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Texto de pré-visualização
UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO UFMA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS CCH PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO EM HISTÓRIA E CONEXÕES ATLÂNTICAS CULTURAS E PODERES MESSIAS ARAUJO CARDOZO Gilberto Freyre e Florestan Fernandes Escravidão democracia racial e integração do negro no Brasil SÃO LUÍS MA 2020 MESSIAS ARAUJO CARDOZO Gilberto Freyre e Florestan Fernandes Escravidão democracia racial e integração do negro no Brasil Dissertação de Mestrado em História apresentada por Messias Araujo Cardozo ao Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Maranhão CCHUFMA como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em História Orientador Dr Marcus Baccega Linha de Pesquisa Cultura e Identidades SÃO LUÍS MA 2020 Ficha gerada por meio do SIGAABiblioteca com dados fornecidos peloa autora Núcleo Integrado de BibliotecasUFMA ARAUJO CARDOZO MESSIAS Gilberto Freyre e Florestan Fernandes Escravidão democracia racial e integração do negro no Brasil MESSIAS ARAUJO CARDOZO 2020 158 f Orientadora MARCUS VINICIUS DE ABREU BACCEGA Dissertação Mestrado Programa de Pósgraduação em Históriacch Universidade Federal do Maranhão SÃO LUÍS 2020 1 DEMOCRACIA RACIAL 2 ESCRAVIDÃO 3 INTEGRAÇÃO DO NEGRO NO BRASIL I DE ABREU BACCEGA MARCUS VINICIUS II Título MESSIAS ARAUJO CARDOZO Gilberto Freyre e Florestan Fernandes Escravidão democracia racial e integração do negro no Brasil Dissertação de Mestrado em História apresentada ao Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Maranhão CCHUFMA como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em História Aprovada em 13032020 Banca Examinadora Professor Dr Marcus Baccega UFMA Orientador Professor Dr Jonas Henrique de Oliveira UESPI Examinador Externo Professor Dr Victor Coelho UFMA Examinador Interno Professor Dr Lyndon Araujo UFMA Examinador Interno À minha mãe Maria Araujo Cardozo Agradecimentos Aos meus familiares que sempre estiveram comigo me ajudando em todos os sentidos em meus projetos Em especial a minha mãe à quem dedico este trabalho Ao meu orientador prof Dr Marcus Baccega pela orientação paciente e pela extrema competência e sensibilidade sabendo como mestre que é exigir e encorajar nos momentos certos Aos meus amigos Diêgo Stéfano Eriton Luís Lucas Gomes Edgleison Souza Eduardo Neto e em especial a minha companheira Maria Miranda pela paciência e amor durante esta caminhada Em especial agradeço a Heitor Câmara pela providencial ajuda ao ceder a casa em que reside em São Luís para a minha estadia tanto no período da seleção como do curso dos créditos assim como em outras ocasiões em que estive em São Luís Obrigado é pouco Ainda nesse sentido agradeço ao senhor Jan pela acolhida em sua casa ao camarada João e a todos que fizeram sentirme em casa Aos companheiros e amigos do mestrado sobretudo Joabe Rocha pela parceria intelectual e trocas de ideias a Silvan Mendes pela inestimável ajuda e paciência sobretudo no quesito transporte público e em geral aos meus companheiros de turma que com o alto nível de discussão me mantiveram em um ambiente fértil e estimulante em termos intelectuais foram providenciais Aos professores da Graduação em História da UESPI e do Mestrado em História da UFMA que tiveram todos singular influência na minha trajetória acadêmica A CAPES pelo apoio financeiro na forma de bolsa de estudos essencial para o custeio de uma pesquisa acadêmica Os homens fazem a sua própria história contudo não a fazem de livre e espontânea vontade pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram Karl Marx 1852 RESUMO Considerando os discursos sociológicos de Gilberto Freyre e Florestan Fernandes objetivase compreender como os autores respectivamente nos anos 1930 e 195060 analisaram temas como Escravidão negra miscigenaçãodemocracia racial e a não integração do negro no Brasil Para tanto procedemos com uma leitura histórica de nossas fontes principais que são as obras Casagrande Senzala 1933 e A Integração do negro na sociedade de classes 1964 cruzando com outras obras Desse modo o trabalho investigou aqueles dois tipos de produção intelectual buscando realizar uma história social das ideias Isso nos permite concluir que para além de interpretações bem contrastantes sobre escravidão democracia racial e integração do negro os autores em questão tinham visões a partir de lugares de produção bem distintos o que desembocava também projetos de Brasil opostos PALAVRASCHAVE Escravidão Democracia racial Integração do Negro ABSTRACT Considering the sociological discourses of Gilberto Freyre and Florestan Fernandes the objective is to understand how the authors respectively in the 1930s and 1950 60s analyzed themes such as Black slavery racial miscegenation democracy and the nonintegration of blacks in Brazil To this end we proceeded with a historical reading of our main sources which are the works Casagrande Senzala 1933 and The Integration of the Negro in the Class Society 1964 crossing with other works In this way the work investigated those two types of intellectual production seeking to realize a social history of ideas This allows us to conclude that in addition to very contrasting interpretations of slavery racial democracy and the integration of blacks the authors in question had visions from very different places of production which also led to opposite Brazilian projects KEYWORDS Slavery Racial democracy Negro integration LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CGS CasaGrande Senzala 1933 SM Sobrados Mucambos 1936 OP Ordem Progresso 1959 NMT Novo Mundo nos Trópicos 1971 BNSP Brancos e Negros em São Paulo 1955 AINSC A Integração do Negro na Sociedade de Classes 1964 ONMB O Negro no Mundo dos Brancos 1972 SUMÁRIO INTRODUÇÃO11 CAPÍTULO I A ESCRAVIDÃO NEGRA NA PERSPECTIVA DE GILBERTO FREYRE E FLORESTAN FERNANDES20 11 O mestre de Apipucos22 12 A benignidade patriarcal e sua decadência30 13 O cientista revolucionário53 14 O pragmatismo econômico e a reiteração da violência59 CAPÍTULO II DEMOCRACIA RACIAL MISCIGENAÇÃO79 21 O problema da mistura de raças80 22 Freyre Democracia racial miscigenação88 23 O sentido conservador da narrativa freyriana sobre as relações raciais110 CAPÍTULO III RAÇA E CLASSE A NÃO INTEGRAÇÃO DO NEGRO NO BRASIL116 31 Florestan A falácia da democracia racial117 32 Além da pobreza negra Os dilemas do negro pósAbolição125 33 O sentido radical da reflexão de Florestan sobre as relações raciais136 CONSIDERAÇÕES FINAIS143 REFERÊNCIAS147 11 INTRODUÇÃO O discurso sociológico brasileiro no século XX tem dois nomes de grande importância intelectual Referimonos aqui a Gilberto Freyre 19001987 e Florestan Fernandes 19201995 Dois intelectuais de renome que operaram grandes análises sobre temas variados da história do Brasil Dentre essas análises amplas e complexas destacamos apenas três dimensões das obras de Gilberto e de Florestan escravidão negra democracia racial e a não integração do negro no Brasil feitas respectivamente sobretudo nas décadas de 1930 e 195060 Uma história social das ideias que pretendemos fazer partirá da problematização sobre essas duas interpretações que em nossa análise buscaram instituir duas representações sobre nossa história e identidade como povo Como os temas da escravidão negra da democracia racial e da integração do negro no Brasil apareceram no discurso de Freyre e Florestan Está é a problematização que organiza esta pesquisa Na perspectiva de tal problemática apontamos certos recortes visando respondêla Como Gilberto Freyre nos anos 1930 a partir de sua obra Casa Grande Senzala 1933 instituiu uma representação harmônica entre brancos e negros durante a escravidão por meio do patriarcado E como a unidade discursiva da sociologia crítica de Florestan Fernandes nos anos 195060 se contrapôs à visão freyriana que ensejava a ideia embuste da democracia racial em sua obra A Integração do Negro na Sociedade de Classes 1965 As justificativas que podem ser aventadas para a pesquisa realizada são de três tipos A primeira é a justificação acadêmica devido à nossa abordagem que enfatiza as três dimensões já citadas das obras dos autores que em nossa perspectiva se situam no campo de uma história social das ideias e que se difere de outros estudos já realizados sobre os autores1 o que nos dá base para defender certa abordagem senão original ao menos bastante diferente para a execução da pesquisa 1 Tais como COSTA Diogo Valença de Azevedo Florestan Fernandes em questão Um estudo sobre as interpretações de sua sociologia Dissertação Mestrado em Sociologia RecifePE Universidade Federal de Pernambuco UFPE 2004 139 f GALVÃO Cristina Carrijo A escravidão compartilhada Os relatos de viajantes e os intérpretes da sociedade brasileira Dissertação Mestrado em História CampinasSP Universidade Estadual de Campinas UNICAMP 2001 249 f MESQUITA Gustavo Rodrigues Florestan Fernandes e o antirracismo nos Estados Unidos e no Brasil 19411964 Tese Doutorado em História São PauloSP Universidade de São Paulo USP 2017 182 f MOTTA Daniele Cordeiro Desvendando mitos As relações entre raça e classe na obra de Florestan Fernandes Dissertação Mestrado em Sociologia CampinasSP Universidade Estadual de Campinas 12 A segunda é a justificação de ordem mais pessoal e aqui cabe uma pequena digressão Quando da nossa participação durante os anos de 2014 a 2016 no Programa de Bolsa de Iniciação à Docência PIBIDCAPES da UESPI cuja temática era a Lei 10 639 que versa sobre questões da obrigatoriedade do ensino de história afrobrasileira e indígena foinos dada a tarefa pessoal dentre outras atividades de leitura de dois textos a saber Casagrande senzala e A integração do negro na sociedade de classes como propostas de leituras antagônicas sobre a escravidão negra A partir daí um interesse em aprofundar as leituras sobre as obras de Gilberto Freyre e Florestan Fernandes aumentou e pudemos perceber uma possibilidade de objeto de pesquisa para um estudo em nível de mestrado estudo este que fosse de historiografia inserindose no campo de uma história social das ideias A terceira forma de justificar nosso projeto e a confecção da dissertação é a relevância social no sentido de que com o nosso trabalho leitores interessados em temáticas como a escravidão negra a mestiçagem a ideologia da democracia racial e suas ressonâncias em políticas sociais ao longo do tempo e a não integração do negro na sociedade de classes possam aprofundar os conhecimentos sobre essas questões no sentido de ter uma melhor senão melhor ao menos com uma base mais sólida no nosso caso historiográfica percepção desses temas em suas atuações em movimentos sociais o que indica uma perspectiva de o trabalho ter uma significância prática condizente com nossa visão de que a história mesmo enquanto texto pode ou deve ter ou vislumbrar uma ressonância no tecido social em que o historiador escreve e atua como observador das ações humanas no tempo Ainda apontamos como justificativa para a realização de uma pesquisa desta natureza a sua relevância para os estudos em torno da história da sociologia brasileira em geral e em particular para os estudos nos autores citados e principalmente em torno de questões históricas sobre as relações de trabalho no escravismo brasileiro os conflitos étnicos entre brancos e negros neste caso e a miscigenação racial que foi largamente tematizada no século XX ensejando explicações das mais diversas vindas de várias matrizes de pensamento sobretudo a antropologia e a sociologia o que justifica uma análise e uma historiografia que pense criticamente estas questões UNICAMP 2012 140 f que não abordam de forma comparada e com mais vagar dessas três abordagens que nos propomos com a realização do nosso trabalho embora evidentemente não deixamos de nos valer das ideias contidas nesses trabalhos 13 Nosso objetivo também é apontar como o tema da democracia racial tem em Gilberto Freyre e sua interpretação da miscigenação racial um ponto de apoio científico e ideológico e como a sua compreensão feita em Casagrande senzala e Sobrados mucambos da problemática da mistura das raças no Brasil rompeu com a noção da mestiçagem feita por intelectuais como Euclides da Cunha Sílvio Romero Nina Rodrigues e Oliveira Viana Temos também a intenção de entender a crítica de Florestan à ideologia da democracia racial que se depreende da leitura das obras de Freyre Ainda buscamos apontar a forma de interpretação de Florestan sobre a não integração do negro no Brasil feita principalmente em A integração do negro na sociedade de classes 1964 como um contraponto da análise anterior de Freyre ressaltando seu lugar de produção e a maneira pela qual com sua reflexão ocorre uma mudança significativa de paradigma de interpretação sobre os dilemas do negro na sociedade brasileira Temos como base teórica a concepção de que história é um tipo de conhecimento cientificamente conduzido FEBVRE 1989 p 30 apesar do tempo das incertezas2 e crise epistemológica do conhecimento histórico Nesse sentido iremos apontar alguns dos aspectos discutíveis da obra freyriana em que se destacam por exemplo segundo CARDOSO 2003 p 25 as suas confusões entre raça e cultura seu ecletismo metodológico o quase embuste do mito da democracia racial a ausência de conflitos de classe São também salientados por outros autores ARAÚJO 1994 DAMATTA 1987 MOTA 1978 as linhas gerais para o que pensamos de seu ensaio de sociologia genética e de história social FREYRE 2003 1933 p 59 Seu texto para nós apresentou nos anos 1930 uma escrita da história produzida em torno de uma unidade discursiva que buscava articular o passado e o presente num todo em que a continuidade sobretudo do patriarcado escravista era 2 Que é um dos diagnósticos geralmente inquietos feitos sobre a história nos últimos anos CHARTIER 1994 p 1 apesar disso Chartier ainda neste texto argumenta que a história pertence às ciências sociais CHARTIER 1994 p 6 O historiador Keith Jenkins aponta ainda que a história é o que os historiadores fazem JEINKINS 2009 p 51 é justamente esta feitura que a pesquisa irá investigar a partir de nossa problematização 14 desejável saudosismo daquele Brasil Colonial quase sem conflitos3 com nossa identidade calcada na mestiçagem e tropicalidade ALBUQUERQUE JÚNIOR 2011 p 111 Como nossa pesquisa é no campo da história e não da sociologia a diferença básica aqui reside na questão da temporalidade afinal é ela que singulariza a historiografia pois o historiador não sai jamais do tempo da história BRAUDEL 1978 p 1084 Seu trabalho sociológico visava em nossa análise denunciar como com a abolição da escravatura a perda da harmonia entre brancos e negros dos tempos patriarcais se extinguira FREYRE 2003 1933 p 51 tecendo uma unidade discursiva em que a escravidão negra é entendida como relação social afetiva em cuja pessoalidade enquanto código identitário nacional historicamente constituído deu o tom das relações entre brancos e negros que trabalhavam sempre cantando FREYRE 2003 1933 p 551 e viviam numa harmonia de contrários sem confronto e síntese Isso não poderia passar em branco ou sem críticas à medida em que a sociologia no Brasil se desenvolvia principalmente com os primeiros estudos realizados pela equipe de pesquisadores da Universidade de São Paulo nos anos 1950 Sobre isto José Carlos Reis apontou que O pensamento social marxista brasileiro vai se opor vigorosamente a Freyre por esta razão F Fernandes e sua equipe de pesquisadores que produziram nos anos 196070 pensarão o Brasil com os conceitos de classe social e luta de classes e vão se opor à visão idílica do Brasil Colonial produzida por Freyre REIS 2006 p 50 Esta escrita da história de Freyre foi frontalmente contraposta nos anos 19605 por Florestan que é o fundador da sociologia crítica no Brasil em que A partir dessa 3 Afinal bem no término de Casa Grande Freyre aponta que Mas não foi toda de alegria a vida dos negros escravos dos ioiôs e das iaiás brancas FREYRE 2003 p 552 Alegria esta que para o autor encheu a casa grande e foi integrante da vida sexual e doméstica do Brasil Colonial 4 É basilar a distinção para nós realizada por Fernand Braudel neste texto principalmente no capítulo História e Sociologia In BRAUDEL Ferdinand Escritos