·
Direito ·
Direito Empresarial
Envie sua pergunta para a IA e receba a resposta na hora
Recomendado para você
Texto de pré-visualização
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA EM SOCIEDADES LIMITADAS APÓS A LEI DA LIBERDADE ECONÔMICA THE DISREGARD DOCTRINE IN LIMITED SOCIETIES AFTER THE BRAZILIAN ECONOMIC FREEDOM ACT Deborah Soares Dallemole1 Simone Tassinari Cardoso Fleischmann2 Resumo A intenção deste artigo é analisar os possíveis impactos da Lei nº 138742019 a chamada Lei da Liberdade Econômica na desconsideração da personalidade jurídica Para isso se abordará a personalidade jurídica e as teorias do patrimônio bem como sua inserção no ordenamento brasileiro a fim de que se possam identificar as bases históricas e dogmáticas que influenciaram o legislador pátrio Depois será estudada a sociedade limitada por ser o modelo societário de maior difusão em nosso país representando importante instrumento para a atividade comercial pela limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações da sociedade ao seu investimento no capital social Contudo a separação patrimonial não é absoluta de modo que a desconsideração da personalidade jurídica surge enquanto instrumento para atingir a esfera patrimonial individual do sócio em caso de abuso de direito em relação à personalidade jurídica Na tentativa de dar garantias ao livre exercício de atividade econômica e limitar a intervenção estatal foi promulgada a Lei nº 138742019 que trouxe maiores obstáculos à desconsideração que somente deverá atingir os sócios que se beneficiarem direta ou indiretamente da fraude praticada devendo esta ser devidamente comprovada por quem a alega A metodologia utilizada foi a dedutiva combinada com pesquisa bibliográfica Palavraschave Personalidade jurídica Teorias do patrimônio Sociedade limitada Desconsideração da personalidade jurídica Lei nº 13874 Abstract The intention of this article is to analyze the possible impacts of the law nº 138742019 the socalled Economic Freedom Act disregarding legal personality To this end the legal personality and theories of heritage will be addressed as well as their insertion in the Brazilian order in order to identify the historical and dogmatic bases that influenced the native legislator Then the limited liability company will be studied as it is the most widely used corporate model in our country representing an important instrument for commercial activity by limiting the liability of the partners for the companys obligations to their investment in the share capital However the separation of assets is not absolute so that 1 Mestranda bolsista CAPES no Programa de PósGraduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul 2 Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul Professora de Direito Privado na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Artigo recebido em 26032020 e aprovado para publicação em 16062020 RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200116 the disregard of the legal personality appears as an instrument to reach the individual patrimonial sphere of the partner in case of abuse of rights in relation to the legal personality In an attempt to provide guarantees for the free exercise of economic activity and to limit state intervention Law no 138742019 which brought greater obstacles to disregard which should only reach members who benefit directly or indirectly from the fraud practiced and this must be duly proven by those who claim it Keywords Legal personality Theories of patrimony Limited society Disregard doctrine Economic Freedom Act 1 INTRODUÇÃO Neste trabalho pretendese responder à seguinte pergunta quais os possíveis impactos da Lei nº 138742019 a chamada Lei da Liberdade Econômica na desconsideração da personalidade jurídica Para tanto haverá dois tópicos um introdutório com as noções necessárias para a adequada compreensão da problemática e um segundo mais específico que permitirá visualizar a importância da nova legislação Utilizouse no presente trabalho o método de investigação bibliográfica combinada com o método de abordagem dedutivo a partir dos textos legais e dos posicionamentos doutrinários sobre os temas abordados A primeira parte buscará estudar os fundamentos históricos e dogmáticos da personalidade jurídica e do patrimônio sendo subdividida em duas subpartes A primeira destinase à conceituação da personalidade jurídica e as razões para sua existência na segunda serão abordadas as teorias clássica e objetiva do patrimônio indispensável para que se possa entender a base teórica na qual a legislação brasileira se ancora A segunda parte mais direcionada tem como objetivo a análise da responsabilidade dos sócios e também possuirá duas subdivisões Primeiro será estudada a sociedade limitada seu surgimento inserção no ordenamento jurídico brasileiro assim como os limites da responsabilidade dos sócios sobre as obrigações da sociedade tendo em vista ser este o tipo societário mais amplamente utilizado no Brasil e por consequência aquele em que a nova regulamentação da desconsideração terá maior impacto Em seguida serão trazidos os fundamentos para a disregard doctrine sua origem fundamentos jurídicos e funcionamento na legislação e doutrina pátrios Ainda neste subtópico será abordada a Lei nº 13874 de 2019 que trouxe grandes modificações à desconsideração da personalidade jurídica impondo maiores restrições à sua utilização e seus possíveis efeitos RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200117 2 DOS FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E DOGMÁTICOS PARA O SURGIMENTO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E AS TEORIAS DO PATRIMÔNIO 21 DA PERSONALIDADE JURÍDICA Inicialmente estudaremos a personalidade jurídica ponto de partida para que se compreenda adequadamente como o patrimônio a ela se liga e sua desconsideração que serão abordados nos tópicos subsequentes A personalidade jurídica pode ser definida como a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações PEREIRA 2000 p 141 Como nem sempre o indivíduo consegue atingir sozinho os seus objetivos é comum que se una a outros indivíduos para isto compartilhando tal fim entre todos e através um organismo diverso das pessoas individuais que o compõem de maneira que a pessoa jurídica é um ente destinado a satisfazer um dado interesse humano TOMAZETTE 2014 Nessa linha podese afirmar que Portanto embora cada pessoa fosse uma individualidade um indivíduo os interesses e objetivos poderiam ser de indivíduos de partes do grupo ou partes da comunidade ou da comunidade inteira Uma esfera ou ordem de interesses convivendo com outras esferas ou ordens de interesses O que importa destacar é que estamos nos referindo a interesses que transcendem aos interesses de cada indivíduo considerado isoladamente MORI 2012 p 93 O conceito de pessoa jurídica tem lugar na segunda metade do século XIX com a generalização das noções de corporação e de separação patrimonial com origem na doutrina alemã a qual passou a considerar a existência de sujeitos de direitos distintos da pessoa humana e como titulares de direitos subjetivos com individualidades próprias COELHO 2003 Assim a personalidade jurídica criação de uma entidade diversa daquelas pessoas humanas que a integram decorre de noções do direito canônico a corporação e do direito comercial a separação de patrimônios comum do patrimônio individual daqueles que se unem para um mesmo fim Quanto à justificativa para a existência da pessoa jurídica é possível encontrar teorias que a reputam como criação artificial da lei ou como uma realidade que preexiste à lei que apenas delineia seu funcionamento A teoria da ficção foi defendida dentre outros por Ihering Savigny e Laurent no sentido de que as pessoas jurídicas são fictícias institutos RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200118 criados artificialmente pelo Direito Positivo uma vez que a ideia natural da pessoa coincide com a do indivíduo de maneira que a personalidade jurídica depende da vontade do legislador MARTINS F 2017 A teoria de que a pessoa jurídica é uma realidade prévia à lei foi defendida por Zittelmann fundamentada no direito subjetivo de modo que é a vontade o ato fundamental do direito e havendo a vontade dos individuais em formar uma pessoa jurídica distinta deles ela existirá e a função da lei é traçar normas para seu exercício ibid Assim personalidade jurídica é o que o direito concede a um interesse transindividual por meio do qual um grupo de pessoas se une mas que no exercício de sua atividade não se confunde com a vontade ou com as atividades de cada uma das pessoas físicas que a compõem MORI 2012 A autonomia patrimonial da sociedade em relação aos seus membros no direito brasileiro foi positivada pelo artigo 20 do Código Civil de 1916 que dispunha que as pessoas jurídicas têm existência distinta da de seus membros sem significar contudo limitação de responsabilidade do sócio a qual em que pese seja um fator de estímulo a investimentos e das atividades comerciais depende do tipo societário por eles elegido MARTINS G 2016 Dessa maneira a principal característica da pessoa jurídica é a sua autonomia em relação aos indivíduos que a integram não se confundindo com estes possuindo nome domicílio e patrimônio próprio sendo portanto um importante instrumento da atividade comercial por possibilitar aos sócios que corram o risco financeiro na medida de sua participação societária 22 DAS TEORIAS DO PATRIMÔNIO Conceituada a personalidade jurídica e seus fundamentos neste tópico serão abordadas as teorias acerca do patrimônio Este é um ponto indispensável para a adequada compreensão da problemática ora proposta eis que a sociedade dotada de personalidade realiza suas operações empresariais através de seu patrimônio diverso dos patrimônios pessoais dos sócios separação que será afetada em caso de desconsideração da personalidade jurídica 211 Origens do conceito de patrimônio RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200119 As leis de uma determinada sociedade sobre patrimônio e propriedade assim como todas as demais refletem tratados de paz entre diversas forças tratados estes que são continuamente questionados e revisados e a partir dos quais lei foi imposta é possível reconhecer as forças vitoriosas BRAY 1953 Como afirmou Paolo Grossi talvez nenhum discurso jurídico seja tão permeado de bem e mal tão temperado por visões maniqueístas quanto o que versa sobre a relação homensbens e o modesto instituto jurídico que é conveniente tutor de determinados interesses de ordem e de classe é subtraído à relatividade do devir e conotado de caráter absoluto GROSSI 2006 p 1011 O patrimônio assim como muitos outros conceitos jurídicos em que pese tenha uma mesma nomenclatura há muito tempo sofreu rupturas decisivas em seu aspecto semântico eis que o significado de uma mesma palavra ao longo da história está intimamente ligado ao contexto social de cada ocorrência sua significado cujo sentido portanto será eminentemente relacional ou local HESPANHA 2005 Assim evidenciase que a legislação que dispõe sobre o patrimônio não pode ser analisada de forma isolada tendo em vista que serve a determinadas finalidades no contexto temporal e social em que se insere de acordo com o que busca o grupo detentor do status quo naquele momento O conceito de patrimônio enquanto responsável pelas dívidas de determinada pessoa é verdadeiro marco histórico sendo de especial importância neste ponto a Lex Poetelia Papiria ano 326 aC através da qual o devedor deixou de responder pelos débitos com seu próprio corpo passando a fazêlo com seu patrimônio ARRANGIORUIZ 1986 Esta lei representa um marco histórico pois foi com ela que o Direito Romano superou a situação antecedente na qual o devedor ou alguém por ele se tornava verdadeiro refém do cumprimento da obrigação FRONTINI 2009 Dessa maneira com a Lex Poetelia demarca se a emancipação do corpo do devedor como garantia de cumprimento da dívida tendo esta lei um pano de fundo político e relacionado ao crescente antagonismo entre plebeus e patrícios BIONDI 1972 Portanto como se pode ver o patrimônio desde Roma é tema de conflito e de interesses econômicos tendo vindo como meio de cumprimento das obrigações em substituição ao corpo do devedor justamente como forma de pacificar as progressivas divergências entre classes daquela sociedade Situação oposta era aquela do patrimônio na Idade Média Neste período histórico há uma revolução cultural dissimulada fruto não de um movimento mas criada de geração em geração pelo vazio decorrente da queda do mundo antigo GROSSI op cit A mentalidade RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200120 romana predominantemente proprietária foi substituída por uma civilização possessória à qual é de todo indiferente uma relação de validade mesmo porque falta o modelo em relação ao qual operar comparações e medidas e que é ao contrário dominada por um vigoroso princípio de efetividade GROSSI 2006 p 4546 Na civilização medieval diferentemente daquela de Roma o valor do patrimônio da propriedade estava em sua utilidade prática finalidade para a qual eram regulamentadas as formas de seu uso 212 Teoria clássica do patrimônio A noção jurídica de patrimônio existente no direito brasileiro atual tem origem na civilística clássica que mesmo com as intercorrências históricas manteve presente o cerne da conceituação clássica do patrimônio SILVEIRA 2009 Desse modo passaremos agora a analisar a teoria clássica do patrimônio surgida na França do século XIX O Code de Napoleão regulou em seu artigo 544 que a propriedade é o direito de gozar e de dispor das coisas da maneira mais absoluta desde que não seja feito uso proibido por lei ou por regulamentos Com isso tendo o contrato moderno presente no Código Napoleônico o intuito de operacionalizar o trânsito jurídico da propriedade necessitouse um sistema de garantias para estas pactuações tendo o Code optado por se desvincular do sistema de garantias corpóreas do devedor e adotar o da responsabilidade patrimonial XAVIER 2011 A teoria clássica do patrimônio tem sua origem na Alemanha com o professor Zacharie da universidade de Heildelberg cujas ideias influenciaram os franceses Charles Aubry e Charles Rau ao traduzirem seu curso de direito civil para o francês SILVEIRA op cit Para estes o patrimônio é uma universalidade da lei no sentido de que os bens formam em virtude da própria unidade da pessoa a quem pertencem uma entidade legal uma universalidade de direitos decorrente da própria personalidade e que toda pessoa possui AUBRY RAU 1869 Desta vinculação do patrimônio à personalidade extraise que não há pessoa sem patrimônio que o patrimônio é único e que o patrimônio é indivisível SILVEIRA op cit O patrimônio é uno porque a personalidade é uma sendo aquele composto por elementos fungíveis e se operando uma subrogação real uma ficção segundo a qual um objeto vem a substituir outro para se tornar a propriedade da pessoa a qual pertenceria o RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200121 anterior AUBRY RAU 1873 Pela teoria clássica de Aubry e Rau toda pessoa é dotada de patrimônio e um único patrimônio que é indivisível ainda que os bens que o compõem se alterem ao longo da vida do indivíduo Embora não esteja explícito na obra a função desta construção conceitual é a de responsabilidade patrimonial de preservar a liberdade do devedor que garante suas dívidas com o seu patrimônio XAVIER 2011 o qual como mencionado acima será sempre o mesmo em que pese seu conteúdo se altere ao longo do período entre a pactuação e o momento em que deveria ser cumprida a obrigação A propriedade das coisas se torna um termo conceitual a relações de pessoas em relação às coisas e não da relação pessoacoisa em si mesma refletindo a intervenção estatal através do aparato jurídico em favor das atividades comerciais enquanto um reflexo do cenário pósRevolução na França que demandava uma legislação que permitisse a necessária exploração do capital BRAY 1953 Outrossim alterase a mentalidade da articulação da relação entre sujeito e bens enquanto reflexo de um sistema político e jurídico pensado a partir dos ideais burgueses para permitir a atividade comercial sem que o devedor garanta com seu corpo as obrigações assumidas e para que o