étnicos que existem ou persistem ao longo da história como um tipo organizacional segundo processos de exclusão e inclusão que possibilitam definir os limites entre os consi derados de dentro ou de fora3 Isso sem qualquer referência necessá ria à preservação de diferenças culturais herdadas que sejam facilmen te identificáveis por qualquer observador externo supostamente produzidas pela manutenção de um pretenso isolamento geográfico eou social ao longo do tempo A constituição de limites à definição de unidades étnicas pro posta por Barth não representa propriamente uma novidade mas di 2 Sahlins 199019 3 Barth 200031 Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 14 Introdução 15 fere da proposição tradicional que considera uma raça uma cultura uma linhagem e que define uma sociedade como uma unidade que rechaça e discrimina as outras O que sugere como diz igualmente Wolf 1987 um mundo de povos separados em suas respectivas sociedades e culturas os quais podem ser isolados como se fossem uma ilha para efeito de descrição etnográfica Nessa perspectiva a questão da continuidade das unidades étnicas no tempo deixaria de ser problemática sendo suas diferenças explicadas pelo isolamento existente entre elas Poderseia conceber que comunidades originá rias de quilombos mantivessem propriedades sociais e culturais her dadas de modo praticamente contínuo tanto no tempo quanto no espaço sendo as variações passíveis de descrição a partir de situações de contato Tal perspectiva tem o efeito prático de produzir um tipo de conhecimento que ao determinar o lugar de indivíduos e grupos no universo social pretende revelarlhes as identidades por eles próprios desconhecidas Todavia há algum tempo os antropólogos têm ab dicado dessa postulação que produz uma visão explicativa da totali dade impossível de ser apreendida pelos chamados nativos A partir de Barth 1969 e 2000 a persistência dos limites entre os grupos deixa de ser colocada em termos dos conteúdos culturais que encerram e definem suas diferenças O problema da contrastividade cultural passa a não depender mais de um observador externo que contabilize as diferenças ditas objetivas mas unicamente dos sinais diacríticos isto é as diferenças que os próprios atores sociais consi deram significativas Por conseguinte as diferenças podem mudar ainda que permaneça a dicotomia entre eles e nós marcada pelos seus critérios de pertença Essa abordagem tem orientado a elaboração dos relatórios de identificação os também chamados laudos antropológicos no con texto da aplicação dos direitos constitucionais às comunidades negras rurais consideradas remanescentes de quilombos de acordo com o preceito legal Em vez de emitir uma opinião preconcebida sobre os fatores sociais e culturais que definem a existência de limites é preci so levar em conta somente as diferenças consideradas significativas para os membros dos grupos étnicos como adverte Barth Assim Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 15 Quilombos 16 apenas os fatores socialmente relevantes podem ser considerados diagnósticos para assinalar os membros de um grupo e a caracterís tica crítica é a autoatribuição de uma identidade básica e mais ge ral que no caso das comunidades negras rurais costuma ser deter minada por sua origem comum e formação no sistema escravocrata Para Barth os critérios e sinais de identificação implicam a per sistência dos grupos étnicos e também uma estrutura de interação que permite reproduzir as diferenças culturais ao isolar certos seg mentos da cultura de possíveis confrontações e ao mesmo tempo sua interação em outros setores Podese alegar que essa definição das comunidades negras rurais remanescentes de quilombos como grupos étnicos atributivos que devem ser definidos a partir de sinais e emblemas considerados soci almente significativos pelo grupo e não por um olhar classificador de um observador externo dá margem a manipulações pelos atores sociais da identidade étnica Em nossas atividades de pesquisa obser vamos a partir das formulações de Barth que as identidades étnicas são igualmente imperativas não podendo ser suprimidas tempora riamente por outras definições mais favoráveis da situação de contato interétnico A observação dos processos de construção dos limites étnicos e sua persistência no caso das comunidades negras rurais também chamadas terras de preto com a vantagem de ser uma expressão nativa e não uma denominação importada historicamente e reutilizada permite considerar que a afiliação étnica é tanto uma questão de ori gem comum quanto de orientação das ações coletivas no sentido de destinos compartilhados Podese concluir como no caso precedente dos direitos indígenas que os laudos antropológicos ou relatórios de identificação sobre as comunidades negras rurais para efeito do art 68 do ADCT não podem prescindir do conceito de grupo étnico com todas as suas implicações4 Antes porém de finalizar essas considerações de caráter mais conceitual que pretendem recuperar as questões de convergência 4 Ver Oliveira 1998 2734 Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 16 Introdução 17 de horizontes entre pesquisadores e suas implicações na elaboração de laudos antropológicos ou relatórios de identificação nos casos das comunidades negras rurais remanescentes de quilombos cabe ressaltar que os grupos que orientam suas ações no sentido da aplica ção do preceito constitucional o art 68 do ADCT são freqüentemente considerados de exclusividade negra o que evoca di retamente a noção de raça há muito banida das ciências sociais pela associação entre características morfológicas os traços fenotípicos e a cultura5 Também nesse domínio a aparência exterior só importa quando sentida como característica comum constituindo portanto uma fonte de contrastividade entre os grupos Resta saber o que é especificamente étnico na oposição entre eles e nós e nos critérios de pertença que fundam esta oposição A identidade étnica tem sido diferenciada de outras formas de identi dade coletiva pelo fato de ela ser orientada para o passado6 Essa referência a uma origem comum presumida parece recuperar de certo modo a própria noção de quilombo definida pela historiografia Vale assinalar contudo que o passado a que se referem os membros desses grupos não é o da ciência histórica mas aquele em que se representa a memória coletiva7 portanto uma história que pode ser igual mente lendária e mítica O foco das investigações é o limite étnico que define o grupo No contexto da aplicação dos direitos constitucionais às comunida des negras rurais remanescentes de quilombos ou às chamadas terras de preto tal limite passa a contar igualmente com sua concomitante territorial Para refletir sobre essas questões em que a demarcação de limites e a construção de uma identidade originária dos quilombos tornam se uma referência atualizada focalizaremos situações etnográficas em que diferentes grupos se mobilizam e orientam suas ações pela aplica ção do art 68 do ADCT A participação dos antropólogos nesse 5 Seyferth 1985 6 Poutignat StreiffFenart 1998123 7 Ibid Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 17 Quilombos 18 processo por meio da elaboração dos relatórios de identificação deu se numa conjuntura de pressão do movimento negro com a criação de mecanismos de representação como a Comissão Nacional Provisória de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas CNACNRQ 1996 que passaram a exigir dos órgãos governamen tais a aplicação do preceito constitucional Os debates foram travados inclusive na esfera do Legislativo com a formulação de anteprojetos de lei visando regulamentar a aplicação do artigo Agências governamen tais como a Fundação Cultural Palmares do Ministério da Cultura e o Incra criaram suas próprias diretrizes e procedimentos para o reconhe cimento territorial das chamadas comunidades rurais quilombolas Os antropólogos por meio da Associação Brasileira de Antro pologia ABA fundada em 1955 tiveram papel decisivo no ques tionamento de noções baseadas em julgamentos arbitrários como a de remanescente de quilombo ao indicar a necessidade de se perceberem os fatos a partir de uma outra dimensão que venha a incorporar o ponto de vista dos grupos sociais que aspiram à vigência do direito atribuí do pela Constituição Federal A perspectiva dos antropólogos reuni dos no Grupo de Trabalho da ABA sobre Terra de Quilombo em 1994 é expressa em documento que estabelece alguns parâmetros de nossa atuação nesse campo De acordo com esse documento o ter mo quilombo tem assumido novos significados na literatura espe cializada e também para grupos indivíduos e organizações Ainda que tenha um conteúdo histórico o mesmo vem sendo ressemantizado para designar a situação presente dos segmentos ne gros em diferentes regiões e contextos do Brasil Contempora neamente portanto o termo quilombo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica Também não se trata de grupos isolados ou de uma popu lação estritamente homogênea Da mesma forma nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados mas sobretudo consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidia nas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio No que diz respeito à territorialidade desses grupos a ocupação da terra não é feita em termos de lotes individuais predominando seu uso Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 18 Introdução 19 comum A utilização dessas áreas obedece à sazonalização das ativi dades sejam agrícolas extrativistas ou outras caracterizando diferen tes formas de uso e ocupação dos elementos essenciais ao ecossistema que tomam por base laços de parentesco e vizinhança assentados em relações de solidariedade e reciprocidade A publicação do primeiro Caderno da ABA sobre Terra de Quilombo em 1995 ao levar em conta o campo de discussão e de ação social delineado pela aplicação do dispositivo constitucional contou com a contribuição de antropólogos que realizavam pesquisas nas chamadas comunidades negras rurais em diferentes regiões do país O presente volume representa de certo modo um desdobramento daquele pri meiro caderno e expressa a participação intensa dos antropólogos reunidos numa rede de pesquisadores através da ABA e articulados às demandas de comunidades negras rurais que por meio da CNACNRQ solicitavam aos órgãos governamentais e ao Poder Le gislativo o reconhecimento de seus direitos territoriais A disputa pela posse da terra o envolvimento de grandes empreendimentos agropecuários e madeireiros ou a pura e simples grilagem com fins de especulação imobiliária acabaram por tornar necessários os relatórios de identificação como prática administrativa de órgãos governamen tais para conferir direitos Tal prática encontrase referida no prece dente indígena dos procedimentos da Funai Há contudo uma dife rença no caso dos grupos étnicos remanescentes de quilombos Alguns relatórios de identificação das terras de quilombos foram elaborados por antropólogos pertencentes a uma rede constituída através da ABA tendo contado para sua intensa articulação com recursos da Funda ção Ford através do projeto Terra de Quilombo Tais relatórios não se resumem a peças técnicas enviadas aos órgãos de governo As ques tões implícitas em sua elaboração e as experiências concretas dos pes quisadores inseridos nessa rede foram debatidas em numerosos semi nários realizados pela ABA e em seus encontros bianuais as Reuniões Brasileiras de Antropologia A presença e participação de antropólo gos nos encontros realizados pelos representantes das comunidades negras rurais mobilizadas estas pelo reconhecimento de seus direitos constitucionais as manifestações oficiais da ABA em relação aos an teprojetos de lei e às tentativas de organismos governamentais de re Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 19 Quilombos 20 gulamentar a aplicação do art 68 do ADCT o diálogo constante com o Ministério Público Federal tudo isso tem garantido um posi cionamento independente das visões e procedimentos comprometi dos com interesses próprios aos quadros da burocracia Assim é como coordenadora do Grupo de Trabalho da ABA sobre Terra de Quilombo na gestão 199496 e membro das diferen tes comissões criadas pelas diretorias dos períodos subseqüentes as quais me confiaram a coordenação do projeto Terra de Quilombo que organizo esta nova publicação Seu propósito é levar ao público trabalhos que representam um tipo de intervenção num campo espe cífico de articulação e envolvimento do mundo intelectual com os movimentos sociais e a mobilização de grupos étnicos que reivindi cam o direito à diferença cultural e à reprodução de suas práticas econômicas e sociais bem como o respeito pelos seus saberes tradi cionais Tais saberes não se coadunam necessariamente com as con cepções pretensamente cientificistas de formas de conhecimento institucionalizadas em procedimentos administrativos de organismos governamentais e de grupos que detêm o poder econômico e político Tais agentes e agências sejam ou não governamentais conforme nos sas observações procuram em muitas situações implementar políti cas públicas capazes de definir como bem comum interesses de fato particulares em detrimento das práticas sociais e culturais dos grupos étnicos que se definem legalmente como remanescentes de quilombos No contexto da elaboração dos relatórios de identificação cumpre ainda destacar que a questão da garantia dos direitos territoriais passa a ser considerada estratégica para assegurar a existência social e cultu ral desses grupos que reivindicam a aplicação do art 68 do ADCT A participação intensa de antropólogos na luta pelo reconheci mento de direitos étnicos e territoriais de segmentos importantes e expressivos da sociedade brasileira como as comunidades negras rurais e ou terras de preto rompe com o papel tradicional desempenhado pelos grandes nomes do campo intelectual que garantem com sua autori dade o apoio às reivindicações da sociedade civil subscritando como peticionários manifestos e documentos políticos Ao contrário os antropólogos brasileiros que têm desempenhado importante papel no reconhecimento de grupos étnicos diferenciados e dos direitos Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 20 Introdução 21 territoriais de populações camponesas ao assumir sua responsabilidade social como pesquisadores que detêm um saber local8 sobre os povos e grupos que estudam fazem de sua autoridade experiencial um instru mento de reconhecimento público de direitos constitucionais Nem por isso os relatórios de identificação ou laudos antropo lógicos produzidos respectivamente na esfera dos poderes Exe cutivo e Judiciário devem ser considerados uma espécie de atesta do que garante a atribuição de direitos definidos pelo arcabouço jurídico Nos relatórios e laudos produzidos nesse contexto de afir mação dos direitos constitucionais através do cumprimento do art 68 do ADCT não há qualquer promessa da normatização e da feli cidade através da ciência e da lei com a finalidade de reforçar e estender o poder de especialistas9 Esse tipo de participação dos antropólogos como demonstram os textos aqui apresentados exige ao contrário uma dimensão interpretativa no estudo de fenômenos sociais10 devendo o investigador fornecer uma explicação para o sentimento de participação social dos grupos e para o sentido que atribuem às suas reivindicações assim como para as representações e usos que fazem do seu território Em suas pesquisas nas comunidades negras rurais os antropólogos depararamse com situações em que a categoria quilombo como objeto simbólico representa um interesse di ferenciado para os diversos sujeitos históricos de acordo com sua posição em seus esquemas de vida11 Os textos deste livro seguem o básico preceito disciplinar de submeter conceitos preestabelecidos à experiência de contextos dife rentes e particulares12 os quais permitem levantar a questão dos dife rentes usos limites e possibilidades no trabalho de pesquisa etnográfica No primeiro capítulo o autor com vasta experiência etnográfica nos casos das chamadas terras de preto no Maranhão procede a uma 8 Geertz 199911 9 Rabinow Dreyfus 1995215 10 Ibid p 219 11 Sahlins 1990187 12 Peirano 1995 Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 21 Quilombos 22 leitura crítica da representação jurídica que considera quilombo lugar de escravos fugidos segundo definição do período colonial Retoma do no plano da produção de conhecimentos de acordo com diversas fontes bibliográficas desde o clássico de Perdigão Malheiro A escra vidão no Brasil ensaio históricojurídicosocial de 1866 até trabalhos mais recentes como o de Clóvis Moura de 1966 o conceito de quilombo ficou por assim dizer frigorificado isto é composto dos mesmos elementos descritivos formulados como resposta ao rei de Portugal em virtude de consulta feita ao Conselho Ultramarino em 1740 Após uma revisão crítica dos elementos que compõem essa definição do período colonial Almeida considera diversos processos sociais e políticos que permitem discutir a construção histórica de uma autonomia camponesa fora do domínio da grande propriedade territorial e de seu poder de coerção Mostra inclusive a necessidade de um corte nos instrumentos conceituais necessários para se pensar a questão do quilombo porquanto não se pode continuar a trabalhar com uma categoria histórica acrítica nem com a definição de 1740 devendose considerar os deslocamentos ocorridos nessa definição e com o que de fato é incluindose nesse aspecto objetivo a representa ção dos agentes sociais envolvidos Da releitura das fontes docu mentais e arquivísticas aos indícios dessa idéia de quilombo en quanto processo de produção autônoma são consideradas diversas situações sociais entre as quais as terras de preto no Maranhão como no caso de Frechal Tais situações apontam para sistemas distintos e não reconhecidos legalmente de apossamento e uso comum da terra na estrutura agrária brasileira perpassados por fatores étnicos as cha madas terras de preto terras de santo e terras de índio Em diversas situações sociais apontadas pelo autor observase a ressemantização do conceito de quilombo quando se considera a autodefinição dos agentes sociais em jogo e se converte tal trajetória num fenômeno sociológico em que identidade e território seriam indissociáveis tem se uma outra ordem de fatos Em sua releitura crítica das fontes ficamos sabendo que tanto os juristas do século XIX quanto outros eruditos em suas observações diretas transcendem em certa medi da às disposições jurídicas Segundo o autor é necessário que nos libertemos da definição arqueológica da definição histórica stricto sensu e das outras definições Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 22 Introdução 23 que estão frigorificadas e funcionam como uma camisadeforça ou seja da definição jurídica dos períodos colonial e imperial e até da quela que a legislação republicana não produziu por achar que tinha encerrado o problema com a abolição da escravatura e que ficou no desvão das entrelinhas dos textos jurídicos Nessa perspectiva Almeida afastase igualmente do ideário das agências de pretensão mediadora que reduzem tudo ao compo nente agrário Tratase ao invés disso de territorialidades específi cas de grupos sociais em face de trajetórias de afirmação étnica e política Assim ao destacar sobretudo a necessidade de leituras crí ticas e uma reinterpretação jurídica da categoria quilombo incluin do uma revisão de esquemas interpretativos cristalizados no mundo erudito Almeida presta importante contribuição ao estudo desse tema o qual é também um objeto de reflexão que pressupõe uma constelação de noções operacionais próprias Nos capítulos seguintes o leitor poderá conhecer situações con cretas de mobilização de diferentes grupos pelo reconhecimento de seus direitos de acordo com o preceito constitucional Assim no se gundo capítulo os autores destacam a semelhança entre o processo de reconhecimento das comunidades negras rurais de acordo com o art 68 do ADCT e os processos de legitimação oficial de povos e terras indígenas no Nordeste intensificado nas últimas três décadas Às comunidades remanescentes de quilombo é igualmente atri buído o papel de grupo étnico elemento fundamental formador do processo civilizatório nacional Observam ainda que no âmbito dos diversos processos de reconhecimento e legitimação atualmente em curso no país de comunidades negras rurais e de seus territórios tradicionalmente ocupados o Ministério Público Federal através de suas procuradorias regionais dos Direitos do Cidadão PRDC tem constituído fórum privilegiado originador de ações judiciais que ora tramitam nas esferas competentes da Justiça Federal Mas a partici pação do profissional de antropologia tem ocorrido principalmen te na condução de processos administrativos deflagrados pelos ór gãos oficiais de proteção das denominadas minorias étnicas a Funai no caso dos povos indígenas e a Fundação Cultural Palmares em se tratando de comunidades negras descendentes de antigos Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 23 Quilombos 24 quilombos Esses laudos e pareceres administrativos também cha mados processos de identificação de grupos étnicos e dos territórios por eles reivindicados geralmente são solicitados em face da prevalência de um contexto de tensões e conflitos territoriais Contudo os autores fazem uma advertência quanto ao papel do antropólogo na realização desses laudos e perícias Ele não deve re vestirse de uma autoridade acadêmica que supostamente o capacita a infirmar ou mesmo negar a identidade de grupos étnicos e ainda definir as suas fronteiras ante outros segmentos da sociedade nacio nal pois indubitavelmente em última análise cabe aos próprios mem bros do grupo étnico se autoidentificarem e elaborarem seus pró prios critérios de pertencimento e exclusão mapeando situacionalmente as suas fronteiras étnicas Por conseguinte ao antropólogo cabe pois o papel de identificar a estruturação interna do grupo e os seus processos sociais interativos isto é não definir mas contextualizar o grupo utilizando como parâmetro as classifica ções e categorias nativas de autoidentificação Em relação à territorialidade dos grupos étnicos remanescentes de quilombo eis o que dizem os autores do mesmo modo que a etnicidade emerge tipicamente num contexto conflituoso de contato com a sociedade nacional mais ampla a idéia de um território fixo delimitado é esboçada no interior do grupo étnico quando este se vê compelido pelas frentes de expansão ou por setores politicamente influentes in teressados em suas terras a ordenálas e demarcálas o que Olivei ra classifica como processo de territorialização sob pena de assis tir impotente à sua usurpação gradual e definitiva por outrem É pois tarefa do antropólogo investigar como o território é pensado pelo grupo no presente Após a contextualização dos laudos antropológicos eou relató rios de identificação Sheila Brasileiro e José Sampaio fazem uma des crição do processo judicial e posteriormente administrativo de reco nhecimento dos direitos da comunidade negra rural de Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba Localizada a 850km de Salvador na região do oeste da Bahia município de Wanderley às margens do rio Grande a comunidade constituída por cerca de duas centenas de indivíduos conforma basicamente uma grande família extensa aglutinada em tor no de laços de consangüinidade e afinidade centralizados na lideran Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 24 Introdução 25 ça da matriarca Maria Pereira dos Santos 76 anos conhecida como Maria da Cruz 11 filhos 60 netos e 55 bisnetos A revelação à comunidade de seu direito à aplicação do art 68 do ADCT foi atribuída ao advogado que acompanhava o conflito territorial e lera a respeito da existência na região de diversos gru pos ribeirinhos cuja origem poderia facilmente remontar à época da chegada de levas de escravos oriundos do norte do estado de Minas Gerais que teriam escapado pelo rio São Francisco subindo poste riormente o rio Grande e instalandose no sopé da serra do Boqueirão na margem direita do rio numa região de difícil acesso Segundo os autores essa versão acerca da origem do grupo foi rapidamente vei culada pela mídia local como expressão de um fato histórico concre to e logo endossada pelo exprefeito de Wanderley e patrono da co munidade Após uma caracterização histórica dessa região do São Francisco e do rio Grande apresentada resumidamente pelos autores para fins desta publicação é levantada a questão da possibilidade da formação de quilombos como os de XiqueXique no lado então pernambucano Quanto à situação atual algumas categorias parti culares de autoadscrição e identificação apontam para a consti tuição progressiva de uma condição de orgulhosa independência e liberdade em contraposição ao tempo da escravidão e de sujeição O recorte étnico é esboçado pelo critério racial é tudo preto e referido a uma origem comum reconstituída pelos laços de pa rentesco com uma nêga nagô legítima bisavó materna de Maria da Cruz ascendente mais antiga dos membros da comunidade de Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba O capítulo 3 é um relatório circunstanciado da comunidade ne gra rural de Conceição das Crioulas município de Salgueiro PE a qual faz parte de uma lista inicial de 50 comunidades encaminhada pela Comissão Nacional Provisória de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas aos órgãos governamentais para aplica ção do art 68 do ADCT É importante ressaltar que uma liderança dessa comunidade do sertão pernambucano integra a Comissão Na cional Pelos depoimentos dos moradores de Conceição das Crioulas ficamos sabendo que a trajetória do grupo é marcada pelos conflitos territoriais Assim um acontecimento muito presente na memória Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 25 Quilombos 26 social do grupo é a chamada guerra dos Urias conflito entre negros e brancos que queriam se apossar das terras de Conceição Com a revolta dos negros a família dos Urias acabou por retirarse da re gião Essa versão nativa do conflito é relacionada à existência de uma escritura das terras de Conceição das Criolas à qual atribuem um caráter quase mítico Considerase ainda que a disputa pela posse da terra nessa região e o modelo consciente do grupo sobre seus limites territoriais facilitaram bastante a identificação dos pontos no campo A comunidade já tinha sua proposta elaborada mesmo antes dos primeiros contatos feitos pela equipe técnica Quanto às fron teiras territoriais o pleito da comunidade se refere à delimitação de um território de 16 mil hectares cuja dimensão vai além da espacial Souza considera a regularização do território de Conceição das Criolas uma forma de garantir o espaço social daquela comunidade ou seja uma área onde se observa um comportamento social que vem garan tindo a unidade e a identidade do grupo Na proposta de regularização fundiária apresentada pela comu nidade fica assegurado o fluxo entre os moradores dos sítios constitutivos do território por meio de uma rede social caracterizada pela presença de elementos religiosos tanto na realização de novenas quanto na participação em terreiros As referências fei tas pelos membros da comunidade aos locais relacionados às suas atividades presentes e àquelas de seus antepassados constituem in formações importantes para que seu território seja reconhecido como atrelado aos locais de significado relevante para a comunidade como por exemplo serra Velha atualmente incluída nas terras dos índios aticuns e Areias onde a comunidade tem uma área comum de plan tio No trecho próximo à serra do Umã algumas famílias têm seu roçado dentro da terra indígena aticum São famílias que mantêm relações com a população e o posto indígena já há muito tempo sem que isso constitua algum tipo de conflito Quanto à identidade quilombola em Conceição das Crioulas a representação social cons trói um mito de origem sobre a chegada à região no início do século XIX de seis crioulas que teriam fugido da escravidão pelas margens do São Francisco Souza chama a atenção para a necessida de de realizar levantamentos e estudos mais sistemáticos no que se Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 26 Introdução 27 refere às documentações histórica e cartorial mas registra a escassez de fontes documentais disponíveis O material etnográfico sugere que do ponto de vista dos morado res a legitimidade do pleito se baseia igualmente na atribuição das ter ras de Conceição das Criolas ao patrimônio da santa Nossa Senhora da Conceição constituído mediante doação Em se tratando das cha madas terras de preto terras de santo e terras de índio Almeida 1983 situações sociais não reconhecidas pela legislação agrária bra sileira o elemento étnico se faz presente na autodefinição de cada grupo por uma origem comum presumida como no caso da doação da terra da santa aos moradores de Conceição das Criolas As atividades de cunho religioso como as novenas importante acontecimento social e os festejos de Nossa Senhora da Assunção em agosto e de Nossa Senhora da Conceição em dezembro assim como a existência de terreiros ou centros que misturam elementos da umbanda do catolicis mo e da religiosidade indígena manifestamse como símbolos identitários de reafirmação étnica acionados nesse contexto O quarto capítulo apresenta um relato sobre a comunidade ne gra rural do Divino Espírito Santo localizada no município de São Mateus região norte do estado do Espírito Santo As 35 famílias e cerca de 200 pessoas relacionadas entre si por laços de parentesco consideramse descendentes do quilombo do Laudêncio nome de um ancestral comum Sobre essa comunidade existem reportagens de jornais e inclusive um documentário intitulado O último quilombo Apesar desse reconhecimento público os membros da comunidade consideram negativo o modo como a mídia os retrata ou seja como atrasados comparativamente às transformações sociais em curso As prenoções do senso comum sobre quilombo devem terse refleti do nessa caracterização do grupo numa perspectiva evolucionista a qual associa o atraso às condições de possível isolamento como garantia de preservação do passado e continuidade histórica Segundo Oliveira os dados historiográficos indicam a existência de quilombos na região de São Mateus os quais remetem a figuras lendárias como Zacimba Gaba princesa africana de Cabinda que após envenenar seu senhor fugiu com centenas de escravos e formou um quilombo na região de Itaúnas hoje pertencente ao município de Conceição da Barra Os seguidores de Zacimba tinham por missão Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 27 Quilombos 28 atacar as fazendas e as embarcações que traziam escravos para o Porto de São Mateus a fim de libertálos Ou ainda Benedito MeiaLé gua que no século XIX é citado como líder de um quilombo em São Mateus e Negro Rugério que à mesma época se aquilombou com um grupo nas terras de dona Rita Cunha e sob a proteção desta passou a negociar a farinha de mandioca por eles produzida o que lhe valeu a alcunha de rei da farinha Assim os moradores da co munidade do Divino Espírito Santo que se definem como integran tes do quilombo do Laudêncio consideram esse quilombo filiado ora a um ora a outro dos quilombos mencionados Contudo a base da identidade dos membros dessa comunidade é a relação de paren tesco a qual está estreitamente vinculada à ocupação territorial e aos critérios de pertencimento do grupo Durante o trabalho de campo o procedimento adotado por Oliveira para reconstituir o processo de ocupação territorial do grupo através da memória social pareceulhe como costurar uma colcha de retalhos pois cada morador foi fornecendo uma parte da his tória por meio de relatos da vida de seus ancestrais Tais relatos são condizentes com a noção de transmissão do patrimônio cultu ral através da memória na medida em que o grupo volta ao pas sado para reelaborar o significado do presente e de sua identidade étnica Assim festejos como o jongo de São Benedito e o reis deboi manifestamse também como símbolos identitários do gru po A demanda pela aplicação do art 68 do ADCT emerge num contexto de conflito territorial com a empresa Aracruz Celulose que promove a plantação de eucaliptos em escala industrial nessa região O capítulo 5 focaliza o povoado de Jamary dos Pretos e baseia se na realização de trabalho de campo para o levantamento de mate rial etnográfico Foi elaborado em 1993 em forma de parecer para o projeto Vida de Negro da Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos Após novo período de campo em janeiro de 1997 foi reenviado como relatório de identificação à Fundação Cultu ral Palmares do Ministério da Cultura por solicitação da Comissão Nacional Provisória de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas integrada por lideranças dos povoados e do movimen to negro do Maranhão Jamary dos Pretos localizase na microrregião de Gurupi município de Turiaçu caracterizado como área de exclu Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 28 Introdução 29 sividade negra no Maranhão onde existiu um extraordinário número de quilombos ou mocambos A memória social de seus habitantes remete à experiência histórica dos chamados mocambos termo usado para designar os lugares de moradia e refúgio dos pretos livres em contraposição às fazendas de escravos consideradas lugar da dor do trabalho forçado e da sujeição A caracterização dos grupos étnicos como categorias atributivas e identificadoras empregadas pelos próprios atores13 é exemplificada nessa situação etnográfica pela locução adjetiva dos pretos que os moradores do povoado costumam acrescentar ao nome Jamary Jamary dos Pretos ou ainda Povoado dos Pretos Essa forma de qualificação define através da autoatribuição uma identidade afir mativa e uma territorialidade própria a um grupo social etnicamente organizado Assim eles invertem as características estigmatizantes que lhes atribuem na sede do município de Turiaçu onde usualmente são conhecidos como os pretos dos campos naturais ou os pretos do Jamary designações que verificamos durante o trabalho de campo terem sido usadas de maneira irônica e depreciativa por moradores da cidade A expressão campos naturais funciona por um lado como descrição geográfica tipo de solo e vegetação por outro como refe rência ao tipo de apropriação do território dada a existência de terras de uso comum no povoado Tais referências utilizadas como crité rios negativos de apreciação da identidade social desse grupo expres sam práticas comuns e cotidianas de discriminação e preconceito a que estão submetidos em seu contato com os de fora os moradores do povoado de Jamary Através de uma lógica da contradição porém se reapropriam positivamente da avaliação estigmatizante construin do assim uma identidade social relacionada ao pertencimento étnico e à ocupação de um território exclusivo Numa perspectiva ecológica podese igualmente considerar que a designação pretos dos campos naturais referese à ocupação por esse grupo étnico de nichos distintos no ambiente natural o que deveria reduzir ao mínimo a competição por recursos14 Contudo 13 Barth 200027 14 Ibid p 40 Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 29 Quilombos 30 como indicado no texto no Jamary ocorre acirrado conflito com interesses latifundiários de grandes criadores de gado do município de Turiaçu e de empreendimentos rurais que procuram se expandir à custa dos povoados e terras de preto como no caso mencionado da disputa entre os moradores de Jamary e o projeto Ceres É nesse contexto de competição e conflito com interesses anta gônicos que se verifica a reafirmação de fronteiras étnicas e do direito a um território exclusivo Isso aqui é um povoado de pretos disse nos um morador de Jamary que recorre à ancianidade da ocupação do território e à herança da escravidão e dos mocambos para fundamen tar os direitos que os moradores possuem sobre a terra inalienável e indivisa As relações de parentesco estabelecidas entre os moradores do povoado e sua referência à situação histórica de quilombo regu lam a descendência e a herança das terras de uso comum configuran do uma situação de fato que cria direitos e garantias ao reconheci mento jurídico de propriedade da terra do povoado de Jamary Os moradores mais idosos do povoado são depositários das múltiplas versões sobre os mocambos e o tempo da escravidão Atra vés da memória coletiva esse grupo elaborou sua própria noção de quilombo que deve ser reconhecida como outro modo de conheci mento15 fundado numa experiência histórica específica e usado se gundo critérios de validade próprios ao grupo Tal modelo refletese ainda na configuração espacial do povoado de Jamary nos planos significativos de organização social e no modo como esses planos se entrecruzam tanto nas representações quanto nas ações cotidianas do grupo Desse modo os quilombos ou mocambos são considerados do ponto de vista dos moradores do povoado como locais de moradia dos chamados pretos livres que fazem parte de um conjunto forma do também pelos escravos que ficavam nas fazendas e colaboravam ativamente com os fugidos havendo assim planos de interseção orga nizacional entre ambos cativos e libertos Jamary dos Pretos expri me em sua disposição espacial essa conjunção entre os lugares de 15 Barth 199565 Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 30 Introdução 31 moradia concentrados na sede do povoado e as antigas fazendas de escravos incorporadas como centros de roçado onde segundo os mora dores de Jamary ficam hoje os seus ranchos de trabalho O diagrama do povoado desenhado por um dos informantes projeta em suas divi sões espaciais diferentes planos de organização social Nele o povoa do de Jamary é concebido em forma de dois anéis conjugados com um ponto de interseção correspondente à sede do povoado Neles se incluem o terreno trabalhado ou os centros de roçado como dizem e os campos naturais e a mata circundante Esses dois anéis conju gados estão sempre referidos ao plano de interseção entre eles a sede do povoado onde a vida comunitária se exterioriza Aí ocorrem as manifestações culturais do povoado como as festas religiosas o tam bordecriola e práticas comunitárias como o jogo de futebol domi nical É nesse plano que a comunidade demonstra o seu alto grau de integração A referência dos moradores ao passado histórico dos quilombos ou mocambos e os laços de reciprocidade e solidariedade que os unem criam um sentimento de participação comunitária e iden tidade étnica no presente A matéria do sexto capítulo resulta de uma investigação de cam po conduzida de modo interativo com a comunidade negra rural de Furnas de Dionísio para fins de aplicação do art 68 do ADCT Tratase de uma área em forma de ferradura cercada de furnas encravada na serra de Maracaju a 40km da cidade de Campo Gran de capital do estado de Mato Grosso do Sul Segundo as autoras além de topônimo Furnas de Dionísio é um etnônimo porquanto identifica os negros que ali vivem como um grupo socialmente distin to de outros grupos sociais e até dos demais negros que habitam o município a região e o país A comunidade compõese de 58 famí lias totalizando 387 pessoas segundo dados de 1997 Quanto à orientação teóricometodológica Bandeira e Dantas utilizam os conceitos de etnicidade grupo étnico e relações interétnicas para fundamentar o reconhecimento de Furnas de Dionísio como remanescente de quilombo demonstrando que a análise da história da comunidade a partir de seus próprios códigos dos códigos inter nos de sua cultura permite identificar uma espacialidade diferenciada e um modo diferenciado de integração na sociedade de classe Além Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 31 Quilombos 32 disso o mapeamento de genealogias correlacionadas ao sistema de crença revela a construção da ancestralidade mítica como foco de produção simbólica da origem e do destino A transcrição de algumas narrativas míticas coligidas durante o trabalho de campo é significativa em termos de fundamentos da ocupação das terras da construção da territorialidade dos negros de Furnas A ampliação do campo semântico da palavra furna com o significado de lugar retirado esquisito além do fato de existirem em Mato Grosso do Sul e Goiás outras comunidades negras localizadas em furnas e vãos aponta para a construção de uma territorialidade ne gra no espaço branco da sociedade escravocrata Essa prática de ocu pação que se associa à tradição de formação de quilombo implica uma dimensão política de inserção diferenciada no ordenamento es pacial mediado pela forma grupal de acesso e usos regulados por mecanismos internos de parentesco Segundo os depoimentos colhidos a comunidade de Furnas de Dionísio foi historicamente formada de grupos domésticos ligados entre si pelo parentesco Quanto às alianças matrimoniais preferen ciais com outras comunidades negras como Furnas da Boa Sorte ou outros grupos familiares de iguais os membros da comunidade de Furnas de Dionísio casaramse com parceiros que compartilhavam a pertença racial sob o enfoque da feição regional da sociedade escravista Desse modo como grupos fundamentados na descen dência mantiveram a coesão entre si através de redes de alianças e trocas matrimoniais Para Bandeira e Dantas os dados revelam um conteúdo etnográfico que fornece referencial empírico para identifi car a estrutura social da comunidade negra de Furnas de Dionísio ao modelo africano de sociedade segmentada analisado sob o enfoque das relações de poder por Balandier As linhagens são unidades constitutivas de outro segmento diferente em relação aos grupos fa miliares no caso coexistindo com grupos domésticos Ao mesmo tem po que se formavam pela união de pessoas de um mesmo tronco genealógico formavam também uma espacialidade distinta dentro do território das Furnas de Dionísio A principal atividade econômica da comunidade é a agricultura sustentada por práticas culturais de cooperação solidariedade e reci Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 32 Introdução 33 procidade Em relação a essas práticas culturais ficamos sabendo que o sistema tradicional de ajuda mútua compreende três formas prin cipais mutirão propriamente dito coluna e surpresa O texto distin gue essas três modalidades e chama atenção para o fato de que nes sas ocasiões comumente dançase catira uma dança recorrente em localidades rurais tradicionais de Minas Gerais Goiás Mato Grosso do Sul e São Paulo Além da catira antigamente dançavase ci randa engenho novo vilão cobrinha e lundu A religiosidade é considerada um traço marcante de Furnas de Dionísio Esse traço tem sido historicamente observado em comu nidades rurais negras tendo sido também documentado no relatório da bandeira que bateu o quilombo de Quariterê no final do século XVIII em Vila Bela Mato Grosso Destacam ainda que sob as práticas religiosas oficiais fluem as práticas tradicionais que o culto ao santo articulam Igualmente importante é o culto aos mor tos o culto aos antepassados que faz dos cemitérios um lugar sagra do o lugar onde as cruzes marcam seus assentamentos A crença fundamental é de que os mortos depois de uma passagem se trans formam em espíritos identidades sobrenaturais que devem ser cuida das pelos vivos Por fim Bandeira e Dantas consideram que os dados da pesquisa de campo são suficientes para identificar o paradigma africano da ordem invisível como alicerce sobre o qual incorporando crenças e influências religiosas de outras matrizes culturais os negros de Furnas de Dionísio constroem sua percepção de mundo e do seu ser no mun do A conservação de elementos de culturas africanas não é determinante na caracterização históricoantropológica de uma co munidade rural negra como remanescente de quilombo Não pode contudo ser ignorada nem relegada a segundo plano porque deverá circular em duas mãos na sociedade mais ampla pelos cami nhos oficiais do processo de titulação da terra e na comunidade pelas trilhas do seu ser no mundo da sua percepção étnica em que consciên cia de ser e comunidade etnicamente diferenciada não se separam O último capítulo originouse de um relatório destinado a ins truir os trabalhos da 6a Câmara da Procuradoria Geral da República durante nossa participação na diretoria da ABA quando coordenáva Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 33 Quilombos 34 mos o grupo de trabalho sobre Terra de Quilombo As informações nele contidas baseiamse em pesquisa etnográfica feita com as comu nidades remanescentes de quilombos dos rios Trombetas e Erepecuru Cuminá realizada em dois períodos consecutivos de fevereiro a junho de 1992 e de novembro de 1992 a fevereiro de 1993 no município de Oriximiná Pará região onde funciona o campus avan çado da UFF na Amazônia Os dados coligidos foram complementados com viagem a campo em novembro de 1995 no contexto de colaboração com os trabalhos da 6a Câmara da Procura doria Geral da República tendo sido a primeira versão do relatório apresentada durante reunião anual da Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais Anpocs em 1996 Em situação de pesquisa elaboramos uma interpretação etnográfica de que os grupos que se definem legalmente como rema nescentes de quilombos dos rios Trombetas e de seu afluente ErepecuruCuminá praticam um isolamento consciente que não pode ser explicado por quaisquer conceitos de isolado primitivo ou de isolamento geográfico social e cultural que venham a naturalizálos em face de um observador externo De fato essa forma de isolamen to consciente só adquire toda a sua significação quando relacionada à própria experiência da pesquisa etnográfica aos obstáculos enfren tados para a realização do trabalho de campo e às estratégias de que tivemos de lançar mão para obter a aceitação do grupo estando este voltado para a produção de sua própria história através das lembran ças dos quilombos e das lendas heróicas contadas pelos moradores mais velhos das comunidades como afirmação política dos seus direi tos constitucionais Sobre a experiência etnográfica procuramos inicialmente situar a forma pela qual fomos incluídos na elaboração da história do gru po a qual permitiu que tivéssemos acesso ao material etnográfico Na primeira fase do trabalho de campo a identidade histórica do grupo foi um assunto de certo modo imposto por ele e em parte o resulta do das situações da pesquisa As exigências e acasos da pesquisa de campo levaram à sua acei tação em virtude de um episódio sem precedentes ocorrido durante uma expedição aos cursos encachoeirados do ErepecuruCuminá Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 34 Introdução 35 sugerida pelos membros do grupo Ao fornecerlhes os dados de via jantes contribuímos de certo modo involuntariamente para um acha do na região situada acima da grande quedadágua do Chuvisco onde foram encontrados vestígios arqueológicos de uma ocupação muito antiga Esse sítio havia pertencido a Figênia citada como uma das mocambeiras da fuga e foi localizado pelo entrecruzamento das infor mações que líamos no relatório de uma viagem empreendida em 1902 e o conhecimento que os negros possuíam da cobertura florestal de mata virgem e áreas de antigas capoeiras A descoberta dessa evidên cia etnográfica foi considerada decisiva para a aceitação da pesquisa Tanto que ao descermos as cachoeiras e visitarmos os moradores das comunidades situadas na parte mansa do rio navegável eles passaram a falar mais livremente sobre seus antepassados e o que lhes contavam os pais e avós Esse gosto pelas origens constituíase assim em moeda de troca entre nós da pesquisa e nossos informantes no contexto da inclusão dos negros do ErepecuruCuminá no processo de reconheci mento de seus direitos territoriais já em curso para as comunidades negras do chamado rio grande o Trombetas Cabe destacar que na situação de pesquisa não procuramos deliberadamente a existência de provas materiais que comprovassem a formação de quilombos na região A constatação de vestígios ar queológicos surgiu como resultado da própria relação de pesquisa Desse modo constituise numa evidência etnográfica sobre o passa do apropriada pelo grupo no presente na construção do que chama de a história dos princípios Esse tipo de evidência etnográfica é estranho a qualquer idéia de comprovação arqueológica para aplicação do art 68 do ADCT Na 21a Reunião Brasileira de Antropologia realizada em Vitória ES de 5 a 941998 os antropólogos reunidos no grupo de trabalho Terra de Quilombo já haviam se posicionado contra o laudo encomendado pela Companhia Energética de Minas Gerais Cemig a um renomado arqueólogo que participou conosco do debate Em seu trabalho ele negava o direito da comunidade de Porto Corís município de Leme do Prado no vale do Jequitinhonha Minas Gerais atingida pelo pro jeto de construção da barragem de Irapé à sua identificação como Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 35 Quilombos 36 remanescente de quilombo Os argumentos contrários ao reconhe cimento da comunidade baseavamse na inexistência de vestígios ar queológicos deliberadamente procurados nas terras ocupadas pelo grupo particularmente em uma formação rochosa onde havia uma caverna que poderia na visão daquele arqueólogo ter sido um possí vel esconderijo de escravos Esse lugar contudo não estava investido de qualquer significado importante para o próprio grupo segundo relato do antropólogo que elaborou o relatório de identificação sobre a comunidade de Porto Corís para a Fundação Cultural Palmares do Ministério da Cultura No contexto desse debate a procura dos critérios ditos objeti vos da identidade étnica não deve fazer esquecer que na prática social esses critérios por exemplo a língua são objeto de representa ções mentais quer dizer de atos de percepção e de apreciação de conhe cimento e de reconhecimento em que os agentes investem os seus interesses e os seus pressupostos e de representações objetais em coisas emblemas bandeiras insígnias etc ou em atos estratégias interessa das de manipulação simbólica que têm em vista determinar a repre sentação mental que os outros podem ter dessas propriedades e dos seus portadores Em outras palavras as características que os etnólogos e os sociólogos objetivistas arrolam funcionam como sinais emble mas ou estigmas logo que são percebidas e apreciadas como o são na prática Devese assim romper com as prénoções da sociolo gia espontânea entre a representação e a realidade com a condição de se incluir no real a representação do real ou mais exatamente a luta das representações no sentido de imagens mentais mas também de manifestações sociais destinadas ao reconhecimento coletivo Bourdieu 19891123 Essas considerações servem para situar os debates que os antro pólogos têm enfrentado no campo de aplicação dos direitos constitu cionais às comunidades negras rurais remanescentes de quilombos Entre as questões abordadas neste último capítulo cabe destacar o disciplinamento das práticas culturais extrativistas dos negros dos rios Trombetas e ErepecuruCuminá consideradas transgressões à legislação ambiental a partir de 1979 e 1989 com a decretação res pectivamente da Reserva Biológica do Trombetas e da Floresta Na Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 36 Introdução 37 cional de SaracáTaquera A vigilância exercida sobre os negros do Trombetas por organismos governamentais como o Ibama tem cer ceado as práticas culturais de pesca caça e plantio Essa é uma forma de operação do poder no espaço que remete ao modelo do panopticon de Bentham analisado por FoucaultRabinow Dreyfus 1995 Nesse capítulo desenvolvemos ainda uma argumentação sobre os critérios de pertencimento territorial e a produção de diferenças culturais entre unidades em contraste os chamados remanescentes de quilombos e os colonos ribeirinhos de Oriximiná Em seguida é abordada a construção simbólica de um território unificado e sob o controle desse grupo étnico remanescente de quilombo dos rios Trom betas e ErepecuruCuminá através da ação de seus profetas e curadores conhecidos como sacacas As referências a um tempo histórico e mítico fazem de imponentes paredões talhados à beira do rio ErepecuruCuminá um monumento do passado marco memorial inscrito no espaço que os define como comunidades territoriais for temente enraizadas Neste livro o leitor encontrará também uma interpretação jurí dica do Decreto no 3912 de 1092001 feita pela dra Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira procuradora regional da República e membro da 6a Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal Tratase de importante contribuição aos debates sobre a aplicação dos direitos constitucionais relativos ao art 68 do ADCT Já em 1999 na VI Reunião Regional de Antropólogos do Norte e Nordeste a ABA apresentara um documento tornando público o seu desacordo e estranhamento com os termos do anteprojeto de decreto aberto à consulta pública pela Casa Civil da Presidência da Repúbli ca sobre procedimentos administrativos para identificação e reco nhecimento das comunidades negras rurais remanescentes de quilombos o anteprojeto de decreto retrocede a uma visão restritiva de quilombo cerceando direitos Desrespeita toda a discussão ante rior sobre a matéria inclusive na definição de comunidade remanescente dos quilombos Segundo o anteprojeto de decreto a ocupação do terri tório deve necessariamente datar de antes da Abolição da Escravatu ra Esse procedimento que estabelece limites temporais usurpa os direitos preconizados pela Constituição Herdeiros do debate sobre Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 37 Quilombos 38 terras indígenas consolidamos uma visão de que tanto os povos indí genas quanto os remanescentes de quilombos constituem grupos ét nicos conceitualmente definidos pela antropologia como um tipo or ganizacional que confere pertencimento através de normas e meios empregados para indicar afiliação ou exclusão Não se trata portan to de vestígios arqueológicos ou fósseis a serem datados O Decreto no 3912 que regulamenta as disposições relativas ao processo administrativo para identificação dos remanescentes das comunidades de quilombos e para reconhecimento definição de marcação titulação e registro imobiliário das terras por eles ocupa das incide nas mesmas restrições anteriormente apontadas no docu mento da ABA Assim consideramos a análise da dra Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira extremamente valiosa porquanto demons tra uma convergência de pontos de vista entre a prática antropológica e a interpretação de um membro do Ministério Público Federal in cumbido da defesa da ordem jurídica do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis segundo o art 127 da Constituição Federal Para concluir cabe dizer que este livro pretende cumprir o pa pel de um estranhamento16 em relação às categorias de análise historiográfica e aos modelos interpretativos do discurso jurídico dominante sobre quilombo Contudo as chamadas comunidades re manescentes de quilombos não deixam de ser objetos problemáti cos17 do ponto de vista da prática de pesquisa antropológica É preciso reconhecer os limites a esta impostos quando se leva em conta que os problemas são em princípio definidos numa esfera jurídica de aplicação dos direitos constitucionais Contudo abrem todo um campo de possibilidades para análise e interpretação a partir da pro blemática teórica dos estudos sobre grupos étnicos etnicidade e rela ções interétnicas Tais conceitos são como instrumentos de distan ciamento para encarar criticamente a realidade sem se deixar tragar por ela18 16 Revel 199836 17 Revel 199838 18 Ginzburg 200112 Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 38 Introdução 39 Os relatórios de identificação adotam igualmente o método de estudo de comunidades como formato para o trabalho de campo na antropologia19 mas não deixam de incorporar uma análise crítica dos estudos de comunidades no Brasil Tais estudos apresen tam dificuldades quanto à definição dos limites da comunidade ge ralmente concebidos em termos administrativos ou como uma área ecológica Já os trabalhos aqui apresentados partem do pressuposto de que se é verdade que a comunidade não prescinde de uma base territorial isso não significa que os seus limites sejam dados a partir dela Pelo contrário a própria delimitação espacial de uma comuni dade existe enquanto materialização de limites dados a partir de rela ções sociais20 Vale ressaltar que os relatórios de identificação privilegiam o modelo nativo servindose de técnicas de observação etnográfica que introduzem uma dimensão interpretativa na abordagem de situações sociais A perspectiva dominante é aquela segundo a qual a conceituação não deveria estar fundada exclusivamente numa teoria do objeto o objeto conceituado não é o único critério de uma boa conceituação Temos de conhecer as condições históricas que moti vam nossa conceituação Necessitamos de uma consciência histórica da situação presente De qualquer maneira não se trata apenas de uma questão teórica mas de uma parte de nossa experiência21 Se por um lado os relatórios aqui apresentados não constituem em sua maioria pesquisas orientadas pelas exigências do campo aca dêmico por outro situamse no âmbito das ações coordenadas pela ABA as quais prevêem a colaboração entre antropólogos e a Procura doria Geral da República no que diz respeito ao reconhecimento dos direitos de grupos étnicos e sociais Desse modo constituem um caso particular de possibilidade de uma antropologia da ação Oliveira 1978212 na qual diferentemente da chamada antropologia apli cada menos comprometida com as populações às quais se refe 19 Barth 2000184 20 Meyer 197916 21 Foucault em Rabinow Dreyfus 1995232 Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 39 Quilombos 40 re o antropólogo não perde sua base acadêmica portador que é de sólida formação na disciplina fato que o torna um profissional controlado pela comunidade científica Os relatórios de identificação sobre comunidades remanescentes de quilombos elaborados pelos antropólogos a partir de uma rede formada através do projeto ABA Ford não representam um afastamento das preocupações teóricas e metodológicas da disciplina estando relacionados à responsabili dade social do antropólogo em suas atividades profissionais Os relatórios de identificação ou de uma perspectiva mais geral os chamados laudos antropológicos podem ser considerados formas de intervenção fora da esfera acadêmica mas implicam igual mente o trabalho de pesquisa antropológica Não se tem aí uma linha divisória rígida entre o conhecimento antropológico e outras formas de saber aplicado e sim um ziguezaguear entre ambos As sim certas pesquisas visando à elaboração de relatórios de identifi cação para aplicação do art 68 do ADCT como Bonsucesso do negros MA e Mocambo de Porto das Folhas SE transforma ramse em teses de mestrado e doutorado em antropologia Os relatórios de identificação e os laudos antropológicos têm que se adequar ao fator tempo bem mais exíguo do que nas pesquisas acadêmicas Na verdade como disse Tomk Lask em entrevista a Fredrik Barth o tempo é outro problema na antropologia Simples mente não é possível se tornar instantaneamente especialista em algu ma coisa Você precisa de pelo menos três meses para ter um insight a respeito de algum problema Ao que Barth responde Mas você só precisa de cinco minutos para articular uma posição um argu mento e nós deveríamos nos dispor a fazer isso mais vezes Deve ríamos fazer uma crítica comparável à argumentação de um promo tor em vez de ficar dizendo Preciso de um ano no campo dois para escrever e depois lhe digo o que acho Caricaturo um pouco Acho porém que parte da resposta a esse problema é estar prepara do de antemão Deveríamos pensar mais em termos da relevância política e da aplicabilidade das coisas bem antes de sermos indaga dos por alguém Desse modo no momento em que a questão nos for feita teremos competência para responder Vejo uma falha na Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 40 Introdução 41 formação dos antropólogos pois nela isso quase sempre é ignora do Como conseqüência a impotência de uma geração se reproduz na próxima Mais adiante porém Barth afirma que nunca deve mos incluir na negociação política nossas posições morais ou dis ciplinares básicas22 Assim ao mesmo tempo em que pretendem contribuir para o conhecimento de situações etnográficas específicas os autores dos textos aqui reunidos reconhecem que ainda resta muito a fazer nesse campo de estudos como trabalhos de campo mais intensos e em maior quantidade Referências bibliográficas Almeida Alfredo Wagner Berno de Terras de preto terras de santo terras de índio uso comum e conflito In Cadernos do NaeaUfpa Belém 1983 p 16396 Augé Marc Nãolugares introdução a uma antropologia da supermodernidade Cam pinas Papirus 1994 Barth Fredrik Introduction In Barth F ed Ethnic groups and boundaries the social organization of culture difference Bergen Universitets Forlaget London George Allen Unwin 1969 p 938 Other knowledge and other ways of knowing Journal of Antropological Research Atlanta Emory University 51 1995 GA 30322 O guru o iniciador e outras variações antropológicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 Bourdieu Pierre O poder simbólico Lisboa Rio de Janeiro Difel 1989 Geertz Clifford O saber local novos ensaios em antropologia interpretativa 2 ed Petrópolis Vozes 1999 Ginzburg Carlo Olhos de madeira nove reflexões sobre a distância São Paulo Com panhia das Letras 2001 22 Barth 20002268 Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 41 Quilombos 42 Meyer Doris Rinaldi A terra do santo e o mundo dos engenhos estudo de uma comuni dade rural nordestina Rio de Janeiro Paz e Terra 1979 ODwyer Eliane Cantarino Remanescentes de quilombos do rio Erepecuru o lugar da memória na construção da própria história e de sua identidade étnica In Brasil um país de negros Rio de Janeiro Pallas Salvador Ceao 1999 Oliveira Roberto Cardoso de A sociologia do Brasil indígena Rio de Janeiro Tempo Brasileiro Brasília UnB 1978 Oliveira João Pacheco As sociedades indígenas e seus processos de territorialização In III Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste Belém jun 1993 org Indigenismo e territorialização Rio de Janeiro Contra Capa 1998 Peirano Mariza A favor da etnografia Rio de Janeiro RelumeDumará 1995 Poutignat Philippe StreiffFenart Jocelyne Teorias da etnicidade São Paulo Unesp 1998 Rabinow Paul Dreyfus Hubert Michel Foucault uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica Rio de Janeiro Forense 1995 Revel Jacques A invenção da sociedade Lisboa Difusão Editorial 1989 org Jogos de escalas a experiência da microanálise Rio de Janeiro FGV 1998 Sahlins Marshall Ilhas de história Rio de Janeiro Jorge Zahar 1990 Seyferth Giralda A antropologia e a teoria do branqueamento da raça no Brasil Revista do Museu Paulista 308198 1985 Wolf R Eric Europa y la gente sin historia México Fondo de Cultura Económica 1987 Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 42 C A P Í T U L O 1 Os Quilombos e as Novas Etnias Alfredo Wagner Berno de Almeida é necessário que nos libertemos da definição arqueológica De maneira resumida podese asseverar que as duas categorias bási cas usualmente utilizadas no Brasil para se pensar a estrutura agrária emanam do Censo Agropecuário do IBGE e das estatísticas cadastrais do Incra A primeira é uma categoria censitária referente a estabeleci mento1 e a segunda uma categoria cadastral com finalidade tributária A primeira versão deste texto foi apresentada ao grupo de trabalho Terra de Quilombos da ABA em 1996 e no âmbito do projeto ABAFundação Ford coordenado por Eliane C ODwyer Foi posteriormente discutida em seminá rio interno do ISA organizado por Sérgio Leitão em janeiro de 1999 e divulgada como Documentos do ISA 5 sob o título Direitos territoriais das comunidades negras rurais A atual versão contendo revisões achegas e alterações na ordem de exposição foi debatida na reunião da ABA realizada em 1998 em Vitória ES 1 Desde 1975 na introdução aos censos agropecuários temse a conceituação das categorias censitárias Sublinhese que a noção de estabelecimento vem sendo utilizada desde que em 1950 o Recenseamento Geral envolveu dentre outros os censos demográfico e agrícola Consoante estes censos considerouse como estabelecimento agropecuário todo terreno de área contínua independente do ta manho ou situação urbana ou rural formado de uma ou mais parcelas subor dinado a um único produto onde se processasse uma exploração agropecuária ou seja o cultivo do solo com culturas permanentes ou temporárias inclusive hortaliças e flores a criação recriação ou engorda de animais de grande e médio Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 43 Quilombos 44 referente a imóvel rural2 Até 1985 com as medidas concernentes ao Plano Nacional de Reforma Agrária da Nova República3 tudo que porventura pudesse ser registrado na área rural compreendendo dominialidade ou uso de recursos estaria classificado sob o princípio ordenador dessas duas categorias Naquele mesmo ano entretanto quando se foi constituir o Cadastro de Glebas do Incra houve algu ma dificuldade no reconhecimento de situações que estavam se im pondo pela via do conflito social e não correspondiam exatamente aos critérios norteadores daquelas categorias classificatórias Tais si tuações desdiziam tanto preceitos jurídicos já instituídos quanto ma nuais de orientação para manejo e uso dos recursos naturais Havia formas de apropriação dos recursos da natureza que não eram indivi dualizadas como no caso de imóvel rural baseado na idéia de proprie dade nem estavam apoiadas na noção de unidade de exploração in dependentemente da dominialidade tal como o IBGE definia estabelecimento em termos de categoria censitária Entre essas situações de conflito surgi ram algumas que o próprio MiradIncra através do Cadastro de Glebas sob forte pressão dos movimentos camponeses4 acabou ten porte a criação de pequenos animais a silvicultura ou o reflorestamento a extração de produtos vegetais Excluíramse da investigação os quintais de resi dências e hortas domésticas E as áreas confinantes sob a mesma administra ção ocupadas segundo diferentes condições legais próprias arrendadas ocu padas gratuitamente foram consideradas um único estabelecimento 2 O Cadastro de Imóveis Rurais do Incra adota desde 1966 a seguinte definição operacional Imóvel rural para os fins de cadastro é o prédio rústico de área contínua formado de uma ou mais parcelas de terra pertencente a um mesmo dono que seja ou possa ser utilizado em exploração agrícola pecuária extrativa vegetal ou agroindustrial independente de sua localização na zona rural ou urbana do município As restrições são as seguintes os imóveis localizados na zona rural e cuja área total seja inferior a 5000m2 não são abrangidos pela classificação de imóvel rural e aqueles localizados na zona urbana somente serão cadastrados quando tiverem área total igual ou superior a 2ha bem como produção comercializada 3 Ver Decreto no 91766 de 10101985 4 A Contag realizou o IV Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais de 25 a 30 de maio de 1985 em Brasília Destaquese que o Conselho Nacional dos Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 44 Os Quilombos e as Novas Etnias 45 do que reconhecer sob uma rubrica peculiar denominada ocupações especiais Da intensidade dos antagonismos e da dificuldade dos órgãos fundiários em administrálos começa a surgir de modo incipiente um critério classificatório capaz de comportar situações consideradas fora do comum marginais ou que não encontravam reconheci mento pleno no universo daquelas categorias mencionadas A ele corresponde uma expressão ao mesmo tempo peculiar e genérica ca paz de comportar outras situações até então nãoreconhecidas em bora legítimas As situações que transcendiam ao domínio individual e que não correspondiam exatamente às formas de propriedade pre vistas a saber condominial sociedade anônima e sociedade limi tada e cooperativa e que não equivaliam à posse considerada co munitariamente não poderiam pois ficar mais em suspenso Essas ocupações especiais contemplaram as chamadas terras de uso co mum que não correspondem a terras coletivas no sentido de inter venções deliberadas de aparatos de poder nem a terras comunais no sentido emprestado pela feudalidade Os agentes sociais que assim as denominam o fazem segundo um repertório de designações que variam consoante as especificidades das diferentes situações Podese adiantar que compreendem pois uma constelação de situações de apropriação de recursos naturais solos hídricos e florestais utiliza dos segundo uma diversidade de formas e com inúmeras combina ções diferenciadas entre uso e propriedade e entre o caráter privado e comum perpassadas por fatores étnicos de parentesco e sucessão por fatores históricos por elementos identitários peculiares e por cri térios políticoorganizativos e econômicos consoante práticas e re presentações próprias Assim ficou aparentemente firmada a expres são oficial ocupações especiais que designava entre outras situações as chamadas terras de preto terras de santo e terras de índio tal como definidas Seringueiros foi fundado formalmente em 17101985 ou seja uma semana após o lançamento do PNRA relativizando a noção de módulo rural O Mo vimento dos SemTerra por sua vez foi fundado em 1984 e realizou seu I Congresso em 1985 na cidade de Curitiba PR pressionando a timidez reformista Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 45 Quilombos 46 e acatadas pelos próprios grupos sociais que estavam classificados em zonas críticas de tensão social e conflito O Cadastro de Glebas deu pois a entender que contemplaria essas situações mas tal não ocorreu A partir mesmo de 1987 observase um certo refluxo dessa pressão dos movimentos sociais os interesses ruralistas retomam a iniciativa há alterações no Mirad e os termos de negociação dos con flitos revelam mediadores debilitados com as malsucedidas e antidemocráticas comissões agrárias O desdobramento que aqui nos interessa mais de perto por revelarse restritivo e limitante concerne à dificuldade de reconhecimento das chamadas terras de preto Tratase da aprovação em outubro de 1988 do art 68 do Ato das Disposi ções Constitucionais Transitórias um dispositivo mais voltado para o passado e para o que idealmente teria sobrevivido sob a designa ção formal de remanescentes das comunidades de quilombos Dentro dessa moldura de passadismo no entanto havia dubie dades e problemas que se colocaram desde logo rompendo com a idéia de monumentalidade e sítio arqueológico que dominara o uni verso ideológico dos legisladores Pôdese perceber que ao contrário do imaginado pelos legisladores nada havia de autoevidente Inda gações multiplicaramse num amplo debate Quais eram os instru mentos operacionais para se efetivar essa questão colocada na ordem do dia constitucional Como distinguir com acurácia as situações objeto da ação de titulação definitiva Qual o esquema interpretativo disponível e apropriado para dar conta dessa contingência histórico sociológica Quer dizer qual o conceito de quilombo que estava em jogo Ora as definições com pretensão classificatória são por princí pio arbitrárias e sempre demandam disputas dispondo em campos opostos os interesses em questão E foi o que sucedeu a partir da retomada das mobilizações camponesas pós1988 nas quais o fator étnico foi publicizado e tornado um componente dos critérios políti coorganizativos5 As situações concretas de conflito levaram ao dissenso em torno do conceito de quilombo e dos procedimentos operacionais revelando o grau de organização das forças sociais que 5 Para maiores explicações ver Almeida 1989 Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 46 Os Quilombos e as Novas Etnias 47 recusavam o caráter restritivo e limitante do único instrumento legal produzido após a abolição de 1888 o qual se refere a direitos sobre a terra por parte de exescravos e seus descendentes Ganharam visibili dade nesse debate as primeiras associações voluntárias e as identida des coletivas que revelavam a condição de pertencimento a grupos sociais específicos e que viriam a compor a partir de 1994 um movi mento social quilombola de abrangência nacional No plano da produção de conhecimentos importava saber qual seria em primeiro lugar o conceito veiculado pelas fontes biblio gráficas disponíveis e qual seria a forma com que esse conceito estaria sendo usado comumente por associações voluntárias da sociedade civil partidos políticos e entidades de representação dos trabalhado res E mais como estaria sendo acionado esse conceito pelos opera dores do direito e qual seria a forma específica do discurso jurídico a respeito Os primeiros estudos levaram a uma referência histórica do pe ríodo colonial Quase todos os autores consultados do presente ou do passado desde o clássico de Perdigão Malheiro A escravidão no Brasil ensaio histórico jurídico social que é de 1866 até os recentes traba lhos de Clóvis Moura de 1996 trabalhavam com o mesmo con ceito jurídicoformal de quilombo um conceito que ficou por assim dizer frigorificado Esse conceito composto de elementos descriti vos foi formulado como uma resposta ao rei de Portugal em virtu de de consulta feita ao Conselho Ultramarino em 1740 Quilombo foi formalmente definido como toda habitação de negros fugidos que passem de cinco em parte despovoada ainda que não tenham ran chos levantados e nem se achem pilões nele6 6 Apresentamos a seguir o alvará de 3 de março de 1741 tal como reproduzido por Joaquim Felício dos Santos em suas Memórias do distrito diamantino Eu El Rei faço saber aos que este alvará virem que sendome presentes os insultos que no Brasil cometem os escravos fugidos a que vulgarmente chamam calhambolas passando a fazer o excesso de se juntarem em quilombos e sendo preciso acudir com remédios que evitem esta desordem hei por bem que a todos os negros que forem achados em quilombos estando neles voluntaria Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 47 Quilombos 48 Ora essa definição contém basicamente cinco elementos que podem ser assim sintetizados7 o primeiro é a fuga isto é a situação de quilombo sempre estaria vinculada a escravos fugidos O segundo é que quilombo sempre comportaria uma quantidade mínima de fu gidos a qual tem que ser exatamente definida e nós vamos veri ficar como é que ocorrem variações dessa quantidade no tempo Em 1740 o limite fixado correspondia a que passem de cinco O ter ceiro consiste numa localização sempre marcada pelo isolamento geo gráfico em lugares de difícil acesso e mais perto de um mundo natu ral e selvagem do que da chamada civilização Isso vai influenciar toda uma vertente empirista de interpretação com grandes preten sões sociológicas que conferiu ênfase aos denominados isolados negros rurais marcando profundamente as representações do senso comum que tratam os quilombos fora do mundo da produção e do trabalho fora do mercado Esse impressionismo gerou outro tipo de divisão que descreve os quilombos marginalmente fora do domínio físico das plantations O quarto elemento referese ao chamado ran cho ou seja se há moradia habitual consolidada ou não enfatizando as benfeitorias porventura existentes E o quinto seria essa premissa nem se achem pilões nele Que significa pilão nesse contexto O pilão enquanto instrumento que transforma o arroz colhido em ali mento representa o símbolo do autoconsumo e da capacidade de reprodução Sob esse aspecto gostaria de sublinhar que foi a partir de mente se lhes ponha com fogo uma marca em uma espádua com a letra F que para este efeito haverá nas câmaras e se quando for executar esta pena for achado já com a mesma marca se lhe cortará uma orelha tudo por simples mandado do juiz de fora ou ordinário da terra ou do ouvidor da comarca sem processo algum e só pela notoriedade do fato logo que do quilombo for trazi do antes de entrar para a cadeia Aires da Mata Machado Filho utiliza este alvará para distinguir entre quilombola e garimpeiro em O negro e o garimpo