sobre história Ed São Paulo Perspectiva 1978 p 91114 5 A pesquisa da UNESCO foi feita em diversos estados do Brasil com a participação de diversos intelectuais em cada região Roger Bastide era o responsável pela pesquisa em São Paulo A publicação de Roger Bastide e Florestan Fernandes Negros e brancos em São Paulo teve uma edição prévia na Revista Anhembi 1953 O texto foi publicado em 1955 pela Editora Anhembi MOTTA 2012 p 15 15 interpretação a tese da cordialidade das relações raciais da democracia racial revelase ficção ideológica IANNI 2008 p 15 25 Ou seja a sociologia crítica dos anos 1960 se põe como um discurso diferente antagônico e é esta mudança que o estudo se propõe a analisar lançando uma interpretação distante da sociologia cultural dos anos 1930 que analisou a escravidão e os conflitos étnicos com base na harmonização dos contrários Para pensarmos estas questões nossa pesquisa terá como conceitos básicos para tornar a investigação exequível o conceito de lugar de produção na acepção do historiador francês Michel de Certeau Consoante o mesmo Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção sócioeconômico político e cultural Implica um meio de elaboração que circunscrito por determinações próprias uma profissão liberal um posto de observação ou de ensino uma categoria de letrados etc CERTEAU 1982 p 66 Outro conceitochave para operacionalização da pesquisa proposta é o de discurso apreendido a partir de Michel Foucault em que o mesmo não seria apenas um esforço de interpretação mas em si objeto de disputa isto a história não cessa de nos ensinar o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação mais aquilo por que pelo que se luta o poder pelo qual nos queremos apoderar FOUCAULT 1996 p10 Outros conceitos do autor como unidade do discurso e formação discursiva foram também apropriados em nossa dissertação FOUCAULT 2017 p 2348 Em termos metodológicos propomos uma leitura histórica do discurso sociológico indicando a forma de análise as principais bases teóricas e sobretudo lendoas como fontes históricas como construções historiográficas que instituíram formas de se pensar o processo histórico brasileiro dentro de certo contexto de certa metodologia de trabalho própria desta sociologia histórica dos dois autores em questão e como elas lançam teses sobre a escravidão e sobre as relações raciais e os conflitos étnicos entre brancos e negros no trabalho e no âmbito doméstico 16 Nossa metodologia será uma leitura histórica destas obras por nós apropriadas e transformadas como fontes6 situandoas em seus respectivos lugares de produção e contexto sociocultural no caso os anos 1930 para a obra freyreana e os anos 1960 para a obra de Florestan com suas demandas políticas e intelectuais diversas os problemas e dilemas sociais em questão que fomentaram ou não estes estudos dos autores mediante certa congruência com sua realidade brasileira em questão Quando pensamos a noção de documento em história e neste caso nossa investigação proposta pensa as obras como fonte e como apoio bibliográfico apreendemos que a história mudou sua posição acerca do documento ela considera como sua tarefa primordial não interpretálo não determinar se diz a verdade nem qual é seu valor expressivo mas sim trabalhálo no interior e elaborálo ela o organiza recorta distribuiu ordena e reparte em níveis estabelece séries distingue o que é pertinente do que não é identifica elementos define unidades descreve relações FOUCAULT 2008 p 7 Neste sentido e como raça e mestiçagem no Brasil nunca foram apreendidos de forma neutra SCHWARCZ 2010 buscaremos no transcorrer da pesquisa analisar como a partir de nossas fontes o discurso sociológico culturalista de Freyre e a sociologia crítica de Florestan buscaram construir uma escrita da história do Brasil em que a escravidão e os conflitos étnicos entre brancos e negros são analisados de formas distintas quando não antagônicas nos anos trinta e sessenta respectivamente investigando motivações políticas intelectuais e afins no sentido de trabalhar historicamente como os autores em questão produziram discursos sobre o nosso processo histórico Quando pensamos na noção de fonte histórica temos a apreensão de que é fonte tudo que transmite informações sobre uma data temporalidade uma dada sociedade e os textos como produções humanas imbricadas de vontades e produtoras de representações são obviamente material passível de análise do historiador E neste caso a obra de Freyre e de Florestan representam dois modos de análise sobre a identidade nacional e a própria cultura brasileira por meio do estudo 6 Afinal é o historiador ao mergulhar no passado que transforma seus vestígios no nosso caso as obras de Freyre e Florestan em fontes conforme Koselleck KOSELLECK 2006 p 305 17 da história em que o primeiro autor em nossa leitura preliminar identificou a singularidade de nossa identidade numa relação harmoniosa entre brancos e negros e o segundo analisou esta relação sob a ótica do conflito e da imposição da cultura do branco Em relação ao campo da história em que nossa pesquisa se insere a história intelectual buscando produzir uma história social das ideias algumas considerações devem ser feitas Em primeiro lugar inexiste uma forma única de fazer história intelectual7 senão múltiplas formas que se diferem da antiga história das ideias feita por filósofos que geralmente isolavam a ideia do autor do contexto histórico em que ela emergia Em segundo lugar essa forma de história intelectual ao não historicizar o objeto consequentemente não refletia sobre os usos políticos e sociais dessas ideias e nem pensava nos veículos de comunicação e circulação das mesmas8 A nossa pesquisa se insere no campo de forma diferente buscando sair dessa história antiga das ideias e se inserir no campo da história intelectual9 em que a história social das ideias é possível buscando compreender os temas da escravidão negra da democracia racial e da integração do negro no Brasil a partir da forma particular e no respectivo tempo histórico lugar de produção CERTEAU 1982 e horizonte intelectual dos dois autores em questão para assim procedendo interpretar como essas problemáticas operaram nas obras deles e como articularam suas narrativas10 7 A História intelectual como se sabe é praticada de muitas maneiras e não possui em seu âmbito uma linguagem teórica ou modos de proceder que funcionem como modelos obrigatórios nem para analisar nem para interpretar seus objetos nem tampouco para definir sem referência a uma problemática a quais objetos conceder primazia ALTAMIRO 2007 p 9 8 Podese dizer que a história intelectual ou história das idéias sic feita no Brasil resumiase até muito recentemente a dois tipos de abordagem O primeiro de longa tradição aproximavase da prática usada na filosofia de expor o pensamento de cada pensador isoladamente Era uma história centrada no pensador cujas idéias sic supunhase possível interpretar com exatidão Os autores com preocupação histórica acrescentavam à reprodução das idéias sic algum esforço no sentido de situar o pensador em seu contexto social A vinculação entre idéia sic e contexto era mais ou menos estreita de acordo com a convicção metodológica de cada autor CARVALHO sd p 123 9 Conforme DOSSE François De lhistorie des idees a lhistorie intelectualle Mímesis Bauru v 24 n 2 2003 P 1328 10 Para uma visão sobre o campo da história intelectual ver ainda ZANOTTO Gizele História dos intelectuais e história intelectual contribuições da historiografia francesa Biblos Rio Grande 22 1 2008 p 3145 SILVA Ricardo História Intelectual e Teoria Política Rev Sociol Polit Curitiba v 17 n 34 2009 p 301310 WASSERMAN Claudia História Intelectual Origem e abordagens Tempos Históricos v 19 2015 P 6379 ARMITAGE David A virada internacional na História Intelectual Intelligere Revista de História Intelectual v 1 n 1 2015 p 115 18 Organizamos a pesquisa da seguinte forma No primeiro capítulo apresentamos as visões de Gilberto Freyre e de Florestan Fernandes sobre a escravidão negra no Brasil Para o primeiro uma escravidão benigna teria sido o fator diferencial do sistema escravista brasileiro principalmente se compararmos a escravidão negra no Brasil com a praticada no sul dos Estados Unidos O elemento patriarcal teria sido fundamental para consolidar essa harmonia entre brancos senhores e negros escravizados e a família extensa sob o jugo do patriarca senhor de engenho engendrou essa relação entre senhorescravo dotandoa de benignidade tal que com a sua decadência os movimentos de insurreição e a desintegração da harmonia foram se acentuando de forma a desequilibrar a harmonia dos contrários Para o segundo numa visão que categorizamos na dissertação como pragmática no sentido econômico e que reiterava a violência o fenômeno histórico da escravidão nada tinha de tão místico assim pois o mundo da escravidão que o português e o colono criaram era na perspectiva de Florestan violento perverso segregador e o elemento econômico do sistema foi enfatizado mais que elementos culturais como a família extensa Sobre isso para o autor não poderia existir uma família escrava e a discriminação racial imperava na família dos brancos da casa grande No segundo capítulo realizamos uma breve regressão temporal e analisamos alguns autores do final do século XIX e como eles pensaram o Brasil como um país condenado a não se tornar uma civilização por causa da miscigenação Superando essa visão pessimista e com uma retórica baseada no culturalismo antropológico de Franz Boas Freyre nos anos 1930 através de suas obras se opôs a essa visão e enfatizou as contribuições tanto do elemento indígena como do africano na formação da identidade brasileira Ainda nesse segundo capítulo apontamos como a unidade discursiva da obra freyriana conjuntamente com sua visão positiva da miscigenação engendrou uma representação de harmonização racial que em nossa perspectiva e embasados em bibliografia fundamentou a noção de democracia racial parte também fundamental da ideologia da identidade brasileira Ainda neste capítulo apresentamos nossa interpretação sobre a visão de Freyre em relação à questão racial e às implicações disso principalmente no que concernem as ideias de Brasil como paraíso racial 19 No terceiro e último capítulo iniciamos justamente com a crítica da ideologia da democracia racial de Florestan Fernandes Neste capítulo nos concentramos na sua análise da nãointegração do negro no Brasil que para o autor a compreensão do dilema do negro pósAbolição deveria ir necessariamente além da pobreza negra ou seja as formas de desajustamento estrutural o estado de anomia e as formas de subalternização racial e ato contínuo a concentração racial de renda prestígio e poder indicavam que o problema não era apenas material e econômico Acreditamos que com este trabalho contribuímos para a história intelectual brasileira com um estudo sobre dois personagens das ciências sociais do país que em muitas análises assumiram cada um a seu modo os papéis de historiadores sociais do Brasil no século XX Ao apresentarmos nossos resultados ao leitor esperamos que fique claro que como se trata de um trabalho historiográfico nossa intenção não foi julgar e sim compreender as ideias dos autores expostas em textos e entrevistas que nós transformamos em fontes históricas E nesse esforço de compreensão o leitor poderá na verdade deve ir às fontes e contestar nossa leitura que não buscou ser a última palavra mas apenas mais uma leitura nesse esforço de fazer uma história social das ideias no Brasil 20 CAPÍTULO I A ESCRAVIDÃO NEGRA NA PERSPECTIVA DE GILBERTO FREYRE E FLORESTAN FERNANDES A escravidão negra praticada pelos portugueses e colonos no Brasil foi a experiência histórica de longa duração das mais sangrentas e dramáticas para os escravizados africanos com motivações essencialmente econômicas e com reflexos culturais que pesam na história nacional até o presente11 O que se praticou aqui foi uma brutal e violenta forma de cativeiro das peças da África termo usado pelos traficantes e compradores de escravos para a obtenção de lucro nas atividades produtivas ou empresa colonial lusitana no sistema casagrandesenzala nos engenhos de açúcar que foi a principal atividade viabilizada pela metrópole portuguesa e seus colonos durante os séculos XVI XVII e XVIII12 Nas relações sociais que se estabeleceram durante esse processo o intercurso sexual entre senhores e escravizados viabilizou a forma de existência coletiva nesse cenário O trabalho escravo foi a base real sobre a qual repousava toda uma série de formas sociais e culturais secundárias condicionadas podemos compreender pelo sistema de manutenção da escravidão de grande parte da população13 Como exemplo podese indicar as relações de foro íntimo que engendraram a chamada família extensa e patriarcal que tinha sua solidez e teve o seu processamento mediante a coerção física do negro africano escravizado que foi arrancado14 de suas terras e transportado para o Brasil em condições subhumanas para os critérios de hoje Acreditamos que não se pode compreender a história brasileira sem buscar entender que a escravidão foi a base social da maior parte do processo histórico brasileiro As influências ou os resíduos históricos do sistema escravista estão presentes na sociedade e foram uma constante na vida nacional desde por exemplo 11 O mundo que a escravidão criou In SOUZA Jessé A elite do atraso da escravidão à Lava Jato Ed Rio de Janeiro Leya 2017 p 3641 12 JÚNIOR Caio Prado História Econômica do Brasil Ed 46ª reimpressão São Paulo Brasiliense 2004 13 E população é uma abstração quando não se tem em conta por exemplo as classes que a compõem não falamos de classes sociais aqui MARX 2008 p 202 14 Sobre a forma de transporte dos escravos africanos por meio dos navios negreiros para a colônia portuguesa no Brasil ver ALENCASTRO Luiz Felipe de O trato dos viventes formação do Brasil no Atlântico Sul Ed São Paulo Companhia das Letras 2000 E PINSKY Jaime A escravidão no Brasil 21 ed São Paulo Contexto 2018 21 as discussões mais pretéritas sobre a imigração europeia no final do século XIX e início do século XX na ideia de branqueamento da raça até as mais contemporâneas como as cotas raciais para o ingresso em universidades e concursos públicos Desse ponto de vista o historiador brasileiro tem na escravidão uma base analítica de considerável importância para dentre outras coisas compreender toda uma série de arcaísmos e dilemas sociais tais como o preconceito racial e a violência policial que recai majoritariamente sobre os mais escuros Neste capítulo compreendemos em seus respectivos lugares e tempo de produção duas formas de análise da escravidão efetuadas no século passado em temporalidades distintas buscando ao término identificar as diferenças e ainda quando possível fazer uma análise comparativa As duas análises em questão foram respectivamente efetuadas por duas personalidades de peso e renome das ciências sociais no Brasil Gilberto Freyre e Florestan Fernandes Do primeiro iremos analisar basicamente a sua produção nas décadas de 1920 e 1930 com incursões em textos para além desse tempo específico mas que tem sua base nessa temporalidade Do segundo iremos analisar os seus textos produzidos nos anos 1950 e 1960 igualmente com incursões em textos para além desse período mencionado As obras consideradas nossas fontes mais evidentes e importantes são Casa grande senzala e Sobrados mucambos ambos textos de Freyre de 1933 e 1936 respectivamente em suas primeiras edições Antes disso iremos analisar o texto de 1922 de Freyre obra que é o gérmen dessa produção dos anos 1930 fruto da experiência intelectual do autor nos Estados Unidos Os livros Brancos e negros em São Paulo e A integração do negro na sociedade de classes ambos de Florestan o primeiro em coautoria com Roger Bastide15 publicados em 1955 e 1965 respectivamente Dentre as múltiplas possibilidades consideradas de unidades do discurso optamos por duas formas de ler o processo de escravidão negra As mesmas foram escolhidas para objeto de estudo por considerarmos que são emblemáticas e sobretudo opostas porém igualmente complementares em certa medida Não é nosso objetivo contrapor ou identificar as obras ideias e conceitos norteadores dos 15 Intelectual francês