credor tenha uma garantia patrimonial de seu crédito a partir da indivisibilidade e unidade do patrimônio daquele que deve A teoria clássica sofreu críticas especialmente quanto à indivisibilidade do patrimônio Dentre as críticas pode se trazer a lição de Andrea Torrente que afirma que em senso jurídico o patrimônio é a expressão do complexo dos ativos e passivos de uma pessoa não sendo considerado como um bem único e que portanto não é uma universalidade3 Jose Castan Tobeñas no mesmo sentido defende que é inútil conceber o patrimônio como uma universalidade de direito como uma unidade abstrata mas sim algo representado pela massa de bens que o compõem merecendo tratamento jurídico de acordo com estes4 Outra 3In senso giuridico si chiama patrimonio il complesso dei rapporti attivi i passivi facenti capo ad una persona Come si vede questo concetto è diverso da quello comune di patrimonio secondo il quale solo una persona che ha beni possiede un patrimonio Invece qualunque persona che ha un patrimonio intesa lespressione in senso giuridico anche se ha tutti debiti perchè èm quanto meno soggeto passivo di rapporti giuridici Il patrimonio non è considerato come un bene unico e quindi esso non è ununiversitas Ogni soggetto ha un patrimonio ed un patrimonio solo con il quale risponde dei propri debiti art 2740 cod Civ TORRENTE 1952 p 101 4Pero el patrimonio personal nunca es propriamente una universitas iuris no es más que uma masa de bienes en la que no existe otra unidad que la basada en la unidad de titular y por consiguiente esa masa no puede tener un tratamiento legal distinto de los múltiples bienes que la integran De ello se sigue que no puede hablarse de propiedad sobre el patrimonio ni usufructo del patrimonio aunque parezca admitir esta última figura la técnica defectuosa del artículo 506 del Código Civil se trata de una mera propiedad o usufructo sobre cada uno de los elementos patrimoniales la prueba es que las deudas no pasan ipso iure el usufructuario como sucedería siel patrimonio constituyese una universitas iuris CASTAN TOBEÑAS 1955 p 465 RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200122 aparente falha na teoria clássica é a própria pessoa jurídica que enquanto massa de bens separada do patrimônio de seu titular representaria uma exceção à indivisibilidade proposta SILVEIRA 2009 213 Teoria objetiva do patrimônio Sendo a concepção de patrimônio inerentemente ligada ao seu contexto histórico e social a teoria clássica atendeu por certo tempo às demandas da sociedade para a qual foi construída O patrimônio assim como outros conceitos jurídicos não tem o poder de enclausurar os fatos à estruturação juridicamente prevista falhando a teoria clássica em abrigar a existência de categorias jurídicas que fogem à sistematização lógica e analítica de seus conceitos FACHIN 2006 A ideia de patrimônio do século XIX projetada enquanto forma de preservação do indivíduo acabou por se desvincular da pessoa transformandose em instrumento de atuação econômica que está mais direcionado à proteção de terceiros garantia de dívidas que propriamente à pessoa do seu titular ibid p 42 Com as alterações econômicas especialmente no período pósrevolução industrial foi necessário o surgimento de novas figuras jurídicas para a delimitação de riscos e fortalecimento das garantias existentes nas operações econômicas função para a qual a noção clássica se mostrou insuficiente vez que neste novo contexto social se exige menos a afirmação do indivíduo que alcançar metas de desenvolvimento econômico e social FIGUEROA 1991 p 39 Para tanto surge a noção objetiva do patrimônio a respeito da qual ao contrário da teoria clássica a unidade dos bens não decorre de sua vinculação à personalidade do indivíduo mas sim da função para qual os elementos de tal patrimônio são afetados Tal teoria objetiva possui como ponto de partida para seu surgimento a concepção de Bernhard Windscheidt ao concluir pela existência de direitos sem sujeito na ordem jurídica SALAZAR 1979 o que colocaria em xeque a interdependência entre patrimônio e personalidade Da teoria de Windscheidt seguiramse os estudos de Alois Von Brinz entre as quais não havia mais que um passo ibid p 32 A teoria de Brinz negava a existência da personalidade jurídica afirmando que apenas a pessoa física seria dotada de personalidade sendo que a pessoa jurídica teria a natureza de uma segunda espécie de patrimônio RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200123 pertencente ou detentora de uma invisível relação jurídica entre pessoas e bens LEONARDO 2007 Há uma passagem entre os fins individualistas da pessoa jurídica para o de persecução de uma finalidade determinada em que na concepção de Brinz a pessoa jurídica assume e atende a fins específicos que não são no entanto fins pessoais nem de pessoas individuais mas transpessoais puramente objetivos em resumo fins culturais RADBRUCH 2004 p 1994 A isto seguiuse o desenvolvimento desta teoria por Immanuel Bekker que distinguiu entre patrimônio de afetação dependente e patrimônio de afetação independente O primeiro seria aquele complexo patrimonial destinado a um fim e carente de sujeito enquanto o segundo seria o patrimônio existente dentro do patrimônio de uma pessoa destinado a um fim específico e detentor de autonomia em relação ao restante SALAZAR 1979 Esta teoria se baseia na concepção de que somente a massa de bens afetados a uma finalidade responde pelos riscos de tal empreendimento e apenas desse empreendimento em questão SILVEIRA 2009 214 Influência das teorias do patrimônio sobre a legislação brasileira No direito brasileiro o Código Civil de 1916 foi marcado por uma inspiração positivista enquanto que o Código de 2002 possui uma influência culturalista FRADERA 2010 Porém no tocante ao instituto do patrimônio não houve alteração substancial mantendose a adoção da noção jurídica da teoria clássica SILVEIRA op cit Pontes de Miranda ao tratar sobre o tema em que pese fosse adepto da teoria dos patrimônios de afetação sustenta que só a lei pode separar patrimônios 1970 p 368 Desse modo a partir do enunciado pelo autor mesmo pela teoria objetiva que aceita a formação de patrimônios desvinculados da personalidade somente seria possível o estabelecimento de patrimônios de afetação para um fim determinado caso houvesse previsão legal para tanto Exemplo disso é a disposição do artigo 548 do Código Civil de 2002 que determina que é nula a doação de todos os bens sem reserva de parte ou renda suficiente para a subsistência do doador ideia que decorre da regra de intransmissibilidade do patrimônio como um todo própria da doutrina clássica SILVEIRA op cit Como o patrimônio pela doutrina de Aubry e Rau é único e toda pessoa necessariamente possui um em decorrência de sua personalidade é juridicamente impossível que ela o transmita gratuitamente para um RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200124 terceiro por completo e sem qualquer reserva e fique ela própria desprovida de quaisquer bens ou direitos sobre estes Outro reflexo da conexão entre personalidade e patrimônio está no ramo do direito sucessório pois não sendo possível a perda da personalidade em vida um dos efeitos da morte é a sucessão do patrimônio do falecido HIRONAKA 2014 a herança à qual se aplica o droit de saisine com a transmissão imediata da posse e propriedade dos bens do de cujus aos seus herdeiros ainda que estes desconheçam esta sua qualidade ou o fato da morte eis que tal fato ocorre em razão de singela ficção jurídica ibid p 317 Esta sucessão imediata ligase à concepção clássica acerca da impossibilidade de existência de um patrimônio sem titular e com o falecimento de seu proprietário e o consequente fim de sua personalidade o direito por ficção resolveu a questão com a transferência assim que ocorre o evento morte da massa patrimonial aos herdeiros Assim podese concluir que não houve a superação da teoria clássica a qual permeia todo o ordenamento jurídico pátrio atual ainda que existam possibilidades de afetação do patrimônio previstas na legislação Permanece o corolário de que toda pessoa tem um patrimônio e apenas um patrimônio porém sendolhe permitido nos limites legais que sejam destacados determinados bens do patrimônio geral para se afetarem a um fim específico AMARAL 2008 Das dívidas garantidas com o corpo na Roma Antiga à garantia patrimonial dos credores na França pósRevolução aos tempos atuais o patrimônio percorreu um longo caminho e seu conceito alterouse em cada intercorrência histórica para atender aos fins pretendidos pela sociedade e tempo em que se inseria apesar da semântica manterse a mesma Do exposto neste tópico podese concluir que ainda que com várias críticas o ordenamento brasileiro segue majoritariamente a teoria clássica de Aubry e Rau da universalidade e indivisibilidade do patrimônio sendo excepcionadas somente as situações previstas em lei para permitir que alguém afete parte de seu patrimônio para determinado fim específico e temporário 3 A RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS NAS SOCIEDADES LIMITADAS 31 DA SOCIEDADE LIMITADA RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200125 311 Origens da sociedade limitada e sua inserção no ordenamento jurídico brasileiro Neste tópico será abordada a sociedade limitada sua finalidade e como ela se insere no ordenamento brasileiro Tendo em vista se tratar de um tipo de sociedade que limita a responsabilidade dos sócios para que não sejam atingidos em seus patrimônios individuais por obrigações da sociedade é necessário que se conceitue este tipo societário para que no tópico seguinte possamos analisar a desconsideração da personalidade jurídica O indivíduo nem sempre consegue atingir sozinho os seus objetivos sejam eles econômicos recreativos religiosos etc de modo que é extremamente importante que se una a outros indivíduos para atingir tais objetivos casos em que o fim será por eles todos compartilhado sendo mais adequado para tanto a constituição de um organismo diverso das pessoas individuais que o compõem TOMAZETTE 2014 A limitação da responsabilidade diz respeito à possibilidade ou não de os sócios virem a responder com seus próprios bens pelas dívidas da sociedade estando este limite relacionado com o investimento ou com a promessa de investimento feito na própria sociedade BERTOLDI RIBEIRO 2015 p 194 A sociedade é uma forma de atingir um objetivo comum a mais de um indivíduo com compartilhamento dos riscos ao passo que a limitação da responsabilidade se torna importante na medida em que existindo o sócio não será pessoalmente atingido limitandose o seu prejuízo à sua participação na sociedade representada pelo seu investimento no capital social A doutrina coloca o surgimento da sociedade limitada na Alemanha em 1892 quando foi criada a então chamada sociedade de responsabilidade limitada instituto que em seguida foi adotado por outros países tendo em vista sua constituição mais simples quando comparada com as sociedades anônimas e pelo fato dos seus sócios não responderem de forma ilimitada pelas dívidas da sociedade como ocorria nos demais tipos societários existentes à época ibid No Brasil é encontrada a primeira tentativa de legislação sobre este modelo de sociedade limitada no projeto de novo Código Comercial de Inglês de Souza mas que por fim foi inserido em nosso ordenamento através do Decreto nº 3708 de 10012019 de autoria do Deputado Joaquim Luiz Ozório criando a sociedade por quotas de responsabilidade limitada que vigorou até o Código Civil de 2002 ibid O Decreto em questão possuía somente dezenove artigos uma das razões pelas quais sofreu críticas sendo acusado por Waldemar Ferreira de possuir uma mudez simplesmente RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200126 pasmosa ao afirmar que a lei não teria sequer traçado um perfil da sociedade de responsabilidade limitada que se esqueceu de que limitando a responsabilidade dos sócios pelas obrigações contraídas elas sociedades ao montante do capital social erigiu um regime de excepção que devia ser cuidadosamente regulado ponto a ponto a fim de evitar fraude FERREIRA 1925 p 132 Desse modo verificase que a legislação sobre sociedade limitada que perdurou por mais de oitenta anos regulamentava de forma singela e sem maiores determinações em somente dezenove artigos o que por óbvio acabava por resultar em maiores dificuldades na verificação de ocorrência de alguma fraude à sociedade e às suas finalidades 312 Das exceções à limitação de responsabilidade dos sócios Na legislação pátria é possível encontrar algumas exceções à limitação da responsabilidade dos sócios É o caso do artigo 1080 do Código Civil5 que estabelece que havendo deliberação contrária ao contrato social ou ao ordenamento jurídico os sócios envolvidos responderão de forma ilimitada pelas obrigações decorrentes de tal decisão No mesmo sentido o Código Tributário Nacional em seu art 135 inciso III traz também mecanismos que possibilitam a responsabilização dos diretores gerentes ou representantes de sociedades limitadas quando os créditos correspondentes a obrigações tributárias resultem de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei contrato social ou estatutos6 Há ainda a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica nos casos de desvio de finalidade ou confusão patrimonial que serão abordadas no tópico seguinte mas que adiantase implicam no levantamento do véu da pessoa jurídica para que se possa atingir o patrimônio pessoal do sócio No parágrafo único do artigo 10157do Código Civil Brasileiro há a previsão de que sendo a obrigação decorrente de excesso do administrador ou atuação deste de forma 5 Art 1080 As deliberações infringentes do contrato ou da lei tornam ilimitada a responsabilidade dos que expressamente as aprovaram 6 Art 135 São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei contrato social ou estatutos III os diretores gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado 7 Art 1015 No silêncio do contrato os administradores podem praticar todos os atos pertinentes à gestão da sociedade não constituindo objeto social a oneração ou a venda de bens imóveis depende do que a maioria dos sócios decidir Parágrafo único O excesso por parte dos administradores somente pode ser oposto a terceiros se ocorrer pelo menos uma das seguintes hipóteses RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200127 estranha ao contrato social a sociedade não estará obrigada a observála Isto retrata a adoção da teoria dos atos ultra vires pelo direito brasileiro aos casos em que o ato seja completamente alheio ao objeto da sociedade não se concebendo que terceiros acreditem que se trata de ato da sociedade TOMAZETTE 2015 p 229 A adoção desta teoria está presente em nosso ordenamento desde o Código Comercial de 1850 em seu artigo 3168 podendo ser utilizada como forma de afastar a boafé de terceiro pois sendo manifesta a estranheza do negócio ao objeto da sociedade ibid p 230 não haveria como o terceiro alegar boafé na situação de maneira que a sociedade não estaria vinculada à obrigação decorrente de tais atos Outro ponto a ser ressaltado é a questão da responsabilidade perante terceiros A responsabilidade dos sócios pelas dívidas de sociedade somente será limitada quando da completa integralização do capital social todavia respondem todos os membros societários solidariamente pelo valor remanescente em caso de integralização parcial na forma do artigo 1052 do Código Civil CAMPOS 2012 Tratase assim de responsabilidade solidária entre os sócios perante terceiros em qualquer situação em que o patrimônio da sociedade não seja suficiente para a satisfação dos credores sociais de modo que verificandose a diferença entre o valor social subscrito e o valor do capital social efetivamente integralizado é possível que se requeira que o patrimônio individual de qualquer um dos sócios responda pelas obrigações da sociedade mesmo que esta seja caracterizada pela limitação da responsabilidade de seus membros ibid É possível ligar esta exceção à interpretação conjunta dos artigos 1023 e 1050 do Código Civil Pelo artigo 1050 temse que na ausência de norma específica são aplicáveis à sociedade limitada as normas da sociedade simples Como no caso do presente tipo societário não há regra específica