em Minas Gerais livro que começou a elaborar em 1928 O jurista Celso de Maga lhães que é patrono do Ministério Público do estado do Maranhão em 1869 compôs um poema inspirado no Quilombo de São Benedito do Céu cujo título reproduz a designação formalmente adotada no mencionado alvará ou seja os calhambolas 7 Para um aprofundamento ver Almeida 1996 Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 48 Os Quilombos e as Novas Etnias 49 uma pesquisa sobre conflitos envolvendo famílias camponesas que representam simultaneamente unidades familiares de trabalhopro dução e de consumo que cheguei às denominadas terras de preto Um dado de pesquisa é que nessas situações sociais o pilão traduz a esfera de consumo e contribui para explicar tanto as relações do grupo com os comerciantes que atuam nos mercados rurais quanto sua contradi ção com a grande plantação monocultora Aliás ao contrário do que imaginaram os defensores do isolamento como fator de garantia do território foram essas transações comerciais da produção agrícola e extrativa dos quilombos que ajudaram a consolidar suas fronteiras físicas tornandoas mais viáveis porquanto acatadas pelos segmentos sociais com que passavam a interagir Dessa forma esses cinco elementos funcionaram como definiti vos e como definidores de quilombo Jazem encastoados no imaginário dos operadores do direito e dos comentadores com pretensão cientí fica Daí a importância de relativizálos realizando uma leitura críti ca da representação jurídica que sempre se mostrou inclinada a inter pretar o quilombo como algo que estava fora isolado para além da civilização e da cultura confinado numa suposta autosuficiência e negando a disciplina do trabalho No que diz respeito à questão da moradia e à questão da quanti dade mínima o próprio jurista Perdigão Malheiro faz uso da idéia de reunião ou seja o quilombo como uma ação coletiva de moradia trabalho e luta opondose não somente aos mecanismos repressores da força de trabalho mas principalmente à lógica produtiva da plantation A ação deliberada de fuga desdobrase noutro elemento estratégico qual seja a área de cultivo também designada roça Assim embora a chamada roça não apareça como elemento característico desses quilombos em conformidade com o discurso jurídico que busca ilegitimálos como agrupamentos de vadios que negam o trabalho existe copiosa documentação que enfatiza as áreas de cultivo e demais benfeitorias dos quilombolas Nos relatos militares observase que em algumas campanhas bélicas na segunda metade do século XIX os quilombos foram considerados como presa de guerra Suas edificações e áreas de cultivo foram consideradas necessárias como no caso do quilombo Limoeiro para constituir as colônias abrigando as fa mílias de migrantes cearenses fugidos da seca de 1877 e assegurando Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 49 Quilombos 50 lhes as facilidades de uma primeira colheita8 As tropas de linha im periais não deviam destruir as benfeitorias dos quilombos Ao con trário deviam cingir sua ação ao afugentamento dos quilombolas Assim a ação militar contra os quilombos consistia numa etapa ini cial de projeto de colonização Havia um reconhecimento explícito do trabalho através das benfeitorias o governo provincial do Maranhão colocava dentro da casa de um quilombola afugentado pelas tropas um cearense recémmigrado que passava naturalmente a usar o mesmo pilão o mesmo poço de água a mesma roça os mesmos ca minhos que levavam às atividades extrativas na mata Estáse diante de uma continuidade da condição camponesa que evidencia um modo de reconhecimento do quilombo como unidade produtiva Os relatos militares como resultados de uma ação direta dis põem assim de descrições mais detalhadas sobre a vida nos quilombos Tal como os militares os juristas na sociedade colonial também re presentavam o que se tinha de informação mais pormenorizada e fi dedigna Os inquéritos nos quais eram tomados depoimentos aos quilombolas aprisionados constituíam uma de suas fontes bem como as verificações in loco e observações diretas a partir de viagens oficiais Assim além de Perdigão Malheiro vejase Tavares Bastos que em O vale do Amazonas editado em 1866 registrou no Baixo Amazonas escravos fugidos e agrupados nos denominados mocambos que comercializavam às escondidas com os regatões que subiam o rio Trombetas ou vinham intercambiar produtos no próprio porto de Óbidos Reforçam esses aspectos produtivos as observações de Per digão Malheiro no livro já mencionado as quais se referem aos dados diretamente levantados por ele assinalando que no caso brasileiro raramente se encontrava o escravo individualizado Em verdade havia famílias de escravos o que era uma situação completamente diferen te em termos de organização da produção daquelas formas escravistas que compreendiam apenas indivíduos9 8 Ver Almeida 1983 9 Os naturalistas e viajantes que percorreram o interior do Brasil no século XIX também registraram a partir de observação direta características semelhantes a essas assinaladas pelos juristas e militares O botânico von Martius e o zoólogo Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 50 Os Quilombos e as Novas Etnias 51 Eis outro elemento a ser enfatizado a unidade familiar que su porta um sistema produtivo específico que vai conduzir ao acampo nesamento com o processo de desagregação das fazendas de algodão e canadeaçúcar e com a decorrente diminuição do poder de coerção dos grandes proprietários territoriais Tal sistema de produção mais livre e autônomo baseado no trabalho familiar e em formas de coo peração simples entre diferentes famílias achase intimamente vincu lado ao deslocamento do conceito de quilombo Mais que possíveis laços tribais10 temos nos quilombos instâncias de articulação entre essas unidades de trabalho familiar que configuram uma divisão de trabalho própria Do meu ponto de vista a questão do denominado quilombo hoje passa também pelo entendimento do sistema eco nômico intrínseco a essas unidades familiares que produzem concomitantemente para o seu próprio consumo e para diferentes circuitos de mercado Considerando que tanto escravos quanto quilombolas exerciam atividades agrícolas e extrativas de autoconsumo podese repensar o argumento dos historiadores econômicos de que nos momentos de grande elevação do preço do algodão ou da canadeaçúcar para o senhor compensava assegurar a alimentação do escravo por vias exter nas isto é comprando a produção alimentar do campesinato perifé rico à grande plantação e dos comerciantes que transacionavam inclu sive com quilombolas von Spix que viajaram por terra do Rio de Janeiro a Belém entre 1817 e 1820 produzem inúmeros relatos sobre aspectos da escravidão nas fazendas e inclu sive sobre preto fugido O biólogo Charles Darwin em 1831 viajando pelo interior do estado do Rio de Janeiro antes de chegar à lagoa Maricá menciona um caso de resistência na destruição de um quilombo localizado num enorme morro de granito Também há registros similares de Auguste de SaintHilaire 1839 em sua viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e de Minas Gerais O discurso dos naturalistas entretanto em virtude de não ter suscitado interven ções diretas dos poderes constituídos deve ser estudado separadamente consi derando o propósito do presente texto 10 Amaral 1915 tenta inventariar o que ele chama de tribos africanas e estabe lece algumas relações entre elas e as rebeliões mencionando o levante dos haussas em 1807 na Bahia e outros com participação de egbás ou nagôs Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 51 Quilombos 52 No caso do preço do algodão ele vai decaindo desde 1780 che ga ao fundo do poço em 1819 e mantémse baixo só voltando a subir durante a Guerra de Secessão norteamericana 186165 De pois de 1872 entretanto os Estados Unidos recuperam sua posição no mercado e os preços refluem Nessa competição a produção maranhense não consegue sobrepujar os concorrentes em termos de qualidade e preço e a estratégia dos fazendeiros é fazer face ao processo de desagregação de seus domínios vendendo seus próprios escravos No caso das plantações de canadeaçúcar do Nordeste desde o fim do século a produção vivia uma tendência declinante Hobsbawn11 mostra que essas plantations brasileiras estavam de fato decaindo desde o século XVII com a concorrência das Antilhas Por outro lado segundo o mesmo Hobsbawn no decorrer do sécu lo XIX a América Latina teria salvado a indústria têxtil britânica que utilizava basicamente o fio de algodão ao se tornar o maior mercado para suas exportações Em 1840 35 das exportações dessas indústrias tinham como destino a América Latina e princi palmente o Brasil Esses fatos ajudam a entender quão lenta e gradual foi a deca dência das grandes plantações e como o poder dos grandes proprietá rios foise enfraquecendo e debilitando Em certa medida isso expli ca a duração de mais de meio século do quilombo de Palmares e também por que o quilombo de Turiaçu durou mais de 40 anos como Malheiro bem reconhece O poder de coerção dos grandes pro prietários diminuiu e as formas violentas de justiça privada que fun cionavam na administração dos dispositivos legais revelaramse insu ficientes para controlar conflitos e tensões com a força de trabalho escrava tornando cada vez mais imprescindíveis as tropas de linha e os bandeirantes Vejase portanto que essas formas com as quais estamos nos havendo são muito anteriores à abolição da escravatura Já havia desde então uma forma de afirmação econômica da pequena 11 Para uma leitura dos conflitos recentes nas plantações açucareiras da costa nor destina ver Sigaud 1979 Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 52 Os Quilombos e as Novas Etnias 53 produção agrícola ligada à perda do poder de coerção dos grandes proprietários Esses dados todavia mesmo que os juristas de certo modo os percebessem não eram incorporados à definição de quilombo Eles continuaram operando com a definição de 1740 ou com a defi nição do período colonial No período imperial uma consulta às legislações dos governos provinciais revela que eles apenas reduziram o número de integrantes necessários para formar um quilombo Se antes a quantidade mínima de fugidos devia passar de cinco de pois eles a reduziram para três ou dois No caso do Maranhão a legislação de 1847 considerava que uma reunião de dois ou mais indivíduos com casa ou rancho já constituía quilombo12 Manti nhamse portanto os mesmos elementos de definição reduzindo porém o número de pessoas e tentando inviabilizar qualquer tenta tiva de autonomia produtiva em face dos grandes proprietários seja individual ou coletiva Os cinco elementos já mencionados mantêmse nas definições de quilombo e só vão sofrer um deslocamento de variação e intensi dade entre eles mesmos Na legislação republicana nem aparecem mais pois com a abolição da escravatura imaginavase que o quilombo au tomaticamente desapareceria ou não teria mais razão de existir Cons tatase um silêncio nos textos constitucionais sobre a relação entre os exescravos e a terra principalmente no que tange ao símbolo de au tonomia produtiva representado pelos quilombos E quando é men cionado na Constituição de 1988 100 anos depois o quilombo já surge como sobrevivência como remanescente Reconhecese o que sobrou o que é visto como residual aquilo que restou ou seja aceita se o que já foi Julgo que ao contrário se deveria trabalhar com o conceito de quilombo considerando o que ele é no presente Em ou tras palavras tem que haver um deslocamento Não é discutir o que foi e sim discutir o que é e como essa autonomia foi sendo construída historicamente Aqui haveria um corte nos instrumentos conceituais necessários para se pensar a questão do quilombo porquanto não se 12 Cf Lei no 236 de 20 de agosto de 1847 sancionada pelo presidente da provín cia do Maranhão Joaquim Franco de Sá Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 53 Quilombos 54 pode continuar a trabalhar com uma categoria histórica acrítica nem com a definição de 1740 Fazse mister trabalhar com os desloca mentos ocorridos nessa definição e com o que de fato é incluindose nesse aspecto objetivo a representação dos agentes sociais envolvidos Quer dizer como é que se constituiu essa autonomia a partir da desa gregação das grandes plantações sejam algodoeiras sejam de cana deaçúcar sejam cafeeiras Esse é o grande problema Daí sermos muitas vezes obrigados também a romper com o dualismo geográ fico atribuído ao quilombo que faz com que ele seja entendido como oposição à plantation e como o que está fora dos limites físicos da grande propriedade territorial Em nossa experiência em Frechal13 fomos levados a pensar um quilombo constituído a 100 metros da casagrande Ora para os historiadores isto é inconcebível já que os planos de oposição entre civilização e natureza estariam de fato rompidos e a tal espaço corresponderia se tanto a senzala Além de romper com o dualismo geográfico mencionado o signifi cado de quilombo aqui privilegiado transcende à clivagem rural urbano ou à diferença entre estabelecimento e imóvel rural ou ainda à distinção jurídica entre propriedade e posse bem como aos interva los que definem a fração mínima de parcelamento do módulo rural Caso nos empenhemos numa releitura das fontes documentais e arquivísticas veremos que há indícios dessa idéia de quilombo en quanto processo de produção autônomo no momento em que os preços dos produtos do sistema de monocultura agrárioexportador estavam em declínio no mercado internacional Esse quadro propi ciava situações de autoconsumo e de autonomia a pouca distância da casagrande Tratavase de famílias de escravos que mantinham uma forte autonomia em relação ao controle da produção pelo grande proprietário que não era mais o organizador absoluto da produção diante das dificuldades com a queda do preço de seu produto básico 13 Comunidade de quilombolas localizada no Maranhão cujas terras foram asse guradas através do Decreto Federal no 56 de 2051992 que criou a Reserva Extrativista Quilombo de Frechal Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 54 Os Quilombos e as Novas Etnias 55 À tendência declinante dos preços acrescentese o endividamento dos fazendeiros com as casas comerciais e aviadoras que desde o início da segunda metade do século XVIII sobressaíam no casario assobradado da Praia Grande em São Luís e que desde a ação do arquiteto Landi autorizada pelo marquês de Pombal fizeram de Belém uma destacada capital comercial Observase em algumas regiões por meio de estatísticas do século XIX reunidas por César A Marques em 1876 e 1877 no seu Dicionário históricogeográfico da província do Maranhão mostram que nesses períodos de declínio dos preços do algodão aumentava a produção de farinha em algumas regiões Ou seja essas famílias produziam farinha e outros produtos alimentares como o arroz e colocavamse no mercado de forma autônoma mui tas vezes sem passar pelo grande proprietário14 O poder de media ção dos grandes proprietários rurais declinou mais rapidamente no Maranhão onde não teria havido plantations propriamente ditas nem usinas como no caso da costa nordestina Não havia uma parte industrial nos empreendimentos algodoeiros e quanto à canade açúcar registrase apenas um engenho central Não se agregava va lor tampouco se incorporavam inovações tecnológicas salvo 14 Compulsandose o Parecer no 48A formulado em nome das comissões reuni das de orçamento e justiça civil acerca do projecto de emancipação dos escra vos por Rui Barbosa em 1884 verificase que foi concedida atenção detida ao exemplo da Jamaica em que os escravos e exescravos se voltaram à cultura de produtos alimentícios reforçando uma máxima o fato é que os negros não desamparam a agricultura Beaulieu1882208 apud Barbosa1884128 Bar bosa polemiza com P Malheiro e com José de Alencar chamando a atenção para o potencial agrícola das famílias escravas evidenciando que os juristas estavam no centro dos debates das questões econômicas e sociais O mesmo Barbosa cita como argumento de autoridade excertos da narrativa de C Darwin deixando os portos do Brasil e asseverando nunca mais querer visitar um país de escravos Barbosa 188426 O discurso jurídico em sua pretensão enciclopédica buscava fortalecer seus argumentos estabelecendo uma interlocução com a antropologia a filoso fia e a sociologia Rui Barbosa cita C Letourneau Herbert Spencer e Stuart Mill ao examinar as relações entre raça e escravidão Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 55 Quilombos 56 episodicamente A própria falência da Cia Geral do GrãoPará e Maranhão 175578 prenunciava o declínio do poder dos grandes proprietários cuja prosperidade sempre esteve diretamente vincula da à intervenção do poder real ou seja do Estado pombalino O processo de fragmentação e desagregação dos grandes estabeleci mentos algodoeiros gerou inúmeras situações de acamponesamento tal como sucedera a partir de 1755 com o confisco e desmantelamento das fazendas das ordens religiosas15 e com a aboli ção da escravatura indígena As situações derivadas dessa forma de desagregação e desmembramento não foram reconhecidas plenamente pela Lei de Terras de 1850 e persistiram como foco de tensão social E esse é outro grande problema Como o instituto da sesmaria termina em 1824 ficamos de 1824 a 1850 sem um dispositivo legal para dirimir as questões agrárias Além disso parte significativa das sesmarias não foram confirmadas Os sistemas de apossamento disseminaramse segundo as condições específicas de povos indígenas e de escravos e exescravos que produziam de maneira cada vez mais autônoma e de homens livres que exerciam atividades de cultivo e extrativas na periferia das grandes plantações junto aos caminhos de boiada e nas regiões de floresta densa Muitos juristas interpretam essa diversidade de situações e de modalidades de relação com os recursos naturais como fundamental para explicar a pluralidade das posses no Brasil mas o grande problema é que com a Lei de Terras de 1850 houve 15 Foram quase três séculos de senzalas conventuais O marquês de Pombal con fiscou em 1759 as fazendas dos jesuítas e em 1764 fechou os noviciados difi cultando a manutenção dos conventos das demais ordens religiosas franciscanos carmelitas e mercedários Ocorreu uma certa alforria de escravos onde a autoridade dos mordomosrégios não pôde ser mantida a partir da derrocada da Cia Geral de Comércio em 177778 Assim diferentemente da ilha de Marajó onde famílias descendentes de antigos mordomosrégios mantiveram o domínio sobre tais extensões territoriais conservando inclusive os antigos so brados no caso da Fazenda Arari em Alcântara MA a terra permaneceu sob controle dos descendentes de antigos escravos restando das casasgrandes ape nas os escombros dos alicerces Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 56 Os Quilombos e as Novas Etnias 57 constrangimentos ao reconhecimento formal das posses enquanto de outra parte inúmeros imóveis rurais foram recadastrados com re gistros no cartório ou seja foram devolvidos e novamente reco nhecidos e titulados comportando em seus domínios inúmeras situa ções de posse Assim menosprezaramse as situações de ocupação efetiva e de posse consolidada nesses domínios Um quadro de ten sões instalouse de maneira permanente Esse problema não foi resol vido nem pela abolição da escravatura 38 anos depois nem pela pri meira Constituição republicana de 1891 persistindo como um móvel de antagonismos sociais e conflitos agudos Contrariamente nos Estados Unidos com a abolição da escra vatura teria surgido uma camada muito poderosa dos chamados black farmers que formava um campesinato composto dentre outros pelos 200 mil negros escravos que haviam participado da Guerra de Seces são Houve reconhecimento amplo e benefícios diretos para os que se empenharam na prestação de serviços guerreiros No Brasil o reco nhecimento foi restrito como sucedeu na Guerra do Paraguai quan do alguns escravos que combateram nas fileiras da armada imperial receberam terra Nas guerras regionais os registros dessa ordem são raros quase inextricáveis além de serem de consulta difícil No Maranhão temos apenas uma situação levantada com todas as difi culdades que marcam as reconstituições a partir da história oral e que se refere a Saco das Almas Há ao lado dessas situações de banditismo como a prestação de serviços guerreiros para grandes proprietários mesmo que na forma de repressão a quilombolas Correspondem a tais situações os conflitos em que escravos são colocados contra es cravos ou exescravos Algumas das chamadas comunidades negras de hoje foram acionadas para lutar no passado contra os quilombos e os chamados separatistas tendo recebido como recompensa exten sões de terra Como seus domínios territoriais acabaram usurpados elas agora são reincorporadas como quilombolas Nesse caso temos o exemplo de um grupo social que entrou na contramão da história como meio de obter terras sendo essa uma forma invertida de afir mar uma territorialidade já em 1832 e 1838 Hoje tal grupo se vê e é reconhecido como quilombola Ao ser reconhecido como quilombo observase que a ressemantização do conceito aqui passou por uma Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 57 Quilombos 58 situação social diametralmente oposta àquela de uma certa tradição heróica e de resistência à dominação Isso poderia inclusive ser visto como um absurdo histórico mas quando se considera a autodefinição dos agentes sociais em jogo e se converte tal trajetória num fenômeno sociológico em que identidade e território seriam indissociáveis tem se uma outra ordem de fatos O exemplo parece próprio de um qua dro de dominação colonial em que os mecanismos repressores da força de trabalho transcendem à abolição formal da escravatura Para desespero da técnica arqueológica aqui a escavação como comprobatória se trata de uma reconstrução social do grupo Em face de condições concretas de possibilidade de assegurar o território é que ele parece buscar alinhamentos Ampliamse assim as estratégias registradas como garantidoras das vias de acesso à terra e do exercício da autonomia por escravos e exescravos em momentos históricos bem anteriores à abolição Voltando àquela noção de quilombo que rompe com os dualismos geográficos e de economia formalista civilização versus barbárie trabalho versus vadiagem casagrande versus matas dis tantes cabe atentar para as decisões arbitrárias a respeito dos deslo camentos compulsórios da força de trabalho que se naturalizam na vida cotidiana das sociedades caracterizadas pelo sistema repressor da força de trabalho Em termos históricos o objetivo das tropas de linha ao combater os quilombos era tentar trazer a força de trabalho que idealmente estaria fora dos limites físicos das grandes plantações para dentro de seus domínios e mantêlas sob o controle dos fazen deiros Fazer os quilombolas retornarem à disciplina do trabalho nas plantações constituía a finalidade precípua da ação militar Todos os depoimentos contidos nos relatórios militares falam da necessidade permanente de reinstaurar a disciplina e o hábito do trabalho im plantando rígidas jornadas de trabalho dentro das fazendas Esse é o ponto nodal dos relatórios militares de repressão tanto no combate a um quilombo específico quanto nos contextos de sublevação regio nal Nas ordens do dia do presidente e comandante das armas da província do Maranhão Luís Alves de Lima mais conhecido poste riormente como duque de Caxias no caso da Guerra da Balaiada 183941 temse uma ilustração disso Ele afirma ter apreendido 3 Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 58 Os Quilombos e as Novas Etnias 59 mil quilombolas comandados pelo Negro Cosme e 8 mil vadios do sertão ou insurretos também designados balaios Fizeramse 11 mil prisioneiros para serem reintroduzidos no denominado hábito do trabalho e para retornarem ao processo produtivo nas fazendas ou à disciplina de um mundo dirigido a partir delas Portanto recu perar a disciplina do trabalho dado que a indisciplina é um dos ele mentos definitórios do quilombo acaba se tornando um componen te essencial que produz um deslocamento geográfico quem estava fora da grande plantação é trazido compulsoriamente para dentro ou subjugado aos seus desígnios maiores Ora quando esse contin gente já foi trazido para dentro e ocorre uma queda acentuada no preço dos produtos no mercado mundial é como se o quilombo tivesse sido trazido para dentro da casagrande ou mesmo aquilombado a casagrande pois diante da falta de condições do grande proprietário para exercer a coerção a autonomia passa a existir internamente às fazendas O sistema repressor não fala por si só e precisa de suporte econô mico Escasseando os recursos financeiros dos grandes proprietários os mecanismos de coerção e justiça privada não funcionam com a mesma intensidade Nesse quadro o processo de acamponesamento ou de formação de uma camada de pequenos produtores familiares tende a se expandir e consolidar Eis o que explica esses casos de existência autônoma nos limites das fazendas no quintal e na própria senzala Dessa forma a noção de quilombo se modificou antes era o que estava fora e precisava vir necessariamente para dentro das gran des propriedades mas numa situação como a de hoje tratase de retirar as famílias de dentro das fazendas ou seja expulsálas da terra Antes era trazer para dentro do domínio senhorial essa é que era a lógica jurídica que ilegitimava o quilombo Hoje é expulsar botar para fora ou tirar dos limites físicos da grande propriedade No caso de Frechal isso é bem marcante no século XIX o sonho dos pro prietários era acabar com o quilombo do Frechal e trazer os quilombolas para dentro do imóvel rural Frechal Agora em 1990 do ponto de vista do proprietário a estratégia é retirar todos do Frechal e mandálos não se sabe para onde Mas o fato de têlos trazido de lá para cá e agora querer leválos daqui para lá rompeu Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 59 Quilombos 60 com o dualismo dentrofora o quilombo em verdade descarnou se dos geografismos tornandose uma situação de autonomia que se afirmou ou fora ou dentro da grande propriedade Isso muda um pouco aquele parâmetro histórico arqueológico de ficar imaginan do que o quilombo consiste naquela escavação arqueológica onde há indícios materiais e onde estão as marcas ruiniformes da anciani dade da ocupação Esse procedimento tem que ser revisto e as evidências reinterpretadas Se porventura houver uma escavação para identificar quilombo nesse contexto ela resultará quando muito na reconstituição dos alicerces da casagrande o que poderá parecer contraditório e extremamente paradoxal para os operadores do direito16 O teste de arqueologia de superfície e seu poder comprobatório devem ser relativizados como devem ser relativizadas certas provas documen tais e arquivísticas Caso aplicados stricto sensu resultam numa defini ção restritiva de quilombo em tudo igual àquela da sociedade colo nial A observação etnográfica aqui permite romper com o positivismo da definição jurídica e chama a atenção para os instrumentos epistemológicos tão odiados pelos empiristas e positivistas É com base nesses instrumentos que se pode reinterpretar criticamente o conceito e asseverar que a situação de quilombo existe onde há auto nomia onde há uma produção autônoma que não passa pelo grande proprietário ou pelo senhor de escravos como mediador efetivo em 16 O fascínio exercido pela autoevidência faz com que uma perícia que aparente mente indique com suposta autoridade técnica a prova material acabe se derra mando na metáfora cunhada na segunda metade do século XIX pelo senador Silveira Martins citada por Joaquim Nabuco em O abolicionismo de 1883 e depois reproduzida difusamente que definiu o Brasil como uma fazenda o Brasil é o café e o café é o negro Onde tudo é fazenda o quilombo finda por ser algo raro Aliás é assim também que o trata o próprio Nabuco em A escra vidão livro que começou a redigir em 1869 Esse quilombo dos Palmares é um fato isolado na nossa história os apontamentos contemporâneos são escassos Foi a única tentativa dos negros entre nós para se emanciparem e a história nada teria que acusar em rebeliões dessa ordem se todas perdurassem com a mesma moderação e constância e morressem com o mesmo heroísmo Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 60 Os Quilombos e as Novas Etnias 61 bora simbolicamente tal mediação possa ser estrategicamente mantida numa reapropriação do mito do bom senhor tal como se detecta hoje em certas condições de aforamento Essa compreensão socioló gica desloca bastante os termos em que a questão usualmente vem sendo colocada Quando lemos os juristas do século XIX como Tavares Bas tos Perdigão Malheiro Joaquim Nabuco Rui Barbosa Celso Maga lhães Dunshee de Abranches e outros eruditos como Brandão Júnior que defendeu uma tese em 1870 em Bruxelas sobre a escravidão no Brasil e Inglês de Souza percebemos que suas observações diretas transcendem em certa medida às disposições jurídicas Os juristas da primeira metade do século XX também ficaram tributários disto como Oliveira Viana17 em Raça e assimilação 1932 e Evaristo de Moraes em A escravidão africana no Brasil 1933 Mas ao mesmo tempo todos eles estão meio atados quando vão definir quilombo à própria ques tão doutrinária ficam congelados dentro dos marcos conceituais das ordenações manuelinas e filipinas e dos demais dispositivos do perío do colonial A ênfase é sempre dirigida ao quilombola considerado como escravo fugido e bem longe dos domínios das grandes proprie dades Ora segundo a ruptura antes sublinhada houve escravo que não fugiu que permaneceu autônomo dentro da esfera da grande propriedade e com atribuições diversas houve aquele que sonhou em fugir e não conseguiu fazêlo houve aquele que fugiu e foi recapturado e houve esse que não pôde fugir porque ajudou os outros a fugirem e o seu papel era ficar Todos eles entretanto se reportavam direta ou 17 Viana procede inclusive à crítica das categorias censitárias que por um viés evolucionista traçavam condições de convergência para um único padrão racial ou de uma raça superior capaz de assimilar e submeter as demais Nos recen seamentos de 1872 e 1890 os nossos demografistas oficiais adotaram uma classificação de tipos antropológicos brasileiros tomando como critério diferenciador exclusivamente este caráter morfológico a cor da pele Daí a divisão da nossa população em quatro grupos étnicos o dos brancos o dos negros o dos caboclos o dos mulatos Viana 193259 Para Viana essa classificação não poderia mais ser aceita embora estivesse ainda sendo utilizada por antropólogos Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 61 Quilombos 62 indiretamente aos quilombos Teríamos pois várias situações sociais a serem contempladas e o próprio art 68 é interpretado como discriminatório também sob esse aspecto porquanto tenta reparar apenas parcial e incidentalmente uma injustiça histórica e reconhecer de maneira restrita um direito essencial Ao fazêlo restringe o con ceito a uma única situação ou seja a dos remanescentes na condi ção de fugitivos e de distantes Rompendo com esse sentido estrito a nova definição pode abran ger uma diversidade de situações inclusive aquelas relativas à compra de terras por famílias de escravos alforriados Essa ocorrência acen tuada em Minas Gerais é bem evidente na história de Chico Rei Com o ouro extraído de uma velha mina eles compraram a alforria dos demais e mantiveram um território próprio e uma produção au tônoma Assim as áreas adquiridas mediante transações mercantis tornamse também passíveis de ser contempladas como não estão regularizadas e os formais de partilha não foram feitos permanecem intrusadas e constituem fonte de conflito As áreas de herança ga rantidas pelos direitos de sucessão mas usurpadas e griladas inscre vemse nesse quadro Os descendentes e herdeiros constituem os prin cipais agentes sociais em diversas situações analisadas Inúmeras pesquisas chamam a atenção para isso recorrendo às técnicas de his tória oral pelas quais os agentes sociais que receberam as terras como herança narram as dificuldades da formalização Muitas vezes a do cumentação cartorial é fragmentada e precária Impressiona a quanti dade de cartórios que já sofreram ação de incêndio Impressiona o estado de deterioração dos papéis e de desorganização dos arquivos paroquiais e das agências do Judiciário Em virtude dessa precarieda de os estudos de reconstituição da memória do grupo ganham rele vância Mesmo quando não se obtêm resultados expressivos nos le vantamentos de fontes secundárias prevalecem as narrativas dos agentes sociais entrevistados Ou seja também o documento tem que ser relativizado consoante as condições reais de registro e de conservação das fontes Retomando as várias posições aventadas podese asseverar que quilombo abrangeria hoje todas elas Os fatores objetivos e a represen tação do real constituem portanto a realidade de referência É neces Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 62 Os Quilombos e as Novas Etnias 63 sário que nos libertemos da definição arqueológica da definição his tórica stricto sensu e das outras definições que estão frigorificadas e funcionam como uma camisadeforça ou seja da definição jurídica dos períodos colonial e imperial e até daquela que a legislação repu blicana não produziu por achar que tinha encerrado o problema com a abolição da escravatura e que ficou no desvão das entrelinhas dos textos jurídicos A relativização dessa força do inconsciente coletivo nos conduz ao repertório de práticas e às autodefinições dos agentes sociais que viveram e construíram essas situações hoje designadas como quilombo Outro dado que também não pode ser esquecido concerne aos casos de doação de terras quando o impacto da queda do preço dos produtos no caso do algodão e da canadeaçúcar foi tão grande que alguns engenhos centrais foram completamente desmontados e aban donados pelos grandes proprietários e as terras doadas aos exescra vos ou por eles ocupadas de maneira efetiva Tanto há inventários e testamentos que ainda jazem guardados nos povoados por algumas famílias cujos ancestrais foram beneficiados quanto há disputas le gais em curso envolvendo pretendentes a herdeiros A extensão desse abandono foi de tal ordem que em algumas regiões como Alcântara registrase que os grandes proprietários levaram madeiras de lei e te lhas das casasgrandes e sobrados além de venderem toda a maquina ria dos engenhos Verificase assim que vários centros de povoados quilombolas estão localizados próximos às ruínas dessas edificações De igual modo a questão das hipotecas que Perdigão Malheiro analisa e sobre a qual é preciso refletir mais aponta para uma diversidade de relatos gravados nas histórias de vida tal como narra das pelos mais velhos dos povoados que dizem o seguinte nossos pais nossos avós contavam que eles ajudaram a pagar essa hipoteca No momento em que foram contraídos empréstimos para manter a fazenda afirmam que os antigos proprietários prometeram que com o pagamento da hipoteca a terra lhes seria entregue E a terra não foi entregue embora tenham sido saldadas as dívidas Se lermos Malheiro encontraremos toda a evidência de verdade jurídica do período conti da nesses acordos verbais Na hipoteca estava inclusa a escravaria pois o escravo poderia ser dissociado da terra no ato de transferência Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 63 Quilombos 64 As narrativas obtidas através de entrevistas por diferentes pesquisa dores em distintas regiões assinalam que havia pactos entre proprie tários circunstancialmente pauperizados e escravos no sentido de in tensificar o esforço produtivo para pagar a hipoteca Parece absurdo imaginar que as jornadas de trabalho ainda poderiam ser intensifica das mas se não conseguissem quitar a dívida os escravos estariam ameaçados de voltar ao mercado Isso é representado como uma tra gédia maior possivelmente porque os núcleos familiares de escravos seriam dissolvidos com a dispersão de seus membros nas vendas Outro fator é que já estariam consolidados em sua autonomia com liberdade para plantar o que quisessem dada a crise do grande pro prietário de modo que ser vendido ou mudar de fazenda e de senhor significaria um golpe mortal visto que perderiam um conjunto de benfeitorias essenciais casas roçados poços trilhas de acesso à mata para exercer o extrativismo a coleta e a caça Em outras palavras poderíamos dizer aqui também que lograram aquilombar os domí nios senhoriais Registramos algumas histórias de vida de descenden tes de antigos pajens ou escravos domésticos que prestavam serviços nas casasgrandes no caso de Frechal que apontam nessa direção exi gindo maior discernimento dos dispositivos legais para dirimir litígios Voltando à lógica dos códigos jurídicos há diferenças entre quilombo e insurreição Se consultarmos os documentos coloniais e imperiais relativos às insurreições verificaremos que eles considera vam como insurreição quando havia 20 ou mais indivíduos envolvi dos Isso está no art 113 do Código Criminal do período imperial que afirma reunindose 20 ou mais escravos para obter a liberdade por meio da força temse uma insurreição E lá estão as penas dife renciadas para os cabeças a morte o grau máximo ou as galés perpé tuas Dessa maneira quilombo não seria insurreição visto de um de terminado ângulo político Entretanto há farta documentação sobre os temores de uma tomada do poder local a partir dos quilombos tanto no início do século XIX época da síndrome do Haiti quan to no período da Guerra do Paraguai Ainda para os legisladores coloniais quilombo é diferente de guerra Não haveria exército em jogo nem identidades nacionais A nacionalidade é vista como tendo subjugado etnias que se teriam Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 64 Os Quilombos e as Novas Etnias 65 manifestado sobretudo através dos chamados movimentos separa tistas do período 183245 A campanha contra o quilombo de Palmares não foi definida formalmente como uma declaração de guerra Por último cabe frisar que quilombo é considerado por esses legisladores como juridicamente diferente de banditismo embora tal semelhança seja acentuada em inúmeros contextos Essa aproximação de quilombo com banditismo aparece com mais destaque no fim do século XIX quando os legisladores coloniais vão perdendo sua força relativa e quando a categoria quilombo perde também sua força jurí dica em virtude da abolição em 1888 e do advento da República em 188918 No universo jurídicoformal dos legisladores com a aboli ção deixaria de existir a figura do quilombo É um período em que a medicina legal vai tratar do problema como bem evidenciam as pes quisas de Nina Rodrigues O discurso médico produz certo desloca mento nos esquemas explicativos que até então repousavam sobre o conhecimento jurídico Os estudos de craniometria fundados na ca tegoria raça é que irão falar do tipo de criminalidade praticado pelos bandos Quilombolas são içados à condição de bandidos rurais Com a abolição da escravatura por não se ter resolvido o problema da terra para os exescravos por não terem sido feitas reformas na estrutura agrária não havia instrumentos para contemplar a questão das posses camponesas o que resultou em conflitos de formas varia das e em marginalização de grupos sociais O discurso médico enquanto recurso classificador de grupos e populações na força plena de sua vigência busca inclusive uma certa recuperação histórica que legitime uma desejada cientificidade de suas explicações Assim a medicina legal vai estudar por exemplo em 1895 na Bahia Lucas da Feira19 considerado um bandido ne 18 Os direitos republicanos certamente produziram uma ilusão de igualdade Há interpretações positivas da resistência dos escravos nas duas primeiras décadas do século XX que em certa medida tentam aproximálos da condição de co lonos Ver Querino 1918 19 Ver Rodrigues 193915364 Rodrigues se apóia em estudos de etnografia criminal e na categoria étnica tal como definida por Corre Apóiase ainda em Topinad e Charcotr e dialoga com a antropologia Quilombos Ebookpmd 2442009 1704 65 Quilombos 66 gro famoso e com características de bandido social Nina Rodrigues examina o crânio de Lucas da Feira que em 1828 fugiu de uma fa zenda em Feira de Santana BA e organizou um grupo congregando outros escravos fugidos que atuou no sertão por cerca de 20 anos Foi preso e enforcado em 25 de setembro de 1849 Rodrigues chega à conclusão de que a teoria lombrosiana não se aplicava a Lucas porque este tinha características craniométricas fisiológicas que não o faziam um criminoso nato Sustenta que embora criminoso para os códigos legais inspirados na civilização européia Lucas seria um guer reiro e um rei afamado se estivesse na África Rodrigues relativiza e arremata eu estou estudando aqui um caso em que as dimensões desse crânio não coincidem com aquilo que a teoria lombrosiana fala quer dizer então que o bandido não é bandido O próprio Nina Rodrigues é levado então a recolocar implicitamente a questão do quilombo no seu projeto de pesquisa inconcluso sobre as associações criminais Mas ao recolocar a questão desse bando e seus respectivos índices étni cos enquanto quilombo ele acaba reificando uma divisão de raças que aliás marca também todo o discurso explicativo dos juristas Artur Ramos médico e antropólogo no prefácio desse livro de Nina Rodrigues menciona de maneira explícita a correlação do refe rido estudo com os quilombos A história de Lucas da Feira é a história da maior parte dos negros criminosos no Brasil dos negros escravos fugitivos que se organizavam em bando e furtavam e rea giam à polícia como uma necessidade inelutável Temos aí um esboço da história psicossocial dos quilombos e insurreições negras no Bra sil De um modo mais geral é esta também a história dos cangaceiros no Nordeste Nada de mais antilombrosiano O discurso médico é tão tributário do poder explicativo atribuí do à categoria raça quanto o discurso dos juristas Assim todos os que pensaram a questão dos quilombos mesmo que através dos mo vimentos abolicionistas20 e os abolicionistas eram racistas ain 20 Na ação dos abolicionistas de ajuda à fuga de escravos ao seu açoitamento e ao seu transporte verificase um significado de quilombo correspondente ao lo cal onde os fugitivos encontravam proteção e abrigo Em A campanha abolicionista Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 66 Os Quilombos e as Novas Etnias 67 da trabalhavam com os paradigmas de raça inferior e raça superior inclusive o próprio Nina Rodrigues E de alguma forma tratavam essas manifestações como sobrevivências ou seja ainda era uma forma bárbara de afirmação pela força das armas pelo desrespeito às autoridades constituídas Se cotejado com a definição do Conselho Ultramarino de 1740 esse argumento seria uma variação daquela idéia de quilombo como nãocivilização e como barbarismo Essa forma de definir incorporando a oposição entre selvagem e civiliza do é reproduzida por esses autores que tratavam os componentes indicativos dessa situação como mera sobrevivência Tal visão per manece intocável inquestionável e soberana inclusive numa certa in terpretação do art 68 onde remanescente é sinônimo de resíduo de sobrevivência daquilo que sobrou Aqui está portanto a dificul dade de continuarmos a operar com esse esquema interpretativo para compreender essas situações que hoje são entendidas como quilombo O recurso de método mais essencial que suponho deva ser o fundamento da ruptura com a antiga definição de quilombo refere se às representações e práticas dos próprios agentes sociais que vive ram e construíram tais situações em meio a antagonismos e violências extremas A meu ver o ponto de partida da análise crítica é a indaga ção de como os próprios agentes sociais se definem e representam suas relações e práticas em face dos grupos sociais e agências com que interagem Esse dado de como os grupos sociais chamados remanes centes se autodefinem é elementar porquanto foi por essa via que se 17891888 livro publicado por Evaristo de Moraes em 1924 temse uma relação de abolicionistas que abrigavam os fugitivos como Seixas Magalhães negociante de malas estabelecido à rua Gonçalves Dias possuidor de uma grande chácara no Leblon onde havia um verdadeiro quilombo O mesmo verifica mos em Dunshee de Abranches ao referirse a São Luís MA em seu livro O cativeiro de 1941 A este tempo nas matas do sítio São Jerônimo antiga pro priedade de meu pai no Bacanga localizamos o quilombo da Sumaumeira Tiramos o nome de uma secular e gigantesca paineira que ali existia e viveu até 1934 E a pretexto de caçadas ali se reunia de quando em vez o nosso grupo levando sal fumo e café aos fugitivos até que pudessem ir escapando para o Ceará e os seringais da Amazônia Para isto dispúnhamos de espiões e auxiliares preciosos Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 67 Quilombos 68 construiu e afirmou a identidade coletiva O importante aqui não é tanto como as agências definem ou como uma ONG define ou como um partido político define e sim como os próprios sujeitos se auto representam e quais os critérios políticoorganizativos que norteiam suas mobilizações e forjam a coesão em torno de uma certa identida de Os procedimentos de classificação que interessam são aqueles construídos pelos próprios sujeitos a partir dos próprios conflitos e não necessariamente aqueles que são produto de classificações exter nas muitas vezes estigmatizantes Isso é básico na consecução da iden tidade coletiva e das categorias sobre as quais ela se apóia Aliás essas categorias podem ter significados específicos como sugere terra de preto que pressupõe uma modalidade codificada de utilização da na tureza os recursos hídricos por exemplo não são privatizados não são individualizados tampouco são individualizados os recursos de caça pesca e extrativismo São mantidos como de livre acesso Cami nhos trilhas e poços são mantidos sob formas de cooperação simples De outra parte as chamadas roças ou tratos agrícolas que estão dis postas no cerne de uma certa maneira de existir socialmente são sem pre individualizadas num plano de famílias pois as unidades familia res não dividem o produto da colheita de forma coletiva ou comunitariamente De igual modo um pomar é apropriado de ma neira privada e tal como no caso das roças expressa trabalho realiza do familiarmente O fato de esses diferentes planos sociais públi co e privado de uso comum e de uso individual coexistirem evidencia que a noção de uso da terra teria que ser examinada exaus tivamente compreendida em pormenor e não reduzida a uma situa ção que nós já imaginamos qual é Não se pode impor o desígnio do partido a vontade da ONG ou a utopia do mediador a uma situação real ao contrário há que partir das condições concretas e das pró prias representações das relações com a natureza e demais práticas dos agentes sociais diretamente envolvidos para se construir os novos significados O ideário das agências de pretensão mediadora tem que ser relativizado quer se trate de movimentos sociais que carecem de iniciativas mobilizatórias quer de aparatos de poder que reduzem tudo ao componente agrário No momento atual para compreender Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 68 Os Quilombos e as Novas Etnias 69 o significado de quilombo e o sentido dessa mobilização que está ocorrendo é preciso entender como é que historicamente esses agen tes sociais se colocaram perante os seus antagonistas bem como en tender suas lógicas suas estratégias de sobrevivência e como eles estão se colocando hoje ou como estão se autodefinindo e desenvolvendo suas práticas de interlocução A incorporação da identidade coletiva para as mobilizações e lutas por uma diversidade de agentes sociais pode ser mais ampla do que a abrangência de um critério morfológico e racial Ao visitarmos esses povoados em zonas críticas de conflito podemos constatar por exemplo que há agentes sociais de ascendên cia indígena que lá se encontram mobilizados e que estão se autodefinindo como pretos De igual modo podemos constatar que há situações outras em que agentes sociais que poderiam aparentemente ser classificados como negros se encontram mobilizados em torno da defesa das chamadas terras indígenas O critério de raça não estaria mais recortando e estabelecendo clivagens como sucedeu no fim do século XIX Esse é um dado de uma sociedade plural do futuro que deve ser repensado Raça não seria mais necessariamente um fato biológi co mas uma categoria socialmente construída Certamente que há um debate cotidiano em face de cada situação dessas ou a cada vez que o aparato administrativo e burocrático envia seus quadros técni cos para verificações in loco desses antagonismos Mas seria um absur do sociológico imaginar que alguns classificadores nostálgicos quei ram tentar colocar cada um em seu lugar tal como foi definido pelo nosso mito de três raças de origem acionando também o componen te da miscigenação que equilibra as tensões inerentes ao modelo Insistir nisso significa instaurar um processo de limpeza étnica colocando compulsoriamente cada um no que a dominação define naturalmente como seu lugar21 21 Certamente que a partir da consolidação de uma existência coletiva ou da objetivação do movimento quilombola temse uma força social que se contra põe a essa classificação isto é passa a prevalecer a identidade coletiva acatada pelo próprio grupo em oposição às designações que lhe são externamente atri buídas Os recentes trabalhos de campo dos antropólogos têm indicado isso Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 69 Quilombos 70 Mesmo que não tenhamos categorias classificatórias como os black indians registrados nos Estados Unidos22 estamos diante de si tuações por vezes assemelhadas sobretudo nos casos em que as deno minadas terras de preto e as terras de índio se sobrepõem como em Praquéu Jacarezinho e Aldeia MA e São Miguel dos Tapuios PI ou na queles casos em que há relações intensas entre quilombolas e povos indígenas como bem ilustra o caso dos chamados urubus negros no vale do Gurupi23 Ademais a documentação histórica até a metade do século XVIII evidencia que os índios recebiam no período colonial a designação de negros e também assim se autodenominavam o que vem a ser expressamente proibido pelo Diretório pombalino de 175824 que institui uma separação formal entre essas duas designações Do mesmo modo trabalhos de campo de décadas anteriores têm assinalado a força da classificação produzida de fora Charles Wagley ao descrever o po voado de Jocojó em 1948 registra em seu caderno de campo The settlement is said to have been a quilombo It is known as a lugar de pretos but in fact a casual survey of the population does not indicate any more negroid population than any other local settlement Dessa pesquisa resultou o livro Amazon town a study of man in the tropics de 1953 O caderno de campo citado não foi publicado mas se encontra disponí vel para consulta na Charles Wagley PapersManuscript Collection na East Library da Universidade da Flórida em Gainesville 22 Ver Katz 1986 23 Darci Ribeiro 199628 registra ações dos chamados urubus negros em defesa de suas terras e explica Mas a alcunha de negros e a cor mais escura bem como os cabelos menos lisos daquele grupo segundo o informante sugerem que eles tenham tido contato com os negros mocambeiros da região Nesse caso à hostilidade tradicional dos urubus se teria juntado a repulsa do negro escravo ou seu descendente para com o branco Aliás contam que os urubus atacaram um mocambo que ficava no alto Maracassumé Limoeiro matando todos os homens e levando consigo as mulheres deles E ainda hoje planejam ataques aos apinayé e a outros grupos a fim de obterem mulheres 24 Diz o parágrafo décimo do Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão Entre os lastimosos princípios e perniciosos abusos de que tem resultado nos índios o abatimento ponderado é sem dúvida um deles a injusta e escandalosa introdução de lhes chamarem negros querendo talvez com a infâ mia e vileza deste nome persuadirlhes que a natureza os tinha destinado para escravos dos brancos como regularmente se imagina a respeito dos pretos da Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 70 Os Quilombos e as Novas Etnias 71 Estáse diante de uma diversidade de autodefinições referidas a tais situações sociais que muitas vezes contrariam concomitantemente tanto as disciplinas militantes quanto os critérios dos técnicos da burocracia administrativa ambos apoiados em fatores supostamente objetivos e fiéis a clivagens pretensamente científicas Aliás já acontecia em Palmares Se formos pensar no que era o povoado dos Macacos a julgar pelos relatos existentes ali havia desertores facinorosos do sertão escravos fugidos e indígenas todos juntos Havia inclusive uma sobreposição de formas de uso dos recursos naturais Essas situações poderiam ser aproximadas não obstante as diferentes formações históricas daqueles casos de superposição fundiária que indicam outras possibilidades de cortes uma vez que as chamadas terras de preto essa dimensão mais lato sensu de quilombo não emergiram sozinhas Junto com elas emergem e são hoje reconhecidas outras categorias essenciais para interpretação da estrutura agrária Esse procedimento de pensar a estrutura agrária relacionalmente revela que ela não pode ser mais dissociada de fatores étnicos Em virtude disso é que os critérios de competência e saber de agrônomos ou de arqueólogos tornamse insuficientes e inapropriados para identificar etnicamente remanescentes de comunidades de quilombo ou mesmo um território quilombola Um território quilombola não corresponde necessariamente à extensão de um ou vários imóveis rurais ou a um número estimado de estabelecimentos mes mo que as situações a ele referidas aparentemente assim sugiram No caso de Frechal a área do quilombo corresponde àquela do imóvel rural de igual denominação No caso de Jamari MA e Rio das Rãs costa da África E porque além de ser prejudicialíssimo à civilidade dos mes mos índios este abominável abufo seria indecoroso às Reais Leis de Sua Majes tade chamar negros a uns homens que o mesmo Senhor foi servido nobilitar e declarar isentos de toda e qualquer infâmia habilitandoos para todo o empre go honorífico Não consentirão os diretores daqui por diante que pessoa algu ma chame negros aos índios nem que eles mesmos usem entre si deste nome como até agora praticavam para que compreendendo eles que lhes não compe te a vileza do mesmo nome possam conceber aquelas nobres idéias que natural mente infundem aos homens a estimação e a honra Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 71 Quilombos 72 BA corresponde a uma parte do imóvel cadastrado Em se falando do território quilombola de Alcântara MA verificase que ele não apenas inclui inúmeros imóveis rurais como abrange simultaneamen te terras públicas e privadas Tantas outras também assim se com põem Donde se pode afirmar que a malha fundiária não é homóloga à estruturação dos territórios quilombolas Na formação social brasi leira o fator étnico não foi incorporado ao processo de formalização jurídica da estrutura fundiária Ademais há outra grande dificuldade não são apenas as deno minadas terras de preto em jogo pois outras formas de uso comum estão se impondo e outras identidades coletivas estão sendo sucessi vamente afirmadas Elas são coetâneas do movimento quilombola e com ele coexistem em termos de mobilização étnica Critérios de gê nero como no caso das quebradeiras de coco babaçu MA PA PI e TO e das artesãs de arumã do Rio Negro AM critérios ocupacionais e de atividades como no caso de seringueiros e castanheiros critérios de localização geográfica como no caso dos ribeirinhos e critérios alusivos à modalidade de intervenção governamental como no caso dos atingidos por barragem têm possibilitado explicar a formação de movimentos sociais recentes e sua força política Além disso têm permitido o advento de territorialidades específicas e autônomas tais como reservas extrativistas babaçuais castanhais e seringais sem o controle dos mediadores tradicionais isto é seringalistas e grandes proprietários Tal processo dá um novo contorno à sociedade civil conferelhe um novo desenho e até transcende às formas usuais de se pensar o canal de colocação ou publicização dessas questões que en volvem reconhecimento de territórios Imaginavase que o sindicato de trabalhadores rurais pudesse res ponder a isso No entanto estamos vendo que as organizações sindi cais em inúmeros contextos se revelam limitadas restritivas para contemplar todas as expectativas de direito das chamadas novas etnias25 Elas expressam outras maneiras de se colocar diante dos aparatos de poder e estão vivendo um momento de profunda reorga 25 Se de um lado reconhecese que há etnias permanentes cujas origens são cente nárias de outro reconhecese também o advento de novas etnias conceitua Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 72 Os Quilombos e as Novas Etnias 73 nização de sua representatividade no âmbito da sociedade civil e pe rante seus antagonistas históricos Em se tratando especificamente dos quilombolas destacase que sua capacidade mobilizatória foi objetivada em movimento organiza do A partir do I Encontro Nacional das Comunidades Negras Ru rais realizado em Brasília DF no período de 17 a 19 de novembro de 1995 e da I e da II Reunião da Comissão Nacional das Comuni dades Negras Rurais Quilombolas realizadas respectivamente em Bom Jesus da Lapa BA nos dias 11 e 12 de maio de 1996 e em São Luís MA nos dias 17 e 18 de agosto de 1996 foi constituída a Comis são Nacional Provisória de Articulação das Comunidades Rurais Quilombolas CNACNRQ composta de oito integrantes sete representantes de associações locais Conceição das Crioulas PE Silêncio do Mata BA Rio das Rãs BA Kalungas GO Mimbó PI Furnas do Dionísio e Boa Sorte MS e uma entidade de representação em nível regional a Coordenação Estadual dos Quilombos do Maranhão Em 20 de novembro de 1997 foi funda da a Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão Aconeruq congregando centenas de situações classifica das como quilombo Em maio de 1998 foi realizado em Belém o I Encontro de Comunidades Negras no Pará Em certa medida o movi mento quilombola vai consolidando uma dimensão nacional e constituin dose num interlocutor indispensável nos antagonismos sociais que envolvem aquelas territorialidades específicas antes mencionadas Essas transformações sociais tornam mais evidentes a complexi dade da questão e o risco de se proceder a generalizações sem o co das como uma tendência de grupos a se investirem num sentido profundo de uma identidade cultural com o objetivo de articular interesses e reivindicar medidas fazendo valer seus direitos em face dos aparatos de estado O critério políticoorganizativo ajuda a relativizar o peso de uma identidade definida pela comunidade de língua pelo território pelo fator racial ou por uma origem co mum Essa é uma discussão da ordem do dia das várias coletâneas que nas últimas décadas têm enfocado os deslocamentos no conceito de etnia Ver Barth 1969 Bennett 1975 Glazer Moynihan 1975 Sollors 1996 Hutchinson Smith 1996 Guibernau Rex 1997 Wilmsen McAllister 1996 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 73 Quilombos 74 nhecimento mais detido de situações localizadas Por isso as respos tas têm que vir da intensificação do trabalho etnográfico identifican do e analisando detalhadamente situações concretas e evitando a lin guagem classificatória das regras e das predefinições O mesmo se aplica também aos procedimentos às vezes formalistas da plataforma de um partido político ou de um movimento organizado que no afã de se colocar como representante ou portavoz acaba menosprezando as especificidades e agindo no arbítrio dos reducionismos Essa pos tura pode ser tão autoritária ao não respeitar o direito intrínseco ou a forma com que cada grupo em cada uma das diferentes situações colocouse e resistiu historicamente que venha a resultar numa pseudo igualdade de condições responsável pela destruição dos princípios e normas que asseguraram de maneira durável a mobilização mantenedora da expressão identitária peculiar Pretendo sublinhar desse modo que os conceitos também so frem alterações e que os instrumentos de percepção estão sujeitos a mudanças e revisões teóricas Daí a pergunta ante a complexidade dessas situações sociais diferenciadas que recursos teóricos estão sen do acionados pelos antropólogos que estão trabalhando na produção de pareceres perícias e laudos sem dizer nas petições e na refutação ou endosso de EIARimas que dizem respeito aos chamados quilombos Com a redefinição do conceito de etnia há interpretações alertando para a situacionalidade ou seja estão lidando com identi dades e territórios étnicos do ponto de vista de estratégias contingen tes ou de diferentes tipos de acordos ou contratos que os chamados quilombolas têm firmado Há um pacto tácito quanto às formas de uso dos recursos que aparecem na definição da terra de preto Em outras palavras podese dizer que existe um elenco de práticas que assegu ram vínculos solidários mais fortes e duradouros do que a alusão a uma determinada ancestralidade O pertencimento ao grupo não emana por exemplo de laços de consangüinidade não existe a preo cupação com uma origem comum tampouco o parentesco constitui uma precondição de pertencer O princípio classificatório que funda menta a existência do grupo emana da construção de um repertório de ações coletivas e de representações em face de outros grupos Tra Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 74 Os Quilombos e as Novas Etnias 75 tase de investigar etnograficamente as circunstâncias em que um gru po social determinado acatou uma categoria acionandoa ao interagir com outros Para tanto há que atentar para os deslocamentos conceituais Desde pelo menos 1967 com F Barth percebese um esforço analítico para delimitar fronteiras étnicas fora de fundamen tos biológicos raciais e lingüísticos tendo como ponto de partida categorias de autodefinição e de atribuição Em 1973 Proceedings a American Ethnological Society marca bem a expressão nova etnicidade tanto como identidade e autoconsciência quanto como estratégia de obtenção de recursos básicos para produzir e consumir Sublinha o fato de agentes sociais se investirem num sentido profun do de uma identidade cultural com o objetivo de articular interesses e de fazer valer seus direitos perante o Estado Em 1982 Proceedings a AES destaca que o sentido atual de etnia reflete novas realidades e mudanças nessa realidade de pertencimento a um grupo particular com identidade coletiva em consolidação As demandas de direitos perante os poderes públicos e as mobilizações por maior acesso a oportunidades econômicas revelam critérios políticoorganizativos Por isso se fala mais em identidade étnica no sentido de uma existên cia coletiva do que de uma situação individual A permanência dos laços chamados primordiais como laços de sangue e de raça perde sua força de contraste diante de uma noção de etnicidade considerada como fator contingente Seria dobrarse às aparências aceitar acriticamente a explicação divulgada pela mídia de que as antigas etnias voltaram a estabelecer fortes clivagens na vida política Mais recentemente sobretudo a partir de 1991 com o início das guerras dos Bálcãs definidas como conflito étnico conhecese um alarga mento do significado do conceito26 A fronteira étnica não é vista como coincidindo necessariamente com critérios raciais culturais ou lingüísticos tampouco se reduz a nacionalidades O componente políticoorganizativo que demanda condições para a reprodução eco 26 A guerra da Bósnia em 1991 tornase objeto de reflexão dos cientistas sociais impondo expressões e noções operacionais como limpeza étnica Ver Bell Fialkoff 1996 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 75 Quilombos 76 nômica e cultural do grupo funciona como aglutinador e explica a capacidade mobilizatória Essa ampliação das possibilidades de uso do conceito retira de cena a autoridade da figura do classificador questionando a evidente arbitrariedade classificatória ou seja quem é que se julga autorizado a dizer o que o outro é Quem é que define a identidade do outro e ao fazêlo chama a si o poder de permitir ou de vetar É nesse quadro da ampliação que sobressai como legítimo o dispositivo autoritário que traça os novos limites das identidades e dos territórios tidos agora como étnicos Os mecanismos de coer ção acionados pelos classificadores oficiais respondem pela nomea ção de limpeza étnica e conferem um sentido peculiar às guerras mencionadas e aos demais antagonismos que passam a ser explicados por eles Diante dessas rupturas no plano conceitual que estão em curso e dessas tensões que marcam diferentes antagonismos sociais tornase extremamente árduo para os pesquisadores entender a totali dade dessas transformações e construir seus próprios meios de inter venção A observação etnográfica ganha força quando se reconhece que o conhecimento pormenorizado de situações localizadas construído a partir da análise das mobilizações dos agentes sociais e de sua identidade coletiva cria condições de possibilidade para o es clarecimento Nessa análise independentemente desse corte mais geral inte ressa saber como essa categoria focalizada se constitui hoje enquanto elemento de mobilização política de inúmeros grupos sociais Ou seja o que passa pelo dado da autodefinição desses grupos e de suas práticas na relação com os poderes e com a natureza A indagação remete a outras porque não é por acaso que quando se visita essas áreas designadas terras de preto se percebe um grau de preservação da natureza maior do que nas fazendas lindeiras ou nos projetos agropecuários que desmataram tudo para formar pastagens artificiais Essa observação impressionista leva à pergunta qual a regra de mane jo dos recursos Qual o substrato desse tipo de preservação O mes mo pode ser constatado também nas terras indígenas e em muitas outras situações de uso comum inclusive nas chamadas terras de he rança mantidas sob domínio de unidades camponesas Curiosamen te é nesses lugares que as minas os olhosdágua e as fontes não Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 76 Os Quilombos e as Novas Etnias 77 secaram A esse respeito tivemos oportunidade de realizar múltiplos cotejos a partir de três áreas visitadas em 1996 São áreas onde as cabeceiras as nascentes foram relativamente mantidas e onde existem uma reserva de mata e plantas com propriedades medicinais pequena fauna e terrenos com capacidade para absorver o sistema de rodízio de tratos culturais por dezenas de anos contrariando as teorias do esgotamento do solo levantadas pelos agrônomos oficiais e as teorias demografistas Aliás as observações mais freqüentes desses técnicos oficiais ocorrem em projetos de assentamento cujas áreas correspondem a antigas explorações agropecuárias e madeireiras que desvastaram praticamente tudo Do reconhecimento dessa consciência ecológica podese retirar uma lição para a sociedade nacional a forma de mane jo de que estamos falando não é do passado ou do remanescente ou do que sobrou Em verdade estamos falando é do futuro projetando o a partir desses casos concretos de uso comum conjugado com pre servação Desse ponto de vista essa noção de quilombo não é do passado nem é uma figura para escavação arqueológica Às instâncias do Judiciário compete pois reconhecer essa presencialidade do pas sado e se livrar do fascínio empirista dos vestígios materiais como prova Tal noção remete a um futuro que já está sendo construído sem ser objeto de política pública de incentivo fiscal Finan Finor ou creditício Os fatores de consciência ecológica de afirmação étni ca e de critério políticoorganizativo que amparam a identidade cole tiva coextensiva à definição dos novos movimentos sociais apon tam para o futuro mais que para o passado Tal noção também não se confunde com as utopias comunalistas do século XIX nem com as comunidades rurais idílicas visto que reflete trajetórias coletivas que não obedeceram a planos e estratégias intelectuais e políticas Trata se principalmente do resultado de processos de confrontação e não de lugares utópicos e despolitizados Aqui estaria delineada posição de onde emergem os quilombos Em resumo é uma impropriedade lidar com esse processo como sobrevivência como remanescente como sobra ou resíduo por quanto sugere ser justamente o oposto é o que logrou uma reprodu ção é o que se manteve mais preservado é o que manteve o quadro natural em melhores condições de uso e é o que garantiu a esses gru Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 77 Quilombos 78 pos sociais condições para viver independentemente dos favores e benefícios do Estado A própria polêmica em torno de ser um produ to coetâneo das políticas neoliberais ou um corolário do planejamen to centralizado mostrase distante e não passa por essas situações de signadas como quilombo porque elas já estavam fora dessa órbita de decisões bem antes do advento da polêmica e o reconhecimento for mal é mais um resultado de mobilizações organizadas pelos próprios agentes sociais em jogo Neste sentido também não são fruto da recen te categoria excluídos porquanto desde o século XVIII já estão defi nidas juridicamente como marginais e de fora da civilização Tal classificação é uma questão das estruturas de poder não é questão intrínseca a esses grupos sociais O que tem de ser recuperado portan to nessa apropriação jurídica nessa redefinição é como esses grupos se definem e o que praticam Esse é o exercício que de certa forma nos recoloca em contemporaneidade com a nova forma organizativa que está surgindo o movimento quilombola e com a situação social quilombo que somente agora a duras penas está sendo reconhecida Para finalizar esta abordagem propiciando outros recursos conceituais para os trabalhos de pesquisa e aqueles correlatos concernentes a pareceres petições e perícias importa sublinhar resu midamente que ela se diferencia dos estudos de sociologia do negro principalmente com Gilberto Freire e Donald Pierson Para eles ha via uma interpretação positiva da miscigenação como se ela por si só já significasse um fator de mudança Interpretaramna positivamente e esse esforço ainda estava muito marcado pelo quadro das raças O que antes era negativo tornouse positivo A classificação erudita passava ao largo das identidades étnicas construídas coletivamente pelos próprios agentes sociais objeto das investigações científicas A ênfase no que se imaginava como objetivo reduzia tudo mais a simbólico e subjetivo A redefinição de quilombo tal como colocada hoje pelos que através dele se representam estabe lece uma clivagem políticoorganizativa em face desses intérpretes consagrados Seus elementos contrastantes não se encontram no fator racial A mobilização étnica apóiase numa expectativa de direitos sustentada por sua vez numa identidade cultural que não tem sua razão de ser na miscigenação Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 78 Os Quilombos e as Novas Etnias 79 Por outro lado o campo de pensamento da categoria quilombo constitui não apenas um tema próprio mas também um objeto de reflexão que pressupõe inúmeras noções uma constelação de noções operacionais próprias É uma área temática específica e por isso exige o concurso de múltiplas disciplinas e formações acadêmicas Essa é uma via elementar de acesso ao novo significado de quilombo ele não se exaure numa investigação de arqueólogos que buscam os vestí gios materiais comprobatórios daquela situação que a noção jurídica tradicional apregoa Não se exaure na definição de historiadores ou de geógrafos que atestam com os documentos centenários e com a ênfase no isolamento reproduzindo acriticamente a versão dos administradores coloniais Tampouco se reduz ao raio de ação de agrônomos que o tomam simplesmente como problema agrário Esse mundo das interrelações e das novas etnias que os cien tistas sociais estão descortinando requer leituras críticas e uma reinterpretação jurídica pressupondo sobretudo em termos epistemológicos uma revisão de esquemas interpretativos cristaliza dos no mundo erudito O que está em pauta são essas revisões de esquemas em que se reconhece que a noção de raça não tem funda mento científico e em que as mobilizações transformadoras e de afir mação étnica não estão passando por consangüinidade por pertenci mento à tribo27 por características lingüísticas e sinais exteriores que tradicionalmente marcaram diferenças Está em pauta uma uni dade social baseada em novas solidariedades a qual está sendo construída consoante a combinação de formas de resistência que se consolidaram historicamente e o advento de uma existência coletiva capaz de se impor às estruturas de poder que regem a vida social Temse uma flagrante politização do problema com o processo de consolidação do movimento quilombola enquanto força social Sua compreensão requer os novos conceitos de etnia e de mediação capa zes de permitir esclarecimentos sobre esses fenômenos políticos em transformação A aceitação desse pressuposto concorre para libertar 27 Para maiores dados sobre a polêmica envolvendo a relação entre tribo e etnia ver os textos sobretudo o de Maurice Godelier que integram o conjunto intitulado Tribalisme et pouvoirs La Pensée Paris 325563 janmars 2001 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 79 Quilombos 80 os argumentos analíticos de todas essas amarras construídas histori camente e que ainda hoje mesmo com boa vontade muitas vezes acabamos por reproduzir ante a trajetória de afirmação étnica e polí tica que esses grupos sociais designados como quilombolas estão desenvolvendo Referências bibliográficas Almeida Alfredo W B de A ideologia da decadência leitura antropológica a uma história da agricultura no Maranhão São Luís Fipes 1983 270p Universalização e localismo movimentos sociais e crise dos padrões tradicionais de relação política na Amazônia Reforma Agrária São Paulo Abra abrjul 1989 p 416 Quilombos sematologia face a novas identidades In Frechal terras de preto São Luís Projeto Vida de NegroSMDDH 1996 p119 Amaral Braz do As tribos negras importadas Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia Salvador 1915 p 3972 Barth F ed Ethnic groups and boundaries Oslo Univ Forlaget 1969 BellFialkoff A Ethnic cleansing New York St Martin 1996 Bennett J W ed The new ethnicity perspectives from ethnology 1973 Proceedings of the American Ethnological Society W Publishing Co 1975 Glazer N Moynihan D P eds Ethnicity theory and experience Harvard Univ Press 1975 Guibernau M Rex J eds The ethnicity reader Cambridge Polity Press 1997 Hobsbawn Eric Industry and empire Penguin Books 1969 Hutchinson J Smith A D eds Ethnicity Oxford Univ Press 1996 Katz William Loren Black indians a hidden heritage New York Ehtrac 1986 198p Querino Manuel O colono preto como fator da civilização brasileira Bahia Imprensa Oficial do Estado 1918 37p Ribeiro Darci Diários índios os urubuskaapor São Paulo Cia das Letras 1996 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 80 Os Quilombos e as Novas Etnias 81 Rodrigues Nina Lucas da Feira In As coletividades anormais Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1939 p 15364 Coleção Biblioteca de Divulgação Científica Sigaud Lygia Os clandestinos e os direitos estudo sobre os trabalhadores da canadeaçúcar de Pernambuco São Paulo Duas Cidades 1979 Sollors Werner ed Theories of ethnicity New York Univ Press 1996 Wilmsen E N McAllister P eds The politics of difference ethnic premisses in a world of power Univ of Chicago Press 1996 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 81 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 82 C A P Í T U L O 2 Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba uma Comunidade Negra Rural no Oeste Baiano Sheila Brasileiro e José Augusto Sampaio Na atualidade a problemática das comunidades negras rurais vem adquirindo maior visibilidade no panorama