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ESTACIO
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DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 30 ÁLVARO DE CAMPOS E A POÉTICA DA EXISTÊNCIA Franklin Leopoldo e Silva1 Recebido 21042016 Aprovado 27052016 RESUMO Tratase de apontar alguns aspectos que permitam uma leitura de Álvaro de Campos como representação poética da Existência Tanto na temática quanto nas formas de expressão seria possível encontrar na poesia de Campos a tentativa de recusar a representação essencialista da realidade aquela que pretende chegar ao núcleo essencial a partir do qual as coisas se explicitariam Existir para as coisas é apresentarse como sensível existir para o sujeito é apreenderse como sensação Neste sentido pensar conceitualmente é trair a sensação a totalidade difusa e infundamentada do real Assim também as palavras seriam sobretudo obstáculo e obscurecimento sendo preciso atravessálas para recuperar o mutismo primordial do sensível pré reflexivo tarefa que angustia e desorienta o poeta A partir dos comentários teóricos de Pessoa acerca do sensacionismo presente também em outros heterônimos procurase compreender a situação poética de Álvaro de Campos encontrando em sua poética uma recusa do dualismo metafísico que entretanto desembocaria numa metafísica do fracasso Palavraschave Poética Existência Sensação metafísica ÁLVARO DE CAMPOS AND THE POETIC OF EXISTENCE ABSTRACT The paper intends to point out some aspects of what we call here a poetic representation of existence in Álvaro de Campos poetry His poetic expression refuses a pretended essence that would constitute things as seen by traditional perspectives To exist means to be sensitive in the cases of subject or object Concept or conceptual thinking represents then a betrayal of sensitiveness In this sense words or signs are obstacles to access the things in themselves in a prereflexive dimension Sensationism as a literary theory commented by Fernando Pessoa permits to understand the poetics of Campos situated between a refusal of Metaphysics and an acceptance of a kind of metaphysics of failure Keywords existence poetic representation Sensationism metaphysics 1 Professor Doutor da Universidade de São Paulo DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 31 1 Uma Poética das sensações Álvaro de Campos é o poeta das sensações A explicitação desta afirmação nos leva a abordar o perfil complexo de sua poética Vejamos alguns aspectos relatados nos textos sobre o sensacionismo vertente literária que Pessoa vê despontar em Portugal cuja gênese e características procura explicar Em primeiro lugar encontramos uma explicação de ordem histórica a poesia grega e romana é definida pela prevalência da Coisa ou do Objeto sendo o sujeito pensado à sua imagem e semelhança Nesta perspectiva a relação direta com a realidade se dava através da sensação concebida como tão distinta nítida e concreta quanto as próprias coisas A orientação sensível da elaboração poética dispensava a reflexão ou melhor fazia dela algo como uma sensação da sensação integrado ao ato de sentir e o que se poderia chamar de introspecção neste caso seria a atenção voltada para si mesmo e aguçada a ponto de apreender como se fossem concretos os traços da vida espiritual A sensação suficiente em si mesma era capaz de apreenderse sem a necessidade de apelar para elementos estranhos O caráter direto e concreto da sensação tornava desnecessário qualquer iluminação da interioridade havia identidade entre a alma e a plena luz A sensação da realidade era direta nos gregos e nos romanos em toda a antiguidade clássica Era imediata Entre a sensação e o objeto fosse este objeto uma cousa do exterior ou um sentimento não se interpunha uma reflexão um elemento qualquer estranho ao próprio ato de sentir PESSOA O sensacionismo prolegômena 1986b p 424 Como se vê a noção de sensação no âmbito da Poética não se reduz à pura e simples apreensão sensível ao modo de um empirismo simplificado mas deve ser compreendida na máxima abrangência possível do que se entende por impressão sensível Com efeito podemos atribuir à palavra impressão duas acepções associadas mas susceptíveis de serem diferenciadas Primeiramente o significado de imprimir deixar impresso como a marca de alguma coisa em outra no caso a marca do objeto impressa no sujeito Neste sentido imprimir é uma atividade do objeto e o sujeito apenas receberia esta impressão Mas podemos supor também que aquele sobre o qual a marca do objeto se imprime o sujeito se de um lado se define pelo seu caráter de receptor em princípio passivo por outro é capaz de sentir a impressão que o objeto deixa nele e então temos o sentido próprio de impressionarse que envolve simultaneamente a dependência do DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 32 objeto impressor e a capacidade de sentir como atividade subjetiva Assim parece que a noção de sensação no contexto do sensacionismo abrange duas acepções imprimir no sentido transitivo da ação do objeto sobre o sujeito e impressionarse no sentido de uma ação reflexiva do sujeito em presença do objeto que sobre ele imprime sua marca Estes dois significados reunidos levam àquilo que se deve propriamente entender pelo termo sentir na dupla direção semântica da exterioridade e da interioridade deixar que o objeto imprima em mim a sua marca e sentir esta impressão como modificação interna da subjetividade O que se quer dizer com a associação e a diferenciação dos dois significados é que o que os reúne é a forma direta do contato com o objeto o que estaria indicado no caráter indiscernível do termo sentir como ação do objeto sobre a alma e ação da alma sobre si mesma Mas percebese que para que se possa entender esta dupla acepção não poderíamos distinguir radicalmente entre o corpo e alma ou entre a dimensão externa da impressão imprimir e sua dimensão interna impressionarse Mas eis que sobrevém ou passa pelas almas a longa doença chamada cristianismo A alma esmiuçandose a si mesma afastouse da sensação que se foi tornando cada vez menos clara Como se a atenção que a alma prestava a si mesma por via da sensação e viceversa se fosse transformando no ato reflexivo pelo qual a alma se isola passa a desconhecer a presença direta da sensação e se atribui então a tarefa de explicála por toda sorte de mediações ou de noções espirituais que desvirtuam a visão direta e lúcida das coisas Idem A diferença entre a alma e a sensação que antes não impedia uma relação íntima tornase relação de estranhamento O dualismo cristão não apenas separa exterioridade e interioridade como também os transforma em dimensões opostas e no limite irreconciliáveis Daí a hierarquia e a prioridade assim como na antiguidade o sujeito formavase à imagem e semelhança do objeto agora com a primazia do olhar dirigido à alma é o objeto que se assemelha à alma e finalmente passará a depender dela Nessas transformações o que se pode notar é uma espécie de deslocamento da atenção que por fim passa a ser dirigida à alma de modo exclusivo A insólita separação efetuada pelos românticos entre sensação e objeto da sensação traz este propósito se a alma é a realidade primordial a realidade do objeto consiste em ser sentido Desaparece a independência do objeto exterior DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 33 o que seria uma deformação moderna da função que a sensação deve desempenhar na relação com o mundo Esta apreciação histórica nos leva a entender também o valor intrínseco do sensacionismo nele a autonomia da natureza do objeto não anula o aspecto sentimental do sujeito pelo contrário a independência do objeto nos leva a considerar de modo mais lúcido o papel de interioridade e a função do sentimento na impressão sensível poética que configura a posição do poeta que não vê a sua própria alma como o centro do universo de acordo com a exacerbação romântica da subjetividade E isto nos leva a considerar também que a exacerbação da subjetividade tantas vezes atribuída à sensibilidade romântica é na verdade um caso de intelectualismo na medida em que confere ao sujeito e ao seu poder de representar a prerrogativa de ordenar a natureza seja do ponto de vista dos parâmetros estritamente racionais seja de acordo com a projeção lírica de uma alma detentora exclusiva da função poética Não é difícil encontrar na descrição do sensacionismo a atitude poética do Mestre Alberto Caeiro conforme testemunha o próprio texto em que se faz o histórico do movimento Se a avaliação dos movimentos literários se deve fazer pelo que trazem de novo não se pode por em dúvida de que o movimento sensacionista português é o mais importante da atualidade É tão pequeno de aderentes quanto grande em beleza e vida Tem só três poetas e tem um precursor inconsciente Esboçouo levemente sem querer Cesário Verde Fundouo Alberto Caeiro o mestre glorioso Tornouo logicamente neoclássico o Dr Ricardo Reis Modernizao paroxizao verdade que descrendoo e desvirtuandoo o estranho e intenso poeta que é Álvaro de Campos Estes quatro estes três nomes são todo o movimento Mas estes três nomes valem toda uma época literária Idem p427 Se Caeiro seria o fundador do sensacionismo se Ricardo Reis lhe teria dado a sua feição clássica Álvaro de Campos seria o sensacionista moderno que teria levado a tendência ao paroxismo e mesmo a teria desvirtuado na sua estranha e intensa poesia Por que atribuir a Álvaro de Campos esta posição paradoxal levando até o extremo os princípios do sensacionismo termina por desvirtuálo num paroxismo de intensidade Para tentar compreender isto vejamos como são enunciados silogisticamente esses princípios 1 Todo objeto é uma sensação nossa 2 Toda a arte é a conversão de uma sensação em objeto 3 Portanto toda a arte é a conversão de uma sensação numa outra sensação Idem p 426 DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 34 Nesta formulação percebemos uma diferença que afinal se mostrará difícil de discernir se todo objeto é uma sensação ele é também a sensação convertida o que em princípio nega a identidade de origem Mas esta passagem de sensação a objeto é o que define a arte portanto é a arte que instaura a identidade entre sensação e objeto razão pela qual se pode concluir que se trata de conversão de uma sensação numa outra sensação Se nos remetermos ao que foi dito antes acerca de ser o objeto que se imprime no sujeito o mesmo que o impressiona entendemos a necessidade de resguardar a diferença nesta identidade é preciso