e professor de Florestan na Universidade de São Paulo entre as décadas de 1930 e 1950 Iremos falar de forma mais detalhada dele mais adiante no trabalho 22 autores no tempo considerado na perspectiva de estabelecer algum tipo de assimetria qualificando ou desqualificando a primeira sobre a segunda ou viceversa Assim buscamos apenas perceber a mudança da análise da escravidão no discurso sociológico entre os anos 1930 e 195060 visto que dentre outras coisas o historiador deve estar atento às permanências e às rupturas E no campo da história social das ideias essas duas análises da escravidão de Freyre e Florestan são um exemplo típico demonstrando aquilo que a história intelectual crítica busca evidenciar ALBIERI 2015 que as ideias não se mostram em um contínum linear evolutivo mas que as experiências intelectuais devem ser compreendidas pelo historiador em sua dinâmica própria Essa foi a nossa intenção ao redigir o capítulo 11 O mestre de Apipucos Sou um defensor do anarquismo construtivo16 O trecho acima é revelador e diz muito de uma personalidade criativa paradoxal com laivos de gênio e com efeito do verdadeiro criador no sentido da pesquisa e do pensamento sobre o Brasil Tratase do pernambucano Gilberto Freyre Escritor brasileiro sem dúvida um dos mais conhecidos e pesquisados em termos de conhecimento nas áreas da antropologia da sociologia e da história com seus livros traduzidos em vários idiomas com suas ideias e suas formas de análise social lidas criticadas e interpretadas pelos mais proeminentes intelectuais de sua época Premiadíssimo convidado pelas maiores universidades do mundo ocidental para conferências e para cargos efetivos recusando maciçamente a todos a presente nota biográfica se circunscreve apenas no âmbito de sua produção intelectual com poucas incursões em sua vida privada levando em consideração no máximo alguns breves comentários sobre suas ambiguidades no terreno da vida pública e política centrandose mesmo na contextualização de sua vasta obra fonte para diversas leituras por parte de um historiador sendo a nossa apenas uma delas 16 O Mito Gilberto Freyre Autobiografia In BASTOS Elide Rugai As criaturas de Prometeu Gilberto Freyre e a formação da sociedade brasileira Ed São Paulo Global 2006 p 33 23 Gilberto Freyre é um dos grandes pensadores do Brasil no século XX personalidade pela qual uma história intelectual ou antes uma história social das ideias que se debruça sobre a matéria dos discursos sobre a história do Brasil não pode deixar de se deter Famoso por escrever Casagrande senzala 1933 por ter sido ativo na exaltação do negro como civilizador do português plástico e sem consciência de raça por intervenções na imprensa por conferências e palestras no exterior pelo reconhecimento quase imediato como grande antropólogo sociólogo e historiador pela participação no movimento regionalista pelas ideias discutíveis sobre escravidão e patriarcalismo enfim os textos de Gilberto Freyre o mestre de Apipucos não são apenas fonte mas verdadeira inspiração para o historiador Nesta breve nota iremos visualizar fatos e situações que se projetaram na trajetória de um pensador nada convencional por isso mesmo importante e destacado na história das ideias Dentre as várias biografias escritas sobre Gilberto Freyre levaremos em consideração aqui a redigida por Vamireh Chacon17 que já é clássica Sua biografia intelectual apesar do autor confessar a dose de catarse autoanalítica CHACON 1993 p 13 se coaduna bem com o propósito da presente nota biográfica sobretudo pelo seu maior enfoque na produção intelectual historicizando a vasta obra de Freyre situada por Chacon no tempo e no espaço do que em pormenores alheios ao que tanto para o autor como para nós aqui é o mais significativo que é a imensa e controversa obra do mestre de Apipucos Gilberto de Mello Freyre nasceu em 15 de Março de 1900 na cidade do Recife estado de Pernambuco sendo filho de Francisca Teixeira de Mello Freyre e Alfredo Alves da Silva Freyre Este último era professor catedrático de economia política da tradicional Faculdade de Direito de Recife18 Apesar de ser filho de um intelectual acadêmico paradoxal e estranhamente até quase os nove anos o menino Gilberto não sabia ler Sendo notado mais pelo apego aos desenhos do que por outra atividade com certa dose de preocupação especialmente da parte da avó que o julgava com algum nível de retardo pela sua família preocupando o seu pai que teve que buscar alternativas para isso 17 CHACON Vamireh Gilberto Freyre Uma biografia intelectual Ed Recife FNDAJ Massangana Editora Nacional 1993 18 Sobre o seu pai Gilberto apontou Meu pai não era medíocre Alguma inteligência alguma cultura bom conhecimento de latim e excelente Português das línguas e das literaturas Tudo nele no seu saber como na sua conduta correto BASTOS 2006 p 23 24 Eu sou um menino que custou muito a aprender a ler inquietando minha família bastante que diante de um menino que aos oito anos se recusava a ler e a escrever tinha motivos para julgar como minha avó que morreu convencida de que eu era um subnormal BASTOS 2006 p 21 itálico da autora Coube a um inglês Mr Williams19 que elogiou seus desenhos a tarefa de preceptor que conseguiu lograr o êxito de alfabetizar em língua inglesa o menino Gilberto Já meio desesperançado é o pai quem relembra convocou um amigo inglês um certo E O Williams para preceptor do filho caso aparentemente perdido de retardo mental imaginava a família Mr Williams anglicano e inglês muito inglês conquistou a confiança e a simpatia do difícil Gilberto interessandose pelos seus desenhos Compreendendo o que havia nesses desenhos Mr Williams conseguiu que Gilberto começasse a aprender e a escrever e a contar creio que mais na língua inglesa do que na portuguesa CHACON 1993 p 38 Após a tardia alfabetização frisese novamente que primeiramente em língua inglesa fato que sem dúvida foi decisivo para sua produção intelectual e facilitador para o posterior ingresso em universidades estadunidenses Gilberto estudou no Colégio Americano Gilreath no Recife Concluído o curso primário sendo o orador da turma que teve como paraninfo o historiador Oliveira Lima20 Gilberto viajou em 1918 para os Estados Unidos a fim de concluir os estudos na Universidade de Baylor Posso resumir minha impressão da Universidade de Baylor para onde fui em 1918 em duas palavras terrivelmente provinciana BASTOS 2006 p 23 itálico da autora 19 Inglês anglicano que durante algum tempo residiu no Recife G F o descreveu como ruivo bigodudo e típico de sua gente e de sua época Como aos oito anos G F ainda não havia aprendido a ler e escrever sua família o julgava retardado mental Foi esse Mr Williams que alertou os parentes de G F para seus desenhos a lápisdecor que considerava muito expressivos Foi com ele que G F aprendeu a ler e escrever o que paradoxalmente ocorreu em língua inglesa FONSECA 2002 p 179 180 20 Manuel de Oliveira Lima 18671928 Historiador e biógrafo nascido no Recife em 1867 e falecido em Washington DC em 1928 Diplomata serviu em Berlim Washington Londres Tóquio Buenos Aires Venezuela Suécia e Bruxelas Membro fundador da Academia Brasileira de Letras foi também presidente do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano Sua obra é considerada entre as mais importantes da historiografia brasileira G F tinha desde jovem grande admiração por ele e o convidou para paraninfo da turma com a qual concluiu o curso de humanidades no Colégio Americano Gilreath em 1918 FONSECA 2002 p 128 25 Concluído o bacharelado em Artes em 1920 seguiu para a Universidade Columbia em Nova York a fim de realizar estudos de pósgraduação que lhe renderam o título de mestre Magister of Arts em 1922 pela faculdade de Ciências Políticas Jurídicas e Sociais com a tese Social Life in Brazil in the 19th Century21 Sua estadia em Columbia foi decisiva para a sua trajetória intelectual principalmente pelo contato direto com a antropologia cultural de um dos seus professores Franz Boas22 influência decisiva para sua compreensão das raças da miscigenação e do valor do negro na história do Brasil Em 1922 viajou para a Europa estabelecendose em Oxford No ano seguinte 1923 voltou ao Recife iniciando sua colaboração no jornal O Diário de Pernambuco Em 1926 lhe é confiado pelo então governador do estado de Pernambuco Estácio Coimbra 18721937 o cargo de oficial chefe do gabinete Ainda em 1926 promoveu o 1 Congresso Brasileiro de Regionalismo na cidade do Recife É importante destacar nessa época o seu envolvimento no movimento regionalista De acordo com o seu biógrafo Vamireh Chacon já citado Na sua circunstância açucarocrática nordestina o regionalismo de 1926 tinha de ser ao mesmo tempo tradicionalista e modernista fiel às raízes porém sintonizado com os ventos do mundo sempre soprando no porto oceânico do Recife quase Hansa Tropical O próprio Gilberto Freyre fez questão de esclarecer tempos depois quando amainavam um pouco as paixões Não é exato ter eu quando moço iniciado um movimento literário no Recife que tenha sido um movimento tradicionalista ao mesmo tempo que antimoderno23 CHACON 1993 p 193 21 publicada em Baltimore pela Hispanic American Review v 5 n 4 nov 1922 e recebida com elogios pelos professores Haring Sthepherd Robertson Martin Oliveira Lima e H L Mencken que aconselha o autor a expandir o trabalho em livro FREYRE 1922 2009 p 123 124 22 Antropólogo germanoamericano 18581942 que foi professor de Antropologia na Universidade de Columbia quando G F lá seguia o curso de mestrado em ciências sociais Foi a figura de mestre de que me ficou até hoje a maior impressão disse dele G F no prefácio à primeira edição de Casa Grande Senzala obra que se baseia na distinção aurida entre raça e cultura distinção aurida nas aulas de Boas FONSECA 2002 p 36 Sobre isto principalmente a diferença entre raça e cultura ver BOAS Franz Antropología Cultural Buenos Aires Ediciones Solar y Librería Hachete SA 1964 principalmente o capítulo VIII Raza Lenguaje y Cultura p 153166 Ver também BOAS Franz Antropologia CulturalFranz Boas textos selecionados Organizador Celso Castro Ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2005 Segundo o organizador o primeiro texto em português traduzido do autor 23 Sobre o envolvimento de Freyre com o regionalismo e sua antimodernidade ver ALBUQUERQUE JÚNIOR 2011 p 86101 Ver também o verbete regionalismo In FONSECA 2002 p 149 26 Após sua participação ativa ambiguidades à parte no regionalismo em 1928 Freyre foi convidado pelo mesmo governador de Pernambuco Estácio Coimbra para a nova cátedra de sociologia da Escola Normal do Estado de Pernambuco24 período em que Gilberto teve por breve passagem a profissão de docente realizando pesquisas ministrando cursos e orientando os seus alunos a realizarem pesquisas sob uma base inédita no Brasil fruto de sua experiência intelectual em universidades nos Estados Unidos e na Europa MEUCCI 2006 No ano de 1930 com a ascensão de Vargas ao poder Gilberto teve que sair de Recife em virtude de fazer parte do governo deposto exilandose primeiramente na Bahia indo depois para Portugal passando pela África Dácar e Senegal Em 1931 estando Freyre em Portugal surpreendeulhe o convite da Universidade de Stanford para ser um dos seus visitant professours Dos Estados Unidos regressou à Europa onde realizou estudos antropológicos principalmente na Alemanha No ano seguinte estando no Rio de Janeiro então capital federal passando por sérias dificuldades financeiras consultou arquivos e recolheu notas que iriam compor uma de suas obras seminais No mês de dezembro de 1933 publicou CasaGrande Senzala livro imediatamente reconhecido como de fundamental importância para a compreensão da história do Brasil25 Em 1935 iniciou por um breve período apenas dois anos uma experiência docente na então Universidade do Distrito Federal no Rio de Janeiro26 No ano seguinte 1936 publicou Sobrados e Mucambos27 livro que foi a continuação de CasaGrande Senzala Em 1941 se casou com Maria Magdalena Guedes Pereira No mesmo ano recebeu o primeiro dos vários que receberia ao longo da carreira título de doutor honoris causa pela Universidade da Sorbonne Em 1942 foi preso28 sendo solto no dia seguinte à prisão No mesmo ano a Universidade de Yale o convidou para ser 24 primeira cadeira de Sociologia que se estabelece no Brasil com moderna orientação antropológica e pesquisas de campo FREYRE 1963 2010 p 202 Sobre esse tempo ver CHACON 1993 p 199207 BASTOS 2006 p 28 25 Aparecem 1934 em jornais do Rio de Janeiro os primeiros artigos sobre Casagrande Senzala escritos por Yan de Almeida Prado RoquetePinto João Ribeiro e Agrippino Grieco todos elogiosos FREYRE 1922 2009 p 202 26 Ministrou cursos na área das ciências sociais para estudantes de direito com menos oratória e mais pesquisa MEUCCI 2006 p 93180 27 Livro publicado em São Paulo pela Companhia Editora Nacional em 1936 com o seguinte subtítulo Decadência do patriarcado rural no Brasil FONSECA 2002 p 159 28 É preso no Recife por ter denunciado em artigo publicado no Rio de Janeiro atividades nazistas e racistas no Brasil FREYRE 1963 2010 p 205 27 professor convite este recusado por Gilberto que outrossim por meio de carta recusaria os convites para ser catedrático de Sociologia da Universidade do Brasil e também da Universidade de Harvard Em 1945 publicou o importante livro Brazil and interpretation29 em Nova York Nesse ano foi eleito Deputado Federal Constituinte assumindo o cargo em 1946 No plano nacional apresentou neste mesmo ano à Câmara dos Deputados o projeto n 819 que resultou na Criação do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais transformado em Fundação Joaquim Nabuco em 198030 No ano de 1948 a convite da UNESCO foi para Paris participando de um conclave de oito notáveis pesquisadores reconhecidos internacionalmente G Gurvich entre eles por exemplo para o estudo das tensões raciais no pósguerra Recebeu nos anos 1950 diversos prêmios e honrarias pessoais por universidades europeias estadunidenses e brasileiras31 Em 1959 publicou o livro Ordem e Progresso que juntamente com Casagrande Senzala e Sobrados Mucambos e Jazidas e covas rasas livro nunca concluído deveria compor sua série de livros sobre a Introdução à história patriarcal no Brasil No decorrer da década de 1960 residindo no seu solar em Apipucos no Recife continuou recebendo muitos intelectuais personalidades e alguns iniciados como o próprio biógrafo aqui citado CHACON 1993 Proferiu palestras orientou diversos trabalhos sob a égide da sua antropologia e sociologia genética Com o golpe civil militar de 1964 tomou posição como mesmo confessou 29 Série de conferências de Gilberto cujo texto seria grandemente modificado e publicado como o livro New world in the tropics FREYRE 1922 2009 p 211 O texto teria a primeira edição em português somente em 1971 FONSECA 2002 p 124 30 Nesse Instituto sob sua direção ele coordenou uma série de estudos que resultou na chamada Tropicologia que a seu pedido foi criado um Seminário de Tropicologia na Universidade Federal de Pernambuco Sobre a Tropicologia ver FONSECA 2002 p 169 também o prefácio à 1ª edição 1963 do texto Os escravos nos anúncios de jornal brasileiro de Froes da Fonseca FREYRE 1963 2010 p 63 Ver ainda SILVA Alex Gomes da Gilberto Freyre e o legado LusoHispânico Uma construção no pósguerra Tese de doutorado em História São PauloSP Universidade de São Paulo USP 2016 327 f Sobretudo o capítulo IV p 251297 31 No ano de 1955 Para discutir Casagrande Senzala e outras obras ideias e métodos de Gilberto Freyre reúnemse em CerisyLaSalle os escritores e professores M Simon R Bastide G Gurvich Leon Bourdon Henri Gouhier Jean Duvignaud Tavares Bastos Clara Mauraux Nicolas Sombart e Mário Pinto de Andrade talvez a maior homenagem já prestada na Europa a um intelectual brasileiro os demais seminários de Cerisy foram dedicados a filósofos da história como Toynbee e Heidegger FREYRE 1922 2009 p 210 28 Eu me defini a favor do movimento de 1964 sem que isso implicasse uma adesão política O general Castelo Branco então Comandante do IV Exército frequentava muito a minha casa mas vinha para conversar e não para conspirar A meu ver 1964 era inevitável tinha de vir diante do caos a que o Brasil chegara diante da infiltração russo soviética no país De modo que as Forças Armadas