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O SAGRADO E O PROFANO EM ALBERTO CAEIRO Isaac Newton Almeida Ramos1 RESUMO Alberto Caeiro funda o paganismo superior na obra de Fernando Pessoa Esse procedimento evidenciase no livro O guardador de rebanhos em particular no canto VIII Ele apresenta a humanização de Jesus Cristo que retorna como menino O sagrado e o profano se alimentam da mesma matéria poética PALAVRASCHAVE Alberto Caeiro modernidade sagrado profano e humanização RÉSUMÉ Alberto Caeiro trouve le paganisme profond dans lœuvre de Fernando Pessoa Cette procédure est évidente dans le livre O guardador de rebanhos en particulier à la VIII Il présente lhumanisation de JésusChrist qui revient comme un garçon Le sacré et le profane se nourrissent de la même matière poétique MOTSCLÉS Alberto Caeiro modernité sacré profane et humanisation Fernando Pessoa é considerado pela História da Literatura Ocidental um dos dois grandes nomes da poesia em língua portuguesa O outro é Camões Em um estudo mais sério que quisesse apontar traços de modernidade na poesia portuguesa ao longo dos séculos seria possível verificar que muitos poetas que antecederam Pessoa contribuíram decisivamente para as inovações temáticas estruturais e mesmo para a criação dos heterônimos pessoanos Não seria heresia afirmar que a renovação da lírica portuguesa vem desde a lírica trovadoresca passando pelos cancioneiros maneiristas barrocos românticos realistas simbolistas até chegar à geração de Orpheu Ao longo desse percurso ocorreram inovações no aspecto formal motivo temático abordagens filosóficas diálogos com a tradição clássica germinação das questões do eu a poesia revolucionária e metafísica de Antero de Quental no realismo a modernidade lírica de Cesário Verde na Geração de 70 e o simbolismo a renovação lírica e as poéticas de António Nobre Camilo Pessanha e Manuel Laranjeira 1 Doutorando em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa FFLCHUSP Professor da Universidade do Estado de Mato Grosso UNEMAT Bolsista CAPES 1 Dentre esses poetas destacamse Antero de Quental com a poesia revolucionária e metafísica um dos temas prediletos de Pessoa e alguns de seus heterônimos e Cesário Verde um dos grandes nomes da modernidade lírica da geração de 70 As histórias da literatura portuguesa não costumam mostrar esse percurso evolutivo o qual é de fundamental importância para entender a obra de Fernando Pessoa e o estudo dos seus heterônimos Um breve exemplo da superficialidade com que muitas vezes é tratada a obra de Pessoa nos manuais didáticos é o fato de raramente ser citado que são 72 e não 4 os heterônimos criados por esse poeta português É importante lembrar que podem ser mais de 72 posto que o espólio da obra de Pessoa continue a ser explorado 74 anos após a sua morte morreu em 30 de novembro de 1935 com 47 anos três dias depois de ter sido internado com cólica hepática Antes de passar ao objeto de estudo deste texto é pertinente citar a famosa carta redigida por Pessoa em 13 de janeiro de 1935 10 meses antes de sua morte a Adolfo Casais Monteiro na qual faz referência ao dia triunfal de sua vida o 8 de março de 1914 Esta seria a data que teria escrito de pé apoiado numa cômoda alta trinta e tantos poemas de O guardador de rebanhos atribuídos a Alberto Caeiro Provavelmente esse é um dos principais mitos criados propositalmente pelo poeta e amplificado pela historiografia literária Registrese que o número de poemas no referido livro chega aos 49 Ivo Castro organizador de uma edição crítica da obra de Caeiro sustenta que no dia triunfal o poeta teria escrito apenas 19 poemas Para chegar aos 49 dez textos produzidos antes de 8 de março seriam atribuídos a Caeiro e incorporados ao volume os demais o poeta teria escrito depois Não acredito nessa estória Ainda mais quando dentre eles consta o longo e polêmico canto a partir deste momento adotarei a terminologia canto em lugar de poema VIII que aqui será objeto de análise Após esse prelúdio textual passo ao estudo comparativo entre o canto de Caeiro e o texto bíblico com o intuito de apontar as marcas de modernidade presentes no referido canto Este caminho pode facilitar a discussão do chamado paganismo superior atribuído a Caeiro que se configura como uma das marcas de modernidade O paganismo é a religião que nasce da terra que nasce da atribuição a cada objeto de sua realidade 2 verdadeira explicava Antonio Mora filósofo e sociólogo teórico do Neopaganismo no seu O regresso dos deuses O canto em questão é considerado por vários estudiosos e até por Fernando Pessoa em suas Páginas íntimas e de Autointerpretação como o mais radical e antiespiritualista Dentre os heterônimos de Pessoa Caeiro é aquele que assume de maneira mais marcante e radical a contestação do mito e do poder representativo da linguagem SEGOLIN 1989 p252 Esse canto faz parte dos chamados textos que o próprio Pessoa não escreveria Criouas e passou a atribuirlhes poemas vários que não são como ele nos seus sentimentos e idéias os escreveria poemas nos quais não se devem buscar idéias ou sentimentos dele Pessoa pois muitos deles exprimem idéias que não aceita sentimentos que nunca teve Exemplifica esta afirmação com o poema oitavo do Guardador de Rebanhos cuja blasfêmia infantil e antiespiritualismo absoluto ele em sua própria pessoa nunca usaria BERARDINELLI 1985 p263 A face pagã de Caeiro está presente praticamente em todo o canto VIII e serve sobretudo para imprimir uma marca forte nesse que foi considerado o mestre dentre os heterônimos pessoanos Álvaro de Campos afirma o meu mestre Caeiro não era um pagão era o paganismo OP 1998 p2482 Tal afirmação hiperboliza o sujeito pagão transformandoo de adjetivo em substantivo No mesmo parágrafo Campos observa que em Caeiro não havia explicação para o paganismo havia consubstanciação op cit p248 Seria esse o motivo do próprio Caeiro não aceitar o rótulo de materialista Um dos heterônimos de Pessoa Ricardo Reis diz A obra de Caeiro representa a reconstrução integral do paganismo na sua essência absoluta tal como nem os gregos nem os romanos que viveram nele e por isso o não pensaram o puderam apud Berardinelli op cit p266 Mudando um pouco o rumo da abordagem de forma um tanto equivocada Benedito Nunes 1969 pp220221 chega a afirmar que como se fosse um discípulo moderno e ocidentalizado do Zenbudismo Caeiro adestrase a ter uma visão do mundo não turbada pela necessidade de reflexão visão de um olhar só não desdobrável num outro reflexivo que aprecia e julga aquilo que está vendo Enquanto isso Rinaldo Gama 1995 p92 reproduz impressão de Haroldo de Campos nas suas Notas à Margem de uma análise de 2 Neste trabalho adoto a terminologia OP para Obra Poética Aqui trecho de um Posfácio escrito por Álvaro de Campos intitulado Notas para a recordação do meu mestre Caeiro 3 Pessoa3 que não hesita em afirmar que o ensaio Os Oxímoros Dialéticos escrito por Jakobson se constitui no exame mais rigoroso e criador jamais feito de um poema e por extensão da poética mesma de Fernando Pessoa Gama 1995 ainda aponta que a partir desse estudo de Jakobson a crítica centrada na análise do texto propriamente dito tomou à frente da exegese do poeta Citou os nomes de Fernando Segolin e Eduardo Lourenço