que a sensação permaneça com o seu caráter de objeto se quisermos preservar a autonomia da exterioridade da natureza A arte a verdadeira arte não se reduz a um subjetivismo sensista ela opera a conversão da sensação em objeto Assim não haveria propriamente redução do objeto à sensação Na conclusão devemos entender que toda a arte é a conversão de uma sensação convertida em objeto numa outra sensação convertida em objeto Ora o que seria de fato essa conversão Se não for uma redução como cremos que não é seria talvez uma transmutação um movimento interno e intrínseco uma auto transformação que supera e conserva os limites entre a diferença e a identidade O que confirmaria a hipótese relativa aos dois sentidos reunidos na acepção de sentir aquilo que imprime é também o que impressiona A impressão é marca sensível empírica e é também sentimento impressiona a alma mas de modo diverso da concepção cristã não existiria entre estas duas instâncias uma diferença que viesse a configurar oposição irredutível ao modo do pensamento dualista Tanto é assim que a função de uma sensação é gerar outras ou multiplicarse A arte em sua plena definição é a expressão harmônica de nossa consciência das sensações isto é nossas sensações devem ser expressas de tal modo que criem um objeto que será uma sensação para outros A arte é a sensação multiplicada pela consciência multiplicada note se bem O Sensacionismo uma nova cosmovisão Idem p 432 Voltemos agora a Álvaro de Campos e o sensacionismo paroxismo e deturpação Se quisermos ficar na discussão de tendências ou de ismos o que importa pouco mas pode ser um começo digamos que a exacerbação do sensacionismo poderia estar na poesia de Campos na interferência do futurismo que ele confessa estar de algum modo presente na Ode Triunfal DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 35 A minha Ode Triunfal no primeiro número do Orpheu é a única coisa que se aproxima do futurismo Mas aproximase pelo assunto que me inspirou e não pela realização e em arte a forma de realizar é que caracteriza e distingue as correntes e as escolas A Ignorância da crítica a respeito do futurismo Carta de AC ao Diretor do Diário de Notícias Idem p 154 Com efeito características que se tornaram quase clichês do futurismo notadamente a referência à modernidade tecnológica às máquinas a inclusão na poesia de assuntos que a fidelidade à tradição consideraria antipoéticos isto se encontra na Ode Triunfal máquinas motores eletricidade ruídos industriais correias de transmissão automóveis trens máquinas agrícolas etc Sensações modernas tudo aquilo que no mundo atual mecânico e urbano constitui o entorno artificial da vida Uma poesia de sensações mas de sensações causadas por artifícios fruto da interferência do homem na natureza Ausência portanto do bucolismo isto é de Caeiro o Mestre que teria reconduzido a poesia aos extratos da alma que se mantêm separados da representação intelectual Mas os objetos da ciência e da técnica tornamse tão próximos da sensação quando as coisas da natureza Na verdade o futurismo postula esta atualização da relação poética que não seria mais com a natureza mas com os objetos fabricados a familiaridade com a natureza teria sido substituída pela familiaridade com o artifício Na sua presença constante próxima impositiva estes objetos têm algo a nos dizer são eles que solicitam agora nossos sentimentos depois de se fazerem presentes às nossas sensações E ardeme a cabeça de vos querer cantar com um excesso De expressão de todas as minhas sensações Com um excesso contemporâneo de vós ó máquinas 2 A expressão lírica da subjetividade A última estrofe do segundo dos Dois Excertos de Odes traz uma situação de indagação dramaticamente insólita devido às negações que compõem a questão levantada é solicitado da companheira que eu não tenho nem quero ter no momento em que eu não posso ver que tu me olhas e pergunta a ti própria tu que já me conheces quem eu sou A primeira negação ou instância negativa da construção da questão a ausência da companheira que eu não tenho nem quero ter e que é muito vagamente lembrada nos flashes que testemunham a perda da memória como perda da subjetividade A companheira ausente ou inexistente é ao mesmo tempo a interlocutora do poeta e aquela que há de fazer a questão no momento em que ela o olhar sem que ele possa sentir sobre si DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 36 este olhar que se fará desprovido de todo auxílio que eventualmente lhe poderia prestar outro sentido a fala Olhame em silêncio de forma não manifesta isto é em segredo Silêncio e mistério que não podem permanecer na resposta que dará à pergunta que ela mesma formulou aquela que já me conhece Ora a pergunta que pela gravidade de seu conteúdo deveria ser a mais difícil de responder quem eu sou conta desde o início com a expectativa da resposta pois é feita a alguém que me conhece isto é que conhece a resposta à pergunta crucial quem sou eu Pergunta a ti própria tu que me conheces e que já sabes portanto a resposta quem eu sou Mas a aparente trivialidade de uma pergunta que deve ser feita a si própria à própria pessoa que já sabe a resposta por conhecer aquele sobre quem se pergunta quem é é compensada por uma dificuldade intransponível a pergunta deve ser feita e a resposta deve ser dada por quem não existe pois a condição de companheira exige que alguém tenha alguém por tal Com efeito é possível que alguém se faça companheiro de outro mas para que a condição se efetive é preciso que este outro o aceite como companheiro Porém a companheira que é invocada no poema é justamente aquela que desfruta da condição de ausente ou inexistente aquela que eu não tenho nem quero ter Silêncio segredo ausência inexistência cercam e permeiam o conhecimento de si Como se não fosse preciso esperar pela resposta para entender a negatividade daquilo que sou e no limite desta negatividade e nulificação daquilo que sou já que a própria posição da questão já está ela mesma envolvida por negação e niilismo Assim aquele que não tem nem quer ter a companheira que perguntará por ele é também aquele que não se tem a si mesmo Dupla negação e coerência nesta espécie de antiposição de quem faz a pergunta e de quem é o objeto da pergunta Por isso os primeiros versos de Tabacaria parecem ecoar numa resposta que afirma o nada de ser do sujeito a pergunta do final dos Dois Excertos Não sou nada Nunca serei nada Não posso querer ser nada Três enunciações da impossibilidade de identificação do Eu Três respostas a uma mesma pergunta quem sou eu Mas o nada que sou ou esta modalidade de ser por anulação ou nulidade de ser impede que a simples constatação do nada encerre a questão e se constitua numa resposta Poderíamos dizer como no existencialismo que o nada que sou é tudo que sou e isto não seria um jogo de palavras se também conforme o existencialismo sartriano este nada significasse a série indefinida de projetos de ser cuja possibilidade é DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 37 justamente nada ser na atualidade de uma existência efetiva mas ser tudo e cada uma das possibilidades numa existência futura no futuro da existência É preciso então estabelecer a relação paradoxal não ser nada é condição para ser tudo e na medida em que cada futuro ocorrer como um presente na sua atualização o futuro deste presente será sempre a possibilidade ainda a se realizar a partir de um presente que não é nada em si mesmo e cuja realidade é o futuro que ainda está por vir O homem é o ser que não é o que é e que é o que não é Não é o presente que se configura como nada e é o futuro que se mostra como qualquer possibilidade Neste sentido o quarto verso da primeira estrofe não é contrário mas sim complementar dos três anteriores À parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo Aquele que afirma que não é não será e não pode querer ser nada pode no entanto ter em si tudo isto é todos os sonhos do mundo ou o mundo como totalidade dos possíveis na forma do sonho E isto não apenas porque o sonho é um modo de pensar ou uma modalidade de representar mas talvez principalmente por ser o sonho uma vivência da possibilidade que exclui a experiência da realidade Na sequência muitos versos do poema exprimirão esta relação entre um conteúdo determinado e um nada de conteúdo Janelas do meu quarto Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é E se soubessem quem é o que saberiam Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente Para uma rua inacessível a todos os pensamentos Real impossivelmente real certa desconhecidamente certa Na sequência do poema se saberá que o poeta fala da janela do seu quarto de onde observa a Tabacaria Sua primeira referência é portanto a sua localização onde está este que deseja saber quem é e acerca de quem se pergunta quem é quem sou Mas estar em seu quarto à sua janela diz alguma coisa a respeito de quem está à janela ou será esta uma situação em que precisamente nada se poderá dizer Ora há neste momento milhões de pessoas das quais cada uma pode dizer meu quarto sem que esta posse expressa neste pronome possessivo possibilite qualquer identificação Ninguém sabe quem é este que está à janela de seu quarto num mundo povoado de seres anônimos Mas supondo que soubessem o que saberiam Há realmente um conteúdo efetivo que poderia se constituir como resposta descritiva e significativa da expressão quem Em que termos de poderia dizer como autêntica realidade quem é ou quem sou Afinal eu e meu talvez sejam termos tão misteriosos quanto o mistério de uma rua cruzada constantemente por DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 38 gente pois o que há de mais aparentemente trivial pode ser o que há demais profundamente enigmático como aquilo que expressam os paradoxos que podem ser ditos acerca do enigma da rua impossivelmente real desconhecidamente certa Se aceitarmos que o mistério não é o irreal ou inverídico mas sim a verdade velada mais forte e mais impressionante quanto mais oculta e certa mesmo contra todo conhecimento então será possível se postar diante do mistério do impossivelmente real ou desconhecidamente certa Na chave do mistério impossível pode ser um predicado de real e desconhecido pode ser a qualidade atribuída ao que é certo Mas o que pode ser considerado real a ponto de ser impossível e certo a ponto de ser desconhecido Ou real para além do que entenderíamos como possível e certo para além do que entenderíamos como conhecido Pois para o nosso pensamento habitual