prestaram um grande serviço ao Brasil em 1964 BASTOS 2006 p 34 itálico da autora Apesar do pensamento favorável aos acontecimentos do período Freyre recusou o convite de Castelo Branco para ser ministro da educação e cultura BASTOS 2006 p 34 Em 1967 ganhou o Nobel dos Estados Unidos Prêmio do Instituto Aspen de Estudos Humanísticos No ano de 1968 recebeu o título de doutor honoris causa pela Universidade de Münster Alemanha Ocidental em que Florestan Fernandes 19201995 e outros se fizeram presentes32 o que aponta o constante e crescente prestígio do autor por causa de sua obra Em 1970 estava em plena atividade intelectual residindo sempre em Apipucos seu lugar de predileção onde quando do regresso das suas constantes viagens internacionais e mesmo nacionais dizia estar em casa CHACON 1993 Durante aquela década ainda recebia diversos intelectuais e outras personalidades demonstrando seu reconhecimento e constante prestígio apesar das controvérsias e ambiguidades no quesito do seu apoio ao regime político brasileiro da época Na década de 1980 alguns problemas de saúde constantemente impediam o seu trabalho Freyre recusava terminantemente a ideia de aposentarse Os prêmios de doutorado honoris causa e as menções honrosas à sua obra em encontros acadêmicos nacionais e internacionais continuavam a serem a ele endereçados No ano de 1985 dois anos antes de sua morte ele afirmou Detesto devo dizer que me chamem de mestre Eu não me considero mestre não Eu me considero um indivíduo que chega aos 85 anos aprendiz sempre aprendiz BASTOS 2006 p 35 itálico da autora Ou seja aos 85 anos Freyre se considerava um aprendiz leitor voraz ainda que já autor consagrado não se resignava a repetir o já dito e escrito sempre com novas pesquisas em mente Eu acho que o intelectual precisa ser sempre um insatisfeito precisa sempre buscar novas visões novas perspectivas novos rumos de 32 Conforme Vamireh Chacon este assisti pessoalmente em companhia de Celso Furtado Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso CHACON 1993 p 282 29 sua aproximação do que ele considerava verdades a serem descobertas ou redescobertas BASTOS 2006 p 35 itálico da autora Nesse mesmo ano de 1985 viajou para São Paulo sendo hospitalizado para uma cirurgia hérnia de esôfago Em 1986 foi eleito membro da Academia Pernambucana de Letras Em 1987 às quatro horas de 18 de julho morreu no Hospital Português Calavase o mestre de grande influência para toda uma geração de antropólogos sociólogos e historiadores como Roberto DaMatta33 por exemplo dentre inúmeros Era o entardecer de Apipucos Gilberto Freyre queria permanecer lúcido até o fim da sua longa vida ao modo de Joaquim Nabuco que escreveu no seu diário íntimo minha esperança minha oração fervorosa é que quando eu seja afetado pela doença da velhice não o seja na parte de mim que Deus criou à sua imagem e semelhança O corpo pode ser demolido não o seja nunca o espírito Também a prece de Gilberto foi atendida Ele morreu lúcido aos oitenta e sete anos escrevendo artigos e com a derradeira oportunidade para soltar uma risada quando lhe apresentaram jornais com uma foto dele com discípuloscompanheiros tomando banho nus numa pequena cachoeira pernambucana última tentativa em vão de ferilo Ele se transformara em personalidade de si mesmo melhor que dos outros CHACON 1993 p 305 Nesse entardecer no seu adormecer na morte Gilberto Freyre deixou vasta obra assim como um legado que nunca quis como mencionamos acima o de grande mestre Suas reflexões sobre a escravidão sobre a miscigenação a democracia racial que subjaz nas suas obras seu caráter de polemista e até antiacadêmico não convencional fazem da sua personalidade e do seu legado intelectual um material histórico profícuo para a história social das ideias pretendida na presente dissertação brasileira Gilberto como uma metamorfose ambulante sempre se renovava apesar de manter uma unidade em sua obra a partir de temas recorrentes que julgava centrais para a compreensão do complexo processo histórico brasileiro tais como o patriarcado a miscigenação étnicoracial e o trópico BASTOS 2006 33 Sobre DaMatta em entrevista de 1985 ele afirmou Por exemplo o Roberto DaMatta eu acho que é um dos indivíduos mais influenciados pela minha obra BASTOS 2006 p 219 30 Apesar dos temas comuns e recorrentes de sua vasta obra antropológica sociológica e historiográfica seus livros outrossim são portadores de uma enorme variedade causada pelo calor dos momentos de redação ou pela constante obstinação do autor pernambucano em sempre buscar algo novo pondo no centro personagens antes às margens como o negro visto como civilizador em ser maestro de uma orquestra a sua obra que mais que descrever e fixar buscou interpretar e compreender O mestre de Apipucos foi um intelectual em movimento constante 12 A benignidade patriarcal e sua decadência No seu texto de mestrado Vida social no Brasil nos meados do século XIX redigido nos anos 1920 Gilberto Freyre já enunciava um dos temaschave e mais recorrentes em toda sua extensa obra a escravidão negra Frisese que esse texto escrito em tempos de jovem estudante igualmente enunciava uma das principais polêmicas sobre a sua visão em relação ao escravismo Essa polêmica em evidência seria a visão de uma escravidão doce numa quase relação democrática A escravidão negra existente na colônia e no império patriarcal teria sido não apenas positiva como também repleta de lances de benignidade34 Tal visão estava amparada principalmente nos relatos dos viajantes estrangeiros que Freyre enfatizou ter sido um dos pioneiros no uso desses relatos para a reconstituição histórica do Brasil Voltouse para alguns dos estrangeiros que então visitaram o Brasil como para os mais seguros de todos os observadores e críticos sociais do período período de que quase sempre se têm ocupado os brasileiros uns apenas para glorificar desaparecidos outros para sumariamente condenálos Raramente com justo ou equilibrado 34 Na apresentação à edição brasileira utilizada nesse trabalho Gustavo Henrique Tuna indica que já em Vida social Freyre aponta para a suposta benignidade dos senhores no tratamento dos escravos O autor ainda completa apontando um dado importante Ao reescrever o texto em inglês para a sua publicação no Brasil Freyre procurou relativizar as teses da benignidade da escravidão e da proeminência do patriarcalismo em todas as regiões do Brasil defendidas no texto original FREYRE 1922 2009 p 15 17 31 espirito de crítica e puro gosto ou afã de compreensão Notese que nos testemunhos de estrangeiros idôneos apoiouse o autor para a sua visão do regímen de trabalho escravo como particularmente benigno FREYRE 1922 2009 p 23 Grifo nosso Apoiado nesses relatos de viajantes embora ressaltando que os mesmos nos seus relatos sobre o assunto tenham afirmado que tal benignidade era coisa atípica e que no geral poderia não ter sido assim Freyre instituiu uma unidade discursiva em que escravidão e benignidade relações suaves possuem uma singular identificação Foram condições peculiares e especialíssimas sem dúvida porém Freyre as apontou como mais gerais e de forma mais abrangente ou seja como uma espécie de confirmação de uma constante histórica e não tão somente casos excepcionais que fugiram à regra de uma escravidão amarga e não adocicada pelo mel do patriarcalismo Esse texto de Freyre de 1922 é importante não apenas por ser o gérmen de CasaGrande Senzala publicado onze anos depois ele é importante também porque enunciou uma visão da democracia racial uma constante histórica brasileira para o autor já nesse trabalho buscando instituila como visão historiográfica correta e defensável já que é embasada em fontes segundo ele das mais idôneas Esse texto como já se afirmou é considerado um dos embriões dos estudos posteriores dos anos 193035 Freyre nos vários prefácios e introduções à reedição do texto propôs categoricamente que em idade ainda verde ele já esboçava nesse livro as ideias centrais sobre a sua indagação do que seria o Brasil Tais ideias se inspiraram em um critério36 inédito na história das ideias brasileira segundo o próprio Freyre gestaltiano de interpretação sociológica que o levou a considerar a escravidão não apenas como fator econômico mas sobretudo como uma relação 35 Ainda conforme a apresentação de Gustavo Henrique Tuna Encontramse esboçadas neste estudo de Freyre suas primeiras considerações a respeito de aspectos basilares da formação brasileira como a miscigenação a escravidão africana a forte presença da religião católica no cotidiano da população em geral e a concentração do poder econômico nas mãos de uma elite FREYRE 1922 2009 p 18 36 No prefácio a 1ª edição em língua portuguesa 1963 do seu texto de mestrado Freyre apontou que É um critério que se inspira na New History sem dúvida e que se apoia em grande parte nos estudos de Antropologia do autor com o professor Franz Boas na Universidade de Columbia e nos seus contatos em Oxford com os então recentes estudos de História Social e sobretudo de Antropologia Cultural empreendidos por ingleses e em Paris em seu convívio com o sábio Lucien Febvre FREYRE 1922 2009 p 31 32 32 entre pessoas ou seja enfatizando a pessoalidade do sistema sua sensibilidade e até mesmo a positividade do escravismo Os escravos em geral não se esfalfavam nos trabalhos domésticos Era assim tanto nas casasgrandes dos engenhos e das fazendas como nos grandes sobrados igualmente patriarcais nas cidades É verdade que nos meados do século passado a propaganda antiescravista britânica muito comentou o cruel tratamento dos escravos no Brasil Mais tarde esses sombrios comentários ingleses foram repetidos no Brasil por oradores brasileiros contrários ao cativeiro entre eles Joaquin Nabuco e Rui Barbosa homens inflamados pelo idealismo liberal e burguês de Wilberforce e cada um deles animado pelo desejo de resto muito humano de glória pessoal ligada a uma causa humanitária FREYRE 1922 2009 p 79 O trabalho não esfalfava os negros e isso se repetia tanto no campo como na cidade Nesse estudo sobre o Brasil do século XIX Freyre argumentou que foi a propaganda antiescravista inglesa que engendrou essa representação de uma escravidão cruel aspas do próprio Freyre O antropólogosociólogo pernambucano apontou ou antes defendeu que tais comentários estariam interessados na abolição da escravatura e não condiziam com a real situação do negro escravizado no Brasil na época retratada Sendo que A linguagem empregada por tais oradores foi tão enfaticamente persuasiva que o brasileiro médio de hoje 1922 ainda acredita ter sido a escravidão no Brasil toda ela realmente cruel Na verdade a escravidão no Brasil agráriopatriarcal pouco teve de cruel O escravo levava nos meados do século XIX vida de quase anjo se compararmos sua sorte com a dos operários ingleses ou mesmo com as dos operários do continente europeu dos mesmos meados do século passado Sua vida tudo indica era também bem menos penosa que a dos escravos nas minas da América espanhola e nas plantações quando mais industriais do que patriarcais da América inglesa e protestante FREYRE 1922 2009 p 79 Grifo nosso Freyre buscou na comparação histórica com outras condições análogas a ou de escravidão propriamente dita à confirmação para a ideia de uma escravidão 33 benigna37 A vida de quase anjos dos negros nos engenhos nas casasgrandes nas ruas nos sobrados na senzala era repleta de uma alegria celeste tendo o patriarcalismo do senhor como base social de sustentação diferente do escravismo mais industrial inglês não patriarcal por exemplo Mesmo que apresentado aos 22 anos de idade não podemos tomar esse texto de um tom de escrito de juventude como é comum em textos sobre autores em que os cortes epistemológicos a maioria à revelia do autor e bem contestáveis correlacionam textosenxertos de juventude com as veleidades próprias da idade ainda verde e os textos de maturidade em cuja bagagem científica já deixaria o autor inescusável de suas interpretações Entretanto Freyre reiterou em prefácios e introduções a outros textos que sua interpretação à época era pertinente válida e quando não necessária frente a uma unidade discursiva abolicionista ou repleta de retórica liberalburguesa irrealista em termos de visão histórica que lhe precedia É interessante citar a sua descrição sobre a escravidão em que se percebe dentre outros aspectos a reiteração de uma escravidão como fator familístico suave menos cruel ou algo que se pudesse reduzir ao pragmatismo econômico ou à retórica inglesa abolicionista como já aludido acima38 Crianças da família patriarcalismo simpático e outras expressões são aventadas nessa descrição histórica Os trabalhadores dos grandes engenhos e das grandes fazendas patriarcais do Brasil dos meados do século XIX eram de ordinário bem 37 Em texto posterior Os escravos nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX 1ª edição de 1961 tendo surgido primeiramente na forma de uma conferência O escravo nos anúncios de jornal no tempo do império feita no Rio de Janeiro e publicada em número de 1934 da Revista Lanterna Verde Ele afirmou sobre a escravidão benigna nesse texto de mestrado que Explicase assim ter eu estreado em quase livro escrito e publicado em língua inglesa como tese de mestrado na então insigne Universidade de Colúmbia A Colúmbia dos Boas dos Giddngs dos Seligmans dos John Basset Zimmern de Oxford e Haring de Harvard como visitint professor na qual contra a lenda de uma escravidão do africano no Brasil sempre infernalmente cruel opus toda uma série de testemunhos de estrangeiros idôneos no sentido de reconhecerse aquela benignidade FREYRE 1963 2010 p 26 Grifo nosso Posteriormente todavia ele reiterou A benignidade nas relações de senhores com escravos no Brasil patriarcal não é para ser admitida é claro senão em termos relativos Senhor é sempre senhor FREYRE 1963 2010 p 26 Necessário dizer que essa reiteração é de um prefácio a 2ª edição do texto em 1978 38 Sobre isso Freyre enfatizou ainda nesse texto de mestrado 1922 que Mas na própria Inglaterra meninos e meninas de dez anos eram chicoteadas no trabalho e às vezes até nas próprias fábricas dos oradores antiescravistas Eram principalmente nas palavras desses oradores ingleses sectariamente antiescravistas sua seita era do progresso burguêsindustrial fosse como fosse por mais inumano que a rotina agrária ou agráriapatriarcal que se inspiraram desde 1850 abolicionistas brasileiros alguns dos quais mais retóricos do que exatos nas suas críticas ao regime brasileiro de trabalho da época FREYRE 1922 2009 p 81 34 alimentados e recebiam cuidados dos senhores como se fossem depõe um observador estrangeiro uma grande família de crianças Tinham três refeições por dia e um pouco de aguardente de manhã A primeira refeição constituída de farinha ou pirão com frutas e aguardente Ao meiodia faziam uma refeição muito substancial de carne ou peixe À noitinha feijãopreto arroz e verduras Ao pôr do sol o apito do engenho encerra o trabalho do dia Os trabalhadores faziam a sua última refeição e depois iam dormir Mas não sem que antes pedissem muito filialmente a bênção ao seu senhor e à sua senhora Benção Nhonhô Benção Nhahã e a senhora diziam Deus te abençoe e ao mesmo tempo faziam o sinal da cruz O patriarcalismo brasileiro agrário e cristão na sua expressão mais simpática que não foi de modo algum excepcional caracterizou a convivência de senhores com escravos na maioria dos grandes engenhos e das grandes fazendas FREYRE 1922 2009 p 79 81 É como se o núcleo da relação senhorescravo não fosse considerada como relação de estrita submissão Freyre reiterou diversas vezes a violência do patriarcado o senhor continuava senhor porém de uma forma especialíssima e peculiar esses senhores eram pais piedosos melhores que os contramestres austeros da Inglaterra oitocentista ou dos espanhóis e chapetones das colônias hispânicas na América O nhonhô patriarca e católico era bom era pai era autoritário de forma a castigar severamente relevando e clarificando os extremos todavia essa agressão era mais perto da forma como castigava aos filhos Havia extremos de sadismo no manejo do chicote por parte de brancos com relação a negros de senhores com relação a escravos Mas eram extremos semelhantes àqueles em que se desgarravam pais nos castigos a que submetiam