os quais teriam atingido novo estágio da crítica pessoana Ocorre que deste último ele ressalva que o estudioso português ainda atende a certas inclinações de ordem psicanalítica Discordo do ponto de vista de Gama que se alinha a uma crítica semiótica peirceana A minha discordância não é por ele seguir essa linha Isso não é relevante nesse momento O que importa destacar é que Lourenço é um dos principais nomes da crítica literária portuguesa com estudos fulcrais como Pessoa Revisitado Leitura Estruturante do Drama em Gente 1973 e O Labirinto da Saudade Psicanálise Mítica do Destino Português 1991 Nesse último título por exemplo ele traça um paralelo entre as obras Pátria de Junqueiro Mensagem de Pessoa e PátriaSaudade de Teixeira de Pascoaes Para melhor ilustrar a sua crítica destaco a seguinte passagem Entre o homem e a Realidade há uma osmose contínua como se um e outra fossem anverso e reverso de uma única realidade original cujo ser e perfil só negativamente podem ser aludidos O universo inteiro é uma Metáfora viva em permanente metamorfose daquilo que existente sabido e conhecido conferiria à Natureza e ao Homem autêntica realidade Por isso mesmo só o absolutamente real é real Fernando Pessoa passará a vida a querer sair desta visão de fogo sem jamais o conseguir LOURENÇO 1991 p101 A citação acima de Lourenço é perfeita para fechar as impressões gerais apresentadas nesse artigo sobre Fernando Pessoa e sobretudo Alberto Caeiro Afinal o paganismo do poeta de O Guardador de Rebanhos como disse Nunes 1969 p221 é fundamentalmente a inocência da alma Após essas observações críticas passo à abordagem de alguns dos 157 versos do Canto VIII Ressalto que o poema como um todo representa uma cosmovisão do paganismo de Caeiro O eu poético relata uma visão onírica supostamente tida com o menino Jesus Isso pode ser observado desde a primeira estrofe Num meiodia de fim de primavera Tive um sonho como uma fotografia A primavera 3 Linguística Poética Cinema p196 4 além de ser uma estação amena em sentido figurado representa a infância e a juventude E nela desabrocha toda a natureza Utilizandose de uma comparação sonho e fotografia ele aproxima o onirismo sensação de irrealidade com a realidade captada pelo diafragma de uma lente de uma câmara fotográfica sensação de imutabilidade Também poderseia dizer sobre uma realidade sensitiva ou modo sensitivo de ver as coisas a partir da tradição cristã Seria a própria dessacralização do sujeito real em um sujeito poético Vi Jesus Cristo descer à terra Veio pela encosta de um monte Tomado outra vez menino É como se o sujeito poético promovesse uma regressão temporal e corporal e ao mesmo tempo em que ele dessacraliza o texto bíblico sacraliza o texto literário São marcas textuais evidentes que imprimem traços da e na modernidade O devir poético se apresenta incrustado e inscrito no canto do texto sagrado e se desdobra em versos gozando de um momento profano É como se a realidade literária se constituísse em um espaço imagético em que o desapego ao texto sagrado se converte em um Cristo despregado da cruz a correr e a rolarse pela erva e a arrancar flores para as deitar fora e a rir de modo a ouvirse de longe Esse deslocamento do espaço sagrado para o terreno Jesus subiu aos céus e pregou no monte no texto bíblico no canto ele vê Jesus descer à terra e vir pela encosta mostra que o descolamento da consciência cristã funciona como um anteparo para a realidade poética que está por vir As veias abertas do paganismo superior caeiriano se evidenciam a partir do segundo parágrafo Tinha fugido do céu Era nosso demais para fingir De segunda pessoa da Trindade Caeiro escava de maneira fácil a memória fóssil do cristianismo Os valores cristãos são postos à prova Nem sequer o deixavam ter pai e mãe Como as outras crianças O seu pai era duas pessoas Um velho chamado José que era carpinteiro E que não era pai dele E o outro pai era uma pomba estúpida A única pomba feia do mundo Porque não era do mundo nem era pomba E a sua mãe não tinha amado antes de o ter No cântico poético os fatos são como que cinzelados para atender a um desejo profano não com o intuito de deturpar a realidade do texto consagrado mas sobretudo para revelar a visão de um Cristo humanizado Mesmo quando aparentemente se desmitifica um símbolo judaicocristão como a pomba que com o Novo Testamento representa o Espírito Santo sendo fundamentalmente um símbolo de pureza de 5 simplicidade e que no canto passa a ser uma pomba estúpida A inversão da aparência beleza versus feiúra não remete necessariamente a uma depreciação do ser Belo e feio já não são valores opostos mas digressões de estímulos Sua diferença objetiva é eliminada como a diferença entre verdadeiro e falso FRIEDRICH 1991 p77 Baudelaire antes mesmo de Flores do mal e de Rimbaud antecipou a estética do feio Não é o inverso da história bíblica que Caeiro busca e sim o avesso do imagético préconcebido Melhor seria dizer que se trata de um trabalho de desconstrução de arquétipos poéticos Ou como ensina Pessoa em Mensagem O mito é o nada que é tudo OP p72 Para construir seu canto Caeiro dialoga com quatro evangelhos João Lucas Marcos e Mateus Praticamente todos eles se atem à mesma coisa no entanto há sutis diferenças entre cada um Dentre os apóstolos de Jesus Cristo João foi o mais íntimo um grande amigo Ele testemunhou os milagres e é o mais detalhado em sua narrativa Lucas não teria testemunhado praticamente nada O seu evangelho é escrito bem depois Tomou muito cuidado para descrever Podese dizer que ele se prende ao que foi feito por João Marcos e Mateus também se baseiam no primeiro Possivelmente por ter escrito depois que os outros Mateus seja mais histórico Ele se prende não só ao que Jesus estava passando Mateus também se baseia no evangelho de Marcos Este último esteve presente na maioria das ações Talvez aí resida a coincidência do ponto de vista narrativo empreendido pelo eu poético caeiriano Da mesma forma que Marcos se coloca como um dos apóstolos Caeiro se mostra íntimo do menino Jesus E por isso os dois o apresentam de forma direta No canto além das referências aos citados evangelhos também há uma passagem do Gênesis e uma parábola Na primeira estrofe do canto de Caeiro há uma referência ao nascimento de Jesus Cristo Lucas 2 e em seguida parte para a fase de menino Mateus 2 Depois de sua partida um anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e disse Levantate toma o menino e sua mãe e foge para o Egito fica lá até que eu te avise porque Herodes vai procurar o menino para o matar BÍBLIA SAGRADA AVE MARIA 2000 p1286 O trecho acima pode ser colocado ao lado destes versos de Caeiro A correr e a rolarse pela erva E a arrancar flores para as deitar fora E a rir de modo a ouvirse de 6 longe Tratase da imagem de Cristo humanizado gozando o direito de ir e vir fazendo o que qualquer criança faria Pessoa nega a existência de Jesus como personalidade histórica e considera a religião cristã como sendo a obra do apóstolo Paulo estas idéias quanto ao Cristianismo são um reflexo fiel da ala estrema da teologia liberal do séc XIX e por outro lado dos filósofos do ateísmo LIND sd p109 Na primeira estrofe quanto ao aspecto morfossintático há predominância de verbos que