não é a possibilidade que antecede e engendra a realidade E não é o conhecimento que torna alguma coisa certa Dito de outra maneira haverá algo de real e de certo que seja antes de tudo mistério real e impossível certo e desconhecido Ora em sua face mais decididamente existencial Pascal formulou de modo semelhante a realidade do homem ou do eu ambivalência mistério monstruosidade contradição enfim aquilo que não pode ser contido em normas puramente racionais ou pelo menos nas categorias analíticas de um pensamento moldado na linearidade clássica Posteriormente pensadores que de algum modo se preocuparam com o significado da existência seguiram caminho análogo Carlos Felipe Moisés 2005 p 102103 nota Campos experimenta enfim a situação do indivíduo que contestou todas as verdades estabelecidas e sabe que a partir daí está entregue à própria sorte sabe que não conta mais com a segurança das verdades comuns não conta mais com o apoio na fé ou na providência divina à qual as gerações anteriores confiavam a responsabilidade pelo sentido da existência Álvaro de Campos evidentemente não está sozinho nesta empreitada Ao seguir esta linha de reflexão sobre o sentido da existência acompanha o fluxo do pensamento mais avançado e mais rebelde do século XIX que valoriza o irracional como em Nietzsche e Kierkegaard e lança o embrião do que viria a ser já no século XX a filosofia da existência ou o existencialismo como em Heidegger ou Sartre Mas se quisermos remeter ao mestre Caeiro isto é ao pensamento poético mais do que à reflexão filosófica a transgressão das fronteiras da racionalidade ao menos no sentido do intelectualismo tradicional podemos pensar na lição primordial o poeta deve aprender a desaprender isto é abandonar os significados e sentidos consolidados na tradição DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 39 nos hábitos de pensar nas maneiras convencionais de dizer as coisas e principalmente de referirse ao próprio Eu cultivando a noção de identidade que parece ser a base mais firme de todas as relações É preciso pois aprender a descrer nos fundamentos nas ideias bem definidas e nas positividades que parecem alicerçar a representação da realidade Atingir esta radicalidade supõe uma questão que é ao mesmo tempo o enunciado de um risco depois de aprender a desaprender será possível aprender a reaprender para que a dúvida e a recusa praticadas pelo poeta possam se transformar numa nova busca pelo sentido supondo que a perspectiva metafísica ainda possa ser de alguma forma afirmada depois de Caeiro ainda que seja a metafísica do chocolate aprendida na confeitaria Até que este exame seja possível se o for Álvaro de Campos deparase com o negativo absoluto o mundo esvaziado de sentido reduzido a tabula rasa Idem p 103 Ora se o nada assim configurado é condição de possibilidade a tarefa de Campos segundo CF Moisés caracterizase como um projeto poético que é ao mesmo tempo um projeto existencial não tanto no sentido da x conduta subjetiva no mundo histórico Sartre quanto como a representação poética deste mundo em termos existenciais único caminho doravante para uma possível busca de sentido Cabe ao poeta lançar o seu projeto sem que nenhuma força ou orientação superior lhe sirva de anteparo Idem ib Esta atitude poética diante da falta e da ausência ou de um mundo esvaziado de sentido se apresenta nos paradoxos que assinalam a existência do sujeito poético posto em tal situação Estou hoje vencido como se soubesse a verdade Estou hoje lúcido como se estivesse para morrer Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À Tabacaria do outro lado da rua como coisa real por fora E a sensação de que tudo é sonho como coisa real por dentro Por que se pode pensar que a descoberta da verdade não seria uma vitória do indivíduo sobre as coisas mas a vitória da verdade sobre o indivíduo Afinal de acordo com Nietzsche a prevalência da verdade no seu sentido cristalizado e definitivo é a domesticação das pulsões a derrota do indivíduo e o sujeito de conhecimento seria a construção mais nítida desta subordinação a uma imagem moral do mundo Assim declararse vencido pela verdade é entender o que de fato seja a verdade no universo das representações DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 40 A lucidez diante da morte como possibilidade é a autenticidade no sentido heidegeriano portanto a forma lúcida de encarar a existência que tem no serparaamorte a sua estrutura mais importante Mas o verso é ambíguo estou lúcido não diante da morte mas como se estivesse para morrer Não estaria aí a diferença entre o sentido intelectual e metafísico da morte e seu significado sensível no sentido da sensação reflexiva já vista A perplexidade é a atitude perante si mesmo e perante as coisas quando o pensar o procurar e o achar têm como resultado esquecer A inutilidade da busca pelo sentido num mundo esvaziado de sentido Assim o império das sensações que parecia talvez satisfazer o poeta revelase motivo de angústia Pois a adesão às sensações não seria como em Caeiro pureza originária mas decorrência de desilusão e de decepção em relação ao sentido aparente que se revela ilusório a uma densidade que se revela um vazio etc Assim derrota lucidez perante a morte e perplexidade parecem desconstituir o Eu a individualidade mostra sua fragilidade e sua aparência mas neste percurso da negatividade e mesmo da nulificação o que vai aparecendo de modo precário e dramático é a subjetividade lírica que dá voz à face descomposta e dividida do indivíduo moderno cuja história não contém mais do que grandes gestos o dominó a máscara e o espelho 3 A transfiguração niilista da realidade A traição ao mestre Caeiro se faz pelo deslocamento do compromisso poético das coisas em si mesmas para a subjetividade que haverá de considerálas não mais a partir do que são mas do sentido que ocultam e que só o pensamento poderia desvelar Assim regredir da sensação ao pensamento é interpor entre o poeta e a realidade a mediação de uma consciência significante no sentido sartriano de produtora de significações que opera no espaço da diferença entre o signo e a coisa Isso devido a um processo de interiorização a subjetivação poética do mundo ao se fazer pela via do pensamento arriscase a decair para o conceito a reflexão anulando a originalidade da atitude poética que tende a ser substituída pela ideia no sentido platônico de forma ideal Mas como a fidelidade às sensações pode se transformar na hegemonia do pensamento Talvez a traição já se tivesse insinuado desde o começo talvez Campos nunca tenha sido inteiramente discípulo de Caeiro por não ter percebido a sua maneira de seguir o mestre Em Caeiro o verso objetivo deriva da absoluta anterioridade das coisas da precedência total das coisas em relação às palavras e da natureza em relação aos signos que DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 41 se referem a ela No limite a atitude de Caeiro seria antipoética a palavra deve ser sacrificada à coisa para que não haja mediação ou construção de significação A coisa na sua pureza é a coisa não dita e o poeta verdadeiramente das coisas mergulha no silêncio Ao optar pelo real só resta ao poeta sacrificar o único caminho à sua disposição para ao menos tentar encontrálo SEGOLIN 1992 p 69 Ora Campos optou pelo real optando pelas sensações Haveria outro meio Talvez não mas o problema está justamente em haver um meio e este ser cultivado pelo poeta na sua tentativa de identificar a coisa e o dizer Assim se o poeta opta pelo real tão radicalmente como o fez Caeiro ele deve sacrificar o único caminho porque não se trata de ir às coisas ou de voltar a elas mas de simplesmente deixálas ser num modo de presença que recusa todo sinal todo índice todo símbolo recusa a palavra e por isso a poesia é o sacrifício da palavra Na atitude radical do mestre a palavra deve morrer para que a coisa viva inteiramente por si mesma Por isso no classicismo de R Reis a palavra impera mas a força do signo torna irreal a coisa a forma poética fala da realidade irrealizandoa Caeiro desejaria mostrar a realidade por via da irrealização da palavra pois todo signo usurpa o ser das coisas Ao recusar a forma na sua intelectualidade representativa e ao optar pela sensação como contato direto até que ponto logra o poeta fazer com que o sujeito se paute pelo objeto Ocorre em Campos algo que o coloca irremediavelmente em rota de afastamento de Caeiro e que João Gaspar Simões expressa perfeitamente As coisas são sensações nossas sem objetividade determinável e eu sensação também para mim mesmo não posso crer que tenha mais realidade que as outras coisas SIMÕES apud SEGOLIN 1992 p 70 As coisas são sensações nossas se não equivale à tese filosófica o mundo é minha representação SCHOPENHAUER pelo menos nos adverte que sendo as coisas idênticas às sensações que provocariam ser é ser sentido ou sentir assim como esse est percipi ou percipere BERKELEY O esforço para sentir o mundo e não pensálo faz dele uma representação sensível É isto que significa a interiorização e a conscientização do mundo afinal a sua subjetivação Segolin 1992 p 70 menciona as sensações como presença na consciência enquanto eco subjetivo a reproduzir e multiplicarse processo ao qual não são estranhas as modulações subjetivas A intenção de Campos era que a sensação libertasse as coisas do aprisionamento dos signos intelectuais Para tanto a palavra poética expressiva das sensações livre das formas preceituais da poesia libertaria também as coisas da representação limitadora dos DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 42 signos As coisas já não seriam aquilo a que nos referimos mas sim aquilo que sentimos Mas enquanto para Caeiro as sensações eram o objeto as coisas para Campos o objeto são as sensações e nesta diferença a sensação ganha autonomia e acaba por tornarse o objeto da poesia A sensação ganha corpo na palavra pela palavra o poeta vivencia a sensação e ele mesmo não crê que tenha mais realidade do que as outras coisas uma vez que também é sensação para si mesmo O poeta existe ao sentir que é e as coisas existem ao serem sentidas pelo poeta Podese então colocar a questão o sensacionismo a princípio o modo de vivenciar objetivamente as coisas na sua realidade própria não seria na verdade uma maneira de dizer o que existe é o sujeito e as suas sensações sensação de si e sensação das coisas mas nesta expressão prevalece o genitivo subjetivo isto é a sensação mais do que o si e as coisas E assim como se pode