os filhos ou velhos nas punições que patriarcalmente infligiam aos meninos FREYRE 1922 2009 p 94 95 Aqui surgia outra forma de agrupamento social privilegiada pelo discurso de Freyre a família no caso a família extensa39 em que agregados parentes distantes e os escravos são inclusos É inserida em sua interpretação histórica no sentido de dotar essencialmente de uma caracterização familiar as relações históricas entre brancos e negros A escravidão morosa assim como em geral foi para o autor vida doméstica no Brasil do tempo dos patriarcas agrários e católicos foi revestida de uma 39 A família é claro que incluía além de pais e filhos de compadres e afilhados a parentela e além da parentela mucamas pajens toda a escravaria doméstica FREYRE 1922 2009 p 94 35 bondade que seria interpretada como tipicamente familiar como entre iguais e entre indivíduos e afetos em troca reciproca ficando o senhor no topo do sistema Mas o sistema em si não era algo como uma engrenagem mecânica a do engenho era uma engrenagem de família esta era extensa inclusiva e doce para com os seus escravizados negros de casa É uma interpretação contida nesse texto certamente ainda não muito sistemática e restrita ao universo imperial brasileiro Entretanto ela se revela de fundamental importância na interpretação historicizante que aqui realizamos sobre o pensamento social freyriano em relação à escravidão negra Ela é importante em ao menos três direções conexas entre si que são dentre outras coisas o que nós poderíamos chamar de substrato da unidade discursiva freyriana sobre o escravismo A primeira é que o patriarcado é uma instituição que para com a escravidão e é visto como paradoxalmente um elemento de violência excessos de sadismo e de fria morbidez ao mesmo tempo em que é interpretado como o elemento suavizador nas relações entre brancos e negros A família patriarcal amava seus negros como pessoas da família como irmãos e irmãs como gente da casa A segunda é justamente a questão da família extensa isto é a escravidão era coisa de família coisa de casa relação de afeto que se fixou na convivência desde a infância na iniciação sexual na puberdade nas relações de amores da vida adulta A terceira é principalmente a questão da proximidade sexual O sexo com a sua interpenetração corporal troca de fluidos e vetor do circuito dos afetos agiu como poderoso elemento de justaposição racial de indicador da razão da benignidade da escravidão negra processada historicamente no Brasil Para Freyre a escravidão não é condenada O historiador Freyre não visualizou a mesma como algo execrável em si Como fenômeno histórico não seria novo como instituição econômica e política nada teria também de original A que existiu na colônia e império patriarcal foi adocicada de mel católico de pessoalismo via sexo e de familismo intermediado pelo resultado do intenso intercurso sexual da proximidade entre os extremos sociais entre raças que mediadas pela plasticidade dos colonizadores portugueses teriam agido mais no sentido de encurtar distâncias sócio raciais do que estancar em abismos entre brancos senhores e negros escravizados 36 Nessa unidade discursiva a escravidão como fator de produção econômica foi essencial para a empresa açucareira colonial e para o sistema social do ciclo do café pósindependência sendo igualmente vital para a engrenagem do sistema casa grandesenzala A escravidão era dolorosa para o escravo uma vez que lhe eram infligidos os trabalhos mais lúgubres e insalubres como carregar os excrementos num balde tigres na cabeça40 todavia tudo isso para Freyre era algo condizente com a própria lógica intimista do sistema patriarcal A escravidão foi violenta humilhante e degradante sim Mas era também ato necessário isto é era necessidade histórica que se singularizou pela suavidade tropical da civilização do açúcar pela influência lusa plástica pela caridade católica pela forma de relação como um pacto entre pessoas apenas de cores diferentes mais de onde a clarividente contradição se engendrou numa formação social conciliatória entre contrários Brancos e negros foram em vez de antípodas irmãos de missa e membros da mesma família na sociedade escravocrata Entretanto a de se ponderar que esse texto de 1922 é a raiz do verdadeiro grande texto freyriano Como ele mesmo disse O que viria a realizarse dez anos depois em língua portuguesa No livro Casagrande senzala seguido por vários outros sobre o assunto Este foi o gérmen FREYRE 1922 2009 p 48 Ou seja para podermos ter uma visão mais ampliada da forma como Gilberto entendia a escravidão negra devemos cotejar os ensaios posteriores em que pudemos desde já apontar a recorrência desse tema dessa escravidão benigna doce e tropical41 40 Essas imundícies eram colocadas em pipas ou barris chamados de tigres e carregadas às cabeças dos escravos que os despejavam nos rios nas praias e nos becos matos FREYRE 1922 2009 p 111 112 Em Casagrande senzala 1933 Gilberto Freyre retomou esse assunto sobre o trabalho vil e imundo termos dele praticado pelo negro Às vezes largavam o fundo dos tigres emporcalhandose então o carregador da cabeça aos pés Foram funções essas e várias outras quase tão vis desempenhadas pelo escravo africano com uma passividade animal FREYRE 1933 2006 p 550 Itálico nosso 41 No intervalo entre 1922 e o texto de 1933 Gilberto escreveu alguns outros textos Existem entre outros os artigos para a Revista do Brasil 19234 para o Diário de Pernambuco e texto organizado por ele Livro do Nordeste 1925 como os principais Além de poemas e cartas FREYRE 1922 2009 p 124 125 Dentre esses textos para investigação aqui em curso eles não fixam e se detém sobre a escravidão de forma sistemática Nesse sentido compreendemos que uma leitura mais atenta da unidade discursiva freyriana sobre a escravidão se releva mais prestimosa aos nossos objetivos quando avançarmos sobre os textos dos anos 1930 primeiro CasaGrande Senzala em larga medida a ampliação das já esboçadas teses no texto de 1922 analisado acima um parêntese para analisar o texto fruto de uma conferência em 1934 apenas publicado em 1963 mas que aponta importantes ideias que o autor tinha sobre a escravidão e finalizamos com a análise do texto Sobrados Mucambos de 1936 Outros textos serão igualmente analisados no final dessa seção do trabalho ainda 37 É no seu magnum opus de 1933 que a análise freyriana tanto sobre a escravidão como sobre o negro e as relações étnicas no período colonial sobretudo na vida social ganhou contornos mais abrangentes todavia o tema não aberta mais subjacentemente da benignidade das relações senhorescravo do patriarcado histórico reapareceu agora com uma força argumentativa bem mais densa do que no texto de mestrado analisado anteriormente Tratase de Casagrande Senzala42 sua introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil Uma distinção que consta no texto e é pertinente para nosso trabalho nesse ponto se faz necessária de imediato Devese porém distinguir entre os escravos de trabalho agrícola e os do serviço doméstico estes beneficiados por essa assistência moral e religiosa que muitas vezes faltava aos do eito Na maior parte das casasgrandes sempre se fez questão de negros batizados houve senhoras de tal modo interessadas no bemestar dos escravos que levavam aos próprios seios molequinhos filhos de negras falecidas em consequência de parto alimentandoos do seu leite de brancas finas que nos engenhos e fazendas vários escravos chegaram a unirse pelo casamento vivendo assim em família com certas regalias que os senhores lhes conferem FREYRE 1933 2006 p 539 A distinção entre escravos de casa doméstico e os do eito das lavouras de canadeaçúcar é importante na análise sobre como Freyre interpretou a escravidão negra em dois sentidos Já se enfatizou que ele privilegiou os primeiros sobre os segundos43 que os idealizou em demasia enfatizando o caráter fraterno e familístico do escravo doméstico O primeiro sentido é que ele descolou a análise da escravidão de fator externo de fora impessoal como que deslocado de processos vivenciados para o âmbito interno de casa E isso permitiu ao autor perceber que como fenômeno histórico a escravidão aqui praticada não teria sido tão destrutiva para os negros no sentido de que mais para uma visualização geral para o leitor do pensamento de Gilberto sobre a escravidão negra 42 Publicado em dezembro de 1933 pelo poeta e editor Agusto Frederico Schimidt e reeditado em 1936 e 1938 o livro obteve enorme repercussão comprovada por recensões e artigos publicados em jornais e revistas nacionais e estrangeiras FONSECA 2002 p 44 43 Na apresentação à edição utilizada neste trabalho Fernando Henrique Cardoso ao considerar Casa como um livro perene afirmou que Freyre deixou de lado no texto os escravos do eito a massa que mais penava nos campos CARDOSO In FREYRE 1933 2006 p 22 38 despersonalizálos retirarlhes a humanidade violálos a ponto de transformálos em homensmáquinas exauridos em trabalhos penosos fustigantes e insalubres O negro era irmão do branco colaborador em cultura e em força social para que o sistema casagrandesenzala tivesse entre outras coisas sua grande originalidade a de ser uma engrenagem movida por pessoas em interação viva em fluxo e não peças impessoais a montar um organismo do tipo de uma interpretação mais pragmática colônia de exploração que divide a formação social entre senhores brancos de engenho donos de terras de meios de produção e de homens de um lado e escravizados negros as peças da África despossuídos mercadorias e indivíduos sem direitos apenas com deveres do outro O patriarcado cimentou a escravidão doméstica de benignidade O segundo sentido é que os escravos domésticos não eram só trabalhadores foram também senhores Senhores da cozinha é claro44 O escravo doméstico foi especialista45 músico iniciador sexual levapancadas quando garoto ou seja foi mais que homemtrabalho servo submisso ou algum sinônimo que de certa forma interpreta a escravidão apenas na autoevidência do seu caráter quase vocabular de cativeiro de trabalho forçado para se produzir riqueza o ouro branco chamado açúcar Entretanto há que se mencionar algumas considerações importantes Primeiro que a circunstância histórica para a viabilidade da empresa colonizadora lusa que no primeiro momento concentrouse apenas na extração vegetal em virtude de não encontrarem de modo abundante e de imediato metais preciosos tendo que se voltar primeiramente para a extração de madeira o paubrasil levou Portugal para a plantação do açúcar bastante rentável no mercado europeu no período Para tanto exigiuse trabalho compulsório o meio exigiu o escravo46 E essa exigência no discurso freyriano não pode manchar a civilização tropical criada pelo português 44 O escravo africano dominou a cozinha colonial FREYRE 1933 2006 p 541 45 Era segundo Freyre extrema a especialização do trabalho escravo negro na cozinha das pretalhonas e negros maricas FREYRE 1933 2006 p 542 46 O historiador José Carlos Reis afirmou em estudo sobre a obra de Freyre especialmente sobre essa questão da exigência do escravo O meio e as circunstâncias exigiram o escravo E complementa Teria sido mesmo um crime transplantar e escravizar o negro Para alguns ele Freyre responde e inclusive Varnhagen mencionado por ele foi um erro enorme Mas e Freyre continua em defesa dos colonizadores portugueses ninguém nos disse até hoje que outro método de suprir as necessidades do trabalho poderia ter adotado o colonizador português no Brasil REIS 2006 p 56 39 Para a escravidão salientese mais uma vez que não necessitava o português de nenhum estímulo Nenhum europeu mais predisposto ao regime de trabalho escravo do que ele No caso brasileiro porém parecenos injusto acusar o português de ter manchado com instituição que hoje 1933 tanto nos repugna sua obra grandiosa de colonização tropical O meio e as circunstâncias exigiram o escravo FREYRE 1933 2006 p 322 Segundo que em sua interpretação a força de trabalho indígena não foi eficiente como a dos negros FREYRE 1933 2006 p 45 A enxada não se firmou na mão do índio e sim na mão do negro Quando comparou o indígena essa criança grande com os nativos que os espanhóis encontraram Freyre afirmou que as tribos encontradas pelos portugueses eram as raças indígenas mais inferiores com cultura verde e incipiente sendo incapazes de se acomodarem às técnicas novas de produção em curso Primitivos em cultura foi sobretudo a mulher indígena a grande colaboradora dos lusos O indígena foi escravo primeiro porém quando este por incapaz e molengo mostrou não corresponder às necessidades da agricultura colonial FREYRE 1933 2006 p 322 foi logo substituído por um alicerce mais forte de força de trabalho trazido do continente negro África Base sólida do sistema o trabalho escravo negro foi o elemento constante que teria até impedido possíveis perturbações da ordem com as minas séc XVIII ou com o café séc XIX Os negros de mãos hábeis foram a força motriz do sistema Porém mais que isso foram a alegria que encheu a casagrande que nos espaços nos corredores sociais entre a casa e a senzala se revelaram em danças em peripécias e em toda a sua forma quase orgástica quando não dionisíaca de viver que contrastou com o índio introvertido e com o português austero porém contemporizador em termos étnicoraciais É notável que a temática da escravidão nesse texto tivesse na sexualidade uma grande ênfase47 Na vida sexual o negro apesar de mais fraco sexualmente que o indígena por exemplo precisando de danças para a sua excitação sexual era extrovertido alegre dionisíaco Nesse sistema que se inicia em um ambiente de 47 Afinal Resultou daí grossa multidão de filhos dentro do liberal patriarcalismo das casasgrandes FREYRE 1933 2006 p 531 Sexualidade e escravidão próximas dentro de um patriarcado que se era rígido e autoritário em outros pontos nesse era liberal 40 quase intoxicação sexual FREYRE 1933 2006 p 161 a escravidão no tocante à sexualidade tornou o negro imoral Nesse ponto uma afirmação do discurso freyriano se faz categórica Não há escravidão sem depravação sexual FREYRE 1933 2006 p 399 O negro que sifilizou o Brasil colonial não foi o negro em si mas o escravo isto é o escravizado africano nas condições sociais impostas pelo sistema patriarcal que era degenerado nos termos da moral católica A discriminação entre negro e escravo também foi fundamental no discurso freyriano pois fora a escravidão que deformou e imoralizou o negro Foi o sistema e não meramente uma condição racial que imoralizou o negro escravo Porém com efeito há que se ressaltar que Mas aceita de modo geral como deletéria a influência da escravidão doméstica sobre a moral e o caráter do brasileiro da casagrande devemos atender às circunstâncias especialíssimas que entre nós modificaram ou atenuaram os males do sistema Desde logo salientamos a doçura nas relações de senhores com escravos domésticos talvez maior no Brasil do que em qualquer outra parte da América FREYRE 1933 2006 p 435 itálico nosso É como pessoa de família no íntimo que a escravidão e a sexualização nesse discurso ganharam uma forte e estreita relação48 No discurso freyriano isso foi o que fez do negro mais que peça coisa uma pessoa um indivíduo com nome cristão e batizado por padre sujeito da casa49 O abuso sádico do senhor o cheiro de sémen nas senzalas e a forte interpenetração no grande intercurso sexual são forças do sistema não tendo um equivalente na consciência de raça que nesse discurso 48 Sobre a temática escravidão e sexualidade fazendo uma leitura crítica sobre a escravidão negra no Brasil no que tange ao tema criticando em grande parte ainda que não explícita mais implicitamente Gilberto Freyre embora não o cite o historiador Jaime Pinsky afirmou que Por seu turno para as escravas uma relação com o patrão poderia reverter em vantagens dentro da sua condição Sabese de violências sexuais atrozes praticadas por senhores e feitores contra as negras escravas PINSKY 2018 p 64 E aponta ainda que De qualquer forma os documentos registram numerosos testemunhos das incursões que os senhores faziam às suas senzalas com ou sem o consentimento das sinhás com ou sem a aprovação das escravas PINSKY 2018 p 65 Para uma visão mais pormenorizada sobre o tema sexualização e escravidão no discurso freyriano ver ainda NOGUEIRA