nacional A imprensa tem veiculado situações concretas em que essas comunidades enquanto movimento social organizado através de suas entidades representati vas reivindicam ao Estado o cumprimento do art 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias incluído na Constituição Federal de 1988 À semelhança dos processos de reconhecimento e legitimação oficial de povos e terras indígenas no Nordeste intensifi cados nas últimas três décadas antropólogos e juristas têmse depara do no trato da questão daquelas comunidades com certas ambigüi dades de ordem teóricometodológica presentes de modo geral na literatura referente ao tema principalmente quando se trata de pre cisar os contextos sóciohistóricos em que tais grupos se constituí ram e se consolidaram como unidades discretas portadoras de um forte referencial étnico e assim diferenciadas do contexto so cial mais amplo No âmbito dos diversos processos de reconhecimento e legiti mação atualmente em curso no país de comunidades negras rurais e de seus territórios tradicionalmente ocupados o Ministério Público Federal através de suas procuradorias regionais dos Direitos do Ci dadão PRDC tem constituído fórum privilegiado originador de ações judiciais que ora tramitam nas esferas competentes da Justiça Federal Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 83 Quilombos 84 Definição técnica de quilombos Os territórios habitados por remanescentes de quilombos vêm sendo referidos na literatura antropológica como sítios historica mente ocupados por negros e que são possuidores de conteúdos cul turais de valor etnográfico Fundação Cultural Palmares Analisando a problemática jurídica instaurada pela inclusão do art 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias na Cons tituição Federal de 1988 Silva 199598 define as comunidades remanescentes de quilombos como núcleos de resistência contem porâneos onde o uso e a posse de suas terras se realizam numa simul taneidade de apropriação comum e privada dos seus territórios secu larmente ocupados onde desenvolvem práticas culturais religiosas de moradia e trabalho se afirmam enquanto grupo a partir de fideli dade às suas próprias crenças e noções de regras jurídicas consuetudi nariamente arraigadas atribuindolhes o papel de grupo étnico elemen to fundamental formador do processo civilizatório nacional A noção de grupo étnico foi incorporada ao cenário antropo lógico brasileiro a partir das formulações de Barth 1969150 que define grupos étnicos como categorias de adscrição e identificação utilizadas pelos próprios atores sociais para classificar a si mesmos e os outros de acordo com uma identidade básica e mais geral supostamente determinada por sua origem e formação Nessa perspectiva como bem aponta Oliveira 199411920 a permanência de elementos culturais de um passado longínquo não cumpre papel fundamental na classificação de um grupo como étnico visto que os elementos específicos de cultura como os costumes os rituais e valores co muns podem sofrer grande variações no tempo ou em decorrência de ajustes adaptativos a um meio ambiente diversificado O que im porta contudo é a manutenção de uma mesma forma organizacio nal a qual prescreve um padrão unificado de interação entre os mem bros e os nãomembros daquele grupo Oliveira chama a atenção para os riscos de se estender à socieda de envolvente a atribuição de conferir identidade a um grupo étnico pois este só pode ser definido em conformidade com critérios de exclusão e pertencimento elaborados pelos seus próprios membros Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 84 Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba 85 Daí resulta que ao elaborar laudos periciais ao invés de trabalhar com classificações étnicas operadas genericamente pela sociedade nacio nal o antropólogo deve explorar as incongruências internas aí verificadas percebendo que elas constituem parte de um campo de luta em que estão envolvidos todos esses atores Inicialmente operacionalizada nos estudos referentes aos proces sos sóciohistóricopolíticos de exclusão e esbulho do território tradi cional vivenciados de modo geral pelos povos indígenas no Brasil no contexto do contato interétnico a designação de grupo étnico vem sen do atribuída a outras coletividades1 Alçadas a uma posição de desta que na cena social brasileira elas vêm assumindo enquanto atores políticos as rédeas de seu destino enfrentando constrangimentos socioespaciais e políticos assim como os meandros jurídicoadminis trativos com vistas à legitimação de sua condição étnica e conse qüentemente dos direitos daí provenientes Nesse sentido a identi dade histórica de remanescente de quilombo emerge como resposta atual diante de uma situação de conflito e confronto com grupos sociais econômicos e agências governamentais que passam a imple mentar novas formas de controle político e administrativo sobre o território que ocupam2 Gusmão atenta por um lado para a insuficiência conceitual prática histórica e política do termo quilombo como designativo genérico das comunidades negras rurais se é negro de uma terra que se tem de uma terra que se possui Não é qualquer terra e nela não se é genericamente negro Enquanto sujeito se é e se pertence a este ou aquele grupo a este ou aquele lugar3 As denominadas terras de preto são constituídas com base em fatores étnicos lógica endogâmica casamento preferencial regras de sucessão e outras disposições que fazem da terra em comum um patrimônio É assim uma terra parti cularizada por fornecer ao grupo que dela usufrui mecanismos pró prios de identificação É também espaço de atuação individual fami 1 Por exemplo comunidades de negros e cafuzos 2 ODwyer 1995121 3 Gusmão 199568 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 85 Quilombos 86 liar e coletivo Pressupõe uma tradição histórica e cultural partilhada por grupos de descendência comum centrada no parentesco4 Entretanto de outro lado ressalta a positividade de constituir se similarmente a outros grupos étnicos uma nova identidade de ator político coletivo enquanto minoria étnica para si que para além dos grupos específicos fornece certa unidade de luta a exemplo dos diversos povos indígenas reunidos na designação índio além de uma categoria juridicamente reconhecida para mediar as suas relações com a sociedade nacional inclusiva5 A legislação concernente ao tema Conforme o art 68 do Ato das Disposições Transitórias ADCT incluído na Constituição Federal de 1988 Aos remanescentes das Comunidades dos Quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva deven do o Estado emitirlhes os respectivos títulos No mesmo ano da promulgação do art 68 do ADCT foi criada a Fundação Cultural Palmares subordinada ao Ministério da Cultu ra pela Lei no 7768 de 2281988 com a finalidade de promover a preservação dos valores culturais sociais e econômicos decorrentes da influência negra no processo constitutivo da sociedade brasileira Em Portaria Ministerial de no 25 de 1581995 publicada no Diário Oficial da União em 2281995 a Fundação Palmares estabeleceu as normas que regerão os trabalhos de identificação delimitação titulação e demarcação das terras ocupadas por remanescentes de quilombos em conformidade com o dispositivo supracitado nos mesmos moldes utilizados pela Funai para proceder à regularização das terras indígenas decretos no 22 de 421991 e no 608 de 20 71992 substituídos pelo Decreto Presidencial no 1775 de 81 4 Gusmão 199566 5 Ibid p 667 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 86 Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba 87 1996 com regras estabelecidas pela Portaria Ministerial no 14 de 911996 Em face da polêmica instaurada no meio jurídico quanto à normatividade do art 68 do ADCT Silva 19951047 ancorado na tipologia clássica de José Afonso da Silva acerca dos níveis de aplicabilidade das normas constitucionais e no art 5o capítulo I da Constituição Federal de 1988 infere que aquele possui aplicabilidade imediata não necessitando de lei ou medida ordinária que o regula mente tendo em vista o fato de dispor sobre títulos de propriedade direito circunscrito entre os direitos e garantias fundamentais prote gidos constitucionalmente Não obstante na visão do autor nada impede a criação de uma lei ordinária originada do Congresso Na cional ou mesmo do Executivo para assegurar a correta aplicação do art 68 visto ser o âmbito do direito constitucional muito sensível às injunções de ordem política estando o texto constituinte sujeito a múltiplas interpretações aberto à criação e influxos provenientes de uma ampla participação direta dos envolvidos e dos organismos de mediação que lhes prestam apoio De outra perspectiva Silva argumenta que a regulamentação do art 68 do ADCT na forma de uma medida ordinária pode vir a constituir precioso instrumento jurídico no sentido de transpor o obstáculo representado pela prevalência de uma certa intransitividade no interior do aparelho do Estado para situações tidas como de im portância menor ou populações relacionadas como em estado termi nal Registra ainda a importância de se contemplar para maior efi cácia nas temáticas afetas às populações negras a complementaridade do art 68 do ADCT com os artigos constitutivos da seção II capítu lo III título VIII da Constituição Federal que tratam da cultura em suas formas permanentes Art 215 O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional e apoiará e incenti vará a valorização e a difusão das manifestações culturais Cap I O Estado protegerá as manifestações das culturas popula res indígenas e afrobrasileiras e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 87 Quilombos 88 Art 216 Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de na tureza material e imaterial tomados individualmente ou em con junto portadores de referência à identidade à ação à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira nos quais se incluem I as formas de expressão II os modos de criar fazer e viver III as criações científicas artísticas e tecnológicas IV as obras objetos documentos edificações e demais espaços destinados às manifestações artísticoculturais V os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico paisagístico artístico arqueológico ecológico e científico que por sua vez cul minam para uma interação integrativa do art 216 no seu 5o 5o Ficam tombados todos os documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos Silva aponta alguns critérios preliminares a serem tomados em conta na feitura dessa lei ou medida provisória com força de lei a fim de nortear os processos de identificação e de caracterização das comunidades negras remanescentes de quilombos presentes na cena nacional a saber priorização das categorias de autoadscrição e de autodefinição dos interessados ocupação fundada em apossamento secular de terras existência de uma base geográfica comum a todo o grupo invariavelmente sem titulação nem inventários formais de par tilha convivência regulada de modo geral por normas consuetudina riamente construídas organização do trabalho em unidades familia res autodenominação como terras de preto remanescentes de quilombos comunidades negras rurais mocambo quilombo ou termos análogos que apontem para uma etnicidade predominan temente negra relativa harmonia do grupo com os recursos naturais disponíveis em seu território Sugere ainda como parâmetros de atua ção do Executivo nos processos de reconhecimento e emissão de títu los às comunidades negras rurais a observância de certos procedi mentos dentre os quais destacamos competência da Justiça Federal para apreciar todo o pro cesso com possibilidade em caso de conflito de institui Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 88 Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba 89 ção de medida cautelar em benefício das comunidades ne gras rurais em terras públicas para a emissão do título coletivo de pro priedade considerar como suficiente parecer favorável da Fundação Cultural PalmaresMinc e laudo antropológico elaborado por perito indicado pela Associação Brasileira de Antropologia para definição dos domínios territoriais em foco deverão ser necessariamente ouvidos os beneficiários diretos do ato de reconhecimento Perícia antropológica laudos e pareceres de identificação reflexões sobre os limites de atuação do antropólogo Marques 1974225 define perícia como prova destinada a levar ao juiz elementos instrutórios sobre algum fato que dependa de conhecimentos especiais de ordem técnica A prova em questão consiste numa verificação sobre determina do objeto entendido como algo material para cuja percepção se exi gem conhecimentos técnicos específicos Por outro lado os laudos ou pareceres são perícias desafetadas juridicamente isto é requeridas basicamente na condução de processos administrativos 6 O profissional de antropologia tem sido chamado com freqüên cia a intervir na qualidade de perito nos processos de identificação de grupos étnicos e dos territórios por eles reivindicados Esses pro cessos são em grande medida administrativos deflagrados pelos ór gãos oficiais de proteção das denominadas minorias étnicas a Funai no caso dos povos indígenas e a Fundação Cultural Palmares em se tratando de comunidades negras descendentes de antigos quilombos Nas perícias judiciais o antropólogo deve avaliar uma série de quesitos propostos pelo juiz eou pelos advogados das partes envolvidas na demanda preocupandose em respondêlos de modo 6 Ver Gonçalves 199480 85 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 89 Quilombos 90 preciso objetivo e conciso tendo sempre em vista que a sua eficácia é necessariamente função do rigor acadêmico a eles conferido Na elabo ração de laudos e pareceres administrativos geralmente solicitados em face da prevalência de um contexto de tensões e conflitos territoriais devem contudo ser observados os mesmos critérios capacitandoos a uma provável utilização futura em discussões de cunho jurídico7 Na realização de laudos e perícias o antropólogo não deve re vestirse de uma autoridade acadêmica que supostamente o capacita a infirmar ou mesmo negar a identidade de grupos étnicos e ainda definir as suas fronteiras ante outros segmentos da sociedade nacional pois indubitavelmente em última análise cabe aos próprios membros dos grupos étnicos se autoidentificarem e elaborarem seus próprios critérios de pertencimento e exclusão mapeando situacionalmente as suas fronteiras étnicas Segundo Oliveira 1994127 diversamente de outros especialistas ao atuar como perito o antro pólogo não pode ceder ao mito cientificista de autoridade professoral passando a substituir classificações sociais defendidas por atores históricos concretos por um recorte objetivo e científi co sustentado apenas por ele E de modo geral internamente ao próprio grupo étnico reitera o autor operam mesmo certas categorias nativas de autoidentifica ção e práticas interativas exclusivas que atuam no sentido de delimitá lo em face de outros ainda que varie substantivamente o conteúdo das categorias classificatórias e que a área específica de sociabilidade se modifi que bastante expandindose ou contraindose em diferentes con textos situacionais8 7 Ver Santos 1994712 8 Oliveira 19941234 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 90 Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba 91 Ao antropólogo cabe pois o papel de identificar a estruturação interna do grupo e os seus processos sociais interativos isto é não definir mas contextualizar o grupo utilizando como parâmetro as classificações e categorias nativas de autoidentificação Barth desenvolveu alguns pontos básicos de reflexão a serem observados quando da realização de pesquisas acadêmicas abordando grupos étnicos Uma adscrição categórica é uma adscrição étnica quando classifica uma pessoa de acordo com sua identidade básica e mais geral su postamente determinada por sua origem e sua formação Na medi da em que os atores utilizam as identidades étnicas para categorizar se a si mesmos e aos outros com fins de interação formam grupos étnicos neste sentido de organização9 As distinções étnicas categoriais não dependem de uma ausên cia de mobilidade de contato ou informação antes implicam pro cessos sociais de exclusão e incorporação pelos quais são conserva das categorias discretas apesar de mudanças de participação e afiliação no curso das histórias individuais10 Devese considerar o compartilhamento de uma cultura comum mais como uma implicação ou um resultado que como uma caracte rística primária e definitiva da organização do grupo étnico11 Os grupos étnicos não estão baseados simples ou necessaria mente na ocupação de territórios exclusivos12 Referido ao contexto de atuação institucional entre os povos indígenas localizados no Brasil Oliveira ressalta os riscos de se tentar como forma de legitimação reconstituir uma suposta continuidade histórica dos grupos no presente seja com o recurso a técnicas pro priamente antropológicas como por exemplo a pesquisa genealó 9 Barth 196915 10 Ibid p 10 11 Ibid p 12 12 Ibid p 17 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 91 Quilombos 92 gica e documental e a história oral ou arqueológicas e lingüísticas Em muitos casos e principalmente na região Nordeste os resultados são desoladores visto que a única continuidade que talvez se possa sustentar é aquela de recu perando o processo histórico vivido por tal grupo mostrar como ele refabricou constantemente sua unidade e diferença em face de outros grupos com os quais esteve em interação13 No caso dos povos indígenas do Nordeste afirma o autor essa descontinuidade que por certo implica uma tênue visibilidade peran te a sociedade mais ampla não deve constituir um impedimento ao seu reconhecimento enquanto grupo étnico e à regularização das suas terras Tal descontinuidade vale notar não é conseqüência de uma diferença cultural mas sim uma produ ção da instância política calcada em fatores históricos concretos como o seu aldeamento e territorialização através das missões reli giosas14 Nessa linha de raciocínio válida acredito também no que toca às comunidades negras descendentes de antigos quilombos enquanto grupos étnicos a argumentação básica centrase no fato de que a ne cessidade por parte dos grupos de possuir uma identidade singularizadora é contemporânea ao próprio processo de contato interétnico e às tentativas de esbulho daí decorrentes dos territórios tradicionalmente ocupados pelos grupos isto é a etnicidade enquanto fenômeno político de caráter contrastivo só faz sentido como cate goria nativa construída num contexto de oposição A cultura é nesse sentido utilizada de modo gramatical tendo em vista que como já observara Carneiro da Cunha 1986100 a escolha dos tipos de traços culturais que irão garantir a distinção do 13 Oliveira 1994123 14 Oliveira 1993vii Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 92 Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba 93 grupo enquanto tal depende dos outros grupos em presença e da sociedade em que se acha inserido já que os sinais diacríticos devem poder se opor por definição a outros do mesmo tipo Portanto a cultura de determinado grupo étnico jamais pode ser percebida como uma totalidade acabada estática cristalizada nem servir de ponto de partida para a sua definição Na realização de laudos e perícias para fins de contextualização de determinado grupo étnico tem sido freqüente certa supervalorização das fontes documentais em detrimento das fontes orais como se aquelas tivessem por si só o poder de conferir maior legitimidade às demandas do grupo Esse ponto de vista encontra certo respaldo no fato de a escrita representar nas sociedades le tradas uma forma de expressão mais acabada reconhecida refi nada e precisa É preciso lembrar porém que fontes escritas tam bém são manipuláveis e muitos são os casos conhecidos nos quais elas foram francamente utilizadas como instrumento de dominação e poder em face daquelas sociedades que dela não dispõem Segun do Paraíso 199444 no caso das fontes documentais somos obrigados a questionar de forma conseqüente seus autores e o conteúdo Temos que nos pre ocupar com quem escreveu mas também por que escreveu e inserir o documento no momento histórico da sua produção Outro elemento a ser considerado é a pertinência do autor a determinado segmento social e seus valores grau de instrução e ideologia pecu liar além das alianças e compromissos assumidos por este segmen to e com quem No mundo camponês onde se inserem as comunidades negras rurais como aponta Gusmão 199571 a memória é o caminho pelo qual os grupos percorrem os espaços da vida e constroem a imagem de si e da terra particular no tempo O mundo camponês como universo próprio de coisas e sig nos práticas e rituais públicos e privados individuais e coletivos tem a oralidade como forma de preservação e sustentação desse Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 93 Quilombos 94 mundo e busca nela os instrumentos de sua luta Ao lado da oralidade segue afirmando a autora também o direi to costumeiro legitimado pela prática que regula via de regra a con duta dos membros de uma comunidade negra rural não é reconheci do pela lei verificase no espaço da terra a categoria dos cidadãos proprietá rios e dos nãocidadãos negros livres ou não que historicamente ocuparam a terra Uma terra concedida efêmera e identificada No primeiro caso temse a lei que legaliza e legitima enquanto no se gundo caso temse o costume que apesar de legítimo não encontra respaldo na lei e precisa legalizarse15 Outra questão procedente atémse às representações que infor mam a noção de território tradicionalmente ocupado imperativas no senso comum e freqüentemente presentes entre os próprios antro pólogos que a associam de modo geral à acepção de ocupação imemorial Gonçalves 199483 afirma categoricamente com refe rência ao caso indígena e a meu ver de forma bastante pertinente também para pontuar a relação com a terra entre os demais grupos étnicos não existir qualquer correspondência entre terra tradicio nalmente ocupada e tempo de ocupação E cita novamente José Afonso da Silva Ocupadas tradicionalmente não significa ocupação imemorial o tradicionalmente referese ao modo tradicional de os índios ocupa rem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção en fim ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra já que há comunidades mais estáveis outras menos estáveis e as que têm espaços mais amplos em que se deslocam etc Daí dizerse que tudo se realize segundo seus usos costumes e tradições Por outro lado do mesmo modo que a etnicidade emerge tipica mente num contexto conflituoso de contato com a sociedade nacio 15 Gusmão 199573 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 94 Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba 95 nal mais ampla a idéia de um território fixo delimitado é esboçada no interior do grupo étnico quando este se vê compelido pelas fren tes de expansão ou por setores politicamente influentes interessados em suas terras a ordenálas e demarcálas o que Oliveira 1993 classifica como processo de territorialização sob pena de assis tir impotente à sua usurpação gradual e definitiva por outrem É pois tarefa do antropólogo investigar como o território é pensado pelo grupo no presente Em suma como recomenda Oliveira 1994133 na confecção de um laudo de identificação de terras a própria proposta de território que um grupo étnico elabora não pode ser examinada independentemente das lideranças que a veicu laram da geração que a concebeu das alterações no sistema produti vo e na disponibilidade de recursos ambientais expressando também uma apreensão específica da correlação de forças frente aos brancos em nível local bem como da conjuntura histórica mais ampla Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba Nossos primeiros contatos com a comunidade negra rural de Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba datam de 1995 Localizada a 850km de Salvador na região oeste da Bahia município de Wanderley às margens do rio Grande a comunidade constituída por cerca de duas centenas de indivíduos conforma basicamente uma grande família extensa aglutinada em torno de laços de consangüinidade e afinidade centralizados na liderança da matriarca Maria Pereira dos Santos 76 anos conhecida como Maria da Cruz 11 filhos 60 netos e 55 bis netos Em 24 de junho de 1990 Maria da Cruz e outros representan do a comunidade de Riacho de Sacutiaba constituíram advogado e entraram na comarca de Wanderley com uma ação de manutenção de posse visando assegurar o acesso à estrada municipal que liga seus núcleos de ocupação à cidade de Wanderley vedado por um fazen deiro confrontante O fazendeiro modificara o traçado do acesso constrangendo a comunidade a passar em frente a uma sede por ele Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 95 Quilombos 96 construída recentemente numa área antes ocupada por roças da co munidade do Riacho Em 21 de junho de 1990 declaração subscrita por 32 assinatu ras de notórios locais políticos comerciantes fazendeiros religiosos etc inclusive pelo então prefeito de Wanderley Antônio Porto atestou a posse da comunidade como animus domini por si e por seus antecessores há mais de 200 anos sobre uma área de terra na locali dade denominada Riacho de Sacutiaba Wanderley BA Anexada aos autos da ação impetrada por Maria da Cruz essa declaração teria peso decisivo na concessão pela juíza substituta da comarca de Cotejipe em 2 de julho de 1990 de uma liminar favorável Após um curto período de tréguas e aproveitando a remoção da referida juíza para outra comarca e a propalada relutância do juiz substituto em fazer cumprir a liminar o mesmo fazendeiro voltaria a provocar com uma série de atos abusivos a comunidade de Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba Em 4 outubro de 1995 a comunidade de Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba enviou uma primeira representação à Fundação Cultural Palmares solicitando a regularização de seu território consoante os termos do art 68 do ADCT da Constituição Federal de 1988 Em outubro do mesmo ano a Fundação Palmares encaminhou o proce dimento à 6a Câmara de Coordenação e Revisão do MPF 6a CCR em Brasília para a adoção das providências cabíveis Ofício de um assessor da 6a CCR declarou à Fundação Palmares não existir nos autos elementos que comprovem que as comunidades são remanes centes de quilombos Caberia à Fundação Palmares desenvolver pes quisa nesse sentido para verificar o possível vínculo entre as comuni dades e algum antigo quilombo da região Recomendou por parte da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão na Bahia a ado ção de providências no acompanhamento do caso Em 5 de março de 1996 a Fundação Cultural Palmares impetrou ação civil pública na Justiça Federal da Bahia com pedido de liminar a fim de que se suspendessem a ocupação e o prosseguimento das obras na comunidade de Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba por parte do fazendeiro supracitado Em seu despacho o juiz Pedro Braga Fi lho titular da 1a Vara da Justiça Federal da Bahia alegou insuficiên Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 96 Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba 97 cia de dados por parte da Fundação Palmares na propositura da ação solicitando o suprimento dos defeitos e irregularidades apontados no prazo de 10 dias sob pena de seu indeferimento e extinção do processo sem julgamento do mérito Em 12 de abril de 1996 decisão do juiz federal substituto da 1a Vara da Justiça Federal da Bahia denegou a liminar pleiteada na Ação Civil Pública por incorrência dos registros necessários à sua concessão prova antropológica e etnológica ou da constatação por documentos idôneos e levantamentos históricos do fato da ocupação ancestral das terras a serem declaradas de propriedade dos descenden tes dos antigos quilombolas Em novembro de 1996 em visita ao município de Wanderley conversamos com políticos aliados da comunidade especialmente o exprefeito Antônio Porto e a vereadora Irlândia Delgado que nos conduziram às localidades de Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba Con forme relatou Irlândia Delgado então presidente da Câmara de Ve readores de Wanderley ela e Antônio Porto travaram o primeiro contato com essa comunidade eleitora dentre diversas outras ribeiri nhas em 1985 quando se encontravam em campanha política pelo município Desde então Irlândia e Antônio Porto têmse empenha do no sentido de auxiliar a comunidade a assegurar a posse do seu território tradicional Dois meses após essa primeira visita à área assumimos no âmbi to de um convênio firmado pelo Centro de Estudos de Territórios e Populações Tradicionais com o Ministério da Cultura o trabalho de identificação da comunidade de Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba e de delimitação do seu território tradicional A memória dos habitantes de Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba indica uma permanência na área de cerca de 200 anos em estado de relativo isolamento quebrado apenas por viagens ocasionais de al guns de seus habitantes a localidades vizinhas também situadas às margens do rio Grande como Goiabeira Jatobá Boqueirão Porto das Ilhas Gregório Baboseira Tabatinguinha Tabatinga Grande Conceição e ainda mais esporadicamente às cidades de Barra e Wanderley Maria da Cruz como sua mãe e sua avó materna nasceu na Sacutiaba transferindose após o casamento para a localidade de Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 97 Quilombos 98 Riacho de Sacutiaba O pai de sua mãe Joaquim Pereira dos Santos morou durante muito tempo na Sacutiaba Proveniente das bandas do Tabuleiro foi o primeiro a ser sepultado no cemitério local situado no caminho para Sacutiaba Trabalhou durante certo tempo como vaqueiro dos Pinto então proprietários da fazenda Sacutiaba O avô paterno de Maria da Cruz residia na Boca do Tabuleiro trans ferindose posteriormente para a localidade de Riacho com mulher e filho Está enterrado num cemitério localizado numa das fazendas limítrofes a Conceição O antigo proprietário das terras onde se localiza a comunidade era Joaquim Pinto tio materno de Custódia Pinto que herdou a fazenda Sacutiaba e a vendeu em 1973 com uma extensão de 5 mil hectares aos seus atuais proprietários o pernambucano Eliezer Martins de Limas Dantas e um seu cunhado Orlando Martins Delgado com a recomendação de eles não mexerem com os terrenos ocupados pelo pessoal que se encontra na área desde os tempos do Joaquim como moradores dele conforme relatou Maria da Cruz Quando os Pinto adquiriram a fazenda Sacutiaba o local já era povoado pelos nêgo véio Sua chegada parece não ter determinado mudanças sig nificativas no cotidiano das pessoas do lugar Desde que adquiriram Sacutiaba Eliezer e Orlando têmse em penhado por todos os meios em expandir os seus limites Hoje afir mam possuir uma extensão de 35 mil hectares de terras que se encon tram praticamente no mato salvo por uma ou outra roça aberta recentemente por orientação do seu advogado sobre terrenos tradi cionalmente cultivados pela comunidade O efetivo pecuário da fa zenda não ultrapassa 200 cabeças de gado Os grileiros têm buscado reduzir o território da comunidade às faixas alagadiças em sua maio ria imprestáveis para a prática da agricultura situadas à margem do rio Grande na estrada que liga os núcleos de Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba A primeira circunscrição de uma terra de direito é con temporânea a esse processo de espoliação Antônio da Cruz relacio nou as picadas abertas pela comunidade quando demarcou por con ta própria os limites do que até então considerava como área de ocupação tradicional Essa medição com uma extensão de cerca Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 98 Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba 99 de 800ha não incluiu as faixas alagadiças algo em torno de 100ha Posteriormente a medição encomendada pela comunidade à firma Planteca Ltda sediada na cidade de Barreiras em agosto de 1995 incluiria parte desses terrenos delimitando uma extensão de 99320ha Eles botaram na fazenda dois variantes pra dividir com nós Sobre os negócios do documento né Aí depois nós fizemos uma varian te com aquela roça da estrada ele mandou nós sair da extrema do Riacho pra lá que ia ser vizinho nosso não tinha aborrecimento Então nós fizemos uma variante a primeira variante Depois ele mandou fazer outra variante lá na frente com 1km e 800m Quando chegou em 850m ele disse que não dava que nós não tinha terra Que não tinha direito Não não posso dar que vocês não têm esse direito Ele disse que não podia não que nós não tinha terra ele tinha comprado Doutor mas nós tem esse direito nosso Não vocês não têm direito não vocês têm direito ao chão de casa se acontecer se não acontecer vocês não têm direito de nada Aí nós partimos pra justiça Ele ainda falou assim se vocês tiverem direi to a justiça dá E aí nós tamos lutando na justiça por causa disso João morador de Riacho de Sacutiaba janeiro de 1997 A localidade de Riacho de Sacutiaba primeira a ser alcançada por quem chega pela estrada da cidade de Wanderley situada a 90km possui 178 habitantes distribuídos em 29 grupos domésticos Há 30 casas de moradia dispostas irregularmente algumas delas circun dando um terreno sombreado por duas árvores de troncos espessos espécie de praça de chão batido com um campo de futebol onde as pessoas do lugar se reúnem para conversar e brincar As casas obede cem a um padrão residencial que provavelmente pode ser estendido às demais populações estabelecidas ao longo das margens do rio Gran de são construções compridas e estreitas de taipa cobertas por palha de carnaúba geralmente com dois ou três cômodos utilizados como sala de jantarestar e dormitórios As salas possuem duas saídas pa ralelas sem portas Uma dessas saídas dá acesso a uma construção contígua também sem portas onde são preparados os alimentos num fogão de barro batido a lenha Apenas os dormitórios dispõem de portas Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 99 Quilombos 100 As residências que em geral congregam apenas uma família nu clear localizamse preferencialmente no interior de um grande cerca do que agrupa três ou quatro casas de parentes próximos No inte rior do cercado encontramse árvores frutíferas em profusão como mangueira mamoeiro bananeira laranjeira goiabeira cajueiro etc além de giraus onde são plantados produtos de horta para consu mo doméstico tais como hortelã coentro pimentão etc É também comum haver pés esporádicos de produtos classificados localmen te como de roça como bananeira milho etc ou de semente miú da como melancia abóbora gergelim Há três casas de moradia localizadas no caminho RiachoSacutiaba habitadas por famílias pro venientes da localidade de Riacho de Sacutiaba O cemitério local está situado nesse caminho Os túmulos são protegidos individual mente por cercas construídas com toras de madeira dispostas verti calmente de forma irregular A cerca de 300 metros de distância da praça encontrase o riacho de Sacutiaba afluente do rio Grande este último situado a um quilômetro de distância do povoado No riacho são lavadas as louças e a roupa da casa tarefa normalmente realizada pelas mulheres Há espaços claramente demarcados para o desempenho dessas ativida des a jusante é reservada às louças e a montante à lavagem das rou pas e aos banhos Também do riacho provém toda a água consumida no interior das casas A quatro quilômetros de distância da localidade de Riacho de Sacutiaba subindo o rio encontrase o núcleo de Sacutiaba consti tuído por sete casas dispostas de forma irregular no terreno edificadas grosso modo segundo os mesmos padrões observados nas residências de Riacho de Sacutiaba construções compridas e estrei tas de taipa com cobertura de palha de carnaúba com agrupamen to de casas de parentes próximos no interior de um mesmo cerca do recoberto por árvores frutíferas e alguns produtos da roça basicamente semelhantes àqueles encontrados nos cercados do nú cleo de Riacho de Sacutiaba Todavia diferentemente do Riacho as residências aí localizadas dispõem de portas de saída e de uma cozinha no seu interior Sacutiaba localizase na margem esquer da do rio Grande e seus terrenos em épocas de grandes enchentes Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 100 Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba 101 ficam submersos Nessas ocasiões seus habitantes transferemse tem porariamente para as roças A população local utiliza as águas da lagoa da Porta assim denominada devido à sua localização pratica mente na beira dos quintais das casas Os moradores de Sacutiaba constituem uma espécie de prolon gamento da parentela do Riacho Sua habitante mais antiga é a viúva Arcanja prima cruzada de Maria da Cruz nascida na localida de de Riacho de Sacutiaba Sua mãe Francisca é originária de Sacutiaba Casou com um irmão da mãe de Maria da Cruz permane cendo durante alguns anos no Riacho Posteriormente voltou com o marido para Sacutiaba onde criou os seus filhos Arcanja afirma pos suir uma escritura de domínio uma escritura antiga com tantos mirréis de terra em Sacutiaba De fato sabese que com o declínio do sistema escravocrata os coronéis passariam a estimular a vinda de agregados acenandolhes com a possibilidade de ali cultivarem pequenas porções de terra Os moradores de Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba praticam uma agricultura extensiva voltada basicamente para a subsistência Não há diferenças significativas entre as duas localidades na qualidade dos terrenos destinados à agricultura as terras de alto são da mesma qualidade das da beira do rio afirmounos um de seus habitantes quando percorríamos os quatro quilômetros que separam as localida des de Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba Os principais produtos cul tivados são o milho o feijão a mandioca e o arroz na Sacutiaba também o plantio do fumo alcança certa expressividade As roças localizamse próximas às casas de moradia as mais distantes confor me Antônio estão no máximo a 100m das casas As roças são aber tas geralmente numa área de três a cinco tarefas sendo posterior mente acrescidas de áreas limítrofes Algumas podem atingir uma extensão de 100 a 120 tarefas Não sendo a terra adubada seu tempo de esgotamento é curto variando de quatro a seis anos e o período de regeneração é em média de três anos Quando a terra está novamente ematada é feito o aceiro isto é todo o mato é derrubado reuni do no centro do terreno e queimado O plantio é realizado entre os meses de outubro a janeiro durante as chuvas e o período de colheita cobre os meses de abril a setembro com maior concentração no mês Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 101 Quilombos 102 de julho Os produtos que não vão ser consumidos imediatamente ou estocados são vendidos ou trocados por outros gêneros nos paque tes barcos a vapor e canoas de comércio que navegam pelo rio Grande Há dois portos de comércio um situado na localidade Riacho e ou tro de maior porte em Sacutiaba Em Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba cada família possui uma quantidade expressiva de gado bovino caprino e suíno além de gali náceos e eqüinos A pesca é outra atividade reputada como de funda mental importância para a subsistência do grupo sendo realizada em lagoas principalmente no período de chuvas A caça atualmente é realizada de forma muito esporádica devido ao desmatamento pro movido nas cercanias nas últimas duas décadas pelos fazendeiros pro prietários da fazenda Sacutiaba e à fiscalização que o Ibama vem exer cendo na área A carne de alguns animais silvestres como teiú veado peba tatu e cutia é consumida mas não com a mesma freqüência observada em tempos idos Frutos silvestres como umbu cagarta jenipapo cruili juá murici e timbó são coletados na serra do Boqueirão A madeira é utilizada basicamente para a confecção de cercas ou móveis e para alimentar os fogões de barro batido Percorrendo a área com Antônio da Cruz indagamos acerca da origem do envolvimento de Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba com a Fundação Cultural Palmares Segundo relatou essa conversa de Palmares partiu de um comentário do então advogado da comuni dade que lera a respeito da existência na região de diversos grupos ribeirinhos cuja origem poderia facilmente remontar à época da che gada de levas de escravos oriundos do norte do estado de Minas Ge rais que teriam escapado pelo rio São Francisco subindo posterior mente o rio Grande e instalandose no sopé da serra do Boqueirão na margem direita do rio numa região de difícil acesso16 A hipótese de que os habitantes de Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba seriam descendentes dessas levas de escravos foi rapi 16 Essa versão acerca da origem do grupo foi rapidamente veiculada pela mídia local como expressão de um fato histórico concreto Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 102 Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba 103 damente endossada pelo exprefeito de Wanderley e patrono da comunidade Antônio Porto a região onde hoje se encontram os colonos é de difícil acesso Como eles teriam chegado senão como refugiados Toda a área situada às margens desse trecho do rio Grande pare ce mesmo ter sido povoada inicialmente por escravos e exescravos É na passagem do século XVIII ao XIX que surgem as informações mais consistentes sobre estabelecimentos de escravos fugidos ou rebelados nessa região Ziglia Dórea em caracterização histórica da comunidade negra rural de Rio das Rãs situada na margem direita do médio São Francisco referese à existência de uma expedição de caça no século XIX ao quilombo de XiqueXique 1801 Estando XiqueXique praticamente defronte à vila da Barra e à serra do Boqueirão que dista 15 a 20 léguas a oeste daquela podese supor que no entorno da vila da Barra em ambas as margens do São Fran cisco e do rio Grande situavamse as principais fazendas de gado da região arruinadas ao longo do século XVIII17 Nessas circuns tâncias as encostas de serras próximas e suas vertentes propiciam além da relativa segurança fornecida pelo relevo as melhores condi ções no semiárido para a prática da agricultura fora da várzea dos grandes rios A simples possibilidade da formação de quilombos como os de XiqueXique no lado então pernambucano indica claramente a serra do Boqueirão como local preferencial para o seu assentamento A relevância estratégica da fazenda Boqueirão certamente lhe permitia controlar um vasto território a oeste de sua sede ainda que seja tam bém certo o escasso domínio econômico de seus proprietários sobre esse território e seus habitantes devido à quase completa ausência em toda a região de produção agrícola ou pecuária voltada para mercado e à própria escassez demográfica Com efeito até meados dos anos 1970 quase toda a porção norte do atual município de Wanderley 17 Aliás a grande ilha que o São Francisco forma junto a XiqueXique e que se estende até as proximidades de Barra chamase ainda hoje sugestivamente ilha do Gado Bravo Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 103 Quilombos 104 estendendose pela referida vertente ocidental da serra do Boqueirão e pelas margens direitas do rio Grande e de seu afluente Tijucuçu mantinhase em mãos de um único grupo de herdeiros referidos sucessoriamente à propriedade Boqueirão cuja cadeia dominial segun do um dos seus herdeiros18 remonta a 1820 seguramente não por coincidência o mesmo ano em que se criou a comarca de Barra19 a primeira do oeste baiano na qual se encontra registrada sua escritura Aí está situada há pelo menos 150 anos à margem direita do rio Gran de e a cerca de duas léguas do Boqueirão e da vertente de sua serra a comunidade rural negra de Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba A possibilidade de vir a ser enquadrada no art 68 do ADCT como remanescente de quilombo acenada pelo advogado como alternativa às injunções políticas que vinham paralisando os trâmites do processo instaurado no âmbito municipal evidenciouse imedia tamente aos olhos da comunidade de Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba e de seus aliados como uma estratégia mais eficaz e profícua para assegurar a posse da terra tradicionalmente ocupada A moradora mais antiga Maria da Cruz desencadeadora do processo reivindicatório resumiu em apenas duas frases a legitimidade do pleito Não sei se meu pai foi escravo mas deve ter sido porque é herança de nego Podem ter libertado mas foi Como forma de se contrapor e desnaturalizar a situação atual de confronto e esbulho vivenciada por sua comunidade Maria da Cruz referiu inicialmente algumas categorias particulares de autoadscrição e identificação que apontam para a constituição progressiva de uma condição de orgulhosa independência e liberdade Moradores ro ceiros posseiros representam a conformação de um direito legiti mado historicamente pela permanência na área Nunca teve fazen deiro pra abusar de nós Porque se abusasse quando chegasse aqui não encontrava nós As possibilidades de incorporação de uma identidade básica e mais geral a sua própria virtualidade são um construto do presente 18 Aécio Pinto Dantas Júnior em informação pessoal 19 Ver Aguiar 1979 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 104 Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba 105 ainda que com substrato num tempo pretérito E os seus contornos vão sendo delineados com o recurso à memória dos mais velhos Lem branças do tempo da escravidão são ativadas a terra é toda ela delimitada e sinalizada em termos desse tempo pretérito de sujeição Capitão Nélson que chegou aí nos tempos dos nego véio né Dos revoltosos Botava o pessoal pra fazer as coisas só pra ganhar um prato de comida ou uma calcinha ou um calçãozinho um shortinho pra vestir Aí chegava aqui se tinha um chicote na minha mão que era bom ele tomava e saía andando Chegava na Sacutiaba tinha uma panela no fogo tava com fome pegava comia e saía andando No tempo da escravidão mesmo Maria da Cruz moradora do Riacho de Sacutiaba Localidades próximas à comunidade originadas de antigas fa zendas de gado são mencionadas Toda essa área teria sido povoada inicialmente por fazendeiros e seus escravos e exescravos A maioria aqui dos baianos é tudo preto É mais é preto do que branco do que amarelo É 200 pretos e cinco vermelhos Quando eles se apossaram foi com os escravos deles Era só gado A mata aqui é apertada quando todo mundo chegou e entrou dentro e pronto E eles também era fazendeiro mas não cercou nada Tudo era mata aqui Eles mesmo só criavam gado Algum gado porco cabra Os escravos eram pra dentro de casa Testemunhos do trabalho escravo são ainda hoje encontrados Tem uma casa com mais de 200 anos na Goiabeira Feita pelos escravos A casa tá abandonada assim mas a dona tá morando numa outra casa Os caibro dela é da grossura dessa travessa aí é de carnaúba mesmo Tem caibro de madeira de carnaúba Finalmente chegase ao ponto de esboçar um claro recorte étni co compatível com as referências históricas disponíveis precisando a origem da comunidade Maria da Cruz identifica sua bisavó materna como uma nêga nagô legítima A véia era nagô A bisavó minha vó de minha mãe Mas o pai era caboclo Eu não lhe contei o causo que minha mãe dizia que a avó Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 105 Quilombos 106 dela não penteava os cabelos Era nagô nega cheia de berruga tudo berrugento nós tudo A raça ficou toda assim cheia de berruga Eu sou cheia de berruga Pode atravessar uma corda de laço e amarrar nos chifres da berruga e puxar Nós não é tudo disgramado sem cabelo Porque nego não tem cabelo nego nagô cativo Direito sacramentado pois quando da assunção daquela iden tidade básica e mais geral que preside conforme Barth 1969150 a construção de uma etnicidade Uma adscrição categórica é uma adscrição étnica quando classifica uma pessoa de acordo com sua identidade básica e mais geral supostamente determinada por sua origem e sua formação Todo esse processo ocorre logicamente pari passu com uma territorialização isto é a própria noção de terra de direito ressemantizada pela comunidade nesse novo contexto expandese tem poral e espacialmente de modo a atender aos pressupostos implícitos na constituição de um território tradicional de um grupo étnico No caso de comunidades remanescentes de quilombos esses pressupos tos são concebidos à imagem e semelhança daqueles que presidem a definição de uma terra indígena como demonstra a Portaria Ministe rial no 25 de 1581995 publicada no Diário Oficial da União em 22 81995 na qual a Fundação Palmares estabelece as normas que re gerão os trabalhos de identificação delimitação titulação e demarcação das terras ocupadas por remanescentes de quilombos O parecer que aprova o laudo de identificação e delimitação da Comunidade Negra Rural de Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba como remanescente de quilombo com uma área de 1144008ha foi publi cado no Diário Oficial da União de 2851997 Reconhecida oficial mente e com um território corretamente definido a comunidade permanece contudo exposta às investidas dos fazendeiros confron tantes pois até o presente não foram firmados prazos nem definidas as competências devidas para a execução das demais etapas do pro cesso de regularização das terras de quilombos Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 106 Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba 107 Referências bibliográficas Aguiar Durval Vieira de Província da Bahia 1888 Rio de Janeiro Cátedra Brasília INLMEC 1979 Associação Brasileira de Antropologia Terra de quilombos Rio de Janeiro 1995 Barth Friedrik Introduction In Barth F ed Ethnic groups and boundaries the social organization of cultural difference London George Allen Unwin 1969 Brasileiro Sheila Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba uma comunidade negra rural no oeste baiano Relatório de identificação e delimitação Salvador Convênio CETTMinC jan 1997 Carneiro da Cunha Manuela Parecer sobre os critérios de identidade étnica In Antropologia do Brasil mito história e etnicidade São Paulo BrasilienseEdusp 1986 Dórea Ziglia Zambrotti O Quilombo do Rio das Rãs In Associação Brasi leira de Antropologia Terra de quilombos Rio de Janeiro 1995 Gonçalves Wagner Terras de ocupação tradicional aspectos práticos da pe rícia antropológica In Sampaio Silva Orlando Luz Lídia Helm Cecí lia M orgs A perícia antropológica em processos judiciais Florianópolis UFSC 1994 Gusmão Neusa Maria M de Caminhos transversos território e cidadania negra In Associação Brasileira de Antropologia Terra de quilombos Rio de Janeiro 1995 Marques José Frederico Manual de direito processual civil São Paulo Saraiva 1974 ODwyer Eliane Cantarino Remanescentes de quilombos na fronteira ama zônica a etnicidade como instrumento de luta pela terra In Associação Brasileira de Antropologia Terra de quilombos Rio de Janeiro 1995 Oliveira João Pacheco de A viagem de volta reelaboração cultural e hori zonte político dos povos indígenas no Nordeste In Atlas das terras indígenas do Nordeste PPGASMN 1993 Os instrumentos de bordo expectativas e possibilidades do trabalho do antropólogo em laudos periciais In Sampaio Silva Orlando Luz Lídia Helm Cecília M orgs A perícia antropológica em processos judiciais Florianópolis UFSC 1994 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 107 Quilombos 108 Paraíso Maria Hilda B Reflexões sobre fontes orais e escritas na elaboração de laudos periciais In Sampaio Silva Orlando Luz Lídia Helm Cecí lia M orgs A perícia antropológica em processos judiciais Florianópolis UFSC 1994 Santos Sílvio Coelho dos Perícia antropológica comentários In Sampaio Silva Orlando Luz Lídia Helm Cecília M orgs A perícia antropológica em processos judiciais Florianópolis UFSC 1994 Silva Dimas Salustiano da Constituição e diferença étnica o problema jurí dico das comunidades negras remanescentes de quilombos no Brasil In Associação Brasileira de Antropologia Terra de quilombos Rio de Janeiro 1995 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 108 C A P Í T U L O 3 Conceição das Crioulas Salgueiro PE Vânia Rocha Fialho de Paiva e Souza Com base no art 68 do ADCT muitas comunidades negras que vivem no meio rural estão pleiteando o reconhecimento de sua iden tidade de remanescente de quilombo e requerendo a garantia de seu território A comunidade de Conceição das Crioulas localizada no estado de Pernambuco está sendo objeto de nossos estudos de cunho antro pológico nos quais tentamos descrever os seus aspectos sociocultu rais que apontam para os elementos constituidores de uma comuni dade de identidade diferenciada Para tanto desenvolvemos nosso trabalho em duas fases de pesquisa de campo quando coletamos os dados e fizemos juntamente com os técnicos responsáveis a identifi cação dos limites territoriais O contato com pessoas e instituições que já haviam trabalhado com a comunidade em questão foi de extre ma valia Agradecemos em especial ao Centro Luiz Freire na pessoa de Elizabeth Ramos que nos colocou à disposição todo o material do trabalho por ela desenvolvido em Conceição das Crioulas e facili tounos os primeiros contatos com a comunidade No sertão de Conceição das Crioulas Ao sair da BR116 e entrar pela estrada de terra em direção a Conceição é sempre grande a expectativa e o receio Encravada numa Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 109 Quilombos 110 terra sem lei por conta do tráfico da maconha chegar até Concei ção não deixa de ser uma aventura Se o carro é oficial correse o risco de ser confundido com a Polícia Federal em carro particular é fundamental estar acompanhado das pessoas da região Após deixar a rodovia federal são aproximadamente 42km em meio à caatinga vegetação composta de árvores de pequeno e médio porte onde predominam o juazeiro a baraúna a jurema preta a arueira a quixabeira o mameleiro o espinheiro a faveleira o caroá a macambira e o mucunã De repente no meio de uma paisagem acinzentada deparamonos com um arruado que nos leva ao povoa do de Conceição das Crioulas As crianças sempre estão por perto da praça brincando ou em baixo de alguma árvore O calor é forte como entre as 11 e 15 horas é praticamente impossível fazer alguma coisa o dia começa cedo Quando não é época de novena e se acorda com a alvorada da banda de pífanos e com os fogos de artifício às 5 horas o movimento do dia começa com os carros que vão para a feira quatro vezes por semana caminhões em sua maioria Os afazeres domésticos têm início com crianças e adultos indo buscar água nos açudes e barreiros Para beber apelase para a água de um barreiro mais distante onde há maior controle da entrada de ani mais e conseqüentemente a água é menos suja Para as outras utilida des recorrese ao grande açude que fica mais próximo Além do vai vém das crianças que estudam pela manhã ou à tarde há um movimento constante de bicicletas que são de extrema importância para facilitar a relação entre os sítios e também de motocicletas Por volta das 16 horas aumenta novamente o movimento no centro de Conceição é a hora do banho Como não há água encanada tomase banho no açude As crianças geralmente são as primeiras a chegar acompanhadas das mães que também lavam louça e roupas Para tornar menos árdua a tarefa bem próximo ao açude foi construída uma lavanderia que hoje se encontra desativada Os adultos vão para o açude já no início da noite Na primeira fase de trabalho de campo estivemos em Concei ção no período de novena e foi muito interessante perceber a ebu lição ao se aproximar o horário do início da mesma Além das pes Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 110 Conceição das Crioulas Salgueiro PE 111 soas que se dirigem à igreja muitas ficam na praça conversando ou junto ao posto telefônico para falar com os parentes que se encon tram distantes Após a novena boa parte dos presentes na igreja se dirige para a casa da família que ficou responsável por aquele dia de novena onde lhes é servida uma refeição Com essa breve descrição temos exemplificadas a rotina e algu mas estratégias de interação da comunidade de Conceição das Criou las De caráter religioso doméstico ou lúdico elas consistem nos momentos em que o capital simbólico do grupo circula entre seus membros fortalecendo seus vínculos e estruturando sua visão de mundo A seguir apresentaremos as principais características dessa comunidade negra Para melhor organizar os dados apresentamos o texto em forma de itens apesar de estarem todos intimamente rela cionados Primeiros contatos Conceição das Crioulas uma das comunidades negras existentes no estado de Pernambuco está localizada no sertão distando 514km de Recife Para se chegar até Conceição cortase todo o estado pela BR 232 até a cidade de Salgueiro De lá seguese pela BR116 em dire ção à cidade de Petrolina e pegase a estrada nãopavimentada no km 17 após Salgueiro Conceição das Crioulas constitui o segundo dis trito do município Um primeiro contato com membros de Conceição já havia sido feito anteriormente na reunião realizada pela Fundação Cultural Palmares em Brasília em 5 de setembro de 1997 Isso porque Givânia uma das lideranças de Conceição das Crioulas fazia parte da Comis são Nacional que definiu as 50 comunidades a serem estudadas no ano de 1997 Além do Centro Luiz Freire entramos em contato com professores e estudantes do departamento de Ciências Sociais da Ufpe que haviam realizado pesquisas em Conceição das Crioulas às quais infelizmente não tivemos acesso Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 111 Quilombos 112 No início do trabalho de campo realizamos uma reunião com algumas lideranças que estavam no povoado de Conceição das Criou las pois devido à distância não poderíamos fazer contato com os sítios mais distantes a fim de esclarecer o trabalho que estávamos começando Aspectos gerais A população de Conceição das Crioulas estimada em 1780 ha bitantes compõese de 356 famílias distribuídas em 16 núcleos populacionais denominados sítios Os sítios estão espalhados pelo território hoje identificado como dos remanescentes de quilombos e apresentam certa heterogeneidade no que diz respeito à concentra ção populacional à mobilização política e à assistência dos órgãos governamentais bem como à consciência e conseqüentemente à auto atribuição da identidade de remanescente de quilombo O povoado de Conceição das Crioulas é o núcleo da comunida de formada pelos 16 sítios Ele e Lagoa são os únicos que possuem luz elétrica Em Conceição achamse a igreja de Nossa Senhora da Assunção o posto telefônico duas escolas uma de ensino básico e outra de ensino fundamental um posto médico a casa comunitária local para reuniões da comunidade um mercado público desativado algumas vendas e botecos e uma borracharia O posto médico e uma das escolas ficam logo na entrada de Conceição Bem próximo à pra ça porém não mais no centro do povoado encontramos o centro comunitário a outra escola o cemitério e um campo de futebol Por tanto é o núcleo que apresenta as melhores condições da região e constitui o ponto de apoio para sua população Aí moram também as principais lideranças como Andrelino João Alfredo e Maria Alzira Os demais sítios se articulam por meio de suas associações de moradores Geralmente cada sítio possui a sua ou então há represen tação de dois ou três sítios considerando a proximidade dos mesmos ou o menor número de habitantes Nesses sítios encontramos três escolas em situação bem precária Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 112 Conceição das Crioulas Salgueiro PE 113 Apresentamos abaixo os nomes dos sítios identificados e o nome de seu representante presidente da associação Sítio Representante Número de famílias Conceição das Crioulas João Evangelista da Silva 59 Lagoa Auxiliadora 30 Paula 55 Paus Brancos Auretides Maria Bezerra 45 Rodiador 12 Massapê 29 Sítio Queimada Rita 12 Garrote Morto Poço da Pedra Diva 77 Mulungu Lagoinha 22 Amparo 1 Curtume 6 Boqueirão Epifânio 5 Pedra Preta 3 Total 356 A forma predominante de organização familiar é a nuclear ca bendo destacar o grande número de filhos As habitações são feitas de alvenaria nos sítios mais próximos da vila de Conceição e de taipa nos sítios mais afastados Têm poucos cômodos e poucos móveis sendo os principais adornos os santos do catolicismo popular e os retratos familiares Cortinas separam os cômodos existentes e não há mesmo em Conceição sistema sanitário nem água encanada Toda a água utilizada para consumo da população vem dos açudes e dos barreiros existentes na região Essas únicas fontes de água são tam bém utilizadas para o consumo dos animais que aí se banham Os agentes sanitários que trabalham nos sítios procuram orientar os ha bitantes a tratar a água nos potes de barro em que se armazena a água nas casas Os principais problemas de saúde da comunidade são as verminoses e a doença de Chagas A disposição das casas não obedece a um único formato O prin cipal núcleo populacional está organizado em casas conjugadas em Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 113 Quilombos 114 torno de uma praça bem perto do principal açude da região construído na década de 1960 Já o núcleo denominado Lagoa constituise num arruado com as casas dispostas uma ao lado das outras A semelhança entre elas devese ao fato de terem sido construídas no período das frentes de trabalho quando as mulheres tomaram a iniciativa de substituir as casas de barro batido pelas de alvenaria para evitar o grande número de casos de doença de Chagas veiculada pelo inseto barbeiro que se aloja nas casas de barro À medida que nos distanciamos de Conceição das Crioulas o acesso aos demais sítios vaise tornando mais difícil As pedras e a areia existentes dificultam a locomoção de pequenos veículos Por isso a motocicleta tem papel fundamental na região Entre Salgueiro e Conceição o transporte é feito por caminhões e lotações que trafe gam nos dias de feira de Salgueiro segundas quartas sextas e sába dos ou por mototáxis Ocupação territorial Quanto à apropriação territorial em Conceição das Crioulas podemse identificar várias situações Nos sítios encontramse habi tações e pequenos roçados próximos a elas A apropriação das terras é familiar e como a terra destinada ao plantio é pequena muitas vezes aproveitamse trechos mais distantes da morada O problema reside nas características físicas da região extremamente árida com as me lhores áreas sob o domínio de fazendeiros Os trechos que sobram para os habitantes de Conceição apresentam muitas pedras e são im próprios para a agricultura A maioria não tem título das terras e apresenta o pagamento do imposto rural ao Incra como documento que legitima sua ocupação Até 1987 o principal produto da região era o algodão mas este foi atingido por uma praga do inseto denominado bicudo o que desestabilizou totalmente a economia do município Antes do declínio do algodão Conceição das Crioulas tinha feira própria e o mercado público funcionava Hoje a agricultura é basicamente de subsistência Plantamse milho feijão mandioca jerimum e melancia os três últi Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 114 Conceição das Crioulas Salgueiro PE 115 mos em menor escala Há também pequenos criatórios de ovinos caprinos bovinos e suínos Durante o trabalho de campo pudemos identificar alguns imó veis nas terras das Crioulas A seguir relacionamos o nome e a locali zação do imóvel e o nome do proprietário Esclarecemos que são dados aproximados visto que não se trata de um levantamento fundiário tecnicamente estabelecido Nome Proprietário Localização Benfeitorias 1 Fazenda Junco Juvenal Pereira Rodiador Açudes 2 José Nel de Paula Açude cerca de Carvalho arame fruteiras e casa de alvenaria 3 Herdeiro de João Lagoa Cerca de arame Pompilho 4 Francisco de Assis Conceição Duas casas cerca de Alencar Chicola arame e açudes um de alvenaria 5 Fazenda Herdeiros de Antônio Coqueiros Mangueiras e Coqueiro Urbano dos Santos coqueiros 6 Fazenda Anita Estrada do Barreiro e mata Chapada Juvenal de Onório JatobáAnil foi derrubada 7 Fazenda Herdeiros de Pedro Jatobá Barrinha da Luz 8 Fazenda Herdeiros de Acioli Jatobá Jatobá 9 Fazenda Dinamérico dos Amparo Barreiro cerca de Amparo Santos arame farpado 10Fazenda Luís Lopes dos Boqueirão Bezerro Santos 11Fazenda Antônio Nel de Riacho Açudes e cerca de Riacho Juazeiro Carvalho Juazeiro arame farpado A situação de posseiro é a mais comum em Conceição Poucos possuem a escritura das terras Os casos existentes estão relacionados à herança de terras que foram adquiridas por uma ou duas gerações passadas O relato da ocupação das terras das crioulas revela quatro estágios distintos No primeiro após o pagamento da renda pelas crioulas que deram origem ao povoado a terra tinha um sentido Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 115 Quilombos 116 comunal o segundo é caracterizado pela apropriação ilícita das terras por brancos no terceiro dada a necessidade de legitimar a ocupação das terras com documentos reconhecidos pelos que têm o poder de definir as categorias de direito começase a reaver as terras mediante compra no quarto estágio o atual tentase recuperar as terras através da categoria de terra remanescente de quilombo Os depoimentos reproduzidos a seguir mostram como o domínio de tre chos das terras das crioulas foi passado para os brancos Chegavam e pediam os brancos me dê aqui pra eu colocar um currau deixar o gado aí Já aqueles tolos porque eram tolos dava os filhos pra eles ser padrinho e aí eles iam entrando se apos sando Me venda aí 10 braça por um pedaço de queijo um quarto de boi e foi indo assim eles sabendo o que tavam fazendo e nós os moreno dormindo aí eles ficaram com tudo e nós quase nada VVO sítio Lagoa Pediam os brancos terra para botar logradouro e quando saíam já vendiam para segundas pessoas depois deles e o outro já ficava como dono e isso aconteceu muito quando o segundo dono toma va conta daquela gleba que tinha comprado ele tinha condições porque tinha vaca quem tinha vaca tinha mais poderes financeiros e já cercava uma área maior mesmo contra a vontade do próprio negro JA Vila de C das Crioulas Titia falava que existia essa terra do povo de Conceição aí depois que o velho Nel chegou chamava ele de velho Nel ele rico apossouse do terreno Eu lembro que padre Zé Pedro tava querendo medir essas terras dele que ele tinha umas questões aí titia dizia que só quem tinha escritura naquela área era essas mu lher essas cabocla de Conceição RMF Sítio Podemos perceber como disse João Alfredo morador de Concei ção das Crioulas que a história de Conceição é marcada por interesse daqueles mais espertos que se dizem donos da cultura e do saber Um acontecimento muito presente na memória social do grupo é a chamada guerra dos Urias conflito entre negros e brancos que Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 116 Conceição das Crioulas Salgueiro PE 117 queriam se apossar das terras e da Conceição Com a revolta dos negros a família dos Urias acabou por retirarse da região Tal impasse entre brancos e os integrantes de Conceição das Crioulas acabou por atribuir à escritura das terras das crioulas um caráter quase mítico que passou a ser compartilhado com as agências presentes no atual processo de reafirmação da identidade de remanes cente de quilombo que vivenciam no presente A disputa pela posse da terra na região de Conceição das Criou las gira em torno da legitimidade da posse das mesmas O poder políticopartidário tem influenciado fortemente essa disputa e até mesmo a assistência recebida pela comunidade É comum ouvir dizer que os documentos apresentados pelos atuais proprietários são forja dos Em entrevista dada a pesquisadores do Centro Luiz Freire seu Antônio Andrelino morador de Conceição das Crioulas fez também referência ao processo de expropriação a que continuam sendo sub metidos envolvendo um vereador de Salgueiro essa terra de Chicola não foi comprada foi toda tomada tomaram a roça de Luciana de Antônio Rosa a roça de Luiz Simão O imóvel a que seu Antônio se refere fica bem próximo à Vila de Conceição das Crioulas mas a comunidade também disputa com Francisco Chicola o controle da utilização da água do açude que é de fundamental importância para a população regional pois Francisco intencionava instalar vias que possibilitassem a utilização dessa água para os animais da sua fazen da o que só foi embargado pelo fato de a família de seu Antônio Andrelino ter a posse de uma gleba num local estratégico e proibir que os canos fossem instalados Esse conflito não é recente A disputa já estava instalada na épo ca do pai de Chicola Ondilonzinho que a adquiriu de outro fa zendeiro da família Alencar também considerada uma das que tomaram as terras dos negros da família dos Antônio É muito comum ouvir falar da natureza dos documentos que os atuais proprietários apresentam como algo forjado e ilegítimo Seu Virgínio afirma que as escrituras que os brancos têm são falsas porque não consta assim que foi registrada num tribunal é aí assim com tem uns sabidos que juntam papel aí junta com os cartórios Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 117 Quilombos 118 passaram as escrituras mas não sendo assim um negócio fixo Como justamente como tem uma fazenda arrendada a dois qui lômetros vieram arranjar uma escritura já muito cá ficaram aí depois com muita sabedoria Um grande problema enfrentado é o plantio de maconha ativi dade que passou a ser desenvolvida na região com a decadência do algodão Conceição das Crioulas está localizada no chamado polígono da maconha área que se destaca pelo volume de sua produção e também pelo alto índice de criminalidade Para conhecer os diversos sítios que compõem Conceição é essencial estar acompanhado de pessoas da região e sempre deixar muito claro o tipo de trabalho que está sendo realizado É comum a investida de Polícia Federal nas redondezas há sempre um clima de tensão e desconfiança A consciência dos limites territoriais das terras de Conceição das Crioulas facilitou bastante a identificação dos pontos no campo A comunidade já tinha sua proposta elaborada mesmo antes dos pri meiros contatos feitos pela equipe técnica Apesar de sempre se refe rirem ao documento que julgam legitimar sua posse das terras os limites territoriais são apontados com segurança São eles serra da Princesa Jatobá os limites da terra indígena aticum serra Redonda serra do Urubu chegando novamente à serra da Princesa A área corresponde às terras das antigas crioulas e nela se incluem os 16 sítios que compõem a comunidade negra de Conceição das Crioulas O pleito da comunidade referese à delimitação de um territó rio de 16 mil hectares cuja dimensão vai além da espacial Enfatizamos a necessidade de regularização do território das criou las como forma de garantir o espaço social daquela comunidade ou seja uma área de uma prática social onde se observa um comporta mento social que vem garantindo a unidade e a identidade do gru po Podese dizer que o estabelecimento de um território define a divisão política e dá forma e cria fronteiras aos sujeitos sociais a partir de dois aspectos principais o movimento de pessoas de idéias ou mercadorias e a iconografia os símbolos1 1 Ver Mesquita 1995 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 118 Conceição das Crioulas Salgueiro PE 119 O fluxo existente no território de Crioulas entre seus sítios dá se em relação aos elementos religiosos as novenas a participação nos terreiros ou a solicitação de seus serviços para resolução dos pro blemas além da mobilização política sustentada principalmente pelas associações A assistência e a orientação dadas por alguns elementos como agentes de saúde parteiras e assistentes de enfermagem indi cam também a cooperação existente entre os sítios A atuação desses agentes legitimada pela administração municipal possibilita reco nhecer a organização de Conceição como uma unidade social Acompanhando o evento de uma tapagem de casa no sítio Garrote Morto pudemos identificar a cooperação entre os indiví duos e os sítios Um casal de Conceição preparava a casa para morar e toda a redondeza foi convocada a participar Dois dias antes já se ouvia falar do que iria ocorrer Até moradores dos sítios mais distan tes como Salgueiro se animaram a tapar a casa Homens mulheres e crianças vieram ajudar a carregar água preparar o barro e cobrir o esqueleto da casa já estruturado por outros participantes As mulhe res mais velhas prepararam um almoço cuscuz feijão macarrão e galinha que todos comeram juntos Em geral ao fim do almoço há um forró Esse fluxo acaba por determinar uma rede social que dá consis tência à proposta de regularização fundiária apresentada pela comu nidade Mas a ocupação e a consciência territorial de Conceição das Crioulas também estão presentes nos diversos relatos que se referem aos seus limites e à sua ocupação bem como aos locais relacionados às suas atividades e de seus antepassados Também ouvimos histórias a respeito de uma figura muito po pular em Conceição Maurício Barnabé ou Bernabé como geralmente é chamado Personagem algo fantasioso ele é referenciado um dos antigos de quem descendem Em geral são histórias cômicas e bas tante divertidas Uma delas conta que Bernabé estava trabalhando no beneficiamento da mandioca numa casa de farinha na serra Velha ou das Crioulas Estando sozinho procurava ao mesmo tempo passar a mandioca na prensa e peneirar outra parte da massa mas sempre que acionava a roda da casa de farinha ela não atingia a velocidade necessária Até que em meio à confusão resolveu em Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 119 Quilombos 120 pregar toda a sua força para que a máquina funcionasse fazendo assim a roda sair de seu eixo Um ano depois quando caçava na serra Velha deparou com a roda dando a derradeira virada no galho de uma árvore Outra história das peripécias de Bernabé conta que ele ficava trabalhando no seu roçado na serra Velha e seu irmão na serra do Urubu bem distante da primeira Enquanto trabalhavam jogavam bola um com o outro Às vezes a bola demorava três meses para chegar até o parceiro Também é conhecida a história de um rebanho de porcos de Bernabé que se havia perdido Certo dia quando ele foi colher o produto de seu roçado encontrou uma mandioca muito grande e dentro dela os porcos que tinham sobrevivido se alimentando da própria mandioca As referências feitas aos locais onde os integrantes de Conceição mantêm seus roçados retiram barro ou ainda caçam bem como as histórias de Bernabé constituem informações importantes para que seu território seja reconhecido como atrelado aos locais de significa do relevante para a comunidade como por exemplo serra Velha atu almente incluída nas terras dos índios aticuns serra do Urubu e Areias onde a comunidade tem uma área comum de plantio e serra do Urubu de onde é obtido o catolé para a confecção de vassouras A identificação dos pontos que demarcam o perímetro das terras das Crioulas foi feita com a participação e acompanhamento dos mem bros da comunidade A dificuldade deveuse apenas ao difícil acesso a alguns deles pois geralmente ficavam localizados no divisor de águas das serras citadas Uma questão importante é a inclusão ou não do perímetro urba no do distrito de Conceição das Crioulas que está totalmente inseri do nas terras identificadas e ao mesmo tempo constitui o centro da vida dessa comunidade Isso porque segundo os técnicos responsá veis pela delimitação das terras não seria prudente sobrepor terras públicas no caso as terras das crioulas ao perímetro urbano munici pal No entanto as terras de quilombos não serão necessariamente estabelecidas como terras públicas mesmo que o fossem isso não Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 120 Conceição das Crioulas Salgueiro PE 121 isentaria a prefeitura de Salgueiro de atuar e dar assistência àquela comunidade Assim propomos que o perímetro urbano não seja ex cluído considerando a grande importância histórica e cultural dessa área para a comunidade negra de Conceição das Crioulas Aspectos econômicos Como a