indicam ação descer veio correr rolar arrancar rir ouvir Sintaticamente a estrofe começa com um adjunto adverbial de tempo sendo que em todos os períodos há elipse do sujeito eu Nas orações as frases são de ordem direta acompanhando o tom narrativo do poema em prosa e várias coordenadas É importante lembrar que o poema em prosa é uma das marcas da modernidade A segunda estrofe que vai do verso 9 ao 26 iniciase com o verso tinha fugido do céu Referese o poeta ao Evangelho de São Marcos 16 na parte em que Jesus deixa o sepulcro Há uma inversão aqui pois Jesus subiu aos céus para tomar o lugar dele de direito ou seja ao lado do pai No poema Ele foge do céu e vem para terra Por isso a inversão de valores que se caracteriza em uma desordem uma desmitificação da figura cristã Dos versos 10 ao 15 a ironia pagã se acentua e o eu poético deixa antever que no céu tudo é falso em desacordo com flores e árvores e pedras E a natureza como costuma ser nos versos de Caeiro mostrada como ela é Caeiro apresenta o espaço físico da natureza sem sobressaltos Os mistérios do universo se fundem em conhecimento do ser na verdade o nãoser A nãofilosofia a desnatureza do verbo A propagação do paganismo Isso pode ser percebido nos versos 16 e 17 e subir para a cruz e estar sempre a morrer Com uma coroa toda à roda de espinhos os quais remetem ao evangelho de Marcos Morfologicamente os verbos de ligação predominam Com isso há muitas referências nominais Sintaticamente imperam orações subordinadas reduzidas A marca da temporalidade é forte e anunciativa Estilisticamente pelo menos duas comparações E até com um trapo à roda da cintura Como os pretos nas ilustrações Nem sequer o deixavam 7 ter pai e mãe Como as outras crianças e uma ironia metafórica E o outro era uma pomba estúpida compõe a estrofe A terceira estrofe constituída por apenas cinco versos apresenta uma imagem depreciativa de Maria utilizandose mais uma vez da ironia Não era mulher era uma mala Em que ele tinha vindo do céu E estende esse recurso estilístico de forma enfática ao dizer que o menino que nunca tivera pai para amar com respeito queriam que ele pregasse a bondade e a justiça Morfologicamente a estrofe iniciase com uma negação composta por verbos de ligação era e depois seguem verbos de ação tinha vindo queriam nascera tivera amar pregasse que remetem simbolicamente ao enviado Caeiro no Canto VI do mesmo O Guardador de Rebanhos diz Pensar em Deus é desobedecer a Deus Porque Deus quis que o não conhecêssemos Por isso se nos não mostrou OP 1998 p208 Pessoa no livro Cancioneiro se mostra agradecido a Deus pela sua existência quando afirma Sou grato Ao que do pó que sou Me levantou opcit p164 Ele se refere ao livro do Gênesis Ainda Pessoa no poema Liberdade ironiza O mais do que isto É Jesus Cristo Que não sabia nada de finanças Nem consta que tivesse biblioteca idem p188 Dentro da mesma temática no referido Cancioneiro Pessoa diz Mas antes era o Verbo aqui perdido Quando a Infinita Luz já apagada Do Caos chão do Ser for levantada idem p190 Neste fragmento o verbo pode ser entendido como a palavra de Jesus Cristo ou como a palavra do poeta Este verbo palavra seja qual for se perde no momento em que a luz infinita porém apagada silêncio for erguida do chão da existência isso implica que ela pode ser dita pelo poeta ou por Jesus Cristo Na quarta e quinta estrofes predominam verbos de ação e mostram a fuga do menino Jesus para morar na aldeia com o eu poético Aproveitando de uma distração de Deus que estava a dormir E o Espírito Santo andava a voar Ele foi à caixa dos milagres e roubou três Para poder gozar mais tempo da situação de menino providenciou esses milagres para distrair a humanidade A tradição cristã exige a confirmação de pelo menos três milagres para que uma pessoa se torne santoa Ele o fez Essa pequena distração roubar três milagres possibilitou que ele continuasse as atividades a que se havia proposto Chapinha nas poças de água Colhe as flores e gosta delas e esqueceas Atira 8 pedras aos burros Rouba a fruta dos pomares Corre atrás das raparigas E levantalhes as saias No início da quinta estrofe há o ensinamento do olhar A mim ensinoume tudo Ensinoume a olhar para as cousas O olhar é o órgão de eleição de Caeiro Transparece o paradigma imagético erguido nos labirintos de uma semântica do olhar cotidiano O olhar é referência mais do que isso é um estado de ser um estado de permanência Para o olhar da criança não importa o significado o que importa é a imagem RAMOS 2004 p30 A sexta estrofe apresenta as impressões críticas do menino Jesus Se já estava nos ensinamentos de Caeiro que desde o poema I evoca a infância e no VIII também impactante constrói seu Menino Jesus como arquétipo da infância e seu viver lúdico GARCEZ 2007 pp2712 Sobre Deus diz ele é um velho estúpido e doente Sempre a escarrar no chão E a dizer indecências Sobre a Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia Sobre o Espírito Santo empoleirase nas cadeiras e sujaas a tal pomba Sobre o céu Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica Mas os seres não cantam nada Se cantassem seriam cantores Os seres existem e mais nada E por isso se chamam seres As imperfeições do ser e do nãoser são mostradas abertamente na poética de Caeiro Alguns verbos dão o tom nessa estrofe diz escarrar coça empoleira suja os três últimos formam uma gradação verbal sobre o Espírito Santo criou duvido questionamento da fé cristã cantam existem chamam adormece levo etc Destaque para o verbo dizer com forma pronominal que repetese várias vezes como se servisse para dar autenticidade aos fatos apresentados No último verso dessa estrofe o eu poético assume a guarda do menino Jesus E eu levoo para casa A sétima estrofe precedida por uma linha pontilhada traz uma fartura de verbos de ligação e muitas conjunções aditivas Ele é a Eterna Criança o deus que faltava Ele é o humano que é natural grifos meus É curioso observar que na primeira parte do verso a palavra deus está em minúsculo e Eterna Criança em maiúsculo Esse procedimento provoca uma inversão da eternidade materializada sob a forma de criança Da mesma forma quando essa humanização atinge um estado de sublimação provocada no e pelo campo literário no mesmo nível paradigmático do texto bíblico o eu poético encontra nessa perfeição de ser o seu semelhante Ele é o humano que é natural Ele é o 9 divino que sorri e que brinca E por isso é que sei com toda a certeza Que ele é o Menino Jesus verdadeiro A humanização consagrada do menino Jesus chega ao ponto dele afirmar que é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre Curiosamente na busca de marcas da modernidade a primeira impressão que se tem é que parece que se está recuperando um mito literário baseado na idéia aristotélica de que para escrever poesia é preciso de inspiração complementada depois por Platão que disse ser necessário ter o domínio da técnica de fazer verso concepção esta muito forte na época do romantismo Esse mito desde os simbolistas praticamente deixou de existir No entanto em uma leitura mais atenta é possível perceber que é a proximidade com o ser infantil que faz do homem um poeta Com essa proximidade ele está aberto a novos experimentos à sublimação dos seres e das coisas