Nadia Cristina Sexualidade e socialização em Gilberto Freyre Dissertação de Mestrado em História CampinasSP Universidade Estadual de Campinas UNICAMP 2000 159 f 49 Indivíduos cujo lugar na família ficava sendo não o de escravos mas o de pessoas de casa FREYRE 1933 2006 p 435 41 senão de todo foi considerada praticamente inexistente nas históricas relações que se teceram no período da escravidão negra sob a égide patriarcal A doçura era baseada no afeto o brasileiro de cor o escravo quase não existe em termos de produção Sendo a base dela ele é de família de casa de sala e sobretudo de cama ou de rede ou pelos matos onde o deleite e a cópula revelam a intimidade a proximidade e literalmente a junção de corpos de afetos e de estratos sociais que mesmo separados em termos jurídicos afinal o negro era propriedade no sentido econômico50 ele era muito mais que isso era um íntimo e se fosse propriedade Freyre o interpretou como um tipo especial de propriedade afetiva O negro era escravo também em termos de paixões tanto que sinhazinhas mandavam cortar mamilos de escravas para que as mesmas não se tornassem mais tão atraentes e os senhores por sua vez mandavam a ferros negros mais afoitos pegos em flertes ou coitos com suas filhas ou esposas A negra abria as pernas não a pedido mas à ordem FREYRE 1933 2006 p 456 era a iniciadora a fuxiqueiraenredeira e amante O sexo era a parte fundamental para a miscigenada sociedade se reproduzir para que se desenvolvesse e se mantivesse A proximidade era tal que até para os detalhes mais íntimos da toalete o negro foi usado FREYRE 1933 2006 p 517 A sexualidade e a escravidão eram a um só termo processos conexos e estreitamente para não dizer intrinsecamente associados no discurso freyriano A proximidade foi até o extremo do negro ficar com duas mãos direitas e o branco com duas esquerdas FREYRE 1933 2006 p 518 A aproximação da convivência familiar ficava bem distante de uma visão tradicional de cativeiro Nesse discurso os negros são escravos mas a escravidão negra não teria sido como a escravidão pensada em termos de cativeiro ferros açoites nos negros como a noite51 A aristocracia patriarcal brasileira do açúcar não foi apesar dos paralelos com a da região do Deep South 52 como a aristocracia latifundiária austera e distante 50 Tanto o era que Freyre apontou que a mortalidade infantil negra importava muito em termos econômicos pesando na balança dos senhores da casagrande como perca de capital FREYRE 1933 2006 p 446 51 Parafraseamos aqui o poema O navio negreiro Tragédia no mar de Castro Alves 18471871 Tinir de ferros estalar de açoite Legiões de homens negros como a noite Horrendos a dançar ALVES 2007 p 98 Original 1883 edição póstuma 52 Região onde o regime patriarcal de economia criou quase o mesmo tipo de aristocrata e de casa grande quase o mesmo tipo de escravo que no Norte do Brasil e em certos trechos do sul O regime econômico de produção o da escravidão e da monocultura dominando a diversidade de clima de 42 estadunidense que teria se encastelado na casa senhorial Foi de quase mera formalidade a separação casagrandesenzala tamanha era a forma de aproximação das alcovas Era familiar a relação era próxima sexualmente era quase justaposta era de todo lugar um regime geral de relação benigna No dia da notada primeiro dia da moagem das canas nunca faltava o padre para benzer o engenho o trabalho iniciavase sob a benção da Igreja O sacerdote primeiro dizia a missa depois dirigiamse todos para o engenho os brancos debaixo de chapéus de sol lentos solenes senhoras gordas de mantilha Os negros contentes já pensando em seus batuques à noite Os moleques dando vivas e soltando foguetes O padre traçava cruzes no ar com o hissope aspergia as moendas com água benta muitos escravos fazendo questão de ser também salpicados pela água sagrada FREYRE 1933 2006 p 523 524 A aristocracia latifundiária escravagista do açúcar era sobretudo do que hoje é o Nordeste juntamente com os escravos negros sob a benção católica uma só face da forma social que foi aqui desenvolvida Processouse uma alegria uma harmoniosa relação racial dentro do escravismo brasileiro com os negros a dançar e a trabalhar Nos engenhos tanto nas plantações como dentro de casa nos tanques de bater roupa nas cozinhas lavando roupa enxugando prato fazendo doce pilando café nas cidades carregando sacos de açúcar pianos sofás de jacarandá de ioiôs brancos os negros trabalharam sempre cantando seus cantos de trabalho tanto os de xangô os de festa os de ninar menino pequeno encheram de alegria africana a vida brasileira FREYRE 1933 2006 p 551 É como se no sistema social o universo do afeto cotidiano do escravismo fosse mais importante que a constatação de sua subalternidade étnica política e econômica Família extensa e religião católica foram às instituições sociais reguladoras dessa dinâmica social histórica que no discurso de Freyre por meio da obra em questão estão como que equivalentes a forças que suavizaram relações raça de moral religiosa criou no sul dos Estados Unidos um tipo aristocrata mórbido franzino quase igual ao do Brasil nas maneiras nos vícios nos gostos e no próprio físico Os ingredientes diversos mas a mesma forma FREYRE 1933 2006 p 30 e 519 43 escravistas mais propriamente perversas típicas de relações de dominadordominado O eixo norteador que unifica essas duas instituições família extensa e igreja católica respectivamente foi o patriarcalismo As relações escravistas dentro desse sistema são interpretadas como benignas quando comparadas a outras formas de escravismo O regime brasileiro patriarcal foi bom para os escravos negros inseriuos na família visualizouos como pessoas como membros e não instrumentos Nessa interpretação o escravismo se torna quase meramente dado histórico para servir de tipologia ou categoria analítica Mera distinção de análise quase irrelevância frente à complexidade desse sistema e sua roupagem mais humana e patriarcalista O patriarcalismo amparou os escravos tanto que quando da ruptura da ordem escravista em 1888 que Freyre chegou a se referir como decâble de 88 houve uma piora nas condições sociais para os negros exescravos53 É justamente a ruptura ou o início da mesma no século XIX com o início do processo de independência 1822 e do período Imperial ou para usar a terminologia freyreana da decadência do patriarcado que modificou segundo sua óptica a relação senhorescravo as estáveis patriarcais e cristãs formas de escravismo aqui praticadas no sistema casa grandesenzala Era o início dos sobrados e mucambos Antes de adentrar na análise da escravidão em Sobrados Mucambos iremos analisar uma conferência que foi lida por Gilberto Freyre no ano de 1934 na Sociedade Felipe dOliveira publicada na Revista Lanterna Verde v 2 fev 1935 chamada O escravo nos anúncios de jornal do tempo do império que foi grandemente ampliada tornandose o livro O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX 196354 Esse texto é singular e bastante interessante neste 53 De modo que da antiga ordem econômica persiste a parte pior do ponto de vista do bemestar geral e das classes trabalhadoras desfeito em 88 1888 o patriarcalismo que até então amparou os escravos alimentouos com certa largueza socorreuos na velhice e na doença proporcionoulhes aos filhos oportunidades de acesso social FREYRE 1933 2006 p 51 Como já apontamos na presente dissertação essa recorrência temática da escravidão benigna também se ampara na ideia de assistencialismo ao escravo já esboçada no texto freyriano anterior de 1922 As santascasas as misericórdias as casas de caridade não tinham sectarismo nenhum suas portas estavam abertas para todos Nelas se exprimia o melhor de um sistema social que sendo patriarcal era também cristão FREYRE 1922 2009 p 109 54 1ª edição pela Imprensa Universitária 2ª edição pela Companhia Editora Nacional e Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais 1979 3ª edição pela Castelo Branco e Associados Propaganda 1984 e a 4ª edição revista e ampliada com fotos e de onde tiramos várias informações presentes constantes na nossa nota biográfica sobre G F da excelente biobliografia organizada por Edson Nery da 44 ponto do nosso trabalho Nele se encontram algumas ideias como a recorrente tese da escravidão benigna porém com a adição de análises mais ampliadas especialmente em relação ao corpo dos escravos suas marcas de nação suas tatuagens cicatrizes e deformações causadas por diversos motivos que são nesse momento da nossa análise imprescindíveis e incontornáveis haja vista nosso propósito de demonstrar a perspectiva freyriana sobre a escravidão negra55 Nesse texto a benignidade da escravidão é enfatizada novamente ou seja é uma em nossa interpretação constante do discurso freyriano A positivação da escravidão negra reiterada tendo como fundamento e isso é importante para o leitor entender principalmente os escritos dos viajantes estrangeiros que Freyre insistiu na totalidade dos textos dele consultados até aqui neste trabalho em que o autor os considera absolutamente idôneos56 imparciais e que testemunhariam a escravidão longe da falsidade da escravidão cruel dos brasilianistas FREYRE 1963 2010 p 39 É interessante que esses anúncios analisados em que as descrições pormenorizadas de tipos corpos e detalhes que poderiam ajudar na identificação eram anúncios de fuga Fugas estas que Freyre interpretou muito mais pela questão da proximidade ou não do escravo para com o senhor visto que os escravos domésticos fugiam menos por se sentirem mais próximos de suas sinhás e ioiôs FREYRE 1963 2010 p 69 Sobre os possíveis destinos quando dos traslados ÁfricaAmérica Freyre insistiu no texto que o Brasil era para os negros escravizados o melhor desses destinos FREYRE 1963 2010 p 72 Sobre o estudo da escravidão é pertinente citar que no texto existe uma consideração de grande importância na compreensão da visão do autor sobre a escravidão Fonseca e Gustavo Henrique Tuna presente nessa edição que vai do nascimento do autor em 1900 até 2009 pela editora Global 2010 edição que usamos na presente investigação 55 Podemos afirmar também a partir da leitura do texto outro pioneirismo de Freyre Esse texto é uma sociologia e antropologia do corpo muito antes da mesma ser um campo de investigação usual na academia 56 Uma interessante leitura sobre a forma como Gilberto Freyre leu esses viajantes se encontra na importante pesquisa de TUNA Gustavo Henrique Viagens e viajantes em Gilberto Freyre Dissertação de Mestrado em História CampinasSP Universidade Estadual de Campinas UNICAMP 2003 127 f Sobretudo em relação à leitura desses viajantes por Freyre sobre os escravos negros ver o capítulo 2 p 5982 45 Ao homem escravo como ao imigrante muito deve a humanidade em geral e o Brasil em particular É justo que os estudemos com o maior dos nossos carinhos Justo que procuremos reconstituir de um depois do outro a figura por vezes heroica embora obscura revivendo ao mesmo tempo seu drama e recompondo o seu passado FREYRE 1963 2010 p 74 Apesar do drama a escravidão é interpretada insistentemente como benigna Foi uma escravidão brasileira patriarcal católica e suave A história do Brasil afirmou Gilberto está também nos jornais E como essa história é até o fim do século XIX em grande parte a história do escravo explorado aliás com certa suavidade porque o Brasil nunca foi um país de extremismos tudo aqui tendendo para amolecerse em contemporizações a adocicarse em transigências pelo senhor de engenho em geral gordo um tanto mole com rompantes apenas de crueldade pela mulher também gorda às vezes obesa e pelo filho pela filha pelo capelão pelo capitãodomato e pelo feitor de engenho FREYRE 1963 2010 p 88 A benignidade era tanta que os escravos acompanhavam consoante Freyre o luto da família do senhor quando este morria visto as carinhosas relações entre brancos e negros FREYRE 1963 2010 p 131 Mesmo apontando que as deformações nos corpos dos escravos que superabundam nos jornais analisados sobretudo dois O Commércio do Rio de Janeiro e O Diário de Pernambuco eram oriundas dos castigos no seu discurso Freyre apontou que isso se aplicava mais aos atos dos fujões FREYRE 1963 2010 p 171 do que à aleatoriedade do sadismo opressor do senhor Os anúncios de jornais também enunciavam a saudade dos cafunés FREYRE 1963 2010 p 112 apontando o intimismo que seria a base da escravidão negra brasileira Intimismo que incorporava o escravo negro como membro da família fato que derivava do modelo escravocrático árabe57 que os portugueses no Brasil reeditaram nos trópicos FREYRE 1963 2010 p 175 176 O resultado foi a escravidão 57 Sobre a escravidão árabe praticada pelos portugueses ver SOUZA Jessé A SOCIOLOGIA DUAL DE ROBERTO DA MATTA Descobrindo nossos mistérios ou sistematizando nosso autoengano Revista Brasileira de Ciências Sociais Vol 16 N 45 fevereiro 2001 p 59 Sobre os árabes e os efeitos de sua invasão em Portugal a forte presença no Brasil e na miscigenação em Portugal ver respectivamente referências na obra do próprio Gilberto FREYRE 1933 2006 p 288299 46 benigna apontada pelos idôneos estrangeiros que redigiram suas impressões das relações entre senhores e escravos negros de forma objetiva E que sem desapego a essa mesma objetividade científica Freyre afirmou ser perfeitamente defensável a tese de uma escravidão majoritariamente benigna FREYRE 1963 2010 p 185 O critério patriarcalcristianizantemaometano de tratar o escravo como membro da família segundo Gilberto escaparia à análise marxista menos atenta a essas sensibilidades FREYRE 1963 2010 p 180 181 Sempre enfatizando a sua base argumentativa e as suas fontes históricas ele defendeu serem Vários porém os depoimentos de estrangeiros idôneos insistase no valor desses depoimentos que nos permitem entrever no Brasil patriarcal um tipo de convivência senhorescravo como tendo sido de modo geral admitidas exceções de modo algum desprezíveis relativamente benigna FREYRE 1963 2010 p 177 É importante fazer uma observação nesse ponto da nossa pesquisa sobre esse texto em questão É que contraditoriamente à ideia de benignidade da escravidão os vários corpos mutilados os cegos coxos que andavam empurrando a perna sem dedos ou partes inteiras de membros com sinais de açoite as escoriações salvo as tatuagens e outras auto e mutilações feitas pelos próprios negros antes na África e depois aqui no Brasil as chamadas marcas de nação que indicavam a procedência do negro escravizado que vinha de várias regiões do continente africano apontam paradoxalmente para o aspecto ou lado mais cruel violento e sádico da escravidão negra Os detalhes mostram negros machucados mutilados com doenças e deficiências físicas causadas artificialmente pelo trabalho e pelo excesso dele inclusive os de casa os escravos domésticos que também fugiam ainda que em menor número segundo Freyre pela afetividade maior com o senhor Retomando entretanto a continuação do estudo de 1933 sobre o texto Sobrados Mucambos Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano são necessárias algumas considerações antes de adentrarmos no texto e discutir em que medida a questão da forma de análise da escravidão tem uma modificação ou seja apresenta uma leve nuance no discurso de Freyre até então 47 de insistência numa escravidão benigna embora a reafirme em certa medida porém declinando juntamente com o enfraquecimento de sua base social de sustentação o patriarcado O texto foi publicado primeiramente em 1936 uma obra para ser lida como extensão da obra de 1933 Introdução à histórica da sociedade patriarcal no Brasil 2 uma continuação agora versando sobre o Brasil Império O subtítulo da obra Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano é importante para a investigação aqui em curso por dois motivos Primeiro que entre outras coisas já enseja a ideia de modificações nas relações entre senhores e escravos Segundo dentre essas modificações a principal neste ponto de nosso trabalho é a enfática defesa da ruptura de uma ordem em que a escravidão era benigna para um acirramento das relações de oposição entre raças A escravidão agora sofrerá crescente oposição das ideias liberais inglesas a decadência do patriarcalismo que amparava os escravos negros terá forte influência negativa para os mesmos pois o patriarcalismo teria sofrido a