ver no sensacionismo de Campos que então já deve ser diferenciado de Caeiro uma interiorização subjetivação ou conscientização do mundo sensível a poesia a palavra poética exprimirá a presença interna deste mundo e para isto quer dizer para cobrir a distância entre a interioridade e a exterioridade necessária será a elaboração de significações mediadoras Também é preciso observar que uma vez a sensação tornada consciência das coisas está configurada a relação sujeito objeto e a possibilidade de projeções subjetivas no mundo das coisas dada a posição da consciência nesta relação algo como uma representação sensível em sentido lato O esforço de Campos será para fazer da palavra um meio de significar sensivelmente o sensível para não cair na simbolização intelectual Uma poesia feita de palavras sentidas mais do que pensadas como se fosse possível uma concepção não essencialista mas existencialista do signo Nesta diferença estaria colocada também a distinção entre o preceitualismo clássico e a liberdade moderna Adolfo Casais Monteiro 1989 nos diz que A Modernidade é insubsistente p5 enunciado que se traduz em outros de teor um pouco mais concreto acerca das faculdades humanas Saber realmente que nada se sabe e sobretudo nada se pode p 6 Esta recusa deliberada de uma substancialidade ou de um substrato seria o modo de a modernidade recusar a realidade idealizada ou a expressão parnasiana do mundo O niilismo seria consequência desta assunção da insubsistência isto é de uma existência não fundamentada cuja precariedade reclama a criação enquanto o mundo substancial pedia apenas a conservação O poeta moderno exprime esta fragilidade que é ao mesmo tempo a lucidez A modernidade não é feita de sonhos mas de não os poder ter p6 A DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 43 modernidade foi uma luta contra tudo mas por nada idem O abissal a fragilidade e a morte na exigência da criação Viver não é preciso criar é preciso O objeto interiorizado na consciência que dele se tem mas ao qual o sujeito recusa o benefício da forma conceitual que lhe daria a perfeição lógica da verdade convencional a este resta apenas o equilíbrio instável da sensação da representação oscilante e efêmera o poeta sabe que o objeto intelectual é falso mas não consegue em contrapartida algo mais do que a verdade instantânea no ato do seu aparecimento aquela que não conta com garantias maiores do que a subjetividade desorientada Por isso a consciência das coisas e de si é frágil mas lúcida e é lúcida porque frágil É preciso uma persistência lúcida para não transformar esta fragilidade na necessidade de razão ou razões De que serve uma sensação se há uma razão exterior a ela Poema 64 p267 No limite mas no mesmo sentido e sempre lembrando a radicalidade sensível de Caeiro seria o caso de perguntar De que serve uma sensação se há uma palavra exterior a ela e na qual a sensação se exprime ganha corpo dizíamos embora talvez fosse mais pertinente dizer que ganha espírito e enquanto pensada tornase signo A coisa ou o real aquém da sensação aquém da palavra foi o que buscou Caeiro e F Segolin define esta atitude como a busca do silêncio Não seria paradoxal se ao concordarmos com Leyla PerroneMoisés Texto Crítica Escritura que o sujeito é ser de linguagem continuássemos afirmando que ele se define poeticamente pela busca do silêncio que em Caeiro seria a linguagem das coisas Mais uma vez encontramos a ambiguidade do discípulo em relação ao mestre Campos parece assumir que o signo pode exprimir a sensação a prolixidade por vezes louca da Ode Marítima os gritos as onomatopeias o desejo de significar os ruídos de se incorporar aos motores ao ritmo insignificativo das máquinas aquém ou além da fala articulada e mesmo o frenesi das canções dos marinheiros em que as palavras parecem apenas servir para dar expressão à melodia e ao ritmo a uma cadência sonora que é mais importante que as palavras Mas esta mutilação das palavras revela a tentativa de tornar mais intensa a expressão subordinar a significação ao som na sua pura significância material por via de uma desarticulação deliberada mas que ainda tem como propósito reenviar a alguma coisa a um significado além das palavras como signos ordenados Enfim o poeta está na linguagem porque o sujeito é ser de linguagem A materialização da linguagem se faz a partir da imponderabilidade da significação DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 44 A serenidade de Caeiro permitialhe encontrar o silêncio anterior às palavras A angústia de Campos o faz buscar o silêncio para além das palavras e mesmo da desorganização ou desarticulação dos signos que revelam o esforço para explorar a palavra até a sua exaustão Seguindo assim a trajetória textual oposta à de Caeiro na medida em que este nega a palavra ao passo que Campos a afirma e a explora inclusive material e sensacionisticamente o discípulo culmina por se defrontar tal como o mestre com o silêncio Só que o silêncio deste mestre Caeiro é o da natureza sem signo e o daquele Campos é o do reconhecimento da voz que ressoa sem nada revelar no espaço vazio e insignificante do verbo SEGOLIN 1992 p 88 Assim como o papel que envolve o chocolate o oculta na sua simples natureza e desvia o poeta da sensação para a imagem indireta assim também os signos no regime excessivo que o poeta vê como necessário à sua própria superação oculta a coisa a natureza sem signo que Caeiro almejou e talvez tenha atingido O intelectualismo que Campos recusa mas que está nele faz com que algo como a natureza sem signo esteja num ponto ideal além dos signos e portanto é preciso a longa e angustiante travessia pelas palavras para chegar ao silêncio Campos partilha com Caeiro a crença na insuficiência das palavras Mas Caeiro não precisa fazer a experiência fatigante desta carência ele já o sabe com um saber anterior às palavras Para Campos serão as próprias palavras que revelarão a sua insuficiência por isto o seu silêncio só pode ser posterior às palavras E a angústia do poeta é ver num universo tão povoado de signos o vazio de expressão Caeiro pode desde a origem calar como atitude primordial porque nele o silêncio é anterior Campos precisa fazer a travessia para descobrir que tudo está dito exceto a única verdade que importa dizer e que jamais será dita Segolin p 89 O silêncio se impõe através da vivência da palavra impotente Talvez seja este o significado do mundo insubsistente tal como AC Monteiro caracteriza a modernidade Excesso de significações pobreza de significantes conteúdo informe como se toda a realidade fosse constituída de acidentes sem substância que os unifique e os sustente subsistência ausência de forma substancial que fosse dada numa ordem simples e consequente diretamente atingida pela sensibilidade Ora esta insubsistência é também e talvez principalmente a do sujeito e assim a dos sentidos que ele confere às coisas quando não pode deixar de buscalos O sujeito mera sensação entre DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 45 sensações não desfruta nenhum privilégio substancial ou formal neste mundo insubsistente Começo a conhecerme Não existo Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram Ou metade deste intervalo porque também há vida Sou isso enfim Apague a luz feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelas no corredor Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo É um universo barato Poema 143 p 389 Até porque há uma identificação entre o Eu e o mundo na mesma prolixidade e na mesma precariedade a multiplicidade acidental de que falamos Sensação como consciência do mundo mas no sentido já apontado de interiorização ou subjetivação que não atinge o real no sentido de Caeiro Há então uma projeção do Eu nas coisas vide as primeiras odes e a Ode Marítima que se expressa como um desejo de mais do que se confundir com elas ser as coisas para atingir a dinâmica moderna do mundo isto é a materialidade e o maquinismo Mas como se trata de consciência do mundo do sensível da matéria da máquina do ritmo da velocidade o poeta não escapa do processo de interiorização não é ele que vai ao mundo impessoalizandose mas é o mundo que vem a ele interiorizado e subjetivado E então ocorre o fenômeno assinalado por Segolin a sensação tornase interna e pode vir a tornarse um modo de compreender o mundo não como sensível e sentido mas como sentido na acepção intelectual ou metafísica Não haveria por que procurar o sentido do mundo sentido sensível mas o deslocamento subjetivante a traição leva a isto Sentir tudo de todas as maneiras Viver tudo de todos os modos Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos Num só momento difuso profuso completo e longínquo Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo Eu tornome sempre mais tarde ou mais cedo Aquilo com quem simpatizo seja uma pedra ou uma ânsia Seja uma flor ou uma ideia abstrata Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus E eu simpatizo com tudo vivo de tudo em tudo A Passagem das Horas b p177 Sentir e viver no modo da totalidade do tempo e do espaço mas de forma condensada como se o Todo fosse Um Mas a unidade da multiplicidade que não é a DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 46 unidade lógica portanto difuso profuso completo mas longínquo A simpatia é a coincidência o tornarse coisa aquilo com quem simpatizo ou não serão as coisas que se tornam Eu num trânsito já bem de Campos bem distante de Caeiro entre o abstrato e o concreto Esta separação já é problemática para um sensacionismo sensível em primeiro lugar por admitir o abstrato Em segundo lugar porque não está muito bem indicado como se vai de uma coisa à outra se passo da pedra à ânsia da flor à ideia da multidão a Deus do concreto ao abstrato ou se seria o contrário no limite o mundo concreto deduzido do abstrato Mesmo diante dos protestos do poeta que afirma viver de tudo em tudo Pensar a totalidade e a singularidade já é a posição metafísica do problema já é a complexidade artificial de desembrulhar o chocolate Bibliografia CASAIS MONTEIRO A A Ideia de Modernidade In A Palavra Essencial São Paulo Companhia Editora Nacional 1989 MOISÉS C F Engenheiro Naval In Fernando Pessoa Almoxarifado de Mitos São Paulo Escrituras 2005 PESSOA F Obra Poética Rio de Janeiro Nova Aguilar 1986a PESSOA F Obras em Prosa Rio de Janeiro Nova Aguilar 1986b PESSOA F Poesia Completa de Álvaro de Campos São Paulo Companhia das Letras 2005 SEGOLIN F Fernando Pessoa Poesia Transgressão Utopia São Paulo EDUC 1992
