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136 Revista Desassossego 7 Junho2012 RICARDO REIS E A DISCIPLINA DO VERSO Fernando Morato1 RESUMO Na poesia de Fernando Pessoa há constantes reflexões a respeito da identidade do próprio sujeito enunciante exceto na obra de Ricardo Reis justamente o heterônimo cuja produção foi mais constante ao longo dos anos O último poema assinado por Reis parece dar uma pista importante a respeito da questão da identidade da heteronímia e de como a própria obra do neoclássico parece apresentar uma resposta para essas questões PALAVRASCHAVE Fernando Pessoa Ricardo Reis identidade verso reescrita ABSTRACT In the poetry of Fernando Pessoa there is constant thinking about the identity of the subject except in the works by Ricardo Reis who is the most constant writer among the heterônimos through the years The last poem by Reis seems to give an important clue on the question of the identity the heteronimia and on how the neoclassic work itself can look like an answer for those questions KEYWORDS Fernando Pessoa Ricardo Reis identity verse rewriting No seu último ano de vida Fernando Pessoa escreveu e datou apenas um poema em nome de Ricardo Reis Desde 1914 surgimento do heterônimo houve momentos de maior fertilidade outros de menor intensidade sempre tendo como referência os poemas datados mas com exceção de 1920 não houve um ano sem ser escrito pelo menos um poema em nome dele Alberto Caeiro concentra sua produção entre os anos 191419 Álvaro de Campos tem momentos de silêncio no final dos anos 1910 e em meados dos 1920 mas Ricardo Reis escreve com constância e persistência sempre Por isso o seu último poema merece alguma atenção Vivem em nós inúmeros Se penso ou sinto ignoro Quem é que pensa ou sente Sou somente o lugar Onde se sente ou pensa Tenho mais almas que uma Há mais eus do que eu mesmo Existo todavia Indiferente a todos Façoos calar eu falo Os impulsos cruzados Do que sinto ou não sinto Disputam em quem sou Ignoroos Nada ditam A quem me sei eu screvo PESSOA 2003 p 137 1 Mestrando do programa de Teoria e História Literária da Unicamp 137 Revista Desassossego 7 Junho2012 Causa curiosidade senão estranheza a leitura deste derradeiro poema a temática não parece a que tradicionalmente se associa a Ricardo Reis lembrando mais a do ortônimo ou a de Álvaro de Campos que mergulham na fragmentação do sujeito e reconhecem as dificuldades de autodefinição do eu Uma afirmação como Se penso ou sinto ignoro Quem é que pensa ou sente não está longe de Sinto que sou ninguém salvo uma sombra De um vulto que não vejo e que me assombra E em nada existo como a treva fria de Fernando Pessoa elemesmo PESSOA 1965 p 129 e parece se afastar enormemente das afirmações de autocontrole que costumamos reconhecer como típicas do heterônimo neoclássico Entretanto acreditamos que a temática da fragmentação do sujeito em Ricardo Reis ainda mais no último texto autógrafo indica uma linha de leitura interessante para a obra desse autor e poderia iluminar alguns aspectos da produção de Fernando Pessoa como um todo Continuemos a acompanhar o poema Após o reconhecimento do fato da multiplicação de personalidades o texto toma uma direção diferente da habitual nos heterônimos mais afeitos à fragmentação do eu Primeiro o sujeito lírico se identifica não com as vozes que falam através dele mas com o lugar onde essas vozes se manifestam o espaço de ocorrência das vozes se sobrepõe à sua própria ocorrência esvaziando um pouco a substância dessas vozes em si e submetendoas a um elemento externo a elas próprias Voltaremos a este ponto mais adiante Depois o sujeito lírico reforça sua indiferença às diversas vozes que o habitam introduzindo na questão heteronímica um tema típico de Ricardo Reis porém em seguida assume uma atitude nova fazêlos calar Movimento incomum no heterônimo neoclássico que prefere a resistência por assim dizer passiva às forças que o assolam Não vale a pena Fazer um gesto PESSOA 2003 p 28 Logo que a vida me não canse deixo Que a vida por mim passe Logo que eu fique o mesmo Id p 64 Abdica e sê Rei de ti mesmoId p 97 são expressões mais frequentemente encontradas