maior parte dos sítios está ilhada por cercados muitos só têm como alternativa o arrendamento A renda é estimada em 20 da produção A diária paga aos que empregam sua mãodeobra nas fazendas da região é de R4 É interessante observar que os indiví duos de Conceição quando contratam mãodeobra para trabalhar no seu próprio roçado pagam uma diária de R5 Mesmo quando arrendam as terras procuram manter algum roçado próprio nas en costas das serras como acontece com os moradores dos sítios de Paus Brancos e Paula e da vila de Conceição das Crioulas Nos meses de dezembro e janeiro quando começam a cair as primeiras chuvas tem início o período de plantio do feijão O milho é plantado principal mente no mês de março mas o plantio é antecipado quando as con dições físicas são propícias A apropriação da terra é familiar e cada família se respon sabiliza pelo preparo plantio manutenção e colheita Os roçados ficam na denominada terra comum isto é aquela que não tem título só o pagamento do Incra Não se costuma construir cercas entre os roçados Um dos grandes problemas enfrentados pela população de Con ceição das Crioulas é a falta de financiamento para incremento da agricultura Como não possuem títulos das terras não têm como negociar o crédito rural A produção fica restrita à subsistência da população que a armazena em silos localizados dentro das habita ções Em muitos anos ela nem é suficiente para garantir alimento à população Alguns produtos são vendidos na feira de Salgueiro não porque representem o excedente e sim pela necessidade de transformálos em moeda corrente para adquirir outros bens neces sários à sobrevivência Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 121 Quilombos 122 No cotidiano dos sítios é comum a troca de mercadorias sem utilização de dinheiro A aposentadoria rural é outra forma que algu mas famílias têm de contornar os períodos de grande dificuldade As condições de plantio associadas às grandes estiagens propi ciam uma dieta alimentar extremamente pobre Sobrevivese basica mente com o feijão a farinha de mandioca e o milho A carne é proveniente de pequenos criatórios mas nem toda família tem condi ções de mantêlos Nos açudes podemse obter peixes que são con servados em sal como a carne Ao serem perguntados sobre a vida atual e a passada os inte grantes de Conceição sempre se referem a um período em que tive ram melhores condições de sobrevivência quando o algodão era a principal atividade econômica da região mas também mencionam situações de extrema dificuldade vivenciadas durante as secas Nesses períodos a alimentação restringese a alguns vegetais nativos como a macambira que é arrancada raspada cortada e utilizada para se fazer uma massa com que se prepara um tipo de angu e cuscuz de sabor extremamente amargo e a semente do mucunã que deve ser lavada em nove águas e depois torrada para se fazer cuscuz Alguns vegetais nativos são utilizados como remédio até hoje por exemplo anjico para tosse ubiratanha para os rins quixabeira para cicatrizar ferimentos e papaconha para aliviar a dor do nascimento dos dentes No trecho das terras próximo à serra do Umã algumas famílias de Conceição têm seus roçados dentro da terra indígena aticum Elas mantêm relações com a população e o posto indígenas já há muito tempo sem nenhum tipo de conflito Dona Luzia do sítio Curtume vive nas terras que seu pai ocupava anteriormente cujo roçado se localiza no pé da serra incluída nos limites indígenas Há quem desenvolva algum tipo de atividade artesanal como Virgínio de Oliveira e sua esposa Sabina Maria da Conceição que fabricam utensílios de barro ou dona Júlia que faz bolsas e sacos com a fibra do caroá ou ainda dona Mariana da Conceição do sítio Paus Brancos que confecciona vassouras com palha de catolé O cen to dessas vassouras é vendido por R4 ou R5 reais São atividades típicas dos mais velhos não tendo repercussão entre as gerações mais novas No sítio Garrote Morto dona Maria de Lurdes lembra que Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 122 Conceição das Crioulas Salgueiro PE 123 seus tios trabalhavam com barro fazendo tijolos e telhas sua avó confeccionava jarros de barro e suas tias se utilizavam de um barro branco retirado da Serra Velha ou das Crioulas para fazer quartinhas terrinas travessas etc Quando criança dona Maria de Lurdes chegou a aprender esse ofício que abandonou posteriormente Os objetos de barro são feitos e utilizados pelos próprios artesãos já o material de caroá é confeccionado sob encomenda As dificuldades vivenciadas pela população de Conceição das Crioulas promovem a emigração principalmente dos mais jovens que vão procurar outras oportunidades de trabalho em cidades como Salgueiro e Recife ou até mesmo em São Paulo As duas primeiras cidades são também procuradas por possibilitar a continuidade dos estudos Muitas são as histórias contadas em Conceição pelos que tentaram obter melhores condições de vida em grandes centros urba nos mas tiveram que voltar devido à falta de qualificação profissio nal e às poucas oportunidades oferecidas O que mais se destaca nes ses relatos é a dificuldade de adaptação devido ao choque dos valores que carregam com aqueles com que se deparam nessas tentativas de emigração Organização social e identidade quilombola Em Conceição das Crioulas a identidade de remanescente de quilombo está relacionada à origem da comunidade e às relações de cooperação hoje estabelecidas entre os sítios mencionados O paren tesco com determinadas famílias consideradas tradicionais das Cri oulas também é sempre resgatado como forma de enfatizar o perten cimento a Conceição das Crioulas A memória do grupo aponta o início do século XIX mais preci samente o ano de 1808 como a data da chegada de seis crioulas à região hoje conhecida como Conceição das Crioulas Não há um con senso quanto ao local de origem dessas mulheres nem quanto às ra zões que as levaram a se deslocar para lá Existem algumas referências ao local denominado Panelas ou Panelas dÁgua assim como a um negro capitão Antônio de Sá que teria servido de guia para as crioulas mas é unânime a idéia de que não chegaram na condição de Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 123 Quilombos 124 escravas Arrendaram uma área de três léguas em quadra e a foram pagando com o trabalho de fiação do algodão que vendiam em Flo res município situado nas proximidades Tal época é referida como período do rei O pagamento da referida renda deu às crioulas o direito de adquirir o título de suas terras Segundo seu Antônio Andrelino seu pai contava que as crioulas receberam essas terras em 1802 sua escritura tinha 16 selos trazia o carimbo da Torre e fora feita por um tal José Delgado Mabel de Albuquerque professora da Ufpe diz que existiu no cartório de Flores um escrivão com esse nome Podese perceber que a história das crioulas é contada nos mais diversos sítios e a que a identidade da comunidade de Conceição das Crioulas está intimamente ligada à descendência das crioulas fun dadoras A mobilização pela reconquista das terras das crioulas vem se constituindo num forte elemento de coesão da comunidade e de reavivamento de sua memória Seu Virgínio Vicente morador da Lagoa diz ter ouvido de seus pais e tios que Conceição foi começada somente por crioulos Num existia branco num tinha esse problema de branco não di zem que foi as criolas não é criolo é criolas que arrendou esse terreno aqui e foram pagando a renda fiavam uma lãzinha de algo dão aquelas bolinhas e foram vender em Flores lá é que pagavam a renda da terra até que venceu esse tempo e ficaram donas Existem diversas versões umas mais detalhadas que outras da chegada das crioulas na região de Conceição Diz J A um integrante da comunidade Eu escuto o pessoal dizer que era um povo que fugiu da escravi dão vieram pelas margens do rio São Francisco quiseram se apos sar pelas bandas do São Francisco mas como o São Francisco tinha transporte fácil era fácil o acesso eles vieram se embrenhar por dentro dessas serras Segundo o depoimento de um morador do sítio Garrote Morto as crioulas chegaram à região fugidas de uma senzala e como era área desabitada começaram a cultivar algodão que colocavam em balaios Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 124 Conceição das Crioulas Salgueiro PE 125 de cipó para vender em Flores com o objetivo de comprar o terreno Também vieram homens mas a iniciativa foi das mulheres O nome Conceição se explica pelo fato de que um homem chamado Fran cisco José que também tinha escapado de uma guerra chegou trazen do consigo a imagem de Nossa Senhora da Conceição em cuja honra ergueram uma capela O sertão do atual estado de Pernambuco não foi uma região caracterizada pela escravidão foi sim uma região propícia ao refúgio de negros e índios o que reforça a unanimidade dos relatos quanto à condição de nãoescravos Clóvis Moura afirma que no sertão nor destino o negro se fez presente não pelo trabalho e sim como perturbador da economia como fugitivo como quilombola Abdias Moura aludindo a esse contexto para justificar os poucos dados esta tísticos encontrados sobre a presença do negro nos tempos passados cita uma estatística publicada pelo Diário de Pernambuco no século pas sado segundo a qual dos escravos matriculados nos municípios da província estavam anotados 477 em Floresta 237 em Buíque e 173 em Tacaratu no sertão do São Francisco Outro documento citado este de 1873 faz uma referência genérica aos habitantes dessa mesma área a maior parte dos indivíduos a que nesta província se dá o nome de índios são de uma raça já degenerada os pretos pardos mais ou menos fulos que vivem com os índios todos são também conhecidos sob esta denominação Podemos perceber que assim como várias categorias relativas a origem raça e etnia eram computadas sob uma única denominação a de índio o mesmo ocorreu com as categorias negro escravo e até branco o que dificulta a utilização dos documentos oficiais para ten tar recompor a ocupação da região se utilizarmos um viés parcial deixando de interpretálos Outra dificuldade que enfrentamos na realização deste relatório foi o fato de existirem poucas fontes sobre o sertão Recentemente entramos em contato com Yoni Sampaio professor da Ufpe que nos forneceu importantes informações sobre a documentação de boa parte do sertão Tratase de documentos de cartórios de Cabrobó para onde convergiram durante muito tempo os dados de Tacaratu Flores Santa Maria da Boa Vista e Salgueiro cujo terri Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 125 Quilombos 126 tório foi desmembrado de Cabrobó em 1864 Esse material que nunca foi estudado certamente fornecerá importantes informações sobre o processo de ocupação daquela região Mesmo com a finalização deste relatório esclarecemos que daremos continuidade ao estudo da referida documentação A afirmação da identidade de remanescente de quilombo em Conceição das Crioulas remete à origem das crioulas mas nega a condição de escravas e ressalta a tênue alteridade entre índios e ne gros Seu Virgínio em seu depoimento afirma que os negros que chegaram a Conceição arranjaram a liberdade se aliando aos índios O ideal de liberdade associado ao estigma de estar à margem de uma sociedade muitas vezes gerou no sertão nordestino a coopera ção entre negros e índios os quais como já foi dito deram confor mação a territórios em que essa aliança representava a existência de uma organização à parte fora do controle colonial Há constantes referências aos índios nos relatos em Conceição das Crioulas até mesmo quando tratam de sua ascendência Nomes como Rita Cabocla e Clara Cabocla são citados como de índias bra bas que foram pegadas a dente de cachorro depois de amansa das acabaram se casando com negros Antônio Andrelino chega a mencionar que os negros não se misturavam muito com os índios pois estes eram brabos ficavam lá na boca das Princesas serra e quem ia lá voltava correndo para não morrer No entanto nem sempre a fronteira entre negro e índiocaboclo foi tão clara principalmente na faixa territorial em que está situado o limite da terra indígena aticum Mas estando essa fronteira já fisica mente estabelecida pela Funai desde 1989 os arranjos e negociações para o pertencimento a uma ou outra identidade vãose dar no âmbi to de cada uma que acionará seus mecanismos de inclusão e exclusão de seus integrantes os quais estão associados principalmente no caso de Conceição das Crioulas às relações de cooperação estruturadas entre os diversos sítios É interessante notar que em Conceição apesar do grande núme ro de núcleos populacionais que guardam entre si considerável dis tância é sempre possível encontrar pessoas da comunidade que apon tam os limites das terras das crioulas os quais estariam definidos Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 126 Conceição das Crioulas Salgueiro PE 127 na escritura da fazenda Conceição das Crioulas Diz seu Virgínio Eu tinha uma tia que tinha escritura do círculo fazenda Conceição das Crioulas que eu li muito essa escrituras uma era Conceição das Crioulas já outra era Nossa Senhora da Conceição e dá os pontos assim do círculo Provavelmente ele se refere ao patrimônio das crioulas e ao patrimônio da santa Pelos relatos da história oral foi a crioula Francisca Ferreira quem fez a referida doação prática já descrita por Alfredo Almeida 1989 Dona Mariana Raimunda nascida em 1906 afirma em seu depoimento que a doação do patrimônio para a santa deuse em 1910 eu me lembro mesmo 1910 foi quando os missionários frei Biapino e frei Celestino como ela complementa no decorrer de sua fala vieram anunciar a Conceição das Crioulas esfregaram a santa no chão lá Eu fui mais meu pai seu eu fui batizada ou crismada quando vieram os missionários No lugar da igreja tinha uma casa de oração mas não tinha igreja Antes deles che garem eram as crioulas que rezavam que faziam tudo aí eram elas quando eles vieram aí foi anunciada a igreja E dona Maria Emília diz que a renda das terras tinha sido paga aos reis que segundo sua avó moravam na Corte no Rio de Janeiro A escritura das referidas terras ainda de acordo com os dados forne cidos por sua avó encontravase no livro do tombo que ela dizia ser o tribunal dos reis E continua E assim que nesse tempo de reis que as Crioulas compraram essa Vila de Conceição arrendaram e aí cadê Hoje as Crioulas da Conceição só tem o nome Crioula ainda A gente mora aí mas não tem esses direitos né é tudo cercado a gente vive cerca do que quase que antigamente como se fosse cativeiro não tem direito a mais nada a não ser só aquele quadrinho ali onde era três léguas em quadro só vê aquilo ali Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 127 Quilombos 128 No caso de Conceição das Crioulas a autoatribuição de uma identidade racial está relacionada a critérios como a descendência das crioulas que deram origem ao local e aos laços de sangue como eles dizem Algumas das categorias por eles utilizadas para demarcar o pertencimento ao grupo podem ser identificadas nos depoimentos reproduzidos a seguir Minha vó sempre dizia nós somos pobres e negras só num temos é o pé no torno que dizer o pé no torno é a negra cativa A comunidade é toda família Crioula da Conceição sendo cri oulo é tudo família é um sangue só Negro é uma questão de família que vem lá dos ancestrais des cendentes de Bernabé de Virgínio Vicente Gomes de Estêvão de Simão descendentes das crioulas que chegaram aqui Dona Emília do sítio Garrote Morto enfatizou a identidade do grupo dizendo que todos fazem parte da mesma família só não é crioulo os branco como aqui não tem branco pra lá não se mistura com nós aqui nossa cor mesmo tá dizendo é tudo filho de Eva E explica essa expressão reproduzindo a história contada pelas raízes mais velhas O filho de Eva diz que é os moreninho né que ela chegou quando nosso senhor chegou disse que ela tinha muita família né Adão e Eva nossos primeiros pais né Aí nosso senhor chegou procurou Eva cadê tua famíla Aí ela pegou uma panela e cobriu uma parte deixou debaixo de uma panela ela é bem pretinha a panela de barro aí ficou a familinha lá embaixo da panela e os que nosso senhor chegou e tava presente é os brancos e os moreninho ela não mostrou a nosso senhor quando ela levantou tava tudo pre tinho que é a nossa cor aqui A percepção da identidade social da diferença que se constrói a partir da percepção do outro é demonstrada a partir de categorias não tão emblemáticas em se tratando das relações raciais Porém nas situações de discriminação às quais associamos a idéia de dominação e exploração as fronteiras são impostas de maneira bem mais evidente Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 128 Conceição das Crioulas Salgueiro PE 129 Em alguns depoimentos a dicotomia entre negroscrioulos e brancos é fortemente expressada Em um deles que fala sobre a rela ção entre negros e brancos o entrevistado afirma Tinha sim dificuldade de relacionamento porque tinha uma história de chover nos primeiros dias de chuva era pra o povo ir trabalhar pra depois é que ia plantar as roças deles Tinha deles que num ia ia primeiro plantar as sua aí eles num gostava num é porque queria logo plantar as deles Como muitas vezes os negros não tinham condições de com prar as sementes então plantavam as dos brancos para depois receber deles as sementes e poder plantar Maria Irene Sá moradora do sítio Rodiador conta que por vol ta das décadas de 1950 e 1960 nas festas existiam salões diferentes para brancos e índios nenhum dos dois grupos aceitava a presença do outro Diz ainda que quando os brancos tomavam água na casa dos negros bebiam com as mãos para não tocar nos objetos tendo havido inclusive um caso em que um negro foi morto por montar no cavalo de um branco Religiosidade Descrever a religiosidade de Conceição das Crioulas é mergulhar no catolicismo popular que permeia a vida rural mas também se en contram elementos da religiosidade negra e indígena A fé nos santos católicos está presente na parede de cada casa Frei Damião e padre Cícero são assíduos nos lares acompanhados por Nossa Senhora da Conceição Nossa Senhora da Assunção e São Jorge entre outros As novenas representam além da vivência religio sa um importante acontecimento social em que se podem observar outros elementos da estrutura social de Conceição das Crioulas São duas as principais novenas em agosto quando festejam Nossa Se nhora da Assunção esta é considerada a grande festa com a pre sença de pessoas de toda a redondeza e em dezembro quando Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 129 Quilombos 130 louvam Nossa Senhora da Conceição As novenas realizamse tanto nos sítios quanto na igreja de Nossa Senhora da Assunção no povoa do de Conceição das Crioulas Isso se deve principalmente à distância entre os sítios a população não tem como se deslocar todos os dias Cada dia da novena fica sob a responsabilidade de uma família de um dos sítios cabendo a ela providenciar a banda de pífano os fogos de artifício e a refeição que é oferecida após o término das orações Essas responsabilidades são assumidas de acordo com as condições finan ceiras de cada família Assim a banda de pífano pode começar tocan do a alvorada às cinco horas da manhã ao meiodia e à noite quan do começa a novena ou apenas nesta última oportunidade A novena é um grande acontecimento As mulheres em peso com parecem acompanhadas por seu filhos da mais tenra idade mas vêem se pouquíssimos homens na igreja As crianças mais velhas aprovei tam a oportunidade para brincar na praça mas as brincadeiras muitas vezes estão voltadas para a própria prática religiosa ou para os objetos a ela relacionados como as velas e os fogos Porém a brincadeira é suspensa quando ao final da novena as pessoas saem da igreja para dar três voltas em frente da mesma em forma de procissão Então todas as pessoas mesmo as que não estavam na igreja recebem uma vela e acompanham o rito final quando há a troca de ramos ou seja a família responsável por aquela noite entrega algumas flores aos integrantes da família incumbida de organizar o dia seguinte Princi palmente no mês de agosto as atividades religiosas são seguidas de forró brincadeira de roda coco de roda ou uma dança denominada trancelim Além das rezadeiras outro recurso para a resolução dos mais diversos tipos de problemas são os terreiros ou centros que mis turam elementos da umbanda do catolicismo e da religiosidade indí gena Foi possível identificar pelo menos quatro desses centros O mais conhecido está localizado no sítio Rodiador Dona Bebé é a mãedesanto responsável pelos trabalhos lá realizados que são fa mosos na região É comum comparecerem pessoas de sítios distantes e até mesmo de Salgueiro Dona Bebé usa roupas coloridas durante os trabalhos e na sala de sua casa há um altar com as imagens das entida des invocadas Preto Velho Iemanjá Zé Pilintra padre Cícero Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 130 Conceição das Crioulas Salgueiro PE 131 São Jorge Cosme e Damião Janaína Oxum e outros objetos ritualísticos como velas taças com água fumo e vinho de jurubeba utilizados pela mãedesanto durante o transe Janaína é identificada por dona Bebé como a entidade que mais acompanha seus trabalhos Nos cânticos entoados e nas orações a invocação de duas entidades nos chamou a atenção Barnabé que ela diz ser São Cipriano e o rei Orubá entidade relacionada a nações indígenas É muito forte o vínculo existente entre o centro de dona Bebé e os índios aticuns vizinhos de Conceição das Crioulas Não há nessas cerimônias uma fronteira nítida que separe os indivíduos como negros e índios A bebida da Jurema também é utilizada Também não há um dia espe cífico para a realização dos trabalhos que envolvem igualmente as giras linhas de toré correspondendo um canto diferente para cada linha Segundo dona Bebé as pessoas fazem promessas e se pegam com os espíritos de luz que são as entidades envolvidas A bebida de jurema é preparada pela própria mãedesanto que utiliza como ingredientes jurema açúcar vinho de jurubeba e a força para surtir os efeitos Dona Bebé já chegou a ser convidada juntamente com os aticuns para apresentar o toré nas redondezas como representantes da cultura da região Outro terreiro existente é aquele localizado no sítio Massapê mais próximo ainda da terra indígena aticum A responsável pelo ter reiro é Maria Rosa da Conceição dona Rosinha uma senhora de 82 anos que tem o dom de fazer garrafadas bebidas preparadas com ervas da região para curar algumas doenças Atrás de sua casa há um cruzeiro ao redor do qual se executa a dança do toré Na sala de sua casa também existe um pequeno santuário como um peji com ima gens em sua maioria feitas de barro pela própria dona Rosinha as quais ela chama de mestres Janaína Pena Branca Juremeira Montanheira Gentil Tupão Mestre do Caroá Santa Bárbara pa dre Cícero Vovozinha Cobrinha Papagaio Zé Vaqueiro Joana Guerreira Zé Pilintra além de um cruzeiro um Buda e uma estrela dedavi Os outros dois terreiros estão situados em Paus Brancos na mes ma residência O mais conhecido é o de Maria Anunciada conhecida como Daia mas só funciona quando ela está em Conceição já que Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 131 Quilombos 132 atualmente ela reside em São Paulo O centro de Daia é considerado o mais importante porque está licenciado para funcionar por uma confederação não muito bem especificada no certificado afixado na parede do recinto Já o centro de seu pai José Agostinho Bezerra de 76 anos funciona sem esse licenciamento Seu José natural de Con ceição das Crioulas contounos que desde muito cedo via a mãe a avó e a bisavó envolvidas nesse trabalho espiritual porém o acesso às crianças era negado Lembra que elas usavam saias e blusas de mangas compridas de cor verde e moravam nas proximidades do sítio Jatobá Desde jovem seu José Agostinho sentia necessidade de trabalhar com um centro mas devido à proibição de sua mãe só pôde voltar a se envolver com a questão espiritual quando já estava com 50 anos depois de um grave problema de saúde provocado por não ter desen volvido este seu dom Nesses dois centros vêemse imagens de louça ou de barro ou mesmo pôsteres de São Jorge padre Cícero Santa Bárbara Joana Guerreira Santo Agostinho Nossa Senhora da Cabeça Cosme e Damião São Jerônimo Nossa Senhora da Conceição Africanos Preto Velho Pai João Caboclo Chefe das Matas Sultão das Ma tas Cabocla da Jurema Nossa Senhora da Saúde Iemanjá também chamada de sereia Jesus Maria Nossa Senhora da Saúde Nossa Senhora da Glória São Francisco Nossa Senhora dos Anjos São Sebastião Nossa Senhora do Bom Parto Santo Expedito Caboclo Sete Flechas Pai Joaquim e Mãe Maria pretos velhos além de co pos com água para os caboclos castiçal de louça com vela rosa cruci fixo e flores de papel As principais entidades que trabalham com Daia são a sereia Iemanjá e o mestre Adaílton um doutor cuja ima gem é representada por um homem usando um turbante lembrando um indiano Vêse também a imagem da nora do dr Adaílton Floriana identificada como mãe de família No Sítio falaramnos a respeito de um rapaz que tinha corren te visto que montara em sua casa um centro com imagens do Preto Velho e de Cosme e Damião tendo uma mesa cheia de coi sas mas não passa mais trabalhos Devido a problemas mentais o rapaz não dá continuidade ao centro Segundo Rira moradora do Sítio ele começou a endoidecer e foi levado para fazer trabalho Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 132 Conceição das Crioulas Salgueiro PE 133 fora de Salgueiro onde ficou bom Vale notar que a relação entre doença e atuação em centros também está presente nos casos de Bebé e de José Agostinho Atualmente verificase também a inserção de igrejas evangélicas em Conceição No mês de dezembro durante a solenidade de posse da nova diretoria da Associação de Moradores do Sítio Paula o pas tor da Igreja Evangélica Canaã de Salgueiro celebrou o primeiro culto evangélico em Conceição das Crioulas Organização política A constituição das lideranças de Conceição das Crioulas está relacionada ao envolvimento de seus integrantes com movimentos sociais de diferentes naturezas O processo de mobilização da comunidade começou em 1987 com o trabalho de uma missão de freiras carmelitas que se estavam instalando na cidade de Salgueiro Segundo informantes naquela época havia missa aos domingos e também novenas mas não se falava do trabalho de catequese A missão procurou então atrair interessados em participar do grupo de catequese Segundo Givânia uma das lideranças atuais de Conceição aque le período foi de muita efervescência pois quando eles começaram a estudar os textos bíblicos perceberam que todos os povos presentes nos textos falavam de sua história de sua origem e eles constataram que nada sabiam sobre si mesmos Começaram a pesquisar a procu rar os membros mais velhos da comunidade e assim reconstituíram parte de sua história Os jovens que se envolveram nesse movimento da Igreja são os que hoje atuam como representantes em diferentes movimentos sociais João Alfredo de Souza ligado à Pastoral Rural da Diocese de Petrolina e designado para acompanhar a sua própria comunidade Maria Alzira de Souza Silva líder do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais Andrelino Mendes diretor fiscal do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Salgueiro Generosa catequista e animadora ligada à Pastoral Rural Cícero Ângelo da Silva presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Sal Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 133 Quilombos 134 gueiro e Givânia Maria da Silva presidente do Partido dos Traba lhadores em Salgueiro João Alfredo ao se reportar à visita da Pas toral em 1988 comenta que Surgiu a proposta de formar uma comunidade eclesial de base e aí a gente começou o trabalho de formação de comunidade de forma ção de agente e a trabalhar com jovem agricultor começamos a resgatar a história religiosa com esse ângulo aberto para a realidade de Conceição das Crioulas Nós crescemos numa qualidade de lide rança que hoje é capaz de lutar e refazer já sua negritude aqui den tro de Conceição Foi então que o MNU soube da existência de Conceição das Crioulas e começou a fazer visitas à comunidade Em 1994 foi reali zado o I Encontro dos Negros de Sertão quando estiveram presentes negros do Maranhão e teve início uma articulação mais elaborada Givânia e Andrelino começaram a participar das reuniões em que se tratava da questão negra e chegaram a ir até Brasília para legi timar a existência de Conceição das Crioulas O contato com o Cen tro Luiz Freire efetivado desde 1995 também tem possibilitado a articulação entre as comunidades remanescentes de quilombo no estado de Pernambuco e a divulgação de sua atual situação O traba lho da referida ONG culminou com a realização de um vídeo sobre as comunidades negras para ser mostrado nas escolas Esse trabalho que contou com o apoio da prefeitura de Salgueiro no mandato de 1992 a 1995 teve importante repercussão nas atividades que esta vam sendo desenvolvidas nas escolas do povoado de Conceição das Crioulas no período em que Givânia esteve na direção da escola de 1o grau menor e maior Segundo a opinião de alguns informantes com o governo da nova prefeitura os projetos que estavam relacionados à identidade de remanescentes de quilombos sofreram consideravelmente com o afastamento de professoras da própria comunidade para esco las de outras regiões do município assim como de pessoas que atua vam como parteiras como dona Joana Na realidade dona Joana con tinua assistindo a comunidade assim como a atendente de enfermagem que vai aos sítios mais distantes quando é solicitada Mas as condi ções de atendimento são muito mais precárias sem a ambulância que oferecia importante apoio à população Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 134 Conceição das Crioulas Salgueiro PE 135 O conjunto de associações dos sítios que compõem Conceição das Crioulas constitui a dinâmica política atual No povoado de Conceição construiuse ao lado da escola um centro comunitário onde se realizam as principais reuniões da comunidade As lideran ças envolvidas nos movimentos sociais da região articulamse para informar os demais a respeito das mobilizações efetuadas compar tilhando com eles as discussões iniciadas fora da comunidade Atual mente Andrelino ocupa a presidência do Sindicato dos Trabalha dores Rurais de Salgueiro As comunidades negras rurais do estado de Pernambuco têmse mobilizado para garantir suas terras e o reconhecimento de sua iden tidade Assim já houve contato entre lideranças principalmente de Castainho e Conceição das Crioulas com autoridades e instituições locais como Incra Instituto de Terras e Ministério Público Embora se constate que muitas vezes o Estado não se sente competente para tratar dos direitos das comunidades remanescentes de quilombos tais atividades têm contribuído para darlhes visibilidade com o respaldo da imprensa local Algumas considerações sobre manifestações lúdicas Mesmo diante de uma realidade extremamente árdua as ativida des de lazer estão constantemente presentes Notese que nos repor taremos ao conceito de lúdico por considerar que lazer estaria pre sente numa sociedade secularizada e portanto em oposição ao trabalho No caso de Conceição o trabalho as obrigações diárias estão impregnadas desse caráter lúdico Parece não haver no cotidiano a divisão de tempo entre trabalho e lazer O trabalho nos roçados obe dece ao tempo cíclico das culturas voltado para os plantios e sua manutenção Após a colheita como já foi dito a produção guardada em grandes silos sustenta as pessoas até a próxima safra quando a produção não é suficiente a sobrevivência é garantida com a aposen tadoria dos mais velhos O ritmo de vida é diferente e aspectos como manifestações culturais organização política e religiosidade não fazem muito sen Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 135 Quilombos 136 tido quando vistos de forma compartimentada Se adotamos essa vi são anteriormente foi por uma questão de didática mas é preciso percebêlos como profundamente entrelaçados Às vezes essa interligação das atividades aponta para características de uma socie dade em que os elementos da modernidade não estão presentes ou tras vezes aponta para as contradições visíveis em nossa sociedade É comum ouvir falar que a brincadeira das crianças é tirar toco uma maneira de dizer que a infância parece muito curta pois desde cedo as crianças participam no trabalho dos roçados Quando perguntamos às crianças se a novena fazia parte das brin cadeiras elas disseram que não mas que gostavam muito dos fogos e das velas elementos presentes na novena No decorrer das novenas na igreja algumas crianças entram e saem sem cerimônia enquanto ou tras geralmente as mais velhas ficam na praça fazendo lanternas com latas e velas ou soltando fogos atentos à hora da distribuição das velas quando então se incorporam à procissão Ao término da novena as pessoas se retiram e vão formar em frente à igreja um semicírculo sob a bandeira da novena fincada na praça Acompa nhada dos demais membros da comunidade a família anfitriã segue atrás da banda de pífanos que dá três voltas em torno da igreja Por fim há a troca de ramos com a família que se responsabilizará pelo dia seguinte da novena No sítio Paus Brancos promovese desde 1975 um bumbameu boi que no entanto só veio a ter relevância a partir de 1993 quando aquele sítio ficou encarregado de preparar alguma apresentação nos festejos da novena de Nossa Senhora da Conceição no mês de agos to A partir daí o bumbameuboi foise tornando mais elaborado e atualmente se apresenta nas redondezas em Salgueiro Há também algumas danças como a de São Gonçalo e o trancelim A primeira segundo os depoimentos começou a aconte cer quando as pessoas estavam muito desligadas da Igreja e São Gonçalo teve a idéia de chamar o povo dançando e cantando Hoje essa dança só se realiza em ocasiões especiais com a participação de homens e mulheres Estas vestem saias compridas com um pano amarrado na cabeça como turbantes com o laço para frente Pode se usar roupa de qualquer cor mas dáse preferência ao branco A Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 136 Conceição das Crioulas Salgueiro PE 137 dança é acompanhada por bumbo rabeca e cavaquinho A dança do trancelim é acompanhada pela banda de pífano e tem esse nome porque as pessoas vãose entrelaçando como um trancelim Tam bém fazem parte das atividades de lazer da comunidade o forró e a brincadeira de roda O fato de Conceição das Crioulas ficar distante de um centro urbano sendo Salgueiro o mais próximo dá a essa comunidade negra uma característica peculiar Embora o fluxo entre ambos seja cons tante a feira de Salgueiro não chega a absorver produtos de Concei ção A dependência desta se dá mais pela procura de serviços como saúde e educação Considerações finais Descrever a ocupação da comunidade negra de Conceição das Crioulas na região em que ela se encontra requer o exercício de um olhar histórico e antropológico capaz de nos fazer desvencilhar de categorias sociais e jurídicas estabelecidas exteriormente ao grupo como parâmetros para atribuições legais A memória social do grupo e as fronteiras estabelecidas com a sociedade do entorno indicam uma ocupação de mais de 100 anos Tratase de uma apropriação do espaço com significados diversos pautada pela idéia de uma origem comum relacionada a negros que tiveram uma relação com o regime escravocrata mas chegaram à re gião como pessoas livres ou em busca de liberdade O sertão pernam bucano tem essa característica de ter abrigado populações indígenas e negras que aí se embrenhavam para fugir das frentes de expansão da cultura da cana e do gado O estudo da ocupação do sertão começou a intensificarse há pouco tempo Com base nessas recentes pesquisas alguns historiado res afirmam que no sertão houve utilização de mãodeobra escrava numa escala maior do que se supunha mais de 60 das proprieda des dela se utilizavam2 mas a memória social de Conceição das Criou 2 Ver Jornal do Commercio 521993 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 137 Quilombos 138 las não apresenta elementos que indiquem esse vínculo de seus inte grantes com as propriedades locais Ao contrário negase a condição de cativas ou escravas das crioulas que deram origem a Conceição Adquiridas graças ao trabalho delas e de seus descendentes as terras foram inclusive escrituradas Quando se diz que tal registro teria ocor rido na Torre podese supor que se trate da Casa da Torre dos Garcia dÁvila que foram durante alguns séculos os maiores latifun diários do Nordeste Também há relatos que indicam que a escritura das terras estaria no Livro do Tombo ou na Torre do Tombo Po rém o que se pode perceber é a ênfase no fato de o direito das criou las às suas terras estar condicionado à existência da referida escritura Inegavelmente a pesquisa histórica a partir de documentação poderia fornecer interessantes subsídios cuja importância porém não deve suplantar a da atual estrutura organizacional da comunidade composta de uma complexa rede de interação e cooperação que legi tima sua identidade de remanescente de quilombo Consideramos que a ênfase dada à escritura das terras das criou las e da santa doadas pela crioula Chica Ferreira temse tornado evidente diante da percepção da própria comunidade em estabelecer um elemento de contrapartida que atenda às exigências da sociedade envolvente Oliveira Filho e Almeida 1989378 já ressaltaram que muitas vezes os antigos moradores no nosso caso os negros ao formularem uma explicação do passado explicitam as modalidades de aquisição e conservação de seus direitos bem como fixam os seus limites territoriais precisos criando assim condições para o reconhe cimento dos direitos de outrem e reavivando os acordos e compro misso realizado por gerações anteriores Os relatos que pertencem à herança comum ou ao patrimônio comum de Conceição das Crioulas permitemnos perceber que como há necessidade de afirmar o direito da comunidade no contexto da história oficial os crioulos terminam por inserir os aspectos mais importantes de sua memória social na história reconhecida por quem detém o poder de garantir seu território Muitos desses critérios têm caráter emblemático e são freqüentemente utilizados pelas agências que atuam junto à comunidade no seu processo de reafirmação étnica Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 138 Conceição das Crioulas Salgueiro PE 139 Diferentemente de outras comunidades negras que também pleiteiam seu reconhecimento como remanescente de quilombo em Conceição não há lembranças de símbolos como chicotes e pren sas que remetam à condição de escravo e de submissão Ao contrário sempre se referem às crioulas enfatizando seu poder de autonomia Apesar de terem vivido períodos em que a usurpação de suas terras se concretizou encontramos relatos de resistência contra os Urias por exemplo em que a categoria de negro ou caboclo era utilizada em oposição ao branco revelando que o conflito se dava entre cate gorias raciais Percebemos que a diferença o conflito têm promovido a autodefinição dos agentes sociais em jogo e delimitado com maior precisão as fronteiras étnicas capazes de definir o pertencimento ou não ao grupo O fio da memória que vem sendo bastante instigado na comuni dade em questão fortalece como já ressaltaram Acevedo e Castro uma proposta de integração diferente daquela da sociedade envolvente e é exatamente essa capacidade de acionar o passado que vem permi tindo legitimar suas formas associativas e sua inserção no sistema político regional com base na identidade de remanescente de quilombo A articulação entre os sítios gerando um fluxo de bens simbóli cos e materiais dá unidade à comunidade e demonstra a sua capaci dade políticoorganizativa Essa articulação que se dá através de des locamentos dentro de um território comum identificado com terras conquistadas pelos seus antepassados tem possibilitado a conserva ção dos laços interfamiliares e as práticas que delineiam suas relações econômicas políticas e culturais O território de Conceição das Crioulas é definido como área de uma prática social de um comportamento de uma categoria social É dentro dessa região delimitada no sertão de Pernambuco que os indi víduos desse grupo se sentem em afinidade em segurança seu territó rio é um espaço socialmente selecionado para a sobrevivência de seu sistema e é dentro dele que essa prática social se faz e se crê eficaz competente e legítima Reconhecer a identidade de remanescente de quilombo da comunidade negra de Conceição das Crioulas o territó rio a ela relacionado e garantir sua existência num contexto agrário arcaico significa que estamos assumindo o caráter plural de nossa Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 139 Quilombos 140 sociedade e efetivando a possibilidade de seus integrantes exercerem sua cidadania Referências bibliográficas Acevedo Rosa Castro Edna Negros do Trombetas guardiães de matas e rios Belém UfpaNaea 1993 Almeida Alfredo Wagner Berno de Terras de preto terras de santo terras de índio uso comum e conflito In Castro Edna M R de Hébette Jean orgs Nas trilhas dos grandes projetos modernização e conflito na Amazônia Belém NAEAUfpa 1989 Quilombos sematologia face a novas identidades In Projeto Vida de Negro Frechal terra de preto quilombo conhecido como reserva extrativista São Luís SMDDHCCNPVN 1996 Quilombo tema e problema In Projeto Vida de Negro Jamary dos Pretos terra de mocambeiros São Luís SMDDHCCNPVN 1998 Ferreira Ivson José Relatório de identificação da área indígena aticum Funai 1989 Historiadores redescobrem o sertão Jornal do Commercio 521993 JC Cultu ral p 23 Marcílio Maria Luiza O sertão pecuário na época colonial In Silva Severino Vicente da A Igreja e a questão agrária no Nordeste subsídios históricos São Paulo Paulinas 1986 Mesquita Zilá Do território à consciência territorial In Mesquita Zilá M Brandão Carlos Rodrigues orgs Territórios do cotidiano Porto Alegre UFRGSUnisc 1995 Montenegro Antônio Ramos Maria Elizabete Gomes Comunidades ne gras remanescentes de quilombos em Pernambuco Recife Centro Luiz FreireMinCFundo Nacional de CulturaGoverno de Pernambuco sd Moura Abdias O sumidouro do São Francisco subterrâneos da cultura brasileira Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1985 Oliveira Filho João Pacheco Almeida Alfredo Wagner Berno de Demarca ção e reafirmação étnica um ensaio sobre a Funai PPGAS Museu Nacional do Rio de Janeiro UFRJ 1989 Comunicação 14 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 140 C A P Í T U L O 4 Quilombo do Laudêncio Município de São Mateus ES Osvaldo Martins de Oliveira A comunidade negra rural do Espírito Santo está localizada no mu nicípio de São Mateus Seus moradores estão relacionados entre si por laços de parentesco e relatam sua procedência a partir de dois irmãos Eleodório Vicente de Jesus e Laudêncio de Jesus que ocupa ram aquelas terras onde hoje moram seus descendentes O local das terras desse grupo já foi dividido em três denomina ções existentes ainda hoje referentes a lugares específicos dentro de suas terras córrego Grande córrego da Tabua e rio Preto Posterior mente o local recebeu o nome de Comunidade do Espírito Santo por haver a Igreja católica criado ali nos anos 1970 uma Comunidade Eclesial de Base CEB1 tendo por padroeiro o Divino Espírito San to Antes da chegada da Igreja ao local conforme afirmam os paren tes que já se consideravam católicos se uniam para rezar a ladainha2 em família Havia uma devoção muito forte a São Benedito e seus 1 As CEBs na definição do teólogo Frei Betto 1981167 são pequenos gru pos organizados em torno da paróquia urbana ou da capela rural por inicia tiva de leigos padres ou bispos Motivadas pela fé essas pessoas vivem uma comum união em torno de seus problemas de sobrevivência de moradia e de lutas por melhores condições de vida 2 A ladainha no Brasil é uma antiga reza típica dos católicos analfabetos do meio rural que a rezam para os santos populares Até 1962 enquanto a língua do catolicismo oficial era o latim e os padres celebravam as missas nessa língua Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 141 Quilombos 142 pais e avós rezavam a ladainha para ele e para outros santos tradição que segundo os mais velhos se mantém até hoje Antigamente não tinha essa comunidade do interior Nossos pais os meus avós rezavam a ladainha caseira em devoção aos santos aos padroeiros Então depois que criou essa comunidade e passou a rezar o culto dominical muita gente desligou da ladainha só que nós não deixamos aquela tradição Nós continuamos rezando a la dainha nós reza o terço e também aquelas rezas antigas que eram dos nossos antepassados Em São Mateus têm outras pessoas que rezam também a ladainha A ladainha caseira VAS3 O processo de mobilização política dessa comunidade contou com a presença da Igreja católica e do Movimento Grupo de União e Consciência Negra Eles desencadearam um forte movimento na região norte para que os pequenos proprietários não vendessem as suas terras Um dos moradores afirma que com a intensificação do movimento em meados dos anos 1970 as pessoas pararam de vender suas terras Entre 1985 e 1992 porém alguns voltaram a vendêlas novamente Com a venda de várias pequenas áreas para a plantação de eu caliptos distanciaramse as áreas umas das outras e conseqüente mente as famílias Assim uma parte do grupo criou um novo tem plo da CEB na cabeceira do rio Preto argumentando ser muito longe a CEB do Espírito Santo e passou a participar junto com outro grupo numa fazenda chamada Tiguera onde criaram a CEB Bom Pastor ao povo que não sabia latim eram ensinadas orações longas e repetitivas como é o caso da ladainha na qual o rezador invoca uma seqüência de nomes de santos e os demais participantes respondem rogai por nós 3 VAS nascido em 771936 é pai de quatro filhas e bisneto de Laudêncio Lidera politicamente um núcleo de nove famílias que vive à margem do rio Preto Também lidera e compõe as músicas de um grupo de reisdeboi na sede do município de São Mateus formado em sua maioria por parentes e exmora dores dessa comunidade VAS é integrante de um grupo denominado Comu nidade Afro São Benedito que se reúne na igreja de São Benedito na sede do município Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 142 Quilombo do Laudêncio Município de São Mateus ES 143 Da comunidade do Espírito Santo depois já se criou outra comu nidade que é a do Bom Pastor de um sobrinho meu porque ficava muito longe para eles irem lá e então criaram outra comunidade que é filha da comunidade do Espírito Santo a Bom Pastor na Tigüera Se vocês forem lá pra cima vão passar na casa do sobrinho meu e irmãos e eles participam Eu aqui participo na do Espírito Santo e eles antes participavam no Espírito Santo Depois mudou e fizeram outra comunidade lá que fica mais perto pra eles VAS Pela comunidade já passaram muitos curiosos e entre eles cinegrafistas jornalistas e fotógrafos que sobre ela fizeram um documentário O último quilombo bem como fotos e reportagens Os membros da comunidade reclamam e às vezes se negam a relatar sua história a estranhos porque no seu entender eles não a trataram com o respeito merecido deturpando sua realidade e considerandoa atra sada em relação às transformações sociais Desde meus primeiros contatos com os moradores dessa comu nidade em janeiro de 1997 disseramme que ali as maiores famílias que deram origem ao grupo eram os Eleodórios os Laudêncios e os Gaias Falavam também em reisdeboi dos Laudêncios e se diziam descendentes do quilombo do Laudêncio Depois de fazer a genealogia dos vários chefes de família homens e mulheres e obter vários relatos na memória social cheguei à conclusão de que os que são chamados de Laudêncios pelos de dentro e pelos de fora da co munidade em sua maioria quase absoluta se assinam Santos e são descendentes de Laudêncio de Jesus enquanto os que se assinam Eleodório e de Jesus em menor número na comunidade descendem de Eleodório Vicente de Jesus Os Gaias ao que contam eram negros que moravam no norte de São Mateus para o lado de SantAna e Sapé do Norte Ao migrarem para o local foram sendo incorporados ao grupo dos descendentes de Eleodório e Laudêncio que era e con tinua sendo maioria pelas alianças matrimoniais Só foi possível ob ter uma história mais detalhada dos irmãos Eleodório e Laudêncio pois os que afirmam ser da família Gaia não conseguiram traçar sua genealogia além de seus avós Tentarei explicar a complexidade da história desse grupo de parentesco mais adiante recorrendo para tan to ao método genealógico e à memória social Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 143 Quilombos 144 Localização população e condições de habitação A comunidade está localizada no município de São Mateus re gião norte do estado do Espírito Santo Dista aproximadamente 12km da sede do município e quase todos os seus moradores vivem do lado esquerdo da BR101 Norte sentido VitóriaSão Mateus O ponto de referência de entrada para a comunidade é o Posto Caminhoneiro que fica ao lado esquerdo da BR Ali tomando uma estrada de terra margeada por eucaliptos cerca de 1km adiante encontramos do lado direito um campo de futebol o templo da comunidade católica e a escola estadual de primeira a quarta séries primárias Para quem entra na região tomando o templo da comunidade católica local como ponto de referência cerca de 2km à esquerda está o rio Preto e cerca de 4km à direita o córrego Grande Entre o rio Preto e o córrego Grande cerca de 3km depois do templo católico na região central da localidade nasce o córrego da Tabua um dos afluentes do rio Preto Quanto ao relevo a comunidade está numa planície bem como todo o município de São Mateus Em Divino Espírito Santo vivem 35 famílias e cerca de 220 pessoas ligadas por laços de parentesco pois descendem dos irmãos Eleodório e Laudêncio havendo vários casamentos entre parentes Outras 10 famílias chegaram ao local nos últimos 10 anos e são con sideradas e se consideram descendentes de imigrantes italianos que compraram pequenas propriedades dos negros que se mudaram para Vitória e para São Mateus Conforme já dissemos no local só há duas escolas de primeira a quarta séries uma estadual e outra municipal situada um pouco mais acima à margem do rio Preto4 e cujo professor Domingos Manoel dos Santos segundo grau em magistério é da própria comunidade fazendo parte do grupo de parentesco Até a data do encerramento deste trabalho 13 jovens da localidade haviam concluído o segundo grau na Escola Família Agrícola em Jaguaré município vizinho dis tante 25km Destaque especial deve ser dado à família de Concéscio 4 A margem do rio Preto a que me refiro já fica próxima de sua cabeceira Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 144 Quilombo do Laudêncio Município de São Mateus ES 145 Eleodório de Jesus filho do Eleodório pois cinco de seus filhos são técnicos agrícolas formados nessa escola5 Outros 12 jovens da comu nidade concluíram o primeiro grau também na Escola Família Agríco la Vários outros jovens cursam o primeiro grau à noite numa vila vizinha a 7km denominada Vila Paulista e se deslocam em transporte oferecido pela prefeitura de São Mateus Quanto às condições de habitação existem cerca de 24 casas de alvenaria oito de pauapique e duas de tábuas O número de cômo dos dessas casas varia entre cinco e sete Geralmente compõemse de uma cozinha uma sala e dois ou três quartos havendo nas maiores também uma sala de jantar Ao falarem da arquitetura de suas casas consideram que as de alvenaria são mais confortáveis seguras e boni tas do que as antigas de pauapique Finda essa breve apresentação da comunidade vejamos alguns dados históricos sobre a presença de negros e quilombos na região para em seguida expor meus dados etnográficos sobre o modo de vida local Negros e quilombos na região Em geral se considera que a composição étnica do estado do Espírito Santo está assim dividida no sul do estado e na região serra 5 A filosofia das várias escolas Família Agrícola existentes no estado do Espírito Santo consiste em formar o aluno para que sua família continue morando e trabalhando na terra Assim o aluno passa 15 dias na escola estudando e apli cando as técnicas de trabalho numa área de terra da própria escola e 15 dias em casa onde tem a oportunidade de aplicar essas técnicas às terras de sua própria família Essas escolas não são totalmente gratuitas pois são mantidas com re cursos vindos em parte do exterior em parte do governo estadual e em parte das famílias dos próprios estudantes Os filhos do sr Concéscio que hoje cul tivam café e hortifrutigranjeiros e criam porcos galinhas patos gansos e peixes aplicando as técnicas aprendidas na Escola Família Agrícola afirmam que só puderam se manter na escola graças ao beiju que eles mesmos produziam e comercializavam em São Mateus e em Vitória Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 145 Quilombos 146 na predominam os descendentes de imigrantes europeus na região metropolitana da Grande Vitória municípios de Vitória Vila Ve lha Cariacica Viana e Serra prevalece a mestiçagem enquanto no norte especificamente nos municípios de São Mateus e Conceição da Barra região que constitui meu campo de pesquisa predomina a po pulação negra segundo números do IBGE no primeiro município pretos e pardos somam 70 da população e no segundo 80 Ao deixar de lado essas concepções baseadas no fenótipo passei a observar os diversos grupos que estão reivindicando sua condição de negros ou quilombolas Para tanto lancei mão das noções de etnicidade e grupos étnicos e realizei pesquisa arquivística histórica e etnográfica tendo concluído que em todas essas regiões do estado existem grupos de negros organizados em seus territórios no meio rural ou mobilizados politicamente para defender seus direitos e com petir por espaço no poder político nos meios urbanos No município de Conceição da Barra por exemplo na última competição eleitoral municipal foram eleitos seis vereadores negros o que segundo os militantes do grupo União e Consciência Negra representa uma con quista política da população negra local Pesquisando os relatórios dos presidentes da província do Espí rito Santo no século XIX e a literatura histórica constatei que o trabalho escravo se concentrava nas regiões de São Mateus norte Vitória região central e Cachoeiro de Itapemirim sul Em todas essas regiões durante o regime escravocrata os negros organizaram quilombos Analisarei aqui apenas os dados históricos sobre os quilombos da região dos municípios de São Mateus e Conceição da Barra Segundo o historiador Maciel de Aguiar em entrevista concedi da a mim em janeiro de 1997 as comunidades negras de São Jorge e Droga já foram conhecidas apenas como quilombo Sapé do Norte o maior do norte do estado e por onde passou o mais temido líder dos quilombos da região Benedito MeiaLégua Aguiar 1995a124 diz que o primeiro quilombo a existir no município de São Mateus foi liderado por Zacimba Gaba uma princesa africana de Cabinda que após envenenar seu senhor fugiu com centenas de escravos e formou um quilombo na região de Itaúnas hoje pertencente ao município de Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 146 Quilombo do Laudêncio Município de São Mateus ES 147 Conceição da Barra Os seguidores de Zacimba tinham por missão atacar as fazendas e as embarcações que traziam escravos para o porto de São Mateus a fim de libertálos Assim fizeram de 1700 a 1710 quando então num dos ataques Zacimba foi assassinada Após a morte de Zacimba passouse um século sem que os ne gros conseguissem organizar quilombos duradouros naquela região devido à repressão promovida pelo governo da província Até que surgiu o mítico Benedito Caravelas que ficou conhecido como Bene dito MeiaLégua Diz Aguiar Só a partir de 1820 dáse início ao ciclo de inúmeras vitórias dos negros com o surgimento de Benedito MeiaLégua que durante cerca de 60 anos atemorizou os grandes fazendeiros da região im plantando uma prática revolucionária inédita no Brasil vinculando a fé do povo em São Benedito ao movimento de libertação dando início às mais espetaculares ações contra as grandes fazendas além das lutas na floresta densa contra os capitãesdomato financiados pelo baronato deixando um rastro de heroísmo sangue coragem aventura e muita lenda até sua morte em 1885 quando contava com aproximadamente 80 anos Notícias da existência de Benedito MeiaLégua líder de um quilombo em São Mateus encontramse no relatório com que José Camilo Ferreira Rebello quinto vicepresidente da província do Es pírito Santo passou à administração ao presidente Custódio José Ferreira Martins em 17 de setembro de 1884 Rebello 1884101 escreve que o chefe de polícia lhe comunicara naquele ano por meio de um ofício que as autoridades policiais da comarca de São Mateus tinham sérios e graves receios de ser ali perturbada a ordem e tranqüilidade pública por ocasião das festividades que teriam lu gar a 27 de julho do corrente ano por circularem fundados boatos de que escravos daquela localidade e da província da Bahia arranchados nas matas da fazenda de José Rodrigues de Oliveira Guedes em número de 20 a 30 armados e capitaneados pelo eva dido réu Benedito projetavam fazer uma insurreição conforme constava dos ofícios das referidas autoridades Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 147 Quilombos 148 Como diz Aguiar os quilombolas aproveitavam os dias de festas para provocar insurreições e por meio delas libertar outros escravos para os quilombos da região Ainda segundo o relatório de Rebello após a polícia chegar ao local conseguiu capturar seis quilombolas menos o criminoso de morte Benedito e outros escravos que faziam parte do quilombo Nem bem a força policial se achou a bordo do vapor que a conduzi ria de volta à capital da província o juiz municipal da Vila da Barra atual cidade de Conceição da Barra6 comunicouse com o chefe de polícia da província pelo telégrafo pedindo a presença da força poli cial naquela Vila a fim de perseguir e bater os restos do quilombo cujos escravos continuando capitaneados pelo facínora Benedito haviam reaparecido em fazendas e outras localidades do respectivo município fazendo latrocínios e praticando barbaridades Quando a força policial regressou à capital o chefe de polícia comunicou ao presidente da província que a população daquele município se achava desassombrada em relação à insurreição dos quilombolas embora Benedito e seus sequazes continuassem nas matas em lugares indeterminados sendo incessantemente perseguidos pela polícia e pelos capitãesdomato No ano de 1885 conforme escreve Aguiar Benedito MeiaLé gua com cerca de 80 anos de idade foi assassinado covardemente nas matas do Angelim município de Conceição da Barra onde vivia 6 Segundo Lima 199525 a antiga Vila da Barra de São Mateus que em 1891 se tornou a cidade de Conceição da Barra foi primeiro povoada por brancos mas pelas roças da região concentravamse muitos negros que se haviam aquilombado nas matas Os negros que ainda hoje são predominantes na região eram geralmente fugitivos do sul da Bahia e das fazendas vizinhas que penetravam por terra através de caminhos que eles mesmos faziam no meio do mato para se aquilombar ali Lyra 198134 também diz que os descenden tes de africanos concentravamse nas regiões das roças Esses negros segundo ela trabalhavam na produção de farinha que eles transportavam pelo rio Cricaré em enormes canoas chamadas batelões ou em lombo de burros através de trilhas abertas no mato Os baianos aportavam com seus navios nas proximida des da Vila para comprar a farinha produzida pelos negros Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 148 Quilombo do Laudêncio Município de São Mateus ES 149 dentro do oco de uma árvore frondosa em local de difícil acesso As tropas da polícia com o auxílio dos capitãesdomato e de jagunços dos fazendeiros da região montaram a tocaia e esperaram o velho Benedito MeiaLégua aparecer Depois que ele entrou no oco da ár vore caída sobre o solo e se recolheu para dormir relata Aguiar 1995a20 a captura tampou a entrada com troncos e ateou fogo na madeira secular findando a vida do revolucionário negro que morreu queimado no seio da floresta onde passara toda sua exis tência Por muitos anos na região após sua morte mantevese o mito de que MeiaLégua não havia morrido encantarase Os quilombos não eram organizações apenas para fins guerrei ros mas se caracterizavam também como organizações sociais e polí ticas em torno de atividades econômicas para a sobrevivência de seus quilombolas Segundo Aguiar no atual povoado de SantAna próxi mo à antiga Vila da Barra de São Mateus à margem da estrada velha que ligava os dois municípios existiu um quilombo liderado pelo Negro Rugério onde se produzia muita farinha que era negociada com a exsenhora de Negro Rugério dona Rita Cunha mãe do ba rão dos Aimorés Em troca da negociação da farinha a baixo custo dona Rita Cunha protegia o quilombo da invasão das forças do go verno e dos capitãesdomato A instalação desse quilombo segundo Aguiar 1995c16 ocor rera em meados do século XIX quando Negro Rugério se aquilombou com um grupo de aproximadamente 30 negros de origem angolana nas terras de dona Rita Cunha que era presidente do Partido Liberal na cidade de São Mateus e possuía uma sesmaria com enorme exten são de terras desde a margem norte do rio Cricaré até o rio São Domingos Diz Aguiar 1995c22 que no quilombo de Negro Rugério havia cerca de uma dúzia de casas de farinha onde se chega va a produzir aproximadamente 50 sacas por dia Negro Rugério tornase rei da farinha e seu quilombo sob a pro teção de dona Rita Cunha atravessadora da farinha do quilombo que ela comprava pela metade do preço de mercado passa a inco modar a aristocracia rural onde os outros produtores faziam pressão sob a alegação de que nele viviam gentes condenadas por vários cri Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 149 Quilombos 150 mes saqueadores de fazendas e escravos fugidos muitos dos quais há anos procurados por capitãesdomato e pelas forças do governo Com a morte de dona Rita Cunha e a notícia de que os quilombolas iriam promover uma insurreição no dia de SantAna em 26 de julho de 1881 quando todos os negros seriam libertados a força do governo tomou de assalto o quilombo do Negro Rugério Segundo Aguiar até as décadas de 1970 e 1980 estava registrado na memória social dos velhos da região que líderes de outros quilombos como Benedito Meialégua Constância dAngola Viriato Cancão deFogo e outros lutaram juntos em SantAna enfrentando a força do governo para defender o quilombo do Negro Rugério Muitos negros diz Aguiar 1995c25 fugiram para as matas outros caíram no rio São Domingos outros correram para o Sapé do Norte onde ainda hoje segundo o autor estão seus remanescentes Negro Rugério no entanto na luta matou um dos criminosos mais temidos da região o Cearense um implacável capitãodomato de nome Francisco Vieira de Melo que durante muito tempo cap turou torturou e matou vários negros no vale do Cricaré Negro Rugério após os demais se refugiarem nas matas resistiu em luta encarniçada com o Cearense tendo feito o juramento de que se ria o último a morrer caso as forças do governo invadissem o quilombo E assim o fez O confronto dos quilombolas com a polícia a prisão de apenas cinco deles e as mortes foram relatadas pelo presidente da província do Espírito Santo Marcelino de Assis Tostes 188216 O fato te ria ocorrido em agosto de 1881 na cidade de São Mateus nas matas da fazenda Campo Redon do sendo atacado pela força de polícia auxiliada de paisanos um quilombo de escravos ali refugiados depois de tenaz resistência conseguiu a mesma força prender cinco resultando a morte do de nome Rogério que fazia fogo sobre a força tendo também falecido nesta luta o paisano Francisco de Melo por haver recebido um tiro dado do lado dos escravos do mesmo quilombo Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 150 Quilombo do Laudêncio Município de São Mateus ES 151 Entre o que escreve Aguiar e o que escreve Tostes há uma dife rença de dois meses na ocorrência do fato Para o primeiro o fato teria ocorrido em junho de 1881 e para o segundo em agosto do mesmo ano mas acreditase que o fato seja o mesmo pois existem mais semelhanças que diferenças Por exemplo as narrações referem se à mesma região ao mesmo fato no mesmo ano e aos mesmos nomes Rogério7 e Francisco de Melo como os dois mortos Aguiar ao que parece embora tenha pesquisado no Arquivo Público fez uma adaptação do fato à memória social que aproximava o aconteci mento da festa de SantAna no mês de junho Pelo que disseram os grandes líderes dos movimentos de resis tência cultural e política dessa região em depoimentos concedidos a Aguiar as mortes de Zacimba Gaba Benedito MeiaLégua Negro Rugério e outros significaram para esses velhos líderes negros que as utopias dos antigos quilombolas da região passaram a fazer parte da realidade e das lutas das comunidades negras e dos remanescentes dos quilombos da região que resistiram às pressões e ameaças da Aracruz Celulose empresa multinacional de grande porte que tem o eucalipto como matériaprima para a extração da celulose e está loca lizada no município de Aracruz litoral da região norte do ES para obter seus territórios Todo o material literário de Maciel de Aguiar aqui utilizado faz parte de uma série intitulada história dos vencidos Esse título é contestado pelos líderes do grupo de União e Consciência Negra de São Mateus e Conceição da Barra do qual fazem parte alguns mora dores de Divino Espírito Santo Segundo eles nós não fomos venci dos nós resistimos e continuamos lutando Memória social da ocupação territorial e do quilombo Além de se definirem como integrantes do quilombo do Laudêncio alguns moradores de Divino Espírito Santo afirmam que 7 Rogério e Negro Rugério Acreditase que o segundo nome é a versão popular do primeiro que ficou na memória social Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 151 Quilombos 152 esse quilombo era descendente do quilombo de Zacimba Gaba en quanto outros o consideram descendente do quilombo de SantAna o quilombo do Negro Rugério Segundo eles existem no norte do estado várias comunidades negras que descendem dos antigos quilombos ali existentes José Rola e Domingos dos Santos líderes do Grupo União e Consciência Negra em São Mateus e Conceição da Barra respectivamente também afirmam que naquela região exis tiram muitos quilombos e que as várias comunidades negras ali exis tentes são remanescentes desses quilombos Segundo José Rola as outras comunidades negras no vale do rio Cricaré no município de São Mateus que já foram visitadas pelos líderes do Grupo União e Consciência Negra e que são por eles con sideradas como remanescentes dos quilombos da região são Serra ria São Jorge e Droga Na primeira vivem cerca de 45 famílias en quanto na segunda e na terceira que na verdade formam uma só comunidade vivem cerca de 150 famílias Em Conceição da Barra segundo Domingos dos Santos existem várias como Vila de SantAna Córrego Macuco Linharinho Córrego São Domingos Trevo Angelim I e II região de Itaúnas e Córrego das Piabas Memória social da ocupação territorial Em Divino Espírito Santo a memória social da ocupação territorial está estreitamente ligada à relação entre terras e parentesco Realizei a pesquisa em torno da formação dessa comunidade levando em consideração a memória social de seus moradores bem como lan cei mão do método genealógico Por meio da memória social os moradores forneceramme dados preciosos para construir a história e a genealogia do grupo Pesquisar a história da ocupação territorial nessa comunidade é como costurar uma colcha de retalhos pois cada morador me foi fornecendo uma parte da história por meio de relatos da vida de seus ancestrais dos fatos por eles vivenciados que contri buíram para a formação do grupo Ao dizer a CPS que seu irmão me havia fornecido dados acerca da origem do grupo que conferiam Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 152 Quilombo do Laudêncio Município de São Mateus ES 153 com os dela ela afirmou Era uma porção de netos que a minha avó tinha e um pegava um pedacinho outro pegava outro né E talvez pode acontecer isso8 Após relatar várias histórias de seus ancestrais CPS concluiu com uma afirmação muito significativa a respeito da noção de transmissão de patrimônio cultural através da memória E pra falar a verdade eu estou contando porque minha bisavó eu alcancei me contou Minha bisavó morreu com 116 anos O nome dela era Maria Agora nunca contou se ela alcançou a escravatura não É talvez ela não gostasse nem que falasse né Essas coisas aí ela não contava pra nós não Eu conto o que a minha avó e a minha bisavó contavam pra nós porque eu alcancei elas Minha avó se chamava Geraldina a mãe do meu pai E ela conversava muito com a gente Eu conto pra você o que a minha avó e a minha bisavó contavam entende Consta na memória social que os irmãos Eleodório e Laudêncio eram filhos de Vicente de Jesus e Rosa A bisneta de Eleodório dona Francisca de Jesus diz que seu avô Manoel Eleodório de Jesus Manoel Bendito contava que o avô dele chamado Vicente de Jesus veio da África Eleodório e Laudêncio segundo relatam uma filha do primei ro e uma bisneta do segundo migraram de um lugar denominado Itaúnas que atualmente pertence a Conceição da Barra Afirmam tam bém que por ocasião da chegada desses dois irmãos ao local o pri meiro já era casado e Laudêncio ainda estava solteiro Havia ainda um terceiro irmão que veio com eles chamado Emílio que não per maneceu no local Segundo dona Vanderlina de Jesus filha de Eleodório nascida em 1912 e ainda viva seus avós pais de Eleodório Emílio e Laudêncio se chamavam Rosa e Vicente de Jesus Laudêncio que estava solteiro assim que chegou ao local casou se com Maria que morava nas proximidades da cidade de São Mateus Ela já era mãe de um filho chamado Manoel Leonel dos Santos e o casal teve apenas uma filha Prudenciana Laudêncio e seu irmão 8 CPS é casada mãe de 11 filhos avó de vários netos e bisneta de Laudêncio Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 153 Quilombos 154 Eleodório passaram a cultivar a terra e a criar gado na região Manoel que se tornara filho de Laudêncio passou a chamarse Manoel Laudêncio pois ainda hoje faz parte do costume local os pais coloca rem seu nome como o segundo nome do filho Manoel Leonel dos Santos Manoel Laudêncio teve três filhos Antônio dos Santos Manoel dos Santos e Mateus O primeiro logo ficou conhecido como Antônio Laudêncio Manoel Leonel dos Santos conforme relata uma de suas netas construiu sua morada nas proximidades do córrego Grande mas depois mudouse para a margem do rio Preto enquanto seu filho Antônio que lá morava veio para as ter ras da margem do córrego Grande No entender dos informantes essas mudanças ocorriam porque as áreas abertas na mata que ficas sem desocupadas seriam ocupadas pelos estranhos que cobiça vam as terras da região Tempos depois Manoel Leonel dos Santos voltou para a margem do córrego Grande e ali faleceu após ser pica do por uma cobra Prudenciana filha de Laudêncio com Maria casouse e teve apenas um filho Augusto dos Santos que ainda mora no local Ao justificarem a migração de Laudêncio e Eleodório de Itaúnas para as terras entre o rio Preto e o córrego Grande seus atuais descen dentes afirmam que os dois irmãos seguiram a mesma lógica dos de mais escravos que fugiam em busca de terras férteis para sobreviver Após a morte de Manoel Leonel dos Santos Antônio dos San tos Antônio Laudêncio ficou morando nas terras à margem do rio Preto onde seus filhos estão ainda hoje enquanto Manoel dos San tos permaneceu nas terras do córrego Grande mudandose posterior mente para a margem do rio Preto e deixando suas terras para os filhos que lá vivem até hoje Atualmente os descendentes de Laudêncio se distribuem entre as margens do rio Preto do córrego da Tabua e do córrego Grande e à margem direita da BR101 Norte enquanto Eleodório apesar de ter tido mais filhos que Laudêncio oito no total tem menos descen dentes no local Alguns vivem à margem do rio Preto os filhos netos e bisnetos de Manoel Eleodório filho já falecido de Eleodório e outros à margem do córrego da Tabua Concéscio Eleodório de Je sus filho de Eleodório que vive numa mesma casa com sua família extensa filhos esposas dos filhos e toda a prole Existe uma outra Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 154 Quilombo do Laudêncio Município de São Mateus ES 155 filha de Eleodório ainda viva que é dona Vanderlina moradora da cidade de São Mateus Na verdade é impossível fazer uma separação rígida entre os descendentes de Eleodório e os de Laudêncio como já se casaram entre si às vezes o homem é descendente do Laudêncio e a mulher é descendente do Eleodório e viceversa A antigüidade desse grupo de parentesco no local e na região pode ser constatada pela idade dos dois filhos de Eleodório ainda vivos Concéscio já citado e Vanderlina de Jesus Machado nasci da em 1061912 e moradora na cidade de São Mateus Segundo Vanderlina seu pai tinha 10 filhos com Benedita Marco da Concei ção sua única esposa Ela relata o nome de todos do mais velho ao mais novo dizendo Primeiro foi Mariana segundo Amadeu tercei ro Rosa quarto Manoel Bendito Manoel Eleodório de Jesus quin to Maria Yayá sexto Bedulina sétimo França oitavo eu nono Concéscio e décimo Vicentina E acrescenta Olha eles falavam meu pai falava no norte para os lados do norte por aí né Nesse norte por aí ele casou com mamãe a Benedita Aí ele ficou morando lá no Córrego Grande Eu acho que tinha a filha mais velha Eu acho que era a Mariana lá no norte Penso eu que era Aí desses outros pra cá ele teve tudo no Córrego Grande Alguma coisa eu ainda me lembro porque a gente era pequena Segundo Juarez filho de Conscécio ele conviveu muito com sua tia Maria Eleodório e ela mantinha muito sigilo sobre o tempo da escravidão Maria que era chamada carinhosamente por seus irmãos mais novos e sobrinhos de Yayá termo proveniente da língua iorubá que significa mamãe nasceu em 1898 e faleceu em 1992 confor me atestado de óbito apresentado por seu sobrinho Pedrolino de Je sus Segundo o que relatam ela nasceu no local 10 anos após a assi natura da Lei Áurea Eleodório viveu no período da escravidão mas seus descendentes fazem questão de dizer que ele não foi escravo que vivia livre em um quilombo na região de Itaúnas e que ele e os irmãos migraram para as terras onde hoje moram eles seus descendentes Os descendentes de Eleodório e Laudêncio dominaram uma gran de extensão de terras na região entre o rio Preto e o córrego Grande Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 155 Quilombos 156 até os anos 1940 quando a frente de expansão madeireira começou a ameaçálos e o governo os pressionou a requerer a titulação das terras individualmente A esse respeito disse MCS9 Antigamente aqui era uma terra só Depois com as mudanças das leis obrigaram cada família a fazer o seu documento Do córrego Grande ao rio Preto era de uma família só Ali habitavam os paren tes Pais filhos e netos habitavam todos ali Depois eles foram ven dendo vendendo e se tornou pouco Um dos informantes diz que por volta de 1940 se começou a titular a posse da terra individualmente e seu pai que era morador dali desde o tempo de seu avô e bisavô teve que pagar para requerer a terra do estado Mesmo assim não foi possível requerer toda a área que usavam pois ficaria caro Aí começaram a entrar os primeiros moradores que não faziam parte do grupo dos parentes Eram amigos dos moradores e os mais velhos lhes davam um pedaço de terra Antes de 1940 ninguém ali tinha documento O documento da ter ra de um para o outro era o corte do machado Um pegava a cortar aqui naquela linha e todo mundo respeitava e não entrava no pedaço do outro VAS Até o início da década de 1970 apesar de uns poucos proprietá rios vizinhos eles conseguiram manter uma hegemonia étnica e de parentesco nas terras da região Segundo um informante Era a nossa raça pura Então começaram as pressões para que vendessem suas