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ESTACIO
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DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 30 ÁLVARO DE CAMPOS E A POÉTICA DA EXISTÊNCIA Franklin Leopoldo e Silva1 Recebido 21042016 Aprovado 27052016 RESUMO Tratase de apontar alguns aspectos que permitam uma leitura de Álvaro de Campos como representação poética da Existência Tanto na temática quanto nas formas de expressão seria possível encontrar na poesia de Campos a tentativa de recusar a representação essencialista da realidade aquela que pretende chegar ao núcleo essencial a partir do qual as coisas se explicitariam Existir para as coisas é apresentarse como sensível existir para o sujeito é apreenderse como sensação Neste sentido pensar conceitualmente é trair a sensação a totalidade difusa e infundamentada do real Assim também as palavras seriam sobretudo obstáculo e obscurecimento sendo preciso atravessálas para recuperar o mutismo primordial do sensível pré reflexivo tarefa que angustia e desorienta o poeta A partir dos comentários teóricos de Pessoa acerca do sensacionismo presente também em outros heterônimos procurase compreender a situação poética de Álvaro de Campos encontrando em sua poética uma recusa do dualismo metafísico que entretanto desembocaria numa metafísica do fracasso Palavraschave Poética Existência Sensação metafísica ÁLVARO DE CAMPOS AND THE POETIC OF EXISTENCE ABSTRACT The paper intends to point out some aspects of what we call here a poetic representation of existence in Álvaro de Campos poetry His poetic expression refuses a pretended essence that would constitute things as seen by traditional perspectives To exist means to be sensitive in the cases of subject or object Concept or conceptual thinking represents then a betrayal of sensitiveness In this sense words or signs are obstacles to access the things in themselves in a prereflexive dimension Sensationism as a literary theory commented by Fernando Pessoa permits to understand the poetics of Campos situated between a refusal of Metaphysics and an acceptance of a kind of metaphysics of failure Keywords existence poetic representation Sensationism metaphysics 1 Professor Doutor da Universidade de São Paulo DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 31 1 Uma Poética das sensações Álvaro de Campos é o poeta das sensações A explicitação desta afirmação nos leva a abordar o perfil complexo de sua poética Vejamos alguns aspectos relatados nos textos sobre o sensacionismo vertente literária que Pessoa vê despontar em Portugal cuja gênese e características procura explicar Em primeiro lugar encontramos uma explicação de ordem histórica a poesia grega e romana é definida pela prevalência da Coisa ou do Objeto sendo o sujeito pensado à sua imagem e semelhança Nesta perspectiva a relação direta com a realidade se dava através da sensação concebida como tão distinta nítida e concreta quanto as próprias coisas A orientação sensível da elaboração poética dispensava a reflexão ou melhor fazia dela algo como uma sensação da sensação integrado ao ato de sentir e o que se poderia chamar de introspecção neste caso seria a atenção voltada para si mesmo e aguçada a ponto de apreender como se fossem concretos os traços da vida espiritual A sensação suficiente em si mesma era capaz de apreenderse sem a necessidade de apelar para elementos estranhos O caráter direto e concreto da sensação tornava desnecessário qualquer iluminação da interioridade havia identidade entre a alma e a plena luz A sensação da realidade era direta nos gregos e nos romanos em toda a antiguidade clássica Era imediata Entre a sensação e o objeto fosse este objeto uma cousa do exterior ou um sentimento não se interpunha uma reflexão um elemento qualquer estranho ao próprio ato de sentir PESSOA O sensacionismo prolegômena 1986b p 424 Como se vê a noção de sensação no âmbito da Poética não se reduz à pura e simples apreensão sensível ao modo de um empirismo simplificado mas deve ser compreendida na máxima abrangência possível do que se entende por impressão sensível Com efeito podemos atribuir à palavra impressão duas acepções associadas mas susceptíveis de serem diferenciadas Primeiramente o significado de imprimir deixar impresso como a marca de alguma coisa em outra no caso a marca do objeto impressa no sujeito Neste sentido imprimir é uma atividade do objeto e o sujeito apenas receberia esta impressão Mas podemos supor também que aquele sobre o qual a marca do objeto se imprime o sujeito se de um lado se define pelo seu caráter de receptor em princípio passivo por outro é capaz de sentir a impressão que o objeto deixa nele e então temos o sentido próprio de impressionarse que envolve simultaneamente a dependência do DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 32 objeto impressor e a capacidade de sentir como atividade subjetiva Assim parece que a noção de sensação no contexto do sensacionismo abrange duas acepções imprimir no sentido transitivo da ação do objeto sobre o sujeito e impressionarse no sentido de uma ação reflexiva do sujeito em presença do objeto que sobre ele imprime sua marca Estes dois significados reunidos levam àquilo que se deve propriamente entender pelo termo sentir na dupla direção semântica da exterioridade e da interioridade deixar que o objeto imprima em mim a sua marca e sentir esta impressão como modificação interna da subjetividade O que se quer dizer com a associação e a diferenciação dos dois significados é que o que os reúne é a forma direta do contato com o objeto o que estaria indicado no caráter indiscernível do termo sentir como ação do objeto sobre a alma e ação da alma sobre si mesma Mas percebese que para que se possa entender esta dupla acepção não poderíamos distinguir radicalmente entre o corpo e alma ou entre a dimensão externa da impressão imprimir e sua dimensão interna impressionarse Mas eis que sobrevém ou passa pelas almas a longa doença chamada cristianismo A alma esmiuçandose a si mesma afastouse da sensação que se foi tornando cada vez menos clara Como se a atenção que a alma prestava a si mesma por via da sensação e viceversa se fosse transformando no ato reflexivo pelo qual a alma se isola passa a desconhecer a presença direta da sensação e se atribui então a tarefa de explicála por toda sorte de mediações ou de noções espirituais que desvirtuam a visão direta e lúcida das coisas Idem A diferença entre a alma e a sensação que antes não impedia uma relação íntima tornase relação de estranhamento O dualismo cristão não apenas separa exterioridade e interioridade como também os transforma em dimensões opostas e no limite irreconciliáveis Daí a hierarquia e a prioridade assim como na antiguidade o sujeito formavase à imagem e semelhança do objeto agora com a primazia do olhar dirigido à alma é o objeto que se assemelha à alma e finalmente passará a depender dela Nessas transformações o que se pode notar é uma espécie de deslocamento da atenção que por fim passa a ser dirigida à alma de modo exclusivo A insólita separação efetuada pelos românticos entre sensação e objeto da sensação traz este propósito se a alma é a realidade primordial a realidade do objeto consiste em ser sentido Desaparece a independência do objeto exterior DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 33 o que seria uma deformação moderna da função que a sensação deve desempenhar na relação com o mundo Esta apreciação histórica nos leva a entender também o valor intrínseco do sensacionismo nele a autonomia da natureza do objeto não anula o aspecto sentimental do sujeito pelo contrário a independência do objeto nos leva a considerar de modo mais lúcido o papel de interioridade e a função do sentimento na impressão sensível poética que configura a posição do poeta que não vê a sua própria alma como o centro do universo de acordo com a exacerbação romântica da subjetividade E isto nos leva a considerar também que a exacerbação da subjetividade tantas vezes atribuída à sensibilidade romântica é na verdade um caso de intelectualismo na medida em que confere ao sujeito e ao seu poder de representar a prerrogativa de ordenar a natureza seja do ponto de vista dos parâmetros estritamente racionais seja de acordo com a projeção lírica de uma alma detentora exclusiva da função poética Não é difícil encontrar na descrição do sensacionismo a atitude poética do Mestre Alberto Caeiro conforme testemunha o próprio texto em que se faz o histórico do movimento Se a avaliação dos movimentos literários se deve fazer pelo que trazem de novo não se pode por em dúvida de que o movimento sensacionista português é o mais importante da atualidade É tão pequeno de aderentes quanto grande em beleza e vida Tem só três poetas e tem um precursor inconsciente Esboçouo levemente sem querer Cesário Verde Fundouo Alberto Caeiro o mestre glorioso Tornouo logicamente neoclássico o Dr Ricardo Reis Modernizao paroxizao verdade que descrendoo e desvirtuandoo o estranho e intenso poeta que é Álvaro de Campos Estes quatro estes três nomes são todo o movimento Mas estes três nomes valem toda uma época literária Idem p427 Se Caeiro seria o fundador do sensacionismo se Ricardo Reis lhe teria dado a sua feição clássica Álvaro de Campos seria o sensacionista moderno que teria levado a tendência ao paroxismo e mesmo a teria desvirtuado na sua estranha e intensa poesia Por que atribuir a Álvaro de Campos esta posição paradoxal levando até o extremo os princípios do sensacionismo termina por desvirtuálo num paroxismo de intensidade Para tentar compreender isto vejamos como são enunciados silogisticamente esses princípios 1 Todo objeto é uma sensação nossa 2 Toda a arte é a conversão de uma sensação em objeto 3 Portanto toda a arte é a conversão de uma sensação numa outra sensação Idem p 426 DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 34 Nesta formulação percebemos uma diferença que afinal se mostrará difícil de discernir se todo objeto é uma sensação ele é também a sensação convertida o que em princípio nega a identidade de origem Mas esta passagem de sensação a objeto é o que define a arte portanto é a arte que instaura a identidade entre sensação e objeto razão pela qual se pode concluir que se trata de conversão de uma sensação numa outra sensação Se nos remetermos ao que foi dito antes acerca de ser o objeto que se imprime no sujeito o mesmo que o impressiona entendemos a necessidade de resguardar a diferença nesta identidade é preciso