ao longo das Odes do que afirmações assertivas como Façoos calar Eu falo Reforça e desdobra esse movimento a conclusão do poema que realiza essa atitude assertiva no próprio ato que dá existência ao poema Nada ditam A quem me sei eu screvo O controle das almas mais que uma se realiza através da fala que cala os impulsos cruzados mas essa fala se identifica através do paralelismo criado pelo texto com a escrita uma escrita que se mostra em associação com a fala voluntária e controlada realização e definição de um eu É interessante notar que nos poemas atribuídos a Ricardo 138 Revista Desassossego 7 Junho2012 Reis ao mesmo tempo em que o impulso em relação à vida é constantemente cerceado e deixado de lado em favor da aceitação de uma lei maior que é exterior ao sujeito Quer gozemos quer não gozemos passamos como o rio Id p33 haja também quase como a outra face da moeda essa atitude consciente e voluntária de controle e disciplina em relação à escrita Ponho na altiva mente o fixo esforço Da altura e à sorte deixo E as suas leis o verso Que quanto é alto e régio o pensamento Súbita a frase o busca E o scravo ritmo o serve Este controle consciente da escrita em Ricardo Reis era evidente para o próprio Fernando Pessoa Das obras em prosa que estavam sendo preparadas pelo poeta para a publicação dos poemas dos heterônimos consta uma crítica de Álvaro de Campos a esse respeito Comentando o poema acima Ponho na altiva mente Campos se mostra incomodado com a necessidade que o colega tem de se submeter a um elemento artificial Não concebo porém que as emoções nem mesmo as do Reis sejam universalmente obrigadas a odes sáficas ou alcaicas e que o Reis quer diga a um rapaz que lhe não fuja quer diga que tem pena de ter que morrer o tenha forçosamente que fazer em frases súbditas que por duas vezes são mais compridas e por duas vezes mais curtas e em ritmos escravos que não podem acompanhar as frases súbditas senão em dez sílabas para as duas primeiras e em seis sílabas as duas segundas num graduar de passo desconcertante para a emoção PESSOA 1995 p 141 Na controvérsia que surge entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos o neoclássico rebate a concepção de poesia do futurista e justifica sua adoção de versos ritmos e formas da tradição clássica Um poema é a projecção de uma ideia em palavras através da emoção A emoção não é a base da poesia é tão somente o meio de que a ideia se serve para se reduzir a palavras Não vejo entre a poesia e a prosa a diferença fundamental peculiar da própria disposição da mente que Campos estabelece Desde que se usa de palavras usase de um instrumento ao mesmo tempo emotivo e intelectual A palavra contém uma ideia e uma emoção Por isso não há prosa nem a mais rigidamente científica que não ressume qualquer suco emotivo Por isso não há exclamação nem a mais abstractamente emotiva que não implique ao menos o esboço de uma ideia A poesia é superior à prosa porque exprime não um grau superior de emoção mas por contra um grau superior do domínio dela a subordinação do tumulto em que a emoção naturalmente se exprimiria como verdadeiramente diz Campos ao ritmo à rima à estrofeId p13444 139 Revista Desassossego 7 Junho2012 A concepção da poesia não como uma maneira diferenciada de sentir ou de vivenciar a emoção mas como exercício de palavra e consequentemente como um exercício de controle dos meios de expressão recoloca justamente a preocupação central do poema Vivem em nós inúmeros e sugere que em Ricardo Reis a escrita neoclássica ultrapassa a mera opção estilística para aprofundar o próprio princípio da identidade do sujeito Da mesma forma que o sujeito lírico faz os diversos impulsos cruzados calarem através da falaescrita ele também subordina o tumulto em que a emoção naturalmente se exprimiria através da disciplina do ritmo da rima e da estrofe Estes elementos assumem assim papel maior do que o de meros elementos acessórios de escrita e passam a ser a própria essência da escrita poética Retornando então ao poema a disciplina de escrita assume um papel maior que a estruturação externa de uma voz que tem substância própria anterior ao ato de