terras à Companhia Florestal Rio Doce que planta eucaliptos para a Aracruz Celulose Muitos cederam mas os que resistiram têm fortes motivos e justificativas de fundo religioso para se manter na terra Para CEJ 10 a terra tem um valor sagrado e não de comércio 9 MCS nascida em 13111955 casada com o bisneto de Laudêncio Domin gos da Penha com quem teve seis filhos 10 CEJ nascido em 1913 filho mais novo de Eleodório Vicente de Jesus é viúvo e pai de 12 filhos É o único filho de Eleodório que ainda vive na comu nidade Por ser adepto da Igreja Evangélica Assembléia de Deus recusase a contar histórias que ouviu de seu pai dizendo que a Bíblia não permite que ele fale o que não viu Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 156 Quilombo do Laudêncio Município de São Mateus ES 157 A terra não foi feita para o homem vender Foi feita para o homem lavrar Não se deve vender nem desfazer dela Na época em que a companhia passou comprar terra aqui perguntaram se eu queria vender então eu disse que não vendia porque não tinha dinheiro que pagasse a terra porque ela não foi feita pra venda Deus deu a terra pra gente trabalhar nela não pra comercializar Contam que um dos moradores vizinhos vendeu suas terras e depois ficou sendo informante da companhia sobre quem tinha terra na região Esse informante pressionava os moradores da comunidade dizendo que eles deveriam vender suas terras pois não suportariam as exigências da companhia em relação a seus vizinhos A cerca seria de nove fios de arame porque ela não queria animais circulando nas terras dela Um dos moradores teria respondido Cerca de pinto meu pai me ensinou a fazer O morador quis dizer que se conseguia fazer cerca para pinto saberia fazer cerca para qualquer outro tipo de animal portanto não sairia de suas terras Quilombo reivindicação e autodefinição É a partir de seu atual nível de consciência e organização política que o grupo reelabora sua identidade étnica passando assim a reivin dicar a identidade de quilombo e a definirse como tal Na concepção desses moradores o quilombo é uma organização social e política dinâmica pois a comunidade se transformou num quilombo na medida em que os conhecimentos foram sendo trans mitidos dos mais velhos para os mais novos pelo processo de mobilização e conscientização Destacase aí a dimensão afetiva do grupo pois os avós têm papel importante e são considerados como fontes fidedignas de onde emana o conhecimento do passado cujos valores os levam a retomar suas origens Para esse grupo de parentes isso significa ir ao encontro de um ou vários parentes que são seus avós bisavós e trisavós O grupo volta ao passado por meio dos co nhecimentos transmitidos por seus avós para reelaborar o significado Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 157 Quilombos 158 do presente e de sua identidade étnica Eis como JJ 11 se refere ao processo de mobilização desencadeado nos anos 1970 que levou a comunidade a reencontrar sua própria história Essa comunidade aqui segundo os conhecimentos passados se trans formou num quilombo com as pessoas que vieram de uma fuga que teve ali do porto de São Mateus Acho que aqui elas têm as raízes que são nossos avós e nossos pais que ficaram Nos anos 1970 que foram anos mais quentes de conscientização nossos pais e nossos avós começaram a passar pra gente o que havia acontecido no pas sado Mas não tem nada escrito Está na memória As lideranças afirmam que o grupo descende de um antigo quilombo porque os primeiros moradores que ali viveram se agrupa ram nas matas e dela tiravam seu sustento Entendem que a comuni dade se formou com negros que fugiam do trabalho escravo tornan dose lugar e território de resistência O refúgio a seu ver não é lugar de isolamento e sim de resistência contra as correntes do sistema escravocrata e onde em liberdade eles se estabelecem e organizam um novo território Ao falarem de suas origens alguns sustentam que Eleodório e Laudêncio teriam fugido para o local ainda no tempo da escravidão e aí formado um quilombo enquanto outros acreditam que os dois irmãos nunca foram escravos mas viviam livres nas matas da região norte do estado tendo migrado de um antigo quilombo existente em Itaúnas e formado um novo quilombo no local nos últimos anos da escravidão Assim dizemse remanescentes do quilombo liderado por uma guerreira conhecida como Zacimba Gaba e o qual segundo Aguiar teria existido em Itaúnas município de Conceição da Barra entre 1700 e 1710 Um neto de Eleodório afirma O meu avô não pegou o tempo do carrancismo porque eu acredito que ele fez parte de um refúgio 11 JJ nascido em 1955 solteiro e neto de Eleodório Estudou até concluir o primeiro grau em técnicas agrícolas é militante do grupo União e Consciência Negra e coordenador da CEB local mora na casa de seu pai e trabalha em suas terras Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 158 Quilombo do Laudêncio Município de São Mateus ES 159 de escravos nessas regiões de Itaúnas Refugiarse significa negar o carrancismo isto é negar as ordens de um sistema escravizador dos negros um sistema degradador da liberdade humana e buscar um novo modelo de organização social política e econômica Concéscio Eleodório de Jesus12 filho de Eleodório diz que quan do era criança sempre ouvia seu pai dizer que rompeu a liberdade quando era jovem Liberdade e escravidão são antíteses A expressão rompeu a liberdade significa romper com a escravidão negar a es cravidão por meio de uma nova forma de organização social política e econômica que na concepção do grupo era refugiarse em um quilombo Concéscio afirma ainda que seu pai dizia que ele e Laudêncio tinham vindo do norte de São Mateus que depois se tor nou município de Conceição da Barra e ali ocuparam terras devolutas em meio à mata Outro morador DP13 relata que alguns dos pri meiros moradores vieram do povoado de SantAna município de Conceição da Barra Segundo os membros do grupo Eleodório e Laudêncio migra ram de Itaúnas enquanto outros teriam vindo das regiões de SantAna e Sapé do Norte todos lugares de quilombos No entender dos his toriadores e estudiosos da região o meio rural de Conceição da Barra ao qual pertencem esses lugares era formado basicamente por negros fugidos de fazendas do sul da Bahia e de regiões vizinhas o que é confirmado por Maciel de Aguiar e pelos relatos dos presidentes da província do Espírito Santo Quilombo para esse grupo parece ter significado associado ao dos termos parente e malungo Como disse VAS Parente porque se criou toda a vida junto com nós aqui o pessoal do Concéscio Desde que o velho Concéscio e meu pai eram malungo 12 Concéscio Eleodório de Jesus nascido em 2691913 é viúvo pai de 12 filhos com a mesma mulher É o único filho de Eleodório que ainda vive na comuni dade Ele e alguns de seus filhos são adeptos da Igreja Evangélica Assembléia de Deus e por isso se recusa a contar as histórias que ouviu de seu pai dizendo que a Bíblia não permite que ele fale sobre o que não viu 13 DP nascido em 25121955 é bisneto de Laudêncio casado e pai de seis filhos Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 159 Quilombos 160 porque diziam que eram malungo quando eles falam malungo é por que viveram juntos viajaram juntos Não é parente mas vive junto no mesmo lugar Naquele tempo era malungo Hoje em dia é amigo e também companheiro de luta porque os velhos morreram mas os novos estão assumindo a comunidade organizando os trabalhos O parentesco vai além dos laços de consangüinidade da docu mentação legal e adquire o sentido de descendência comum tornada explícita pelo termo de origem banto malungo utilizado pelo gru po com o significado de cumplicidade na luta pela liberdade naquelas terras Adquire também o sentido de pertencimento ao mesmo grupo e ao mesmo lugar ou território Os malungos enquanto companheiros de luta conforme explicam não constituem um grupo que vive em função do passado mas que reelabora sua cultura tradicional atuali zando seus significados e que recria suas formas de organização social e política Com base em sua luta e sua consciência política os membros do grupo rebatem as ideologias engendradas na história oficial que con sideram a princesa Isabel como redentora dos escravos e afirmam terem sido os quilombos que promoveram e continuam promovendo a liberdade dos negros Como diz VAS Dizem que foi a princesa Isabel quem libertou os quilombos mas é tudo mentira né O Zumbi que era o pai dos quilombos O Zumbi que era o herói que brigou no tempo da escravidão a favor do negro Depois botaram lá que foi a princesa Isabel e veio aquela história enganando a população porque não é verdade Na concepção dos integrantes do grupo foram os quilombos que lutaram pela liberdade embora muitos livros didáticos apresen tem a princesa Isabel como a libertadora dos escravos e os quilombos apenas como grupos de escravos sem perspectiva de liberdade Memória da escravidão Na memória social local estão registradas algumas lembranças da escravidão que parecem ter sido reelaboradas pelos que entraram Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 160 Quilombo do Laudêncio Município de São Mateus ES 161 para a militância no movimento negro nas Comunidades Eclesiais de Base e na política partidária a partir dos anos 1970 Como diz um morador Depois que o compadre Juarez entrou para o Grupo de União e Consciência Negra é que a gente começou a falar das origens daqui e a dar maior importância aos antepassados Segundo outro morador a memória da escravidão tinha sido esquecida mas de uns tempos para cá foi retomada Consta que na fronteira sul de suas antigas terras à margem do rio Preto havia um marco do tempo da escravidão Minha tia contava que o pai dela dizia que tinha um marco ali Só que com o reflorestamento plantio de eucalíptos foi destruído Então diz que ali era uma moradia antiga desse pessoal Ainda em relação à memória da escravidão o pai de Concéscio contoulhe que os bebês das escravas choravam famintos enquanto suas mães tinham que trabalhar na torrefação da farinha sem poder parar para amamentálos Certa vez enfurecida com o choro de um bebê a sinhá da casagrande jogou o bebê da escrava na fornalha de torrar farinha Comentando essa história MCS diz Essas mães não tinham nem o direito de chorar ao ver seu filho sendo queimado Se chorassem elas entravam na chibata Formas de posse e uso da terra conflito e associação As terras do grupo somam aproximadamente 270ha que estão divididos em pequenas áreas de titulação individual e de uso familiar às margens da BR101 Norte Nessas terras e por elas o grupo vem construindo sua tradição sua memória sua organização política e a noção de uma unidade integrada de pessoas ligadas pelos laços de parentesco pelos traba lhos em mutirão e pela organização política na Associação dos Pe quenos Produtores da Comunidade do Espírito Santo Apepes As terras do grupo segundo relatam eram indivisas mas pos teriormente foram loteadas em pequenas áreas individuais e familia res algumas das quais vendidas pelos herdeiros Como a posse da terra tornouse familiar cada família tem a sua escritura e paga im postos ao Incra anualmente Em apenas duas dessas áreas ainda exis tem pequenas extensões de mata Essas áreas estão separadas pelas Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 161 Quilombos 162 matas de eucaliptos onde existem vários núcleos de famílias que se articulam e se organizam na defesa de seus direitos territoriais A venda de algumas terras cuja posse já fora comum veio frag mentar um território que proporcionava maior coesão ao grupo de parentes no local Apesar da extrema importância de uma unidade territorial para a constituição de um grupo étnico pareceme que esse grupo de parentes não está baseado necessariamente na ocupação de um território exclusivo pois se articula interna e externamente com parentes que se mudaram para São Mateus e a Grande Vitória sobre tudo nas atividades festivas e na busca de conquistas políticas Por darmos prioridade ao caráter organizativo dessa comunida de de parentes que entre si recriam os valores em torno do uso co mum de suas terras por meio dos trabalhos em mutirão e outras ativi dades políticas é que podemos falar de grupo étnico ou quilombo condição por ele reivindicada Os que são parentes organizam muitos mutirões para trabalhar nos roçados Como diz um deles São dois grupos tem o grupo que permanece lá no rio Preto e o grupo aqui da comunidade do Espírito Santo às margens do córrego da Tabua e do córrego Grande Só que nesses mutirões só traba lham os parentes Os imigrantes descendentes de italianos não Tanto faz os dois grupos são familiares O maior conflito enfrentado pela comunidade foi no início da década de 1970 quando corretores da Companhia Florestal Rio Doce passaram a comprar terras para aí plantar eucalipto Pressionavam as pessoas a vender suas pequenas áreas mediante a estratégia de ir com prandoas e isolando as famílias que iam ficando cada vez mais dis tantes quando algum vizinho vendia suas terras Assim se formaram os núcleos de famílias às margens do córrego Grande e do córrego da Tabua e mais outros dois às margens do rio Preto Hoje as famílias estão geograficamente mais distantes umas das outras e a comunidade está toda cercada pela floresta de eucaliptos Segundo as lideranças do movimento de União e Consciência Negra nessas comunidades do norte do estado a Aracruz Celulose designou um corretor negro como estratégia para convencer as pes soas a venderem suas terras Os moradores da comunidade líderes do Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 162 Quilombo do Laudêncio Município de São Mateus ES 163 movimento negro e um estudioso da região afirmam que essa empre sa valeuse de um militar aposentado para pressionar as pessoas di zendolhes que se não vendessem suas terras o governo iria tomálas Dizia também que os rios secariam e que seria impossível sobreviver na região De fato conforme relatam os moradores a água diminuiu muito na região norte após o plantio desenfreado de eucalipto mas ainda não acabou Na compra das terras os moradores alegam que a Companhia sempre roubava na medida A terra dava tantos hectares e eles sempre diziam que dava menos Eles pagavam apenas as partes mais altas as várzeas e os brejos eles não pagavam Um desses mora dores se recusou a vender suas terras à Companhia Florestal Rio Doce usando da seguinte justificativa A terra é pra plantar pra comer e não pra plantar pau porque ninguém come pau Pau não enche bar riga de ninguém Essa situação de conflitos e ameaças prolongouse por cerca de 10 anos Muitas famílias decidiram vender suas terras e ir embora para as periferias das cidades mas umas 40 decidiram resistir e não vender Diz VAS Com a chegada dos eucaliptos teve muita pressão dos intermediá rios compradores de terra que tinha que sair o pessoal tinha que ir embora que não tinha como viver que o governo ia tomar a terra Aí muita gente foi embora naquela época 1970 e esse pessoal que vendeu a terra não sei se estão na pior Não puderam mais comprar terra e estão na favela em São Mateus no Rio em Vitória esses cantos porque não tiveram mais possibilidade Quarenta famílias resolveram não sair ficar na comunidade do Espírito Santo Nós ficamos aí na terra Não estamos ricos mas dá pra viver graças a Deus pobre de barriga cheia Hoje mesmo ainda está saindo mui tos jovens muitas jovens pra São Mateus Vitória Rio São Paulo outros vão pra Bahia vão pra Rondônia não tem como voltar e é muita gente Nós já mandamos até dinheiro pras pessoas voltar de lá pra cá outra vez faz aquela vaquinha da comunidade e manda buscar aquela pessoa é assim O certo mesmo é a pessoa ficar aí permanecer onde estava porque sair pra ver melhora não consegue É fé em Deus primeiramente e trabalhar Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 163 Quilombos 164 Lutando para se manterem na terra os descendentes de Eleodório e Laudêncio vãose organizando e reelaborando a me mória de suas origens por meio das alianças matrimoniais que por sua vez se tornam alianças políticas Organizamse internamente para melhor utilizar suas terras por meio da Apepes No projeto que essa associação enviou em 1989 à Secretaria de Agricultura do estado fica explícita a consciência política do grupo para a reivin dicação de direitos e recursos A comunidade do Espírito Santo é conhecida hoje por suas mani festações culturais afrobrasileiras herdadas do quilombo Laudêncio do qual seus membros são descendentes Possui hoje 35 famílias e é considerada o último quilombo palco das cenas do filme O último quilombo produzido pela Rede Globo ganhando com este o prêmio nacional de telejornalismo Por meio desse projeto a associação obteve uma piladeira de café que serve aos seus associados e por intermédio da Diocese de São Mateus obteve recursos para comprar um trator Este é utilizado para arar as terras dos pequenos produtores da comunidade que são asso ciados da Apepes Cada associado paga R80 por ano à associação e tem direito a cinco horas de arado por ano e cinco horas de carroça por mês Ultrapassado esse período o associado paga R10 por hora Para quem não é associado cada hora de arado custa R18 O trator e a piladeira serviam também à associação dos assentamentos do Movimento dos SemTerra MST mas essa colaboração cessou após um conflito ocorrido entre os diretores da Apepes e os coordenado res do MST A Apepes conseguiu do estado não só a construção de represas para armazenar água para o período da seca mas também por meio do processo de eletrificação rural em meados de 1996 o abasteci mento de luz para a comunidade Com o assessoramento da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado do Espírito San to Emater a Apepes passou a orientar os produtores da comunida de na adubagem da terra no melhoramento de sementes e de raças de animais como porcos e galinhas e também na criação de peixes Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 164 Quilombo do Laudêncio Município de São Mateus ES 165 Atividades produtivas da comunidade Os moradores de Divino Espírito Santo vivem exclusivamente do cultivo de suas terras onde plantam mandioca para a fabricação de farinha e beiju café e canadeaçúcar Também são produzidos hortifrutigranjeiros como jaca manga caju abacate laranja limão mexerica goiaba cacau cajá coco acerola melancia mamão mara cujá abacaxi abóbora banana inhame batatadoce quiabo repolho maxixe pimentão tomate couve taioba etc Nas terras da família de seu Manoel Antônio dos Santos com seus dois filhos casados às margens do rio Preto se cultiva pimentadoreino para comercializa ção Com exceção do feijão e do milho produzidos apenas para o consumo os demais produtos agrícolas são comercializados no mer cado municipal de São Mateus A produção econômica tradicional da comunidade está baseada no cultivo da mandioca e na fabricação de farinha e beiju A partir de 1975 porém começouse a cultivar o café conilon A mandioca é colhida e levada para os quitungos onde é raspada lavada manual mente e ralada num bolinete movido por um motor a gasolina Essa massa é prensada e depois de seca peneirada e torrada manualmente Para a fabricação do beiju a massa da mandioca é lavada e coada num pano até soltar toda a goma O que sobra dessa lavagem é vendido à Escola Família Agrícola de Jaguaré e utilizado no fabrico de ração para porcos Depois de assado o beiju é embalado e levado ao merca do municipal de São Mateus onde é comercializado ou diretamente com o consumidor ou com atravessadores Eis o calendário da produção agrícola em abril maio e junho colhese o café que começa a produ zir os primeiros grãos somente depois de dois anos em março abril e maio bem como em setembro e outubro plantase a mandioca que pode ser colhida de oito a 12 meses depois em março e abril plantase abacaxi colhendose a primeira safra depois de um ano e 10 meses Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 165 Quilombos 166 no início do inverno plantamse o mamão e o maracujá que depois produzem direto durante três anos nos meses de março e abril e de agosto até outubro plan tamse o feijão e o milho para consumo próprio de março a outubro cultivamse as hortaliças e alguns che gam a comercializar sua produção Algumas famílias já não esperam apenas pela chuva e utilizam o processo de irrigação mecanizada com cultivos consorciados irrigan dose duas culturas ao mesmo tempo Os velhos da comunidade ainda estão muito presos ao cultivo da mandioca para fazer farinha e aos demais produtos de subsistência Como afirmou o velho Concéscio Na roça tem que se plantar de tudo pra comer Se sobrar a gente vende Primeiro pra comer depois pra vender No entanto seus filhos quase todos técnicos agrícolas realmente diversificaram a agricultura local e já têm uma visão de cultivar para o mercado e para gerar recursos econômicos para adqui rirem outros bens Quase toda a criação de animais galinhas patos gansos e suínos destinase ao consumo próprio Somente a família do sr Concéscio cria carpas para comercialização e somente os Laudêncios que vivem à margem do rio Preto criam gado e animal de montaria Antes do plantio dos eucaliptos como contam criavam porcos que ficavam soltos pela terra mas a Companhia proibiu que os porcos invadissem suas terras e poucas pessoas criam porcos presos Todos os produtos comercializáveis são levados para a cidade de São Mateus onde também são adquiridos os produtos de que a co munidade necessita Cerca de cinco famílias vivem em condições econômicas bem piores que as das outras pois lhes sobraram poucas terras após a venda Algumas pessoas dessas famílias trabalham como diaristas numa firma de mamão Frutale que se instalou à margem do rio Preto em terras vendidas por antigos moradores Disse uma das mulheres que já trabalharam na firma Antigamente meu avô dizia que tinha a escravidão No tempo da escravidão o trabalho e a vida dos escravos era dura Hoje ainda Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 166 Quilombo do Laudêncio Município de São Mateus ES 167 tem escravidão Essa firma de mamão aqui é escravidão A gente não tem direito nem de beber água nem um cafezinho nem um lanche Pra almoçar tem que ser ali ó E quatro minutos depois tem que trabalhar Ninguém agüenta não Artesanato e medicina alternativa A produção artesanal comunitária baseiase na fabricação de cangalha para animais jacá balaio feito de cipó e vassouras de cipó Dizem que um dos filhos de Eleodório Manoel Eleodório de Jesus recebeu o apelido de Manoel Bendito porque exercia a função de benzedor rezador e curandeiro entre os parentes Fazia muitas garrafadas para as mulheres de resguardo Eis as plantas e os recursos medicinais alternativos ainda hoje utilizados pela comunidade óleo de copaíba serve contra picada de cobras e para cicatri zar outros ferimentos jaborandi cipó extraído da mata e usado como anestésico ervacidreira e capimcidreira capim doutor seu chá é usa do para combater a febre e para abrir o apetite o banho serve para combater a febre de crianças folha de laranja seu chá serve para combater a gripe folha de abacate seu chá serve para combater doenças dos rins folha de boldo seu chá serve para combater doenças do fíga do cipótimbó usado no preparo da garrafada para combater o reumatismo dendê seu óleo é utilizado como cicatrizante Consta que ali havia muitas matas devastadas pela Companhia Florestal Rio Doce e pela Aracruz Celulose para o plantio de eucalip tos As matas e os rios serviam como fonte de subsistência e delas se extraíam muitas raízes cipós e folhagens que eram utilizados na me dicina caseira alternativa mas hoje os vigilantes da Companhia proí Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 167 Quilombos 168 bem que se retire até um cipó De primeiro é que era bom A gente caçava pescava tirava lenha no mato tirava cipó e todo tipo de raiz e não tinha problema Hoje tudo isso acabou Manifestações culturais Os moradores da comunidade têm como principais manifesta ções culturais a festa de reisdeboi e a festa do Divino Espírito San to Por serem católicos a maior festa é a do Divino Espírito Santo que acontece no dia de Pentecostes 50 dias após a Páscoa atraindo aproximadamente mil pessoas das comunidades vizinhas e parentes vindos de fora Tem início no sábado com danças de forró e prosse gue com encenações que retratam a história e a vida da comunidade Nos meses de junho e julho realizamse também festas de qua drilhas entre as famílias aparentadas A festa de reisdeboi que tive a oportunidade de observar é realizada todos os anos para os santos reis em 6 de janeiro para São Sebastião em 20 de janeiro e para São Brás em 2 de fevereiro Cada festa dura de dois a três dias em um ritual que sofre pequenas altera ções a cada casa em que o grupo entra para saudar os moradores e se encerra ao lado do templo católico da comunidade A festa de reis deboi é liderada pelos Laudêncios os principais marujos14 A co reografia e as letras cuja melodia é transmitida oralmente a cada gera ção costumam satirizar os acontecimentos sociais e políticos da região além de se reportarem às transformações históricas sociais e religio sas da própria comunidade Alguns moradores participam também dos eventos promovidos pelo movimento negro na sede do município de São Mateus como por exemplo o jongo de São Benedito15 e o reisdeboi daquele município Como diz VAS 14 Marujo significa povo do mar Nesta comunidade todos se vestem de branco com vários adornos coloridos sendo os dançarinos tocadores e cantadores da festa de reisdeboi 15 O Jongo de São Benedito segundo Aguiar 199511 é um tradicional folguedo remanescente dos séculos da escravidão quando os negros nas senza Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 168 Quilombo do Laudêncio Município de São Mateus ES 169 Sou da comunidade do Divino Espírito Santo mas a gente acom panha junto com eles as festas inclusive eu já participei muito de encontro da consciência negra em Vitória mesmo já fui em encon tro junto com eles Nas festas do dia de Zumbi no dia 20 de no vembro a gente vai em Conceição da Barra em Pedro Canário já fizemos esta festa só que depois aquele movimento caiu porque é muita pressão sobre o negro e muitos tomam medo dos grupos referese à perseguição política e policial a um dos líderes do Gru po União e Consciência Negra de Conceição da Barra Agora es tão renovando junto com o grupo de consciência negra nacional que vem lá de fora e aí a gente acompanha nas festas né Agora mesmo teve a festa de São Benedito a gente foi pra lá participar e rezar a ladainha aquelas ladainhas caseiras que muita gente não entende mais nem conhece Domingo outra vez lá em São Mateus vamos brincar juntos com eles As manifestações culturais têm grande importância no processo de reelaboração da identidade étnica Servem como valores de auto afirmação como meio de demarcar sua identidade em relação aos de fora e de implementar a organização política na defesa de seus direi tos comunitários Conclusão Essa comunidade caracterizase pela atualização de suas formas de vida e lutas em defesa de suas terras A autodefinição e os laços de parentesco marcam profundamente a reelaboração da identidade ét las cantavam e dançavam ao som dos tambores e das músicas cujas letras fala vam de seus sofrimentos anseios e esperanças mas que eram ininteligíveis aos ouvidos dos seus senhores Na atualidade tornouse uma festa que as comuni dades negras dessa região realizam em louvor a São Benedito contando com a participação e o apoio de alguns brancos A festa é um ritual que reúne o passado e o presente É um ritual que celebra as relações interétnicas entre negros e brancos onde se dá a reelaboração ritual e relacional da identidade étnica Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 169 Quilombos 170 nica Aí o significado do quilombo é uma autoatribuição que passa também pelo parentesco e adquire o sentido de origem e procedência comuns pois se refere à transmissão de todo um patrimônio cultural herdado dos pais avós e bisavós Suas terras por serem heranças dei xadas por seus antepassados adquirem um valor afetivo e material o que influencia o seu modo de uso Acreditando que quando os pequenos se unem se fortalecem organizaramse na Associação dos Pequenos Produtores da Comu nidade do Espírito Santo por meio da qual reivindicam melhorias e recursos para seus modos de cultivar a terra e comercializar seus produtos Há evidências históricas de que a comunidade originouse de um quilombo que para ali migrou nos últimos anos do regime escravocrata tornandose assim conforme reivindicação do grupo o Quilombo do Laudêncio Referências bibliográficas Aguiar Maciel Benedito MeiaLégua a saga de um revolucionário da liberdade Brasil CulturaCentro Cultural Porto de São Mateus 1995a Série História dos Vencidos 1 Zacimba Gaba princesa escrava guerreira BrasilCulturaCentro Cul tural Porto de São Mateus 1995b Série História dos Vencidos 2 Negro Rugério farinha de mandioca e chicote BrasilCulturaCentro Cultural Porto de São Mateus 1995c Série História dos Vencidos 6 Salvino Rodrigues o jongo de São Benedito BrasilCulturaCentro Cul tural Porto de São Mateus 1995d Série História dos Vencidos 26 Betto frei O que é Comunidade Eclesial de Base 4 ed São Paulo Brasiliense 1981 Lima Rita de Cássia Bóbbio Relatos e retratos de Conceição da Barra Vitória Fundação Ceciliano Abel de AlmeidaUfes 1995 Lyra Maria Bernadette Cunha de O jogo cultural do Ticumbi Rio de Janei ro UFRJ 1981 Dissertação de Mestrado Maciel Cleber Candomblé e umbanda no Espírito Santo práticas culturais religiosas afrocapixabas Vitória DECUfes 1992 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 170 Quilombo do Laudêncio Município de São Mateus ES 171 Negros no Espírito Santo Vitória DEC SPDCUfes 1994 Rebello José Camilo Ferreira Relatório com que José Camilo Ferreira Rebello quinto vicepresidente da província do Espírito Santo passou a ad ministração ao presidente Custódio José Ferreira Martins no dia 17 de setembro de 1884 Tostes Marcelino de Assis Relatório com que Marcelino de Assis Tostes passou a administração da província do Espírito Santo ao tenentecoronel Alpheu Adelpho Monjardim de Andrade e Almeida primeiro vicepresi dente no dia 15 de fevereiro de 1882 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 171 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 172 C A P Í T U L O 5 Jamary dos Pretos Município de Turiaçu MA Eliane Cantarino ODwyer e José Paulo Freire de Carvalho O adjetivo dos Pretos acrescentado ao nome do povoado de Jamary revela pertencimento étnico e configura identidade expressa por controle territorial e autonomia local Essa forma de adscrição denotativa do grupo confere também reconhecimento por segmen tos territoriais vizinhos e inclusive interesses antagônicos que pre tendem uma apropriação privada das terras pertencentes ao povoa do e portanto ameaçam não só as divisas de seu território mas também a identidade étnica da coletividade que inscreve sua histó ria nesse lugar A representação espacial sobre os limites do território suas for mas de organização social e a memória presente no cotidiano de seus moradores sobre os chamados mocambos que existiram na região indicam processos históricos e sociais formadores da autonomia cam ponesa característica desse povoado construída em resposta ao siste ma escravocrata e outras formas de subordinação A pesquisa etnográfica realizada durante o mês de janeiro de 1997 para elabo ração do laudo antropológico no contexto do Projeto Quilombo Terras de Preto da Fundação Cultural PalmaresMinistério da Cultura foi precedida de um trabalho de campo realizado em setembro de 1993 por solicitação do Pro jeto Vida de Negro PVN do Maranhão que faz um levantamento sistemá tico de identificação e reconhecimento das chamadas terras de preto em dife rentes regiões desse estado Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 173 Quilombos 174 A experiência histórica dos quilombos é incorporada no presen te etnográfico às manifestações culturais observadas no povoado ex pressas em festas de dança como o tambordecriola rituais religio sos como o tambordemina e todo um conjunto de representações que circulam sobre a origem de Jamary e as condições de participação na vida do povoado definindo para seus moradores um mundo so cial partilhado e uma identidade comum Essas considerações iniciais do relatório elaborado na forma de parecer estão baseadas numa interpretação focalizada dos dados apoia dos nas evidências etnográficas e contêm citações que expressam o ponto de vista dos moradores nativos que reivindicam a vigência do direito atribuído pela Constituição Federal no art 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocu pando as suas terras é reconhecida a propriedade definitiva deven do o Estado emitirlhes os títulos definitivos Identidade étnica e territorialidade O povoado de Jamary está localizado na microrregião do Gurupi município de Turiaçu caracterizado como área de exclusividade ne gra no Maranhão onde existiu um extraordinário número de quilombos ou mocambos1 Essa região compreendida entre os rios Turiaçu e Gurupi pertenceu até 1852 à então província do Pará e a grande incidência de quilombos nessa parte da fronteira encontrase documentada nos arquivos públicos e bibliotecas de ambos os esta dos2 Além dos registros sobre as expedições realizadas contra os quilombos de escravos fugidos que exigiram no período imperial campanhas financiadas pelos governos das duas províncias com o propósito de combater o crescente número deles3 devese considerar 1 Terras de preto quebrando o mito do isolamento 1989 2 Relatório de atividades do Projeto Vida de Negro 1993 3 Assunção1988449 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 174 Jamary dos Pretos Município de Turiaçu MA 175 a existência de numerosa população escrava nas fazendas e engenhos da região introduzida através do porto de Turiaçu utilizado no sé culo XVIII para tráfico de escravos nãoautorizado e fora do contro le alfandegário4 o que pode ter em parte contribuído para a elevada proporção de escravos em relação à população livre no norte da pro víncia5 Ainda sobre os quilombos maranhenses Matthias Assunção referese aos formidáveis quilombos de Turiaçu que teriam conse guido manterse por todo o século XIX com populações de centenas de pessoas Dentre os fatores explicativos destaca sua situação de fronteira não controlada pelo Estado com numerosos rios e matas que serviram para fuga e esconderijo da escravatura a diversificação da economia caça pesca agricultura de subsistência gado e a comer cialização do fumo e do algodão além da prática do garimpo nos rios Maracassumé e Gurupi Também mantinham comércio regular com regatões pequenos comerciantes que se deslocavam em embarcações ao longo dos rios e igarapés fazendeiros e negociantes das vilas do litoral como Santa Helena Carutapera e Turiaçu o que teria dificul tado a ação repressiva contra eles em virtude dos interesses econômi cos que envolviam os quilombos e determinados segmentos da popu lação e da elite local principalmente nos garimpos auríferos do vale do Gurupi No povoado de Jamary constatamos que seus habitantes têm como memória social a experiência histórica dos chamados mocambos termo pelo qual são conhecidos e definidos pelos mo radores do povoado os lugares de moradia e refúgio dos pretos li vres como dizem em contraposição às fazendas de escravos consi deradas lugar da dor do trabalho forçado e da sujeição Além disso os moradores do povoado como já foi dito costu mam acrescentar ao nome Jamary o adjetivo dos pretos Jamary 4 Salles 1971220 5 Assunção 1988459 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 175 Quilombos 176 dos Pretos ou ainda Povoado dos Pretos forma de qualificação que define por meio da autoatribuição uma identidade afirmativa e uma territorialidade própria a um grupo social etnicamente organiza do Invertem assim as características estigmatizantes com que são co nhecidos na sede do município de Turiaçu onde usualmente são de signados de os pretos dos campos naturais ou os pretos do Jamary designações que verificamos terem sido usadas de maneira irônica e depreciativa por moradores da cidade A expressão campos natu rais funciona por um lado como uma descrição da geografia tipo de solo e vegetação por outro como uma referência ao tipo de apro priação feita desse território pela existência de terras de uso comum no povoado como veremos adiante Tais referências utilizadas como critérios de apreciação negati vos da identidade social desse grupo expressam práticas comuns e cotidianas de discriminação e preconceito a que estão submetidos em seu contato com os de fora os moradores do povoado de Jamary Por meio de uma lógica da contradição reapropriamse contudo positi vamente da avaliação estigmatizante e constroem assim uma identi dade social relacionada ao pertencimento étnico e à ocupação de um território exclusivo A investigação antropológica o lugar como unidade de observação A observação intensiva do povoado por dois períodos de traba lho de campo embora relativamente curtos fundamenta o estudo antropológico realizado através de um engajamento intenso dos pesquisadores ligandose a uma rede de relações pessoais e por meio dela a um conjunto de representações culturais que circulam nesse grupo O intercâmbio constante com os moradores através de pergun tas e entrevistas e da convivência no povoado justifica a inclusão de citações dos informantes como exemplos de testemunhos confiados por homens e mulheres que falam de sua existência o significado que atribuem às suas vidas a relação que estabelecem entre presente e Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 176 Jamary dos Pretos Município de Turiaçu MA 177 passado e suas expectativas quanto ao futuro Os comentários descritivos aqui encontrados indicam também os contextos em que foram produzidas as informações ao revelar os diálogos e interações durante o trabalho de campo como uma manei ra de transmitir a compreensão que foi possível obter ao partilhar outro mundo social que tem sua própria razão de ser por uma lógica inscrita no espaço das relações entre diferentes grupos ligados por laços de parentesco e uma experiência histórica singular que os levam a adotar pontos de vista e atitudes comuns diante do mundo Para realizar o trabalho de campo no povoado de Jamary e co nhecer seus habitantes é necessário atravessar as estradas que partem da capital São Luís em direção à Baixada Ocidental Maranhense e à região do Gurupi A viagem rumo ao município de Turiaçu feita através das rodovias do interior do estado permite observar uma pai sagem peculiar formada por pastagens capoeiras extensos palmeirais e babaçuais além dos chamados campos naturais Observamse cer cas de arame ao longo de toda a estrada com sedes de fazenda e suas placas de identificação entremeadas por pequenos aglomerados ur banos freqüentemente pontos de parada dos veículos em trânsito e ainda muitas povoações menores que permitem presumir a existência de um campesinato na região A grande maioria dos usuários dos coletivos que atravessam as vias rodoviárias é formada por viajantes que se deslocam por curtos trechos Esses passageiros são caracteristicamente camponeses que carregam seus produtos em sacos e paneiros com farinha de mandio ca arroz milho feijão transportando ainda pequenos animais como porcos e galinhas Encontramos assim utilizando esse meio de trans porte os moradores de muitos povoados que podem ser observados na paisagem ao lado dos imensos campos cercados para a criação de gado e búfalos Tais povoados consistem em aglomerados de habita ções feitas de paredes de barro e cobertas pela palha originária dos palmeirais em volta com as criações domésticas soltas pelos terreiros plantados de árvores frutíferas Até Turiaçu são percorridos diversos municípios sendo possível observar algumas feiras de produtos agrícolas O município de Santa Helena um dos últimos do percurso é cortado pelo rio Caxias que Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 177 Quilombos 178 em seu curso posterior faz fronteira com os limites do povoado de Jamary Depois de atravessar diversas povoações como Bacabeiras e Nova Caxias é chegada a vez de Santa Rosa localizada na beira da estrada rodoviária coberta de piçarra que faz a ligação com a sede municipal de Turiaçu Ponto de parada obrigatório para quem se dirige a Jamary o povoado de Santa Rosa segundo informações de alguns de seus mo radores antes da construção da estrada há cerca de 20 anos ficava situado mais para dentro da mata passando atualmente esse local a ser utilizado como área de plantio dos roçados e criação de animais Para Santa Rosa na beira da rodovia convergem moradores das po voações vizinhas sendo também alcançado pela frente de expansão camponesa nordestina em direção à fronteira amazônica vários veículos particulares fazem fretes de passageiros e cargas em direção às localidades do interior do estado do Pará e a sua capital Belém O povoado de Santa Rosa é formado por cerca de 40 casas dis postas de ambos os lados da estrada num trecho de aproximadamen te 200m de extensão Difere do povoado de Jamary não só pela dis posição espacial mas também pela composição étnica apesar da contigüidade relativa entre essas duas povoações Ambas são ligadas por um caminho de 75km de extensão coberto em alguns trechos por densa vegetação e atravessado a pé ou em animal pelos moradores de Jamary que por vezes vendem seus produtos e compram outros bens necessários como óleo de cozinha querosene açúcar e sal numa das cinco barracas isto é casas comerciais existentes na beira da rodovia O deslocamento pelas estradas em que nem sempre é fácil con duzir até Jamary dos Pretos permitenos formar uma idéia das imen sas dificuldades mencionadas pelos seus moradores para viajar no período das chuvas torrenciais do inverno meses de janeiro a ju lho São diversas as partes baixas e inundáveis da estrada quando ocorre a cheia dos rios e pequenos riachos que atravessam seu territó rio transformados em imensas valas no verão O trânsito de pessoas e animais fica extremamente dificultado no tempo das chuvas e o aces so ao povoado é desaconselhado pelos seus moradores Conceitualmente podemos considerar o povoado de Jamary dos Pretos uma comunidade apesar de não constituir termo de referência Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 178 Jamary dos Pretos Município de Turiaçu MA 179 do grupo Segundo nossa observação poucas vezes foi usado nesse sentido numa ocasião para designar a comunidade de base que a Igreja católica através da paróquia de Turiaçu tentou fundar em Jamary e que segundo alguns moradores não deu certo porque o pessoal desanimou Noutra durante reunião dos moradores quan do relacionaram comunidade a família ao ser discutida a participa ção de todos no esforço comum para o reconhecimento do grupo como quilombo consoante a legislação Salvo esses contextos o termo não foi usado em nossas entrevistas e conversas com os mora dores Ao se referirem a Jamary usaramse de preferência os seguintes termos o povoado o Jamary o povoado dos pretos o Jamarizão e o Jamary dos Pretos Embora o termo comunidade não represente uma categoria de referência nativa foi possível ob servar durante nossa estada no povoado uma intensa rede de rela ções pessoais e obrigações familiares a que todos os moradores do Jamary estavam interligados Desse ponto de vista constituem ain da uma comunidade pelo sentimento de pertencer ao mesmo mun do motivados em suas ações por valores compartilhados e objeti vos comuns Plano espacial do povoado A sede do povoado de Jamary é encoberta por densa vegetação que circunda os seus limites o que torna difícil para quem chega discernir a existência de um grande aglomerado de casas com uma população estimada em cerca de mil pessoas Essa parte central do povoado é formada por um círculo de moradias que delimita o espa ço comunitário onde se encontram edificados a capela a escola e o barracão em que promovem suas reuniões e festas além do campo de futebol Nessa área fica a maior concentração de casas cerca de 110 mo radias que delimitam os espaços comunitários já referidos utilizadas tanto pelos moradores que formam esse núcleo central do povoado quanto pelos que residem nas localidades de Boa Vista e Cajual am bas situadas mais ao norte no caminho que conduz à rodovia mas Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 179 Quilombos 180 que constituem na representação de seus moradores partes integran tes de Jamary Entrase no povoado pelo Outeiro das Queimadas passagem obrigatória para quem vem da estrada e faz a travessia do igarapé Bom Jesus muito seco no verão Esse acesso principal consiste numa trilha aberta através de um campo natural delimitado por palmeiras de caule fino e cobertas de espinhos denominado Jamarizal Daí segundo os moradores chamarse Jamary o povoado Este é circundado por uma região de mata onde se localizam os chamados ranchos de trabalho nos quais os moradores passam vá rios dias da semana nas tarefas agrícolas Tais localidades mais para dentro da mata são conhecidas também como centros de roçado onde se plantam mandioca cará milho arroz feijão abóbora e ver duras além de banana abacaxi e cana Cada um desses centros de roçado pertence a uma determinada família do povoado que utiliza para o serviço a força de trabalho de seus membros Ao fundo do povoado ainda no perímetro que na visão dos moradores constitui sua sede fica a localidade conhecida como Grota Lá fomos levados para conhecer uma plantação de tabaco situada bem ao lado de uma casa porém seus ocupantes membros da família Mafra uma das principais do povoado encontravamse no seu cen tro de roçado mais para dentro da mata O canteiro de tabaco tinha cerca de 100m2 e as plantas estavam grandes com suas folhas amarelando de baixo para cima Disseramnos que logo poderiam ser colhidas e postas para secar antes ainda do período das chuvas De pois de secas as folhas seriam esticadas e amarradas num rolo com fibra de palha Mas para o fumo ficar bom mesmo informaramnos o rolo deve ser posto para maturar pelo prazo de três meses a um ano sempre junto à terra no chão da cozinha ou num quarto da casa Passado esse período caso não venha a melar está no ponto de consumo um fumo considerado por eles dos bons Na sede do povoado existem também algumas casas de farinha bem poucas conforme explicaram A maioria delas está localizada nos centros de roçado junto às plantações de mandioca o que torna mais fácil farinar com a vantagem de se poder obter lenha na mata perto dali Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 180 Jamary dos Pretos Município de Turiaçu MA 181 Em nossas duas estadas no povoado ficamos hospedados por sugestão de seus habitantes na residência do sr Raimundo Sousa presidente da Associação Rural dos Moradores do Quilombo Jamary fundada em 1995 Essa casa fica localizada na parte por eles conside rada o centro do povoado bem em frente do principal círculo de moradias que formam a sede onde se acham a capela a escola o barracão de festas e o campo de futebol Nela se podem observar as divisões internas no espaço do terreiro separadas por uma cerca onde se encontram um fogão de lenha árvores frutíferas como cajueiros e goiabeiras e uma criação doméstica de porcos e galinhas No extre mo do cercado cruzando o portão encontramse o sanitário e do lado oposto distante cerca de 20m dois poços de água potável com um cercado para banho Ao se atravessar de um lado para outro há no meio do caminho como divisa natural uma enorme e antiga man gueira Na extremidade do terreiro onde fica um pequeno curral cober to de palha para animais de carga um cavalo um burro e um jegue há um extenso arvoredo a separar a casa de seu Raimundo Sousa da capoeira fronteiriça ao terreno do vizinho mais próximo Na sala da casa de seu Raimundo há duas portas Da lateral avistamse um cam po que serve de pasto para os animais e ao fundo algumas casas Da outra vêemse em primeiro plano o campo de futebol e a escola sobre um outeiro que juntamente com a capela e o barracão de festas pare cem indicar geograficamente o plano de organização comunitária do povoado onde se realizam as celebrações e festividades comuns como o tambordecriola e a festa da padroeira Nossa Senhora das Graças Muito nos impressionou o fato de nossos informantes saberem tudo o que acontece no povoado levandose em conta que o povoa do de Jamary é bastante extenso No entanto em sua casa Raimundo Sousa sempre fica sabendo quem está matando um porco quem tem carne de gado para vender quem vai pescar quem volta do roçado quem está indo para lá onde estão pastando os animais de carga soltos durante a noite enfim como se controlasse o diaadia do povoado Dirseia que isso se deve às constantes visitas que ele rece be de muitos moradores do povoado Há porém uma explicação relacionada à própria localização dessa casa e de outras ao redor da Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 181 Quilombos 182 clareira onde se realizam as atividades comunitárias A disposição dessas moradias na sede do povoado parece convergir para um ponto central de entrecruzamento o que por suposto permite um controle quase constante desse espaço de interseção dos vários caminhos que apontam na direção dos limites do povoado Os critérios de pertencimento territorial Em Jamary segundo levantamento feito pelos próprios morado res com a ajuda do Projeto Vida de Negro existem 110 casas for mando o perímetro considerado a sede do povoado que recebe dife rentes denominações em função de sua distância relativa do espaço onde se realizam as atividades comunitárias Desse modo os mora dores mantêm o controle e se orientam em relação as partes que cons tituem na opinião deles os diversos bairros em que se divide esta área central do povoado São eles Santo Antônio Capina Arrudá Grota e Outeiro das Queimadas Fora desse aglomerado foram contadas mais seis casas em Boa Vista e 12 no Cajual Essas duas localidades mais afastadas possuem várias moradias dispersas com seus respectivos roçados e ainda no caso de Boa Vista há um pequeno conjunto de casas situadas em uma trilha dentro da mata Ambos os lugares são referidos nos relatos como antigas fazendas de escravos e seus moradores se comunicam com a parte central do povoado através do ramal subsidiário que vai em direção à estrada rodoviária e ao povoado vizinho de Santa Rosa sendo também utilizado por todos que entram e saem de Jamary Os critérios de pertencimento espacial são relativos ao lugar onde se encontram os moradores de Cajual e Boa Vista quando definem seus locais de trabalho e moradia Quando estão na sede do povoado costumam dizer que são de Cajual e Boa Vista Porém quando se referem aos povoados vizinhos ou às cidades de Turiaçu e Santa Helena consideram que são filhos do Jamary A questão de saber por que definem Cajual e Boa Vista como parte do povoado de Jamary nos levou a entrevistar alguns morado res dessas duas localidades Formulamos perguntas dirigidas já que tínhamos tirado nossas próprias conclusões com base em dados Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 182 Jamary dos Pretos Município de Turiaçu MA 183 etnográficos Transcrevemos a seguir um trecho de uma dessas entre vistas que consideramos significativo para a compreensão das classifi cações espaciais que marcam a atribuição de uma identidade e origem comum Aqui entre os jamarizeiros os filhos aqui desta terra de Jamary nós localizamos Cajual e Boa Vista como nossos lugares de moradia e trabalho Mas quando estou em Turiaçu ou em Santa Helena se des de municípios sempre digo que sou de Jamary dos Pretos Outro critério para pensar as condições de pertencimento ao povoado e que não se restringe à ocupação do seu território foi apon tado pelos próprios informantes após mencionarem as famílias mora doras em Jamary e os laços de parentesco que os unem Todo este povo é parente ou por nascimento ou por casamento uma parentada só comentaram seu Raimundo Souza e dona Anastácia Ribeiro Campos de atividades agricultura e gado Os centros de roçado A expressão centro de roçado é por eles usada para se referir tanto aos locais de plantio em contraposição aos lugares de moradia quanto aos roçados familiares desenvolvidos pelos moradores de Jamary assumindo uma conotação ou outra de acordo com o contex to Deste modo centro de roçado adquire um duplo significado as áreas de plantio separadas pelo trabalho desenvolvido por um grupo familiar determinado e a fusão de todas elas numa unidade territorial comum e indivisa Nos roçados familiares plantamse de forma consorciada man dioca milho feijão batata abóbora gergelim cará etc e árvores fru tíferas como mangueiras cajueiros mamoeiros e bananeiras preser vandose palmeirais e madeiras de lei Essas plantações comprovam a posse efetiva pelos grupos domésticos das terras do povoado e tam bém a ancianidade de sua ocupação mais do que centenária se levar mos em conta as árvores nativas aí preservadas São igualmente mar cas da ocupação as edificações como casas para o fabrico da farinha Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 183 Quilombos 184 os poços dágua existentes no povoado os ranchos de trabalho para moradia temporária nos roçados mais distantes e as casas construídas na sede do povoado e nas localidades de Cajual e Boa Vista Observa se também o controle efetivo estabelecido sobre o território do po voado através das atividades de pesca caça criação de animais do mésticos e gado tecelagem de fibras vegetais para cestos e outros objetos de uso doméstico e pessoal as quais implicam o manejo de recurso naturais como rios igarapés campos e florestas existentes no território do povoado tudo isso representa a história acumulada ao longo de gerações Nossos informantes levaramnos inicialmente a um dos centros de roçado mais próximos da sede do povoado e situado conforme disseram para os lados da antiga fazenda de escravos Santo Antô nio Assim atravessamos o povoado em direção à localidade conhe cida como Campina da Guilhermina Durante nossa caminhada pela mata explicaramnos a escolha do local onde plantam seus roçados Cada um tem seu roçado no lugar em que seus parentes já fize ram seus roçados ou perto Meus filhos Nonato e Paulo por exemplo têm seus roçados perto do meu e de Anastácia Assim é cada um fica na área que era do pai do tio ou dos avós Quan do quer mudar procura um lugar não muito longe para traba lhar não muito longe porque é sempre bom ficar perto da famí lia e dos amigos um pode ajudar o outro Mas assim toda terra por aqui é livre para o povo é tudo coletivo Essa lógica da ocupação do espaço através dos laços de parentes co típica da organização familiar do trabalho remonta aos tempos da escravidão e dos quilombos ou mocambos Depois de explicarem a divisão familiar das áreas de plantio do povoado nossos acompa nhantes nos levaram até o roçado do sr João Mafra todo protegido por um cercado Como disse um dos informantes ao explicar essa prática e a modalidade comum de manejo ecológico O João cerca por causa dos animais que a gente cria de solta os porcos o gado assim cercamos as roças mais próximas do po voado para evitar prejuízos Aqui era área da antiga fazenda San to Antônio agora é só roça do pessoal do povoado Na roça a Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 184 Jamary dos Pretos Município de Turiaçu MA 185 gente planta a mandioca nossa planta principal o milho o gergelim a banana o carrapato mamona a cana tudo junto A gente planta vai tratando com cuidado e tira na medida da pre cisão Plantamos também o feijão o abacaxi o cará a abóbora as verduras e procuramos não derrubar os paus grandes a gente não gosta de derrubar as árvores grandes ou os pés de coco e palha como aquela sapucaia ali Fazemos assim para proteger a natureza que nos protege assim a gente ajuda a mantêla ao deixar sempre uma reserva em volta da roça pois aqui há muita madeira boa a maçaranduba o cedro a jarana o pausanto a pararaúba a sucupira o paudarco o jatobá A gente quer con servar porque tudo é nosso e de nossos filhos só derrubamos um pau quando ele fica perigoso ameaçando cair ou quando há muita precisão para a construção de uma casa Assim aqui nós não rola madeira para vender A criação do gado no povoado Nossos informantes destacaram também a importância da cria ção de gado no povoado Bem aqui é assim cada um tem seu gadinho suas reses há os que têm uma ou duas há os que têm 10 ou 15 e há alguns que têm até 100 cabeças como é o caso do meu cunhado o Manuelzinho Ribeiro Seu José Pessoa tem 15 eu Raimundo Sousa tenho dez seu Almir Ribeiro também já teve gado foi matando vendendo e hoje não tem mais como é o caso do com padre Raimundão que nunca teve gado e não quer ter o compa dre só gosta mesmo é da lavoura Agora o gado é criado todo junto lá no Campinho lá para os lados do rio Caxias onde no verão tem mais água e o gado é todo reunido com os moradores do povoado cuidando como vaqueiros O gado só retorna dos campos naturais no inverno quando aqui perto da sede fica cheio de água chove muito Não dá nem para acreditar mas o valão aqui na frente da minha casa que agora tá seco servindo de caminho vira um igarapé dá até para pescar Aí a gente maneja o gado pelos campos em volta do povoado ou na parte da entrada Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 185 Quilombos 186 do povoado em Queimadas que é campo pois assim a gente pode olhar melhor o gado num período muito penoso para nos sos deslocamentos por aí Nesse tempo de inverno e das chuvas os campos naturais próximos ao rio Caxias como em Campinho fica tudo inundado e fica difícil para os vaqueiros cuidar de todo o gado nessas paragens Indagamos como fazem para distinguir o gado que pertence a cada um dos moradores já que o gado fica todo reunido Como no caso dos roçados a criação de gado é baseada na divisão do trabalho familiar Olha não é díficil cada família tem o seu ferro isto é o pai de família A gente marca o meu por exemplo Raimundo Sousa tem as letras RS quem vê esta marca sabe que aquele gado é meu cada um faz sua marca de acordo com as iniciais da assina tura Assim o rebanho fica todo junto mas a gente sempre sabe de quem é cada rês como também sabem os vaqueiros que são os moradores combinados para ficar de olho no gado Perguntamos como tratavam com os vaqueiros para cuidar do gado se eles são sempre de Jamary ou de fora Respondeunos seu José Pessoa Nossos vaqueiros são tudo de Jamary mesmo a gente trata com aqueles companheiros que gostam mais de tratar com o gado Eu por exemplo tratei com o compadre Manuelzinho Ribeiro morador do povoado que é vaqueiro por gosto e tem gado tam bém Ele gosta de lidar com o gado mais do que com a roça nestes casos a gente conversa com o companheiro e faz um acor do para dar dependendo do número de reses que ele vai cuidar um bezerro por ano ou um tanto de farinha ou então quando se vende um boi a gente dá uma ponta parte do valor da venda tudo depende do trato entre os companheiros E quando é que se resolve abater e vender uma rês Dessa vez a resposta vem de Josevaldo Oliveira No Jamary a gente faz negócio com o nosso próprio pessoal daqui mesmo quando um animal quebra uma perna e tem que Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 186 Jamary dos Pretos Município de Turiaçu MA 187 ser sacrificado o dono negocia a carne com o povo E o gado aqui não some ou é roubado como dizem aí fora Isso acontece mais com esses grandes fazendeiros que têm tanto gado que já nem podem contar Mas aqui isso não acontece é tudo amigo companheiro e parente Explicaramnos então a diferença entre a criação de seu gado nos campos naturais e o dos fazendeiros em pastos feitos nas fa zendas Os campos naturais onde criamos o gado são os campos da na tureza ninguém plantou sendo posto aí por Deus são diferen tes destes campos aí fora no ramal da estrada entre Bacabeiras e Turiaçu Aquilo ali era tudo mata posta abaixo rolando madei ra boa de lei e a mata virou campo plantaram capim em tudo e cercaram no arame o povo não pode mais entrar só o senhor o latifundiário O campo natural é diferente é livre aberto a to dos cada um usando e respeitando os outros são nossos campos adotivos Que é o mesmo que campos comuns adotivo porque é nosso nós adotamos ele como pegamos um filho para criar Lá se cria o gado à solta e outros animais todos soltos e livres cada um sabendo o que é seu e respeitoso do que é do outro e o regulamento é bem diferente deste povo aí fora e desses fazen deiros de Turiaçu que tempos atrás invadiram os campos natu rais do Jamary e de outros povoados com aquele gado búfalo bicho bravo trazido dizem lá da ilha de Marajó Aquilo foi ruim eles não respeitavam nada É um gado difícil de trato suja a água afastando o peixe corre atrás do povo para machucar entra na roça para destruir eu mesmo tive parte da minha roça derrubada nesses tempos por esses búfalos Tinha um bananal bonito ali em Boa Vista banana roxa com cada cacho que vou lhe dizer o gado búfalo entrou e derrubou tudo foi um tempo muito difícil aqui para nós Ainda sobre o tipo de gado criado em Jamary e o cálculo econô mico desse tipo de atividade outro entrevistado esclareceunos O gado criado no Jamary é do tipo crioulo nativo diferente dos criados nas fazendas por aí que é o tal do gado nelore e búfalo que Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 187 Quilombos 188 se abate para a venda da carne Nós aqui criamos o gado mais para o consumo inclusive para obter leite para as crianças A gente cria o gado para ter carne e leite quando precisar é um recurso nosso para os momentos difíceis como uma doença uma colheita ruim serve também para comemorar o casamento de um filho o nascimento de um neto é assim nossa poupança como dizem O gado representa assim uma forma de acumulação de recursos obtidos nas esferas da produção do roçado e da criação doméstica de aves e suínos sendo comum por exemplo a aquisição de um bezerro em troca da produção excedente do roçado familiar ou a compra de uma rês com a venda de alguns porcos Como disse seu Raimundo Sousa Eu por exemplo quando um dos porcos está gordo e decido ven der com o dinheiro apurado já compro em acordo com Anastácia sua mulher um bezerro ou uma rês nova que decidimos vai ficar no meu rebanho para o meu filho Paulo quando ele precisar ou quando se casar assim é o costume daqui A descrição dialógica do conflito A situação de conflito estabeleceuse em meados dos anos 1970 com as tentativas de invasão das terras do povoado por fazendeiros de Turiaçu e os grandes empreendimentos agropecuários com graves ameaças aos seu moradores Esses eventos assumem até hoje um as pecto dramático para os moradores do povoado e foram contados na presença da comunidade inteira reunida por ocasião de nosso traba lho de campo etnográfico Sobre os mecanismos da grilagem Agora o nosso problema aqui são essas pessoas de fora que vêm chegando depois da construção da estrada rodoviária Eles pedem licença para se estabelecer num terreno por aqui porque não têm para onde ir A gente aceita porque é cristão sabe que o povo sofre por aí pela questão da terra sem terra para plantar e acolhe o compa Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 188 Jamary dos Pretos Município de Turiaçu MA 189 nheiro de fora Passa um ou dois anos aí eles já resolvem ir embora e já querem vender a plantação a casa a terra não porque não é deles e sim de todo o povo do povoado Às vezes querem também vender a terra com tantos hectares cadastrados às escondidas de nós lá pelo Incra Assim é que tem acontecido aí em roda nos povoados vizinhos Aqui já tentaram mas nós não damos essas liberdades a esses sujeitos Aqui só na beira na nossa fronteira da área é que estão querendo invadir fazer a grilagem como no caso deste sujei to Miguel que diz ter comprado 100 hectares de terra para lá do rio Caxias Foi no Incra e com auxílio desses fiscais cadastrou 300 hectares que logo vendeu a frente para a tal da doutora Jucelina lá de Santa Helena e para o sr Silvério também da cidade de Santa Helena ambos fazendeiros por lá assim é que vem o conflito É tudo os fazendeiros igual àquele projeto Ceres cercan do a área com arame para a criação de gado a gente nunca sabe podem querer invadir nossa terra pois dizem que assim fizeram por outros povoados passando a máquina por cima das casas Perguntamos a nossos interlocutores o que é o projeto Ceres É a nossa maior ameaça que continua a existir todo este tempo Eles são confrontantes com nossos limites junto ao fundo no rio Caxias e dizem que vão passar para cá Possuem uma gleba grande e botaram todo o mundo que morava nos povoados do outro lado do rio Caxias para fora à força No começo diziam que iam plantar seringa mas parece que a coisa fracassou Agora criam gado e rolam madeira sem parar tem serraria lá dentro empregam muita gente de fora Há muito conflito ainda por lá principalmente com os povoados mais próximos Faz um pouco de tempo mataram por lá o delegado sindical do povoado de Juca que fica bem próximo da área deles nos limites Era o companheiro Dico Miolo que vinha há tempo sendo ameaçado pelo pessoal da Ceres os vaquei ros deles A gente tem que ficar de olho se não viram para o nosso lado querendo nos botar daqui para fora de nossas terras Um dos dirigentes da Associação dos Moradores complementou esse depoimento Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 189 Quilombos 190 Este pessoal aí por fora ambiciona muito nossa terra aqui em Jamary como os grandes de Turiaçu Aqui são ao todo 13 mil hectares de acordo com o Incra e com nosso entendimento Há algum tempo lá no final de 1977 essas famílias de poder como os Rabelos e Fonseca ajudadas pelos Alves e Cavalcante todas de Turiaçu que nunca viveram na terra aqui nesta terra dos pretos do Jamary como nós que temos nossas raízes isto é dos nossos bisavós se disseram donos do Jamary da gleba toda Fi zeram ação com o juiz cadastro no Incra e mapa tudo Tudo sem que soubéssemos e olha que eles nunca trabalharam para cá e olha que eles têm terra que não acaba mais como a fazenda Santa Fé São Roque Mas eles têm é muita ambição de dominar o povo dominando a terra chegaram até conseguir ordem para expulsar o povo daqui acusando que éramos estrangeiros Será porque somos pretos da África mas viemos obrigados e se tra balhamos nessa terra ela é nossa terra em que foi derramado nosso sangue terra que acolheu nossos mortos que estão todos lá no nosso cemitério na Boa Vista terra que herdamos e quere mos deixar para nossos filhos Só nos tiram daqui para baixo da terra dessa terra do Jamary dos Pretos Sobre a extensão do conflito e a ameaça que representou para a sobrevivência do povoado A situação ainda era perigosa em toda nossa volta nos outros povoados o povo foi invadido como em Capoeira de Gado no Brito Mutá Aqui fomos ameaçados de morte falavam então que os pagantes da empreitada eram o Valdenor e o Manuel Rabelo o Zequinha Alves e o Zezito Cavalcante todos com interesse em entrar para as terras do Jamary como donos e senhores A coisa ficou muito perigosa o pistoleiro rodando pelo povoado inda gando assuntando ameaçando o povo queria saber quem era cada um de nós onde nos achava Naqueles tempos andávamos com cuidado por aqui podia ter tocaia nos esperando os ho mens estavam atrás de nós Chegou ao ponto deles nos procura rem em casa eu lá na Boa Vista e seu Raimundo Sousa que ficou sem saber tocaiado dentro de sua própria casa com aquele Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 190 Jamary dos Pretos Município de Turiaçu MA 191 pistoleiro Calango que era o chefe e mais alguns cabras amigos da morte ali fora esperando para matar matar para receber umas cabeças de búfalo veja só como a vida de um homem vale pouco nesta terra Os domínios do parentesco A posse da terra no povoado de Jamary renovada de geração a geração tornase hereditária através de uma genealogia que remonta ao tempo da escravidão e dos quilombos ou mocambos Preservada oralmente na memória dos moradores de Jamary atravessa gerações de modo a apresentar todos os habitantes do povoado como descen dentes de um bisavô ou trisavô escravo e mocambeiro o que permite agrupálos pelo menos em quatro linhas de descendência direta os Mafras os Ribeiros os Sousas e os Soares Esses quatro grupos de parentesco incluem diferentes membros de uma genealogia traçada a partir de ancestrais comuns Também são identificadas por meio da memória suas localidades de proce dência com menção às antigas fazendas escravocratas das quais eram considerados originários como as fazendas de Santana Cajual Bom Jesus Santa Cruz Tapera de Sinhadona e Santo Antônio Os nomes civis dos moradores de Jamary referemse a um parentesco adotivo na medida em que incorporam os nomes das famílias de seus antigos senhores Essa referência aos nomes de antigos senhores escravocratas e os laços artificiais de parentesco estabelecidos com eles a partir de um ancestral comum se transmitem de pai para filho e podem ser considerados uma classe de parentesco reconhecida para efeito de análise genealógica em antropologia social6 Mas as genealogias assim obtidas e as linhas de descendência traçadas a partir de um ancestral comum que herda o nome dos se 6 O parentesco artificial transmitido de pai para filho constitui uma das qua tro classes de parentesco assinaladas no uso do método genealógico por Rivers ver Oliveira 199158 Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 191 Quilombos 192 nhores escravocratas revela também pontos de entrecruzamento o que faz com que os moradores de Jamary pertençam a mais de um tronco familiar dependendo dos ascendentes paternos e maternos Esses pontos de entrecruzamento estabelecidos pelas linhas de descendência podem ser um equivalente metafórico no nível das relações de parentesco da representação que os moradores do po voado fazem de Jamary como espaço de entrecruzamento e ponto de convergência aonde se dirigiram seus ancestrais fugidos da escra vidão o que desse ponto de vista caracteriza Jamary como quilombo A memória social O povoado de Jamary de acordo com algumas versões é forma do por descendentes de famílias de escravos originários de antigas fazendas da região o que parece condizer com o critério de conver gência dos escravos fugidos de diferentes propriedades que caracteri za o quilombo Os moradores do povoado lembramse de algumas das fazendas que cercavam Jamary como a Cajual a Santana a Tapera de Sinhadona ou Santa Luzia a Santa Cruz e a Santa Barbara Em seus interstícios existiam muitos lugares de moradia antigos moradia dos pretos fugi dos como o Jamary o Centro das Mangueiras e o Bonisário que hoje são parte de Jamary Referemse ainda a esses lugares como antigas colônias dos pretos velhos Realizamos muitas entrevistas com os moradores mais idosos do povoado depositários como eles próprios são considerados da his tória dos pretos do Jamary Assim fomos levados a conhecer o sr Estanislau Mafra apontado como uma das pessoas mais velhas do povoado Em sua casa situada na parte central do povoado encon tramos a porta entreaberta Notamos que alguém muito lentamente se movimentava com algum esforço pela sala e pudemos observar a chegada do interior da casa de um senhor apoiado em uma bengala que caminhava lentamente em direção a uma cadeira de palha Segun Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 192 Jamary dos Pretos Município de Turiaçu MA 193 do nossos informantes seu Estanislau tinha mais de 100 anos e co nhecia a história dos pretos velhos de antes e depois da escravidão histórias ouvidas e vividas por seus pais Transcrevemos a seguir um trecho do seu depoimento Nasci e me criei neste lugar Meu pai se chamava Marciano Mafra foi escravo da fazenda Cajual minha mãe se chamava Rita e era do Jamary mesmo nasceu na mata Meu pai morreu quando eu já era rapaz ao todos éramos 13 irmãos ou 14 já não me lembro foram todos morrendo aos poucos restam algumas das meninas por aí Meu pai morreu trabalhando na roça um pau grande que ele derru bava para construir uma casa deu um vento e acabou virando em cima dele eu o carreguei até em casa para morrer Nós vivíamos aqui no Jamary sede do povoado e também no Cajual onde tra balhávamos no roçado e mantínhamos nosso rancho No Cajual tinha muita plantação de café ainda do tempo da escravatura pois quando chegou a liberdade os senhores abandonaram as terras e quem tomou conta das plantações foram os pretos Lá no Cajual eu era rapaz quando houve um ataque dos caboclos da mata Indios Perguntamos Sim índios brabos eles mataram quatro pessoas inclusive um irmão meu nós conseguimos nos esconder na mata e depois armados fomos atrás deles encontramos alguns Nesse momento o sr Estanislau fez silêncio e virouse para olhar um quadro com a imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro pendurada em sua sala Com a ajuda de um dos informantes seu Estanislau voltou a contarnos a sua história Após o ataque dos caboclos da mata abandonamos a moradia tem porária no Cajual fixandonos de vez aqui no povoado do Jamary que já estava formado de muito que havia muita gente morando neste lugar velho muito velho Nesta época segundo explicou continuaram a trabalhar no Cajual reunidos em grupos de famílias que se revezavam entre o trabalho no roçado e a vigília na mata para a defesa contra possíveis ataques E seguiu contando Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 193 Quilombos 194 Vivíamos bem aqui havia fartura de tudo eu nunca casei fiquei à frente da família cuidando de meus irmãos e agora voume despe dindo da vida Perguntamos se já tinha ouvido falar em mocambo ou em mocambeiro como diziam outros moradores do povoado Ele então nos olhou pareceu ensaiar um sorriso e voltou a falar dessa vez ainda mais baixo Sim meu pai cruzou muitas vezes com eles que vinham até as fazendas buscar gente outros escravos para fugir para o mocambo e coisas como sal ferramentas pólvora e outros gê neros que não conseguiam tirar da mata Eles vinham sempre à noite e pediam coisas que meu pai ajudava a carregar A essa altura do relato o sr Estanislau parou de falar e como se concentrasse em busca de alguma antiga lembrança disse num tom de voz ainda mais baixo Zoioolhoubocacalou ZoiouMocambaiou Ante a nossa perplexidade explicounos que assim falavam os mocambeiros para seu pai e assim seu pai lhe falara Isso se passava segundo ele ainda nos tempos da escravatura Os pretos não gosta vam de ficar sujeito e havia senhores maus como aquele da Santo Antônio fazenda de nome Licurgo como contava seu pai Tais palavras eram para avisar que fosse respeitado o silêncio fazendose segredo sobre o que foi visto para evitar a perseguição dos brancos dos senhores e de seus soldados Outra entrevista importante para o resgate da memória social do grupo foi realizada por indicação de nossas informantes com dona Severa Mafra irmã de seu Estanislau uma senhora de 96 anos que andava encurvada apoiandose numa bengala Tinha assim uma de formação física muito comum às quebradeiras de coco de babaçu De fato dona Severa como ficamos sabendo fora quebradeira de coco durante todo o longo ciclo extrativista desse no povoado A quebra do babaçu para fins comerciais segundo nossos informantes teve início no povoado na década de 1930 mas a produção diminuiu no começo dos anos 1980 pois os comerciantes de Turiaçu que eram Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 194 Jamary dos Pretos Município de Turiaçu MA 195 os compradores do produto no povoado reduziram a demanda e como disse dona Severa o povo começou a desanimar de lidar com o coco Por isso os mais jovens preferiram dedicarse ao roçado e às criações e hoje só se quebra babaçu no povoado para consumo fami liar sendo essa uma tarefa das mulheres mais jovens e crianças Dona Severa traçou sua filiação dizendo que seus pais foram Marciano Mafra e Rita Soares Em suas palavras Meu pai vinha da fazenda Cajual dos tempos da escravatura era caçador para os brancos vivia metido na mata meio liberto para poder levar todo tipo de caça para os brancos que o respeitavam Já sua mãe era filha dali mesmo do Jamary Quando ela era criança a família vivia entre o povoado de