que a sensação permaneça com o seu caráter de objeto se quisermos preservar a autonomia da exterioridade da natureza A arte a verdadeira arte não se reduz a um subjetivismo sensista ela opera a conversão da sensação em objeto Assim não haveria propriamente redução do objeto à sensação Na conclusão devemos entender que toda a arte é a conversão de uma sensação convertida em objeto numa outra sensação convertida em objeto Ora o que seria de fato essa conversão Se não for uma redução como cremos que não é seria talvez uma transmutação um movimento interno e intrínseco uma auto transformação que supera e conserva os limites entre a diferença e a identidade O que confirmaria a hipótese relativa aos dois sentidos reunidos na acepção de sentir aquilo que imprime é também o que impressiona A impressão é marca sensível empírica e é também sentimento impressiona a alma mas de modo diverso da concepção cristã não existiria entre estas duas instâncias uma diferença que viesse a configurar oposição irredutível ao modo do pensamento dualista Tanto é assim que a função de uma sensação é gerar outras ou multiplicarse A arte em sua plena definição é a expressão harmônica de nossa consciência das sensações isto é nossas sensações devem ser expressas de tal modo que criem um objeto que será uma sensação para outros A arte é a sensação multiplicada pela consciência multiplicada note se bem O Sensacionismo uma nova cosmovisão Idem p 432 Voltemos agora a Álvaro de Campos e o sensacionismo paroxismo e deturpação Se quisermos ficar na discussão de tendências ou de ismos o que importa pouco mas pode ser um começo digamos que a exacerbação do sensacionismo poderia estar na poesia de Campos na interferência do futurismo que ele confessa estar de algum modo presente na Ode Triunfal DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 35 A minha Ode Triunfal no primeiro número do Orpheu é a única coisa que se aproxima do futurismo Mas aproximase pelo assunto que me inspirou e não pela realização e em arte a forma de realizar é que caracteriza e distingue as correntes e as escolas A Ignorância da crítica a respeito do futurismo Carta de AC ao Diretor do Diário de Notícias Idem p 154 Com efeito características que se tornaram quase clichês do futurismo notadamente a referência à modernidade tecnológica às máquinas a inclusão na poesia de assuntos que a fidelidade à tradição consideraria antipoéticos isto se encontra na Ode Triunfal máquinas motores eletricidade ruídos industriais correias de transmissão automóveis trens máquinas agrícolas etc Sensações modernas tudo aquilo que no mundo atual mecânico e urbano constitui o entorno artificial da vida Uma poesia de sensações mas de sensações causadas por artifícios fruto da interferência do homem na natureza Ausência portanto do bucolismo isto é de Caeiro o Mestre que teria reconduzido a poesia aos extratos da alma que se mantêm separados da representação intelectual Mas os objetos da ciência e da técnica tornamse tão próximos da sensação quando as coisas da natureza Na verdade o futurismo postula esta atualização da relação poética que não seria mais com a natureza mas com os objetos fabricados a familiaridade com a natureza teria sido substituída pela familiaridade com o artifício Na sua presença constante próxima impositiva estes objetos têm algo a nos dizer são eles que solicitam agora nossos sentimentos depois de se fazerem presentes às nossas sensações E ardeme a cabeça de vos querer cantar com um excesso De expressão de todas as minhas sensações Com um excesso contemporâneo de vós ó máquinas 2 A expressão lírica da subjetividade A última estrofe do segundo dos Dois Excertos de Odes traz uma situação de indagação dramaticamente insólita devido às negações que compõem a questão levantada é solicitado da companheira que eu não tenho nem quero ter no momento em que eu não posso ver que tu me olhas e pergunta a ti própria tu que já me conheces quem eu sou A primeira negação ou instância negativa da construção da questão a ausência da companheira que eu não tenho nem quero ter e que é muito vagamente lembrada nos flashes que testemunham a perda da memória como perda da subjetividade A companheira ausente ou inexistente é ao mesmo tempo a interlocutora do poeta e aquela que há de fazer a questão no momento em que ela o olhar sem que ele possa sentir sobre si DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 36 este olhar que se fará desprovido de todo auxílio que eventualmente lhe poderia prestar outro sentido a fala Olhame em silêncio de forma não manifesta isto é em segredo Silêncio e mistério que não podem permanecer na resposta que dará à pergunta que ela mesma formulou aquela que já me conhece Ora a pergunta que pela gravidade de seu conteúdo deveria ser a mais difícil de responder quem eu sou conta desde o início com a expectativa da resposta pois é feita a alguém que me conhece isto é que conhece a resposta à pergunta crucial quem sou eu Pergunta a ti própria tu que me conheces e que já sabes portanto a resposta quem eu sou Mas a aparente trivialidade de uma pergunta que deve ser feita a si própria à própria pessoa que já sabe a resposta por conhecer aquele sobre quem se pergunta quem é é compensada por uma dificuldade intransponível a pergunta deve ser feita e a resposta deve ser dada por quem não existe pois a condição de companheira exige que alguém tenha alguém por tal Com efeito é possível que alguém se faça companheiro de outro mas para que a condição se efetive é preciso que este outro o aceite como companheiro Porém a companheira que é invocada no poema é justamente aquela que desfruta da condição de ausente ou inexistente aquela que eu não tenho nem quero ter Silêncio segredo ausência inexistência cercam e permeiam o conhecimento de si Como se não fosse preciso esperar pela resposta para entender a negatividade daquilo que sou e no limite desta negatividade e nulificação daquilo que sou já que a própria posição da questão já está ela mesma envolvida por negação e niilismo Assim aquele que não tem nem quer ter a companheira que perguntará por ele é também aquele que não se tem a si mesmo Dupla negação e coerência nesta espécie de antiposição de quem faz a pergunta e de quem é o objeto da pergunta Por isso os primeiros versos de Tabacaria parecem ecoar numa resposta que afirma o nada de ser do sujeito a pergunta do final dos Dois Excertos Não sou nada Nunca serei nada Não posso querer ser nada Três enunciações da impossibilidade de identificação do Eu Três respostas a uma mesma pergunta quem sou eu Mas o nada que sou ou esta modalidade de ser por anulação ou nulidade de ser impede que a simples constatação do nada encerre a questão e se constitua numa resposta Poderíamos dizer como no existencialismo que o nada que sou é tudo que sou e isto não seria um jogo de palavras se também conforme o existencialismo sartriano este nada significasse a série indefinida de projetos de ser cuja possibilidade é DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 37 justamente nada ser na atualidade de uma existência efetiva mas ser tudo e cada uma das possibilidades numa existência futura no futuro da existência É preciso então estabelecer a relação paradoxal não ser nada é condição para ser tudo e na medida em que cada futuro ocorrer como um presente na sua atualização o futuro deste presente será sempre a possibilidade ainda a se realizar a partir de um presente que não é nada em si mesmo e cuja realidade é o futuro que ainda está por vir O homem é o ser que não é o que é e que é o que não é Não é o presente que se configura como nada e é o futuro que se mostra como qualquer possibilidade Neste sentido o quarto verso da primeira estrofe não é contrário mas sim complementar dos três anteriores À parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo Aquele que afirma que não é não será e não pode querer ser nada pode no entanto ter em si tudo isto é todos os sonhos do mundo ou o mundo como totalidade dos possíveis na forma do sonho E isto não apenas porque o sonho é um modo de pensar ou uma modalidade de representar mas talvez principalmente por ser o sonho uma vivência da possibilidade que exclui a experiência da realidade Na sequência muitos versos do poema exprimirão esta relação entre um conteúdo determinado e um nada de conteúdo Janelas do meu quarto Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é E se soubessem quem é o que saberiam Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente Para uma rua inacessível a todos os pensamentos Real impossivelmente real certa desconhecidamente certa Na sequência do poema se saberá que o poeta fala da janela do seu quarto de onde observa a Tabacaria Sua primeira referência é portanto a sua localização onde está este que deseja saber quem é e acerca de quem se pergunta quem é quem sou Mas estar em seu quarto à sua janela diz alguma coisa a respeito de quem está à janela ou será esta uma situação em que precisamente nada se poderá dizer Ora há neste momento milhões de pessoas das quais cada uma pode dizer meu quarto sem que esta posse expressa neste pronome possessivo possibilite qualquer identificação Ninguém sabe quem é este que está à janela de seu quarto num mundo povoado de seres anônimos Mas supondo que soubessem o que saberiam Há realmente um conteúdo efetivo que poderia se constituir como resposta descritiva e significativa da expressão quem Em que termos de poderia dizer como autêntica realidade quem é ou quem sou Afinal eu e meu talvez sejam termos tão misteriosos quanto o mistério de uma rua cruzada constantemente por DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 38 gente pois o que há de mais aparentemente trivial pode ser o que há demais profundamente enigmático como aquilo que expressam os paradoxos que podem ser ditos acerca do enigma da rua impossivelmente real desconhecidamente certa Se aceitarmos que o mistério não é o irreal ou inverídico mas sim a verdade velada mais forte e mais impressionante quanto mais oculta e certa mesmo contra todo conhecimento então será possível se postar diante do mistério do impossivelmente real ou desconhecidamente certa Na chave do mistério impossível pode ser um predicado de real e desconhecido pode ser a qualidade atribuída ao que é certo Mas o que pode ser considerado real a ponto de ser impossível e certo a ponto de ser desconhecido Ou real para além do que entenderíamos como possível e certo para além do que entenderíamos como conhecido Pois para o nosso pensamento habitual