Seria como se possuísse o olhar de descobridor Lembrome do ensinamento do verso de Oswald aprendi com meu filho de 10 anos que a poesia é a descoberta das coisas que eu nunca vi Melhor dizendo a partir dessa reação as coisas vistas somente pelo olhar infantil que surge esse eterno poeta Aí é que está o elo da modernidade A estrofe seguinte começa com maiúsculas A Criança Nova que habita onde vivo Dáme uma mão a mim Que não há mistério no mundo E que tudo vale a pena Este último verso dialoga com os famosos versos de Mar portuguez do livro Mensagem Valeu a pena Tudo vale a pena Se a alma não é pequena idem p82 Tratase de uma estrofe com tintura existencial corrente filosófica que surgirá algumas décadas depois todavia a literatura se nutre há muitos anos dessa fonte O mais filósofo dos heterônimos de Pessoa afirma não ter filosofia Mero jogo retórico A sua filosofia parte justamente da negação da própria filosofia RAMOS opcit p 31 Na seqüência uma pequena estrofe de quatro versos A Criança Eterna acompanhame sempre A direção do meu olhar é o seu dedo apontando grifos meus Dois períodos sinestésicos descontraídos fecham essa estrofe O meu ouvido atento alegremente a todos os sons São as cócegas que ele me faz brincando nas orelhas No destaque houve uma inversão do sujeito que antes havia sido apresentado como Eterna Criança e agora é a Criança Eterna Esse segundo sujeito mais forte está bem mais próximo e íntimo A voz lírica metonimicamente se encanta pelo novo ser 10 Há um profundo sentimento de irmandade de comunhão de fraternidade que se encaixa perfeitamente nos conceitos cristãos em trecho da próxima estrofe Mas vivemos juntos e dois Com um acordo íntimo Como a mão direita e a esquerda Lembrome de um dito popular que diz eu te conheço tão bem como o olho direito conhece o esquerdo É dessa maneira que o leitor convive com essa confidência com esse conluio poético Poucos mas suficientes verbos de ação se apresentam damonos pensamos vivemos grifos meus Essa gradação verbal estende uma situação anterior já vivida em outros versos e acentua a paz espiritual fruto da visão humanizada O sagrado nunca esteve relacionado no canto de Caeiro como algo posto inatingível ou mesmo condenável pelos ensinamentos cristãos É como se ele quisesse compor uma nova ordem a ordem do texto poético da tessitura do material que eleva Ele procura e recupera a ordem estabelecida entre Deus e o homem Isso não significa ter que abrir mão do terreno espiritual e optar pelo plano terreno ou viceverso O poema todo tenta fugir do modelo mítico ou de qualquer outro paradigma Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas No degrau da porta de casa Graves como convém a um deus e a um poeta E como se cada pedra Fosse todo um universo E fosse por isso um grande perigo para ela Deixála cair no chão grifos meus É nesse espaço lúdico e temporal alimentado por um ambiente familiar que Caeiro atira suas pedrinhas personificadas brincamos as cinco pedrinhas como se fosse um jogo de amarelinhas e que para passar para outra fase fosse preciso pular de casa em casa de verso em verso A estrofe seguinte prepara um ritual de passagem para o encerramento do canto Depois eu contolhe histórias das cousas só dos homens E ele sorri porque tudo é incrível Ri dos reis e dos que não são reis E tem pena de ouvir falar das guerras E dos comércios e dos navios Que ficam fumo no ar dos altosmares As epopéias antigas cantavam os feitos dos heróis e das grandes nações Camões fez isso magistralmente em Os Lusíadas para saudar o povo português sem abrir mão da crítica Lembrome dos episódios do gigante Adamastor do velho do Restelo Fernando Pessoa em Mensagem fez uma releitura épicomoderna Ó mar salgado quanto do teu sal São lágrimas de Portugal idem p82 Um dito antigo dizia Está feliz como um rei Está rindo de 11 barriga cheia É com esse mesmo espírito que o menino quer viver Rir com todos e para todos Depois de ouvir tantas estórias Levoo ao colo para dentro de casa E deitoo despindoo lentamente E como seguindo um ritual muito limpo E todo materno até ele estar nu A impressão que se tem é que o eu poético assumiu o papel da Virgem Maria Mas essa mulher assexuada não guarda um mistério não se cobre de luz pelo contrário investese tão somente do exercício de acalentar uma pequenina alma A referência à nudez aqui permeia o próprio texto bíblico no entanto não tem a intenção de mostrar a abdicação dos bens materiais O que se procura mesmo é o acalento materno e poético A luz que vem ou se acende é onírica e ao mesmo tempo lúdica E brinca com os meus sonhos Vira uns de pernas para o ar Põe uns em cima dos outros E bate as palmas sozinho Sorrindo para o meu sono grifos meus Novamente aparece uma gradação verbal desta vez provocando um efeito imagético sinestésico e ao mesmo tempo metafórico As duas últimas estrofes são precedidas de linhas pontilhadas como que a dar espaço imagético para o leitor A lírica contemplada substitui a visão sacralizada Isso pode ser notado nos versos Pegame tu ao colo E levame para dentro da tua casa Despe o meu ser cansado e humano E deitame na tua cama O eu poético quer desfrutar das mesmas expectativas que são humanas não divinas que são sagradas pelo texto poético e por isso profanas todavia sem imolar a fé Esta é a história do meu Menino Jesus Por que razão que se perceba Não há de ser ela mais verdadeira Que tudo quanto os filósofos pensam E tudo quanto as religiões ensinam grifos meus Caeiro sagra o texto literário ao tornar seu Menino Jesus no que todos gostariam de ter e conhecer Eis o mistério da poesia encarnada O sacro e o profano são feitos da mesma matéria A mesma poesia que anuncia é a que ergue a voz do poema A palavra na modernidade é um dos símbolos da decantação entre a tradição e a ruptura que não é processo é passagem É sobretudo o levante da imagem poética estabelecida pelo paganismo superior de Alberto Caeiro mestre de Fernando Pessoa e seus heterônimos O sagrado e o profano nunca estiveram tão próximos com a humanização de Cristo A mesa dos versos está posta A ceia será servida 12 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERARDINELLI Cleonice Estudos de Literatura Portuguesa Imprensa Nacional Casa da Moeda 1985 p263 BÍBLIA SAGRADA AVE MARIA Revisada por Frei José Pedreira de Castro OFM e pela equipe auxiliar da Editora 135ed São Paulo AveMaria 2000 p1286 FRIEDRICH Hugo Estrutura da lírica moderna da metade do século XIX a meados do século XX Trad Marise M Curioni 2ed São Paulo Livraria Duas Cidades 1991 GAMA Rinaldo O Guardador de Signos Caeiro em Pessoa São Paulo Perspectiva Instituto Moreira Sales 1995 Debates 269 GARCEZ Maria Helena Nery Uma poética grávida de impactos In Literatura Portuguesa História memória e perspectivas org Aparecida de Fátima Bueno Anni Gisele Fernandes et al São Paulo Alameda 2007 LIND George Rudolf B Alberto Caeiro O renovador do paganismo InEstudo sobre Fernando Pessoa Imprensa Nacional Casa da Moeda sd p109 LOURENÇO Eduardo O Labirinto da Saudade Psicanálise Mítica do Destino Português 4ed Lisboa Publicações Dom Quixote 1991 NUNES Benedito Fernando Pessoa In O dorso do tigre São Paulo Perspectiva 1968 pp213262 PESSOA Fernando Obra Poética org Maria Aliete Galhoz 3ed Rio de Janeiro Nova Aguilar 1998 RAMOS Isaac N A Confluências divergências e singularidades In Ensaios de Literatura Comparada Portugal Brasil Angola Cabo Verde org Isaac Newton Almeida Ramos Agnaldo Rodrigues CáceresMT Unemat Editora 2004 SEGOLIN Fernando Caeiro e Nietzsche Da Crítica da Linguagem à Antifilosofica e à Antipoesia In Actas do IV Congresso Internacional de Estudos Pessoanos Secção Brasileira volII Vários autores 2 vols Porto Fundação Eng António de AlmeidaFundação Calouste Gulbenkian 1989 13