Jamary e as terras do Cajual onde havia um cafezal plantado pelo seu pai ainda nos tempos da escra vatura Veio a liberdade e ele ficou cuidando da plantação Explicou que seu pai se considerava herdeiro das terras do Cajual tendo herdado também a assinatura sobrenome Mafra dos antigos senhores Lembrouse ainda do mesmo episódio contado por seu ir mão dizendo que certa manhã quando ela era ainda menina e ajuda va sua mãe a colher café estando todos eles no Cajual trabalhando no cafezal de seu pai chegaram os compadres da mata atacando as pes soas e querendo levarlhes as coisas Ela se recorda que sua mãe a carregou junto com os irmãos para dentro da mata sendo um deles morto pelas flechas lançadas pelos compadres da mata Depois dis so seus pais resolveram ficar de vez em Jamary onde havia mais gente morando e era mais seguro naqueles tempos No seu depoimento como no de seu irmão os nomes das antigas fazendas foram associa dos ao tempo da escravidão em contraposição ao Jamary considera do um povoado que se formou a partir de um antigo lugar de mora dia dos pretos livres Dissenos ela Seu moço já trabalhei muito de roça botava tudo arroz algodão milho gergelim carrapato batata cará Quebrei muito coco de babaçu que era vendido para um barraqueiro do povoado que já morreu e que comprava o coco quebrado para um patrão de Turiaçu Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 195 Quilombos 196 O coco quebrado de babaçu segundo nos explicou era levado no lombo de animais até o porto de Gurita onde era embarcado em canoas a remo para o porto de Turiaçu ou Santa Helena Até pouco tempo atrás ela morava na localidade dentro da sede do povoado conhecida pelos moradores como Arrudá onde enquanto pôde e a idade permitiu plantou muito babaçu todas plantas suas para comer e fazer óleo Perguntamoslhe por que o babaçu era sua planta ao que nos respondeu sorrindo se não sabíamos que planta era tudo que a gente semeia e colhe e mato era produto da natureza aquilo que estava na natureza como as palmeiras e coqueirais e os paus grandes de madeira Passamos então a falar das festas Dona Severa abriu um sorriso e foi dizendo É verdade eu era de festa fui dançadeira de tambor daquelas que dançavam tocando um tamborete pequeno amarrado na cintura como era antigamente Dancei muita rabeca quadrilha ronca mas nada disso existe mais do jeito que era Já dancei o jurado que a gente dançava sozinha estalando os dedos havia muitas festas na queles tempos as famílias faziam festa para seu santo a festa da padroeira durava quatro cinco dias e era tudo de graça não como hoje que temos que ter dinheiro se não não se come não se bebe não se dança não há dinheiro que baste As crianças não eram como hoje não podiam ir à festa tinham que brincar em separado a gen te matava boi socava muito arroz e cada um trazia sua farinha a garapa era dada pelo juiz da festa que sabia quem podia beber e quanto Toquei muita caixa tambor muito tamborete nas festas antigas a festa do dia de São Benedito a festa do Divino e a festa para Nossa Senhora Hoje tudo isto está fraco Após a entrevista com dona Severa Mafra fomos conduzidos por nossos informantes à casa da sra Raimunda Ribeiro apresentada como tia de seu Raimundo Sousa relação de parentesco estabelecida pelo fato de ser ela tia da mulher dele dona Anastácia Ribeiro Dona Raimunda tinha uns 88 anos segundo ela mesma afir mou e era filha de Mariano Ribeiro um preto velho do tempo da escravatura que morrera segundo calculavam nossos informantes com a avançada idade de 100 anos Em seu depoimento dona Raimunda Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 196 Jamary dos Pretos Município de Turiaçu MA 197 começou afirmando que já juquirou trabalhar duro na roça pri meiro para seu pai e depois para seus maridos plantou muito arroz mandioca milho batata cará fava feijão de coivara e carrapato e fazia panelas de barro arte que aprendera com a Chica Velha que fabricava essas panelas no povoado segundo ela as melhores para fazer comida Hoje só a Teodora Mafra faz essas panelas comentou Nas palavras de dona Raimunda eram bons aqueles tempos quando havia as trabalhadeiras de algodão as tiradeiras de milho as quebradeiras de babaçu e ela tinha sido tudo isso Havia muito tra balho e comida farta seu pai era matador de veado caçador planta vase muito algodão que ia quase todo para fora dos fios ali só se faziam as redes novembro e dezembro era sempre tempo de tiração de milho e apanhação de algodão De repente dona Raimunda pediu licença e saiu da sala voltando com uma cabaça cheia de grãos de gergelim que nos mostrou como um produto também muito apa nhado antigamente do qual se fazia um óleo considerado melhor do que o de soja fabricado hoje e que também era bom para se comer no arroz Perguntamoslhe então se conhecia alguma história dos tem pos da escravidão ou dos mocambos Ela disse que seu pai contava muitas mas que agora só se lembrava de uma história contada por sua mãe ocorrida lá na Tapera de Sinhadona antiga fazenda Santa Lu zia A senhora dessa fazenda Porcidônia não gostava que as escravas tivessem muitos filhos pois estes atrapalhavam as tarefas que elas faziam Por isso quando nascia uma criança ela esperava a mãe sair para trabalhar na roça dirigiase até a casa dos pretos e matava o recémnascido asfixiandoo com um pano Fazia essa crueldade para que as escravas não atrapalhassem o trabalho cuidando dos próprios filhos Era um tempo ruim os senhores eram cruéis com os pretos escravos acho que por isso nós fugia Em casa de nosso anfitrião conhecemos seu João Freitas que se identificou como jamarizeiro morador nativo do povoado do Jamary ali nascido e criado parente de Raimundo Sousa e Henrique Ribeiro vicepresidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Turiaçu também ali presente Seu João dizia saber muito poucas histó Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 197 Quilombos 198 rias antigas sobre o povoado pois seu pai não costumava contálas Quem mais tinha lembranças dos tempos antigos era uma tia de seu pai Severiana Mafra que fora escrava da fazenda Cajual e falecera com mais de 110 anos segundo nosso informante Seu João que disse ter uns 70 anos contou que ainda garoto ouvira algumas histó rias contadas pelos pretões antigos que conhecera em Jamary como sua tia Severiana o Benedito Marinho o Chico Tanguá e também Venâncio Coelho Mafra todos exescravos que viveram e morreram em Jamary Perguntado onde era o Jamary o que chamava como terra do Jamary respondeu Jamary é a sede do nosso povoado que é formado por várias localidades como Boa Vista o Cajual e os cen tros de roçado que recebiam diferentes denominações conforme as famílias que neles trabalhavam Tudo é o Jamarizão nosso centro nesta terra Voltando às histórias que os pretos velhos contavam relatou que a senhora da fazenda Cajual era Antônia Mafra e que havia ainda outros senhores de cujos nomes não se lembrava Finda a escravatura contou os escravos se espalharam por toda a região do Jamary que era já um lugar de moradia dos pretos fugidos Alguns anos depois seu pai resolveu se estabelecer mais para dentro da mata como era prática dos escravos fugidos muito embora nesse período falassem de ataques de índios o que vinha causando certo receio nos moradores que residiam próximo à atual sede do povoado e trabalha vam nos seus centros de roçado Mas seu pai não ligava comentou era meio corajoso e levou a gente para morar lá dentro do mato num lugar conhecido como igarapé do Mucura Lembrome que nesse local encontramos muitos restos de coisas que pareciam indicar a existência de um antigo lugar de moradia mocambo como diziam Havia esteios de casa que usamos para erguer a nossa ruínas de forno de barro e muitas plantas já cultivadas tomadas pelo matagal além de cacos de ferramentas antigas e até correntes Perguntamoslhe se o igarapé do Mucura era lugar de alguma antiga fazenda Ele respondeu Não senhor isto lá já era do mocambo Igual lá por Bonisário e Centro das Mangueiras que todos conhecem como lugar velho Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 198 Jamary dos Pretos Município de Turiaçu MA 199 de preto Papai me contava que eles os escravos fugiam porque não queriam ficar sujeitos aos senhores Faziam então aquele cen tro dentro da mata bem escondido e ali se refugiavam Indagamoslhe então a que distância esse local conhecido como igarapé do Mucura ficava da sede do povoado Cerca de duas horas de boa caminhada Quem era mocambeiro naquela época Ora seu moço mocambeiro era cristão mesmo né mas corriam se escondendo buscando sua liberdade para não ficar sujeito Eu levava minha família aquele a dele o outro a dele e nós íamos fazer nosso centro escondido Os mocambeiros acertavam entre si quem podia ir e quem deveria ficar assim me contava os ve lhos que sempre alguns deles vinham do mocambo à noite bus car com os que ficavam nas fazendas porque queriam ou porque tinham medo de ir os gêneros que muito precisavam e que não conseguiam produzir sozinhos como o sal a pólvora ferramen tas essas coisas que na mata não tinha e voltavam de novo a se esconder Os mocambeiros trabalhavam e moravam escondido para que os senhores não perseguissem Quem ficava na fazenda como escravo sabia e ajudava os irmãos que tinham ido pra mata até conseguir também se refugiar no lugar de moradia dos pretos livres assim é que nasceu nossa terra Outro depoimento importante nos foi dado pelo sr Sebastião Soares com cerca de 75 anos morador de Boa Vista em seu centro de roçado na localidade de nome Narciso Filho no Cajual Conversou conosco em seu rancho de trabalho junto à família mulher filhos sobrinhos e netos Enquanto tirava palha para usar na cobertura de seu rancho serviço que deve ser feito antes do período da chuva dissenos que toda aquela terra já fora muito fechada era mata alta para todos os lados Santa Rosa não existia naquele lugar A estrada é coisa recente aqui para nós A gente quando tinha que sair ia por aí passando pelos povoados por trilhas e varações na floresta até o por to de Gurita Era tempo de muita caça e seu pai trabalhara muito primeiro como escravo e depois como homem livre A mata era difícil mas não tínhamos problemas de terra como hoje em dia O problema mesmo que eu me lembro do meu tempo de Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 199 Quilombos 200 rapaz eram os índios Sim havia muitos índios lá onde é hoje San ta Rosa já foi uma aldeia a gente vivia na luta com eles havia até caçadores de índios e os índios eram caçadores de pretos Alguns eram índios tembé e tinha também aqueles brabos os urubus Sim havia muita luta e medo de todos os lados desta terra só lá em Jamary era mais tranqüilo porque os caboclos não tinham coragem de invadir o povoado do pretos porque já era muita gente por lá para lutar E em mocambo o senhor já ouviu falar Demais Meu pai foi do mocambo ia e voltava isto antes da liber dade chegar os pretos faziam suas rocinhas no meio da mata havia brancos e índios que os caçavam e eles lutavam para ficar na mata é história triste de muito sangue Eu menino ainda encontrava lá para dentro da mata quando meu pai me levava para ensinar a ca çar os mocambos velhos papai falava capoeira de mocambeiro era tudo pequeno cercado pela mata alta para não chamar a atenção dos homens que vinham caçálos Com a liberdade eles aos poucos voltaram e foram ficando por aí mas como meu pai dizia sempre desconfiados de qualquer homem branco ou índio que chegasse Manifestações culturais Os festejos da padroeira Em Jamary celebrase no dia 31 de dezembro a festa comemora tiva de Nossa Senhora das Graças padroeira do povoado Todos são unânimes em descrever a grandeza dessa festa que dura até quatro dias vindo gente de todos os povoados próximos inclusive parentes radicados em Turiaçu e Santa Helena e familiares que se mudaram para a capital do estado São Luís ou para outras capitais como Belém do Pará A festa é segundo eles a maior de todos os povoados de Turiaçu Ao final de cada comemoração iniciamse os preparativos para o ano seguinte com a escolha dos encarregados do próximo festejo O Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 200 Jamary dos Pretos Município de Turiaçu MA 201 principal responsável é o chamado juiz da festa ajudado pelos mordomos incumbidos de recolher as oferendas à padroeira e o pagamento das promessas além de definir cota das contribuições para os festejos Na festa da padroeira há novenas e uma procissão com a imagem da santa Existe também o lado profano da comemoração erguese um mastro enfeitado com oferendas e presentes e preparase uma mesa com comidas e bebidas para o juiz e seus mordomos Os bailes seguem noite adentro durante os três dias de festejos Apresentamse cantores tocadores e dançadeiras do tambordecriola No mastro enfeitado erguido no primeiro dia da festa tremula uma bandeira com a figura de uma pomba Qualquer um pode retirar uma das oferendas presas no mastro mas ao fazêlo é detido pelos mordomos e obrigado a pagar certa quantia em troca da liberdade Os partici pantes se divertem muito com isso e o dinheiro apurado se destina ao pagamento dos gastos guardandose o que sobra para as próxi mas festas Devido à grande afluência nos últimos anos substituíramse as mesas de comidas e bebidas por barraquinhas de venda Mas para os juízes da festa continua valendo a obrigação de oferecer a todos um grande almoço Comentaramse também outras mudanças De alguns anos para cá não se celebram mais as festas promovidas por algumas famílias em honra do seu santo padroeiro com a participação de todos os moradores do povoado Esses festejos patrocinados pelo dono do santo eram comemorados também com um baile e uma apresentação do tambordecriola O baile era animado por músicos do Jamary e de outros povoados próximos que tocavam em troca de comida e bebida oferecidos generosamente pelo dono do santo Hoje segundo nossos informantes a música da festa da padroeira come moração comunitária que substitui todas as outras é tocada por apa relhagem eletrônica com altofalantes e caixas acústicas alugadas a preços considerados elevados Mas o tambordecriola continua a ser animado pelos tocadores do povoado A capela do povoado de Jamary consagrada a Nossa Senhora das Graças é uma construção comunitária feita de estuque barro e teto de palha trançado mesmo material usado na edificação das suas Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 201 Quilombos 202 moradias tendo troncos de árvores lavrados como assentos No cen tro da capela um oratório de madeira conserva a imagem de Nossa Senhora das Graças ladeada pelas imagens de São Lázaro e São Bene dito No mês de maio de cada ano acontece a novena de Nossa Se nhora quando as rezas são diárias com a participação principalmen te das mulheres e jovens do povoado A maioria dos moradores do povoado declarase católica en quanto cerca de 10 unidades domésticas pertencentes ao ramo fami liar dos Mafras se dizem crentes Nossas observações superficiais sobre esse assunto não permitem um enfoque mais completo Deve se contudo destacar que no povoado de Jamary são comuns as prá ticas religiosas de origem afrobrasileira como o tambordemina muito difundido no estado do Maranhão O tambordecriola O tambordecriola é a festa por excelência do povoado de Jamary Suas origens segundo os depoimentos remontam aos terreiros das fazendas e aos territórios livres dos mocambos Manifestação cultural comum à maioria dos povoados e comunidades negras rurais do esta do do Maranhão a festa do tambordecriola tem em Jamary sua expressão característica na afirmação de uma identidade étnica domi nante também nos povoados de exclusividade negra no Maranhão A organização do tambordecriola parece representar uma rígida divi são dos papéis sexuais entre os homens tocadores e cantadores do tambor e as mulheres dançadeiras do tambor A formação da linha dos tocadores e cantores do tambor delimi ta o espaço do terreiro de dança Dispostos numa mesma direção eles estabelecem um limite que as dançadeiras do tambor nunca podem transpor Fora desse espaço elas dançam e provocam os cantores do tambor a entoar mais alto e com mais cadência seu canto dizendo lhes que batem sem força ou fora do ritmo levantando as saias diante deles enquanto eles permanecem sentados como se garantissem com seus corpos o traçado imaginário de uma linha contínua e fixa As dançadeiras do tambor fazem um espetáculo à parte A partir da linha formada pelos tocadores do tambor abrese uma roda re Quilombos Ebookpmd 2442009 1705 202 Jamary dos Pretos Município de Turiaçu MA 203 servada exclusivamente a elas Ali dançam ao ritmo do tambor uma de cada vez ou todas juntas entrando e saindo com coreografias pró prias Cada dançadeira interpreta seus passos e evolui ao ritmo do tambor sublinhado pela cantoria em verso Assim vão girando suas longas saias enquanto deixam escapar gritos de provocação aos tocadores do tambor Essas dançadeiras são em sua maioria mulheres casadas que par ticipam da festa em companhia de seus maridos O círculo da dança é formado com a ajuda das pessoas que assistem ao tambor e se dis põem em torno da linha dos tocadores do tambor Essa assistência eventualmente dança ao compasso da música e acompanha os cantos sem sair porém de seus lugares As dançadeiras que aguardam a vez de entrar na roda dispõemse também em linha contraposta à dos cantores e tocadores do tambor Em Jamary os cantores e tocadores do tambordecriola for mam um grupo permanente liderado por um deles que se apresenta em outras ocasiões além dos festejos O líder Inácio morador do povoado é considerado por todos um grande tambor isto é um tocador ritmado e um cantor afinado e criativo Seu grupo é formado por cerca de oito homens que tocam e tiram versos em seqüência para acompanhar o ritmo da batida e o tambor cantar certo como costumam dizer Afora esses tocadores e cantores conhecidos por sua habilidade qualquer dos homens presentes na festa pode pedir um tambor e substituir algum membro do grupo sendo comum esse tipo de revezamento Tanto aos cantores e tocadores do tambor quanto às dançadeiras servemse bebidas geralmente conhaque e aguardente em doses controladas pelos promotores da festa As rodadas vãose sucedendo e é sabido que o tambor esquenta madrugada adentro quando todos vão ficando cada vez mais alegres e animados As letras e versos cantados no tambor referemse aos lugares comuns no imaginário do povoado a mata e seus encantamentos as mulheres e sua dança a busca da liberdade a alegria de conviver com os amigos de cantar dançar e viver o trato com o gado e outras atividades do cotidiano de seus moradores Os versos se repetem mas também é comum o improviso na forma de um desafio de um cantor Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 203 Quilombos 204 para outro Nos intervalos da festa põese o couro dos tambores para aquecer junto à fogueira mantida acesa enquanto houver dança Mo mentaneamente desfeita a linha divisória entre tocadores e dançadeiras só é restabelecida quando o tambor volta a bater Durante a apresentação do tambordecriola de Jamary fomos apresentados à sra Maria Borges moradora do Jamary há 90 anos que associou esse festejo à Lei Áurea Foi assim no dia da libertação Papai contava que os pretos fizeram tambor nas fazendas para comemorar a libertação e cantaram se despedindo até de manhã Quando o dia amanheceu cadê os pre tos Caíram todos no mundo Meu pai era menino na fazenda Cajual meu avó foi escravo lá os pretos com a libertação foram se espa lhando por este mundo afora encontrando seus irmãos na mata os mocambeiros para contar que todos estavam libertos Considerações finais A localização de Jamary povoado de difícil acesso e considerado relativamente isolado no tocante aos aspectos geográficos possui certas características defensivas ligadas à existência de status étnicos dicotômicos relativos não só à cor pretos e brancos mas tam bém ao fato de terem sido um povo escravo o que socialmente os desqualifica na visão de outros grupos com os quais interagem Nessa perspectiva portanto encontramse de fato integrados em um campo de forças antagônicas A imputação das características raciais baseadas na cor da pele costuma ser associada ao estigma de terem sido um povo escravo e ao fato de habitarem os chamados campos naturais de que fazem uso comum e exclusivo nos limites das terras do povoado Mas o precon ceito e a exclusão social desse grupo tem como contrapartida a atri buição de uma origem comum e a consciência de uma comunidade de parentesco e vizinhança bem como de defesa do bem por eles consi derado supremo a liberdade a partir da qual cultivam sentimentos de honra e dignidade Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 204 Jamary dos Pretos Município de Turiaçu MA 205 A segregação racial convertese assim em isolamento consciente em relação ao exterior fazendo deles uma comunidade de intercâm bio que age efetivamente na defesa de interesses e de uma vida co muns A experiência histórica dos quilombos ou mocambos constitui patrimônio político do passado condicionando a existência de uma comunidade política e de comunhão étnica no presente Na medida em que possuem a lembrança transmitida através do tempo pelos seus ascendentes e a compartilham no presente etnográfico os moradores de Jamary consideram os quilombos ou mocambos lugares de moradia dos pretos livres procedentes das fa zendas de escravos da região A interseção entre os mocambos e os escravos das fazendas na região davase por meio dos estreitos laços de colaboração entre os que fugiam para as matas e os que permaneciam nas fazendas como escravos garantindo a sobrevivência dos primeiros através de um pacto de silêncio expresso pelas palavras zoioolhoubocacalou citadas entre outros por Estanislau Mafra Este por sua vez as ouvira de seu pai exescravo da fazenda Cajual que hoje faz parte das terras de Jamary e antes da abolição servira também como lugar de moradia e refúgio dos que resistiram à escravidão lugar velho como dizem os moradores do povoado O grupo de pessoas mais velhas de Jamary é depositário portan to das múltiplas versões sobre os mocambos e o tempo da escravi dão versões que pelo seu caráter público constituem a representação cultural que seus moradores formam de si próprios Assim esse gru po tornouse um campo de observação privilegiada e os testemunhos que daí pudemos colher assumem um caráter de ato político trazen do a público o sentido que eles atribuem à sua existência social marcada pela experiência histórica da escravidão e da luta pela liberdade nos quilombos ou mocambos o que a seu ver fundamenta a posse coleti va da terra de Jamary e seu uso comum Apesar da especificidade de seus fundamentos históricos e etnológicos o uso comum da terra no povoado de Jamary tal como descrito nos relatos sobre o trabalho familiar nos centros de roçado as trocas de dia entre parentes e vizinhos os campos naturais de uso comum onde criam gado que representa para eles uma pou pança da qual podem lançar mão em momentos críticos pode ser Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 205 Quilombos 206 enquadrado nos sistemas de usufruto comum da terra na estrutura agrária brasileira7 Tal sistema de uso comum não recebe tratamento jurídico formal nas disposições constitucionais vigentes estando as sim constantemente ameaçado por grupos sociais dominantes que procuram subtrairlhes as terras para aumentar seus domínios parti culares No Jamary com efeito ocorre acirrado conflito com os interes ses latifundiários de grandes criadores de gado do município de Turiaçu e de empreendimentos rurais que procuram se expandir à custa dos povoados e terras de preto como no caso mencionado da disputa a partir de meados da década de 1970 entre os moradores de Jamary e o projeto Ceres Isso aqui é um povoado de pretos disseme um morador de Jamary recorrendo assim à ancianidade da ocupação do território e à herança da escravidão e dos mocambos para fundamentar os direitos que possuem sobre a terra inalienável e indivisa As relações de parentesco estabelecidas entre os moradores do povoado e sua referência à situação histórica de quilombo regulam a descendência e a herança das terras de uso comum configurando uma situação de fato que cria direitos e garantias ao reconhecimento jurí dico de propriedade da terra do povoado de Jamary A memória coletiva referese igualmente à luta pela liberdade através das fugas para os quilombos ou mocambos Estes últimos são considerados do ponto de vista dos moradores do povoado locais de moradia dos chamados pretos livres que fazem parte de um con junto formado também pelos escravos que ficavam nas fazendas e colaboravam ativamente com os fugidos havendo assim planos de interseção organizacional entre ambos cativos e libertos Desse modo a disposição espacial do povoado de Jamary dos Pretos expri me essa conjunção dos lugares de moradia concentrados na sede do povoado com as antigas fazendas de escravos fugidos incorporadas como centros de roçado e onde ficam hoje os chamados ranchos de trabalho 7 Ver Almeida 1989 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 206 Jamary dos Pretos Município de Turiaçu MA 207 O diagrama feito por um dos informantes a pedido do pesquisa dor projeta em suas divisões espaciais planos diferentes de organiza ção social Na representação gráfica inscrita no diagrama o povoado de Jamary é concebido em forma de dois anéis conjugados com um ponto de interseção correspondente à sede do povoado Nessas duas circunferências acopladas encontrase o terreno trabalhado ou os cen tros de roçado como dizem e os campos naturais e a mata circundante Na parte de cima de um dos círculos estão duas localidades Cajual e Boa Vista cujos aglomerados de casas são bem menos extensos do que os encontrados na sede do povoado A outra circunferência tem como limite inferior o rio Caxias Esses dois anéis conjugados estão sempre referidos ao ponto de interseção entre eles a sede do povoado onde a vida comunitária se exterioriza Aí ocorrem as ma nifestações culturais do povoado como as festas religiosas o tam bordecriola e práticas comunitárias como o jogo de futebol domi nical É neste plano que a comunidade demonstra o seu alto grau de integração Os centros de roçado estão localizados em ambas as circunferên cias e representam um plano organizacional não menos importante para os moradores do povoado Neles se realiza o trabalho de plan tio com a troca de dias entre parentes e vizinhos Nesse espaço se desenvolvem portanto as relações propriamente econômicas que por sua vez implicam laços de reciprocidade com base no parentesco envolvendo de fato todos os membros da comunidade O povoado de Jamary incorpora portanto em seus limites espa ciais e na representação que os moradores dele fazem a herança cultural dos quilombos ou mocambos Essa herança inscrevese entre outras coisas na propriedade indivisa da terra do povoado que pertence à coletividade dos chamados pretos do Jamary A terra do povoado é considerada inalienável e não pertence individualmente a nenhum dos seus membros o que a torna desse ponto de vista indisponível8 8 As chamadas terras de preto compreendem os domínios que a partir da desa gregação de grandes propriedades monoculturalistas foram doados às famílias Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 207 Quilombos 208 A referência feita pelos moradores de Jamary ao passado históri co dos quilombos ou mocambos bem como os laços de reciprocida de e solidariedade que os unem cria um sentimento de participação comunitária e identidade étnica no presente As práticas sociais e as formas culturais aqui descritas assim como a memória social dos quilombos ou mocambos e da resistência à es cravidão permitem sustentar que a reparação das violências do passa do ora reproduzidas pelos conflitos de terra e o não reconhecimento público de seus direitos encontra no art 68 do ato das Disposições Transitórias da Constituição Federal Brasileira de 1988 a fundamen tação legal que restitui a garantia de liberdade contra todas as formas de dominação e sujeição baseadas em concepções racistas que lhes destinem um lugar inferior na estrutura social O cumprimento desse preceito constitucional atribuindolhes a propriedade definitiva das terras de Jamary pode assim converter a dor de uma experiência dra mática do passado de um povo na posse definitiva da liberdade como um bem maior no presente liberdade que segundo a visão deles pró prios é a garantia da honra e da dignidade pessoal e social Referências bibliográficas Almeida Alfredo Wagner Berno de Terras de preto terras de santo e terras de índio uso comum e conflito Cadernos do NAEA Belém Ufpa 10 1989 Assunção Mathias Rohrig A guerra dos bemtevis A Balaiada na memória oral São Luís Sioge 1988 de exescravos ou por elas adquiridos com ou sem formalização jurídica Seus descendentes permanecem nessas terras há várias gerações sem proceder ao formal de partilha e sem delas se apoderar individualmente gerando assim um sistema fundado por laços de consangüinidade em que sobressaem o compadrio e as formalidades não recaem necessariamente sobre os indivíduos pondo as famílias acima de muitas das exigências sociais Isso leva à indivisibilidade do patrimônio dessas unidades sociais circunscritas numa base fixa considerada comum essencial e inalienável Ver Almeida 1989 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 208 Jamary dos Pretos Município de Turiaçu MA 209 Oliveira Roberto Cardoso de O método genealógico na pesquisa antropológica Cam pinas Unicamp 1991 Relatório de atividades do Projeto Vida de Negro terceira etapa São Luís do Maranhão ago 1993 mimeog Salles Vicente O negro do Pará sob o regime de escravidão Rio de Janero FGV Serviço de Publicações Ufpa 1971 Terras de preto quebrando o mito do isolamento Projeto Vida de Negro PVN da Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos HumanosCentro de Cul tura Negra do Maranhão 1989 Anexo Transcrição de algumas letras do Tambor de Criola Oi morena vamos bailar oi morena vamos bailar oi morena vamos bailar em terra de boiador morena vamos bailar Oi morena vamos bailar ou morena vamos bailar em terra de plantador morena vamos bailar em terra de tanta dor morena vamos bailar Oi morena vamos bailar oi morena vamos bailar em terra de cantador morena vamos bailar A boca da mata cantoucantou boca da mata cantouvamos lácantou e cantou vamos láei vamos láeu voueu vou A boca da mata cantouoi olhe láa boca da mata cantou oi eu vou já Os encantos da mata acordouvamos lá e lá na boca da mata que cantouolhe lá Cantou cantou cantou boca da mata cantou olhe lá Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 209 Quilombos 210 cantou cantou cantou eu vou lá Cantou a boca da mata cantou oi ei olha a luz lá boca da mata brilhou olhei lá a boca da mata cantou e vou para lá Quem me solta que eu estou preso quem me solta que tou preso quem me solta que tou preso eu para mata me vou quem me solta que tou preso Vou no canto do tambor quem me solta que tou preso pois eu também quero me soltar quem me solta que tou preso Quem me solta que eu tou preso nesta festa de tambor quem me solta que eu tou preso pois eu também quero ser livre para também cantar e bailar quem me solta que tou preso ou seu cantador em terra de boiador quem me solta que eu estou preso nas correntes do senhor quem me solta que eu tou preso quem me solta que eu tou preso pois também quero ser livre para cantar O tambor de Santa Maria cantou no areiar cantou cantou cantou no areiar o tambor de Santa Maria cantou no areiar cantou cantou cantou no areiar Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 210 Jamary dos Pretos Município de Turiaçu MA 211 cantou cantou cantou no areiar Santo Antônio cantou no areiar o tambor de Santa Maria cantou no areiar cantou cantou cantou no areiar São Benedito cantou no areiar O Santo Benedito cantou no areiar No tambor de Santa Maria que cantou no areiar cantou cantou cantou no areiar A minha cabeça o tambor de Santa Maria sentou no areiar sentou no areiarsentou no areiarSanta Maria sentou no areiar ti ti ti que eu sou boieiro ti ti ti que eu sou boieiro ti ti ti que eu sou boieiro para louvar nossa senhora ti ti ti que eu sou boieiro entre os cantores do tambor ti ti ti que eu sou boieiro ti ti ti que eu sou boeiro do olhos de maracá ti ti ti que eu sou boeiropara me libertar ti ti ti que eu sou boeiro ti ti ti que eu sou boeiro diga lá meu deus do céu ti ti ti que eu sou boeiro nosso senhor pai criador ti ti ti que eu sou boeiro em uma festa de tambor ti ti ti que eu sou boeiro do povoado dos pretos por louvor Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 211 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 212 C A P Í T U L O 6 Furnas de Dionísio MS Maria de Lourdes Bandeira e Triana de Veneza Sodré e Dantas A comunidade de Furnas de Dionísio habita uma área em forma de ferradura cercada de furnas encravada na serra de Maracaju a 40km da cidade de Campo Grande capital do estado de Mato Gros so do Sul A ocupação da área por Dionísio e seus descendentes remonta à segunda metade do século XIX O topônimo Furnas de Dionísio é ele próprio registro público documento lingüísticohistórico inconteste socialmente aceito e consagrado na região pelo uso de reconhecimento de que Dionísio e sua parentela ocupam essas terras legitimamente A comunidade negra constituída por sua descendência ocupa a área permanentemente desde o final do século passado antes da cria ção do município de Jaraguari onde se localiza Furnas de Dionísio desde a criação do município figura como um povoado identificado pela população da sede das vilas e demais povoados dos distritos como terra dos Dionísio ou seja como terra de sua descendência como localidade de negros Além de topônimo Furnas de Dionísio é um etnônimo por quanto identifica os negros que ali vivem como um grupo socialmen te distinto de outros grupos sociais e até dos demais negros que habi tam o município a região e o país O presente relatório históricoantropológico foi produzido com base nos resultados de pesquisa realizada por solicitação da Fundação Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 213 Quilombos 214 Palmares objetivando a sistematização de dados históricos e antro pológicos esclarecedores da comunidade negra de Furnas de Dionísio como remanescente de quilombo Orientação teóricometodológica Adotamos uma orientação teóricometodológica que buscou combinar instrumental oferecido pela história do cotidiano e pela antropologia Realizamos pesquisa documental no Arquivo Público Estadual e em diversos órgãos do governo de Mato Grosso do Sul buscando dados que pudéssemos correlacionar com os dados etnográficos no sentido de um jogo de espelho entre tempo histórico e memória oral Desenvolvemos em dezembro de 1997 trabalho de campo em Furnas de Dionísio na perspectiva de produzir uma etnografia densa tal como Geertz 1978 a concebe Tomando como suporte os conceitos de etnicidade grupo étni co e relações interétnicas procuramos fundamentar o reconhecimen to de Furnas de Dionísio como remanescente de quilombo demons trando que a análise da história da comunidade a partir de seus próprios códigos dos códigos internos de sua cultura permite iden tificar uma espacialidade diferenciada e um modo diferenciado de integração na sociedade de classe A ocupação da terra e a produção social do espaço se fizeram em conformidade com os valores e os referenciais da tradição cultural instituída por Dionísio e sua descen dência Tendo como princípio a cooperação a reciprocidade e o igualitarismo a comunidade negra de Furnas de Dionísio construiu sua concepção de tempo e de espaço indissociavelmente vinculada à liberdade Trabalhamos com histórias de vida como recurso metodológico para correlacionar tempo biográfico e tempo históri co trajetória de indivíduos enlaçadas no destino da comunidade O mapeamento de genealogias correlacionadas ao sistema de cren ça revela a construção da ancestralidade mítica como foco de produ ção simbólica da origem e do destino Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 214 Furnas de Dionísio MS 215 Primeira narrativa Quem começou tudo aqui foi meu avô Diz que ele veio de Minas no lombo de um burrico Veio chegou aqui gostou do lugar achou o lugar bom Foi o primeiro a entrar Aqui era tudo bruto brabo Não tinha vivalma Tinha muita onça muito pe rigo Fez rancho cortou árvore começou tudo Era um homem de muita coragem de muito poder uma das versões da narrativa oral de origem colhida entre informantes da comunidade Segunda narrativa Aproximadamente em 1890 saiu em busca de terras para viver com sua família o sr Dionísio Vieira que era de Minas Gerais Conforme se conta ele veio para o lugar que hoje se chama Furnas do Dionísio em cima de um burro Na primeira via gem veio apenas para reconhecer as terras depois de requerêlas vol tou para buscar sua família e passou a partir desse momento a formar a comunidade que se tem hoje Silva 1997 A autora da primeira narrativa é dona Sinhana a mulher mais velha da comunidade nascida em 1918 Conheceu sua avó dona Luísa mulher de Dionísio ainda pequena mas já me entendia por gente Quando dona Luísa morreu segundo dona Sinhana já era bem velhinha Dionísio morreu muito velho Onde ele morava as mangueira já dava fruta há muito tempo Dona Sinhana oferece duas referências de tempo que permitem situar o nascimento de Dionísio em torno do final da década de 1850 ou início da década de 60 Quando a avó morreu ela já se entendia por gente Entenderse por gente é uma expressão corrente entre a população tradicional de zona rural da região CentroOeste para ca racterizar o reconhecimento da criança como sujeito da memória so cial na condição de fonte de registro de circulação e de guarda de lembranças coprodutor da memória do grupo social a que pertence Essa passagem da criança à condição de sujeito histórico é comumente associada à faixa etária dos três aos seis anos de idade porquanto a idade de sete anos é representada como a idade da razão marcando outra passagem a passagem à condição de sujeito do livrearbítrio que conseqüentemente presta conta de seus atos Essa idade costu ma também ser simbolicamente associada à condição de maturidade biológica tanto para inserção na unidade de produção familiar assu mindo tarefas mais leves que não impliquem grande desgaste de ener Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 215 Quilombos 216 gia física quanto para inscrição no universo escolar quando isso é possível Levando em conta essa referência de temporalidade a avó de dona Sinhana teria morrido em torno de 1922 A outra referência de tempo que dona Sinhana oferece em seu depoimento é que quando Dionísio morreu as mangueiras da casa dele já davam fruto há muito tempo Essa referência é significativa considerando que quando morreu Dionísio morava na segunda casa que ele construiu mais próxima ao acesso mais fácil às furnas de modo a controlar a entrada na área As mangueiras tradicionalmente cultivadas levam anos para dar os primeiros frutos Com essa referên cia metonímica de tempo dona Sinhana busca enfatizar a idade avan çada de Dionísio estimando que ao morrer ele era muito mais idoso do que ela Correlacionando as duas referências de tempo fornecidas por dona Sinhana é possível situar o nascimento de Dionísio entre fins dos anos 1850 e início dos anos 1860 Dona Sinhana informou que sua mãe filha de Dionísio nasceu aqui mesmo na Furna Sebastião nascido em 1924 também infor mou que seu pai filho de Dionísio nasceu em Furnas Sebas tião recorda que quando seu pai morreu sua filha Maria tinha um ano de idade Maria nasceu em 1955 portanto Abadio pai de Sebas tião teria morrido em 1954 Sebastião lembra que quando seu pai morreu ele já não era mais moço tinha uns 55 anos Isso permite situar o nascimento de Abadio no final da década de 1890 evidenciando que o assentamento negro na área de Furnas é anterior à virada do século Na primeira narrativa há ainda a considerar dois importantes signos carregados de significação Dionísio teria vindo de Minas montado num burrico O Arquivo Público Estadual de Mato Grosso do Sul 1993 publicou uma coletânea de cartas de liberdade revogações hipotecas e escrituras de compra e venda de escravos do acervo de cartórios dos municípios de Corumbá Miranda Nioaque e Paranaíba A região onde se localizam as Furnas de Dionísio estava circunscrita à vila de Nossa Senhora do Carmo de Miranda Os pesquisadores do arquivo encontraram no Cartório do 1o Oficio de Miranda 46 documentos relativos à escravidão no período de 1877 a 1885 sendo 18 cartas de Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 216 Furnas de Dionísio MS 217 liberdade e 28 escrituras de compra e venda envolvendo 53 escra vos Dos 20 escravos cuja naturalidade os documentos registram dois são africanos nove são naturais de Minas e nove de Mato Grosso Os documentos indicam portanto uma movimentação de escravos de Minas para as fazendas do sul da província de Mato Grosso Dionísio também veio de Minas ainda no período da escravi dão E veio montado num burrico ou num jumento conforme vari antes da narrativa de dona Sinhana Quando São José e Nossa Senho ra fugiram para o Egito para garantir a vida e a liberdade de Jesus Nossa Senhora também foi montada num burrico O burrico é um signo de fuga e de liberdade na narrativa histórica cristã e a fuga é um acontecimento significativo na vida de Jesus Ter vindo de Minas num burrico para furnas localizadas nas proximidades de Campo Grande é um acontecimento significativo na vida de Dionísio e de seus descendentes A narrativa mítica da vinda do ancestral é signifi cativa em termos de fundamentos da ocupação das terras da constru ção da territorialidade dos negros de Furnas A narrativa mítica é essencialmente metafórica como demonstram diversas abordagens teóricas do mito na antropologia Tomando a primeira narrativa como narrativa mítica de ocupação da terra no tempo da escravidão Minas é uma alusão metafórica de origem que correlacionada à alusão meta fórica ao burrico e à religiosidade da comunidade remete ao sentido de fuga para a vida e a liberdade do ancestral mítico Assis 1988 Bandeira 1988 e Siqueira 1990 entre outros enfatizam a presença de negros livres e índios em quilombos da pro víncia de Mato Grosso A palavra quilombo portanto não se refere apenas a esconderijo de escravos fugidos Essa era a acepção dada ao termo pelos colonizadores A palavra quilombo originase etimologicamente da língua africana quimbundo em que a palavra kilombo tem entre outros significados de povoação união Na acepção dada ao termo quilombo pelos próprios negros os sentidos de po voação negra e de união são culturalmente significativos O fato his toricamente documentado em vários quilombos de população cons tituída de escravos libertos e índios confere suporte empírico à interpretação Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 217 Quilombos 218 Há ainda a considerar a seguinte questão como Dionísio vindo de Minas viajando sozinho teria chegado às furnas Tendo passado por tão extensas áreas ainda não ocupadas por que teria escolhido esse lugar para viver De acordo com o Dicionário da língua portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira no Brasil Bahia e estados vizinhos o campo semântico da palavra furna é ampliado com os significados de lugar retirado esquisito Em Mato Grosso o sentido do termo furna é semelhante ao sentido que em Goiás se dá ao termo vão vale profundo encravado em serra cortado por rios ou ribeirões córregos e riachos Em Cam po Grande ao pedir a uma informante que me explicasse o significa do de furnas sem hesitação e didaticamente ela me ensinou furnas é um lugar encravado escondido um brocotó De acordo com o saber popular tradicional acerca de terras boas para morar viver plantar e criar as furnas e os vãos eram tidos como lugares impróprios ao assentamento humano por serem lugares reti rados perigosos e de difícil acesso além de refúgio de animais fero zes Pressupõese que a natureza participe do processo de produção do espaço permitindo ao homem a culturalização das áreas que ela mesma na medida em que as teria dotado de certas características propicia ao homem Por outro lado a natureza reservaria para si áreas que não devem ser tocadas que não devem ser modificadas senão pela força da própria natureza e que devem ser respeitadas como do mínio dos outros seres da ordem natural Furnas e vãos eram pois vistos como lugares ermos como fundão de sertão bruto espaço im próprio à culturalização Embora o saber popular classifique as terras desses lugares como costumeiramente de boa qualidade o próprio processo de ocupação oferece evidências de que só muito recente mente começaram a ser valorizadas E Dionísio não foi o único a considerar as furnas como lugar estratégico de ocupação negra Em Mato Grosso do Sul existem ou tras comunidades negras localizadas em furnas assim como em Goiás existem comunidades negras localizadas em vãos Esse fato recorrente aponta para uma busca intencional uma priorização de furnas e vãos Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 218 Furnas de Dionísio MS 219 como lugares apropriados à constituição de quilombos manipulan dose o imaginário social no intuito de garantir uma relativa seguran ça porquanto era evidente a resistência a embrenharse por aqueles lugares coletivamente representados como interditos pela natureza à ação cultural do homem O velho Dionísio veio de Minas no lombo de um burrico em direção à serra em busca de furnas seguras para viver em liberdade para construir uma territorialidade negra no espaço branco da socie dade escravocrata A segunda narrativa é escrita por Osnei B da Silva neto de dona Sinhana primeiro membro da comunidade de Furnas de Dionísio a concluir um curso superior curso de licenciatura em filosofia reali zado na Universidade Católica Dom Bosco UCDB em Campo Grande Osnei incorpora ao seu texto os principais elementos da narrati va mítica de origem da comunidade mas faz uma recriação mediada por valores próprios de seu tempo Osnei escreveu seu trabalho em 1997 Atualmente a questão da terra passa pela questão da regulari zação da propriedade Tendo como referência o valor da terra como propriedade ele constrói uma versão de origem que procura associar posse a requerimento das terras primeiro Dionísio veio fazer um reconhecimento das terras depois requereuas e voltou para buscar a família A versão de Osnei comporta uma contradição de temporalidades Dionísio teria vindo em 1890 aproximadamente mas só faz o requerimento das terras no início do século XX A seqüência de eventos que Osnei apresenta veio reconheceu as ter ras requereuas buscou a família e iniciou a formação da comunida de não se sustenta A ocupação da área de furnas foi um ato intencional de Dionísio uma prática de ocupação que se associa à tradição de formação de quilombo e que implica uma dimensão política de inserção diferen ciada no ordenamento espacial mediado pela forma grupal de acesso e usos regulados por mecanismos internos de parentesco A história oficial faz o seguinte registro Em 1872 chegava ao Mato Cortado entre as colinas que abrigam hoje a capital do Estado o mineiro José Antônio Pereira com sua Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 219 Quilombos 220 comitiva que no ano seguinte depois de estabelecer a posse vol tou a Minas para buscar os familiares Em 1875 de retorno deu início ao arraial dos Pereiras embrião da cidade O núcleo cresceu rapidamente em 1889 já era distrito em 1899 município Desenvolveuse a ponto de sobrepujar a florescente cidade de Corumbá e de centrializar no sul o comércio e a política1 Em 1875 o fundador de Campo Grande veio de Minas com a família e os escravos Dionísio chega vindo de Minas no lombo de um burrinho aproximadamente na década seguinte Não teria ele fugido do arraial dos Pereiras O município em que as furnas se localizam Furnas de Dionísio fica ao sul do município de Jaraguari Esse município possui uma área total de 2366km2 e está situado na microrregião de Campo Grande na área central do estado de Mato Grosso do Sul Jaraguari faz divisa ao norte com o município de Bandeirantes ao sul com os municípios de Campo Grande e Ribas do Rio Pardo a leste com o município de Bandeirantes e a oeste com o município de Rochedo Criado pela Lei no 692 de 12 de dezembro de 1953 o municí pio é constituído de dois distritos o distrito sede e o distrito de Bom Fim Jaraguari além do núcleo da sede denominado Jatobá possui as seguintes localidades Vila ParaTudo Rochedinho Jaraguari Ve lho Mansões Palomar Boliche Campo Verde São Romão e Furnas de Dionísio O processo de ocupação das terras do município é anterior à sua criação tendo começado no final do século XIX quando mineiros e goianos atraídos pela mineração se instalaram nas cabeceiras dos ri beirões Marimbondo Jatobá e Cervo a nordeste de Campo Grande 1 Campestrini Guimarães 1991923 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 220 Furnas de Dionísio MS 221 Em 1910 os moradores solicitaram ao presidente do estado de Mato Grosso a concessão de uma área com a finalidade de formação de um patrimônio denominado Senhor Divino Espírito Santo As sim através do Decreto no 278 de 28 de março de 1911 foilhes concedida uma área de 3600ha demarcada nas nascentes do córrego Marimbondo no município de Campo Grande A primeira edificação da povoação de Jaraguari foi a casa de dona Maria Praxedes e os primeiros comerciantes a instalarem seus estabelecimentos foram Manoel Senhorinho e José Simão de Lima Um dos fatos históricos marcantes na vida de Jaraguari foi a passa gem da Coluna Prestes em 5 de julho de 1925 Esta segundo registros teria incendiado a agência postal criada e instalada em 1920 Por não ter apreendido a significação do gesto como uma contestação contra o governo a população tomouo como uma violência contra ela própria e a cidade Até mesmo porque a agência postal era considerada como responsabilidade da comunidade e patrimônio da localidade e sua des truição foi vista não só como perda material mas também como expro priação simbólica uma vez que a agência era signo de progresso Em 1921 Jaraguari foi elevado a distrito Na oportunidade além da área reservada ao rocio do patrimônio através da Resolução Esta dual no 856 foi reservada à colonização outra área de igual extensão de terras devolutas próprias para a lavoura O progresso da vila de Jaraguari foi fator relevante na criação do município em 1953 Seu processo de desenvolvimento contu do sofreu um estancamento abrupto com o novo plano rodoviário do estado modificando o traçado da rodovia que liga Campo Grande a Cuiabá e desviandoa 7km de Jaraguari A vila começou a entrar em decadência A população total do município é de 4495 habitantes De acor do com dados do Censo Demográfico de 1991 a composição da população segundo cor e raça é a seguinte brancos 475 pardos 448 pretos 65 outros 12 Se considerarmos pardos e pre tos como pertencentes a uma mesma categoria de cor ou de raça metade da população do município de Jaraguari é negra A manipulação dos mecanismos de identificação e discrimina ção promove a flexibilização da linha de cor de tal modo que para a Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 221 Quilombos 222 população local a visibilidade dos negros se reduz à comunidade de Furnas de Dionísio A visibilidade contrastiva de Furnas de Dionísio como comuni dade negra vem sendo historicamente construída como um aspecto distintivo Jurandyr Pires Ferreira 1958 expressa essa construção ao destacar é importante ressaltar que existe no município um povoa do formado somente de pessoas de cor negra chamado Furnas dos Dionísios localizado a 38km da sede A voz corrente é que o povoa do começou com uma família e hoje o grupo se compõe de 25 famí lias com seis filhos em média Todas as famílias possuem pequenos sítios O poder de comando se divide entre os Dionísios e os Martins A relação da comunidade de Furnas de Dionísio com o municí pio de Jaraguari é essencialmente de ordem jurídicoburocrática e apenas pontualmente em nível socioeconômico e cultural A relação mais ampla e em diferentes esferas da vida social a comunidade vem estabelecendo com Campo Grande a capital do estado Hábitat Uma representação de origem social Irmã Terezinha missionária salesiana que trabalha junto à co munidade desde fevereiro de 1982 portanto há 16 anos evocando as lembranças de seu primeiro contato com a comunidade nos disse quando fui pela primeira vez foi amor à primeira vista Um lugar lindíssimo um povo acolhedor uma gente boa Acolhida é uma regra de vida São educados generosos de muito respeito Não é submissão É de berço é a criação Sobre a origem da comunidade ela expõe sua versão acredito que seja um quilombo Deve ser um escravo de José Antônio Pereira fundador de Campo Grande que veio com família e escravos Uma descrição das furnas Furnas de Dionísio é um vale em forma de ferradura engastado na serra de Maracaju ladeado de morros altos destacados da serra Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 222 Furnas de Dionísio MS 223 principal É cortado por ribeirões e córregos perenes As terras são férteis Mas a fertilidade encontrase sob o impacto do uso inadequa do de máquinas agrícolas do desmate das bordas dos morros e das margens dos córregos rios e ribeirões A vegetação natural do vale já foi toda derrubada substituída por plantares e pastos Os altos morros serranos no entanto exibem a sua vegetação natural conservada e preservada pela comunidade As matas são ricas em espécies de madeiras nobres como aroeira angico angiquinho capitãodomato cedro jatobá louropreto e piúva e madeiras usadas em construção mobiliário e equipamentos diversos como combaru lixeira guatambu castelo e amendoim Nos cerrados e capões de mato existentes nas bordas dos morros encontramse além de uma variedade de frutos silvestres o bacuri o sapé os cipós o bálsamo com que cobrem as casas e fazem os trançados o pilão e a mãodepilão Furna é a denominação local dos altos morros que se destacam do maciço de Maracaju identificados pelos nomes dos troncos fami liares da formação da comunidade e em cuja base ou proximidades se localizam as moradias de seus descendentes As furnas do Mangue e do Boa Vista são furnas dos Martins e dos Abadio Há ainda a furna dos Silva vertente do Rochedinho e furnas do Lajeadinho dos Abadio e Martins Da serra e das furnas descem os rios em direção ao vale O rio Boa Vista nasce na furna dos Abadio e desce para o Ribeirão que também recebe o Rochedinho que desce na furna dos Silva A furna dos Martins sobe perto da cachoeira que o Lajeado forma ao despen car da furna em que nasce em direção ao vale Nas proximidades da confluência dos rios Boa Vista e Rochedinho no Ribeirão as águas correm sobre rochas encachoeirando sobre as depressões do terreno lugar denominado Passagem À margem esquerda com vista sobre essa cachoeira Dionísio construiu sua primeira casa Segundo dona Sinhana contavam que lá havia uma casa com regodágua monjolo engenho de três moendas casa de farinha fornalha forno cerca dos chiqueiro No local ainda podem ser vistos restos da estrutura grossos esteios de aroeira lavrados e que parecem ter sido cortados talvez para aproveitamento da madeira Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 223 Quilombos 224 Estrutura social A ocupação do espaço das furnas pelas famílias foi culturalmen te determinada Os depoimentos dos informantes evidenciam que a comunidade de Furnas de Dionísio foi historicamente formada de grupos domésticos ligados entre si pelo parentesco Na segunda gera ção filhos e filhas de Dionísio de acordo com as regras instituídas pelo pai de alianças matrimoniais preferenciais com outras comuni dades negras Furnas da Boa Sorte ou com outros grupos familiares de iguais casaramse com parceiros que compartilhavam a pertença racial sob o enfoque da feição regional da sociedade escravista O velho Dionísio chefiou a sua família extensa tipificando e formatando relações práticas com base em sua visão de mundo fundada em tradições africanas conforme evidenciam os dados colhidos sobre a estrutura tradicional da comunidade os quais constituem os funda mentos empíricos desta abordagem etnográfica perspectivada pela noção de grupo étnico Os informantes da sociedade regional que têm convívio na co munidade apreendem o respeito ao pai aos antepassados como um valor estruturante da comunidade Os membros da comunidade enfatizam o poder do chefe de família a autoridade do pai e a prece dência sobre ela da autoridade do avô dos antepassados do ancestral Irmã Terezinha sublinhou em seu depoimento que eles têm um senso do antepassado o que ela considera próprio da raça Enfatizou que são muito tradicionais ilustrando com o fato de que os mais velhos reagiram à igreja à sua construção resisti ram muito à demolição da capela de pauapique pequena e em mau estado Um informante da comunidade ao referir a importância do respei to aos antepassados que deve ser permanentemente explicitado em ritos gestos e etiquetas a serem observados para não desagradá los nem ferirlhes a sensibilidade entre outros fatos aludiu a demolição da velha capelinha de pauapique Muitos foram con trários por considerarem a demolição da igrejinha um agravo aos antepassados Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 224 Furnas de Dionísio MS 225 Acerca do mesmo acontecimento a narrativa de outro infor mante fornece outras referências contextuais da resistência do grupo O sr Abadio plantou uma roça de arroz muito grande O arroz tava que era uma beleza diz que tava bonito mesmo Mas o sol tava mui to e com o sol os cachos começaram a cozinhar Tava nos caso de perder todo o arroz Ele fez a promessa de fazer uma igreja para Santo Antônio o santo que recebeu do pai Não passou dias veio a chuva Choveu no tanto certo Deu arroz e foi muito mas muito mesmo Foi muita fartura Ele morreu sem cumprir com a promessa Os filhos e os irmãos se reuniram pra cumprir a promessa que é assim que deve de ser Os que estão vivo tem obrigação com os mortos tem que dar cumprimento dos compromisso das promessa dos parente que já morreram Venderam uma junta de boi cortaram árvore onde Antô nio mora hoje serraram as tábua e construíram a igreja Todos ajuda ram Era bem feita mesmo Era coberta de telha igual da casa da profes sora Era pequena Quando tinha missa metade ficava de fora muita gente Quando a irmã veio conseguiu recurso e construiu essa que tá aí Derrubou a outra A gente sabe que tava querendo o melhor pra gente Mas a gente tem muito sentimento Outro dia mesmo a gente tava conversando e falamo que podia ter deixado aí não precisava derrubar Teria serventia ficava aí podia guardar coisas Uma geração ligase à outra por compromisso de obediência de prestações e contraprestações Uma geração tem compromisso com a que sucede Uma informante de fora do grupo observou criança não tem abandonada Tios e madrinha assumem Não tem tempo ruim para receber criança E a criança é bem recebida sem problema sem dificuldade não tem diferença A geração tem compromisso com a que precede Mãe pai pa rente que é velho uma filha uma sobrinha cuida num deixa perecer Dona Sinhana e um de seus irmãos que sofreu acidente e teve a perna amputada moram com a filha o genro e os netos na mesma casa As gerações vivas devem obrigações aos antepassados mortos Eles têm uns três cemitérios As pessoas que morrem têm que ser enterradas onde está a família É o costume e todos seguem Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 225 Quilombos 226 Um informante da comunidade ressaltando a importância do respeito aos antepassados disse que os filhos pra tomar uma deci são de mais resultado pedem autorização pros pais mortos Tem que pedir pra ter mais alcance As relações entre as gerações são alternadamente constituídas pelo disciplinamento ou pela afetividade Aos pais cabe educar bem seus filhos de conformidade com as regras culturalmente definidas Para isso podem e devem utilizar os diferentes meios repertoriados na tra dição a palavra persuasiva a palavra impositiva o grito o castigo brando a violência A professora que mora na comunidade há mais de 10 anos nos disse que as crianças são criadas respeitando muito os mais velhos e as autoridades Os pais mais antigos batiam muito nos filhos para impor respeito Um jovem da comunidade declarou aqui a criação é com rigidez Principalmente o pai Por um olhar um gesto qualquer coisa que o pai achar em desacordo o pai bate quanto mais por alguma palavra ou alguma mácriação Aí então é que bate mesmo E se der um pio leva outra surra de relho de chi cote de pau do que o pai quiser O professor Osnei reafirma que não havia liberdade O respei to era imposto pelos pais Introjetado à custa de castigos corporais Ele próprio foi educado nesse sistema Certo dia estávamos informalmente reunidos à sombra de uma árvore conversando enquanto aguardávamos um acompanhante que nos levaria à furna dos Silva do outro lado do Ribeirão Algumas crianças que brincavam de escorrega num monte de terra próximo se acercaram do grupo e começaram a passar no meio da roda mexendo umas com as outras rindo Nenhuma delas cometeu qualquer falta repreensível a nosso ver Contudo sua movimentação de algum modo interferia na roda desviava a atenção dos adultos Uma das senhoras da comunidade começou a incomodarse Demonstrando certo cons trangimento chamou uma de suas filhas que estava a certa distância com uma criança ao colo e brincando com mais duas pequenas e ordenoulhe que tirasse dali as crianças no que foi prontamente aten Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 226 Furnas de Dionísio MS 227 dida Em seguida comentou se fosse meus filho nessa entrevera aí no meio dos mais velho levava uma surra A relação pai e mãe filhos é de modelagem da pessoa para que participe compulsoriamente da vida social em conformidade com as normas É uma relação tensa cerimoniosa A relação avô e avó netos todavia é sempre uma relação de afetividade de ternura de cumplicidade Os avós podem demonstrar aos filhos de seus filhos a tolerância a compreensão a proximidade interditas na relação pais e filhos É uma relação de trocas afetivas prazerosas de carícias relação acolhedora plena de carinho de alegria Dissenos um informante meu pai estudava em Campo Grande no internato Ele fugiu e veio para casa O pai dele quis fazer voltar com surras Ele con tinuou resistindo não queria voltar O avô soube chamou o filho e disse para não forçar a ir Se ele preferia ser surrado em casa do que voltar devia ter uma razão O avô de meu pai disse pra meu avô que se tivesse difícil para criar ele acabava de criar Os laços afetivos entre gerações alternas fortalecidos e reforça dos no contraste com as relações entre gerações consecutivas estimu lam o amor ao antepassado Desse modo a geração consecutiva res peita e cultua os seus pais mortos por obrigação por dever segundo a norma e a geração alterna respeita e cultua seus avós mortos por bem querer por saudade por devoção De acordo com a memória oral dos mais velhos da comunidade Dionísio formou um grupo doméstico patrilocal Quando começou a se formar a quarta geração é que ele passou a determinar o lugar de assentamento das famílias de seus filhos quando já podiam contar com o trabalho de sua própria descendência Ele foi escolhendo o lugar e arranchando os filhos Com o casamento das filhas a regra do pai como centro da auto ridade do poder inicia um processo de formação de linhagens Dionísio enquanto vivo continuava sendo o centro de autoridade continuava a decidir principalmente no que concerne aos grupos fa miliares de seus filhos Sua autoridade estendiase aos grupos familia Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 227 Quilombos 228 res de suas filhas mas a autoridade de seus genros nos seus grupos familiares relativizava esse poder Assim dois de seus filhos e dois de seus genros formaram novos grupos domésticos A união de grupos familiares a esses grupos do mésticos configurou um processo de formação de linhagens refletido espacialmente na identificação das furnas como vimos furna dos Martins Lajeado Mangue furna dos Abadio furna dos Silva Abadio era um dos filhos de Dionísio e Luís José Silva um de seus genros Outro dado cultural que reflete a formação de linhagens é a existên cia de mais de um cemitério na comunidade A missionária apreendeu o fato como um dado indicativo da diferença cultural e os membros da comunidade explicam que se devem enterrar os mortos com seus parentes com seus antepassados Uma e outra colocação são proce dentes mas o sentido dos cemitérios diferentes é referenciado nas linhagens tanto assim que se localizam em seu domínio espacial dentro do território mais amplo da comunidade Como grupos fundamentados na descendência mantiveram a coesão entre si por meio de redes de alianças e trocas matrimoniais Aqui somos tudo parente Ou como disse a missionária casa mento deles é entre eles mesmo Você vê que é uma raça pura de negro Negro legítimo gente bonita Os dados revelam um conteúdo etnográfico que fornece referencial empírico para identificar a estrutura social da comunidade negra de Furnas de Dionísio ao modelo africano de sociedade segmentada ana lisado sob o enfoque das relações de poder por Balandier 1969 an tropólogo francês internacionalmente renomado como africanista As linhagens são unidades constitutivas de outro segmento dife rente em relação aos grupos familiares no caso coexistindo com gru pos domésticos Ao mesmo tempo que se formavam pela união de pessoas de um mesmo tronco genealógico formavam também uma espacialidade distinta dentro do território de Furnas de Dionísio Construção da ancestralidade mítica A situação de alteridade vivida pela comunidade de Furnas de Dionísio no contexto da sociedade nacional fazia com que fossem Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 228 Furnas de Dionísio MS 229 considerados diferentes dos demais negros e identificados como gru po social chefiado por Dionísio Essa canalização de poder também pressionava a estrutura social de fora para dentro reforçando a auto ridade de Dionísio na medida em que tendose tornado o requerente das terras que ocupavam a ele se associava a propriedade da terra Essa pressão de fora para dentro enfraquecia o poder dos chefes de linhagens concentrando poder em Dionísio Para resolver funcionalmente a relação entre as terras dos negros de Furnas de Dionísio e a ordem agrária dominante engendrase um processo de adaptação da estrutura social através do reconhecimento da possibilidade de as linhagens formarem uma mesma descendência a partir de um mesmo ancestral A estrutura social continua segmentária assumindo a forma clânica Os laços de parentesco e o elo territorial se fortalecem mutua mente formandose assim a comunidade negra diferenciada não ape nas pela origem racial mas também por sua forma social e pelo compartilhamento de valores culturais selecionados pelo grupo para serem postos em prática através de formas culturais consideradas definidoras da sua identidade de sua pertença Ser descendente de Dionísio passa a ser no contexto da socieda de regional a condição de pertencimento um critério de afirmação do próprio grupo um critério de inclusão e exclusão Internamente a estrutura social sofre um processo de adaptação identificandose a estrutura clânica como grupo social específico da sociedade regional por ela e nela identificado como comunidade As perdas culturais ao longo do processo são internamente compensadas pelo processo de construção da ancestralidade mítica Esse processo desenvolvese por meio de narrativas que avivam destacam avultam e sobrelevam as qualidades do ancestral distinguindoo entre os an tepassados divinizandoo As narrativas ressaltam o heroísmo e principalmente os poderes sobrenaturais Dionísio não tinha medo de onça ou de bichos peçonhentos não tinha medo de gente enfrentava qualquer perigo Era homem enérgico trabalhador sem medo Um dos valores que mais prezava era o trabalho Segundo dona Sinhana os mais velhos contavam que ele animava todo mundo para o trabalho De manhã Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 229 Quilombos 230 muito cedo acordava os filhos dizendo hoje é feira meus filho ou seja não é sábado nem domingo é dia de trabalho Outras vezes dizia o mato não pára de crescer ou seja quem quisesse ser bem sucedido não podia parar de trabalhar Sabia reza forte sabia controlar os bichos sabia se defender e defender seu povo O ancestral mítico confere à sua descendência um caráter sagrado garantindolhe a perpetuidade de sua herança a indissolubilidade dos vínculos de cada descendente com essa herança A terra emerge como um dos mais significativos componentes dessa herança Assim através do ancestral mítico sacralizase a relação en tre a comunidade e terra unindo os descendentes a ela Ao se aprofundarem as relações capitalistas na região a comuni dade sofre diferentes processos de compulsão em relação à terra to dos eles implicando perdas em diferentes dimensões econômica so cial e política com prejuízos econômicos e simbólicos de grande monta Os mais velhos associam essas perdas tanto à permeabilidade dos mais jovens a outros valores quanto à própria imprevidência de sua geração A comunidade caminhos e descaminhos Nas primeiras décadas do século XX a comunidade vivia ainda em relativo isolamento integrandose ao mercado regional através da venda de sua produção excedente e da compra de produtos essenciais como sal querosene e outros A integração se fazia principalmente com Campo Grande A via gem e o transporte eram feitos em animais ou em carro de bois Era demorado e penoso levando no mínimo dois dias Os homens mais velhos conhecem as furnas andam muito por elas conhecem as trilhas os animais que as povoam a vegetação as minas de água o percurso de córregos rios riachos ribeirões As mulheres não podiam se distanciar muito em suas expedições de cole ta de frutos e plantas medicinais Dionísio e sua parentela constituíam uma unidade de produção Plantavam roças de mantimento algodão cana fumo Criavam gado Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 230 Furnas de Dionísio MS 231 porco e outros animais domésticos Tinham engenho faziam rapa dura açúcar mascavo melado garapa aguardente Produziam fari nha de mandioca beiju polvilho doce polvilho azedo farinha de milho derivados do leite Havia curtume faziam alpercatas bruacas alforje relhos arreios tamboretes As mulheres fiavam teciam fa ziam cobertas colchas de retalho tapetes cerâmica óleo sabão Os homens faziam diversas modalidades de artesanato utilitário de ma deira e compartilhavam com as mulheres os trançados de cipó de taquara de palha A produção para o consumo atendia às necessidades da comunida de indicando um grande domínio técnico A competência técnica permi tiu à comunidade desenvolverse como unidade de produção eficiente capaz de atender às necessidades do grupo com excedente necessário ao suprimento de bens que não eram produzidos internamente A comunidade tornouse uma sociedade de afluência de fartura como de modo geral o foram os quilombos de acordo com os regis tros das bandeiras armadas para destruílos2 Com a morte de Dionísio e a segmentação do grupo doméstico em linhagens começa um processo de desarticulação com reflexos sobre a produção Esse processo foi sendo compensado por práticas culturais de cooperação de solidariedade de reciprocidade Alguns grupos familiares continuando a tradição de trabalho de Dionísio dispunham de renda que lhes permitia manter seus filhos estudando fora inclusive em internato Os produtos de Furnas de Dionísio conquistaram prestígio no mercado regional pela sua qualidade o que lhes garantiu fácil circula ção A qualidade da farinha e da rapadura ainda se mantém facilitan do sua colocação e aceitação no mercado Na década de 1960 com a modernização e o início da expansão do capitalismo urbanoindustrial as mudanças estruturais que se opera vam na sociedade regional alcançaram a comunidade num momento em que estava fragilizada pelo facciosismo entre as linhagens acen 2 Ver Bandeira 1988 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 231 Quilombos 232 tuandose a hierarquização entre os mais fortes os mais tranqüiliza dos os remediados e os fracos É nesse contexto adverso que se inicia o arrendamento das terras entre 1960 e 1970 com o desmate intensivo das bordas da serra e das margens dos rios e portanto graves conseqüências para o meio ambi ente O arrendamento das terras por tantos anos afastou a comuni dade da terra interferiu no processo de socialização na preparação para o trabalho na transmissão de conhecimentos enfim condensou uma pulsão desagregativa com profundas perdas culturais econômi cas políticas sociais e psicológicas para a comunidade e seus membros Paralelamente começa um processo de migração dos jovens em busca do sonho da cidade Algumas famílias venderam sua parcela de terra e foram para a cidade Muita gente mudouse para Campo Gran de fixandose na Vila Santa Luzia na Vila Nasser na Vila São Bene dito comunidade negra urbana de tia Eva Alguns voltaram e de acordo com a regra tiveram o seu acesso à terra assegurado pela me diação da pertença à comunidade Depois de 1970 as famílias que se afastaram do trabalho produ tivo na terra sofreram um empobrecimento cada vez maior Os ho mens tiveram então que se submeter à parceria na própria comunida de com os parentes mais fortes ou mais tranqüilizados Os mais jovens passaram a trabalhar como peões para os fazendeiros vizinhos O trabalho sazonal nas fazendas vizinhas que antes tinha caráter de atividade secundária complementar tornase a principal fonte de renda de muitos A comunidade aqui e agora Dados do levantamento realizado pela Associação de Pequenos Produtores Rurais de Furnas de Dionísio mostram que a comunida de compreende atualmente 58 famílias totalizando uma população de 387 pessoas o que representa uma média em torno de sete pessoas por domicílio As casas de modo geral localizamse no sopé das furnas Na parte central do vale ficam a igreja a escola o posto de saúde e algu mas famílias da comunidade Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 232 Furnas de Dionísio MS 233 Há três tipos de moradia o tipo tradicional de pauapique e cobertura de sapé ou bacuri o mesmo que acari o tipo misto incor porando a construção tradicional com alvenaria e o tipo de constru ção da Fundação Nacional da Saúde que já construiu quatro casas e recuperou oito no programa de controle da doença de Chagas são casas de alvenaria cobertas de telha eternit A comunidade tem três escolas duas rurais municipais e uma estadual de primeiro grau posto de saúde posto telefônico e duas igrejas As escolas e uma das igrejas possuem água encanada Sebas tião um dos líderes da comunidade fez ele mesmo a ligação de água diretamente de uma mina na furna próxima à sua casa com manguei ras emendadas cobrindo uma distância razoável A água cai da man gueira num tanque improvisado Sebastião se orgulha de ter em sua casa água pura límpida e transparente o tempo todo A Fundação Nacional de Saúde acabou de perfurar um poço artesiano no vale próximo ao conjunto formado pela escola munici pal rural de primeiro grau o posto de saúde onde também está ins talado o telefone a igreja católica o salão municipal e algumas mo radias A vazão de água é suficiente para atender à comunidade segundo nos informou um dos técnicos Mas ainda não há recursos previstos nesse exercício para a ligação domiciliar A associação possui em seu quadro 13 produtores que não são da comunidade mas têm propriedade na área Um deles morador antigo segundo os informantes mantém relação de amizade com a comunidade participa da vida comunitária respeitando suas tradi ções culturais é como se fosse um de nós mesmo A maioria man tém relações formais de vizinhança visando assegurar seus interesses econômicos e políticos Um deles identificado pela comunidade como o japonês tem uma fazenda encravada no centro do vale acima da Passagem entre os rios Boa Vista e Rochedinho à margem de uma das estradas que cortam as furnas em área estratégica de circulação de moradores