escrever e sugere que a falaescrita é a própria substância da voz que se impõe sobre as demais Este ponto de certa forma foi sugerido por Maria Fernanda de Abreu ABREU 1985 pp 6272 ao analisar as duas versões da ode Seguro assento na coluna firme a que foi publicada na revista Athena em 1924 e a que foi encontrada no espólio de Fernando Pessoa Versão do Espólio Seguro Assento na coluna firme Dos versos em que fico O criador interno movimento Por quem fui autor deles Passa e eu sobrevivo já não quem Escreveu o que fez Chegada a hora passarei também E os versos que não sentem Serão a única restança posta Nos capitéis do tempo A obra imortal excede o autor da obra E é menos dono dela Quem a fez do que o tempo em que perdura Morremos a obra viva Assim os deuses esta nossa regem Mortal e imortal vida Assim o Fado faz que eles a rejam Mas se assim é é assim Aquele agudo interno movimento Por quem fui autor deles 140 Revista Desassossego 7 Junho2012 Primeiro passa e eu outro já do que era Póstumo substituome Chegada a hora também serei menos Que os versos permanentes E papel ou papiro escrito e morto Tem mais vida que a mente Na noite a sombra é mais igual à noite Que o corpo que alumia Versão publicada na revista Athena Seguro Assento na coluna firme Dos versos em que fico Nem temo o influxo inúmero futuro Dos tempos e do olvido Que a mente quando fixa em si contempla Os reflexos do mundo Deles se plasma torna e à arte o mundo Cria que não a mente Assim na placa o externo instante grava Seu ser durando nela Para Abreu as diferenças substanciais dos dois textos mostram a evolução de personalidade do sujeito lírico Na primeira versão mais longa ele se demora nas considerações horacianas a respeito da permanência da obra em relação ao seu autor o tópos da ode 30 do terceiro livro HORÁCIO 2003 mas ao mesmo tempo insiste na finitude do eu como dado exterior ao seu controle já que deuses esta nossa regem Mortal e imortal vida É possível reconhecer aqui segundo a autora um sujeito angustiado frente ao destino e que se conforma de maneira não muito convencida Mas se assim é é assim mesmo porque insiste no último dístico na imagem da finitude e da sombra que se mistura à noite Esta angústia visível desaparece na segunda versão dando lugar à simples negação do medo da morte ou do olvido através da interiorização do movimento que o próprio mundo oferece e sua transformação em poesia Assim na placa o externo instante grava Seu ser durando nela A mudança de atitude diante do medo causado pelo fim da existência corresponde a uma mudança também de atitude frente à própria poesia já que num primeiro momento o sujeito lírico se caracteriza como autor dos versos que escreve e num segundo quase como um instrumento em que o movimento do mundo exterior atua Lembremos no poema Vivem em nós inúmeros o sujeito lírico não se apresenta como a voz que se alça frente às diversas que o habitam mas como o lugar em que essas vozes se cruzam 141 Revista Desassossego 7 Junho2012 Mais ainda esta mudança de atitude diante da escrita e da ansiedade nas diferentes versões do poema Seguro assento na coluna firme permite reconhecer uma mudança de postura filosófica diante da própria existência revelando uma atitude que a autora chama de mais empírica frente à emoção que suscita a realização lírica Ao invés de transformá la imediatamente em poesia Aquele agudo interno movimento Por quem fui autor deles passa a ser incorporada a outra prática que não a deixa extravasar absolutamente e de certa maneira faz o sujeito se controlar para viver maior integração com o conjunto do mundo que o cerca resultando em mais autêntica obediência ao Fado Lembremos de novo é a mesma atitude afirmada na controvérsia de Ricardo Reis com Álvaro de Campos O percurso descrito pela autora pode seguramente ser reconhecido como uma realização daquilo que Frederico Reis resumiu a respeito de seu irmão como um esforço lúcido e disciplinado para obter uma calma qualquer PESSOA 1995 p 140 evidenciando um paralelo entre atitude pessoal e atitude artística Maria Fernanda de Abreu avança no reconhecimento de que esta mudança de postura de vida e de atitude