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de modernidade na poesia portuguesa ao longo dos séculos seria possível verificar que muitos poetas que antecederam Pessoa contribuíram decisivamente para as inovações temáticas estruturais e mesmo para a criação dos heterônimos pessoanos Não seria heresia afirmar que a renovação da lírica portuguesa vem desde a lírica trovadoresca passando pelos cancioneiros maneiristas barrocos românticos realistas simbolistas até chegar à geração de Orpheu Ao longo desse percurso ocorreram inovações no aspecto formal motivo temático abordagens filosóficas diálogos com a tradição clássica germinação das questões do eu a poesia revolucionária e metafísica de Antero de Quental no realismo a modernidade lírica de Cesário Verde na Geração de 70 e o simbolismo a renovação lírica e as poéticas de António Nobre Camilo Pessanha e Manuel Laranjeira 1 Doutorando em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa FFLCHUSP Professor da Universidade do Estado de Mato Grosso UNEMAT Bolsista CAPES 1 Dentre esses poetas destacamse Antero de Quental com a poesia revolucionária e metafísica um dos temas prediletos de Pessoa e alguns de seus heterônimos e Cesário Verde um dos grandes nomes da modernidade lírica da geração de 70 As histórias da literatura portuguesa não costumam mostrar esse percurso evolutivo o qual é de fundamental importância para entender a obra de Fernando Pessoa e o estudo dos seus heterônimos Um breve exemplo da superficialidade com que muitas vezes é tratada a obra de Pessoa nos manuais didáticos é o fato de raramente ser citado que são 72 e não 4 os heterônimos criados por esse poeta português É importante lembrar que podem ser mais de 72 posto que o espólio da obra de Pessoa continue a ser explorado 74 anos após a sua morte morreu em 30 de novembro de 1935 com 47 anos três dias depois de ter sido internado com cólica hepática Antes de passar ao objeto de estudo deste texto é pertinente citar a famosa carta redigida por Pessoa em 13 de janeiro de 1935 10 meses antes de sua morte a Adolfo Casais Monteiro na qual faz referência ao dia triunfal de sua vida o 8 de março de 1914 Esta seria a data que teria escrito de pé apoiado numa cômoda alta trinta e tantos poemas de O guardador de rebanhos atribuídos a Alberto Caeiro Provavelmente esse é um dos principais mitos criados propositalmente pelo poeta e amplificado pela historiografia literária Registrese que o número de poemas no referido livro chega aos 49 Ivo Castro organizador de uma edição crítica da obra de Caeiro sustenta que no dia triunfal o poeta teria escrito apenas 19 poemas Para chegar aos 49 dez textos produzidos antes de 8 de março seriam atribuídos a Caeiro e incorporados ao volume os demais o poeta teria escrito depois Não acredito nessa estória Ainda mais quando dentre eles consta o longo e polêmico canto a partir deste momento adotarei a terminologia canto em lugar de poema VIII que aqui será objeto de análise Após esse prelúdio textual passo ao estudo comparativo entre o canto de Caeiro e o texto bíblico com o intuito de apontar as marcas de modernidade presentes no referido canto Este caminho pode facilitar a discussão do chamado paganismo superior atribuído a Caeiro que se configura como uma das marcas de modernidade O paganismo é a religião que nasce da terra que nasce da atribuição a cada objeto de sua realidade 2 verdadeira explicava Antonio Mora filósofo e sociólogo teórico do Neopaganismo no seu O regresso dos deuses O canto em questão é considerado por vários estudiosos e até por Fernando Pessoa em suas Páginas íntimas e de Autointerpretação como o mais radical e antiespiritualista Dentre os heterônimos de Pessoa Caeiro é aquele que assume de maneira mais marcante e radical a contestação do mito e do poder representativo da linguagem SEGOLIN 1989 p252 Esse canto faz parte dos chamados textos que o próprio Pessoa não escreveria Criouas e passou a atribuirlhes poemas vários que não são como ele nos seus sentimentos e idéias os escreveria poemas nos quais não se devem buscar idéias ou sentimentos dele Pessoa pois muitos deles exprimem idéias que não aceita sentimentos que nunca teve Exemplifica esta afirmação com o poema oitavo do Guardador de Rebanhos cuja blasfêmia infantil e antiespiritualismo absoluto ele em sua própria pessoa nunca usaria BERARDINELLI 1985 p263 A face pagã de Caeiro está presente praticamente em todo o canto VIII e serve sobretudo para imprimir uma marca forte nesse que foi considerado o mestre dentre os heterônimos pessoanos Álvaro de Campos afirma o meu mestre Caeiro não era um pagão era o paganismo OP 1998 p2482 Tal afirmação hiperboliza o sujeito pagão transformandoo de adjetivo em substantivo No mesmo parágrafo Campos observa que em Caeiro não havia explicação para o paganismo havia consubstanciação op cit p248 Seria esse o motivo do próprio Caeiro não aceitar o rótulo de materialista Um dos heterônimos de Pessoa Ricardo Reis diz A obra de Caeiro representa a reconstrução integral do paganismo na sua essência absoluta tal como nem os gregos nem os romanos que viveram nele e por isso o não pensaram o puderam apud Berardinelli op cit p266 Mudando um pouco o rumo da abordagem de forma um tanto equivocada Benedito Nunes 1969 pp220221 chega a afirmar que como se fosse um discípulo moderno e ocidentalizado do Zenbudismo Caeiro adestrase a ter uma visão do mundo não turbada pela necessidade de reflexão visão de um olhar só não desdobrável num outro reflexivo que aprecia e julga aquilo que está vendo Enquanto isso Rinaldo Gama 1995 p92 reproduz impressão de Haroldo de Campos nas suas Notas à Margem de uma análise de 2 Neste trabalho adoto a terminologia OP para Obra Poética Aqui trecho de um Posfácio escrito por Álvaro de Campos intitulado Notas para a recordação do meu mestre Caeiro 3 Pessoa3 que não hesita em afirmar que o ensaio Os Oxímoros Dialéticos escrito por Jakobson se constitui no exame mais rigoroso e criador jamais feito de um poema e por extensão da poética mesma de Fernando Pessoa Gama 1995 ainda aponta que a partir desse estudo de Jakobson a crítica centrada na análise do texto propriamente dito tomou à frente da exegese do poeta Citou os nomes de Fernando Segolin e Eduardo Lourenço os quais teriam atingido novo estágio da crítica pessoana Ocorre que deste último ele ressalva que o estudioso português ainda atende a certas inclinações de ordem psicanalítica Discordo do ponto de vista de Gama que se alinha a uma crítica semiótica peirceana A minha discordância não é por ele seguir essa linha Isso não é relevante nesse momento O que importa destacar é que Lourenço é um dos principais nomes da crítica literária portuguesa com estudos fulcrais como Pessoa Revisitado Leitura