quando à responsabilidade perante terceiros incide o artigo I se a limitação de poderes estiver inscrita ou averbada no registro próprio da sociedade II provandose que era conhecida do terceiro III tratandose de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade 8 Art 316 Nas sociedades em nome coletivo a firma social assinada por qualquer dos sóciosgerentes que no instrumento do contrato for autorizado para usar dela obriga todos os sócios solidariamente para com terceiros e a estes para com a sociedade ainda mesmo que seja em negócio particular seu ou de terceiro com exceção somente dos casos em que a firma social for empregada em transações estranhas aos negócios designados no contrato Não havendo no contrato designação do sócio ou sócios que tenham a faculdade de usar privativamente da firma social nem algum excluído presumese que todos os sócios têm direito igual de fazer uso dela Contra o sócio que abusar da firma social dáse ação de perdas e danos tanto da parte dos sócios como de terceiro e se com o abuso concorrer também fraude ou dolo este poderá intentar contra ele a ação criminal que no caso couber RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200128 1023 o qual permite que não sendo suficientes os bens da sociedade para a cobertura das dívidas os sócios respondem pelo saldo na proporção de suas participações nas perdas sociais exceto cláusula de responsabilidade limitada MARTINS F 2017 p 212 Assim considerou o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul9 que manteve decisão na qual foram inclusos no polo passivo os sócios em ação para a cobrança de dívida da sociedade com a seguinte fundamentação Em tais circunstâncias como os sócios encerraram a empresa durante o trâmite do processo judicial sem satisfazer a obrigação anteriormente constituída e inexistindo bens que possam garantir o débito perseguido haja vista as diversas diligências frustradas já realizadas na origem é impositivo que respondam pelas dívidas da sociedade comercial da qual eram proprietários sob pena de enriquecimento ilícito e a própria frustração ou descumprimento da decisão judicial no esteio do que preconizam os artigos 1023 e 1024 do CC Assim que diante de tudo o que foi exposto falecem de melhor sorte os agravantes cumprindo ser mantida a decisão de origem que ordenou a inclusão dos ora recorrentes no polo passivo da ação não sob o fundamento da desconsideração da pessoa jurídica mas como sucessores do passivo da pessoa jurídica para satisfação do débito discutido no presente feito na proporção de suas cotas Dessa maneira pelo arcabouço teórico e pela análise do julgado acima verificase que em casos nos quais tenha ocorrido a dissolução societária sem a satisfação dos débitos da sociedade é possível que venham os sócios a responder com seus patrimônios pessoais por tais débitos na proporção de sua participação Esse fundamento dispensa a necessidade de instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica uma vez que já há a previsão legal para atingimento dos bens pessoais dos sócios por dívidas societárias busca no patrimônio individual que estará limitada pela participação de cada um nas perdas sociais 32 DOS REFLEXOS DA LEI DA LIBERDADE ECONÔMICA NA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA 321 Origens da disregard doctrine e sua inserção no ordenamento pátrio A pessoa jurídica surge como mecanismo que tem a função de criar um centro de interesses autônomo em relação às pessoas que lhe deram origem de um modo que a estas 9 Agravo de Instrumento Nº 70069588549 Nona Câmara Cível Tribunal de Justiça do RS Relator Tasso Caubi Soares Delabary j 10082016 RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200129 não podem ser imputadas as condutas os direitos e as obrigações daquela AGUIAR JUNIOR 2012 p 561 Porém tal garantia de separação entre a pessoa do sócio e a pessoa jurídica que este integra não é absoluta De acordo com a doutrina majoritária a desconsideração da personalidade jurídica tem sua origem no caso Salomon v Salomon Co em 1897 na Inglaterra em que primeiro se analisou a possibilidade de atingimento do patrimônio pessoal do sócio por dívidas da sociedade Neste leading case Aaron Salomon era um próspero comerciante individual que após mais de trinta anos de atuação decidiu constituir uma limited company para a qual transferiu seu fundo de comércio contando Aaron com 20 mil ações e seus outros seis sócios familiares seus com apenas uma ação cada TOMAZETTE 2014 Depois de um ano a companhia mostrouse inviável entrando em liquidação porém não havendo garantia para os credores estes restaram insatisfeitos e em face disto o liquidante pretendeu uma indenização pessoal de Salomon vez que os demais sócios seriam meramente fictícios No julgamento deste caso a instância ordinária e a Corte de Apelação desconsiderou a pessoa jurídica e impôs a Aaron a responsabilidade pelos débitos contudo tal decisão foi reformada pela Casa dos Lordes prestigiando a autonomia da sociedade regularmente constituída ibid No Brasil a disregard doctrine foi primeiro tratada por Rubens Requião em 1969 quando apresentou a teoria do alemão Rolf Serick10 em que analisava o precedente norte americano Montgomery Web Company v Dienelt e a possível aplicação da doutrina no ordenamento jurídico da Alemanha Requião ao tratar sobre o tema conceituou da seguinte forma O mais curioso é que a disregard doctrine não visa a anular a personalidade jurídica mas somente objetiva desconsiderar no caso concreto dentro de seus limites a pessoa jurídica em relação às pessoas ou bens que atrás dela se escondem É caso de declaração de ineficácia especial da personalidade jurídica para determinados efeitos prosseguindo todavia a mesma incólume para seus outros fins legítimos REQUIÃO 2010 De acordo com o autor a doutrina da desconsideração serve para negar o absolutismo do direito da personalidade jurídica a qual deve ser concedida efeito relativo e não absoluto justamente para evitar que se fechem os olhos ante à utilização da pessoa jurídica para fins 10 Na obra Apariencia y realidade em las sociedades mercantiles el abuso de derecho por medio de la persona jurídica Barcelona Ariel 1958 RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200130 contrários ao direito REQUIÃO 2010 Sobre esta questão cabe trazer a lição de Fábio Konder Comparato no sentido de que há uma vinculação recíproca entre função e forma que a estrutura de qualquer norma ou instituto jurídico deve ser interpretada em vista das funções próprias ou impróprias do conjunto de seus elementos ou disposições e toda função é limitada pela estrutura do conjunto COMPARATO 1983 p 58 Assim a disregard doctrine é um mecanismo contra o abuso de direito ou fraude por parte dos sócios que desviarem a função da pessoa jurídica que integram a utilizarem para prejudicar credores ou em violação à lei não se tratando contudo de uma anulação da personalidade jurídica como um todo mas apenas de sua ineficácia para determinado efeito Rolf Serick fundamentou a desconsideração da personalidade jurídica no abuso de direito adotando uma posição subjetivista ou seja quando por intermédio da pessoa jurídica se burla a lei uma disposição contratual ou se causa um prejuízo a terceiro AGUIAR JUNIOR 2012 Para a teoria subjetiva da desconsideração o pressuposto fundamental é o desvio da personalidade jurídica o qual somente deve subsistir quando usada para os fins aos quais é destinada isto é quando ela não se confunde com os sócios e quando não é utilizada para fins não merecedores de tutela de acordo com o ordenamento jurídico TOMAZETTE 2014 p 247 A teoria subjetiva portanto se liga à função a qual a personalidade jurídica é destinada sendo cabível a desconsideração quando tal finalidade seja desviada seja pela fraude seja pelo abuso de direito Existe também uma teoria objetiva da desconsideração que no Brasil é liderada por Fabio Konder Comparato defendendo que o requisito primordial seria a confusão patrimonial a inexistência de separação clara entre o patrimônio da pessoa jurídica e o patrimônio dos sócios ou administradores COMPARATO FILHO 2005 É possível encontrar na doutrina alertas sobre a necessidade de cautela na verificação de confusão patrimonial a qual para autorizar a desconsideração deve ser de tal ponto ultrajante e escancarada a conduzir a insolvência ficta de um dos entes para a frustração de direito de terceiros pois somente prova cabal da ocorrência de fraude situação em regra não presumível em direito pátrio poderá conduzir o Magistrado à intervenção no patrimônio da sociedade HENRIQUE 2001 p 91 Por esta concepção não será o desvio de finalidade que ensejará a desconsideração da personalidade jurídica mas sim o requisito da confusão patrimonial que é passível de uma verificação objetiva já que o desvio de função ou disfunção resultante sem dúvida no mais das vezes de abuso ou fraude mas que nem RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200131 sempre constitui um ato ilícito COMPARATO FILHO 2005 p 356 dificultando assim a verificação dos requisitos da teoria subjetiva A desconsideração da personalidade jurídica foi inserida na legislação no artigo 50 do Código Civil de 2002 mantendo o fundamento no abuso de direito e seguindo portanto a teoria subjetiva Contudo atendeu a uma orientação objetivista com a inserção de emenda ao dispositivo para prever a desconsideração também aos casos de confusão patrimonial AGUIAR JUNIOR 2012 Desse modo há no ordenamento jurídico pátrio a adoção da disregard doctrine de uma forma mista ainda que inicialmente focada no aspecto subjetivo para se aplicar também o instituto aos casos em que haja confusão entre patrimônios do sócio e da pessoa jurídica requisito próprio da teoria objetiva Necessário ressaltar também que a certos ramos do direito se aplica a chamada teoria menor da desconsideração de forma excepcional na qual basta a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações sem necessidade de demonstração da ocorrência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial11 No ramo do direito de família há ainda uma outra forma de aplicação do instituto de maneira inversa à sua concepção originária através da desconsideração da personalidade jurídica buscandose o alcance dos bens e rendimentos da sociedade e não mais do sócio que desta se utilizou como mero estratagema para ocultação de sua efetiva realidade econômicofinanceira FERREIRA 2014 p 4170 Esta hipótese de inversa aplicação somente se legitima quando a sociedade se tornou mera extensão da pessoa física do sócio como pode acontecer quando um cônjuge transfere maliciosamente os bens do casamento para a empresa da qual é sócio MADALENO 2009 p 80 condicionandose a incidência da desconsideração à verificação de que existem bens do sócio desviados ao patrimônio da pessoa jurídica com o intuito de fraudar terceiro FERREIRA op cit p 4176 Sobre este ponto é necessário que se analise o contexto jurisprudencial brasileiro da aplicação da teoria menor em certos ramos do direito nos quais se entende pela existência de parte vulnerável e que portanto justificase menor standard de comprovação dos 11 Em relações jurídicas desiguais como as relações de trabalho e as relações de consumo vem sendo invocada essa aplicação extremada da desconsideração pela simples frustração do credor Nessa vertente transferese o risco da atividade para os sócios e administradores de modo que eles respondem pelos atos da sociedade independentemente de qualquer intuito fraudulento Em suma em razão do uso indevido da pessoa jurídica sua autonomia patrimonial é ignorada em certas relações jurídicas O STJ já afirmou que a teoria menor da desconsideração acolhida em nosso ordenamento jurídico excepcionalmente no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental TOMAZETTE 2014 p 248 RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200132 requisitos da desconsideração Leonardo Parentoni em tese de doutorado em que realizou uma pesquisa de dados dos julgados dos Tribunais pátrios sobre o tema verificou que incide a teoria menor em 45 do total de casos analisados e que as decisões desse tipo enfatizam principalmente a necessidade de se evitar que o risco decorrente da atividade empresarial seja indevidamente transferido a sujeitos vulneráveis visando punir o empresário que usou da limitação de responsabilidade sem respeitar seus condicionantes ou apenas pela conclusão de que a limitação se respeitada não seria a solução mais eficiente a partir de um juízo de eficiência econômica PARENTONI 2013 p 115 A partir desses resultados é possível afirmar que nas relações jurídicas caracterizadas pela vulnerabilidade de uma das partes ou para assegurar especial tutela a determinados bens jurídicos existe a opção legislativa por impor determinada forma de distribuição de riscos que decorrem da ineficácia da separação patrimonial justificadora da desconsideração assim desrespeitando as escolhas empresariais e assentada em fundamentos econômicos Na prática porém o que constatou a pesquisa empírica foi a utilização de raciocínio econômico simplista para afastar a limitação de responsabilidade por meio da teoria da desconsideração da personalidade jurídica Os pressupostos históricos dessa teoria foram sendo paulatinamente atenuados ou mesmo substituídos pelos conceitos de free rider e externalização ilícita de riscos É recorrente a afirmação de que o risco aspecto econômico decorrente do exercício de atividade empresarial incumbe exclusivamente ao empresário que a exerce não podendo de maneira alguma ser externalizado outro termo econômico em detrimento dos empregados Consequentemente havendo insucesso da empresa ainda que por vias regulares e inevitáveis os sócios devem responder pelas verbas trabalhistas devidas pela sociedade ibid p 108109 Assim é este o histórico da disregard doctrine e sua aplicação no Brasil prevista na legislação para os casos de abuso de direito ou de confusão patrimonial demonstrando a adoção de aspectos das teorias subjetiva e objetiva Apresentouse também seu uso diferenciado em específicos ramos do direito em razão de suas peculiaridades seja através da drástica diminuição de requisitos e imposição do risco do negócio inteiramente ao empresário como no direito ambiental e trabalhista ou de sua aplicação inversa como no direito de família 322 Efeitos da Lei da Liberdade Econômica no instituto da desconsideração da personalidade jurídica RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200133 Em 20 de setembro de 2019 a Medida Provisória nº 8812019 foi convertida na Lei nº 13874 que em seu artigo 1º12 define sua finalidade de ser a Declaração de Direitos de Liberdade econômica com o intuito de proteger a livre iniciativa e o livre exercício de atividade econômica O objetivo deste diploma seria o de diminuir a ingerência estatal na atividade econômica VENOSA 2019 Esta Lei alterou o artigo 50 do Código Civil13 que como mencionado no tópico anterior trata da desconsideração da personalidade jurídica assim como incluiu cinco parágrafos14 ao referido artigo na tentativa de delinear as características que devem ser observadas para a configuração de desvio de finalidade e confusão patrimonial Neste tópico portanto buscaremos verificar quais os reflexos destas alterações trazidas pela Declaração de Direitos de Liberdade Econômica na desconsideração da pessoa jurídica De acordo com Eros Roberto Grau a livre iniciativa não é tomada enquanto fundamento da República Federativa do Brasil como expressão individualista mas sim no quanto expressa de socialmente valioso GRAU 2005 p 200 A partir desta concepção podese afirmar que as empresas desempenham importante função social numa determinada sociedade de modo que a livre iniciativa deve voltarse ao desenvolvimento local e nacional de onde tais empresas estejam situadas SANTIAGO MEDEIROS 2017 Concluise que a 12 Art 1º Fica instituída a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica e disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador nos termos do inciso IV do caput do art 1º do parágrafo único do art 170 e do caput do art 174 da Constituição Federal 13 Art 50 Em caso de abuso da personalidade jurídica caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial pode o juiz a requerimento da parte ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo desconsiderála para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso Redação dada pela Lei nº 13874 de 2019 14 1º Para os fins do disposto neste artigo desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza Incluído pela Lei nº 13874 de 2019 2º Entendese por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios caracterizada por Incluído pela Lei nº 13874 de 2019 I cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou viceversa Incluído pela Lei nº 13874 de 2019 II transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações exceto os de valor proporcionalmente insignificante e Incluído pela Lei nº 13874 de 2019 III outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial Incluído pela Lei nº 13874 de 2019 3º O disposto no caput e nos 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica Incluído pela Lei nº 13874 de 2019 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica Incluído pela Lei nº 13874 de 2019 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica Incluído pela Lei nº 13874 de 2019 RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200134 função social é originária da obrigação do Estado de balizar o individualismo em contraponto aos interesses da coletividade os quais deverão ser observados uma vez que há uma ligação entre sociedade e empresa que tem por base o crescimento econômico aliado ao crescimento social SANTIAGO MEDEIROS 2017 p 111 Com isso demonstra se a pertinência do estudo sobre os possíveis impactos do diploma legal em questão vez que este visa a proteção dos direitos de liberdade econômica a partir de delimitação de maiores requisitos ao atingimento do patrimônio individual em razão de dívidas societárias A Lei nº 13874 pode ser compreendida como uma continuação e um aprofundamento do processo que se convencionou chamar de reforma trabalhista brasileira por impactar diretamente nas relações entre capital e trabalho COELHO B CUNHA 2019 p 06 Isto se liga à ideia exposta acima no sentido de que em certas relações dentre elas a de trabalho convencionouse facilitar a desconsideração da personalidade jurídica do empregador em processos envolvendo débitos trabalhistas Silvio de Salvo Venosa ao analisar o dispositivo alterado e seus efeitos concluiu que Deve ser utilizada a desconsideração sempre que a personalidade da pessoa jurídica seja utilizada para fraude Quando a pessoa jurídica age para fugir de suas finalidades para lesar terceiros deve ser desconsiderada isto é deve ser atingido o patrimônio dos sócios ou de terceiros que tenham se valido do estratagema A esse respeito deve ser lembrada a dicção colocada por esta lei no final da redação do ar 50 os bens atingidos pela desconsideração devem alcançar os direta ou indiretamente envolvidos no abuso ou na fraude Essa posição já vinha sendo determinada pela jurisprudência não sem alguma dificuldade A desconsideração deve ser sempre considerada quando a personalidade jurídica sofre desvio de finalidade Note que o 3º acrescentado menciona que a desconsideração também deve ser aplicada aos sócios e administradores da pessoa jurídica a saber quando essas pessoas naturais desviam bens próprios para pessoa jurídica para finalidades fraudatórias Cuidase do que podemos denominar desconsideração inversa da pessoa jurídica 2019 p 04 Pela nova redação do artigo 50 do Código Civil podese interpretar que somente em casos de intenção clara de fraude os sócios poderão ter patrimônio pessoal usado para indenização COELHO B CUNHA op cit p 09 reforçando assim o caráter de unidade do patrimônio de uma pessoa seja ela física ou jurídica que permeia a legislação brasileira desde o Código Civil de 1916 SILVEIRA 2009 Exigese a comprovação de uma culpa específica em fraudar por parte daqueles sócios cujos patrimônios individuais se pretenda atingir o ônus da prova que incumbe a quem alega a fraude fazendo com que o julgador RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200135 somente possa desconsiderar a personalidade jurídica com um contexto probatório mais robusto acerca da fraude e somente em relação àqueles que se beneficiaram dela Tendose em vista que a pessoa jurídica é criação da vontade humana fruto de uma permissão legislativa que interessa ao próprio Estado a sua criação ante as várias finalidades que poderá desenvolver inclusive com vistas ao desenvolvimento econômico e social a nova disposição legislativa portanto estando embasada na ideia de separar de forma inconfundível os patrimônios individual e societário pretende viabilizar com maior facilidade a atividade econômica NAHAS 2020 Verificandose o objetivo de garantir o livre exercício da atividade econômica esta nova redação demonstra a intenção de restringir a intervenção estatal sobre a empresa ao trazer maiores requisitos à desconsideração da personalidade jurídica e ao delimitar as possíveis situações que a ensejariam É possível criticar esta exigência nas demandas trabalhistas por exemplo tendo em vista o caráter protetivo próprio deste ramo do direito e da desigualdade entre empregador e empregado possuindo este último uma maior dificuldade de produção de provas em razão da vulnerabilidade e da hipossuficiência que dele se presumem COELHO B CUNHA 2019 Em que pese ainda seja recente esta Lei não se podendo analisar suas consequências concretas fica evidente o intuito do legislador em exigir maiores elementos para a desconsideração da personalidade jurídica Tal exigência marca mais uma vez a opção da legislação civil pátria pela teoria clássica do patrimônio e com influência positivista FRADERA 2010 prezando pela unidade do patrimônio em decorrência da personalidade assim como pela delineação com maior rigor das hipóteses autorizadoras da desconsideração A exigência de comprovação da fraude e atingimento somente daqueles sócios que se beneficiaram com ela demanda que quem a alega produza prova mais robusta exigência esta que mesmo que dificulte a aplicação da desconsideração pode acabar por trazer decisões judiciais mais justas com a utilização do instituto somente nos casos em que comprovado o desvio de finalidade ou fraude mas sem atingir aqueles sócios que não tenham sido direta ou indiretamente beneficiados por tais condutas Este ônus probatório se mostra importante à primeira vista em razão do histórico jurisprudencial de maior flexibilização dos requisitos da disregard em prol da satisfação de débitos perante terceiros considerados vulneráveis mesmo quando inexistente o abuso de direito ou a confusão patrimonial PARENTONI 2013 RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200136 4 CONCLUSÃO Diante do abordado neste artigo verificase que a personalidade jurídica é um importante instrumento de incentivo à atividade comercial enquanto forma de permitir aos indivíduos que se unam em busca de um fim comum através de uma entidade deles diversa com patrimônio próprio e com eles não se confunde E em relação ao patrimônio evidencia se que o direito brasileiro possui forte inspiração na teoria clássica de Aubry e Rau advinda da França pósrevolução francesa para considerar o patrimônio uma universalidade e um corolário da personalidade Toda pessoa obrigatoriamente possui um patrimônio e apenas um que serve como garantia aos credores ainda que os bens e direitos que componham tal patrimônio se alterem no decorrer do cumprimento da obrigação A sociedade limitada é um tipo societário de ampla utilização tendo em vista sua relativamente simples constituição quando em comparação com a sociedade anônima e a possibilidade de limitação do risco dos sócios ao seu investimento no capital social sendo assim a melhor demonstração da pessoa jurídica enquanto agrupamento de indivíduos para persecução de um objetivo cujos frutos serão divididos entre todos que o compõem Porém apesar de suas inúmeras vantagens não é possível que se aceite a utilização abusiva deste instituto razão pela qual surgiu a disregard doctrine enquanto forma de combater o abuso de direito em relação à pessoa jurídica com sua utilização para fins fraudulentos desvio de sua finalidade ou confusão entre seu patrimônio e o dos sócios A Lei nº 138742019 dentre as diversas alterações que trouxe modificou o artigo 50 do Código Civil o qual traz os pressupostos para a desconsideração da personalidade jurídica A nova legislação buscou determinar critérios mais rígidos para a utilização do instituto assim como delimitar as situações mais comuns que caracterizariam abuso fraude e confusão o que reforça a influência clássica e positivista em nosso Direito prezandose pela unidade patrimonial da pessoa e pela maior delimitação legislativa Exigese agora a demonstração de culpa dos sócios e administradores que se beneficiaram direta ou indiretamente da má utilização da pessoa jurídica sendo apenas em relação a eles que será desconsiderada a separação patrimonial Notase uma evidente intenção de restringir a intervenção estatal no âmbito privado com a exigência de um conjunto probatório mais robusto para que se possa desconsiderar a pessoa jurídica Há grande indicativo de que isto foi pensado especialmente para relações RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200137 trabalhistas nas quais em razão da proteção ao trabalhador geralmente se exigiam menos elementos para a desconsideração da personalidade jurídica Dessa maneira buscouse com a chamada Lei da Liberdade Econômica uma maior proteção à atividade empresarial através da reiteração acerca da independência entre os patrimônios individual e societário com uma tentativa de garantir que o patrimônio pessoal dos sócios permanecerá inatingível pelas obrigações da pessoa jurídica que integrem salvo se devidamente comprovado seu benefício com a utilização fraudulenta da mesma 5 REFERÊNCIAS AGUIAR JÚNIOR Ruy Rosado de A desconsideração da pessoa jurídica na falência In ESTEVEZ André Fernandes JOBIM Marcio Felix Orgs Estudos de direito empresarial homenagem aos 50 anos de docência do Professor Peter Walter Ashton São Paulo Saraiva 2012 p 561574 AMARAL Francisco Direito civil introdução 7 ed rev mod e aum Rio de Janeiro Renovar 2008 ARANGIORUIZ Vicenzo Instituciones de Derecho Romano Buenos Aires Depalma 1986 AUBRY Charles RAU Charles Cours de droit civil français daprès la méthode de Zachariae 4 ed Paris Librarie Générale de Jurisprudence Marchal et Billard 1869 t 2 Cours de droit civil français daprès la méthode de Zachariae 4 ed Paris Librarie Générale de Jurisprudence Marchal et Billard 1873 t 6 BERTOLDI Marcelo M RIBEIRO Marcia Carla Pereira Curso Avançado de Direito Comercial 9 ed São Paulo Editora Revista dos Tribunais 2015 BIONDI Biondo Instituzioni di Diritto Romano Milano Giuffre 1972 BRAY Richard P Review of Aspects Juridiques du Capitalisme Moderne by Georges Ripert The American Journal of Comparative Law sl v 2 n 2 p 262265 1953 CAMPOS Aline França A extensão da responsabilidade dos sócios de sociedade limitada no Código Civil Revista da AJURIS sl v 39 n 120 dez 2012 CASTAN TOBEÑAS Jose Derecho civil español común y foral 9 ed Madrid Instituto Editorial Reus 1955 v 1 t 1 RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200138 COELHO Bruna da Penha de CUNHA Giulia Valente de Lacerda A minirreforma trabalhista uma reflexão crítica de seus possíveis impactos sociais Revista Eletrônica OABRJ Rio de Janeiro v 30 n 2 juldez 2019 COELHO Fábio Ulhôa Curso de direito civil São Paulo Saraiva 2003 v 1 COMPARATO Fábio Konder A reforma da empresa Revista de Direito Mercantil Industrial Econômico e Financeiro RDM São Paulo Malheiros n 50 p 5774 abrjun 1983 SALOMÃO FILHO Calixto O poder de controle na sociedade anônima 4 ed Rio de Janeiro Forense 2005 FACHIN Luiz Edson Estatuto jurídico do patrimônio mínimo 2 ed rev e atual Rio de Janeiro Renovar 2006 FERREIRA Cristiana Sanchez Gomes A desconsideração da personalidade jurídica na partilha de vens conjugais sob o viés da law and economics Revista do Instituto do Direito Brasileiro sl a 3 n 6 p 41674191 2014 FERREIRA Waldemar Sociedade por quotas 5 ed São Paulo Companhia Graphico Editora Monteiro Lobato 1925 FIGUEROA Gonzalo Yáñez Curso de derecho civil materiales para clases activas Santiago Juridica de Chile 1991 FRADERA Vera La traduction française du Code civil brésilien Revue internationale de droit comparé sl v 62 n3 p 773779 2010 FRONTINI Paulo Salvador Responsabilidade civil objetiva Reflexões à luz da distinção entre obrigações de meio e resultado Revista Mestrado em Direito Osasco a 9 n 1 p 79 97 2009 GRAU Eros Roberto A ordem econômica na Constituição Federal de 1988 10 ed Malheiros São Paulo 2005 GROSSI Paolo História da propriedade e outros ensaios Tradução de Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca Rio de Janeiro Renovar 2006 HENRIQUE Gustavo Guimarães Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica In MARQUES Jader FARIA Marcelo Coords Desconsideração da Personalidade Jurídica Livraria do Advogado Porto Alegre 2001 HESPANHA Antonio Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 HIRONAKA Giselda Maria Fernandes Novaes Morrer e suceder passado e presente da transmissão sucessória concorrente 2 ed São Paulo Editoria Revista dos Tribunais 2014 RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200139 LEONARDO Rodrigo Xavier Revisitando a teoria da pessoa jurídica na obra de J Lamartine Corrêa de Oliveira Revista da Faculdade de Direito UFPR Curitiba v 46 dez 2007 MADALENO Rolf A desconsideração judicial da pessoa jurídica e da interposta pessoa física no direito de família e no direito das sucessões Rio de Janeiro Forense 2009 MARTINS Fran Curso de direito comercial Atual Carlos Henrique Abrao 40 ed Rio de Janeiro Forense 2017 MARTINS Guilherme Vinseiro A doutrina da entity shielding e da owner shielding e sua aplicabilidade ao Direito Societário brasileiro Revista da Faculdade de Direito da UFRGS Porto Alegre n 34 p 260275 ago 2016 MORI Celso Cintra Pessoa jurídica ficção e realidade In KUYVEN Luiz Fernando Martins Org Temas essenciais de direito empresarial estudos em homenagem a Modesto Carvalhosa São Paulo Saraiva 2012 NAHAS Thereza C Desconsideração da personalidade jurídica no marco da Lei da Liberdade Econômica Notícias CIELO ISSNe 25321226 n 4 2020 PARENTONI Leonardo Netto Reconsideração da personalidade jurídica estudo dogmático sobre a aplicação abusiva da disregard doctrine com análise empírica da jurisprudência brasileira 2013 Tese Doutorado em Direito Comercial Faculdade de Direito Universidade de São Paulo 2013 Disponível em httpstesesuspbrtesesdisponiveis22132tde27082013112343ptbrphp Acesso em 13 jul 2020 PEREIRA Caio Mário da Silva Instituições de direito civil 19 ed Rio de Janeiro Forense 2000 v 1 PONTES DE MIRANDA Francisco Cavalcante Tratado de direito privado 3 ed Rio de Janeiro Borsoi 1970 v 5 RADBRUCH Gustav Filosofia do direito São Paulo Martins Fontes 2004 REQUIÃO Rubens Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica disregard doctrine Doutrinas Essenciais de Direito Civil sl v 3 p 12391261 out 2010 SALAZAR Luis Bustamante El patrimonio dogmatica jurídica Santiago Editorial Jurídica de Chile 1979 SANTIAGO Mariana Ribeiro MEDEIROS Elisângela Aparecida de Função social e solidária da empresa impactos na liberdade econômica versus benefícios no desenvolvimento nacional Revista Jurídica Curitiba v 2 n 47 p 99122 2017 RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200140 SILVEIRA Marco Antonio Karam A sucessão causa mortis na sociedade limitada tutela da empresa dos sócios e de terceiros Porto Alegre Livraria do Advogado Editora 2009 TOMAZETTE Marlon Curso de direito empresarial teoria geral e direito societário 6 ed São Paulo Atlas 2014 v 1 A teoria dos atos ultra vires e o direito brasileiro Revista de Direito sl v 7 n 1 2015 VENOSA Sílvio de Salvo A declaração de direitos de liberdade econômica MP nº 881 e o direito privado Revista Científica da Academia Brasileira de Direito Civil sl v 3 n 1 2019 XAVIER Luciana Pedroso As teorias do patrimônio e o patrimônio de afetação na incorporação imobiliária 2011 178 f Dissertação Mestrado em Direito Universidade Federal do Paraná 2011 Disponível em httpsacervodigitalufprbrbitstreamhandle188429214R2020D20 20LUCIANA20PEDROSO20XAVIERpdfsequence1isAllowedy Acesso em 13 jul 2020 RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200141