filosófica frente ao mundo e ao reconhecimento do fim da vida se realiza também em uma mudança de enunciação A segunda versão do poema Seguro assento na coluna firme além de consideravelmente mais curta apresenta também uma sintaxe contida violenta dura sincopada como os raciocínios do poeta ABREU 1985 Aprendizado de vida que se materializa num equivalente maior controle de enunciação através da superação da espontaneidade com que o receio da morte era tratado É a aproximação desses dois movimentos o controle das emoções e o controle da enunciação que acreditamos merecer um pouco mais de atenção Estamos diante de uma relação de mútuo reforço entre uma atitude filosófica e uma atitude estilística recorrente nos poemas de Ricardo Reis Sabendo que a segunda versão do poema Seguro assento na coluna firme foi a que Fernando Pessoa optou por publicar e como sendo a abertura do Livro Primeiro das Odes é possível imaginar que a preservação das duas versões nos dê uma chave de leitura também anunciada teoricamente nos textos em prosa estilo que corresponde a uma concepçãoatitude filosófica Ricardo Reis a personagem que constantemente retorna à pena de Fernando Pessoa é também o heterônimo que mais comumente enuncia uma opção positiva de vida e uma opção de estilo Alberto Caeiro alude com alguma frequência ao modo que adota para escrever e à relação dessa escrita com suas opções intelectuais de apagar as 142 Revista Desassossego 7 Junho2012 marcas de civilização mas trata mais a respeito de sua prática de vida que de sua prática estilística Como ambas se encontram no paradoxal esforço de ser o mais espontâneo possível acabam por se identificar mais com a supressão das convenções num esforço de escrita por assim dizer negativo Procuro dizer o que sinto Sem pensar em que o sinto Procuro encostar as palavras à ideia E não precisar dum corredor Do pensamento para as palavras Procuro despirme do que aprendi Procuro esquecerme do modo de lembrar que me ensinaram E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras Desembrulharme e ser eu não Alberto Caeiro Mas um animal humano que a Natureza produziu PESSOA 1965 p 226 O esforço de escritavivência não se aproxima de nenhum tipo de construção mas sim da demolição de tudo o que vem de fora ao sujeito sem pensar não precisar esquecerraspar desencaixotar desembrulhar que não poupa nem a própria personalidade Num movimento muito diferente do enunciado em Vivem em nós inúmeros Alberto Caeiro não reconhece essa identidade pessoal com nenhum tipo de organização ou disciplina já que se define apenas como um animal humano Muito pelo contrário a disciplina não constrói nada limitandose a destruir aquilo que contraria o que a Natureza produziu Da maneira semelhante em Álvaro de Campos o esforço de identidade se caracteriza não pelo reconhecimento positivo de um limite mas sim pelo transbordamento e pela indefinição e pela irregularidade Sim sou eu tal qual resultei de tudo Espécie de acessório ou sobresselente próprio Arredores irregulares da minha emoção sincera Sou eu aqui em mim sou eu Quanto fui quanto não fui tudo isso eu sou Quanto quis quanto não quis tudo isso me forma Quanto amei ou deixei de amar é a minha saudade de mim Id p 384 É a identidade mais uma vez pela negação daquilo que poderia gerar um centro ou estruturação ao sujeito seja personalidade seja seleção de lembrança A identidade de 143 Revista Desassossego 7 Junho2012 Ricardo Reis por seu turno constróise através de outro tipo de ação o movimento ativo da própria escrita se desdobra em um estilo que cria a armadura com que o sujeito se sustenta Essa armadura desde o início identificase com a tradição clássica Aqui nestas amigas sombras postas Longe onde menos nos conhece a história Lembro os que urdem cuidados Seus descuidados versos E mais que a todos te lembrando screvo Sob o vedado sol e te lembrando Bebo imortal Horácio Supérfluo à tua glória PESSOA 2003 p 83 A retomada explícita da referência anteriormente sugerida através da coluna firme dos versos a Horácio reforça a já bastante comentada filiação epicurista de Ricardo Reis Mas aqui a insere através de duas imagens que