intrusão de formas sociais mais burguesas em que a ordem escravista brasileira boa e católica teria perdido suas íntimas relações e tornarase cada vez mais impessoal econômica e distante Outro ponto interessante é a relevante e substancialmente grande modificação do texto original publicado em 1936 pela Companhia Editora Nacional volume 64 da Coleção Brasiliana Além de acréscimos nos capítulos primitivos Freyre no prefácio à segunda edição do texto em 1951 afirmou que houve a adição de cinco capítulos inteiramente novos o que de certa forma segundo o próprio autor faz do texto de 1951 um material novo frente ao de 1936 Porém essas adições não interferem em geral no problema aqui tratado A escravidão negra nesse texto nessa parte da unidade discursiva freyriana pode ser compreendida em duas perspectivas A primeira é que o tema geral é o da decadência do patriarcado ponto de coesão importante do discurso freyriano sobre a escravidão benigna interpretação apontada até este ponto de nosso trabalho Tal decadência advinda com a família Real Portuguesa 1808 faz parte da intrusão do Estado da burocracia nas relações tipicamente familiares do senhor de engenho quase déspota nos trópicos Era a intrusão da rua sobre a casa do urbano do bacharel na maioria das vezes filho do senhor rural contrastando também aqui paifilho 48 homemmulher ideias estrangeiras com a tradição etc frente ao rural do patriarca FREYRE 1936 2004 Tal intrusão também significou modificações nas relações senhorescravo Apesar de que comparado por exemplo ao seu texto de 1922 já trabalhado nesta investigação vemos certa contradição uma vez que no texto de 1922 a escravidão é vista com benignidade quase inexistindo conflitos e no texto de 19361951 ambos examinando o Brasil Império oitocentista existe uma análise diferente uma variação portanto da unidade discursiva freyriana pois a decadência patriarcal acirrou para Gilberto as tensões eclodindo disso conflitos que até então eram suavizados pelo patriarcalismo familístico do sistema casagrandesenzala Segundo que seguindo a decadência do patriarcalismo ocorreu a despersonalização do próprio escravo negro À despersonalização das relações entre senhores e escravos é que principalmente se deve atribuir a insatisfação da maioria de africanos ou descendentes de africanos no Brasil com o seu estado de escravos ou de servos E essa despersonalização tendo se verificado desde que aqui se expandiram os primeiros engenhos em grandes fábricas com centenas e não apenas de dezenas de operáriosescravos a seu serviço acentuouse com a exploração das minas e já no século XIX com as frequentes vendas de escravos da Bahia e do Nordeste para o Sul ou para o extremo Norte para cafezais e plantações de caucho exploradas às vezes por senhores ausentes ou por homens ávidos de fortuna rápida E nem sempre por senhores do antigo feitio patriarcal FREYRE 1936 2004 p 659 660 É como se a articulação entre brancos e negros via patriarcado ao se esgarçar e aos poucos se diluir fizesse com que os negros escravizados transplantados sobretudo para áreas de menos feitio patriarcal fossem inseridos em outra lógica em que a benignidade vai assumindo outra forma a de exploração impiedosa dos senhores ávidos por ganho fácil impessoais distantes longe da figura paternal e fraterna do senhor de engenho Aqui também se percebe a perda crescente da 49 hegemonia do Nordeste58 frente às outras regiões do país no desenrolar do oitocentos imperial Não que a despersonalização tivesse apagado a relação amistosa porém foi para Freyre poderoso instrumento de fomento a revolta dos escravos negros Dentro dessa perspectiva de análise é como se a base de sustentação da suposta benignidade tivesse sido seriamente abalada com a intrusão de uma lógica alheia estranha Sobrados e mucambos também de certa forma narrou o início da implementação da lógica capitalista no Brasil ainda que em simbiose quando não conflito aberto especialmente entre o bacharel de cartola e citadino frente ao patriarca rural levado em palaquins redes onde os senhores andavam carregadas por escravos e com um sádico apreço pelo mandonismo que desconhecia até então limites com a lógica rural do pater famílias senhor da casagrande de engenho mal acomodado ao sobrado porém quase empurrado para ele O senhor e o negro foram se tornando extremos antagônicos em termos de raça e de classe no século XIX FREYRE 1936 2004 p 30 O mulato foi quem amoleceu tal antagonismo caracterizando esse momento como o período da progressiva diferenciação da menor absorção do negro escravo pelo proprietário crescendo o individualismo do negro FREYRE 1936 2004 p 126 O escravo de casa família foi sendo deslocado para fora rua sendo ou ficando cada vez mais exposto às veleidades do tratamento impessoal como peça escravos máquinas situação propícia para o desenvolvimento cada vez maior de conflitos Dois tipos nitidamente diferenciados de escravos o que se conservara no serviço das casas de portas a dentro e o que se destinava à rua aos serviços de rua a vender na rua Aquele em contato com os brancos dos sobrados como se fosse pessoa da família O outro menos pessoa da casa que indivíduo exposto aos contatos degradantes da rua FREYRE 1936 2004 p 155 58 Sobre isto é interessante citar novamente o trabalho do historiador Durval Muniz em que o autor pensando o discurso freyriano como instituição sociológica do Nordeste argumentou que a perda palatina da hegemonia econômicopolítica da região faz parte do engenho antimoderno e a análise de Freyre estaria nesse sentido ao enfatizar a tradição patriarcal da sociedade açucareira e a benignidade desse mesmo patriarcalismo frente à modernidade burguesa despersonalizante Com efeito Por isso a sociedade patriarcal será tomada como exemplo de sociabilidade em que o conflito seria superado as relações de poder estariam baseadas entre pessoas e não entre classes grupos ou instituições sociais ALBUQUERQUE JÚNIOR 2011 p 113 50 As fugas de escravos foram se tornando cada vez mais frequentes à medida que as relações patriarcais iam declinando Os negros fugindo de engenhocas e sobretudo das cidades para os grandes engenhos com fama de paternalmente bons FREYRE 1936 2004 p 158 O escravo negro foi o elemento passivo na casa grande em virtude do tratamento benigno que lá recebia nos bons tempos patriarcais que a aristocracia patriarcal lhe proporcionara Afinal os sentimentos do senhor se direcionavam invariavelmente pela proximidade e a consequente afetividade maior com a escravaria doméstica Esses sentimentos o senhor patriarcal no Brasil limitavase a dispensá los àqueles escravos ou servos que considerava uma espécie de pessoas de casa mãespretas mucamas malungos E aos animais que personalizava em parentes as comadrescabras por exemplo Pelos outros sua indiferença era tal que confundiase às vezes com crueldade FREYRE 1936 2004 p 626 Esse sentimentalismo59 se dispersava à medida que as relações pessoais se tornavam relações impessoais à proporção que a família patriarcal perdia terreno para o estado burocrata em que por exemplo o agrarismo oligárquico do senhor de engenho rural da senzala fora permutado pelo mercado pelo banco pelo bacharel citadino de sobrado e o escravo amparado pessoa de casa substituído pelo pária de usina sendo reduzido aos poucos à máquina e por ela às vezes substituído tornandoo obsoleto FREYRE 1936 2004 p 622 669 679 681 De considerados 59 Duramente criticado pelo historiador marxista Jacob Gorender 19232013 por exemplo que chamou a tese de distorção em que segundo ele Freyre teria levado ao extremo a proximidade senhorescravo a ponto de vêla como benignidade GORENDER 2016 p 308 309 Ao fato de Freyre atribuir claramente uma hierarquia de tratamento no que concerne aos tipos domésticos e do eito de escravos Gorender afirmou Tomemos porém o caso das amas de leite que às vezes assumiam a figura da mãepreta nas casas senhoriais Muitas mãespretas tiveram como escreveu Gilberto Freyre carinho maternal pelos filhos das senhoras brancas que amamentaram e ajudaram criar dispensando desse esforço as débeis e prolíficas iaiás Contudo se invertemos o enfoque poderíamos lembrar a crueldade do senhor que obrigava a escrava a abandonar o próprio filho na roda dos expostos a fim de aproveitála como ama de leite do filho dele senhor ou alugála para lhe render 500 ou 600000 apenas num ano à altura de 1871 GORENDER 2016 p 506 507 Gorender afirmou que a visão de Gilberto não ultrapassa a Casagrande tendo a Senzala apenas vagamente como pano de fundo GORENDER 2016 p 309 afirmando que O escravismo colonial que inegavelmente conteve aspectos patriarcais variáveis porém não predominantes se converteu sob tal prisma em escravismo patriarcal Mas a articulação de um escravismo patriarcal brasileiro familista e benevolente para os escravos não lida afinal de contas senão com uns poucos fiapos adrede pinçados do tecido sócio histórico GORENDER 2016 p 509 51 afilhados60 a trabalhadores sem nome rosto ou afinidade dentro da estrutura de parentesco patriarcal em declínio61 De parente da senzala transformado em pária de mucambo FREYRE 1936 2004 p 502 Era a decadência do patriarcado que tanto tratou bem os negros escravos pois São várias as evidências de que escravo africano ou descendente de africano no Brasil sempre que tratado paternalmente por senhor cuja superioridade social e de cultura ele reconhecesse foi indivíduo mais ou menos conformado com seu status Raras parecem ter sido as exceções O negro com que SaintHilaire conversou em Minas Gerais e que confessou ao francês estar satisfeito com sua vida de escravo parece que deve ser considerado limpidamente representativo ou típico da sua época isto é dos tratados paternalmente pelos senhores Dos tratados como pessoas e não como animais ou como máquinas de produção FREYRE 1936 2004 p 659 Tudo isso quebrado pelo declínio do patriarcado pela difusão das ideias abolicionistas pelas perturbadoras novas relações sociais pela Lei de Terras 1850 que dificultava o acesso à terra ao negro a brecha camponesa62 pela intrusão da lógica impessoal e burguesa pela ainda que lenta mas já evidente em alguns traços forma capitalista de produção a se consolidar com o centralismo do imperador cercado de bacharéis com as novas ideias europeias de modernização via capitalismo e urbanização com que haviam entrado em contato em seus estudos em Paris ou Cambridge Era a decadência patriarcal a ferir de morte a escravidão benigna63 a despertar ódios a acirrar as tensões entre senhores e escravos 60 Foram numerosos os escravos que no sistema patriarcal brasileiro gozaram da situação de afilhados de senhores de casasgrandes e de sobrados e foram por este status especial beneficiados em suas pessoas e particularmente protegidos em saúde em seu vestuário em sua educação FREYRE 1936 2004 p 407 61 O golpe final que define a decadência do patriarcalismo foi a abolição da escravatura e sua consequência a proclamação da República BASTOS 2006 p 93 Ainda segundo a autora as relações antes pessoais se transforam em impessoais quando o engenho foi substituído pela usina e o escravo em trabalhador livre sem rosto o que os teria levado à crescente insatisfação e insubordinação derivada dessa despersonalização BASTOS 2006 p 97 itálicos da autora 62 Sobre isto a análise do historiador Ciro Flamarion S Cardoso difere fundamentalmente do exame do já citado Jacob Gorender Ver CARDOSO Ciro Flamarion S Escravo ou camponês O protocampesinato negro nas Américas Ed São Paulo Brasiliense 1987 p 107 Sobre a polêmica mais geral dos dois autores em questão ver o texto de apresentação de Mario Maestri à edição usada neste trabalho do texto já citado GORENDER 2016 p 3441 63 Sobre isto podemos perceber a crítica do historiador já citado Jaime Pinsky Estou convicto de que certos trabalhos que resgatam relações pseudoharmoniosas entre senhores e escravos são 52 Reiteramos que nossa intenção neste primeiro ponto é trabalhar com os textos de Freyre dos anos 1920 e sobretudo dos anos 1930 buscando na unidade discursiva freyriana apontar que a escravidão patriarcal teria engendrado uma relação mais branda para usar um termo do próprio Gilberto benigna e a decadência patriarcal teria sido para o autor o fator principal de ruptura dessa mesma benignidade despersonalizadora do escravo negro Sem dúvida uma análise que para além de possíveis aspectos criticáveis foi inovadora em sua época64 O mundo que a escravidão patriarcal criou para Gilberto foi uma forma de civilização que dentro das possibilidades e dos aspectos próprios do escravismo como o cativeiro os maustratos e as torturas tornouse uma maneira de vida coletiva em que a harmonia social entre senhores e escravos teria sido a regra e não a exceção histórica Nesse ponto a visão de um escravismo benigno tem na realidade histórica uma instituição discursiva que pode ser lida como uma construção que nos anos 1930 contribuiu para dar forma a uma narrativa sobre o Brasil buscandose representar a sociedade brasileira como historicamente avessa a conflitos e harmônica apesar da hierarquia do engenho Baseado como demonstramos na antropologia cultural norteamericana o autor interpretou o fenômeno da escravidão buscando ressaltar sua positividade A forma de análise baseada em fontes como os relatos de viajantes estrangeiros dos mais idôneos fez o autor entender a escravidão negra brasileira principalmente a doméstica dos engenhos menos como fator de produção e mais como amálgama cultural A sexualidade e a miscigenação racial da casagrande penetrando e sendo penetrada pela senzala agiram como os verdadeiros corretivos entre os extremos que para Freyre teriam se mantido quase incomunicáveis sem esse intenso equívocos que encobrem a verdadeira essência da escravidão seu caráter cruel e sua influência perversa na formação de nossa sociedade PINSKY 2018 p 8 64 Gilberto Freyre argumentou contra a teoria racista e fez notáveis descobertas sobre as raízes africanas da cultura brasileira mérito a respeito da qual a crítica da esquerda tem sido omissa Mas isto veio conjugado a duas teses fundamentais a do caráter patriarcal excepcionalmente benigno da escravidão lusobrasileira e da vigência da democracia racial em nossa sociedade GORENDER 1990 p 13 53 intercurso sexual entre os senhores e suas molecas O histórico patriarcalismo65 foi menos violência e mais mistura uma realidade que Freyre identificou como singularidade da nossa história nacional Em síntese frisemos aqui que neste estudo de história intelectual e história social das ideias em que buscamos principalmente o diálogo e a comparação entre a unidade discursiva freyriana dos anos 192030 e a unidade discursiva de Florestan Fernandes dos anos 195060 optamos por apontar as críticas a Gilberto e seguiremos desse modo em relação a Florestan advindas de historiadores da escravidão apenas de forma marginal sobretudo em notas Dito isto cabe no momento após nota biográfica iniciarmos a análise da obra florestaneana a partir daqui para que o leitor veja a diferença através de uma mudança na interpretação sobre a escravidão negra que ocorre nesse período a partir dos anos 195060 13 O cientista e revolucionário Eu nunca teria sido o sociólogo em que me converti sem o meu passado e sem a socialização pré e extraescolar que recebi através das duras lições da vida66 Duras lições pobreza trabalho infantil marginalização social na São Paulo dos anos 192030 essas são algumas características expostas no trecho acima que se referem bem à trajetória de Florestan Fernandes O cientista social brasileiro militante e engajado que foi Florestan nasceu em um cortiço no ano de 1920 Sua trajetória de vida marcou profundamente sua forma de analisar e interpretar a sociedade brasileira A visão aguçada do social percebendo as contradições e a marginalização da maioria foi uma marca sempre presente em seus textos e reflete também além das escolhas teóricas como a própria experiência de vida de Florestan diferiu frontalmente da de Gilberto Freyre 65 É importante notar aqui segundo Jessé Souza que Patriarcalismo para ele Freyre tem a ver com o fato de que não existem limites à autoridade pessoal do senhor de terras e escravos SOUZA 2017 p 51 66 1 Nota biográfica In IANNI Octávio Florestan Fernandes Ed São Paulo Ática 2008 p 8 Coleção Grandes cientistas