Envie sua pergunta para a IA e receba a resposta na hora
Recomendado para você
Texto de pré-visualização
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA EM SOCIEDADES LIMITADAS APÓS A LEI DA LIBERDADE ECONÔMICA THE DISREGARD DOCTRINE IN LIMITED SOCIETIES AFTER THE BRAZILIAN ECONOMIC FREEDOM ACT Deborah Soares Dallemole1 Simone Tassinari Cardoso Fleischmann2 Resumo A intenção deste artigo é analisar os possíveis impactos da Lei nº 138742019 a chamada Lei da Liberdade Econômica na desconsideração da personalidade jurídica Para isso se abordará a personalidade jurídica e as teorias do patrimônio bem como sua inserção no ordenamento brasileiro a fim de que se possam identificar as bases históricas e dogmáticas que influenciaram o legislador pátrio Depois será estudada a sociedade limitada por ser o modelo societário de maior difusão em nosso país representando importante instrumento para a atividade comercial pela limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações da sociedade ao seu investimento no capital social Contudo a separação patrimonial não é absoluta de modo que a desconsideração da personalidade jurídica surge enquanto instrumento para atingir a esfera patrimonial individual do sócio em caso de abuso de direito em relação à personalidade jurídica Na tentativa de dar garantias ao livre exercício de atividade econômica e limitar a intervenção estatal foi promulgada a Lei nº 138742019 que trouxe maiores obstáculos à desconsideração que somente deverá atingir os sócios que se beneficiarem direta ou indiretamente da fraude praticada devendo esta ser devidamente comprovada por quem a alega A metodologia utilizada foi a dedutiva combinada com pesquisa bibliográfica Palavraschave Personalidade jurídica Teorias do patrimônio Sociedade limitada Desconsideração da personalidade jurídica Lei nº 13874 Abstract The intention of this article is to analyze the possible impacts of the law nº 138742019 the socalled Economic Freedom Act disregarding legal personality To this end the legal personality and theories of heritage will be addressed as well as their insertion in the Brazilian order in order to identify the historical and dogmatic bases that influenced the native legislator Then the limited liability company will be studied as it is the most widely used corporate model in our country representing an important instrument for commercial activity by limiting the liability of the partners for the companys obligations to their investment in the share capital However the separation of assets is not absolute so that 1 Mestranda bolsista CAPES no Programa de PósGraduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul 2 Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul Professora de Direito Privado na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Artigo recebido em 26032020 e aprovado para publicação em 16062020 RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200116 the disregard of the legal personality appears as an instrument to reach the individual patrimonial sphere of the partner in case of abuse of rights in relation to the legal personality In an attempt to provide guarantees for the free exercise of economic activity and to limit state intervention Law no 138742019 which brought greater obstacles to disregard which should only reach members who benefit directly or indirectly from the fraud practiced and this must be duly proven by those who claim it Keywords Legal personality Theories of patrimony Limited society Disregard doctrine Economic Freedom Act 1 INTRODUÇÃO Neste trabalho pretendese responder à seguinte pergunta quais os possíveis impactos da Lei nº 138742019 a chamada Lei da Liberdade Econômica na desconsideração da personalidade jurídica Para tanto haverá dois tópicos um introdutório com as noções necessárias para a adequada compreensão da problemática e um segundo mais específico que permitirá visualizar a importância da nova legislação Utilizouse no presente trabalho o método de investigação bibliográfica combinada com o método de abordagem dedutivo a partir dos textos legais e dos posicionamentos doutrinários sobre os temas abordados A primeira parte buscará estudar os fundamentos históricos e dogmáticos da personalidade jurídica e do patrimônio sendo subdividida em duas subpartes A primeira destinase à conceituação da personalidade jurídica e as razões para sua existência na segunda serão abordadas as teorias clássica e objetiva do patrimônio indispensável para que se possa entender a base teórica na qual a legislação brasileira se ancora A segunda parte mais direcionada tem como objetivo a análise da responsabilidade dos sócios e também possuirá duas subdivisões Primeiro será estudada a sociedade limitada seu surgimento inserção no ordenamento jurídico brasileiro assim como os limites da responsabilidade dos sócios sobre as obrigações da sociedade tendo em vista ser este o tipo societário mais amplamente utilizado no Brasil e por consequência aquele em que a nova regulamentação da desconsideração terá maior impacto Em seguida serão trazidos os fundamentos para a disregard doctrine sua origem fundamentos jurídicos e funcionamento na legislação e doutrina pátrios Ainda neste subtópico será abordada a Lei nº 13874 de 2019 que trouxe grandes modificações à desconsideração da personalidade jurídica impondo maiores restrições à sua utilização e seus possíveis efeitos RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200117 2 DOS FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E DOGMÁTICOS PARA O SURGIMENTO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E AS TEORIAS DO PATRIMÔNIO 21 DA PERSONALIDADE JURÍDICA Inicialmente estudaremos a personalidade jurídica ponto de partida para que se compreenda adequadamente como o patrimônio a ela se liga e sua desconsideração que serão abordados nos tópicos subsequentes A personalidade jurídica pode ser definida como a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações PEREIRA 2000 p 141 Como nem sempre o indivíduo consegue atingir sozinho os seus objetivos é comum que se una a outros indivíduos para isto compartilhando tal fim entre todos e através um organismo diverso das pessoas individuais que o compõem de maneira que a pessoa jurídica é um ente destinado a satisfazer um dado interesse humano TOMAZETTE 2014 Nessa linha podese afirmar que Portanto embora cada pessoa fosse uma individualidade um indivíduo os interesses e objetivos poderiam ser de indivíduos de partes do grupo ou partes da comunidade ou da comunidade inteira Uma esfera ou ordem de interesses convivendo com outras esferas ou ordens de interesses O que importa destacar é que estamos nos referindo a interesses que transcendem aos interesses de cada indivíduo considerado isoladamente MORI 2012 p 93 O conceito de pessoa jurídica tem lugar na segunda metade do século XIX com a generalização das noções de corporação e de separação patrimonial com origem na doutrina alemã a qual passou a considerar a existência de sujeitos de direitos distintos da pessoa humana e como titulares de direitos subjetivos com individualidades próprias COELHO 2003 Assim a personalidade jurídica criação de uma entidade diversa daquelas pessoas humanas que a integram decorre de noções do direito canônico a corporação e do direito comercial a separação de patrimônios comum do patrimônio individual daqueles que se unem para um mesmo fim Quanto à justificativa para a existência da pessoa jurídica é possível encontrar teorias que a reputam como criação artificial da lei ou como uma realidade que preexiste à lei que apenas delineia seu funcionamento A teoria da ficção foi defendida dentre outros por Ihering Savigny e Laurent no sentido de que as pessoas jurídicas são fictícias institutos RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200118 criados artificialmente pelo Direito Positivo uma vez que a ideia natural da pessoa coincide com a do indivíduo de maneira que a personalidade jurídica depende da vontade do legislador MARTINS F 2017 A teoria de que a pessoa jurídica é uma realidade prévia à lei foi defendida por Zittelmann fundamentada no direito subjetivo de modo que é a vontade o ato fundamental do direito e havendo a vontade dos individuais em formar uma pessoa jurídica distinta deles ela existirá e a função da lei é traçar normas para seu exercício ibid Assim personalidade jurídica é o que o direito concede a um interesse transindividual por meio do qual um grupo de pessoas se une mas que no exercício de sua atividade não se confunde com a vontade ou com as atividades de cada uma das pessoas físicas que a compõem MORI 2012 A autonomia patrimonial da sociedade em relação aos seus membros no direito brasileiro foi positivada pelo artigo 20 do Código Civil de 1916 que dispunha que as pessoas jurídicas têm existência distinta da de seus membros sem significar contudo limitação de responsabilidade do sócio a qual em que pese seja um fator de estímulo a investimentos e das atividades comerciais depende do tipo societário por eles elegido MARTINS G 2016 Dessa maneira a principal característica da pessoa jurídica é a sua autonomia em relação aos indivíduos que a integram não se confundindo com estes possuindo nome domicílio e patrimônio próprio sendo portanto um importante instrumento da atividade comercial por possibilitar aos sócios que corram o risco financeiro na medida de sua participação societária 22 DAS TEORIAS DO PATRIMÔNIO Conceituada a personalidade jurídica e seus fundamentos neste tópico serão abordadas as teorias acerca do patrimônio Este é um ponto indispensável para a adequada compreensão da problemática ora proposta eis que a sociedade dotada de personalidade realiza suas operações empresariais através de seu patrimônio diverso dos patrimônios pessoais dos sócios separação que será afetada em caso de desconsideração da personalidade jurídica 211 Origens do conceito de patrimônio RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200119 As leis de uma determinada sociedade sobre patrimônio e propriedade assim como todas as demais refletem tratados de paz entre diversas forças tratados estes que são continuamente questionados e revisados e a partir dos quais lei foi imposta é possível reconhecer as forças vitoriosas BRAY 1953 Como afirmou Paolo Grossi talvez nenhum discurso jurídico seja tão permeado de bem e mal tão temperado por visões maniqueístas quanto o que versa sobre a relação homensbens e o modesto instituto jurídico que é conveniente tutor de determinados interesses de ordem e de classe é subtraído à relatividade do devir e conotado de caráter absoluto GROSSI 2006 p 1011 O patrimônio assim como muitos outros conceitos jurídicos em que pese tenha uma mesma nomenclatura há muito tempo sofreu rupturas decisivas em seu aspecto semântico eis que o significado de uma mesma palavra ao longo da história está intimamente ligado ao contexto social de cada ocorrência sua significado cujo sentido portanto será eminentemente relacional ou local HESPANHA 2005 Assim evidenciase que a legislação que dispõe sobre o patrimônio não pode ser analisada de forma isolada tendo em vista que serve a determinadas finalidades no contexto temporal e social em que se insere de acordo com o que busca o grupo detentor do status quo naquele momento O conceito de patrimônio enquanto responsável pelas dívidas de determinada pessoa é verdadeiro marco histórico sendo de especial importância neste ponto a Lex Poetelia Papiria ano 326 aC através da qual o devedor deixou de responder pelos débitos com seu próprio corpo passando a fazêlo com seu patrimônio ARRANGIORUIZ 1986 Esta lei representa um marco histórico pois foi com ela que o Direito Romano superou a situação antecedente na qual o devedor ou alguém por ele se tornava verdadeiro refém do cumprimento da obrigação FRONTINI 2009 Dessa maneira com a Lex Poetelia demarca se a emancipação do corpo do devedor como garantia de cumprimento da dívida tendo esta lei um pano de fundo político e relacionado ao crescente antagonismo entre plebeus e patrícios BIONDI 1972 Portanto como se pode ver o patrimônio desde Roma é tema de conflito e de interesses econômicos tendo vindo como meio de cumprimento das obrigações em substituição ao corpo do devedor justamente como forma de pacificar as progressivas divergências entre classes daquela sociedade Situação oposta era aquela do patrimônio na Idade Média Neste período histórico há uma revolução cultural dissimulada fruto não de um movimento mas criada de geração em geração pelo vazio decorrente da queda do mundo antigo GROSSI op cit A mentalidade RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200120 romana predominantemente proprietária foi substituída por uma civilização possessória à qual é de todo indiferente uma relação de validade mesmo porque falta o modelo em relação ao qual operar comparações e medidas e que é ao contrário dominada por um vigoroso princípio de efetividade GROSSI 2006 p 4546 Na civilização medieval diferentemente daquela de Roma o valor do patrimônio da propriedade estava em sua utilidade prática finalidade para a qual eram regulamentadas as formas de seu uso 212 Teoria clássica do patrimônio A noção jurídica de patrimônio existente no direito brasileiro atual tem origem na civilística clássica que mesmo com as intercorrências históricas manteve presente o cerne da conceituação clássica do patrimônio SILVEIRA 2009 Desse modo passaremos agora a analisar a teoria clássica do patrimônio surgida na França do século XIX O Code de Napoleão regulou em seu artigo 544 que a propriedade é o direito de gozar e de dispor das coisas da maneira mais absoluta desde que não seja feito uso proibido por lei ou por regulamentos Com isso tendo o contrato moderno presente no Código Napoleônico o intuito de operacionalizar o trânsito jurídico da propriedade necessitouse um sistema de garantias para estas pactuações tendo o Code optado por se desvincular do sistema de garantias corpóreas do devedor e adotar o da responsabilidade patrimonial XAVIER 2011 A teoria clássica do patrimônio tem sua origem na Alemanha com o professor Zacharie da universidade de Heildelberg cujas ideias influenciaram os franceses Charles Aubry e Charles Rau ao traduzirem seu curso de direito civil para o francês SILVEIRA op cit Para estes o patrimônio é uma universalidade da lei no sentido de que os bens formam em virtude da própria unidade da pessoa a quem pertencem uma entidade legal uma universalidade de direitos decorrente da própria personalidade e que toda pessoa possui AUBRY RAU 1869 Desta vinculação do patrimônio à personalidade extraise que não há pessoa sem patrimônio que o patrimônio é único e que o patrimônio é indivisível SILVEIRA op cit O patrimônio é uno porque a personalidade é uma sendo aquele composto por elementos fungíveis e se operando uma subrogação real uma ficção segundo a qual um objeto vem a substituir outro para se tornar a propriedade da pessoa a qual pertenceria o RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200121 anterior AUBRY RAU 1873 Pela teoria clássica de Aubry e Rau toda pessoa é dotada de patrimônio e um único patrimônio que é indivisível ainda que os bens que o compõem se alterem ao longo da vida do indivíduo Embora não esteja explícito na obra a função desta construção conceitual é a de responsabilidade patrimonial de preservar a liberdade do devedor que garante suas dívidas com o seu patrimônio XAVIER 2011 o qual como mencionado acima será sempre o mesmo em que pese seu conteúdo se altere ao longo do período entre a pactuação e o momento em que deveria ser cumprida a obrigação A propriedade das coisas se torna um termo conceitual a relações de pessoas em relação às coisas e não da relação pessoacoisa em si mesma refletindo a intervenção estatal através do aparato jurídico em favor das atividades comerciais enquanto um reflexo do cenário pósRevolução na França que demandava uma legislação que permitisse a necessária exploração do capital BRAY 1953 Outrossim alterase a mentalidade da articulação da relação entre sujeito e bens enquanto reflexo de um sistema político e jurídico pensado a partir dos ideais burgueses para permitir a atividade comercial sem que o devedor garanta com seu corpo as obrigações assumidas e para que o credor tenha uma garantia