Estruturante do Drama em Gente 1973 e O Labirinto da Saudade Psicanálise Mítica do Destino Português 1991 Nesse último título por exemplo ele traça um paralelo entre as obras Pátria de Junqueiro Mensagem de Pessoa e PátriaSaudade de Teixeira de Pascoaes Para melhor ilustrar a sua crítica destaco a seguinte passagem Entre o homem e a Realidade há uma osmose contínua como se um e outra fossem anverso e reverso de uma única realidade original cujo ser e perfil só negativamente podem ser aludidos O universo inteiro é uma Metáfora viva em permanente metamorfose daquilo que existente sabido e conhecido conferiria à Natureza e ao Homem autêntica realidade Por isso mesmo só o absolutamente real é real Fernando Pessoa passará a vida a querer sair desta visão de fogo sem jamais o conseguir LOURENÇO 1991 p101 A citação acima de Lourenço é perfeita para fechar as impressões gerais apresentadas nesse artigo sobre Fernando Pessoa e sobretudo Alberto Caeiro Afinal o paganismo do poeta de O Guardador de Rebanhos como disse Nunes 1969 p221 é fundamentalmente a inocência da alma Após essas observações críticas passo à abordagem de alguns dos 157 versos do Canto VIII Ressalto que o poema como um todo representa uma cosmovisão do paganismo de Caeiro O eu poético relata uma visão onírica supostamente tida com o menino Jesus Isso pode ser observado desde a primeira estrofe Num meiodia de fim de primavera Tive um sonho como uma fotografia A primavera 3 Linguística Poética Cinema p196 4 além de ser uma estação amena em sentido figurado representa a infância e a juventude E nela desabrocha toda a natureza Utilizandose de uma comparação sonho e fotografia ele aproxima o onirismo sensação de irrealidade com a realidade captada pelo diafragma de uma lente de uma câmara fotográfica sensação de imutabilidade Também poderseia dizer sobre uma realidade sensitiva ou modo sensitivo de ver as coisas a partir da tradição cristã Seria a própria dessacralização do sujeito real em um sujeito poético Vi Jesus Cristo descer à terra Veio pela encosta de um monte Tomado outra vez menino É como se o sujeito poético promovesse uma regressão temporal e corporal e ao mesmo tempo em que ele dessacraliza o texto bíblico sacraliza o texto literário São marcas textuais evidentes que imprimem traços da e na modernidade O devir poético se apresenta incrustado e inscrito no canto do texto sagrado e se desdobra em versos gozando de um momento profano É como se a realidade literária se constituísse em um espaço imagético em que o desapego ao texto sagrado se converte em um Cristo despregado da cruz a correr e a rolarse pela erva e a arrancar flores para as deitar fora e a rir de modo a ouvirse de longe Esse deslocamento do espaço sagrado para o terreno Jesus subiu aos céus e pregou no monte no texto bíblico no canto ele vê Jesus descer à terra e vir pela encosta mostra que o descolamento da consciência cristã funciona como um anteparo para a realidade poética que está por vir As veias abertas do paganismo superior caeiriano se evidenciam a partir do segundo parágrafo Tinha fugido do céu Era nosso demais para fingir De segunda pessoa da Trindade Caeiro escava de maneira fácil a memória fóssil do cristianismo Os valores cristãos são postos à prova Nem sequer o deixavam ter pai e mãe Como as outras crianças O seu pai era duas pessoas Um velho chamado José que era carpinteiro E que não era pai dele E o outro pai era uma pomba estúpida A única pomba feia do mundo Porque não era do mundo nem era pomba E a sua mãe não tinha amado antes de o ter No cântico poético os fatos são como que cinzelados para atender a um desejo profano não com o intuito de deturpar a realidade do texto consagrado mas sobretudo para revelar a visão de um Cristo humanizado Mesmo quando aparentemente se desmitifica um símbolo judaicocristão como a pomba que com o Novo Testamento representa o Espírito Santo sendo fundamentalmente um símbolo de pureza de 5 simplicidade e que no canto passa a ser uma pomba estúpida A inversão da aparência beleza versus feiúra não remete necessariamente a uma depreciação do ser Belo e feio já não são valores opostos mas digressões de estímulos Sua diferença objetiva é eliminada como a diferença entre verdadeiro e falso FRIEDRICH 1991 p77 Baudelaire antes mesmo de Flores do mal e de Rimbaud antecipou a estética do feio Não é o inverso da história bíblica que Caeiro busca e sim o avesso do imagético préconcebido Melhor seria dizer que se trata de um trabalho de desconstrução de arquétipos poéticos Ou como ensina Pessoa em Mensagem O mito é o nada que é tudo OP p72 Para construir seu canto Caeiro dialoga com quatro evangelhos João Lucas Marcos e Mateus Praticamente todos eles se atem à mesma coisa no entanto há sutis diferenças entre cada um Dentre os apóstolos de Jesus Cristo João foi o mais íntimo um grande amigo Ele testemunhou os milagres e é o mais detalhado em sua narrativa Lucas não teria testemunhado praticamente nada O seu evangelho é escrito bem depois Tomou muito cuidado para descrever Podese dizer que ele se prende ao que foi feito por João Marcos e Mateus também se baseiam no primeiro Possivelmente por ter escrito depois que os outros Mateus seja mais histórico Ele se prende não só ao que Jesus estava passando Mateus também se baseia no evangelho de Marcos Este último esteve presente na maioria das ações Talvez aí resida a coincidência do ponto de vista narrativo empreendido pelo eu poético caeiriano Da mesma forma que Marcos se coloca como um dos apóstolos Caeiro se mostra íntimo do menino Jesus E por isso os dois o apresentam de forma direta No canto além das referências aos citados evangelhos também há uma passagem do Gênesis e uma parábola Na primeira estrofe do canto de Caeiro há uma referência ao nascimento de Jesus Cristo Lucas 2 e em seguida parte para a fase de menino Mateus 2 Depois de sua partida um anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e disse Levantate toma o menino e sua mãe e foge para o Egito fica lá até que eu te avise porque Herodes vai procurar o menino para o matar BÍBLIA SAGRADA AVE MARIA 2000 p1286 O trecho acima pode ser colocado ao lado destes versos de Caeiro A correr e a rolarse pela erva E a arrancar flores para as deitar fora E a rir de modo a ouvirse de 6 longe Tratase da imagem de Cristo humanizado gozando o direito de ir e vir fazendo o que qualquer criança faria Pessoa nega a existência de Jesus como personalidade histórica e considera a religião cristã como sendo a obra do apóstolo Paulo estas idéias quanto ao Cristianismo são um reflexo fiel da ala estrema da teologia liberal do séc XIX e por outro lado dos filósofos do ateísmo LIND sd p109 Na primeira estrofe quanto ao aspecto morfossintático há predominância de verbos que indicam ação descer veio correr rolar arrancar rir ouvir Sintaticamente a estrofe começa com um adjunto adverbial de tempo sendo que em todos os períodos há elipse do sujeito eu Nas orações as frases são de ordem direta acompanhando o tom narrativo do poema em prosa e várias coordenadas É importante lembrar que o poema em prosa é uma das marcas da modernidade A segunda estrofe que vai do verso 9 ao 26 iniciase com o verso tinha fugido do céu Referese o poeta ao Evangelho de São Marcos 16 na