que vão a pé para a escola a igreja o posto de saúde e telefônico bem como de parentes que se visitam ou necessitem tratar de algum assunto ou solicitar ajuda mútua O japonês cercou sua propriedade e proíbe a circulação de pessoas em suas terras Assim a fazenda do japonês tornouse um entrave na ordem social e cultural Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 233 Quilombos 234 comunitária dificultando a circulação pela área obstruindo as trilhas tradicionais impondo uma relação mediada por uma violência sim bólica de forte opressão sobre o território negro e sua comunidade As terras de Furnas de Dionísio incluindo vale e furnas somam mais de mil hectares Segundo informantes Dionísio requereu 904 hectares e a partilha das terras depois de sua morte foi feita entre seus herdeiros alguns dos quais venderam sua parte A situação fundiária porém ainda não foi regularizada Modo de produção A comunidade ainda mantém um modo de produção diferencia do à base do trabalho familiar e de formas culturalmente mantidas de cooperação e ajuda mútua As famílias que descendem de um dos herdeiros da terceira geração plantam suas roças e hortas em comum e às vezes individualmente como família nuclear Em ambos os ca sos a produção depende fundamentalmente da ajuda mútua Ainda persistem na comunidade diferentes formas tradicionais de ajuda mútua genericamente denominadas mutirão Para vencer as dificuldades com o plantio das roças é há muito tempo organizado o mutirão que é um sistema de ajuda mútua em que quem tem roça no sujo chama os companheiros para limpar assim aqueles que participam do mutirão nunca se apertam para deixar no limpo suas plantações3 O sistema tradicional de ajuda mútua compreende três formas principais mutirão propriamente dito coluna e surpresa No mutirão o interessado é quem convida para se fazer qualquer serviço que tiver apertado pra sair mais rápido O dono do mutirão oferece todas as refeições No final do dia os homens cercam o dono numa roda e o levam até em casa cantando patrão tá preso não é pra soltá garrafa e meia pra nós tomá Servese o jantar e o mutirão se encerra com um folguedo com música canto dança e bebida 3 Silva 1997 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 234 Furnas de Dionísio MS 235 Geralmente se dança catira uma dança comum em localidades rurais tradicionais de Minas Gerais Goiás Mato Grosso do Sul e São Pau lo Em Furnas ainda existem os especialistas de marcação do ritmo da dança localmente denominados puxadores de palma do catira Além da catira antigamente se dançava ciranda engenho novo vilão cobrinha lundu Coluna é uma modalidade de ajuda mútua em que a iniciativa é dos participantes Sempre ficase sabendo quando há uma situação que requer cooperação para ser resolvida Muitas vezes por insufici ência de meios para realizar o mutirão conforme as regras tradicio nais não se procede à sua convocação Um parente um compadre mais próximo toma a iniciativa de organizar a coluna da qual tradi cionalmente participavam homens mulheres e crianças mas que atu almente está mais restrita aos homens Os participantes levam o tira refeição matinal e o dono do serviço oferece o almoço A terceira modalidade de ajuda mútua é a surpresa À noite os participantes arrumam as enxadas tramada e na manhã seguinte iniciam o trabalho surpreendendo o dono A atividade econômica básica é a agricultura A maioria dos che fes de família planta sua roça para garantir o sustento Algumas famí lias chefiadas por mulheres com poucos ou nenhum homem para garantir o preparo da roça enfrentam problemas de subprodução Nesses casos práticas culturais fundadas no princípio comunitário da reciprocidade lhes garantem a circulação de bens especialmente alimentos que lhes permitam superar as situações críticas O fluxo de circulação de bens para as famílias nessa situação é regulado pela com binação de dois critérios parentesco e disponibilidade de recursos produção de excedente A ajuda conforme a regra deve ser oferecida pois todos sabem quem está precisando e quando é necessária Nesse caso compete à mulher chamar quem precisa de ajuda e oferecerlhe algum mantimento A segunda alternativa é a mãe de família que está em dificuldades tomar a iniciativa Nesse caso ela faz uma visita a um parente próximo ou a um compadrecomadre em melhor situação e esse gesto por si só instaura o fluxo da reciprocidade pois quem recebe a visita deve oferecer algum produto alimentar para consumo Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 235 Quilombos 236 da família em situação limite de falta de mantimentos Garantir ali mentação mínima para a sobrevivência é em primeira instância obri gação do núcleo familiar em segunda instância é obrigação dos pa rentes em linha ascendente descendente ou colateral em melhor situação e em última instância da comunidade Qualquer membro da comunidade tem garantia de condições mínimas de sobrevivência mediada pela pertença Bandeira 1988 registra essa prática em Vila Bela comunidade negra de Mato Grosso ressaltando a importância desse mecanismo regulador na formação social É importante ressaltar que o acesso coletivo à terra igualitarismo identificado por Marx como um dos princípios constitutivos da for mação social précapitalista ao lado da reciprocidade tem como corolário a coresponsabilidade pela sobrevivência dos membros da comunidade com problemas de subprodução dos meios de vida Esses princípios constitutivos das comunidades rurais negras contrastam seu modo de vida e sua cosmovisão com os da sociedade capitalista tornandoas etnicamente diferenciadas Sua condição de comunidade conforme a autodenominação ou de grupo étnico den tro da sociedade inclusiva é um dos critérios mais significativos de sua identificação como remanescente de quilombo Os traços e práticas culturais de origem africana que ressaltamos não se constituem por si mesmos em critérios de identificação de remanescentes de quilombo O fato de que Furnas de Dionísio as tenha eleito como significativas da vida social do grupo negro no contexto da sociedade escravista é que torna essa comunidade etnica mente diferenciada procurando constituirse numa perspectiva de li berdade de busca de autonomia Barth 1976 Cohen 1969 e Car neiro da Cunha 1987 ao discutirem a questão dos grupos étnicos no interior das sociedades nacionais enquanto minorias em contexto de dominação social econômica política e cultural destacam a iden tidade étnica como um critério de afirmação do próprio grupo num contexto de dominação Glazer e Moyham 1975 ressaltam a etnicidade como qualidade que confere especificidade ao grupo étnico no contexto mais amplo da sociedade envolvente permitindolhe resis tir às pressões assimilacionistas Etnicidade implica uma condição de pertencimento configurando referenciais de inclusão e exclusão Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 236 Furnas de Dionísio MS 237 A etnicidade condensa energia política compondo um vetorial de mobilização no sentido de autoconstituirse como sujeito políti co coletivo Furnas de Dionísio ao construir uma identidade étni ca articulase histórica e culturalmente aos quilombos e à sua tradi ção social É nessa perspectiva que a análise do conteúdo simbólico dessas práticas de ajuda mútua ganha importância levando em conta os ob jetivos deste trabalho O modo de produção familiar4 dos negros de Furnas de Dionísio tende a se desarticular sob a pressão do modo de produção capitalista dominante que o subordina O arrendamento das terras para cultivo de horticultura abriu uma cunha profunda no modo de produção tradicional O arado já havia sido introduzido na década de 1950 e seu uso iniciou um processo de modernização da roça de toco até então utilizada Na comunidade não se usa a queima Todos têm muito medo de fogo Tradicionalmente plantavase arroz durante três anos de pois milho Os restos da roça eram deixados em conformidade com a representação social de que a terra sendo forte promove a reciclagem O que tem deixa que a terra por si devora A terra aqui é forte come tudo Na roça plantamse atualmente arroz milho feijão e mandioca Cultivamse grandes hortas para comercialização do produto em Cam po Grande Com esses cultivares iniciados com o arrendamento foi introduzido o uso de máquinas agrícolas e agrotóxicos O desmate da vegetação ciliar de áreas de declive acentuado e o uso de máquinas sem a devida assistência técnica vêm provocando um processo de crescente erosão e assoreamento dos córregos Há dois tipos de erosão a voçoroca que vem abrindo valetas profundas nas áreas mais baixas e a localmente denominada olho de boi que abre buracos circulares nas áreas mais altas Com o declive das áreas desmatadas nas encostas das furnas a chuva batendo no solo forma enxurradas que vão carregando o solo em direção aos leitos dos ria 4 Ver Sahlins sd Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 237 Quilombos 238 chos córregos e ribeirões No centro do vale onde se acham a escola a igreja e o posto nas casas próximas podemse observar árvores fru tíferas de porte com suas raízes expostas A perda do solo agricultável apresentase como um dos mais graves problemas da comunidade ao lado dos problemas de saúde Outro problema são os atravessadores A maior preocupação dos produtores é no momento de vender os seus produtos pois en frentam os atravessadores que compram por um preço baixo ou co bram um frete muito caro para levar e ser vendido em Campo Gran de Isso leva quem produz a ter pouco lucro no que produz Hoje se sonha com um caminhão para poder vender todos os produtos sem ter que se preocupar com o frete5 Outros produtos de grande aceitação no mercado são a rapadu ra a rapadura de massa e a farinha de mandioca São produtos de qualidade e como salientamos anteriormente de grande aceitação Muitas famílias têm nessa produção seu principal meio de vida Algumas famílias criam umas poucas reses de gado alguns cava los ou burros mas a maioria cria porcos e galinhas Antes da compe tição dos produtos industrializados havia um repertório rico e varia do de produtos caseiros como doces e derivados de leite milho ou mandioca Ainda não desapareceram de todo mas já não há mais a mesma fartura O conhecimento das técnicas partilhado por mulhe res e homens com mais de 50 anos tende a desaparecer A perda cultural empobrece a comunidade sob diferentes aspectos O princi pal deles é o aprofundamento da dependência com reflexos sobre o desenvolvimento da comunidade e sobre seus esforços de autogestão A transição do modo de produção tradicional para o modo de pro dução capitalista inerente ao processo de integração tem sido dolo roso para as gerações mais velhas impotentes ante as perdas culturais crescentes ante o desenraizamento cultural e o apagamento da me mória Tem sido igualmente doloroso para os mais jovens cada vez mais expostos à expropriação inclusive de sua identidade étnica fon 5 Silva 19972 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 238 Furnas de Dionísio MS 239 te de autoestima escudo contra a contaminação da folclorização e da estigmatização A energia elétrica trouxe os sonhos de consumo dos elétrico eletrônicos Os mais novos preferem trabalhar como peões nas fazen das vizinhas Como diaristas recebem pouco mas em dinheiro o que lhes permite definir um horizonte de tempo mínimo para poder con sumir esses bens São empregados temporários diaristas ganhando R10 por dia contratados para roçado vacina transporte de gado Alguns traba lham com meeiros Recebem a terra limpa e veneno Plantam lim pam colhem e entregam a metade da produção Os mais velhos expressam suas preocupações nos seus depoi mentos Os jovens estão iludidos com o dinheirinho que ganham como diarista e gastam fácil a bebida está sendo um atraso dos jo vens Gastam à toa Silva 19971 um jovem da comunidade vê a questão de um ângulo diferente alguns trabalham para pessoas vizinhas É pouco o mercado de trabalho sendo necessário alguns jovens saírem para tra balhar fora da comunidade O fascínio e a sedução da cidade grande são um fator de atração para os jovens promovendo a migração Alguns vão e voltam outros permanecem ainda que com pouca ou nenhuma chance de emprego Poucos foram os que migraram e tiveram alguma oportunidade com o apoio dos parentes que ficaram de parentes que moram na cidade de um ou outro parente com amigos influentes A atividade de coleta ainda é significativa tanto do ponto de vista econômico de complementação da dieta alimentar quanto do ponto de vista da transmissão de saberes sobre a natureza e o meio ambiente As expedições de coleta de frutos são em geral lideradas por mulheres mais experientes auxiliadas pelas mais jovens Delas participam jovens e crianças de ambos os sexos Saem de manhã bem cedo para catar guabiroba macaúba frutos diversos que as matas próximas e o cerrado garantem nas diferentes estações do ano Nessas expedições as crianças aprendem a conhecer as trilhas a se orientar a distinguir e reconhecer os diferentes animais e plantas as espécies comestíveis venenosas ou medicinais a se relacionar com Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 239 Quilombos 240 a natureza visível e invisível Aguiar 199873 ao abordar a edu cação em Barra da Aroeira comunidade negra de Tocantins exa mina a dimensão pedagógica do costume local de caminhar entre as matas em busca de diferentes objetivos às vezes impalpáveis e indefinidos ressaltando o seu conteúdo educativo Essas cami nhadas como ele bem mostra dão suporte à transmissão do saber da comunidade Tradicionalmente os homens de Furnas de Dionísio também realizavam caminhadas pelas furnas ora para caçar ora para extrair algum produto ora para tirar mel ora sem objetivo claramente defi nido mas isso representava também um reconhecimento do territó rio uma vigilância de seus limites uma defesa simbólica de sua integridade Sebastião de 73 anos enfatizou que os homens ainda andam muito pelas furnas A partir dessa sua observação é que foi possível explorar os acontecimentos as lembranças de homens e mu lheres relacionados com caminhadas pelas matas pelo cerrado pelas furnas e assim distinguir entre as andanças de homens e de mulheres nas suas terras Crenças Há duas religiões oficiais Assembléia de Deus e católica A pri meira de introdução recente tem o seu templo localizado nas proxi midades da furna dos Silva e vem conquistando adeptos embora en contre muita resistência Eis como Silva 19974 membro da comunidade vê a introdu ção dessa igreja na comunidade Nas últimas décadas surgiu uma nova igreja a Assembléia de Deus que segundo as pessoas da comu nidade dividiu o povo devido à doutrina que vai contra a tradição cultivada desde os tempos dos antepassados Os crentes buscam uma perfeição muito grande criticam o uso de bebida alcoólica os bailes os santos dizendo ser contra a vontade de Deus A religião dominante é a católica e a igreja como já vimos loca lizase no centro da área Dispondo de um salão paroquial e de ins trumentos e aparelhagem de som a igreja é o principal centro de vivência da comunidade Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 240 Furnas de Dionísio MS 241 O vigário da paróquia Dom Bosco Campo Grande responsá vel pela área de Furnas em visita pastoral à comunidade no início da década de 1980 julgoua abandonada carente de assistência reli giosa uma vez que a religiosidade é um de seus traços marcantes Esse traço tem sido historicamente observado em comunidades rurais ne gras estando também documentado no relatório da bandeira que bateu o quilombo de Quariterê no final do século XVIII em Vila Bela Mato Grosso6 O vigário solicitou à Congregação Salesiana a indicação de uma irmã para o trabalho de catequese junto à comunidade A irmã Teresinha foi indicada e aceitou o ministério como uma missão Ini ciou em Campo Grande e na comunidade uma bemsucedida campa nha para angariar fundos para a construção da capela Sensibilizando as lideranças de mais respeito e conquistando o apoio das mulhe res construiu a igreja em 198485 com instalações sanitárias e em seguida o salão paroquial Durante a edificação da igreja ajudou na construção da moradia de uma viúva que morava próximo à igreja em condições muito precárias Irmã Teresinha é muito querida e respeitada na comunidade tendose tornado uma referência Ao longo de 16 anos vem desenvol vendo seu trabalho missionário Apoiou a organização da Diretoria da Capela grupo de jovens para assumir a instrução religiosa refor çou as lideranças religiosas tradicionais e estimulou a afirmação de líderes jovens Sob as práticas religiosas oficiais contudo fluem as práticas tra dicionais que o culto ao santo articulam O santo de devoção da comunidade é Santo Antônio cuja festa envolvia um complexo ritual de redistribuição todos colaboravam com bens para a realização da festa e todos partilhavam coletivamente a comida com coroação de rei e rainha rezas mastro No mastro prendiamse pencas de laranjas escolhidas as mais bonitas e na cabeça do mastro encimando a ponta sobre o estan darte de Santo Antônio colocavase uma boneca de pano vestida de 6 Ver Bandeira 1988 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 241 Quilombos 242 roupa branca Os informantes só sabem da tradição de colocar a bo neca que é assunto dos antigos Não atribuem a ela outro sentido que não o da memória dos antepassados da continuidade de seus costu mes Eles faziam assim assim deve ser feito A boneca vestida de branco é um signo de práticas mágicoreligiosas de origem africana No caso estando associada ao culto do santo da comunidade ela é uma representação simbólica de divindade africana Além de Santo Antônio cultuam também São Benedito Nossa Senhora do Rosário Santa Luzia Santa Bárbara São João São Se bastião quase todos associados a divindades africanas no sincretismo religioso afrobrasileiro Com o trabalho missionário foi introduzido o culto a Nossa Senhora Aparecida Além desses santos de devoção coletiva algumas famílias dos mais velhos têm santo de casa Tão importante quanto o culto aos santos é o culto aos mortos o culto aos antepassados que faz dos cemitérios um lugar sagrado o lugar onde as cruzes marcam seus assentamentos O culto envolve crenças e ritos A crença fundamental é que os mortos depois de uma passagem se transformam em espíritos iden tidades sobrenaturais que devem ser cuidadas pelos vivos Cabem a seus descendentes diretos esses cuidados Há certos momentos de liminaridade entre o mundo sensível e o invisível quando se esmaecem os limites entre a temporalidade do mundo dos vivos e a intemporalidade do sagrado do mundo dos santos do mundo dos mortos do mundo dos sobrenaturais Tais momentos correspondem às seis horas da manhã romper do dia ao meiodia às seis horas da tarde crepúsculo e à meianoite São horas santas horas perigosas horas de ficar em silêncio Meiodia é hora do céu a porta está aberta É bom parar fazer silêncio rezar pras almas Na hora de comer a regra é comer sem conversar mui to se não Nossa Senhora não vem abençoar Meianoite é hora dos mortos Por isso não se deve andar à noite os espíritos dos mortos assombram os vivos O medo dos mortos de seus espíritos pensados como entidades é generalizado Temese que eles queiram ficar entre os vivos perturbando a ordem cosmológica Há também a crença em possessão de vivos pelos espíritos dos mortos Sempre tinha história Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 242 Furnas de Dionísio MS 243 de espírito apossar Apossa a pessoa que talvez não esteja bem Aí fica fora de si Nesse caso só alguém com força pode ajudar O culto aos mortos envolve ritos de oferendas de comida e bebida no cemitério De repente sonha com o morto ou tem visão ou lembrança forte põe uma garrafa de água no pé da cruz no cemitério A crença nos espíritos dos mortos não corresponde pro priamente à crença nas almas A concepção de espírito do morto é diferente da concepção cristã de alma como dimensão espiritual do homem separável do corpo biológico imortal Podese estabelecer uma correlação entre os eguns dos cultos afrobrasileiros e os espí ritos tais como os negros de Furnas de Dionísio os concebem como entidade isto é não como dimensão ou essencialidade mas como totalidade expressão sobrenatural do vivo em estado ou condição diferenciado Entre a morte biológica e a condição de espírito de antepassado há um estado liminar uma passagem de sete dias em que a alma o morto permanece entre os vivos podendo perturbarlhes a cabeça ou contaminálos com a morte Para manter os limites entre o visível e o invisível praticase o rito de acender uma vela no local onde se deu a morte e mantêla acesa durante sete dias e sete noites Findo o período de resguardo das fronteiras entre a vida e a morte a vela é levada ao cemitério Põese a cruz na sepultura a vela acesa ao pé da cruz e procedese ritualmente ao assentamento do morto no seu mundo assumindo a condição de antepassado Esses ritos são acompanhados de cantos especiais Quando a morte biológica se aproxima ou acontece põese a vela na mão da pessoa e puxase o canto para morrer iniciando o rito de passagem No cemi tério jogamse três punhados de terra e ramo seco na cova colocam se a cruz e a vela ao seu pé e tiramse os cantos próprios para encerrar o rito de passagem e garantir que o espírito vá em paz Ao nascer a entrada de um novo ser no mundo também envolve um rito de passagem uma espécie de noviciado de estabelecimento no mundo dos vivos Também há cantos para nascer Além dos ritos de defumação de colocar a tesoura aberta em baixo da cama para cortar a língua da bruxa entidade malévola que costuma chupar a vida de recémnascidos pelo umbigo a criança deve permanecer sete Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 243 Quilombos 244 dias sem sair de casa O tempo de passagem para a vida e para a morte tem duração simétrica sete dias Passado esse tempo esperase a lua nova quando a mãe mostra a criança e os panos dizendo Lua nova lua nova eu tenho esse meni nomenina procê me ajudá a criá eu crio com meu leite e você com seu luá Essa fala tem que ser repetida três vezes e a cada vez a criança tem que ser erguida em decúbito dorsal em direção à lua Para nascer para morrer para louvar os santos e os antepassados para selar promessa e desmanchar promessa há rezas e cantos especí ficos configurando uma posição e uma função social especializada e de prestígio tradicionalmente reservada aos homens mas que vem sendo adaptativamente assumida por mulheres a função de rezador rezadeira A rezadeira tem que conhecer não somente o repertório de rezas cantos e fórmulas como também os detalhes posturais adequa dos tanto os seus quanto os dos participantes uma vez que lhe cabe instruílos e zelar para que as técnicas rituais sejam corretamente mantidas e atualizadas nas práticas Outra posição especializada de grande prestígio é a do benzedei robenzedeira que cura certos males com rituais de benzeção ou com plantas ou que tira e põe feitiço O benzedeiro pode ser especia lista em apenas uma dessas modalidades ou em duas ou mesmo em todas dependendo de sua aptidão do treinamento do poder do mes tre de sua força Também essa posição era tradicionalmente restri ta a homens mas a morte dos grandes mestres sem que transmitissem seus saberes a um sucessor bem como as mudanças estruturais ocor ridas no processo de produção levaram à fragmentação do conheci mento e ao desdobramento da especialidade Atualmente a benzedei ra mais competente da comunidade benze dor de dente quebranto vento virado espinhela caída Há ainda benzedeiros que benzem ro ças para livrála de pragas feridas bicheira De modo geral a benzeção envolve reza ou recitação de fórmulas acompanhada de gestos apropriados com galhos igualmente apropriados ao tipo de mal que se quer curar Através do ritual o ramo fica impregnado do mal devendo portanto ser jogado na água corrente que tem o poder de rodar o mal ou em direção ao sol poente que tem o poder de carregar o mal ou então queimado pois o fogo tem poder de con sumir o mal Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 244 Furnas de Dionísio MS 245 A crença no feitiço ainda é resistente embora escamoteada Não gostam de falar no assunto mas admitem que há feitiço e que têm medo Os mais velhos lamentam o declínio do poder dos especialistas e que a comunidade tenha perdido a continuidade de sua força atualmente fragmentada Os dados colhidos indicam a extraordinária riqueza da concep ção de mundo do pensamento mítico e das crenças que a tradição da comunidade ainda mantém embora já se possa perceber com clare za a força do processo de perda cultural ora em curso Mesmo mos trando apenas a ponta desse imensurável iceberg os dados de nossa pesquisa de campo são suficientes para identificar o paradigma afri cano da ordem invisível como alicerce sobre o qual incorporando crenças e influências religiosas de outras matrizes culturais os ne gros de Furnas de Dionísio constroem sua percepção de mundo e do seu ser no mundo A conservação de elementos de culturas africanas como já res saltamos anteriormente não é determinante na caracterização históri coantropológica de uma comunidade rural negra como remanescen te de quilombo Não pode contudo ser ignorada nem relegada a segundo plano num trabalho como este porque deverá circular em duas mãos na sociedade mais ampla pelos caminhos oficiais do pro cesso de titulação da terra e na comunidade pelas trilhas do seu ser no mundo da sua percepção étnica em que consciência de ser e co munidade etnicamente diferenciada não se separam e da sua auto estima resgatando suas origens sua percepção categorial imediata espontânea préreflexiva intrínseca à sua cotidianidade que lhe for nece referências para o viver imediato resgatando sua história sua resistência suas lutas seus bens culturais como dimensão indissociável de sua cidadania Educação escolar A comunidade tem três escolas A mais antiga é a Escola Muni cipal Rural de 1o Grau Lajeadinho a que tem o maior número de alunos matriculados no município de Jaraguari polarizando as de Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 245 Quilombos 246 mais do distrito a que pertence A escola iniciou seu funcionamento precariamente no início da década de 1980 A comunidade conse guiu que a prefeitura contratasse uma professora e construísse uma escola de madeira em 1986 num terreno doado por Sebastião Abadio um dos chefes de grupo doméstico mais respeitados e um dos líderes políticos da comunidade Em 1997 a escola tinha 46 alunos matriculados em dois turnos em regime multisseriado O prédio escolar tem uma sala uma cantina e dois banheiros A comunidade vem fazendo gestões junto à prefei tura para ampliar e melhorar as instalações Além disso pretendese que a escola deixe de ser multisseriada centralizando as atividades da Escola 13 de Maio e da escola de Paratudo que seriam desativadas Lutase também por transporte escolar Atualmente os alunos têm que caminhar alguns quilômetros até a escola quatro deles que mo ram mais distante vêm a cavalo No período matutino funcionam a 1a e 2a séries e no período vespertino a 3a e 4a séries Segundo a professora seu maior problema é a 1a série pois o regime multisseriado dificulta e limita o trabalho de alfabetização na medida em que não permite o acompanhamento dos alunos Recentemente a professora participou de um curso de alfabeti zação de orientação construtivista Porém sem contar com orienta ção nem material didático apropriado não se sentiu segura para mu dar a metodologia e usando de bom senso continua a trabalhar com o método silábico Os livros didáticos que ela recebe esporadicamente são ultrapas sados e preconceituosos como os de autoria de Lucinda Passos Albani Fonseca e Marta Chaves da Editora Scipione ou monoculturalistas como os livros de estudos sociais sobre Mato Grosso que reprodu zem a invisibilidade do negro como sujeito da história como prota gonista do processo de construção social e econômica do estado des de o século XVIII quando teve início o processo de ocupação de suas terras O diretor de Lajeado visita a escola de Furnas mensalmente É negro padre e já trabalhou no local antes de se ordenar O envio de material didático pela prefeitura é intermitente e insuficiente Em Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 246 Furnas de Dionísio MS 247 1997 como a escola recebeu poucos cadernos e lápis os alunos tiveram que adquirilos A escola não tem recebido material de apoio como cartolina lápis de cor pincel atômico mapas globos etc Assim a irmã Teresinha tem procurado obter doações em Campo Grande A professora formada em magistério de 2o grau vem fazendo vários cursos como o de capacitação em alfabetização em 1983 o de atualização para professores de 1a a 4a séries em 1988 e o de capacitação de professores de classe multisseriada em 1993 Há lon gos anos residindo na comunidade numa casa de madeira de quatro cômodos ao lado da escola a professora que é branca construiu fortes laços de amizade na comunidade Ela observa que as crianças são criadas com respeito aos mais velhos e aos antepassados Mas os jovens casais criam seus filhos com maior liberalidade sem a mesma rigidez de antigamente Os adoles centes já começam a manifestar sua rebeldia em relação às normas tradicionais As moças vão para Campo Grande geralmente em busca de oportunidades de trabalho que não encontram a não ser como empregada doméstica Algumas entretanto conseguem conciliar o trabalho com os estudos e não voltam Já os rapazes como já registra mos preferem a peonagem A maioria dos que migram para Campo Grande ou vive de subemprego ou retorna à comunidade Na avaliação da professora os alunos encontram maior dificul dade na 1a série pelos seguintes motivos a maioria dos pais não tem instrução suficiente para acompanhar os filhos e darlhes assistência a criança não dispõe em casa de material auxiliar a alimentação não é adequada é costume preparar os alimentos com banha de porco e a dieta à base de farináceos é pobre em proteínas vitaminas e sais mine rais Os alunos que contam com acompanhamento dos pais apresen tam um bom desenvolvimento Música dança e linguagem são as áreas em que as crianças apresentam melhor desempenho A maior dificuldade é com os números o que mostra o distanciamento entre a educação escolar e experiência das crianças Observamos que elas cal culam distância peso volume de modo bem aproximado e são capa zes de fazer cálculos no cotidiano A professora salienta que as crian ças são falantes e se comunicam muito bem Algumas no entanto demonstram muita timidez Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 247 Quilombos 248 A escola fornece merenda aos alunos Em 1993 e 1994 segundo a professora o município se encarregava da aquisição da merenda Atualmente os ingredientes vêm da Fundação de Assistência ao Es tudante FAE com a mediação do município Em 1997 receberam o ano inteiro arroz feijão macarrão farinha óleo leite achocolatado e em menor quantidade charque almôndega e bolachinha além de uma vez ou outra cebola alho e sal Açúcar e chá vieram em pouquíssima quantidade Em 1993 e 1994 segundo a professora o município se encarregava da aquisição da merenda e a escola recebia sopa massas ovos frango massa de tomate Atualmente a comunidade vem reforçando o cardápio contribu indo com verduras ovos e outras misturas A merenda é servida às 9h e às 15h Quem prepara é uma senhora da comunidade contrata da pela prefeitura e que acumula as funções de merendeira e faxineira O material de limpeza também é enviado parcimoniosamente exi gindo uso controlado Quando ele acaba a faxineira e a professora têm às vezes que contribuir com algum sabão para a limpeza da cozi nha Tendo iniciado suas atividades na década de 1980 a Escola 13 de Maio também funciona em regime multisseriado e atende às crian ças que moram nas cercanias da saída do vale Após a conclusão da 4a série os jovens não tinham como continuar seus estudos A comunida de conseguiu junto à prefeitura de Jaraguari um ônibus para transportar os estudantes até lá o ônibus parte às 9 horas e retorna às 18 O número de repetência e evasão foi muito alto Silva 19973 faz uma crítica pertinente aos resultados dessa tentativa nunca foi feito nada para se saber os verdadeiros motivos que levavam isso a acontecer Em 1995 assumiu a pasta da Secretaria de Educação do estado o professor Aleixo Paraguassu A comunidade reivindicoulhe a in trodução do ensino de 5a a 8a séries para suprir o déficit escolar Como negro e político Paraguassu buscou atender à demanda com uma experiência de educação a distância pelo sistema de teleducação Por falta de conhecimento da realidade em que iria trabalhar o pro jeto fracassou O prédio da Escola Estadual construído pela Secretaria de Edu cação foi equipado com cozinha industrial para servir também à co munidade Silva 19973 assim traduz o significado dessa conquista Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 248 Furnas de Dionísio MS 249 da comunidade a Escola Estadual de Zumbi dos Palmares é um sonho que se tornou realidade para todas as famílias que têm vontade de ver seus filhos terem pelo menos o 1o grau completo Osnei B da Silva primeiro membro da comunidade a se graduar em filosofia foi emergencialmente aproveitado como professor con vocado modalidade precaríssima de contratação ainda na gestão de Paraguassu O secretário garantiu professores habilitados para todas as disciplinas Vinham diariamente de Campo Grande davam suas aulas e voltavam Após o afastamento de Paraguassu da Secretaria seu sucessor nomeou para a diretoria da escola uma professora branca e tirou Osnei do cargo invocando impedimento legal pela sua con dição de professor temporário A diretora ressaltou em seu depoi mento que para quem vem de fora a franqueza choca parece agres siva ofensiva Os alunos andam muito juntos prezam os laços de parentesco São explosivos brigam entre si Acabou a briga tudo bem não guardam rancor A secretária da escola salientou que os alunos têm a qualidade de não serem ambíguos Em certa ocasião substituíram a aula de educação física por uma aula de história sem ouvir os alunos Metade da sala se retirou não aceitando a imposição Tentando remediar a situação a diretora le vouos de volta à sala explicou o motivo da troca e disse que quem não estivesse satisfeito podia sair Um aluno levantou pegou o mate rial assinou a advertência e foi embora No outro dia voltou como se nada tivesse acontecido A diretora não está preparada para lidar com essa postura contestatória Logo que chegou enfrentou resistência pelo afastamento de Osnei da diretoria Embora se sentindo afetado o professor cumpre dignamente suas tarefas sem dificultar o trabalho da diretora mas também sem demonstrar subordinação aquiescente Em 1977 a escola tinha um total de 62 alunos matriculados apre sentando um índice de pouco mais de 14 de evasão Problemas no setor de saúde Embora a comunidade conte com um posto de saúde não há assistência médica sendo necessário buscar atendimento em Campo Grande Rochedinho ou Jaraguari Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 249 Quilombos 250 Os principais males em Furnas de Dionísio são a doença de Chagas a anemia falciforme e a hipertensão havendo grande incidên cia de derrames A Fundação Nacional de Saúde iniciou como já dissemos um projeto de erradicação do transmissor da doença de Chagas com a construção ou reconstrução das casas da comunidade O atendimen to feito até agora não chega a alcançar 10 do total previsto Uma equipe de pesquisadores da área de farmácia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul começou a desenvolver um projeto para o diagnóstico de anemia e enteroparasitoses O atendimento às demandas de saúde está longe de garantir à comunidade de Furnas de Dionísio a assistência necessária Embora conte com duas agentes de saúde a comunidade conta mesmo é com as suas formas tradicionais de atendimento nesse campo A comunidade em movimento Com o apoio do Grupo Tez da Pastoral da Terra e da missionária que ali atuam iniciouse um movimento comunitário no sentido de encaminhar as reivindicações aos poderes constituídos O trabalho de mobilização encontrou suporte na resistência característica da comu nidade Em 1989 fundouse a Associação de Pequenos Produtores Rurais de Furnas de Dionísio de que participam produtores da co munidade negra e brancos que têm propriedades na área Os associa dos da comunidade no início não priorizaram o poder político adstrito aos cargos da diretoria tendo a minoria branca alçada ao cargo de presidente Newton Ferreira da Silva membro da linhagem dos Silva foi formando a sua liderança na comunidade tendo sido eleito presi dente e reeleito nos termos estatutários Assessorado pelo movimento negro e outras entidades de apoio Newton vem desenvolvendo um trabalho consistente e conseqüente Em 1989 introduziu o curso de alfabetização para adultos ministrado por professores de Campo Grande Em 1990 conseguiu trator para preparar a terra para o plan tio das hortas e obteve a colaboração de técnicos da Empaer para instruir sobre os cultivos Em 1992 a associação conseguiu com o Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 250 Furnas de Dionísio MS 251 governo outro trator verificandose assim o aumento da produção principalmente das hortaliças destinadas à comercialização De 1993 a 1997 a associação obteve as seguintes conquistas aquisição de um trator equipado doação de um terreno para a sede feita por Palmira Ferreira e Joaquim Luiz da Silva máquina de beneficiar arroz 22 transformadores e rebaixamento da energia elétrica para atender a 54 domicílios engenho comunitário equipado com tachos para a fabri cação de rapaduras instalação de uma cozinha industrial na Escola Zumbi dos Palmares com apoio da Fundação Banco do Brasil posto telefônico com o apoio da prefeitura e da Telesul construção do prédio da escola estadual e da casa da secretária treinamento da Uni versidade Federal de Mato Grosso do Sul para formação de um apiário com 10 associados programa de combate à doença de Chagas perfu ração de poço artesiano na escola construção de uma ponte pelo Dersul aquisição de uma caminhonete início da pesquisa de anemia falciforme por equipe médica da UFMS Para 1998 a pauta da associação incluía reforma do posto de saúde construção de sua sede recursos para corrigir o solo ambulân cia para atendimento ao posto de saúde incentivo a professores da comunidade e caminhão para transporte da produção A organização da comunidade vemse mostrando uma via eficaz de encaminhamento de suas demandas à prefeitura ao governo do estado e ao governo federal O problema da titulação da terra conti nua sem solução Assegurar à comunidade de Furnas de Dionísio o título definiti vo de suas terras é fator primordial para sua continuidade A titulação da terra tem como corolário a dotação de recursos para uma operação de salvamento pois Furnas de Dionísio é hoje uma comunidade agrí cola em perigo Referências bibliográficas Aguiar Carmem Maria Educação natureza e cultura um modo de ensinar São Paulo FEUSO 1998 Tese de Doutorado Arquivo Público Estadual de Mato Grosso do Sul Como se de ventre livre nascido fosse Mato Grosso do Sul 1993 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 251 Quilombos 252 Assis Edvaldo de Contribuição para o estudo do negro Cuiabá UFMT 1988 Bandeira Maria de Lourdes Território negro em espaço branco São Paulo Brasiliense 1988 Terras negras invisibilidade expropriadora Textos e Debates UFSC Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Interétnicas 127 121990 Terra e territorialidade negra no Brasil contemporâneo In XV En contro Anual da Anpocs Caxambu Minas Gerais 1991 et alii Negros parentes e camponeses identidade na fronteira pio neira de Mato Grosso Brasil In VI Congresso Internacional da Aladaa Havana Cuba 1989 et alii Mato Grosso a terra no discurso das leis 18501930 Cader nos do Neru Cuiabá ICHS UFMT 2 dez 1993 Sodré D Triana de V O Estado Novo a reorganização espacial de Mato Grosso e a expropriação de terras de negros Cadernos do Neru Cuiabá ICHS UFMT 2 dez 1993 Balandier Georges Antropologia política São Paulo USP 1969 Barth F Los grupos étnicos y sus fronteras México Fondo de Cultura Económica 1976 Campestrini H Guimarães A V História de Mato Grosso do Sul 3 ed Campo Grande Academia SulMatoGrossense de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul 1991 Carneiro da Cunha Manuela Antropologia do Brasil São Paulo Brasiliense 1987 Cohen Abner Custom and politics in urban Africa London Routledge and Kegan Paul 1969 Corrêa Filho Virgílio História de Mato Grosso Rio de Janeiro INLMEC 1969 Ferreira Jurandyr Pires Jaraguari In Enciclopédia dos municípios brasileiros Institu to de Geografia e Estatística IBGE Rio de Janeiro 1958 v 35 Fortes N EvansPritchard E E Sistemas políticos africanos Lisboa Fundação Gulbenkian 1940 Geertz Clifford A interpretação das culturas Rio de Janeiro Guanabara 1978 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 252 Furnas de Dionísio MS 253 Glazer N Moyham D P eds Ethnicity theory and experience Harvard University Press 1975 Sahlins Marshall The domestic mode of production the structure of underproduction In Stone age economics Chicago AldineAtherton sd Silva Osnei B da Um pouco da história de Furnas de Dionísio 1997 mimeog Siqueira Elizabeth Madureira et alii O processo histórico de Mato Grosso Cuiabá Guaicurús 1990 Volpato Luiza R R Cativos do sertão vida cotidiana e escravidão em Cuiabá em 1850 1888 São Paulo Marco ZeroUFMT 1993 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 253 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 254 Na fronteira amazônica os segmentos negros junto aos rios Trom betas e seu afluente ErepecuruCuminá constroem sua identidade atra vés de uma adscrição étnica determinada por sua origem e formação mantêm uma atuação orientada por seus valores básicos além de de marcarem seus limites de pertença ao grupo como alguma coisa que se encontra dentro ou fora1 Nossa prática de pesquisa antropo lógica junto a esses segmentos negros originários dos quilombos tem permitido questionar não só as visões do senso comum como também a de estudiosos que consideram os quilombos como espaços fechados o que nos obriga a considerar conjuntos relacionais mais amplos Desde 1992 os estudos realizados nas comunidades negras ru rais remanescentes de quilombos quer do rio Trombetas quer de seu afluente ErepecuruCuminá têm nos permitido afirmar através do estabelecimento de uma relação etnográfica específica que a iden tidade étnica desses grupos definida por uma presumida procedência comum dos quilombos não se construiu a partir de alguma situação de isolamento geográfico ou social Ao contrário tal isolamento parece decorrer de situações novas impostas por processos identificados como de globalização e suas 1 Barth 2000 C A P Í T U L O 7 Os Quilombos do Trombetas e do ErepecuruCuminá Eliane Cantarino ODwyer Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 255 Quilombos 256 conseqüências a implantação de um grande projeto de extração mi neral em seu território e as ações de vigilância e controle sobre os grupos negros do Trombetas e do ErepecuruCuminá Tais ações são realizadas através de uma política de preservação ambiental que define as práticas culturais desses grupos como transgressões à le gislação2 O centro administrativo desse complexo industrial denominado Porto Trombetas emerge no imaginário da população local como uma cidade construída no meio da floresta Circula entre as comunida des negras do Trombetas e de seu afluente ErepecuruCuminá uma declaração sempre citada o que faz dela um enunciado cultural e atribuída ao profeta Balduíno autoridade espiritual reconhecida pelos membros dessas comunidades como uma predição feita antes da sua morte de um evento sem precedentes confirmado anos depois pelos seus conterrâneos sobre uma grande cidade iluminada que emerge no meio da floresta A formulação de identidades distintas é efeito neste caso não de um sistema cultural exclusivo mas de imagens construídas em um contexto de referências interculturais em que os envolvidos encon tramse em complexas relações de poder e resistência Desse modo a experiência cultural desses grupos é construída por sua inserção em um universo social mais amplo a partir de eventos que transcendem os limites do âmbito local mas que afetam as respostas locais aos processos de exploração florestal em larga escala atuando na imple mentação de políticas públicas impondo ambas novas formas de gestão e controle sobre o território ocupado por esses grupos Esses grupos que se definem legalmente como remanescentes de quilombos e que vivem em territórios separados no alto curso do rio Trombetas e de seu afluente ErepecuruCuminá costumam prati car segundo nossa experiência etnográfica formas de isolamento de fensivo quando da entrada de estranhos nas localidades em que vi vem criando uma série de dificuldades de acesso às pessoas de fora até quando as intenções destas são definidas em termos de conheci 2 ODwyer 1995 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 256 Os Quilombos do Trombetas e do ErepecuruCuminá 257 mento A localização espacial desses grupos distribuídos nas chama das comunidades termo usado aqui em seu sentido empírico segun do denominação deles próprios situadas ao longo das margens no alto dos rios e alcançáveis somente através de transporte fluvial inexistem linhas regulares de barco para a ligação com a cidade de Oriximiná onde periodicamente vendem seus produtos principal mente a castanha e adquirem alguns bens necessários ao consumo constitui fator que pode funcionar na prática em determinados con textos sociais e políticos como um limite espacial usado para manter uma relativa distância física das suas famílias reunidas em unidades residenciais localizadas no alto dos rios e em áreas de maior circula ção principalmente a sede municipal que visitam periodicamente Em Oriximiná é possível observar o encontro de diferentes comunida des ribeirinhas e outros grupos étnicos e sociais Por conseguinte a configuração espacial desses grupos do alto curso dos rios cujo relativo isolamento é mantido e atualizado de forma consciente não deve conduzir à reificação de qualquer imagem de um mundo fechado e autosuficiente3 Do nosso ponto de vista a naturalização das idéias de isolado social eou isolado cultural deixa de fora e à margem das descrições etnográficas diferentes pro cessos históricos e sociais que resultam na construção de um isola mento consciente baseado na memória histórica e genealógica des ses grupos sobre sua origem comum recuperandose assim a noção de Weber sobre a construção de fronteiras rigorosas que se fixam em pequenas diferenças de hábitos cultivados e aprofundados em virtude de um isolamento monopolista consciente4 Em situação de pesquisa elaboramos uma interpretação etnográfica de que os grupos que se definem legalmente como rema nescentes de quilombos dos rios Trombetas e de seu afluente ErepecuruCuminá praticam um isolamento consciente5 que não pode ser explicado por qualquer idéia de isolado primitivo ou de 3 Augé 199445 4 Weber 1991269 5 ODywer 1999 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 257 Quilombos 258 isolamento geográfico social e cultural que venha a naturalizálos assim em face de um observador externo De fato essa forma de isolamento consciente só adquire toda sua significação quando re lacionada à própria experiência de pesquisa etnográfica aos obstácu los enfrentados para a realização do trabalho de campo nos anos de 1992 1993 1995 e 1999 e às estratégias de que tivemos de lançar mão para obter a aceitação do grupo no contexto em que estavam voltados para a produção de sua própria história através das lem branças dos quilombos e das lendas heróicas contadas pelos morado res mais velhos das comunidades como afirmação política dos seus direitos constitucionais A experiência etnográfica É preciso inicialmente situar a forma como fomos incluídos na elaboração da história do grupo a qual permitiu que tivéssemos as sim acesso ao material etnográfico Na primeira fase do nosso traba lho de campo a identidade histórica do grupo foi um assunto de certo modo imposto por eles e em parte o resultado dos acasos e situações da pesquisa Na cidade de Oriximiná enquanto esperávamos permissão para viajar às comunidades no alto dos rios instalados em uma sala da Uni dade Avançada José Veríssimo campus avançado da Universidade Federal Fluminense UFF na Amazônia passamos a consultar bibliografia histórica sobre a região e relatos de viajantes que atraves saram o alto curso do rio Trombetas e de seu afluente Erepecuru Cuminá no final do século XIX e início do XX como o casal Henri e Otille Coudreau que fizeram trabalhos de levantamento socioeco nômico e geográfico para o governo do Pará em 1898 e 1900 Na Unidade Avançada o mapa afixado com a expedição de Otille Coudreau ao ErepecuruCuminá dois anos depois da morte de seu marido ocorrida durante a expedição de 1898 ao rio Trombetas acabou funcionando como um roteiro de nossa viagem Sua cartogra fia nos levou para além dos cursos navegáveis às áreas encachoeiradas Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 258 Os Quilombos do Trombetas e do ErepecuruCuminá 259 onde os grupos remanescentes de quilombos praticam o extrativismo da castanha no inverno e a pescaria no verão Essa viagem pela re gião acima da parte navegável do rio e as duras condições que enfren tamos longe de suas casas situadas no curso navegável mais abaixo foram decisivas para a aceitação da pesquisa No percurso a montante passamos a proceder à leitura em voz alta do relatório de mme Coudreau para nossos acompanhantes das comunidades de Jauari Espírito Santo e Cachoeira Pancada Como tra duzíamos um texto francês podíamos suprimir certas partes do relato em que a antiga viajante manifestava suas opiniões etnocêntricas e racistas detendonos nas informações de viagem em que menciona va a topografia os nomes dos igarapés as cachoeiras seus acompa nhantes e seu guia nativo do ErepecuruCuminá Guillermo como estava grafado no relatório do início do século XX o qual era tioavô de Joaquim Lima morador da comunidade do Espírito Santo e que fazia conosco agora a viagem ao alto do rio A partir da relação de pesquisa as informações do relatório da viagem de mme Coudreau foram inseridas no presente etnográfico e esse documento liberado do contexto histórico que o produziu repleto de passagens onde os chamados mocambeiros eram desqualificados e as informações dadas por seu guia ou ouvidas da população nativa desacreditadas e consideradas por vezes sem im portância As condições e acasos da pesquisa de campo levaram à sua acei tação em virtude de um episódio sem precedentes ocorrido durante a descida dos cursos encachoeirados ao baixarmos do igarapé Penecura Como já o fizéramos na subida do rio voltamos a mencionar as in formações da expedição Coudreau sobre o local onde seu guia Guillermo assinalara a antiga tapera da Figéna considerada uma das mocambeiras da fuga Na época da expedição mme Coudreau a encontrara morando já na parte mansa do rio para onde descera pouco antes da Abolição da Escravatura juntamente com Lotário e outros mocambeiros da fuga premidos segundo explicação do re latório pelos conflitos com os índios pianocotós acima das cachoei ras do ErepecuruCuminá Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 259 Quilombos 260 A partir das descrições que líamos no relatório de viagem sobre os meandros do rio e a existência de uma vegetação mais baixa do que a floresta nossos acompanhantes identificaram o possível local cita do como o antigo sítio da Figéna Pelo aceiro do terreno e aquela árvore grande teve gente ali disse Joaquim Lima A seguir Profeta da Cachoeira Pancada e outro dos nossos acompanhantes presumi ram o jenipapo árvore indicada por Joaquim devia ficar bem no porto de uma casa Ao ser rodeada toda a área de capoeira que pode terse constituído no sítio da Figéna constataram a existência de terra preta apropriada para o plantio além de vários cafeeiros que pare ciam tronqueiras e outras árvores bem grossas indícios prováveis de uma ocupação muito antiga Começamos essa expedição ao alto do rio como uma forma de manter contato com o grupo fora do perímetro urbano já que havía mos conquistado sua adesão à idéia da viagem em parte por eles próprios sugerida em função do material que consultávamos Não podíamos prever a não ser pela persistência em cumprir nosso obje tivo que seu resultado levasse a uma maior aceitação pelos negros do ErepecuruCuminá das nossas atividades de pesquisa ao colocarnos diante desse tipo de evidência etnográfica relativa ao seu passado Por ocasião de uma das viagens de volta à região efetuada em novembro de 1995 com o objetivo de instruir os trabalhos da 6a Câmara da Procuradoria Geral da República durante minha par ticipação na diretoria da Associação Brasileira de Antropologia ABA em que coordenava o Grupo de Trabalho sobre Terra de Quilombo da ABA sofri uma espécie de interdito proibitório pelos repre sentantes das comunidades negras de visitálas no alto dos rios Desse modo a interpretação etnográfica sobre o isolamento defensi vo desses grupos voltouse contra minha própria prática de pesquisa antropológica Impedida de viajar até as comunidades do alto rio Trombetas e ErepecuruCuminá no contexto das comemorações do tricentenário de Zumbi dos Palmares quando se aguardava com grande expectativa a titulação da comunidade de Boa Vista considerada a primeira a obter a aplicação do art 68 do Ato das Disposições Cons titucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 aceitei os limites a mim impostos Assim pude extrair dessa difícil experiên Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 260 Os Quilombos do Trombetas e do ErepecuruCuminá 261 cia e dos contatos que continuava a proceder com os diferentes gru pos das comunidades remanescentes de quilombos que periodicamente viajam à cidade de Oriximiná e das famílias que aí residem uma com preensão desta relação exclusiva com o território que ocupam no alto dos rios e da construção de fronteiras rigorosas que caracterizam os grupos étnicos em suas ações comuns orientadas por fatores de natu reza política6 Esse relato serve para situar a forma como fomos incluídos na elaboração da história do grupo bem como para situar a forma de como tivemos acesso ao material etnográfico Nesta primeira fase do trabalho de campo a identidade histórica do grupo foi um assunto de certo modo sugerido por eles e em parte o resultado dos acasos e predicamentos da pesquisa Procedência e destino comum Os negros dos rios Trombetas e ErepecuruCuminá constroem sua identidade de sujeito histórico como procedente dos quilombos a partir de relatos de fuga que misturam eventos fragmentados presen tes na memória social com lendas heróicas e narrativas míticas sobre a cobra grande do Barracão de Pedra que impedia seus antepassados verdadeiros ou míticos de deslocaremse livremente pelo rio Essas narrativas sobre seu passado não implicam desconhecimento de dados da historiografia existente sobre os quilombos Aqueles que têm liderança política e que no contexto atual mobilizamse pelo reconhecimento dos direitos territoriais garantidos na Constituição Federal sabem de sua formação ocorrida por fugas sistemáticas de escravos até as últimas décadas do século XIX desde Santarém e outras localidades da região do Baixo Amazonas Contudo nossa ex periência etnográfica constata não ser exatamente por esse tipo de informação sobre seu passado a que podem ter acesso inclusive através de pesquisadores sejam historiadores antropólogos geógrafos 6 Wever 1991 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 261 Quilombos 262 e outros cientistas sociais que costumam se interessar ou aprovar como tema convergente em contatos e conversas com os estudiosos Estes últimos e em número crescente têm mobilizado seus esforços para conhecer a cultura a formação histórica e social desses grupos que vivendo no alto curso dos rios lagos e igarapés no interior da floresta parecem atualizar um passado pressuposto de isolamento e autoctonia dos povos amazônicos As narrativas de fuga e fundação contaram com a contribuição do material que possuíamos sobre os negros do Trombetas e ErepecuruCuminá tais como as dos relatos de viajantes como o casal Coudreau que em 18981900 subiu esses rios e citou os no mes de vários mocambeiros da fuga Os Coudreau usavam o termo mocambeiro conforme a acepção local pelo que escreveram ouvida nos contatos com autoridades e comerciantes da cidade de Oriximiná A acepção vem acompanhada da explicação de que se tratavam de escra vos marrons Os nomes bem como as fotos de alguns negros estampa das nos livros publicados na França pelos Coudreau com os relatos das viagens foram acolhidos com entusiasmo nas comunidades que visi tamos no alto ErepecuruCuminá Os mocambeiros da fuga citados pe los Coudreau passaram a ser ponto de referência genealógica e foram incluídos pelos negros do ErepecuruCuminá na reconstrução do que consideram a história dos princípios7 Foi assim que ao fornecerlhes os dados acabamos de certo modo involuntariamente contribuindo para um achado na região acima da grande quedadágua do Chuvisco cheia de travessões e cur sos encachoeirados Estávamos em viagem até a foz do Penecura em cujas cabeceiras na serra de Santa Luzia dizem terse formado no passado um quilombo Fomos levados até lá porque aceitamos entrar na relação de troca com eles e porque nos interessamos por suas his tórias sobre os princípios Incorporávamos assim o preceito de que o 7 A transcrição textual da história dos princípios e uma análise detalhada de sua narrativa encontramse no artigo Da Matta nas paradas entre malandros e heróis a lenda da Cobra Grande o tempo histórico e questões de identidade ODwyer 2000 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 262 Os Quilombos do Trombetas e do ErepecuruCuminá 263 antropólogo deve seguir o que encontra na sociedade que escolheu estudar8 Entre a cachoeira do Cajual e a foz do Penecura no lugar onde o relatório de mme Coudreau mencionava a existência de um sítio per tencente a uma das mocambeiras da fuga chamada Figéna encon tramos vestígios arqueológicos de uma ocupação muito antiga loca lizados através do entrecruzamento das informações que líamos no livro dos Coudreau e o conhecimento que os negros possuíam da cobertura florestal de mata virgem e áreas de antigas capoeiras Ali identificamos restos de alguidar fundo de garrafa com inscrição em inglês ruínas da muralha de um forno o provável lugar do porto de uma casa onde havia um jenipapeiro e laranjeiras cacaueiros e plantas medicinais A descoberta dessa evidência etnográfica foi considerada decisiva para a aceitação da pesquisa Tanto que ao descermos as cachoeiras e visitarmos os moradores das comunidades situadas na parte mansa do rio isto é navegável eles passaram a falar mais livremente sobre seus antepassados e o que lhes contavam os pais e avós9 Esse gosto pelas origens10 constituíase assim em moeda de troca entre nós da pesquisa e nossos informantes no contexto da inclusão dos negros do ErepecuruCuminá no processo de reconheci mento de seus direitos territoriais já em curso para as comunidades negras do chamado rio grande o Trombetas A história dos princípios encontrase escrita a partir de um esforço pessoal de Joaquim Lima diretor da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná ARQMO e membro da comunidade do Espírito Santo no rio ErepecuruCuminá em produzir um docu mento para o qual solicitou nossa colaboração Essa história dos princí pios documentada por ele na qualidade de representante dos negros do ErepecuruCuminá encontrase desse modo revestida de uma função política Do nosso ponto de vista porém há mais A história de acordo com Epstein 1978 costuma assumir uma importância 8 EvansPritchard 1978300 9 ODywer 1999140 10 Augé 199444 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 263 Quilombos 264 crucial na formação da identidade étnica na medida em que fornece às pessoas uma percepção do seu passado o que necessariamente não corresponde a um registro autêntico do que realmente aconteceu em tempos passados Assim acompanhamos esse autor quando con sidera que uma história no sentido de uma identificação seletiva com antepassados pode ser uma fonte do sentimento de pertença pelo qual se manifesta positivamente a identidade étnica A história dos princípios que circula na forma de uma narrativa entre os membros das chamadas comunidades negras do rio ErepecuruCuminá referese a um evento histórico específico sobre a formação de quilombos durante o período escravocrata Mas o registro desse evento que apresenta uma temporalidade marcada não é feito através de acontecimentos lineares e encadeados O passado que aparece na his tória dos princípios é igualmente um tempo cósmico submetido à ação de seres sobrenaturais Ela descreve a diversidade de origem dos es cravos fugidos através da menção às famílias que começaram a chegar em diferentes momentos do século XIX a partir de diversas localida des como Santarém e Gurupá no Baixo Amazonas No entanto a narrativa reconhece entre eles uma procedência comum definida pela relação de resistência ao sistema escravocrata que representa neste caso o papel de um outro que produz a identidade11 Este outro aparece expresso no sentido figurado ao assumir a forma de um ser temível da natureza mais ainda de tamanho e poderes sobrenaturais A lenda da cobra grande do Barracão de Pedra grandes formações ro chosas ao longo do ErepecuruCuminá desloca para o plano propri amente cosmológico a experiência da morte vivida na fuga pelos an tepassados12 Nesse sentido não se trata apenas de uma fábula O 11 Sobre a produção da identidade pelo reconhecimento da alteridade ver Marc Augé 19981920 12 De acordo ainda com o autor citado na nota anterior a respeito de um livro publicado pelo historiador C Ginzburg Le sabbat des sorcières fazer da expe riência da morte a matriz de todas as relações possíveis é formular a hipó tese antropológica de um laço necessário entre o imaginário da morte e todo imaginário narrativo Augé 199870 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 264 Os Quilombos do Trombetas e do ErepecuruCuminá 265 conhecimento sobre ela é revelado pela memória social através dos idosos ou dos velhos como dizem especialmente aqueles quali ficados como os mais experientes capazes de se comunicar com os vi vos e os mortos com passado e o presente e que podem dar seu testemunho sobre a existência de seres sobrenaturais e entidades ima ginárias Tais potências sobrenaturais são passíveis ainda de manifesta ção indireta e variada no cotidiano do grupo podendo causar infor túnios e doenças Devem por isso ser domesticadas e esconjuradas pelas rezas e poderes divinatórios e de cura que se manifestam em alguns dentre eles O poder de pajulia como disseram durante o nosso trabalho de campo é considerado uma tradição de família de modo que os curadores nunca lhes faltaram Isso é muito sério advertiram a esta antropóloga ao mencionarem a existência dessas práticas de natureza xamanista Em seu relatório de viagem do início do século XX mme Coudreau 1901175 identificou Maria Leutério e Figéna ambas mocambeiras da fuga como pajés E reforçou a importância da primeira por haver esta curado um membro da tripulação da expedição Coudreau Ao comentar sobre essa passagem do livro em casa de Joaquim Lima e de sua irmã Margarida no alto ErepecuruCuminá disseramme que o velho Raimundo Leutério neto de Maria Leutério era a pessoa que atendia aqui a necessidade tratava ferida conserta va rachadura e costurava muito bem Proceder à cura era considera do um tipo de dom que se fazia imprescindível para a saúde dos membros das comunidades negras do ErepecuruCuminá O imaginário que circula entre as comunidades negras do Erepecuru Cuminá e que se revela através da história dos princípios compartilhado que é por todos no presente etnográfico é parte da cosmologia e tradição dos referidos grupos e resiste a mudanças ocorridas em ou tras áreas da cultura como no caso das práticas de obrigações e reci procidade mútua que alguns dos seus membros reclamam terem sido alteradas devido aos deslocamentos constantes e à fixação de mora dias no centro urbano A história dos princípios como um mito de origem ou fundação cons titui assim as fronteiras espaciais sociais e étnicas dos filhos do rio Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 265 Quilombos 266 ErepecuruCuminá segundo a própria atribuição a que se confe rem Contudo as referências ao passado idealizado e mítico obede cem a uma orientação de datas que em parte acompanha as da historiografia Desse modo a história dos princípios apresenta um duplo aspecto Datada em seu nascimento e no correr de alguns episódios que descreve tal como o do fim da cobra grande do Barracão de Pedra representaos contudo como eventos míticos relacionáveis ao con junto de concepções culturais próprias do grupo portador dessa narrativa A distinção entre sociedades frias e quentes tem sido tema dos principais debates teóricos da antropologia LéviStrauss 1998 veio a público recentemente contraporse às críticas a ele dirigidas quan to à concepção errônea de povos sem história Ele diz considerar diferente o sentido e alcance da distinção que propôs Ela não pos tula entre as sociedades uma diferença de natureza não as coloca em categorias separadas mas se refere às atitudes subjetivas que as socie dades adotam diante da história às maneiras variáveis como elas a concebem p 108 Acrescenta ainda que nenhuma sociedade portanto pode ser dita absolutamente fria ou quente p 108 A concepção de história das próprias comunidades negras do ErepecuruCuminá sofre de uma dupla orientação de sentido ao se comportar como uma coletividade de destino na mobilização pelo reconhecimento dos seus direitos constitucionais quando esquenta sua temperatura histórica e ao se definir por um passado concebido através da história dos princípios como modelo atemporal13 Esse aparente paradoxo revelado pela história dos princípios re mete à questão do tempo concebido em função dos valores sociais em referência Na história dos princípios encontramos a dimensão do tempo histórico das fugas de escravos que pode ser pensado como o início da nova sociedade dos quilombos e uma cronologia cósmi 13 Overing 1995108 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 266 Os Quilombos do Trombetas e do ErepecuruCuminá 267 ca de comunicação com seres sobrenaturais que torna atemporal e onipresente a história dos princípios como no tempo cíclico O tempo pode representar dessa maneira um valor variável na criação da historicidade14 Podemos afirmar ainda com Sahlins15 que a idéia de quilombo como escravo fugido que aparece na história dos princípios é um signo de referência e se por sua natureza é um objeto histórico ele não apenas reflete o mundo existente ou préexistente revelado pelos do cumentos como muito menos segue os usos prescritos pela conceituação16 Ao contrário a categoria quilombo como objeto sim bólico representa um interesse diferencial para os diversos sujeitos históricos de acordo com sua posição em seus esquemas de vida17 Por isso o uso da categoria quilombo no contexto de afirmação dos direitos constitucionais de segmentos importantes e expressivos da sociedade brasileira através do cumprimento do art 68 do ADCT da Constituição Federal de 1988 tem sido objeto de malentendi dos devido à perspectiva do observador ainda que social e cultural mente esse uso possa ser considerado criativo p 188 Os quilombos do ErepecuruCuminá revelados pela história dos prin cípios não deixam de adquirir certa intencionalidade através das metá foras motivadas que recebem e às inovações de sentido18 Espe ramos que ao apresentar os modos pelos quais a história dos princípios constrói seu passado através da incorporação de eventos míti cos tenhamos contribuído para enriquecer a compreensão sobre formas de historicidade implícitas em experiências culturais e sociais que parecem em princípio estar disponíveis a serem descritas de modo que pode ser considerado objetivo pela historiografia 14 Overing 1995109 15 Fizemos citações mais livres do autor de modo a adequar suas análises aos nossos propósitos Sahlins 1990 16 Sahlins 1990185 17 Ibid p 187 18 Sobre o sentido metafórico de quilombo e a etnicidade como meio de confron tação ver ODwyer 199512139 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 267 Quilombos 268 Disciplinamento das práticas culturais No afluente ErepecuruCuminá observamos o papel central do parentesco da procedência comum e das estratégias que põem em ação a construção da identidade do grupo Ao subirmos o rio Trom betas deparamonos com uma identidade situacional de remanes cente de quilombo que emerge como resposta atual diante de uma situação de conflito e confronto com grupos econômicos e agências governamentais como o Ibama que passam a implementar novas for mas de controle administrativo e político sobre o território que ocu pam e com os quais estão em franca oposição Essas populações ribeirinhas remanescentes de quilombos dos rios Trombetas e ErepecuruCuminá sempre viveram dos pequenos roçados da pesca da caça e da coleta sazonal da castanha Com a decretação da Reserva Biológica do Trombetas em 1979 e da Flo resta Nacional de SaracáTaquera em 1989 portanto 10 anos de pois com superfícies respectivamente de 385 mil hectares e 426 mil hectares foi subtraída das comunidades remanescentes de quilombos principalmente aquelas do rio Trombetas a principal parcela do seu território Além da proibição de exercerem as atividades extrativistas na área da reserva biológica foram cerceados em suas práticas culturais de pescar caçar e fazer pequenos roçados na área da floresta nacional A partir de dois postos de observação construídos pelo Ibama em locais estratégicos do rio suas embarcações passaram a ser vistoria das e eles próprios impedidos de pescar nos lagos e igarapés próxi mos às comunidades Em todas as comunidades remanescentes de quilombos do Trombetas visitadas por nós durante o trabalho de campo nos anos de 199293 e 1995 ouvimos testemunhos a propósito dos episó dios em que estas comunidades se consideraram humilhadas tratadas preconceituosamente pelo estigma da raça e externaram ainda seus pontos de vista sobre a condenação a que estavam vitimados devido a um poder que agia sobre eles de modo coercitivo e segundo os rela tos extralegal Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 268 Os Quilombos do Trombetas e do ErepecuruCuminá 269 No Caderno Terra de Quilombo publicado pela ABA em 1995 observamos que o paradigma da preservação ambiental era defendido pela Mineração Rio do Norte como de interesse da coletividade sen do incorporado como uma meta central em sua programação envol vendo organismos governamentais na definição de objetivos e proce dimentos comuns Os efeitos sociais do programa sustentado por esse paradigma vinham sendo a vigilância constante não só sobre a população trabalhadora da parte industrial de Porto Trombetas mas igualmente dos habitantes nativos que se encontram na área externa do núcleo ubano industrial O paradigma da preservação ambiental ao estabelecer o com portamentopadrão que deve ser seguido torna as condutas que dele se afastam como sujeitas à normatização As medidas disciplinares para o controle da população encontram na legislação sua justificati va legal Os negros do Trombetas passam a ser vistos pelas autori dades administrativas e pelo corpo técnico dos organismos governa mentais como indivíduos que precisam ser disciplinados visando a alteração de seus hábitos Quanto às suas práticas culturais elas pas sam a ser identificadas como transgressões à legislação No Trombetas os episódios de conflito entre os membros das comunidades negras rurais remanescentes de quilombo e o corpo especializado do Ibama que fazia uso inclusive de força policial circulavam através de uma extensa rede de comunicação social que incluía todas as comunidades do Trombetas e também as do ErepecuruCuminá Essas situações de conflito obedeciam a determi nado padrão de ocorrência em que o preconceito e a estigmatização dos negros emergiam no intercurso da própria ação contra eles Os eventos costumavam assumir um aspecto dramático e foram conta dos pelo testemunho de comunidades inteiras reunidas homens mulheres e crianças Foi o que ocorreu por ocasião do trabalho de campo etnográfico que realizamos nos anos de 1992 e 1993 Em 1995 quando voltamos à região essa problemática socioló gica das acusações que se impusera à nossa atenção no período de campo anterior persistia nas visitas que realizamos às comunidades de Jamari e Mãe Cué no Trombetas Benedito membro da comuni dade de Jamari testemunhou aos representantes da GKKE central Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 269 Quilombos 270 sindical de alumínio da Alemanha que vinham verificar através de entidades de direitos humanos internacionais as condições das popu lações ribeirinhas situadas próximas da área de mineração da bauxita o seguinte A maior perseguição para nós aqui é esse Ibama Tenho 51 anos dentro desse rio Se ele vê que estamos plantando um roçado vai embargar para fazer o serviço Tomam o peixe que pescamos as caixas de castanha quando chegamos do mato com elas nas costas Isso aqui é nosso disse emocionado diante dos visitantes e da comunidade reunida Deus deixou e nós vive aqui nessa terra como nosso As comunidades remanescentes de quilombos do Trombetas passaram a realizar às escondidas como dizem as atividades eco nômicas de sustento principalmente a pesca fonte essencial de ali mentos submetendose contudo aos rigores das sanções quando surpreendidos pela fiscalização dos agentes do Ibama As penalizações infligidas consistem invariavelmente na perda de todos os apetrechos de pesca inclusive da canoa imprescindível à vida no rio da espingarda que costumeiramente carregam nessas cir cunstâncias sendolhes confiscado ainda o suprimento de alimentos que tenha sido obtido Nos relatos sobre incidentes os informantes costumam repro duzir em frases curtas as palavras que lhes são dirigidas pelos agentes coatores sendo recorrente o uso de epítetos contra eles preto bando de preto besta macacos entre outros estereótipos que expressam sentimentos de discriminação e marcam a violência moral dos estigmas que lhes são imputados As ações de vigilância e contro le sobre as comunidades negras do Trombetas encontramse as sim investidas pela prática secular do racismo Em sua concepção a definição de novas formas de gestão públi ca sobre o território que ocupam parece desconhecer por completo a realidade social dos grupos remanescentes de quilombos que aí estão estabelecidos há mais de um século O uso desigual do poder que possibilita o controle administra tivo sobre as comunidades negras do alto Trombetas encontrase também diretamente relacionado à implementação de uma nova for ma de exploração da floresta da região através de investimento de capital realizado por empresas nacionais e internacionais para desen Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 270 Os Quilombos do Trombetas e do ErepecuruCuminá 271 volver o empreendimento mineral para a exploração da bauxita Mineração Rio do Norte As populações remanescentes de quilombos do Trombetas se ressentem do tipo de controle a que estão sujeitas pelo Ibama que mapeia todo o movimento deles pelo rio Segundo eles não podem visitar um parente que seja nas comunidades localizadas do lado direito do rio sem serem obrigados a atravessar para a margem opos ta e apresentaremse nos postos de fiscalização Do contrário os agen tes podem ir ao encalço do barco em lancha voadeira com a sus peita de que passaram escondidos pelos igarapés e furos entre os lagos e o rio Os postos de vigilância do Ibama e a permanente visibilidade que mantêm sobre os grupos étnicos remanescentes de quilombos do Trombetas são exemplos de uma forma de operação do poder no espaço que podem encontrar uma explicação pertinente no modelo do Panopticon de Bentham analisado por Foucault19 