patrimonial de seu crédito a partir da indivisibilidade e unidade do patrimônio daquele que deve A teoria clássica sofreu críticas especialmente quanto à indivisibilidade do patrimônio Dentre as críticas pode se trazer a lição de Andrea Torrente que afirma que em senso jurídico o patrimônio é a expressão do complexo dos ativos e passivos de uma pessoa não sendo considerado como um bem único e que portanto não é uma universalidade3 Jose Castan Tobeñas no mesmo sentido defende que é inútil conceber o patrimônio como uma universalidade de direito como uma unidade abstrata mas sim algo representado pela massa de bens que o compõem merecendo tratamento jurídico de acordo com estes4 Outra 3In senso giuridico si chiama patrimonio il complesso dei rapporti attivi i passivi facenti capo ad una persona Come si vede questo concetto è diverso da quello comune di patrimonio secondo il quale solo una persona che ha beni possiede un patrimonio Invece qualunque persona che ha un patrimonio intesa lespressione in senso giuridico anche se ha tutti debiti perchè èm quanto meno soggeto passivo di rapporti giuridici Il patrimonio non è considerato come un bene unico e quindi esso non è ununiversitas Ogni soggetto ha un patrimonio ed un patrimonio solo con il quale risponde dei propri debiti art 2740 cod Civ TORRENTE 1952 p 101 4Pero el patrimonio personal nunca es propriamente una universitas iuris no es más que uma masa de bienes en la que no existe otra unidad que la basada en la unidad de titular y por consiguiente esa masa no puede tener un tratamiento legal distinto de los múltiples bienes que la integran De ello se sigue que no puede hablarse de propiedad sobre el patrimonio ni usufructo del patrimonio aunque parezca admitir esta última figura la técnica defectuosa del artículo 506 del Código Civil se trata de una mera propiedad o usufructo sobre cada uno de los elementos patrimoniales la prueba es que las deudas no pasan ipso iure el usufructuario como sucedería siel patrimonio constituyese una universitas iuris CASTAN TOBEÑAS 1955 p 465 RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200122 aparente falha na teoria clássica é a própria pessoa jurídica que enquanto massa de bens separada do patrimônio de seu titular representaria uma exceção à indivisibilidade proposta SILVEIRA 2009 213 Teoria objetiva do patrimônio Sendo a concepção de patrimônio inerentemente ligada ao seu contexto histórico e social a teoria clássica atendeu por certo tempo às demandas da sociedade para a qual foi construída O patrimônio assim como outros conceitos jurídicos não tem o poder de enclausurar os fatos à estruturação juridicamente prevista falhando a teoria clássica em abrigar a existência de categorias jurídicas que fogem à sistematização lógica e analítica de seus conceitos FACHIN 2006 A ideia de patrimônio do século XIX projetada enquanto forma de preservação do indivíduo acabou por se desvincular da pessoa transformandose em instrumento de atuação econômica que está mais direcionado à proteção de terceiros garantia de dívidas que propriamente à pessoa do seu titular ibid p 42 Com as alterações econômicas especialmente no período pósrevolução industrial foi necessário o surgimento de novas figuras jurídicas para a delimitação de riscos e fortalecimento das garantias existentes nas operações econômicas função para a qual a noção clássica se mostrou insuficiente vez que neste novo contexto social se exige menos a afirmação do indivíduo que alcançar metas de desenvolvimento econômico e social FIGUEROA 1991 p 39 Para tanto surge a noção objetiva do patrimônio a respeito da qual ao contrário da teoria clássica a unidade dos bens não decorre de sua vinculação à personalidade do indivíduo mas sim da função para qual os elementos de tal patrimônio são afetados Tal teoria objetiva possui como ponto de partida para seu surgimento a concepção de Bernhard Windscheidt ao concluir pela existência de direitos sem sujeito na ordem jurídica SALAZAR 1979 o que colocaria em xeque a interdependência entre patrimônio e personalidade Da teoria de Windscheidt seguiramse os estudos de Alois Von Brinz entre as quais não havia mais que um passo ibid p 32 A teoria de Brinz negava a existência da personalidade jurídica afirmando que apenas a pessoa física seria dotada de personalidade sendo que a pessoa jurídica teria a natureza de uma segunda espécie de patrimônio RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200123 pertencente ou detentora de uma invisível relação jurídica entre pessoas e bens LEONARDO 2007 Há uma passagem entre os fins individualistas da pessoa jurídica para o de persecução de uma finalidade determinada em que na concepção de Brinz a pessoa jurídica assume e atende a fins específicos que não são no entanto fins pessoais nem de pessoas individuais mas transpessoais puramente objetivos em resumo fins culturais RADBRUCH 2004 p 1994 A isto seguiuse o desenvolvimento desta teoria por Immanuel Bekker que distinguiu entre patrimônio de afetação dependente e patrimônio de afetação independente O primeiro seria aquele complexo patrimonial destinado a um fim e carente de sujeito enquanto o segundo seria o patrimônio existente dentro do patrimônio de uma pessoa destinado a um fim específico e detentor de autonomia em relação ao restante SALAZAR 1979 Esta teoria se baseia na concepção de que somente a massa de bens afetados a uma finalidade responde pelos riscos de tal empreendimento e apenas desse empreendimento em questão SILVEIRA 2009 214 Influência das teorias do patrimônio sobre a legislação brasileira No direito brasileiro o Código Civil de 1916 foi marcado por uma inspiração positivista enquanto que o Código de 2002 possui uma influência culturalista FRADERA 2010 Porém no tocante ao instituto do patrimônio não houve alteração substancial mantendose a adoção da noção jurídica da teoria clássica SILVEIRA op cit Pontes de Miranda ao tratar sobre o tema em que pese fosse adepto da teoria dos patrimônios de afetação sustenta que só a lei pode separar patrimônios 1970 p 368 Desse modo a partir do enunciado pelo autor mesmo pela teoria objetiva que aceita a formação de patrimônios desvinculados da personalidade somente seria possível o estabelecimento de patrimônios de afetação para um fim determinado caso houvesse previsão legal para tanto Exemplo disso é a disposição do artigo 548 do Código Civil de 2002 que determina que é nula a doação de todos os bens sem reserva de parte ou renda suficiente para a subsistência do doador ideia que decorre da regra de intransmissibilidade do patrimônio como um todo própria da doutrina clássica SILVEIRA op cit Como o patrimônio pela doutrina de Aubry e Rau é único e toda pessoa necessariamente possui um em decorrência de sua personalidade é juridicamente impossível que ela o transmita gratuitamente para um RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200124 terceiro por completo e sem qualquer reserva e fique ela própria desprovida de quaisquer bens ou direitos sobre estes Outro reflexo da conexão entre personalidade e patrimônio está no ramo do direito sucessório pois não sendo possível a perda da personalidade em vida um dos efeitos da morte é a sucessão do patrimônio do falecido HIRONAKA 2014 a herança à qual se aplica o droit de saisine com a transmissão imediata da posse e propriedade dos bens do de cujus aos seus herdeiros ainda que estes desconheçam esta sua qualidade ou o fato da morte eis que tal fato ocorre em razão de singela ficção jurídica ibid p 317 Esta sucessão imediata ligase à concepção clássica acerca da impossibilidade de existência de um patrimônio sem titular e com o falecimento de seu proprietário e o consequente fim de sua personalidade o direito por ficção resolveu a questão com a transferência assim que ocorre o evento morte da massa patrimonial aos herdeiros Assim podese concluir que não houve a superação da teoria clássica a qual permeia todo o ordenamento jurídico pátrio atual ainda que existam possibilidades de afetação do patrimônio previstas na legislação Permanece o corolário de que toda pessoa tem um patrimônio e apenas um patrimônio porém sendolhe permitido nos limites legais que sejam destacados determinados bens do patrimônio geral para se afetarem a um fim específico AMARAL 2008 Das dívidas garantidas com o corpo na Roma Antiga à garantia patrimonial dos credores na França pósRevolução aos tempos atuais o patrimônio percorreu um longo caminho e seu conceito alterouse em cada intercorrência histórica para atender aos fins pretendidos pela sociedade e tempo em que se inseria apesar da semântica manterse a mesma Do exposto neste tópico podese concluir que ainda que com várias críticas o ordenamento brasileiro segue majoritariamente a teoria clássica de Aubry e Rau da universalidade e indivisibilidade do patrimônio sendo excepcionadas somente as situações previstas em lei para permitir que alguém afete parte de seu patrimônio para determinado fim específico e temporário 3 A RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS NAS SOCIEDADES LIMITADAS 31 DA SOCIEDADE LIMITADA RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200125 311 Origens da sociedade limitada e sua inserção no ordenamento jurídico brasileiro Neste tópico será abordada a sociedade limitada sua finalidade e como ela se insere no ordenamento brasileiro Tendo em vista se tratar de um tipo de sociedade que limita a responsabilidade dos sócios para que não sejam atingidos em seus patrimônios individuais por obrigações da sociedade é necessário que se conceitue este tipo societário para que no tópico seguinte possamos analisar a desconsideração da personalidade jurídica O indivíduo nem sempre consegue atingir sozinho os seus objetivos sejam eles econômicos recreativos religiosos etc de modo que é extremamente importante que se una a outros indivíduos para atingir tais objetivos casos em que o fim será por eles todos compartilhado sendo mais adequado para tanto a constituição de um organismo diverso das pessoas individuais que o compõem TOMAZETTE 2014 A limitação da responsabilidade diz respeito à possibilidade ou não de os sócios virem a responder com seus próprios bens pelas dívidas da sociedade estando este limite relacionado com o investimento ou com a promessa de investimento feito na própria sociedade BERTOLDI RIBEIRO 2015 p 194 A sociedade é uma forma de atingir um objetivo comum a mais de um indivíduo com compartilhamento dos riscos ao passo que a limitação da responsabilidade se torna importante na medida em que existindo o sócio não será pessoalmente atingido limitandose o seu prejuízo à sua participação na sociedade representada pelo seu investimento no capital social A doutrina coloca o surgimento da sociedade limitada na Alemanha em 1892 quando foi criada a então chamada sociedade de responsabilidade limitada instituto que em seguida foi adotado por outros países tendo em vista sua constituição mais simples quando comparada com as sociedades anônimas e pelo fato dos seus sócios não responderem de forma ilimitada pelas dívidas da sociedade como ocorria nos demais tipos societários existentes à época ibid No Brasil é encontrada a primeira tentativa de legislação sobre este modelo de sociedade limitada no projeto de novo Código Comercial de Inglês de Souza mas que por fim foi inserido em nosso ordenamento através do Decreto nº 3708 de 10012019 de autoria do Deputado Joaquim Luiz Ozório criando a sociedade por quotas de responsabilidade limitada que vigorou até o Código Civil de 2002 ibid O Decreto em questão possuía somente dezenove artigos uma das razões pelas quais sofreu críticas sendo acusado por Waldemar Ferreira de possuir uma mudez simplesmente RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200126 pasmosa ao afirmar que a lei não teria sequer traçado um perfil da sociedade de responsabilidade limitada que se esqueceu de que limitando a responsabilidade dos sócios pelas obrigações contraídas elas sociedades ao montante do capital social erigiu um regime de excepção que devia ser cuidadosamente regulado ponto a ponto a fim de evitar fraude FERREIRA 1925 p 132 Desse modo verificase que a legislação sobre sociedade limitada que perdurou por mais de oitenta anos regulamentava de forma singela e sem maiores determinações em somente dezenove artigos o que por óbvio acabava por resultar em maiores dificuldades na verificação de ocorrência de alguma fraude à sociedade e às suas finalidades 312 Das exceções à limitação de responsabilidade dos sócios Na legislação pátria é possível encontrar algumas exceções à limitação da responsabilidade dos sócios É o caso do artigo 1080 do Código Civil5 que estabelece que havendo deliberação contrária ao contrato social ou ao ordenamento jurídico os sócios envolvidos responderão de forma ilimitada pelas obrigações decorrentes de tal decisão No mesmo sentido o Código Tributário Nacional em seu art 135 inciso III traz também mecanismos que possibilitam a responsabilização dos diretores gerentes ou representantes de sociedades limitadas quando os créditos correspondentes a obrigações tributárias resultem de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei contrato social ou estatutos6 Há ainda a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica nos casos de desvio de finalidade ou confusão patrimonial que serão abordadas no tópico seguinte mas que adiantase implicam no levantamento do véu da pessoa jurídica para que se possa atingir o patrimônio pessoal do sócio No parágrafo único do artigo 10157do Código Civil Brasileiro há a previsão de que sendo a obrigação decorrente de excesso do administrador ou atuação deste de forma 5 Art 1080 As deliberações infringentes do contrato ou da lei tornam ilimitada a responsabilidade dos que expressamente as aprovaram 6 Art 135 São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei contrato social ou estatutos III os diretores gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado 7 Art 1015 No silêncio do contrato os administradores podem praticar todos os atos pertinentes à gestão da sociedade não constituindo objeto social a oneração ou a venda de bens imóveis depende do que a maioria dos sócios decidir Parágrafo único O excesso por parte dos administradores somente pode ser oposto a terceiros se ocorrer pelo menos uma das seguintes hipóteses RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200127 estranha ao contrato social a sociedade não estará obrigada a observála Isto retrata a adoção da teoria dos atos ultra vires pelo direito brasileiro aos casos em que o ato seja completamente alheio ao objeto da sociedade não se concebendo que terceiros acreditem que se trata de ato da sociedade TOMAZETTE 2015 p 229 A adoção desta teoria está presente em nosso ordenamento desde o Código Comercial de 1850 em seu artigo 3168 podendo ser utilizada como forma de afastar a boafé de terceiro pois sendo manifesta a estranheza do negócio ao objeto da sociedade ibid p 230 não haveria como o terceiro alegar boafé na situação de maneira que a sociedade não estaria vinculada à obrigação decorrente de tais atos Outro ponto a ser ressaltado é a questão da responsabilidade perante terceiros A responsabilidade dos sócios pelas dívidas de sociedade somente será limitada quando da completa integralização do capital social todavia respondem todos os membros societários solidariamente pelo valor remanescente em caso de integralização parcial na forma do artigo 1052 do Código Civil CAMPOS 2012 Tratase assim de responsabilidade solidária entre os sócios perante terceiros em qualquer situação em que o patrimônio da sociedade não seja suficiente para a satisfação dos credores sociais de modo que verificandose a diferença entre o valor social subscrito e o valor do capital social efetivamente integralizado é possível que se requeira que o patrimônio individual de qualquer um dos sócios responda pelas obrigações da sociedade mesmo que esta seja caracterizada pela limitação da responsabilidade de seus membros ibid É possível ligar esta exceção à interpretação conjunta dos artigos 1023 e 1050 do Código Civil Pelo artigo 1050 temse que na ausência de norma específica são aplicáveis à sociedade limitada as normas da sociedade simples Como no caso do presente tipo societário não há regra específica quando à responsabilidade