dialogam com a leitura que estamos tentando empreender te lembrando screvo e te lembrando Bebo Escrever é uma prática que corresponde a uma disciplina de vida aproveitada de maneira controlada nos prazeres que ela tem a oferecer Do ponto de vista dos valores e das escolhas pessoais e morais muito já se escreveu a respeito do que Ricardo Reis afirma e não cremos que isso tenha muito a acrescentar no momento Mas explorar a identidade entre a enunciação de controle e a escolha estilística pode ser interessante Devese acrescentar às observações feitas por Maria Fernanda de Abreu um outro aspecto importante da estética de Ricardo Reis que está em pleno acordo com tudo que já foi reconhecido até aqui a concisão É um traço bastante característico da poética reisiana a concentração da frase e das imagens muitas vezes adquirindo um tom sentencioso que a aproxima da máxima formulação concisa e acabada de uma visão de mundo que se constrói menos como sistema mas como entrecruzamento de diversos enunciados DÉCHERY 1994 Nas coletâneas de máximas dos moralistas franceses do século XVII o conjunto de proposições vale mais que a proposição individual apesar de ela ser um átomo autossuficiente Não é muito diferente em Ricardo Reis se lembrarmos que em quase nenhum ano de vida desde 1914 Fernando Pessoa deixou de escrever ao menos um poema como este heterônimo é uma rede de enunciados que se vai montando ao longo do tempo buscando sempre a fórmula 144 Revista Desassossego 7 Junho2012 Para ser grande sê inteiro nada Teu exagera ou exclui Sê todo em cada coisa Põe quanto és No mínimo que fazes Assim em cada lago a lua toda Brilha porque alta vive Fica evidente ainda mais uma vez a coincidência muito frequente em Reis da frase com a versificação que pode ser considerada a essência de seu método de escrita aforística Raras vezes um pensamento completo ultrapassa o limite das estrofes do poema na maior parte dos casos um dístico decassílabo seguido de um dístico hexassílabo A estrofe além de limite rítmico é limite de pensamento pois o enjambement apesar de usado com frequência raramente faz uma frase ultrapassar o limite estrófico apenas em cinco poemas das Odes isso acontece Cada poema é uma estrutura fechada em si que se autossustenta na construção lapidar dentro de um esquema rítmico bastante regular somente 28 dentre os 190 textos de Ricardo Reis não são escritos com alternância de decassílabos e hexassílabos e apenas 13 têm versos diferentes dessas duas medidas O movimento sintático que nas duas versões de Seguro assento na coluna firme se tornou mais intrincado aqui não se contorce tanto mas justamente porque atingiu a concisão absoluta que a lição moral do poema exigia para se realizar Entretanto essa formulação se realiza em uma estrutura prosódica bastante firme abusando das elisões e sinalefas É a efetivação da proposta de Que quanto é alto e régio o pensamento Súbita a frase o busca encontrando a formulação lapidar A propósito da ideia de identidade entre o pensamento elevado e o estilo nobre é importante lembrar que o caminho proposto por Reis é de que a frase busque o pensamento e a ele se adeque de maneira a que o enunciado surja de forma natural Não é o mesmo natural de Alberto Caeiro que nega tudo o que não seja do animal humano ou de Álvaro de Campos cumulando indiferentemente todas as vivências e experiências mas uma concepção por assim dizer clássica que naturaliza a regra e principalmente os limites É arte que não se basta em si mas sem a qual o pensamento também não é suficiente Na verdade é a mesma busca que o PseudoLongino diz existir para se atingir o sublime No entanto mesmo nesse caso e mesmo se se trata de um dom mais do que de uma aquisição apesar disso e na medida do possível educar as almas em direção ao grande e tornálas sempre prenhes se se pode assim dizer de uma exaltação genuína De que maneira dirás Escrevi em 145 Revista Desassossego 7 Junho2012 algum lugar o sublime é o eco da grandeza de alma Disso decorre que mesmo sem voz seja admirado às vezes o pensamento totalmente nu em si mesmo pela própria grandeza de alma Primeiramente portanto e preciso tomar isso como