Como um dia grama arquitetônico representado no caso pelos postos de vigilân cia do Ibama que asseguram visibilidade permanente e fiscalização contínua o Panopticon é um meio de controle do espaço e de ordenamento e distribuição de indivíduos e grupos constituindo como um dos seus exemplos o modelo da cidade em quarentena Mas ele é sobretudo um meio para a operação do poder no espaço tornando os indivíduos observáveis e sujeitos a essa forma de tecnologia disci plinar que por vezes investe sobre certas instituições20 É preciso portanto levar em conta a lógica do campo social e político em que as medidas consideradas mais generosas intervêm como no caso da preservação ambiental O caráter formal e idealista das medidas pode não combinar como neste caso com as condições de sua concretização A identidade situacional de remanescente de quilombo emer ge assim em um contexto de luta em que resistem às medidas admi nistrativas e às ações econômicas através de uma mobilização política 19 Rabinow Dreyfus 1995 20 Ibid Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 271 Quilombos 272 pelo reconhecimento do direito às suas terras Nesse sentido é uma categoria política não necessariamente presente no intercâmbio so cial diário Para efeitos de interação com outros grupos sociais inclu sive populações de trabalhadores rurais ribeirinhos e posseiros de glebas localizadas nas estradas vicinais à cidade de Oriximiná o critério mais relevante é o racial determinado pela cor da pele É no domínio po lítico que a etnicidade desses grupos se manifesta e adquire em fun ção de destinos históricos comuns toda sua significação Mas a violência cometida pelos agentes do Ibama nos postos de fiscalização e no controle ao longo do rio através de agentes que se deslocam com lanchas a motor conhecidas como voadeiras em alta velocidade diminuiu a partir de 1995 que coincidentemente foi o período da titulação da comunidade de Boa Vista situada bem ao lado da MRN As técnicas do panoptismo contudo não foram suprimidas elas sofreram de certa forma uma mudança tática Atra vés de projetos considerados de desenvolvimento autosustentável técnicos e pesquisadores vinculados ao Ibama ou em colaboração com esse órgão governamental pretendiam inculcar uma nova pedagogia sobre padrões de manejo do meio ambiente que visava erradicar prá ticas supostamente atrasadas e apresentar formas mais adequadas de ocupação territorial E assim favorecer a produção de popula ções controladas e eficientes21 A comunidade de Boa Vista considerada a primeira a ser titula da como remanescente de quilombo de acordo com o art 68 do ADCT havia sido drasticamente reduzida em seu território pelo empreendimento mineral sendo titulados menos de mil hectares En quanto isso a gleba Trombetas discriminada pelo Incra desde 1980 como terra pública arrecadada pela União e encravada posteriormen te nos limites da Reserva Biológica e da Floresta Nacional possui 290 mil hectares Paralelamente à diminuição ou afrouxamento do controle e da vigilância dos seus agentes e à aplicação de novas técnicas disciplina res que permitissem uma mudança na orientação cultural o Ibama 21 Rabinow Dreyfus 1995212 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 272 Os Quilombos do Trombetas e do ErepecuruCuminá 273 iniciou nesse mesmo ano de 1995 o corte do Pico da Floresta Na cional através de um rumo aberto na mata para demarcar toda a área abarcada pelo decreto de criação da Floresta Nacional de Saraca Taquera O pico de demarcação dessa floresta nacional tem consti tuído o principal conflito que a partir de 1995 e nos anos subse qüentes até hoje tem confrontado os órgãos governamentais com as populações ribeirinhas do Trombetas Além de atingir algumas das comunidades remanescentes de quilombo da margem direita do alto do rio atingiu igualmente em seu traçado várias comunidades dos chamados ribeirinhos no médio curso do rio O pico cortou roçados e chegou a dividir em seu delineamento a casa de uma mo radora e sua família A identidade de lugar filhos do rio tem sido igualmente usada pelos membros das comunidades negras rurais nesse contex to de ameaças externas em que acionam estratégias para sua defesa Afinal o Pico da Floresta Nacional que ameaça a retirada das popu lações ribeirinhas dessa área ao apagar as divisas do território ocupa do parece anunciar a perda iminente da atribuição de pertença desses grupos Critérios de pertencimento territorial e a produção das diferenças culturais Fora da área do Trombetas onde se encontram a MRN a Re serva Biológica e a Floresta Nacional as comunidades remanescentes de quilombos têm realizado através da ARQMO a titulação cole tiva das áreas que ocupam que segue a prática de uso comum do território Tal procedimento passou a servir de modelo para a ação coletiva das comunidades de ribeirinhos que não se definem pela procedência comum dos quilombos O STR Sindicato dos Traba lhadores Rurais de Oriximiná junto com a ARQMO Associação dos Remanescentes dos Quilombos de Oriximiná e seguindo os procedimentos adotados pela associação dos remanescentes de quilombos para o reconhecimento dos direitos territoriais tem rea lizado reuniões nas comunidades ribeirinhas do Trombetas e do Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 273 Quilombos 274 ErepecuruCuminá visando sua titulação O direito coletivo ao terri tório que ocupam é defendido pelo fato como dizem de morarem num lugar e plantarem seus roçados em outro muito distante pelo uso comum que fazem das matas na extração de material para cons trução das suas moradias como palha e cipó além de frutos silvestres como o açaí do qual fazem o vinho a bacaba o tucumã etc assim como dos lagos em que pescam para consumo familiar Apesar das semelhanças que as identificam com as formas de territorialização coletiva das comunidades negras rurais e a defesa de interesses comuns sobre o reconhecimento dos seus territórios as populações tradicionais ribeirinhas de Oriximiná através de seus re presentantes e alguns de seus membros consideramse muito diferen tes Nesse contexto os chamados remanescentes são reconhecidos por eles como um povo da floresta Os traços e emblemas diagnósticos22 atribuídos por parte da queles com quem interagem23 se por um lado expressam julgamen tos etnocêntricos por outro representam uma forma positiva de iden tificação Os chamados colonos ribeirinhos costumam comentar que esses negros são tudo preguiçoso todo esse monte de terra e eles não plantam nada Para os trabalhadores ribeirinhos os negros como dizem não têm uma produção fixa a não ser a da castanha são mais extrativistas mesmo você chega à casa de um negro prati camente é dentro da mata Porém a partir da história da preservação da Amazônia segundo suas próprias explicações passaram a reco nhecer que os negros fizeram o papel deles preservando melhor do que ninguém a floresta Procedem ainda a uma outra distinção entre eles sobre o comportamento em contexto urbano dizendo que na sociedade moderna de Oriximiná leiase a vida que levam na cida de os negros são discriminados e diferentemente dos colonos ribeirinhos que preferem se aglomerar e misturar os negros con 22 Nagata 1973333 23 Devese explorar em outra oportunidade os diferentes usos de rótulos distin tivos para a classificação étnica permanecendo ainda como questão se os cri térios reclamados pelos membros são os mesmos ou diferem do diagnóstico pelo qual os de fora os reconhecem Moerman 19651223 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 274 Os Quilombos do Trombetas e do ErepecuruCuminá 275 tinuam unidos e preferem morar mais isolados no alto dos rios Tra tase portanto de unidades em contraste que se consideram dife rentes em termos de subsistência e das interações que promovem no núcleo urbano Na aliança e parceria construída entre a ARQMO Associação dos Remanescentes de Quilombos de Oriximiná o sindicato e ou tros órgãos de representação dos trabalhadores os colonos ribeiri nhos organizados para a titulação coletiva em suas comunidades estão pleiteando o reconhecimento territorial das áreas que ocupam Localizadas entre os rios ErepecuruCuminá e médio Trombetas que fazem limites com as comunidades negras as áreas ocupadas pelos colonos ribeirinhos são consideradas estratégicas para a implemen tação de uma nova política de territorialização desses grupos a partir dos interesses das coletividades locais de colonos ribeirinhos e de negros conforme as denominações e distinções que usam As comunidades de colonos ribeirinhos que dão seguimento às comunidades negras de Cachoeira Pancada Espírito Santo Jauari Varre Vento Terra Preta e outras no sentido jusante são as seguin tes Salgado 1 2 e 3 no CumináMirim e Acapuzinho Curupira Aurora Castanho Moura e Xiriri no Trombetas Esta lista de no mes sugere um espaço que inscreve em uma linha de continuidade mais do que de ruptura as comunidades remanescentes de quilombos e as dos colonos ribeirinhos24 Na área da Floresta Nacional encontramse 26 comunidades de colonos ribeirinhos atingidas pela abertura do pico pelo Ibama sendo que no Ajarazal houve ameaças e tiros Ali o pico parou pela mobilização coletiva e como dizem pelo embargo que botamos na demarcação da Floresta Nacional Na negociação em curso entre os órgãos governamentais como Ibama e Incra e as entidades dos traba lhadores tem sido proposto para as comunidades ribeirinhas que não se definem pela procedência comum dos quilombos e encontramse 24 Sobre o recurso habitual de representar o espaço com a ajuda de nomes ver Revel 1989139 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 275 Quilombos 276 dentro da Floresta Nacional a concessão de uso em que os traba lhadores uma vez cadastrados passariam a ser obrigados a pedir permissão para plantar caçar ou pescar nas áreas da floresta como já ocorre no caso da Floresta Nacional do Tapajós Na prática essa proibição já existe mas os membros das comu nidades atingidas dizem que o pico ao cortar o território por eles ocupado consolida o controle e até viabiliza sua exclusão dessas áreas Para eles pedir permissão ao Ibama é o mesmo que perder a autonomia Os direitos constitucionais não são os mesmos para as comunida des remanescentes de quilombo que reivindicam a aplicação do art 68 do ADCT da Constituição de 1988 e as comunidades de colonos ribeirinhos que buscam formas alternativas para a titulação coletiva de suas terras Na declaração da presidente do STR Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Oriximiná da comunidade do Curupira que é considerada pelos próprios remanescentes como uma mulher negra mas que não se define por uma procedência histórica dos quilombos o pico da Floresta Nacional lá em cima no alto do rio pega as comunidades negras do Abuí Tapagem Mãe Cué todas dentro da floresta É a mesma situação nossa conclui ela Apesar da fusão situacional de interesses comuns as distinções emer gem nesse contexto Pois não é só pela procedência comum pelo uso da terra dos recursos ambientais e pela ancianidade da ocupação de um território comum que as comunidades negras rurais remanescen tes de quilombo diferenciamse e invocam seus direitos constitucio nais Na chamada região interior desse universo social longe dos focos do desempenho de uma representação coletiva e das definições oficiais que emitem em nome de todos o domínio que exercem sobre o território é simbolizado através dos relatos sobre os dois mais fa mosos e reconhecidos curadores ou sacacas conforme o termo que usam ambos do rio ErepecuruCuminá O primeiro de nome Balduíno viveu até os anos 1970 e o segundo Chico Melo que o sucedeu nesses últimos 20 anos e que também já é falecido Balduíno é citado por seus feitos notáveis relatos de cura de possessão e previsões desconcertantes sobre o futuro como o Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 276 Os Quilombos do Trombetas e do ErepecuruCuminá 277 surgimento de uma grande cidade iluminada dentro da floresta que é hoje Porto Trombetas cidade industrial construída pela MRN Mi neração Rio do Norte Tinha também o dom da onipresença sendo visto por eles e até pelas suas crianças nos locais mais distantes den tro das matas no fundo dos rios sentado em cima de uma sucuriju como se fora um trono onde passava dias sem aparecer na superfície Dizem que ele se apresentava na Serrinha comunidade onde vivia situada no início do curso do ErepecuruCuminá e no Lago do Encantado localizado atrás da comunidade do Jauari quilômetros acima da Serrinha ao mesmo tempo Os sacacas aprenderam a curar com a natureza através das ervas que conheciam Durante dias e dias passavam como que desori entados embrenhados na floresta e nas viagens ao fundo dos rios Chico Melo contou à sua mulher que foi levado ao fundo do rio para conhecer um hospital onde os peixes o ensinaram a prescrever remé dios sem ajuda dos doutores brancos da cidade Dizia para a mulher Maria o outro mundo é muito bonito Só que a gente não pode ficar lá só se criar guelra Assim consideram que Chico Melo apren deu remédios para a lepra para o câncer e uma série de doenças Era famoso também por descobrir o paradeiro das pessoas e agir para que mudassem seus destinos e voltassem para o convívio das famílias Desse modo esse imbricado complexo de terras e direitos25 é simbolicamente construído como um território unificado e sob o controle de um grupo étnico através dos seus sacacas26 Podese dizer que esse tipo de conhecimento deles acerca do seu território dos seus bens e dos seres naturais assim como os grandes desloca mentos espaciais dos sacacas Balduíno era visto crivando os pés nas águas do rio na velocidade atual das chamadas lanchas voadeiras e sua prática itinerante permitem ao mesmo tempo a produção de 25 Revel 1989103 26 O conhecimento e a produção do território na França séculos XIIIXIX estão relacionados como Jacques Revel menciona às viagens do soberano que na geografia dos seus deslocamentos constitui com um todo o espaço que circuns creve Revel 1989108 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 277 Quilombos 278 um território unificado pertencente às comunidades remanescentes de quilombo do Trombetas e ErepecuruCuminá e a legitimidade do domínio que sobre eles reivindicam e de fato exercem A crença em mundos paralelos habitados por seres sobrenaturais e o domínio desse espaço adquirido pelos sacacas inclusive no apren dizado sobre o uso dos recursos naturais e das potências que os ultra passam em suas práticas terapêuticas permitem a construção do terri tório como uma totalidade simbólica que define as fronteiras do grupo Assim os aspectos fundiários são igualmente transpostos na deli mitação de um território por códigos culturais específicos27 As referências a um tempo histórico e mítico fazem de imponentes paredões altos e talhados a pique na beira do rio ErepecuruCuminá como o Barracão de Pedra um monumento do passado marco memorial inscrito no espaço que os define como comunidades territoriais fortemente enraizadas28 Finalizando diríamos que o fechamento das fronteiras do grupo através da prática de um isolamento consciente segundo a inter pretação etnográfica que se impôs pelas condições e relações da pes quisa tem permitido um controle das relações com o exterior e um domínio do espaço os quais têm implicações simbólicas e políticas na produção do território comum A autoatribuição de uma imagem que fazem de si próprios como uma totalidade delimitada autônoma e autosuficiente constitui no caso das comunidades remanescentes de quilombo igualmente como diz Geertz 1991667 sobre a al deia balinesa uma visão cativante agradavelmente romântica e ade quadamente democrática apesar de uma enchente de dados etnográficos renitentes Contudo a autoatribuição dessa imagem de totalidade dos grupos remanescentes de quilombos dos rios Trombetas e ErepecuruCuminá tem a eficácia simbólica de eles se reconhecerem como uma coletividade de destino e de assim fazerem se reconhecer 27 Oliveira 19989 e 17 28 Revel 1989165 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 278 Os Quilombos do Trombetas e do ErepecuruCuminá 279 Referências bibliográficas Almeida Alfredo Wagner Berno de Quilombos sematologia face a novas identidades In Frechal Terra de Preto quilombo reconhecido como reserva extrativista São Luís Projeto Vida de Negro SMDDHCCNPVN 1996 Augé Marc Nãolugares introdução a uma antropologia da supermodernidade Campi nas Papirus 1994 Por uma antropologia dos mundos contemporâneos Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1997 A guerra dos sonhos Campinas Papirus 1998 Barth Fredrik Grupos étnicos e suas fronteiras In Lask Tomke org O guru o iniciador e outras variações antropológicas Rio de Janeiro Contra Capa 2000 Coudreau Otille Voyage au Cumina Paris A Lahure 1901 Epstein A L Ethos and identity London Tavistock Chicago Aldine 1978 EvansPritchard E E Bruxaria oráculos e magia entre os Azande Rio de Janeiro Zahar 1978 Geertz Clifford Negara o estado teatro no século XIX Lisboa Difel 1991 LéviStrauss Claude LéviStrauss nos 90 Mana 4210519 1998 Moerman Michael Ethinic identification in a complex civilization who are the lue American Anthropologist 57 1965 Nagata A Judith What is a Malay Situational selection of ethinic identity in a plural society American Ethnologist 1973 ODwyer Eliane C Remanescentes de quilombos na fronteira Amazônica a etnicidade como instrumento de luta pela terra In Associação Brasileira de Antropologia Caderno Terra de Quilombo Rio de Janeiro UFRJ 1995 p 12139 Remanescentes de quilombos do rio Erepecuru o lugar da me mória na construção da própria história e de sua identidade étnica In Brasil um país de negros Rio de Janeiro Pallas Salvador Ceao 1999 Da Matta nas paradas entre malandros e heróis a lenda da Cobra Grande o tempo histórico e questões de identidade In Barbosa Gomes orgs O Brasil não é para principiantes carnavais malandros e heróis 20 anos depois Rio de Janeiro FGV 2000 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 279 Quilombos 280 Oliveira João Pacheco org Indigenismo e territorialização Rio de Janeiro Con tra Capa 1998 Overing Joanna O mito como história um problema de tempo realidade e outras questões Rio de Janeiro Mana 1110740 1995 Poutignat Philippe StreiffFenart Jocelyne Teorias da etnicidade São Paulo Unesp 1998 Rabinow Paul Hubert Dreyfus Michel Foucault uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica Rio de Janeiro Forense Universitária 1995 Revel Jacques A invenção da sociedade Lisboa Difusão Editoral 1989 Sahlins Marshall Ilhas de história Rio de Janeiro Jorge Zahar 1990 Weber Max Relações comunitárias étnicas In Weber Max Economia e socie dade Brasília UnB 1991 v 1 Wolf Eric Europa y la gente sin historia México Fondo de Cultura Económica 1987 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 280 A N E X O Breves Considerações sobre o Decreto No 391201 Deborah Macedo Duprat de Brito Pereira O Decreto no 3912 de 1092001 regulamenta as disposições rela tivas ao processo administrativo para a identificação dos remanescen tes das comunidades de quilombos bem como para o reconhecimen to a definição a demarcação a titulação e o registro imobiliários das terras por eles ocupadas Inconstitucionalidade em decorrência de se tratar de decreto autônomo Invocase no preâmbulo do decreto o art 84 IV da Constitui ção Federal como supostamente atributivo de competência do presi dente da República para sua expedição Sua redação é a seguinte Art 84 Compete privativamente ao Presidente da República IV sancionar promulgar e fazer publicar as leis bem como expe dir decretos e regulamentos para sua fiel execução Evidencia o dispositivo em sua literalidade a inexistência do exercí cio de poder regulamentar sem fundamento numa lei prévia Assim ao Procuradora regional da República membro da 6a Câmara de Coordenação e Revisão do MPF Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 281 Quilombos 282 contrário do que se verifica na Constituição francesa não existe entre nós um poder regulamentar originário e autônomo constitucional mente fundado Desse modo é o princípio da reserva total de lei a informar a atividade administrativa exigência esta que se assenta em argumento democrático o parlamento adquiriu centralidade políti ca nos estados constitucionais democráticos devendo dirigir e não apenas limitar a atividade do Executivo1 O art 37 da CF empresta reforço sistêmico ao que ora se conclui ao estabelecer como princí pio informador da administração pública o da legalidade Reafirmase ainda o princípio do fundamento legislativo ne cessário do poder regulamentar mais particularmente na hipótese presente na medida em que o decreto ora em discussão não cuida tãosomente de atos de regulação ou organização interna da adminis tração mas antes repercute diretamente sobre posição jurídica de ter ceiros a atrair o comando contido no art 5o II da CF segundo o qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei Dessa forma a ausência de lei que minimamente alcance em seu âmbito de incidência o art 68 do ADCT desautoriza a expedição de decreto acerca do tema Inconstitucionalidade no marco temporal Nos termos do parágrafo único do art 1o do decreto em discus são somente pode ser reconhecida a propriedade sobre terras que I eram ocupadas por quilombos em 1988 II estavam ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos em 5 de outubro de 1988 A disposição é evidentemente inconstitucional Registrese de início que o inciso I contém certamente um erro material ao referirse ao ano de 1988 como data de ocupação de terras por quilombos se como tal se pretende ter em conta a defini 1 Canotilho 1991802 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 282 Anexo 283 ção legal que remonta a 17402 por se tratar de situação que não mais se revela quer no plano dos fatos quer no plano do direito Prosseguindo na análise da inconstitucionalidade do dispositivo invocado decorre ela de restrição não autorizada constitucionalmen te já que o art 68 expressamente não a revela tampouco permite hermeneuticamente a sua inferência Senão vejamos Ao dispor que aos remanescentes das comunidades dos quilombos que este jam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva devendo o Estado emitirlhes os títulos respectivos o art 68 do ADCT não apresenta qual quer marco temporal quanto à antigüidade da ocupação nem deter mina que haja uma coincidência entre a ocupação originária e a atual O fundamental para fins de se assegurar o direito ali previsto é que de comunidades remanescentes de quilombos se cuide e que concorrentemente se lhe agregue a ocupação das terras enquanto tal Assim os dois termos remanescentes de comunidades de quilombos e ocupação de terras estão em relação de complementaridade e acessoriedade de tal forma que a compreensão de um decorre neces sariamente do alcance do outro E estes e apenas estes são necessá rios à interpretação do comando constitucional O que não se admite certamente é que um mero decreto o que sequer à lei se autoriza numa visão unilateral opere um reducionismo no conteúdo de senti do da norma Poderseia objetar no sentido de que o ato normativo estaria apenas a explicitar um limite imanente Contudo entendese por li mite imanente critério a fornecer muito mais tópicos de investi gação e argumentação intepretativa aquele que decorre do sistema dos direitos fundamentais e dos próprios princípios fundamentais da ordem constitucional de modo a que o domínio de proteção da nor ma vá até onde não conflitue com esses valores maiores Neste ponto 2 Para o Conselho Ultramarino em resposta à consulta quilombo ou mocambo seria toda habitação de negros fugidos que passem de cinco em parte despovoada ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles Normativamente o conceito resulta também do Alvará de 3 de março de 1741 e provisão de 6 de março do mesmo ano segundo os quais era reputado quilombo desde que se achavam reunidos cinco escravos Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 283 Quilombos 284 a adoção de um marco temporal a par de não se constituir num limite imanente pelas razões expostas apenas acriticamente pode ser considerado elemento definitivo ou mesmo mediador numa eventual colisão entre direitos e valores constitucionais A rigor o marco temporal ao invés de harmonizar subverte definitivamente o sistema constitucional Isso porque em todas as ocasiões em que o legislador constituinte condicionou o direito à propriedade ao decurso de certo lapso de tempo fêlo expressamen te como decorre dos artigos 183 e 191 da CF diante da singela razão de que toda e qualquer restrição a direito constitucionalmente assegurado só pode resultar do próprio texto constitucional Desconhece ainda o decreto a natureza da norma cuja regula mentação postula O art 68 do ADCT muito embora deslocado do corpo perma nente da Constituição há de ser interpretado a partir deste que sina liza exatamente quanto à sua razão de ser quanto ao sentido que lhe deva ser emprestado quanto aos princípios que hão de ser levados em conta no momento de sua interpretação Pois bem levandose adian te esse intento temse que a expressão quilombos consta do 5o do art 216 que trata do tombamento dos documentos e sítios dos antigos quilombos Esse dispositivo por sua vez inserese na seção da Cons tituição dedicada à cultura a qual tem um princípio vetor a naciona lidade brasileira formase a partir de grupos étnicos diferenciados grupos com histórias e tradições diversas cabendo ao Estado protegê los e garantir espaço e permanência para essa diferenciação Parecenos indene de dúvidas de que essa seção destinada a tratar da cultura revela nova compreensão acerca do tema tomando o ter mo cultura não mais em sua acepção meramente folclórica monumen tal arquitetônica eou arqueológica nota dos textos constitucio nais pretéritos mas como conjunto de valores representações e regulações de vida que orientam os diversos grupos sociais numa visão que não se remete mais ao passado mas ao contrário se orienta e se renova no presente Isto se faz certo na medida em que a Consti tuição brasileira impõe ao Estado garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais apoiando e incentivando a valorização e a difusão das manifestações culturais populares indígenas e afrobrasileiras e das de outros Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 284 Anexo 285 grupos participantes do processo civilizatório nacional art 215 caput e seu 1o manifestações culturais que se traduzem em suas formas de expres são e em seus modos de criar fazer e viver art 216 I e II A Constituição de 1988 representa assim uma clivagem em re lação a todo o sistema constitucional pretérito ao reconhecer o Esta do brasileiro como pluriétnico e multicultural assegurando aos di versos grupos formadores dessa nacionalidade o exercício pleno de seus direitos de identidade própria E ao conferir aos remanescentes das comunidades de quilombos a propriedade das terras por eles ocupadas faz isso à vista da circuns tância de que os territórios físicos onde estão esses grupos constitu emse em espaços simbólicos de identidade de produção e reprodu ção cultural não sendo portanto algo exterior à identidade mas sim a ela imanente Se assim o é tratase a toda evidência de norma que veicula disposição típica de direito fundamental por disponibilizar a esses grupos o direito à vida significativamente compartilhada por permi tirlhes a eleição de seu próprio destino por assegurarlhes ao fim e ao cabo a liberdade que lhes permite instaurar novos processos es colhendo fins e elegendo os meios necessários para a sua realização e não mais submetêlos a uma ordem pautada na homogeneidade em que o específico de sua identidade se perdia na assimilação ao todo É ainda o direito de igualdade que se materializa concretamente assim configurada como igual direito de todos à afirmação e tutela de sua própria identidade Nota característica dos direitos fundamentais é a sua indisponi bilidade Como ensina Luigi Ferrajoli 200147 essa indisponibili dade há de ser entendida em sua dupla face indisponibilidade ativa que não permite aos seus titulares a sua alienação e indisponibilidade passiva no sentido de não serem expropriados ou limitados por ou tros sujeitos começando pelo Estado Neste sentido nenhuma maio ria sequer por unanimidade pode legitimamente decidir sobre a vio lação de um direito de uma minoria naquilo que diz respeito à sua própria identidade Mais uma vez valendonos da lição de Ferrajoli 200190 à vista do princípio da igualdade que se realiza com res peito à diferença nenhuma maioria pode decidir em matéria de di Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 285 Quilombos 286 reitos por conta dos demais tanto mais quando a minoria tem inte resses ligados à sua diferença Daí a razão por que as normas que veiculam tais direitos são chamadas téticas assim concebidas como aquelas que imediatamente dispõem sobre as situações por elas expressadas3 não se sujeitando os direitos ali previstos a serem constituídos modificados ou extintos por qualquer ato Distinguemse das normas ditas hipotéticas na exata medida em que as situações nestas previstas encontramse apenas pre dispostas pela norma a reclamar a intermediação de um ato legislativo jurídico para a sua realização Assim os direitos fundamentais são todos ex lege conferidos dire tamente pela Constituição e imediata e plenamente realizáveis não se admitindo a intermediação de ato de que natureza for para o seu exer cício pleno muito menos para imporlhes restrições ou diminuir o seu alcance como pretendeu fazer o decreto ora objeto de análise Resulta ainda inconstitucional o dispositivo ao exigir para o implemento do direito a permanência na terra por prazo determina do posto que a pretexto de interpretar a norma constitucional e dar lhe correta aplicação reproduz discurso próprio de práxis escravagista e o reintroduz na ordem jurídica vigente em evidente descompasso com o texto constitucional Com efeito anotam Michael Hardt e Antonio Negri 2001232 que a escravidão tem como princípio vetor a mobilidade quer sob a perspectiva do poder por meio do aparato repressivo para impedir a mobilidade e o nomadismo dos escravos quer por parte dos escravos com o desejo irreprimível de fuga Ao tomar os elementos sígnicos da norma constitucional e conotá los tal qual se fazia em 1741 posto que toda a interpretação se alça ao plano da mera mobilidade e na contraface a sua recusa importase a cultura da época da escravidão4 e se desorganiza não só uma retórica em razão de o signo ser agora compreendido em face de um novo contexto social mas toda uma ideologia pois se sub 3 Ferrajoli 2001 49 4 Segundo Umberto Eco sd3 todos os fenômenos da cultura são sistemas de signos isto é fenômenos de comunicação Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 286 Anexo 287 verte um regime de liberdades e igualdades construídos sob a égide da diferença étnica Seguindo ainda essa linha a norma pretensamente regulamenta dora do art 68 do ADCT conduz à conclusão absurda de que a Constituição rigorosamente estaria a instituir agora com todo o peso do direito quilombos tais como concebidos em 1741 pois o espaço de liberdade para a regulação ritual da vida seria obtido à custa do confinamento Ademais como antes assinalado a nota característica dos direi tos fundamentais é a indisponibilidade Nessa perspectiva não se autoriza que hermeneuticamente se conclua que um direito funda mental apenas tenha condições de se realizar com o sacrifício absolu to do outro pois se assim o fosse um deles perderia o traço da indisponibilidade Nesse passo o que o decreto postula de forma inconstitucional certamente é que o direito assegurado no art 68 do ADCT só se torne possível mediante o aniquilamento do direito de liberdade do direito de ir e vir do direito de eleger constantemente o local de permanência Mas não só o interregno de tempo entre os marcos inicial e final da ocupação como condições ao exercício do direito padecem de inconstitucionalidade Eles próprios considerados cada qual de per se revelam idêntico vício De início não há razão constitucional ou mesmo histórica para que o direito previsto no art 68 do ADCT remonte aos idos de 1888 Historicamente a figura do quilombo tal como significado à época reiterese antecede em muito o marco apontado tampouco encontra nele o seu período áureo à vista mesmo de medi das tendentes à abolição da escravidão já implementadas ou em fran co curso Resultaria ofensivo ao princípio da isonomia que o direito fosse reconhecido aos remanescentes dos quilombos estabelecidos em 1888 e não àqueles que existiram em época pretérita e não lograram prosseguir em sua existência até a época apontada Careceria assim de qualquer razoabilidade o marco inicial previsto no decreto Ademais e já foi assinalado o art 68 do ADCT orientase numa perspectiva de presente com vistas a assegurar a esses grupos étnicos ligados historicamente à escravidão o pleno exercício de seus direitos Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 287 Quilombos 288 de autodeterminação em face de sua identidade própria E porque o território é imanente à identidade o que a Constituição determina é a proteção desse território que se apresenta na atualidade sendo de todo irrelevante o espaço imemorialmente ocupado pelos ancestrais se não mais se configura como culturalmente significativo para as gerações presentes Do mesmo modo o marco final além de arbitrário revela nítido viés etnocentrista na medida em que se apresenta com um termo fatal além do qual se nega o direito à identidade étnica e o correlato terri tório que a requer e em certa medida a determina Neste ponto há dupla ofensa ao texto constitucional A uma porque alguém estranho ao grupo étnico é quem determina o prazo final de sua existência constitucionalmente amparada o que evidentemente conflita com a noção de plurietnicidade A duas por impor ao grupo uma rigidez cultural e impedilo de a partir de 5 de outubro de 1988 conceber novos estilos de vida de construir novas formas de vida coletiva en fim a dinâmica de qualquer comunidade real que se modifica se desloca idealiza projetos e os realiza sem perder por isso a sua iden tidade Apenas comunidades ideais erigidas a partir de ficções coisificadoras apresentamse como totalidades pétreas coerentes As reais ao contrário são marcadas pelo signo da mudança do impulso da reelaboração permanente Outros vícios Ao fazer a atuação estatal depender de provocação do interessa do desconhece o decreto que o art 68 do ADCT é comando dirigi do ao poder público consubstanciando obrigação de fazer indepen dentemente de solicitação dos interessados Desse modo não pode a lei muito menos um decreto fazer depender o direito de provi dência que não tem estatuto constitucional e mais grave ainda exi mir por tal fato o poder público de obrigação fundada no texto constitucional e de natureza incondicionada Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 288 Anexo 289 Por último o decreto além de atentar contra a ordem consti tucional revelase completamente destituído de utilidade ao fim pro posto regulamentação do art 68 do ADCT e padecendo de vício de ilegalidade A uma porque não enfrenta sequer remotamen te a questão da incidência desses remanescentes de comunidades de quilombos em áreas já tituladas sob o domínio privado ao não disci plinar os aspectos que necessariamente a tangenciam como a necessi dade forma e procedimento de desapropriação nulidade ou não dos títulos privados A duas porque limitandose à disciplina das terras da União o que resulta do fato de passar ao largo das terras sob domínio privado e manter implicitamente a competência dos esta dos e do Distrito Federal quanto aos seus bens além de não exau rir a regulamentação a que se destina conflita com a Lei no 9636 de 1551998 que dispõe especificamente sobre a regularização admi nistração aforamento e alienação de bens imóveis da União vg art 18 Em sendo ato normativo de estatura inferior à lei não há como prevalecer Lamentável que passados 13 anos da promulgação da Consti tuição de 1988 recusese o Executivo federal a emprestar ao art 68 do ADCT a dignidade que possui Referências bibliográficas Canotilho J J Gomes Direito constitucional Coimbra Almedina 1991 Eco Umberto A estrutura ausente 7 ed Perspectiva sd Ferrajoli Luigi Derechos y garantías la ley del más débil Madrid Trotta 2001 Hardt Michael Negri Antonio Império Rio de Janeiro Record 2001 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 289 Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 290 Sobre os autores Alfredo Wagner Berno de Almeida antropólogo realiza trabalho de pes quisa na Amazônia desde 1972 intervindo em situações de conflito social que envolvem camponeses quilombolas e povos indígenas Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira procuradora regional da Repú blica é membro da 6a Câmara de Coordenação e Revisão do Minis tério Público Federal Eliane Cantarino ODwyer professora do Departamento de Antropologia e do Programa de PósGraduação em Antropologia e Ciência Políti ca da Universidade Federal Fluminense tem experiência profissional em pesquisa elaboração de relatórios de identificação e laudos antro pológicos sobre populações seringueiras do Acre comunidades re manescentes de quilombos do Baixo Amazonas e do estado do Rio de Janeiro e de área indígena da préAmazônia maranhense Foi coor denadora do grupo de trabalho Terra de Quilombo da Associação Brasileira de Antropologia ABA na gestão 199496 e do projeto Terra de Quilombo do convênio ABAFundação Ford José Augusto Sampaio professor de antropologia da Universidade do Estado da Bahia Uneb e antropólogo da Associação Nacional de Ação Indigenista Anai tem experiência em relatórios antropológicos de identificação e delimitação de terras indígenas e de territórios de comunidades remanescentes de quilombos na Bahia e no Nordeste Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 291 Quilombos 292 José Paulo Freire de Carvalho advogado tem experiência em assessoria jurídica a comunidades remanescentes de quilombos e a populações tradicionais do Baixo Amazonas Bahia e Maranhão Maria de Lourdes Bandeira doutora em antropologia pela Universidade de São Paulo é professora do mestrado em educação da Universida de de Cuiabá Unic e colaboradora do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso UFMT Coordena a linha de pesquisa sobre educação e diversidade étnica e cultural tendo realizado pesquisas sobre territorialidade ne gra e relatórios de identificação em comunidades negras rurais rema nescentes de quilombos do Mato Grosso Osvaldo Martins de Oliveira mestre em antropologia pelo Programa de PósGraduação em Antropologia e Ciência Política da Universidade Federal Fluminense UFF e doutorando em antropologia pelo Pro grama de PósGraduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC tem elaborado relatórios de reco nhecimento étnico de diversas comunidades negras remanescentes de quilombos no Espírito Santo Minas Gerais Rio de Janeiro e Bahia Sheila Brasileiro doutoranda em ciências sociais da Universidade Fede ral da Bahia Ufba é analista pericial em antropologia do Ministério Público Federal Triana de Veneza Sodré e Dantas historiadora é mestre em educação do negro pela Universidade Federal de Mato Grosso UFMT onde cursa o doutorado professora da Universidade de Cuiabá Unic e técnica do Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento Urbano IPDU da Prefeitura Municipal de Cuiabá Vânia Rocha Fialho de Paiva e Souza antropóloga é professora da Univer sidade de Pernambuco UPE e tem experiência em pesquisa e traba lhos de identificação e delimitação de grupos indígenas do Nordeste e comunidades remanescentes de quilombos Quilombos Ebookpmd 2442009 1706 292 OUTROS LIVROS DE INTERESSE Títulos já publicados A BANALIZAÇÃO DA INJUSTIÇA SOCIAL 4ª EDIÇÃO Christophe Dejours 160p O BRASIL NÃO É PARA PRINCIPIANTES CARNAVAIS MALANDROS E HERÓIS 20 ANOS DEPOIS 2ª EDIÇÃO Laura G Gomes Lívia Barbosa e José Drummond orgs 268p CIDADANIA E VIOLÊNCIA 2ª EDIÇÃO Gilberto Velho e Marcos Alvito orgs coedição UFRJ 372p AS CORES DE ACARI UMA FAVELA CARIOCA Marcos Alvito 310p O ESPÍRITO DA DÁDIVA Jacques T Godbout com Alain Caillé 272p A EXPERIÊNCIA DA FAMA INDIVIDUALISMO E COMUNICAÇÃO DE MASSA Maria Claudia Coelho 148p MULHERES MILITÂNCIA E MEMÓRIA Elizabeth Fernandes Xavier Ferreira 216p NOBRES ANJOS UM ESTUDO DE TÓXICOS E HIERARQUIA Gilberto Velho 216p VELHICE OU TERCEIRA IDADE 2ª EDIÇÃO Myriam Moraes Lins de Barros org 236p Os livros podem ser encontrados nas livrarias ou diretamente na Editora FGV Tels 0800217777 e 0XX2125595543 Fax 0XX2125595532 email editorafgvbr httpwwwfgvbreditora Untitled3 2442009 1812 1 ESTRATÉGIA DE ESTÍMULO À LEITURA ENTRE CRIANÇAS QUILOMBOLAS 1 INTRODUÇÃO 2 O Brasil carrega consigo um grande histórico de violação e negação de direitos aos cidadãos que vivem em situação de vulnerabilidade socioeconômica em especial para com os descendentes de escravizados Estes últimos além das dificuldades socioeconômicas são obrigados a viver com o racismo reflexo da escravidão e que afeta diretamente os sujeitos que moram nas comunidades quilombolas presentes em todo o território nacional Sobre este aspecto Coutinho ano p esclarece que as comunidades remanescentes de quilombos que se distribuem por todo o país caracterizamse também por ter sua identidade étnica negada historicamente num acobertamento que despreza e marginaliza as particularidades do povo afrodescendente Essas pessoas encontram a efetividade da resistência e da emancipação nos quilombos enquanto espaços simbólicos de luta por liberdade e respeito às diferenças Dessa forma entendese que a discriminação racial tão decisivamente presente na pósmodernidade relacionase intrinsecamente à negação da inserção e valorização da cultura afrorepresentativa de uma grande parcela da população baiana e em última instância relacionase com as práticas de leitura COUTINHO 201 p O acobertamento da identidade étnica dos sujeitos das comunidades quilombolas discutidos por Coutinho ano é um reflexo da vulnerabilidade socioeconômica vivenciada por estes que é potencializada pelo silêncio e negligência do poder público Entre os problemas enfrentados pelos sujeitos destas comunidades está o acesso aos livros e as bibliotecas fora do ambiente escolar A importância da prática leitora na formação do sujeito é indiscutível e deve ser estimulada em diferentes ambientes inclusive no ambiente familiar tendo como referência os adultos leitores De acordo com Souza 2009 o responsável pela formação leitora da criança não deve escolher os títulos que a criança deve ler para não resultar em desinteresse Um único livro não tem condições de entreter a todos igualmente cada criança pode se identificar por uma temática diferente por isso a importância de um acervo diversificado quando se pretende estimular a leitura Assim a experiência da seleção dos títulos a serem lidos deve ser livre Observase contudo que nas comunidades quilombolas o acesso aos livros e a leitura pelas crianças ocorre em geral no ambiente escolar que carecem de uma estrutura atraente e estimulante para formação de leitores para colocar citação A leitura é uma ferramenta muito importante para o desenvolvimento intelectual do ser humano contudo costuma ser uma prática distante da vida da maioria dos moradores de comunidades quilombolas por diferentes fatores a exemplo da alta taxa de analfabetismo além da carecem de ambientes nestas comunidades capazes de inserir a população na prática leitora fora do contexto escolar As Tecnologias da Informação deu um grande avanço conseguindo cobrir grande parte dos territórios chegando até as regiões mais afastadas como é o caso de boa parte não comunidades remanescentes de quilombos A Internet é uma grande fonte de informação e muito meio de comunicação bastante ágil mas o excesso de conteúdo pode ser tornar um grande problema devido a confusão causada pela carga de informação que se recebe no meio digital ao juntarmos esses fatores com a dificuldade de acesso à educação e leitura os danos causados podem muitos danos 3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICO A presente pesquisa faz parte do BiblioQuilombola projeto práticas Leitoras com crianças em comunidades Quilombolas têm como objetivo promover o estímulo à leitura e desenvolver a competência da informação através de histórias que representam a cultura negra Faremos encontros na comunidade a fim de entender as demandas informacionais da comunidade investigada para assim poder implementar estratégias que possam incentivar as práticas Leitoras e faremos uma busca por textos que possa ter ligação com a realidade nativa para realizar rodas de leitura com as crianças da comunidade devido a pandemia do covid19 adotaremos estratégias para conseguir pôr em prática as oficinas de leitura como a gravação de vídeos com discussões onde os envolvidos podem começar e mandar gravações para trocar ideias a respeito do conteúdo discutido 4 ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS RESULTADOS 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS SOUZA Silvana Ferreira Estratégias de Leitura Para Formação de Crianças Leitoras 2009 Dissertação Mestrado em Educação Faculdade de Ciência e Tecnologia Universidade Estadual Paulista Presidente Prudente 2009 SANTOS Jaires Oliveira RODRIGUES Kátia de Oliveira FERREIRA Valdinéia Barreto BiblioQuilombola Um Projeto em Construção 2019 Universidade Federal da Bahia Disponível em httpsscholargooglecombrscholarhlptBRassdt02C5qBiblioQuilombolabtn Gdgsqabsu23p3DrsIWO0unvrMJ Acesso em 28 dez 2021 ORALIDADE UM ELO ENTRE A LEITURA E A ESCRITA Juliana Maria Coelho1 Juliana Roberto Cerqueira2 Maria Laise Oliveira Santos 3 Resumo As bases das tradições da cultura oral são fortes aliadas no processo de letramento Em se tratando de comunidades quilombolas entendemos que a utilização da oralidade como ponte entre leitura e escrita está para além de tornála mera ferramenta para o desenvolvimento de vocabulário apreensão da linguagem habilidades narrativas e de atenção Aliarse à oralidade neste processo serve também como impulso para o fortalecimento de identidades se considerarmos essas práticas como resgate à ancestralidade O projeto objetiva estimular a leitura e a escrita entre crianças quilombolas integrando estas práticas à oralidade através da perspectiva decolonial de modo a não hierarquizar estes três pilares envolvidos no processo oralidade leitura e escrita como assim o faz a cultura hegemônica Esta pesquisa integra o projeto Práticas leitoras com crianças de comunidade quilombola realizado pelo grupo de pesquisa Biblioquilombola A pesquisa caracterizase como estudo de caso a ser realizado em uma comunidade quilombola baiana selecionada por amostragem não probabilística por conveniência Para alcançar o objetivo dividiuse a pesquisa em seis etapas Na primeira etapa realizarseá a identificação do perfil literário das crianças participantes da pesquisa Na segunda etapa optamos pelas contações de histórias a partir de textos com temáticas que dialogam com o contexto sociocultural das comunidades quilombolas assim como temáticas livres narradas por membros voluntários da comunidade Na terceira etapa ocorrerá a oficina de Orikis gênero literário oral da cultura Yoruba A proposta da quarta etapa consiste na produção de textos pelas crianças sobre uma das temáticas apresentadas nos encontros Quanto à quinta etapa nesta propõese a socialização dos textos produzidos a fim de embasar e inspirar o aprimoramento dos escritos individuais através da reescrita dos mesmos A sexta e última etapa darseá com a avaliação do desenvolvimento dos processos de leitura e escrita O meio através do qual será implantado o projeto dependerá das condições sanitárias vigentes com relação à pandemia da covid19 podendo acontecer de maneira presencial híbrida ou remota adotando as devidas adaptações para cada uma destas modalidades Palavraschave crianças quilombolas oralidade práticas leitoras INTRODUÇÃO A oralidade ocupa vários espaços no âmbito cultural social e educacional é uma prática que está diretamente ligada ao desenvolvimento de competências relacionadas à 3 Graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe Email xx 2 Graduanda em Biblioteconomia EAD pela Universidade Federal da Bahia em par Email xx 1 Graduanda em Biblioteconomia pela Universidade Federal da Bahia E mail comunicação interação social leitura e escrita conforme CHAER e GUIMARÃES Essas duas últimas são objetos de estudo deste artigo que visa compreender a conexão que a oralidade produz entre a leitura e a escrita entendendoa como elemento fundamental em si mesmo e no processo de letramento As práticas leitoras sejam elas textuais ou não são importantes ferramentas para o desenvolvimento do leitor e do hábito da leitura consequentemente também o são para o desenvolvimento de sujeitos mais críticos e atuantes na leitura e por que não dizer escrita da sociedade Tendo como base a importância dessa ação o objetivo geral desse projeto é implantar coletivamente e a partir das demandas informacionais das crianças das comunidades quilombolas participantes estratégias e ações que estimulem práticas leitoras inclusive no período de afastamento social Nesta parte incluiremos um breve texto sobre a comunidade e o perfil das crianças O projeto foi planejado em seis etapas e será realizado na comunidade quilombola nome da comunidade escolhida com crianças de idade até xx anos Com o intuito de promover a valorização da oralidade e estimular a leitura contação de histórias que fortaleçam a identidade cultural destes valorização da cultura oral africana através das oficinas de orikis e a produção dos próprios orikis como forma de incentivar a leitura e escrita entre os participantes A primeira parte do projeto terá como base uma análise qualitativa para identificar o perfil ou perfis literários das crianças quilombolas essa avaliação será realizada por meio de questionários que serão respondidos por todas as crianças participantes do projeto Os dados obtidos nessa pesquisa serão usados no intuito de direcionar a escolha dos textos para a fase da contação de histórias quando estas não forem escolhidas pelos membros da comunidade voluntários à contação Será usado também o método de observação para melhor exame da receptividade das ações nessa fase será observado o comportamento dos estudantes durante o processo de contação de histórias e da oficina bem como suas respectivas necessidades informacionais Aqui serão feitas anotações e possíveis gravações para posterior consulta Os materiais produzidos nas oficinas também serão analisados O projeto foi idealizado para implementação em comunidades remanescentes de quilombos as chamadas comunidades quilombolas levando em consideração o valor histórico desses grupos e sua discrepância com relação às questões sociais que ainda hoje são enfrentadas cotidianamente nas referidas comunidades São grupos que têm a resistência tatuada em sua história mas essa energia ainda se faz necessária sobretudo nas lutas e reivindicações por espaço reconhecimento e por território Enxergar essa condição de resistência intrínseca a esta parcela da população não é difícil basta ligar a TV ler um jornal ou acompanhar as redes sociais de algum quilombo para perceber suas lutas diárias pelos direitos básicos Em 2003 o Decreto n 4887 foi criado para Regulamentar o procedimento para identificação reconhecimento delimitação demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos e traz a definição de comunidade quilombola Consideramse remanescentes das comunidades dos quilombos para os fins deste Decreto os grupos étnicoraciais segundo critérios de autoatribuição com trajetória histórica própria dotados de relações territoriais específicas com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofridaBRASIL 2003 A proposta de trazer para a comunidade práticas leitoras alicerçadas na tradição oral acaba por caracterizarse de todo o modo como parte de um processo de reparação histórica e social Estimulando a leitura e a escrita das crianças valorizando e possibilitando o contato com as culturas africanas e afrodiaspóricas e consequentemente aproximandoas do encontro com suas identidades individuais e coletivas Para Júnior Bussoletti e Haerter A contação de histórias constituise como elemento de resistência em comunidades quilombolas também por se contrapor a formas de silenciamento cultural opondose a formas homogeneizantes de cultura contribuindo para que se constitua como mote de reflexão acerca de segregação social do cotidiano de lutas diárias e de questões étnicas mais abrangentesBARBOSA JÙNIOR BUSSOLETTI HAERTER 2017 p98 Essas atividades serão realizadas de forma leve pedagógica e lúdica tentando incutir o prazer de ler e a beleza das histórias no intento de gerar a curiosidade para os livros que são portas para navegar mares inexplorados despertando as mais variadas sensações aflorando sonhos e estimulando competências Leitura Competências e Desenvolvimento de Identidade Na Perspectiva educacional a oralidade trabalhada de forma constante é um elemento valioso para a formação de competências Se pudermos conceber esta informação de maneira imagética podemos retratar a oralidade como uma ponte construída em um penhasco que tem o papel de levar as pessoas de determinada comunidade até uma fonte de recursos que promoverá o progresso localSe nos detivermos ainda na metáfora da ponte poderemos perceber que o supracitado progresso que estaria do outro lado do penhasco por meio desta mesma ponte está sempre vinculado e nutrido pela identidade cultural da comunidade em questão De acordo com Chaer e Guimarães 2012 p 75mais que ninguém a professora deve saber que o treino e a participação direta em atividades específicas à oralidade levarão a criança a desenvolver competências como ler e escrever à aquisição de padrões linguísticos desejáveis e ao melhor ajustamento social Acrescentamos à afirmação de Chaer e Guimarães que este é papel não só das professoras e professores como também das mediadoras e mediadores de leitura e reafirmamos que em se tratando de comunidades Quilombolas a utilização da oralidade no ambiente de aprendizagem é importante não apenas para o desenvolvimento das mais diversas competências no âmbito da comunicação verbal como também funciona para o fortalecimento da identidade dessas crianças se considerarmos que o estímulo a essas práticas é também um resgate à ancestralidade uma vez que de acordo com Machado No pensamento africano a fala ganha força forma e sentido força e orientação para vida A palavra é vida é ação é jeito de aprender e de ensinar Assim nasceram os mitos Contar um mito em muitos lugares na África faz parte do jeito de educar a criança que mesmo antes de ir para a escola aprende as histórias da sua comunidade os acontecimentos passados valorizandoos como novidadeMACHADO 2003 p34 Observando atividades de estímulo e valorização da oralidade Chaer e Guimarães 2012 nos indicam algumas ferramentas e atividades através das quais se torna possível trabalhála nos ambientes de aprendizagem são elas a poesia a música as rodas de conversa a leitura que pode se dar também por meio da contação de histórias a dramatização o reconto de histórias e os fantoches Nos atendo à quatro destes itens Poesia rodas de conversa leitura e reconto de histórias que por hora se adequam melhor à proposta de trabalhar oralidade leitura e escrita com crianças quilombolas acrescentamos que neste ou em outros contextos de aprendizagem é também de fundamental importância a escolha acertada das temáticas que serão trabalhadas ao longo das atividades em questão Em seu Estudo das Mitologias e Gêneros Literários da Oralidade Africana e AfroBrasileira no Contexto Educacional Brasileiro a relevância da Lei 1063903 Poli 2014 defende a inserção da mitologia Africana no contexto educacional da liberdade de comparar este à poesia Trabalhar a Poesia em sala de aula pensando no desenvolvimento da oralidade entendendo que esta prática serve ao fortalecimento e enriquecimento identitário de todos os cidadãos sobretudo daqueles que tem sua ancestralidade fundamentada em civilizações africanas e afrodiaspóricas e é tomando por base esta afirmação que durante a primeira etapa deste projeto onde serão trabalhadas as contações de história decidimos priorizar a mitologia africana e temáticas afins para trabalhar com o grupo em questão Como fora dito anteriormente a primeira etapa de nosso projeto se dará através das contações de histórias Através destas atividades embora estas sejam fazeres fundamentalmente orais é possível o estímulo às práticas de leitura e escrita Chaer e Guimarães 2012 p78 nos apontam uma série de outros benefícios gerados pelo contato com a leitura que vale ressaltar pode ser estimulada através da já mencionada contação de histórias Considerase pois que a criança que tem contato com a literatura desde cedo lendo ou ouvindo histórias é beneficiada em diversos sentidos ela aprende a pronunciar melhor as palavras e se comunica melhor de forma geral Por meio da leitura a criança desenvolve a criatividade a imaginação e adquire cultura conhecimentos e valores além de favorecer a familiaridade com o mundo da escrita E mais a leitura de histórias é uma rica fonte de aprendizagem de novos vocabulários Embora a criança ainda não saiba ler ouvir um texto já é uma forma de leitura Dando um breve destaque aos itens supracitados Cultura e valores aproveitar aqui para escrever um pouco sobre culturas hegemônicas e contrahegemônicas METODOLOGIA ANÁLISE DE RESULTADOS CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS BARBOSA JÙNIOR H F BUSSOLETTI D M HAERTER L A contação de histórias como elemento de resistência em comunidades quilombolas Boitatá Londrina n 23 janjul 2017 BRASIL Decreto n 4887 de 20 de novembro de 2003 Regulamenta o procedimento para identificação reconhecimento delimitação demarcação e titulação das terras Diário Oficial Brasília 20 nov 2003Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03decreto2003d4887htm Acesso em jan de 2022 CHAER M R GUIMARÃES E G A A importância da oralidade educação infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental Pergaminho p 7188 nov 2012 MACHADO V Mitos Afrobrasileiros e vivências educacionais Disponível em wwweducacaosalvadorbagovbrdocumentosmitospdf Acesso em nov de 2021 MOTAC M A PEREIRA L A SILVAF O Modos de viver partilhar e construir experiências na Pedagogia GriôRevista Eletrônica de Educação v 14 122 e3060025 jandez 2020 POLI I S A Importância do Estudo das Mitologias e Gêneros Literários da Oralidade Africana e AfroBrasileira no Contexto Educacional Brasileiro A Relevância da Lei 1063903 2014 133 p Dissertação de Mestrado Faculdade de Educação Universidade de São Paulo São Paulo2014 GT3 1041 P Ô S T E R INFOEDUCAÇÃO E CULTURA QUILOMBOLA DIÁLOGO ENTRE SUJEITOS E SABERES Edison Luís dos Santos Ivete Pieruccini Resumo Estudo de caráter etnográfico tendo em vista descrição de elementos do processo de apropriação social de informação em culturas quilombolas a partir da implantação de Programa de Infoeducação na Escolinha Jambeiro Cambury UbatubaSP entendido como indispensável ao uso e produção de novos conhecimentos pela comunidade local Palavraschave Infoeducação Mediação cultural Quilombolas Dispositivos dialógicos Abstract Study the process of social appropriation of information in quilombolas communities and implementation of the Programme Infoeducation in Residents Association of Cambury Quilombo UbatubaSP We seek to meet the demand for cognitive skills in the production and use of Dialogic Devices and strengthen the role of cultural mediation in subjects knowing Key words Infoeducation Cultural mediation Quilombolas Dialogic devices 2 Introdução Políticas culturais que visam ampliar o acesso à cultura disponibilizando livros e outros dispositivos em nome da inclusão social têm são pouco eficazes no combate ao analfabetismo em geral atualmente vivemos processo de apartheid cultural sem precedentes caracterizado pela marginalização em relação aos bens culturais e inaptidão para a busca significativa de informação Tais lacunas inibem a apropriação do saber um número significativo de brasileiros não sabe ou não aprendeu a se informar outros tantos apresentam pouca proficiência em leitura não compreendem o que leem têm dificuldade em interpretar textos e de posicionarse criticamente frente ao que leem são obstáculos à formação de sujeitos autônomos e críticos que necessitam apropriarse do conhecimento a fim de exercer a cidadania plena e construir novos saberes O modelo ovos códigos e valores socioculturais nos novos tempos informarse e informar mudaram de natureza e de estatuto socioculturaconvencional de ensino no Brasil tem sido a mais pródiga fábrica de medíocres em informação Dados à estampa são baixos os índices de rendimento e as deficiências de aprendizado traduzidos em apatia social e total perda de interesse A falta de aptidão cognitiva é o maior obstáculo para que as pessoas possam apropriarse de novos conhecimentos O universo abundante de informações facilitado pelo maior acesso a instrumentos ferramentas e novas tecnologias não implica a apropriação automática de nl Já não são mais atos simples aprendidos GT3 1042 apenas informalmente no cotidiano Antes são atos cognitivos cada vez mais complexos implicando saberes e fazeres que necessitam ser aprendidos de modo sistemático orgânico e contínuo como condição de participação afirmativa na vida cultural de nosso tempo PERROTTI 2008 7 Diante deste cenário desafiador como diagnosticar e avaliar o impacto de políticas públicas em comunidades tradicionais quilombolas onde o acesso aos dispositivos de informação e comunicação é escasso sobretudo nos rincões onde não há escolas nem bibliotecas nem hospitais E qual deve ser o papel dos dispositivos dialógicos nos processos de apropriação social da informação e na construção de novos saberes De que modo tais dispositivos podem ampliar significativamente a inteligência coletiva e o protagonismo cultural dos sujeitos do saber A relevância social deste projeto de pesquisa consiste em apresentar estudo etnográfico sobre o processo de apropriação social do conhecimento por meio de diálogo entre conceitos mediação cultural ordem informacional dialógica infoeducação e uso significativo de dispositivos dialógicos de informação e comunicação Uma proposta alternativa aos modelos convencionais edificados sob o paradigma vertical da ordem informacional monológica Aqui valorizarseá a pesquisa colaborativa como artesanato CALLON 2004 6479 e a busca por modelos de ação voluntária e coletiva que possam ser traduzidos em políticas públicas permanentes a fim de responder às necessidades e desejos simbólicos dos próprios sujeitos do saber A missão maiúscula consiste na implantação de Programa de Infoeducação na Escolinha Jambeiro localizada na comunidade de remanescentes quilombolas de Cambury UbatubaSP Objetivo geral Estudo do processo de apropriação social da informação na comunidade quilombola do Cambury Ubatuba Objetivos específicos Estudar o processo de apropriação social da informação em comunidades quilombolas por meio de pesquisa etnográfica colaborativa Produzir programa de infoeducação em permanente diálogo com quilombolas e implementálo na Escolinha Jambeiro no Quilombo de Cambury Experimentar novas formas de uso significativo e alternativo de dispositivos dialógicos de informação e comunicação que favoreçam o empoderamento e o protagonismo sociocultural dos sujeitos do saber Propor adoção de políticas públicas pautadas na pedagogia cultural da infoeducação como alternativa de uso e apropriação social do conhecimento 3 Referencial teóricometodológico A busca do diálogo foi a principal motivação deste exercício etnográfico Um diálogo nas veredas entre o conhecimento científico e os saberes tradicionais quilombolas Neste trabalho de campo optamos por percorrer as trilhas da investigação social interpretativa cujo enfoque se caracteriza pelo GT3 1043 uso da abordagem qualitativa em contraposição ao esquema positivista e quantitativista de pesquisa que fragmenta a realidade em unidades passíveis de mensuração estudandoas isoladamente Conforme argumenta F Erickson o objeto da investigação social interpretativa é a ação não a conduta WITTROCK 1989 214 Segundo esta perspectiva o trabalho de cunho investigativo que realizamos em campo constitui apenas um retrato metonímico e circunstancial de uma realidade social mais ampla e complexa Não sendo possível desvelar toda a trama de significados por meio de um exercício etnográfico adotouse aqui uma estratégia de aproximação progressiva do local por meio de duas visitas intercaladas em datas próximas durante o mês de junho e julho de 2011 Nas duas ocasiões enfrentamos desafios e temores ao ingressar no campo Diante das dificuldades para considerar os diversos componentes do contexto social mais amplo história geografia cultura educação e sociedade entendidos como extralocais nosso intuito foi estabelecer possíveis relações na construção da cadeia de significados interpretar a cultura quilombola por meio da aproximação gradativa ao significado e anotar qual a compreensão que os participantes têm dos acontecimentos Não bastaria a simples imersão no cotidiano de outra cultura tornarse meramente nativo para chegar a compreendêla a experiência cotidiana não é sistemática e até que a cultura apareça retratada coerentemente no texto etnográfico um longo caminho há que ser percorrido CALDEIRA 1988 137 na medida em que o trabalho etnográfico envolve observação e participação de longo prazo no terreno Enquanto elemento de identidade a perspectiva adotada por este ensaio etnográfico é a de que a relação com a terra faz parte do ser quilombola e fundamentase numa concepção de educação cultural encarnada na dinâmica da vida conhecer as sementes e os tempos de plantar e de colher os ciclos da chuva e as formas de aproveitamento de água a cultura de certas plantas e animais típicos etc Neste caso cada quilombo É um caso Esta é a orientação principal da busca empreendida para desvelar os significados deste microcosmo social objeto de investigação interpretativa reflexão e observação em trabalho de campo que resultou na elaboração deste exercício etnográfico 4 Abordagem metodológica A estratégia combinada de pesquisa etnográfica e pesquisa colaborativa busca estudar dimensões significativas de dispositivos de informação e comunicação adequadas à realidade sociocultural ambiental e econômica da comunidade quilombola de Cambury entorno expressões culturais participação deficiências desafios etc O passo importante será a implantação de Programa de Infoeducação com dispositivos dialógicos de informação e comunicação DDIC construídos em processo colaborativo O êxito do Programa de Infoeducação dependerá do diálogo e das negociações junto aos quilombolas bem como das mudanças e sugestões dos atores sociais que se apropriarão dos DDICs Pretende liberar as iniciativas coletivas dando maior espaço aos sujeitos do saber a fim de suscitar reações de todo tipo engajamento resistência crítica diálogo e negociação Os principais momentos a serem contemplados pela abordagem metodológica são os seguintes GT3 1044 a Pesquisa etnográfica para reconhecimento e estudo do processo de apropriação social do conhecimento na comunidade quilombola de Cambury b Estudo de dispositivos dialógicos de informação e comunicação adequados ao contexto local de mediação cultural c Estudo dos saberes tradicionais quilombolas e suas dimensões significativas d Desenho construção e implementação de Programa de Infoeducação na Escolinha Jambeiro Quilombo de Cambury UbatubaSP ver mapa 5 Resultados Discussão Para entender as complexas relações sociais da cultura tradicional de Cambury especialmente a quilombolacaiçara foi preciso afastarse desconhecer dos conhecimentos acumulados até aqui e reconhecer uma realidade complexa composta pela mestiçagem pela diferença e pela variedade cultural Em nossa travessia por esta trama de significados esses foram os principais elementos constitutivos do universo polifônico e cultural de Cambury que nos fala das justas aspirações a uma vida mais digna e o desejo de ascensão é também uma forma de protesto e expressão de certos direitos elementares Para a busca de significados escolhemos o espaço das fronteiras das mediações Mas em Cambury onde poderiam ocorrer essas mediações A suspeita inicial recaiu sobre a cotidianidade familiar na medida em que se constitui um dos poucos lugares onde o indivíduo se confronta com o outro e onde também manifesta suas ânsias e frustrações Em Cambury onde todo mundo é parente de todo mundo o exercício etnográfico consistiu basicamente em situarse no contexto dessa cotidianidade familiar em busca de significados Assim foi possível observar neste exercício etnográfico quão difícil é a vida para esta cultura marginal lateral que luta para manterse viva diante das pressões do mercado imobiliário da indústria cultural e do turismo o sentimento de logro diante das sobredeterminações arbitrárias do poder público enfim a sensação de impotência causada pelos avanços técnicocientíficos da sociedade capitalista A sociedade não pode simplesmente desdenhar os valores culturais das comunidades tradicionais tampouco manterse completamente indiferente a elas Há uma interferência mútua de uma sobre a outra Vivemos os paradoxos da sociedade pósmoderna paralisada pelo excesso de informação sem sentido uma sociedade globalizada que no seu bojo transporta a miséria a marginalização e a exclusão da grande maioria da população mundial SANTOS 2002 53 e outros processos ocultos que se traduzem pelo esfumaçamento dos parâmetros de tempo e espaço a negação aos direitos de existência de permanência e preservação da memória principalmente quanto às particularidades socioculturais das populações tradicionais o respeito a proteção e a promoção da diversidade de suas expressões culturais GT3 1045 6 Conclusão A falta de aptidão cognitiva é o maior obstáculo para que as pessoas possam apropriarse de novos conhecimentos O universo abundante de informações facilitado pelo maior acesso a instrumentos ferramentas e novas tecnologias informacionais não implica a apropriação automática de novos códigos e valores socioculturais nos novos tempos informarse e informar mudaram de natureza e de estatuto sociocultural Já não são mais atos simples aprendidos apenas informalmente no cotidiano Antes são atos cognitivos cada vez mais complexos implicando saberes e fazeres que necessitam ser aprendidos de modo sistemático orgânico e contínuo como condição de participação afirmativa na vida cultural de nosso tempo PERROTTI 2008 7 Sem a aprendizagem dos novos saberes informacionais os remanescentes de quilombos de todo o país terão ainda maior dificuldades de dar um salto para o futuro o veto cognitivo impede as de integrarse à cultura assimilar processar e produzir novos saberes na algaravia informacional da aldeia global Ensinar a buscar informação a pesquisar a desenvolver o espírito e a autonomia investigativos são aspectos centrais incluídos nos programas de educação para a informação Sem tais competências e atitudes o sujeito não consegue apropriarse das informações necessárias à construção do conhecimento nem desenvolver atitudes de interesse em conhecer mesmo se exposto aos diferentes produtos culturais Sem estruturas socioculturais que lhe dê apoio sem saber buscar informação a maioria dos sujeitos perdese nas tramas do conhecimento sem condições de apropriarse nem da memória nem dos saberes de seu tempo Está incapacitado portanto para inventar e projetar o futuro PIERUCCINI 2004 11 O Programa de Infoeducação ao contemplar o diálogo com a comunidade local não deixará em aberto as relações com o amplo universo de signos em circulação Tal processo colocaria a apropriação cultural em risco confinando os sujeitos à própria memória A aposta maiúscula deste projeto de pesquisa será a criação de um Programa de Infoeducação Quilombola na Escolinha Jambeiro em Cambury UbatubaSP numa perspectiva de diálogo entre sujeitos e saberes para que possam reinventar o cotidiano e ampliar a esfera do ser Perspectivas Apostamos na criação de dispositivos dialógicos de informação e comunicação que superem o mero processo de assimilação de informações a fim de reverter o quadro de apatia sociocultural um novo modo de pensar e agir com formas de experimentação do saber que fomentem a iniciativa a criatividade a autonomia a dúvida e a independência intelectual dos sujeitos para que sejam protagonistas de sua própria história 7 REFERÊNCIAS BARATIN M JACOB C Org O poder das bibliotecas a memória dos livros no Ocidente RJ UFRJ 2008 BOSI A Dialética da colonização 3ª ed SP Companhia das Letras 1998 GT3 1046 BURKE P Uma história social do conhecimento RJ Jorge Zahar 2003 CALLON M Por uma nova abordagem da ciência da inovação e do mercado o papel das redes sociotécnicas In Tramas da rede Porto Alegre Sulina 2004 CANCLINI N G Diferentes desiguais e desconectados RJ Ed UFRJ 2004 Consumidores e cidadãos conflitos multiculturais da globalização RJ Ed UFRJ 2001 CASTELLS M Internet e sociedade em rede In MORAES D Org Por uma outra comunicação RJ Record 2003 CHARLOT B Da relação com o saber elementos para uma teoria Porto Alegre Artmed 2000 CHARTIER R Formas e sentido Cultura escrita entre distinção e apropriação Campinas Mercado de LetrasALB 2004 CHAUI M Brasil mito fundador e sociedade autoritária SP Fundação Perseu Abramo 2004 COELHO J T Dicionário crítico de política cultural cultura e imaginário SP FapespIluminuras 2004 GOLDENBERG M A arte de pesquisar como fazer pesquisa qualificativa em ciências sociais RJ Record 2007 HALL S A identidade cultural na pósmodernidade RJ DPA 2000 IANNI O A era do globalismo 8ª ed SP Civilização Brasileira 2004 LE COADIC YF A ciência da informação Brasília Briquet de Lemos 1996 MORIN E A cabeça bemfeita repensar a reforma reformar o pensamento RJ Bertrand Brasil 2004 A religação dos saberes o desafio do século XXI RJ Bertrand Brasil 2002 Saberes globais e saberes locais o olhar transdisciplinar SP Garamond 2000 MUNANGA K Org Superando o racismo na escola 2ª ed rev Brasília MEC 2005 PARENTE A Org Tramas da rede Porto Alegre Sulina 2004 PAULA L R de Relatório técnicocientífico sobre os remanescentes da comunidade de quilombo de Camburi Ubatuba SP SP ITESP abr2002 PERRENOUD P THURLER M G Competências para ensinar no século XXI Porto Alegre Artes Médicas 2002 PERROTTI E A aventura de conhecer entre a falta e o excesso de informações In Salto para o futuro v 28 n 15 38 set 2008 Lugares de leitura a escola como espaço de leitura In Salto para o futuro p 828 2004 Confinamento cultural infância e leitura SP Summus 1990 PIERUCCINI I Infoeducação saberes e fazeres da contemporaneidade In Informação e contemporaneidade perspectivas Recife Néctar 2007 PIERUCCINI I A ordem informacional dialógica estudo sobre a busca de informação em educação Tese de Doutoramento São Paulo ECA USP 2004 A busca do conhecimento na escola a pesquisa escolar e a construção do conhecimento In Salto para o futuro v 28 n 15 p 47 set 2008 POSTMAN N Tecnopólio a rendição da cultura à tecnologia SP Nobel 1994 GT3 1047 SANTOS B S Um discurso sobre as ciências Porto Afrontamento 1987 SANTOS L G dos Politizar as novas tecnologias o impacto sociotécnico da informação digital e genética SP Editora 34 2003 SANTOS M Por uma outra globalização do pensamento único à consciência universal RJ Record 2005 Pensando o espaço do homem 5a ed SP Edusp 2004 SOARES C C CARNEIRO M E R Bibliotecas rurais para a inclusão social no Brasil In Inclusão Social Brasília v 3 n 2 p 1524 janjun 2010 SOMMER L H BUJES M I E Educação e cultura contemporânea articulações provocações e transgressões em novas paisagens Canoas Ed Ulbras 2006 TRIVINHO E A condição transpolítica da cibercultura Famecos Porto Alegre n 31 2006 91101 WARSCHAUER M Tecnologia e inclusão social a exclusão digital em debate SP Senac 2006