perante terceiros incide o artigo I se a limitação de poderes estiver inscrita ou averbada no registro próprio da sociedade II provandose que era conhecida do terceiro III tratandose de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade 8 Art 316 Nas sociedades em nome coletivo a firma social assinada por qualquer dos sóciosgerentes que no instrumento do contrato for autorizado para usar dela obriga todos os sócios solidariamente para com terceiros e a estes para com a sociedade ainda mesmo que seja em negócio particular seu ou de terceiro com exceção somente dos casos em que a firma social for empregada em transações estranhas aos negócios designados no contrato Não havendo no contrato designação do sócio ou sócios que tenham a faculdade de usar privativamente da firma social nem algum excluído presumese que todos os sócios têm direito igual de fazer uso dela Contra o sócio que abusar da firma social dáse ação de perdas e danos tanto da parte dos sócios como de terceiro e se com o abuso concorrer também fraude ou dolo este poderá intentar contra ele a ação criminal que no caso couber RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200128 1023 o qual permite que não sendo suficientes os bens da sociedade para a cobertura das dívidas os sócios respondem pelo saldo na proporção de suas participações nas perdas sociais exceto cláusula de responsabilidade limitada MARTINS F 2017 p 212 Assim considerou o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul9 que manteve decisão na qual foram inclusos no polo passivo os sócios em ação para a cobrança de dívida da sociedade com a seguinte fundamentação Em tais circunstâncias como os sócios encerraram a empresa durante o trâmite do processo judicial sem satisfazer a obrigação anteriormente constituída e inexistindo bens que possam garantir o débito perseguido haja vista as diversas diligências frustradas já realizadas na origem é impositivo que respondam pelas dívidas da sociedade comercial da qual eram proprietários sob pena de enriquecimento ilícito e a própria frustração ou descumprimento da decisão judicial no esteio do que preconizam os artigos 1023 e 1024 do CC Assim que diante de tudo o que foi exposto falecem de melhor sorte os agravantes cumprindo ser mantida a decisão de origem que ordenou a inclusão dos ora recorrentes no polo passivo da ação não sob o fundamento da desconsideração da pessoa jurídica mas como sucessores do passivo da pessoa jurídica para satisfação do débito discutido no presente feito na proporção de suas cotas Dessa maneira pelo arcabouço teórico e pela análise do julgado acima verificase que em casos nos quais tenha ocorrido a dissolução societária sem a satisfação dos débitos da sociedade é possível que venham os sócios a responder com seus patrimônios pessoais por tais débitos na proporção de sua participação Esse fundamento dispensa a necessidade de instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica uma vez que já há a previsão legal para atingimento dos bens pessoais dos sócios por dívidas societárias busca no patrimônio individual que estará limitada pela participação de cada um nas perdas sociais 32 DOS REFLEXOS DA LEI DA LIBERDADE ECONÔMICA NA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA 321 Origens da disregard doctrine e sua inserção no ordenamento pátrio A pessoa jurídica surge como mecanismo que tem a função de criar um centro de interesses autônomo em relação às pessoas que lhe deram origem de um modo que a estas 9 Agravo de Instrumento Nº 70069588549 Nona Câmara Cível Tribunal de Justiça do RS Relator Tasso Caubi Soares Delabary j 10082016 RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200129 não podem ser imputadas as condutas os direitos e as obrigações daquela AGUIAR JUNIOR 2012 p 561 Porém tal garantia de separação entre a pessoa do sócio e a pessoa jurídica que este integra não é absoluta De acordo com a doutrina majoritária a desconsideração da personalidade jurídica tem sua origem no caso Salomon v Salomon Co em 1897 na Inglaterra em que primeiro se analisou a possibilidade de atingimento do patrimônio pessoal do sócio por dívidas da sociedade Neste leading case Aaron Salomon era um próspero comerciante individual que após mais de trinta anos de atuação decidiu constituir uma limited company para a qual transferiu seu fundo de comércio contando Aaron com 20 mil ações e seus outros seis sócios familiares seus com apenas uma ação cada TOMAZETTE 2014 Depois de um ano a companhia mostrouse inviável entrando em liquidação porém não havendo garantia para os credores estes restaram insatisfeitos e em face disto o liquidante pretendeu uma indenização pessoal de Salomon vez que os demais sócios seriam meramente fictícios No julgamento deste caso a instância ordinária e a Corte de Apelação desconsiderou a pessoa jurídica e impôs a Aaron a responsabilidade pelos débitos contudo tal decisão foi reformada pela Casa dos Lordes prestigiando a autonomia da sociedade regularmente constituída ibid No Brasil a disregard doctrine foi primeiro tratada por Rubens Requião em 1969 quando apresentou a teoria do alemão Rolf Serick10 em que analisava o precedente norte americano Montgomery Web Company v Dienelt e a possível aplicação da doutrina no ordenamento jurídico da Alemanha Requião ao tratar sobre o tema conceituou da seguinte forma O mais curioso é que a disregard doctrine não visa a anular a personalidade jurídica mas somente objetiva desconsiderar no caso concreto dentro de seus limites a pessoa jurídica em relação às pessoas ou bens que atrás dela se escondem É caso de declaração de ineficácia especial da personalidade jurídica para determinados efeitos prosseguindo todavia a mesma incólume para seus outros fins legítimos REQUIÃO 2010 De acordo com o autor a doutrina da desconsideração serve para negar o absolutismo do direito da personalidade jurídica a qual deve ser concedida efeito relativo e não absoluto justamente para evitar que se fechem os olhos ante à utilização da pessoa jurídica para fins 10 Na obra Apariencia y realidade em las sociedades mercantiles el abuso de derecho por medio de la persona jurídica Barcelona Ariel 1958 RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200130 contrários ao direito REQUIÃO 2010 Sobre esta questão cabe trazer a lição de Fábio Konder Comparato no sentido de que há uma vinculação recíproca entre função e forma que a estrutura de qualquer norma ou instituto jurídico deve ser interpretada em vista das funções próprias ou impróprias do conjunto de seus elementos ou disposições e toda função é limitada pela estrutura do conjunto COMPARATO 1983 p 58 Assim a disregard doctrine é um mecanismo contra o abuso de direito ou fraude por parte dos sócios que desviarem a função da pessoa jurídica que integram a utilizarem para prejudicar credores ou em violação à lei não se tratando contudo de uma anulação da personalidade jurídica como um todo mas apenas de sua ineficácia para determinado efeito Rolf Serick fundamentou a desconsideração da personalidade jurídica no abuso de direito adotando uma posição subjetivista ou seja quando por intermédio da pessoa jurídica se burla a lei uma disposição contratual ou se causa um prejuízo a terceiro AGUIAR JUNIOR 2012 Para a teoria subjetiva da desconsideração o pressuposto fundamental é o desvio da personalidade jurídica o qual somente deve subsistir quando usada para os fins aos quais é destinada isto é quando ela não se confunde com os sócios e quando não é utilizada para fins não merecedores de tutela de acordo com o ordenamento jurídico TOMAZETTE 2014 p 247 A teoria subjetiva portanto se liga à função a qual a personalidade jurídica é destinada sendo cabível a desconsideração quando tal finalidade seja desviada seja pela fraude seja pelo abuso de direito Existe também uma teoria objetiva da desconsideração que no Brasil é liderada por Fabio Konder Comparato defendendo que o requisito primordial seria a confusão patrimonial a inexistência de separação clara entre o patrimônio da pessoa jurídica e o patrimônio dos sócios ou administradores COMPARATO FILHO 2005 É possível encontrar na doutrina alertas sobre a necessidade de cautela na verificação de confusão patrimonial a qual para autorizar a desconsideração deve ser de tal ponto ultrajante e escancarada a conduzir a insolvência ficta de um dos entes para a frustração de direito de terceiros pois somente prova cabal da ocorrência de fraude situação em regra não presumível em direito pátrio poderá conduzir o Magistrado à intervenção no patrimônio da sociedade HENRIQUE 2001 p 91 Por esta concepção não será o desvio de finalidade que ensejará a desconsideração da personalidade jurídica mas sim o requisito da confusão patrimonial que é passível de uma verificação objetiva já que o desvio de função ou disfunção resultante sem dúvida no mais das vezes de abuso ou fraude mas que nem RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200131 sempre constitui um ato ilícito COMPARATO FILHO 2005 p 356 dificultando assim a verificação dos requisitos da teoria subjetiva A desconsideração da personalidade jurídica foi inserida na legislação no artigo 50 do Código Civil de 2002 mantendo o fundamento no abuso de direito e seguindo portanto a teoria subjetiva Contudo atendeu a uma orientação objetivista com a inserção de emenda ao dispositivo para prever a desconsideração também aos casos de confusão patrimonial AGUIAR JUNIOR 2012 Desse modo há no ordenamento jurídico pátrio a adoção da disregard doctrine de uma forma mista ainda que inicialmente focada no aspecto subjetivo para se aplicar também o instituto aos casos em que haja confusão entre patrimônios do sócio e da pessoa jurídica requisito próprio da teoria objetiva Necessário ressaltar também que a certos ramos do direito se aplica a chamada teoria menor da desconsideração de forma excepcional na qual basta a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações sem necessidade de demonstração da ocorrência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial11 No ramo do direito de família há ainda uma outra forma de aplicação do instituto de maneira inversa à sua concepção originária através da desconsideração da personalidade jurídica buscandose o alcance dos bens e rendimentos da sociedade e não mais do sócio que desta se utilizou como mero estratagema para ocultação de sua efetiva realidade econômicofinanceira FERREIRA 2014 p 4170 Esta hipótese de inversa aplicação somente se legitima quando a sociedade se tornou mera extensão da pessoa física do sócio como pode acontecer quando um cônjuge transfere maliciosamente os bens do casamento para a empresa da qual é sócio MADALENO 2009 p 80 condicionandose a incidência da desconsideração à verificação de que existem bens do sócio desviados ao patrimônio da pessoa jurídica com o intuito de fraudar terceiro FERREIRA op cit p 4176 Sobre este ponto é necessário que se analise o contexto jurisprudencial brasileiro da aplicação da teoria menor em certos ramos do direito nos quais se entende pela existência de parte vulnerável e que portanto justificase menor standard de comprovação dos 11 Em relações jurídicas desiguais como as relações de trabalho e as relações de consumo vem sendo invocada essa aplicação extremada da desconsideração pela simples frustração do credor Nessa vertente transferese o risco da atividade para os sócios e administradores de modo que eles respondem pelos atos da sociedade independentemente de qualquer intuito fraudulento Em suma em razão do uso indevido da pessoa jurídica sua autonomia patrimonial é ignorada em certas relações jurídicas O STJ já afirmou que a teoria menor da desconsideração acolhida em nosso ordenamento jurídico excepcionalmente no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental TOMAZETTE 2014 p 248 RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200132 requisitos da desconsideração Leonardo Parentoni em tese de doutorado em que realizou uma pesquisa de dados dos julgados dos Tribunais pátrios sobre o tema verificou que incide a teoria menor em 45 do total de casos analisados e que as decisões desse tipo enfatizam principalmente a necessidade de se evitar que o risco decorrente da atividade empresarial seja indevidamente transferido a sujeitos vulneráveis visando punir o empresário que usou da limitação de responsabilidade sem respeitar seus condicionantes ou apenas pela conclusão de que a limitação se respeitada não seria a solução mais eficiente a partir de um juízo de eficiência econômica PARENTONI 2013 p 115 A partir desses resultados é possível afirmar que nas relações jurídicas caracterizadas pela vulnerabilidade de uma das partes ou para assegurar especial tutela a determinados bens jurídicos existe a opção legislativa por impor determinada forma de distribuição de riscos que decorrem da ineficácia da separação patrimonial justificadora da desconsideração assim desrespeitando as escolhas empresariais e assentada em fundamentos econômicos Na prática porém o que constatou a pesquisa empírica foi a utilização de raciocínio econômico simplista para afastar a limitação de responsabilidade por meio da teoria da desconsideração da personalidade jurídica Os pressupostos históricos dessa teoria foram sendo paulatinamente atenuados ou mesmo substituídos pelos conceitos de free rider e externalização ilícita de riscos É recorrente a afirmação de que o risco aspecto econômico decorrente do exercício de atividade empresarial incumbe exclusivamente ao empresário que a exerce não podendo de maneira alguma ser externalizado outro termo econômico em detrimento dos empregados Consequentemente havendo insucesso da empresa ainda que por vias regulares e inevitáveis os sócios devem responder pelas verbas trabalhistas devidas pela sociedade ibid p 108109 Assim é este o histórico da disregard doctrine e sua aplicação no Brasil prevista na legislação para os casos de abuso de direito ou de confusão patrimonial demonstrando a adoção de aspectos das teorias subjetiva e objetiva Apresentouse também seu uso diferenciado em específicos ramos do direito em razão de suas peculiaridades seja através da drástica diminuição de requisitos e imposição do risco do negócio inteiramente ao empresário como no direito ambiental e trabalhista ou de sua aplicação inversa como no direito de família 322 Efeitos da Lei da Liberdade Econômica no instituto da desconsideração da personalidade jurídica RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200133 Em 20 de setembro de 2019 a Medida Provisória nº 8812019 foi convertida na Lei nº 13874 que em seu artigo 1º12 define sua finalidade de ser a Declaração de Direitos de Liberdade econômica com o intuito de proteger a livre iniciativa e o livre exercício de atividade econômica O objetivo deste diploma seria o de diminuir a ingerência estatal na atividade econômica VENOSA 2019 Esta Lei alterou o artigo 50 do Código Civil13 que como mencionado no tópico anterior trata da desconsideração da personalidade jurídica assim como incluiu cinco parágrafos14 ao referido artigo na tentativa de delinear as características que devem ser observadas para a configuração de desvio de finalidade e confusão patrimonial Neste tópico portanto buscaremos verificar quais os reflexos destas alterações trazidas pela Declaração de Direitos de Liberdade Econômica na desconsideração da pessoa jurídica De acordo com Eros Roberto Grau a livre iniciativa não é tomada enquanto fundamento da República Federativa do Brasil como expressão individualista mas sim no quanto expressa de socialmente valioso GRAU 2005 p 200 A partir desta concepção podese afirmar que as empresas desempenham importante função social numa determinada sociedade de modo que a livre iniciativa deve voltarse ao desenvolvimento local e nacional de onde tais empresas estejam situadas SANTIAGO MEDEIROS 2017 Concluise que a 12 Art 1º Fica instituída a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica e disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador nos termos do inciso IV do caput do art 1º do parágrafo único do art 170 e do caput do art 174 da Constituição Federal 13 Art 50 Em caso de abuso da personalidade jurídica caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial pode o juiz a requerimento da parte ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo desconsiderála para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso Redação dada pela Lei nº 13874 de 2019 14 1º Para os fins do disposto neste artigo desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza Incluído pela Lei nº 13874 de 2019 2º Entendese por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios caracterizada por Incluído pela Lei nº 13874 de 2019 I cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou viceversa Incluído pela Lei nº 13874 de 2019 II transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações exceto os de valor proporcionalmente insignificante e Incluído pela Lei nº 13874 de 2019 III outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial Incluído pela Lei nº 13874 de 2019 3º O disposto no caput e nos 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica Incluído pela Lei nº 13874 de 2019 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica Incluído pela Lei nº 13874 de 2019 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica Incluído pela Lei nº 13874 de 2019 RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200134 função social é originária da obrigação do Estado de balizar o individualismo em contraponto aos interesses da coletividade os quais deverão ser observados uma vez que há uma ligação entre sociedade e empresa que tem por base o crescimento econômico aliado ao crescimento social SANTIAGO MEDEIROS 2017 p 111 Com isso demonstra se a pertinência do estudo sobre os possíveis impactos do diploma legal em questão vez que este visa a proteção dos direitos de liberdade econômica a partir de delimitação de maiores requisitos ao atingimento do patrimônio individual em razão de dívidas societárias A Lei nº 13874 pode ser compreendida como uma continuação e um aprofundamento do processo que se convencionou chamar de reforma trabalhista brasileira por impactar diretamente nas relações entre capital e trabalho COELHO B CUNHA 2019 p 06 Isto se liga à ideia exposta acima no sentido de que em certas relações dentre elas a de trabalho convencionouse facilitar a desconsideração da personalidade jurídica do empregador em processos envolvendo débitos trabalhistas Silvio de Salvo Venosa ao analisar o dispositivo alterado e seus efeitos concluiu que Deve ser utilizada a desconsideração sempre que a personalidade da pessoa jurídica seja utilizada para fraude Quando a pessoa jurídica age para fugir de suas finalidades para lesar terceiros deve ser desconsiderada isto é deve ser atingido o patrimônio dos sócios ou de terceiros que tenham se valido do estratagema A esse respeito deve ser lembrada a dicção colocada por esta lei no final da redação do ar 50 os bens atingidos pela desconsideração devem alcançar os direta ou indiretamente envolvidos no abuso ou na fraude Essa posição já vinha sendo determinada pela jurisprudência não sem alguma dificuldade A desconsideração deve ser sempre considerada quando a personalidade jurídica sofre desvio de finalidade Note que o 3º acrescentado menciona que a desconsideração também deve ser aplicada aos sócios e administradores da pessoa jurídica a saber quando essas pessoas naturais desviam bens próprios para pessoa jurídica para finalidades fraudatórias Cuidase do que podemos denominar desconsideração inversa da pessoa jurídica 2019 p 04 Pela nova redação do artigo 50 do Código Civil podese interpretar que somente em casos de intenção clara de fraude os sócios poderão ter patrimônio pessoal usado para indenização COELHO B CUNHA op cit p 09 reforçando assim o caráter de unidade do patrimônio de uma pessoa seja ela física ou jurídica que permeia a legislação brasileira desde o Código Civil de 1916 SILVEIRA 2009 Exigese a comprovação de uma culpa específica em fraudar por parte daqueles sócios cujos patrimônios individuais se pretenda atingir o ônus da prova que incumbe a quem alega a fraude fazendo com que o julgador RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200135 somente possa desconsiderar a personalidade jurídica com um contexto probatório mais robusto acerca da fraude e somente em relação àqueles que se beneficiaram dela Tendose em vista que a pessoa jurídica é criação da vontade humana fruto de uma permissão legislativa que interessa ao próprio Estado a sua criação ante as várias finalidades que poderá desenvolver inclusive com vistas ao desenvolvimento econômico e social a nova disposição legislativa portanto estando embasada na ideia de separar de forma inconfundível os patrimônios individual e societário pretende viabilizar com maior facilidade a atividade econômica NAHAS 2020 Verificandose o objetivo de garantir o livre exercício da atividade econômica esta nova redação demonstra a intenção de restringir a intervenção estatal sobre a empresa ao trazer maiores requisitos à desconsideração da personalidade jurídica e ao delimitar as possíveis situações que a ensejariam É possível criticar esta exigência nas demandas trabalhistas por exemplo tendo em vista o caráter protetivo próprio deste ramo do direito e da desigualdade entre empregador e empregado possuindo este último uma maior dificuldade de produção de provas em razão da vulnerabilidade e da hipossuficiência que dele se presumem COELHO B CUNHA 2019 Em que pese ainda seja recente esta Lei não se podendo analisar suas consequências concretas fica evidente o intuito do legislador em exigir maiores elementos para a desconsideração da personalidade jurídica Tal exigência marca mais uma vez a opção da legislação civil pátria pela teoria clássica do patrimônio e com influência positivista FRADERA 2010 prezando pela unidade do patrimônio em decorrência da personalidade assim como pela delineação com maior rigor das hipóteses autorizadoras da desconsideração A exigência de comprovação da fraude e atingimento somente daqueles sócios que se beneficiaram com ela demanda que quem a alega produza prova mais robusta exigência esta que mesmo que dificulte a aplicação da desconsideração pode acabar por trazer decisões judiciais mais justas com a utilização do instituto somente nos casos em que comprovado o desvio de finalidade ou fraude mas sem atingir aqueles sócios que não tenham sido direta ou indiretamente beneficiados por tais condutas Este ônus probatório se mostra importante à primeira vista em razão do histórico jurisprudencial de maior flexibilização dos requisitos da disregard em prol da satisfação de débitos perante terceiros considerados vulneráveis mesmo quando inexistente o abuso de direito ou a confusão patrimonial PARENTONI 2013 RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200136 4 CONCLUSÃO Diante do abordado neste artigo verificase que a personalidade jurídica é um importante instrumento de incentivo à atividade comercial enquanto forma de permitir aos indivíduos que se unam em busca de um fim comum através de uma entidade deles diversa com patrimônio próprio e com eles não se confunde E em relação ao patrimônio evidencia se que o direito brasileiro possui forte inspiração na teoria clássica de Aubry e Rau advinda da França pósrevolução francesa para considerar o patrimônio uma universalidade e um corolário da personalidade Toda pessoa obrigatoriamente possui um patrimônio e apenas um que serve como garantia aos credores ainda que os bens e direitos que componham tal patrimônio se alterem no decorrer do cumprimento da obrigação A sociedade limitada é um tipo societário de ampla utilização tendo em vista sua relativamente simples constituição quando em comparação com a sociedade anônima e a possibilidade de limitação do risco dos sócios ao seu investimento no capital social sendo assim a melhor demonstração da pessoa jurídica enquanto agrupamento de indivíduos para persecução de um objetivo cujos frutos serão divididos entre todos que o compõem Porém apesar de suas inúmeras vantagens não é possível que se aceite a utilização abusiva deste instituto razão pela qual surgiu a disregard doctrine enquanto forma de combater o abuso de direito em relação à pessoa jurídica com sua utilização para fins fraudulentos desvio de sua finalidade ou confusão entre seu patrimônio e o dos sócios A Lei nº 138742019 dentre as diversas alterações que trouxe modificou o artigo 50 do Código Civil o qual traz os pressupostos para a desconsideração da personalidade jurídica A nova legislação buscou determinar critérios mais rígidos para a utilização do instituto assim como delimitar as situações mais comuns que caracterizariam abuso fraude e confusão o que reforça a influência clássica e positivista em nosso Direito prezandose pela unidade patrimonial da pessoa e pela maior delimitação legislativa Exigese agora a demonstração de culpa dos sócios e administradores que se beneficiaram direta ou indiretamente da má utilização da pessoa jurídica sendo apenas em relação a eles que será desconsiderada a separação patrimonial Notase uma evidente intenção de restringir a intervenção estatal no âmbito privado com a exigência de um conjunto probatório mais robusto para que se possa desconsiderar a pessoa jurídica Há grande indicativo de que isto foi pensado especialmente para relações RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200137 trabalhistas nas quais em razão da proteção ao trabalhador geralmente se exigiam menos elementos para a desconsideração da personalidade jurídica Dessa maneira buscouse com a chamada Lei da Liberdade Econômica uma maior proteção à atividade empresarial através da reiteração acerca da independência entre os patrimônios individual e societário com uma tentativa de garantir que o patrimônio pessoal dos sócios permanecerá inatingível pelas obrigações da pessoa jurídica que integrem salvo se devidamente comprovado seu benefício com a utilização fraudulenta da mesma 5 REFERÊNCIAS AGUIAR JÚNIOR Ruy Rosado de A desconsideração da pessoa jurídica na falência In ESTEVEZ André Fernandes JOBIM Marcio Felix Orgs Estudos de direito empresarial homenagem aos 50 anos de docência do Professor Peter Walter Ashton São Paulo Saraiva 2012 p 561574 AMARAL Francisco Direito civil introdução 7 ed rev mod e aum Rio de Janeiro Renovar 2008 ARANGIORUIZ Vicenzo Instituciones de Derecho Romano Buenos Aires Depalma 1986 AUBRY Charles RAU Charles Cours de droit civil français daprès la méthode de Zachariae 4 ed Paris Librarie Générale de Jurisprudence Marchal et Billard 1869 t 2 Cours de droit civil français daprès la méthode de Zachariae 4 ed Paris Librarie Générale de Jurisprudence Marchal et Billard 1873 t 6 BERTOLDI Marcelo M RIBEIRO Marcia Carla Pereira Curso Avançado de Direito Comercial 9 ed São Paulo Editora Revista dos Tribunais 2015 BIONDI Biondo Instituzioni di Diritto Romano Milano Giuffre 1972 BRAY Richard P Review of Aspects Juridiques du Capitalisme Moderne by Georges Ripert The American Journal of Comparative Law sl v 2 n 2 p 262265 1953 CAMPOS Aline França A extensão da responsabilidade dos sócios de sociedade limitada no Código Civil Revista da AJURIS sl v 39 n 120 dez 2012 CASTAN TOBEÑAS Jose Derecho civil español común y foral 9 ed Madrid Instituto Editorial Reus 1955 v 1 t 1 RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200138 COELHO Bruna da Penha de CUNHA Giulia Valente de Lacerda A minirreforma trabalhista uma reflexão crítica de seus possíveis impactos sociais Revista Eletrônica OABRJ Rio de Janeiro v 30 n 2 juldez 2019 COELHO Fábio Ulhôa Curso de direito civil São Paulo Saraiva 2003 v 1 COMPARATO Fábio Konder A reforma da empresa Revista de Direito Mercantil Industrial Econômico e Financeiro RDM São Paulo Malheiros n 50 p 5774 abrjun 1983 SALOMÃO FILHO Calixto O poder de controle na sociedade anônima 4 ed Rio de Janeiro Forense 2005 FACHIN Luiz Edson Estatuto jurídico do patrimônio mínimo 2 ed rev e atual Rio de Janeiro Renovar 2006 FERREIRA Cristiana Sanchez Gomes A desconsideração da personalidade jurídica na partilha de vens conjugais sob o viés da law and economics Revista do Instituto do Direito Brasileiro sl a 3 n 6 p 41674191 2014 FERREIRA Waldemar Sociedade por quotas 5 ed São Paulo Companhia Graphico Editora Monteiro Lobato 1925 FIGUEROA Gonzalo Yáñez Curso de derecho civil materiales para clases activas Santiago Juridica de Chile 1991 FRADERA Vera La traduction française du Code civil brésilien Revue internationale de droit comparé sl v 62 n3 p 773779 2010 FRONTINI Paulo Salvador Responsabilidade civil objetiva Reflexões à luz da distinção entre obrigações de meio e resultado Revista Mestrado em Direito Osasco a 9 n 1 p 79 97 2009 GRAU Eros Roberto A ordem econômica na Constituição Federal de 1988 10 ed Malheiros São Paulo 2005 GROSSI Paolo História da propriedade e outros ensaios Tradução de Luiz Ernani Fritoli e Ricardo Marcelo Fonseca Rio de Janeiro Renovar 2006 HENRIQUE Gustavo Guimarães Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica In MARQUES Jader FARIA Marcelo Coords Desconsideração da Personalidade Jurídica Livraria do Advogado Porto Alegre 2001 HESPANHA Antonio Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 HIRONAKA Giselda Maria Fernandes Novaes Morrer e suceder passado e presente da transmissão sucessória concorrente 2 ed São Paulo Editoria Revista dos Tribunais 2014 RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200139 LEONARDO Rodrigo Xavier Revisitando a teoria da pessoa jurídica na obra de J Lamartine Corrêa de Oliveira Revista da Faculdade de Direito UFPR Curitiba v 46 dez 2007 MADALENO Rolf A desconsideração judicial da pessoa jurídica e da interposta pessoa física no direito de família e no direito das sucessões Rio de Janeiro Forense 2009 MARTINS Fran Curso de direito comercial Atual Carlos Henrique Abrao 40 ed Rio de Janeiro Forense 2017 MARTINS Guilherme Vinseiro A doutrina da entity shielding e da owner shielding e sua aplicabilidade ao Direito Societário brasileiro Revista da Faculdade de Direito da UFRGS Porto Alegre n 34 p 260275 ago 2016 MORI Celso Cintra Pessoa jurídica ficção e realidade In KUYVEN Luiz Fernando Martins Org Temas essenciais de direito empresarial estudos em homenagem a Modesto Carvalhosa São Paulo Saraiva 2012 NAHAS Thereza C Desconsideração da personalidade jurídica no marco da Lei da Liberdade Econômica Notícias CIELO ISSNe 25321226 n 4 2020 PARENTONI Leonardo Netto Reconsideração da personalidade jurídica estudo dogmático sobre a aplicação abusiva da disregard doctrine com análise empírica da jurisprudência brasileira 2013 Tese Doutorado em Direito Comercial Faculdade de Direito Universidade de São Paulo 2013 Disponível em httpstesesuspbrtesesdisponiveis22132tde27082013112343ptbrphp Acesso em 13 jul 2020 PEREIRA Caio Mário da Silva Instituições de direito civil 19 ed Rio de Janeiro Forense 2000 v 1 PONTES DE MIRANDA Francisco Cavalcante Tratado de direito privado 3 ed Rio de Janeiro Borsoi 1970 v 5 RADBRUCH Gustav Filosofia do direito São Paulo Martins Fontes 2004 REQUIÃO Rubens Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica disregard doctrine Doutrinas Essenciais de Direito Civil sl v 3 p 12391261 out 2010 SALAZAR Luis Bustamante El patrimonio dogmatica jurídica Santiago Editorial Jurídica de Chile 1979 SANTIAGO Mariana Ribeiro MEDEIROS Elisângela Aparecida de Função social e solidária da empresa impactos na liberdade econômica versus benefícios no desenvolvimento nacional Revista Jurídica Curitiba v 2 n 47 p 99122 2017 RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200140 SILVEIRA Marco Antonio Karam A sucessão causa mortis na sociedade limitada tutela da empresa dos sócios e de terceiros Porto Alegre Livraria do Advogado Editora 2009 TOMAZETTE Marlon Curso de direito empresarial teoria geral e direito societário 6 ed São Paulo Atlas 2014 v 1 A teoria dos atos ultra vires e o direito brasileiro Revista de Direito sl v 7 n 1 2015 VENOSA Sílvio de Salvo A declaração de direitos de liberdade econômica MP nº 881 e o direito privado Revista Científica da Academia Brasileira de Direito Civil sl v 3 n 1 2019 XAVIER Luciana Pedroso As teorias do patrimônio e o patrimônio de afetação na incorporação imobiliária 2011 178 f Dissertação Mestrado em Direito Universidade Federal do Paraná 2011 Disponível em httpsacervodigitalufprbrbitstreamhandle188429214R2020D20 20LUCIANA20PEDROSO20XAVIERpdfsequence1isAllowedy Acesso em 13 jul 2020 RFD REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UERJ RIO DE JANEIRO N 37 JUN 20200141