parte em que Jesus deixa o sepulcro Há uma inversão aqui pois Jesus subiu aos céus para tomar o lugar dele de direito ou seja ao lado do pai No poema Ele foge do céu e vem para terra Por isso a inversão de valores que se caracteriza em uma desordem uma desmitificação da figura cristã Dos versos 10 ao 15 a ironia pagã se acentua e o eu poético deixa antever que no céu tudo é falso em desacordo com flores e árvores e pedras E a natureza como costuma ser nos versos de Caeiro mostrada como ela é Caeiro apresenta o espaço físico da natureza sem sobressaltos Os mistérios do universo se fundem em conhecimento do ser na verdade o nãoser A nãofilosofia a desnatureza do verbo A propagação do paganismo Isso pode ser percebido nos versos 16 e 17 e subir para a cruz e estar sempre a morrer Com uma coroa toda à roda de espinhos os quais remetem ao evangelho de Marcos Morfologicamente os verbos de ligação predominam Com isso há muitas referências nominais Sintaticamente imperam orações subordinadas reduzidas A marca da temporalidade é forte e anunciativa Estilisticamente pelo menos duas comparações E até com um trapo à roda da cintura Como os pretos nas ilustrações Nem sequer o deixavam 7 ter pai e mãe Como as outras crianças e uma ironia metafórica E o outro era uma pomba estúpida compõe a estrofe A terceira estrofe constituída por apenas cinco versos apresenta uma imagem depreciativa de Maria utilizandose mais uma vez da ironia Não era mulher era uma mala Em que ele tinha vindo do céu E estende esse recurso estilístico de forma enfática ao dizer que o menino que nunca tivera pai para amar com respeito queriam que ele pregasse a bondade e a justiça Morfologicamente a estrofe iniciase com uma negação composta por verbos de ligação era e depois seguem verbos de ação tinha vindo queriam nascera tivera amar pregasse que remetem simbolicamente ao enviado Caeiro no Canto VI do mesmo O Guardador de Rebanhos diz Pensar em Deus é desobedecer a Deus Porque Deus quis que o não conhecêssemos Por isso se nos não mostrou OP 1998 p208 Pessoa no livro Cancioneiro se mostra agradecido a Deus pela sua existência quando afirma Sou grato Ao que do pó que sou Me levantou opcit p164 Ele se refere ao livro do Gênesis Ainda Pessoa no poema Liberdade ironiza O mais do que isto É Jesus Cristo Que não sabia nada de finanças Nem consta que tivesse biblioteca idem p188 Dentro da mesma temática no referido Cancioneiro Pessoa diz Mas antes era o Verbo aqui perdido Quando a Infinita Luz já apagada Do Caos chão do Ser for levantada idem p190 Neste fragmento o verbo pode ser entendido como a palavra de Jesus Cristo ou como a palavra do poeta Este verbo palavra seja qual for se perde no momento em que a luz infinita porém apagada silêncio for erguida do chão da existência isso implica que ela pode ser dita pelo poeta ou por Jesus Cristo Na quarta e quinta estrofes predominam verbos de ação e mostram a fuga do menino Jesus para morar na aldeia com o eu poético Aproveitando de uma distração de Deus que estava a dormir E o Espírito Santo andava a voar Ele foi à caixa dos milagres e roubou três Para poder gozar mais tempo da situação de menino providenciou esses milagres para distrair a humanidade A tradição cristã exige a confirmação de pelo menos três milagres para que uma pessoa se torne santoa Ele o fez Essa pequena distração roubar três milagres possibilitou que ele continuasse as atividades a que se havia proposto Chapinha nas poças de água Colhe as flores e gosta delas e esqueceas Atira 8 pedras aos burros Rouba a fruta dos pomares Corre atrás das raparigas E levantalhes as saias No início da quinta estrofe há o ensinamento do olhar A mim ensinoume tudo Ensinoume a olhar para as cousas O olhar é o órgão de eleição de Caeiro Transparece o paradigma imagético erguido nos labirintos de uma semântica do olhar cotidiano O olhar é referência mais do que isso é um estado de ser um estado de permanência Para o olhar da criança não importa o significado o que importa é a imagem RAMOS 2004 p30 A sexta estrofe apresenta as impressões críticas do menino Jesus Se já estava nos ensinamentos de Caeiro que desde o poema I evoca a infância e no VIII também impactante constrói seu Menino Jesus como arquétipo da infância e seu viver lúdico GARCEZ 2007 pp2712 Sobre Deus diz ele é um velho estúpido e doente Sempre a escarrar no chão E a dizer indecências Sobre a Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia Sobre o Espírito Santo empoleirase nas cadeiras e sujaas a tal pomba Sobre o céu Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica Mas os seres não cantam nada Se cantassem seriam cantores Os seres existem e mais nada E por isso se chamam seres As imperfeições do ser e do nãoser são mostradas abertamente na poética de Caeiro Alguns verbos dão o tom nessa estrofe diz escarrar coça empoleira suja os três últimos formam uma gradação verbal sobre o Espírito Santo criou duvido questionamento da fé cristã cantam existem chamam adormece levo etc Destaque para o verbo dizer com forma pronominal que repetese várias vezes como se servisse para dar autenticidade aos fatos apresentados No último verso dessa estrofe o eu poético assume a guarda do menino Jesus E eu levoo para casa A sétima estrofe precedida por uma linha pontilhada traz uma fartura de verbos de ligação e muitas conjunções aditivas Ele é a Eterna Criança o deus que faltava Ele é o humano que é natural grifos meus É curioso observar que na primeira parte do verso a palavra deus está em minúsculo e Eterna Criança em maiúsculo Esse procedimento provoca uma inversão da eternidade materializada sob a forma de criança Da mesma forma quando essa humanização atinge um estado de sublimação provocada no e pelo campo literário no mesmo nível paradigmático do texto bíblico o eu poético encontra nessa perfeição de ser o seu semelhante Ele é o humano que é natural Ele é o 9 divino que sorri e que brinca E por isso é que sei com toda a certeza Que ele é o Menino Jesus verdadeiro A humanização consagrada do menino Jesus chega ao ponto dele afirmar que é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre Curiosamente na busca de marcas da modernidade a primeira impressão que se tem é que parece que se está recuperando um mito literário baseado na idéia aristotélica de que para escrever poesia é preciso de inspiração complementada depois por Platão que disse ser necessário ter o domínio da técnica de fazer verso concepção esta muito forte na época do romantismo Esse mito desde os simbolistas praticamente deixou de existir No entanto em uma leitura mais atenta é possível perceber que é a proximidade com o ser infantil que faz do homem um poeta Com essa proximidade ele está aberto a novos experimentos à sublimação dos seres e das coisas Seria como se possuísse o olhar de descobridor Lembrome do ensinamento do verso de Oswald aprendi com meu filho de 10 anos que a poesia é a descoberta das coisas que eu nunca vi Melhor dizendo a partir dessa reação as coisas vistas somente pelo olhar infantil que surge esse eterno poeta Aí é que está o elo da modernidade A estrofe seguinte começa com maiúsculas A Criança Nova que habita onde vivo Dáme uma mão a mim Que não há mistério no mundo E que tudo vale a pena Este último verso dialoga