não é a possibilidade que antecede e engendra a realidade E não é o conhecimento que torna alguma coisa certa Dito de outra maneira haverá algo de real e de certo que seja antes de tudo mistério real e impossível certo e desconhecido Ora em sua face mais decididamente existencial Pascal formulou de modo semelhante a realidade do homem ou do eu ambivalência mistério monstruosidade contradição enfim aquilo que não pode ser contido em normas puramente racionais ou pelo menos nas categorias analíticas de um pensamento moldado na linearidade clássica Posteriormente pensadores que de algum modo se preocuparam com o significado da existência seguiram caminho análogo Carlos Felipe Moisés 2005 p 102103 nota Campos experimenta enfim a situação do indivíduo que contestou todas as verdades estabelecidas e sabe que a partir daí está entregue à própria sorte sabe que não conta mais com a segurança das verdades comuns não conta mais com o apoio na fé ou na providência divina à qual as gerações anteriores confiavam a responsabilidade pelo sentido da existência Álvaro de Campos evidentemente não está sozinho nesta empreitada Ao seguir esta linha de reflexão sobre o sentido da existência acompanha o fluxo do pensamento mais avançado e mais rebelde do século XIX que valoriza o irracional como em Nietzsche e Kierkegaard e lança o embrião do que viria a ser já no século XX a filosofia da existência ou o existencialismo como em Heidegger ou Sartre Mas se quisermos remeter ao mestre Caeiro isto é ao pensamento poético mais do que à reflexão filosófica a transgressão das fronteiras da racionalidade ao menos no sentido do intelectualismo tradicional podemos pensar na lição primordial o poeta deve aprender a desaprender isto é abandonar os significados e sentidos consolidados na tradição DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 39 nos hábitos de pensar nas maneiras convencionais de dizer as coisas e principalmente de referirse ao próprio Eu cultivando a noção de identidade que parece ser a base mais firme de todas as relações É preciso pois aprender a descrer nos fundamentos nas ideias bem definidas e nas positividades que parecem alicerçar a representação da realidade Atingir esta radicalidade supõe uma questão que é ao mesmo tempo o enunciado de um risco depois de aprender a desaprender será possível aprender a reaprender para que a dúvida e a recusa praticadas pelo poeta possam se transformar numa nova busca pelo sentido supondo que a perspectiva metafísica ainda possa ser de alguma forma afirmada depois de Caeiro ainda que seja a metafísica do chocolate aprendida na confeitaria Até que este exame seja possível se o for Álvaro de Campos deparase com o negativo absoluto o mundo esvaziado de sentido reduzido a tabula rasa Idem p 103 Ora se o nada assim configurado é condição de possibilidade a tarefa de Campos segundo CF Moisés caracterizase como um projeto poético que é ao mesmo tempo um projeto existencial não tanto no sentido da x conduta subjetiva no mundo histórico Sartre quanto como a representação poética deste mundo em termos existenciais único caminho doravante para uma possível busca de sentido Cabe ao poeta lançar o seu projeto sem que nenhuma força ou orientação superior lhe sirva de anteparo Idem ib Esta atitude poética diante da falta e da ausência ou de um mundo esvaziado de sentido se apresenta nos paradoxos que assinalam a existência do sujeito poético posto em tal situação Estou hoje vencido como se soubesse a verdade Estou hoje lúcido como se estivesse para morrer Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À Tabacaria do outro lado da rua como coisa real por fora E a sensação de que tudo é sonho como coisa real por dentro Por que se pode pensar que a descoberta da verdade não seria uma vitória do indivíduo sobre as coisas mas a vitória da verdade sobre o indivíduo Afinal de acordo com Nietzsche a prevalência da verdade no seu sentido cristalizado e definitivo é a domesticação das pulsões a derrota do indivíduo e o sujeito de conhecimento seria a construção mais nítida desta subordinação a uma imagem moral do mundo Assim declararse vencido pela verdade é entender o que de fato seja a verdade no universo das representações DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 40 A lucidez diante da morte como possibilidade é a autenticidade no sentido heidegeriano portanto a forma lúcida de encarar a existência que tem no serparaamorte a sua estrutura mais importante Mas o verso é ambíguo estou lúcido não diante da morte mas como se estivesse para morrer Não estaria aí a diferença entre o sentido intelectual e metafísico da morte e seu significado sensível no sentido da sensação reflexiva já vista A perplexidade é a atitude perante si mesmo e perante as coisas quando o pensar o procurar e o achar têm como resultado esquecer A inutilidade da busca pelo sentido num mundo esvaziado de sentido Assim o império das sensações que parecia talvez satisfazer o poeta revelase motivo de angústia Pois a adesão às sensações não seria como em Caeiro pureza originária mas decorrência de desilusão e de decepção em relação ao sentido aparente que se revela ilusório a uma densidade que se revela um vazio etc Assim derrota lucidez perante a morte e perplexidade parecem desconstituir o Eu a individualidade mostra sua fragilidade e sua aparência mas neste percurso da negatividade e mesmo da nulificação o que vai aparecendo de modo precário e dramático é a subjetividade lírica que dá voz à face descomposta e dividida do indivíduo moderno cuja história não contém mais do que grandes gestos o dominó a máscara e o espelho 3 A transfiguração niilista da realidade A traição ao mestre Caeiro se faz pelo deslocamento do compromisso poético das coisas em si mesmas para a subjetividade que haverá de considerálas não mais a partir do que são mas do sentido que ocultam e que só o pensamento poderia desvelar Assim regredir da sensação ao pensamento é interpor entre o poeta e a realidade a mediação de uma consciência significante no sentido sartriano de produtora de significações que opera no espaço da diferença entre o signo e a coisa Isso devido a um processo de interiorização a subjetivação poética do mundo ao se fazer pela via do pensamento arriscase a decair para o conceito a reflexão anulando a originalidade da atitude poética que tende a ser substituída pela ideia no sentido platônico de forma ideal Mas como a fidelidade às sensações pode se transformar na hegemonia do pensamento Talvez a traição já se tivesse insinuado desde o começo talvez Campos nunca tenha sido inteiramente discípulo de Caeiro por não ter percebido a sua maneira de seguir o mestre Em Caeiro o verso objetivo deriva da absoluta anterioridade das coisas da precedência total das coisas em relação às palavras e da natureza em relação aos signos que DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 41 se referem a ela No limite a atitude de Caeiro seria antipoética a palavra deve ser sacrificada à coisa para que não haja mediação ou construção de significação A coisa na sua pureza é a coisa não dita e o poeta verdadeiramente das coisas mergulha no silêncio Ao optar pelo real só resta ao poeta sacrificar o único caminho à sua disposição para ao menos tentar encontrálo SEGOLIN 1992 p 69 Ora Campos optou pelo real optando pelas sensações Haveria outro meio Talvez não mas o problema está justamente em haver um meio e este ser cultivado pelo poeta na sua tentativa de identificar a coisa e o dizer Assim se o poeta opta pelo real tão radicalmente como o fez Caeiro ele deve sacrificar o único caminho porque não se trata de ir às coisas ou de voltar a elas mas de simplesmente deixálas ser num modo de presença que recusa todo sinal todo índice todo símbolo recusa a palavra e por isso a poesia é o sacrifício da palavra Na atitude radical do mestre a palavra deve morrer para que a coisa viva inteiramente por si mesma Por isso no classicismo de R Reis a palavra impera mas a força do signo torna irreal a coisa a forma poética fala da realidade irrealizandoa Caeiro desejaria mostrar a realidade por via da irrealização da palavra pois todo signo usurpa o ser das coisas Ao recusar a forma na sua intelectualidade representativa e ao optar pela sensação como contato direto até que ponto logra o poeta fazer com que o sujeito se paute pelo objeto Ocorre em Campos algo que o coloca irremediavelmente em rota de afastamento de Caeiro e que João Gaspar Simões expressa perfeitamente As coisas são sensações nossas sem objetividade determinável e eu sensação também para mim mesmo não posso crer que tenha mais realidade que as outras coisas SIMÕES apud SEGOLIN 1992 p 70 As coisas são sensações nossas se não equivale à tese filosófica o mundo é minha representação SCHOPENHAUER pelo menos nos adverte que sendo as coisas idênticas às sensações que provocariam ser é ser sentido ou sentir assim como esse est percipi ou percipere BERKELEY O esforço para sentir o mundo e não pensálo faz dele uma representação sensível É isto que significa a interiorização e a conscientização do mundo afinal a sua subjetivação Segolin 1992 p 70 menciona as sensações como presença na consciência enquanto eco subjetivo a reproduzir e multiplicarse processo ao qual não são estranhas as modulações subjetivas A intenção de Campos era que a sensação libertasse as coisas do aprisionamento dos signos intelectuais Para tanto a palavra poética expressiva das sensações livre das formas preceituais da poesia libertaria também as coisas da representação limitadora dos DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 42 signos As coisas já não seriam aquilo a que nos referimos mas sim aquilo que sentimos Mas enquanto para Caeiro as sensações eram o objeto as coisas para Campos o objeto são as sensações e nesta diferença a sensação ganha autonomia e acaba por tornarse o objeto da poesia A sensação ganha corpo na palavra pela palavra o poeta vivencia a sensação e ele mesmo não crê que tenha mais realidade do que as outras coisas uma vez que também é sensação para si mesmo O poeta existe ao sentir que é e as coisas existem ao serem sentidas pelo poeta Podese então colocar a questão o sensacionismo a princípio o modo de vivenciar objetivamente as coisas na sua realidade própria não seria na verdade uma maneira de dizer o que existe é o sujeito e as suas sensações sensação de si e sensação das coisas mas nesta expressão prevalece o genitivo subjetivo isto é a sensação mais do que o si e as coisas E assim como se pode