princípio o verdadeiro orador não deve ter pensamento baixo e ignóbil Pois não e possível que pessoas que destinam seus pensamentos e seus cuidados a preocupações vis e próprias de escravos ao longo da vida produzam alguma coisa espantosa e digna de qualquer época Mas são grandes os discursos como é normal daqueles que são capazes de ter pensamentos que tenham peso Dessa forma aos homens que tem os pensamentos mais altos acontecer a natureza sublime PSEUDOLONGINO 1996 Ricardo Reis parece estar fazendo um esforço constante no sentido de assimilar a lição do retor grego mas ampliando o escopo da atuação do sublime já que este não parece se restringir aos verdadeiros oradores e grandes discursos mas se tornar uma prática ao alcance de toda e qualquer pessoa A lição de Para ser grande sê inteiro não é uma orientação meramente literária como as discussões entabuladas com Álvaro de Campos mas uma lição de vida mais à maneira de Alberto Caeiro Entretanto diferente do Mestre Ricardo Reis implica menos uma renovação de atitudes que a disciplina quase ascética de interiorizar limites para seus atos e sua escrita É justamente a questão dos limites que interessa O que Ricardo Reis está propondo como atitude diante dos diversos eus que o habitam e suas diversas vozes é silenciálos através de um discurso que mesmo que não esteja claramente enunciado no poema Vivem em nós inúmeros é insinuado por toda a obra que até então se escreveu em seu nome aceitação do Fado indiferença frente ao mundo busca incessante da felicidade tranquila O poema enuncia todos esses temas tendo como ponto de partida justamente uma imagem emblemática da heteronímia o que não é comum à obra de Ricardo Reis nem poética nem em prosa Composto em 13XI1935 é o último poema datado de Reis e um dos últimos escritos por Fernando Pessoa menos de vinte dias antes de sua morte em 30XI1935 Testamento poético de Ricardo Reis ele marca com clareza a posição de sua prática frente ao fenômeno da heteronímia identificandose com uma disciplina que no momento limitase a enunciarse enquanto escrita mas que traz em seu bojo todas as implicações que procuramos acompanhar aqui Mesmo que Ricardo Reis continue sendo uma figura construída por uma pessoa fisicamente existente acompanhar o desenvolvimento e construção de uma personalidade de palavras evidencia a identidade 146 Revista Desassossego 7 Junho2012 que se molda através das escolhas enuciativas faloscrevo que são no fundo a matéria de todo escritor No fim o que perdura é a coluna firme dos versos em que fico BIBLIOGRAFIA ABREU Maria Fernanda de Sobre uma ode de Ricardo Reis Duas versões ou dois poemas ColoquioLetras n 88 Nov 1985 pp 6772 COELHO Jacinto Prado Diversidade e unidade em Fernando Pessoa Lisboa Verbo 1969 DÉCHERY Laurent Réflexions sur laphorisme et la maxime à lâge classique in The Romance Quaterly Washington vol 42 n 4 1994 HORÁCIO Odes Sem tradutor Lisboa Casa Rolland s d HORÁCIO Odes e epodos Trad Bento Prado de Almeida Ferraz org Anna Lia Amaral de Almeida Prado São Paulo Martins Fontes 2003 LIND Georg Rudolf Estudos sobre Fernando Pessoa Lisboa Imprensa NacionalCasa da Moeda 1981 MORAES João Quartim de Epicuro as Luzes da ética São Paulo Moderna 1998 OSAKABE Haquira Fernando Pessoa resposta à decadência São Paulo Criar 2002 PERRONEMOISES Leila Fernando Pessoa aquém do eu além do outro São Paulo Martins Fontes 1982 PESSOA Fernando Obras em prosa Organização introdução e notas de Cleonice Berardinelli Rio de Janeiro Aguilar 1995 primeira edição 1974 Obra Poética Organização introdução e notas de Maria Aliets Galhoz Rio de Janeiro Aguilar 1965 Poesia de Ricardo Reis Edição de Manuela Parreira da Silva Lisboa Assírio e Alvim 2000 PSEUDOLONGINO Do sublime Trad Filomena Hirata São Paulo Martins Fontes 1996 REBELO Luís de Sousa Fernando Pessoa e a tradição clássica in A tradição clássica na literatura portuguesa Lisboa Livros Horizonte 1982 RODITI Georges Espírito de perfeição Trad Júlio Castañon Guimarães Rio de Janeiro Imago 1990 TABUCCHI Antonio Pessoana mínima Lisboa Imprensa NacionalCasa da Moeda 1984 Artigo recebido em 30 de Março de 2012 e aprovado em 2 de Junho de 2012