com os famosos versos de Mar portuguez do livro Mensagem Valeu a pena Tudo vale a pena Se a alma não é pequena idem p82 Tratase de uma estrofe com tintura existencial corrente filosófica que surgirá algumas décadas depois todavia a literatura se nutre há muitos anos dessa fonte O mais filósofo dos heterônimos de Pessoa afirma não ter filosofia Mero jogo retórico A sua filosofia parte justamente da negação da própria filosofia RAMOS opcit p 31 Na seqüência uma pequena estrofe de quatro versos A Criança Eterna acompanhame sempre A direção do meu olhar é o seu dedo apontando grifos meus Dois períodos sinestésicos descontraídos fecham essa estrofe O meu ouvido atento alegremente a todos os sons São as cócegas que ele me faz brincando nas orelhas No destaque houve uma inversão do sujeito que antes havia sido apresentado como Eterna Criança e agora é a Criança Eterna Esse segundo sujeito mais forte está bem mais próximo e íntimo A voz lírica metonimicamente se encanta pelo novo ser 10 Há um profundo sentimento de irmandade de comunhão de fraternidade que se encaixa perfeitamente nos conceitos cristãos em trecho da próxima estrofe Mas vivemos juntos e dois Com um acordo íntimo Como a mão direita e a esquerda Lembrome de um dito popular que diz eu te conheço tão bem como o olho direito conhece o esquerdo É dessa maneira que o leitor convive com essa confidência com esse conluio poético Poucos mas suficientes verbos de ação se apresentam damonos pensamos vivemos grifos meus Essa gradação verbal estende uma situação anterior já vivida em outros versos e acentua a paz espiritual fruto da visão humanizada O sagrado nunca esteve relacionado no canto de Caeiro como algo posto inatingível ou mesmo condenável pelos ensinamentos cristãos É como se ele quisesse compor uma nova ordem a ordem do texto poético da tessitura do material que eleva Ele procura e recupera a ordem estabelecida entre Deus e o homem Isso não significa ter que abrir mão do terreno espiritual e optar pelo plano terreno ou viceverso O poema todo tenta fugir do modelo mítico ou de qualquer outro paradigma Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas No degrau da porta de casa Graves como convém a um deus e a um poeta E como se cada pedra Fosse todo um universo E fosse por isso um grande perigo para ela Deixála cair no chão grifos meus É nesse espaço lúdico e temporal alimentado por um ambiente familiar que Caeiro atira suas pedrinhas personificadas brincamos as cinco pedrinhas como se fosse um jogo de amarelinhas e que para passar para outra fase fosse preciso pular de casa em casa de verso em verso A estrofe seguinte prepara um ritual de passagem para o encerramento do canto Depois eu contolhe histórias das cousas só dos homens E ele sorri porque tudo é incrível Ri dos reis e dos que não são reis E tem pena de ouvir falar das guerras E dos comércios e dos navios Que ficam fumo no ar dos altosmares As epopéias antigas cantavam os feitos dos heróis e das grandes nações Camões fez isso magistralmente em Os Lusíadas para saudar o povo português sem abrir mão da crítica Lembrome dos episódios do gigante Adamastor do velho do Restelo Fernando Pessoa em Mensagem fez uma releitura épicomoderna Ó mar salgado quanto do teu sal São lágrimas de Portugal idem p82 Um dito antigo dizia Está feliz como um rei Está rindo de 11 barriga cheia É com esse mesmo espírito que o menino quer viver Rir com todos e para todos Depois de ouvir tantas estórias Levoo ao colo para dentro de casa E deitoo despindoo lentamente E como seguindo um ritual muito limpo E todo materno até ele estar nu A impressão que se tem é que o eu poético assumiu o papel da Virgem Maria Mas essa mulher assexuada não guarda um mistério não se cobre de luz pelo contrário investese tão somente do exercício de acalentar uma pequenina alma A referência à nudez aqui permeia o próprio texto bíblico no entanto não tem a intenção de mostrar a abdicação dos bens materiais O que se procura mesmo é o acalento materno e poético A luz que vem ou se acende é onírica e ao mesmo tempo lúdica E brinca com os meus sonhos Vira uns de pernas para o ar Põe uns em cima dos outros E bate as palmas sozinho Sorrindo para o meu sono grifos meus Novamente aparece uma gradação verbal desta vez provocando um efeito imagético sinestésico e ao mesmo tempo metafórico As duas últimas estrofes são precedidas de linhas pontilhadas como que a dar espaço imagético para o leitor A lírica contemplada substitui a visão sacralizada Isso pode ser notado nos versos Pegame tu ao colo E levame para dentro da tua casa Despe o meu ser cansado e humano E deitame na tua cama O eu poético quer desfrutar das mesmas expectativas que são humanas não divinas que são sagradas pelo texto poético e por isso profanas todavia sem imolar a fé Esta é a história do meu Menino Jesus Por que razão que se perceba Não há de ser ela mais verdadeira Que tudo quanto os filósofos pensam E tudo quanto as religiões ensinam grifos meus Caeiro sagra o texto literário ao tornar seu Menino Jesus no que todos gostariam de ter e conhecer Eis o mistério da poesia encarnada O sacro e o profano são feitos da mesma matéria A mesma poesia que anuncia é a que ergue a voz do poema A palavra na modernidade é um dos símbolos da decantação entre a tradição e a ruptura que não é processo é passagem É sobretudo o levante da imagem poética estabelecida pelo paganismo superior de Alberto Caeiro mestre de Fernando Pessoa e seus heterônimos O sagrado e o profano nunca estiveram tão próximos com a humanização de Cristo A mesa dos versos está posta A ceia será servida 12 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERARDINELLI Cleonice Estudos de Literatura Portuguesa Imprensa Nacional Casa da Moeda 1985 p263 BÍBLIA SAGRADA AVE MARIA Revisada por Frei José Pedreira de Castro OFM e pela equipe auxiliar da Editora 135ed São Paulo AveMaria 2000 p1286 FRIEDRICH Hugo Estrutura da lírica moderna da metade do século XIX a meados do século XX Trad Marise M Curioni 2ed São Paulo Livraria Duas Cidades 1991 GAMA Rinaldo O Guardador de Signos Caeiro em Pessoa São Paulo Perspectiva Instituto Moreira Sales 1995 Debates 269 GARCEZ Maria Helena Nery Uma poética grávida de impactos In Literatura Portuguesa História memória e perspectivas org Aparecida de Fátima Bueno Anni Gisele Fernandes et al São Paulo Alameda 2007 LIND George Rudolf B Alberto Caeiro O renovador do paganismo InEstudo sobre Fernando Pessoa Imprensa Nacional Casa da Moeda sd p109 LOURENÇO Eduardo O Labirinto da Saudade Psicanálise Mítica do Destino Português 4ed Lisboa Publicações Dom Quixote 1991 NUNES Benedito Fernando Pessoa In O dorso do tigre São Paulo Perspectiva 1968 pp213262 PESSOA Fernando Obra Poética org Maria Aliete Galhoz 3ed Rio de Janeiro Nova Aguilar 1998 RAMOS Isaac N A Confluências divergências e singularidades In Ensaios de Literatura Comparada Portugal Brasil Angola Cabo Verde org Isaac Newton Almeida Ramos Agnaldo Rodrigues CáceresMT Unemat Editora 2004 SEGOLIN Fernando Caeiro e Nietzsche Da Crítica da Linguagem à Antifilosofica e à Antipoesia In Actas do IV Congresso Internacional de Estudos Pessoanos Secção Brasileira volII Vários autores 2 vols Porto Fundação Eng António de AlmeidaFundação Calouste Gulbenkian 1989 13