ver no sensacionismo de Campos que então já deve ser diferenciado de Caeiro uma interiorização subjetivação ou conscientização do mundo sensível a poesia a palavra poética exprimirá a presença interna deste mundo e para isto quer dizer para cobrir a distância entre a interioridade e a exterioridade necessária será a elaboração de significações mediadoras Também é preciso observar que uma vez a sensação tornada consciência das coisas está configurada a relação sujeito objeto e a possibilidade de projeções subjetivas no mundo das coisas dada a posição da consciência nesta relação algo como uma representação sensível em sentido lato O esforço de Campos será para fazer da palavra um meio de significar sensivelmente o sensível para não cair na simbolização intelectual Uma poesia feita de palavras sentidas mais do que pensadas como se fosse possível uma concepção não essencialista mas existencialista do signo Nesta diferença estaria colocada também a distinção entre o preceitualismo clássico e a liberdade moderna Adolfo Casais Monteiro 1989 nos diz que A Modernidade é insubsistente p5 enunciado que se traduz em outros de teor um pouco mais concreto acerca das faculdades humanas Saber realmente que nada se sabe e sobretudo nada se pode p 6 Esta recusa deliberada de uma substancialidade ou de um substrato seria o modo de a modernidade recusar a realidade idealizada ou a expressão parnasiana do mundo O niilismo seria consequência desta assunção da insubsistência isto é de uma existência não fundamentada cuja precariedade reclama a criação enquanto o mundo substancial pedia apenas a conservação O poeta moderno exprime esta fragilidade que é ao mesmo tempo a lucidez A modernidade não é feita de sonhos mas de não os poder ter p6 A DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 43 modernidade foi uma luta contra tudo mas por nada idem O abissal a fragilidade e a morte na exigência da criação Viver não é preciso criar é preciso O objeto interiorizado na consciência que dele se tem mas ao qual o sujeito recusa o benefício da forma conceitual que lhe daria a perfeição lógica da verdade convencional a este resta apenas o equilíbrio instável da sensação da representação oscilante e efêmera o poeta sabe que o objeto intelectual é falso mas não consegue em contrapartida algo mais do que a verdade instantânea no ato do seu aparecimento aquela que não conta com garantias maiores do que a subjetividade desorientada Por isso a consciência das coisas e de si é frágil mas lúcida e é lúcida porque frágil É preciso uma persistência lúcida para não transformar esta fragilidade na necessidade de razão ou razões De que serve uma sensação se há uma razão exterior a ela Poema 64 p267 No limite mas no mesmo sentido e sempre lembrando a radicalidade sensível de Caeiro seria o caso de perguntar De que serve uma sensação se há uma palavra exterior a ela e na qual a sensação se exprime ganha corpo dizíamos embora talvez fosse mais pertinente dizer que ganha espírito e enquanto pensada tornase signo A coisa ou o real aquém da sensação aquém da palavra foi o que buscou Caeiro e F Segolin define esta atitude como a busca do silêncio Não seria paradoxal se ao concordarmos com Leyla PerroneMoisés Texto Crítica Escritura que o sujeito é ser de linguagem continuássemos afirmando que ele se define poeticamente pela busca do silêncio que em Caeiro seria a linguagem das coisas Mais uma vez encontramos a ambiguidade do discípulo em relação ao mestre Campos parece assumir que o signo pode exprimir a sensação a prolixidade por vezes louca da Ode Marítima os gritos as onomatopeias o desejo de significar os ruídos de se incorporar aos motores ao ritmo insignificativo das máquinas aquém ou além da fala articulada e mesmo o frenesi das canções dos marinheiros em que as palavras parecem apenas servir para dar expressão à melodia e ao ritmo a uma cadência sonora que é mais importante que as palavras Mas esta mutilação das palavras revela a tentativa de tornar mais intensa a expressão subordinar a significação ao som na sua pura significância material por via de uma desarticulação deliberada mas que ainda tem como propósito reenviar a alguma coisa a um significado além das palavras como signos ordenados Enfim o poeta está na linguagem porque o sujeito é ser de linguagem A materialização da linguagem se faz a partir da imponderabilidade da significação DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 44 A serenidade de Caeiro permitialhe encontrar o silêncio anterior às palavras A angústia de Campos o faz buscar o silêncio para além das palavras e mesmo da desorganização ou desarticulação dos signos que revelam o esforço para explorar a palavra até a sua exaustão Seguindo assim a trajetória textual oposta à de Caeiro na medida em que este nega a palavra ao passo que Campos a afirma e a explora inclusive material e sensacionisticamente o discípulo culmina por se defrontar tal como o mestre com o silêncio Só que o silêncio deste mestre Caeiro é o da natureza sem signo e o daquele Campos é o do reconhecimento da voz que ressoa sem nada revelar no espaço vazio e insignificante do verbo SEGOLIN 1992 p 88 Assim como o papel que envolve o chocolate o oculta na sua simples natureza e desvia o poeta da sensação para a imagem indireta assim também os signos no regime excessivo que o poeta vê como necessário à sua própria superação oculta a coisa a natureza sem signo que Caeiro almejou e talvez tenha atingido O intelectualismo que Campos recusa mas que está nele faz com que algo como a natureza sem signo esteja num ponto ideal além dos signos e portanto é preciso a longa e angustiante travessia pelas palavras para chegar ao silêncio Campos partilha com Caeiro a crença na insuficiência das palavras Mas Caeiro não precisa fazer a experiência fatigante desta carência ele já o sabe com um saber anterior às palavras Para Campos serão as próprias palavras que revelarão a sua insuficiência por isto o seu silêncio só pode ser posterior às palavras E a angústia do poeta é ver num universo tão povoado de signos o vazio de expressão Caeiro pode desde a origem calar como atitude primordial porque nele o silêncio é anterior Campos precisa fazer a travessia para descobrir que tudo está dito exceto a única verdade que importa dizer e que jamais será dita Segolin p 89 O silêncio se impõe através da vivência da palavra impotente Talvez seja este o significado do mundo insubsistente tal como AC Monteiro caracteriza a modernidade Excesso de significações pobreza de significantes conteúdo informe como se toda a realidade fosse constituída de acidentes sem substância que os unifique e os sustente subsistência ausência de forma substancial que fosse dada numa ordem simples e consequente diretamente atingida pela sensibilidade Ora esta insubsistência é também e talvez principalmente a do sujeito e assim a dos sentidos que ele confere às coisas quando não pode deixar de buscalos O sujeito mera sensação entre DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 45 sensações não desfruta nenhum privilégio substancial ou formal neste mundo insubsistente Começo a conhecerme Não existo Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram Ou metade deste intervalo porque também há vida Sou isso enfim Apague a luz feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelas no corredor Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo É um universo barato Poema 143 p 389 Até porque há uma identificação entre o Eu e o mundo na mesma prolixidade e na mesma precariedade a multiplicidade acidental de que falamos Sensação como consciência do mundo mas no sentido já apontado de interiorização ou subjetivação que não atinge o real no sentido de Caeiro Há então uma projeção do Eu nas coisas vide as primeiras odes e a Ode Marítima que se expressa como um desejo de mais do que se confundir com elas ser as coisas para atingir a dinâmica moderna do mundo isto é a materialidade e o maquinismo Mas como se trata de consciência do mundo do sensível da matéria da máquina do ritmo da velocidade o poeta não escapa do processo de interiorização não é ele que vai ao mundo impessoalizandose mas é o mundo que vem a ele interiorizado e subjetivado E então ocorre o fenômeno assinalado por Segolin a sensação tornase interna e pode vir a tornarse um modo de compreender o mundo não como sensível e sentido mas como sentido na acepção intelectual ou metafísica Não haveria por que procurar o sentido do mundo sentido sensível mas o deslocamento subjetivante a traição leva a isto Sentir tudo de todas as maneiras Viver tudo de todos os modos Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos Num só momento difuso profuso completo e longínquo Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo Eu tornome sempre mais tarde ou mais cedo Aquilo com quem simpatizo seja uma pedra ou uma ânsia Seja uma flor ou uma ideia abstrata Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus E eu simpatizo com tudo vivo de tudo em tudo A Passagem das Horas b p177 Sentir e viver no modo da totalidade do tempo e do espaço mas de forma condensada como se o Todo fosse Um Mas a unidade da multiplicidade que não é a DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p3046 46 unidade lógica portanto difuso profuso completo mas longínquo A simpatia é a coincidência o tornarse coisa aquilo com quem simpatizo ou não serão as coisas que se tornam Eu num trânsito já bem de Campos bem distante de Caeiro entre o abstrato e o concreto Esta separação já é problemática para um sensacionismo sensível em primeiro lugar por admitir o abstrato Em segundo lugar porque não está muito bem indicado como se vai de uma coisa à outra se passo da pedra à ânsia da flor à ideia da multidão a Deus do concreto ao abstrato ou se seria o contrário no limite o mundo concreto deduzido do abstrato Mesmo diante dos protestos do poeta que afirma viver de tudo em tudo Pensar a totalidade e a singularidade já é a posição metafísica do problema já é a complexidade artificial de desembrulhar o chocolate Bibliografia CASAIS MONTEIRO A A Ideia de Modernidade In A Palavra Essencial São Paulo Companhia Editora Nacional 1989 MOISÉS C F Engenheiro Naval In Fernando Pessoa Almoxarifado de Mitos São Paulo Escrituras 2005 PESSOA F Obra Poética Rio de Janeiro Nova Aguilar 1986a PESSOA F Obras em Prosa Rio de Janeiro Nova Aguilar 1986b PESSOA F Poesia Completa de Álvaro de Campos São Paulo Companhia das Letras 2005 SEGOLIN F Fernando Pessoa Poesia Transgressão Utopia São Paulo EDUC 1992