sociais 54 Florestan foi um sociólogo singular em vários sentidos Sua história de vida que iremos aqui resumir em termos de apresentação ao leitor mostra que o autor em questão teve uma peculiar trajetória como intelectual militante e cientista social A opção pelos objetos de estudo o rigor metodológico as formas sempre imperantes em seus textos de demonstrar as pontas soltas os marginalizados ou os que ele caracterizou como historicamente excluídos em nossa interpretação está diretamente associada à sua vida pessoal de morador de cortiço de trabalhador infantil da ausência de escolarização contínua e de qualidade de ter sido olhado como um menino de rua ou como um colega de sala de segunda classe na USP enfim de pessoa que vinha de baixo porém contra as expectativas de muitos que superou barreiras sociais como poucos na história intelectual brasileira do século XX Iremos nos concentrar aqui no aspecto mais propriamente intelectual de Florestan na sua formação como pesquisador e professor Entretanto alguns momentos de sua vida pessoal foram segundo os biógrafos que consultamos decisivos no processo de constituição do cientista e revolucionário Na história intelectual brasileira o nome de Florestan Fernandes tem uma relevância considerável sem dúvida enorme para os pesquisadores sobre escravidão conflitos étnicos e processos sociais em que a crítica ao sistema econômico e político ganha relevo Porém o que poucos sabem é que a vida de Florestan foi ela mesma um processo complexo e contraditório assim como a história brasileira Florestan Fernandes nasceu na cidade de São Paulo no dia 22 de julho de 1920 Pai desconhecido sua mãe era Maria Fernandes imigrante portuguesa A infância de Florestan lhe fora roubada no sentido de que teve de trabalhar em diversos ofícios para ajudar no seu sustento e no de sua mãe O seu primeiro serviço foi limpando roupas numa barbearia aos sete anos apenas depois passou para o ofício de engraxate Foi nesse período como engraxate que ele adentrou na experiência social direta como menino de rua como mais um dentre os que tinham pela imperiosa necessidade material de abdicar dos estudos para sobreviver A aprendizagem escolar formal de acordo com Laurez Cerqueira em Florestan Fernandes vida e obra 2004 antes do período da USP foi a seguinte 1 O curso primário incompleto até o terceiro ano Grupo Escolar Maria José Bela Vista São Paulo 2 Curso secundário e Colegial Curso de Madureza sob o artigo 100 Ginásio Riachuelo anos letivos de 1938 1939 e 1940 CERQUEIRA 2004 p 179 55 Durante esse período sobretudo no intervalo entre o primário e o ginásio Florestan dentre outros ofícios foi garçom de um restaurante chamado Bidu lá foi convencido a retornar a estudar pelos próprios clientes em especial um jornalista que ficara admirado com aquele garçom que lia atrás do balcão CERQUEIRA 2004 p 27 Fundada em 1934 a Universidade de São Paulo importou vários intelectuais estrangeiros para compor seu quadro docente principalmente franceses e estadunidenses67 Na universidade foi fundada a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras e a Escola Livre de Sociologia e Política O ensino era ministrado nos moldes europeus a língua dos professores era mantida e para o acompanhamento dos cursos e das aulas assim como quando do processo seletivo para o ingresso se subentendia o conhecimento prévio de idiomas como alemão francês e inglês e de textos de edições estrangeiras68 O que foi uma barreira intransponível para muitos Florestan apesar da formação escolar precária e assistemática superou e participou da seleção Assim após estudar os caminhos possíveis Florestan ingressa em 1941 aos 21 anos no curso de ciências sociais da Faculdade Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo FFCLUSP obtendo sucesso num difícil processo seletivo A banca examinadora era composta pelos professores franceses Roger Bastide e Paul Bastide Sorteado os pontos os candidatos tinham de comentar os assuntos e responder às perguntas da banca Para Florestan foi sorteado o trecho de um livro de Émile Durkheim o pai da sociologia Como o ponto e as perguntas eram em francês Florestan que mal lia nesta língua pediu aos professores para fazer a prova em português Ainda que surpresos diante do insólito pedido Roger e Paul decidem aceitar OLIVEIRA 2010 p 1516 Após o ingresso como um dos seis aprovados a que concorreram vinte e nove candidatos Florestan iniciou sua vida estudantil na USP tendo ainda que dividir seu tempo de estudo com o trabalho agora como vendedor de produtos farmacêuticos A 67 Figuras como o historiador francês Fernando Braudel 19021985 e o sociólogo estadunidense Donald Pierson 19001995 que foi professor e depois colega docente de Florestan formaram o primeiro corpo docente da área das ciências humanas na USP 68 Sobre a fundação da USP e da trajetória das ciências sociais no Brasil ver JACKSON Luiz Carlos Gerações pioneiras na sociologia paulista 19341969 Tempo social Revista de sociologia da USP v 19 n 1 2007 p 115130 E MICELI Sergio 1989 Por uma sociologia das ciências sociais In org História das Ciências Sociais no Brasil São Paulo VérticeIdespFinep vol 1 56 amizade com o professor Roger Bastide 18981974 e principalmente com Fernando de Azevedo 18941974 foi determinante para a sua carreira acadêmica69 Durante os anos 1940 paralelo ao trabalho e aos estudos Florestan militou em uma organização trotskista o chamado Partido Socialista Revolucionário PSR porém a militância foi efêmera e o autor optou por se dedicar exclusivamente às pesquisas na universidade CERQUEIRA 2004 p 4243 Nos anos de 1946 e 1947 Florestan estudou na Escola Livre de Sociologia e Política da USP sob a orientação de Herbert Baldus 18991970 Estudou e apresentou para a obtenção do título de mestre em Antropologia o texto A organização social dos Tupinambá em que investigou mediante os relatos dos cronistas seiscentistas a extinta sociedade tupinambá que causou admiração e espanto em antropólogos de renome como LéviStrauss 1908200970 Seguiuse a esse trabalho o texto A função social da guerra entre os Tupinambá defendido em 1952 como tese de doutoramento em Sociologia dessa vez sob orientação de Fernando de Azevedo Esse período de produção dos textos de pósgraduação tem grande relevância pois foi no estudo dos indígenas que já emergia o sociólogo 69 Antônio Candido outro estudante da recém formada USP em artigo O jovem Florestan afirmou sobre esse período que Tendo sido estudante notável quando se formou mais de um professor quis têlo como assistente Penso que entre eles estava Roger Bastide que sempre o admirou e estimou e caso tivesse vaga no momento o indicaria Certamente estava Paul Hugon de Economia Política matéria na qual Florestan brilhara inclusive analisando a obra pesada de Simiand sobre a moeda Mas ele acabou aceitando o convite de Fernando de Azevedo que o indicou para a vaga de 2 assistente da Cadeira de Sociologia II pois o colega que exercia esta função José Francisco de Camargo depois de titular e diretor da Faculdade de Ciências Econômicas preferira demitirse a fim de concorrer a uma cadeira de sociologia de ensino normal cargo que naquele tempo era não apenas melhor remunerado mas tinha a vantagem de dar acesso a uma carreira com aposentadoria assegurada A propósito convém esclarecer que o assistente da Universidade era um funcionário sem qualquer garantia nomeado por indicação do professor e demissível a qualquer momento por simples comunicação escrita dele sem necessidade sequer de justificativa Por isso não tínhamos carreira e éramos assistentes dos professores mais do que da instituição o que seja dito não era ruim se o professor fosse bom A partir de 1944 portanto Florestan Fernandes e eu fomos os dois assistentes de Fernando de Azevedo na Cadeira de Sociologia II CANDIDO 1996 p 11 70 Claude LéviStrauss antropólogo francês que foi professor de Sociologia em São Paulo ao tomar conhecimento do livro disse que Florestan havia realizado verdadeira façanha Foi categórico disse tratarse de uma obra que havia revolucionado a Antropologia CERQUEIRA 2004 p 48 57 comprometido com a reconstrução histórica sob um critério científico e mais formal71 que não correspondia com a forma mais ensaística72 de Gilberto Freyre por exemplo Com a cátedra de Sociologia I vaga em 1953 após o retorno de Roger Bastide para a França Florestan alcançou o cargo de professor livredocente com o texto Ensaio sobre o método de interpretação funcionalista na sociologia Nos anos que se seguiram até 1964 o autor enquanto professor e pesquisador orientou e organizou uma série de pesquisas do que comumente se chama de Escola Paulista de Sociologia73 Em 1964 com A integração do negro na sociedade de classes tornou se catedrático na USP sendo compulsoriamente aposentado da universidade pelo regime militar chegando a ser perseguido e preso em 1964 por ser crítico feroz do regime partindo para o exílio em 196974 Exilado no Canadá foi professor titular da Universidade de Toronto até 197275 quando volta ao Brasil Não retornou porém à USP e sim a convite de Dom Paulo Evaristo Arns 19212016 para a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Na PUC Florestan daria um curso que se tornaria célebre sobre a Revolução Cubana e que indicava dentre outras coisas que o marxismo já operava na obra do autor de uma forma mais clara e preponderante o que poderia corresponder a uma ruptura epistemológica com as análises mais funcionalistas dos anos 1950 e 1960 FREITAG 2005 A década de 1980 foi de intensa militância política e de engajamento partidário Se o cientista austero preocupado com um projeto de racionalização baseado numa cientificidade rígida da análise sociológica dos anos 1950 e 1960 não se comprometia 71 Embora tenhamos que ressaltar que a antropologia praticada por Florestan apesar dos méritos inegáveis também deixou aspectos obscuros quando não incongruentes Sobre isto ver LEIRNER Pierre C A antropologia que Florestan esqueceu Novos estudos CEBRAP v 36 n 108 2007 P 159 180 72 Sobre o ensaísmo predominante antes da USP e seu projeto cientificista mais formal após a sua fundação ver JACKSON Luiz Carlos Tensões e disputas na sociologia paulista 19401970 Revista Brasileira de Ciências Sociais Vol 22 n 65 2007 p 35 73 Dentre os membros dessa escola e orientandos de Florestan se destacaram Octavio Ianni 1926 2004 e Fernando Henrique Cardoso 1931 Os textos de tese de doutoramento de ambos já refletem a mudança na forma de analisar a escravidão REIS 2006 p 210 211 Iremos apontar isso mais adiante 74 Em artigo intitulado Florestan Fernandes revisitado Bárbara Freitag apontou que No início de 1969 o sociólogo em questão perdeu sua cátedra de sociologia na USP com sua aposentadoria compulsória pelo regime que se instaurou com o Golpe militar de 1964 e o AI5 de 1968 FREITAG 2005 p 231 75 O que destaca o reconhecimento internacional do autor Sobre isso e a carreira de Florestan em geral ver GARCIA Sylvia G Destino ímpar sobre a formação de Florestan Fernandes Ed Editora 34 São Paulo 2002 58 com uma forma de sociedade diferente e nem com a luta para a instituição da mesma no caso do socialismo Florestan deu um passo e abraçou a causa de forma evidente quando se filiou ao Partido dos Trabalhadores PT no início dos anos 1980 e elegendose já em 1986 para a Assembleia Constituinte de 198876 Reeleito para um segundo mandato Florestan inicia a década de 1990 com a saúde bastante debilitada Uma transfusão de sangue contaminado em 1972 já o tinha feito contrair uma hepatiteC Assim como Gilberto Freyre Florestan não terminou sua vida praticamente como um inválido pois participava da vida parlamentar da atividade jornalística escrevendo artigos em jornais e redigindo textos de sociologia com a densidade característica de toda a sua trajetória intelectual que primou pela exatidão pela bibliografia extensa notas e mais notas explicativas e por um estilo particularmente denso porém apaixonado e defensor aguerrido dos excluídos Contudo após um transplante de fígado Seis dias depois do transplante no dia 10 de agosto de 1995 na fase de recuperação Florestan faleceu por descuido da equipe médica vítima de uma embolia provocada pela entrada de uma imensa quantidade de ar em vez de sangue nos vasos sanguíneos dos pulmões coração e cérebro CERQUEIRA 2004 p 173 Era o fim de uma trajetória de vida e de produção acadêmica marcante na história intelectual brasileira do século XX Paradoxalmente um homem que tanto acreditava na ciência morreu em virtude de um erro de cientistas Um socialista que combinava paixão e denúncia com método e densidade interpretativa em seus textos Morria assim de forma banal o cientista e revolucionário inovador uma inspiração para toda uma geração e que abriu fronteiras e perspectivas novas e variadas sobre a análise de temas diversos da formação nacional dentre eles destacaremos a seguir o tema da escravidão negra 76 A partir desse momento como parte de sua própria noção de tarefas da inteligência se pôs a serviço na Assembleia Constituinte a trabalhar intensamente sobre a questão da educação básica gratuita e pública SEREZA 2005 59 14 O pragmatismo econômico e a reiteração da violência No texto Brancos e negros em São Paulo 1955 teve início de forma sistemática a análise da escravidão negra como um objeto de investigação por parte de Florestan Tal estudo que chegou a ele por meio de uma pesquisa encomendada sobre relações raciais no Brasil sendo solicitada a Roger Bastide que prontamente indicou seu assistente na cadeira de Sociologia I da USP77 tem uma dupla raiz tanto uma petição da revista Anhembi como um pedido da Unesco intermediado pelo antropólogo Alfred Métraux 19021963 que em 1951 foi incumbido da missão pela instituição internacional em questão de investigar conflitos étnicos no mundo pós guerra mundial78 A ideia da Unesco era apresentar tendo o Brasil como um laboratório o país como um símbolo da harmonia racial em contraste sobretudo com as relações de conflito étnicoracial vigentes em outras sociedades79 Em termos de método o contraste com a forma de análise freyriana dos anos 1930 é evidente e o destacamos aqui em duas perspectivas A primeira é o largo uso dos censos das fontes estatísticas dos fatores quantitativos no sentido de categorizar de maneira científica tendo em vista o projeto científico desse grupo da USP as formas de exclusão do negro escravo A segunda é o modo de interpretar a escravidão que priorizou e enfatizou o lado econômico escravidão mercantil e 77 Sobre isto ver Capítulo 4 A pesquisa de Roger Bastide e Florestan Fernandes In PRAXEDES Rosângela Rosa Projeto UNESCO quatro propostas para a questão racial no Brasil Tese de doutorado em Sociologia São Paulo Pontifícia Universidade Católica PUCSP 2012 p 119167 No capítulo em questão a autora trata de forma detalhada da pesquisa encomendada pela Unesco a Roger Bastide que associou Florestan ao projeto e como o resultado dessa pesquisa foi na contramão do pretendido pela instituição 78 Fernando Henrique Cardoso que chegou a colaborar como um dos assistentes de pesquisa na época em texto introdutório Uma Pesquisa Impactante à edição utilizada neste trabalho do livro de Bastide e Florestan afirmou sobre isso que Foi nesse contexto que o então diretor de Ciências Sociais da Unesco Alfred Métraux chegou a São Paulo com a idéia sic de se fazer uma pesquisa sobre contacto sic interétnico no Brasil Os primeiros passos do estudo na cidade de São Paulo já haviam sido dados graças ao referido patrocínio da revista Anhembi anterior a proposta da Unesco BASTIDE FLORESTAN 1955 2008 p10 79 Lilia Moritz Schwarcz afirmou sobre isso que O consenso momentâneo só pode ser entendido portanto levandose em conta o contexto do pósguerra sendo que a crítica alcançava ainda a persistência do racismo nos Estados Unidos e na África do Sul bem como os novos problemas criados pela descolonização na África e na Ásia É fato que a instituição não desconhecia as desigualdades sociais existentes no país mas é evidente também que confiante nas análises de Freyre e Pierson a Unesco alimentava o propósito de usar o caso brasileiro como material de propaganda e com esse objeto inaugurou o Programa de pesquisas sobre relações raciais no Brasil FERNANDES 1972 2007 p 14 60 reiterou as formas discriminatórias e a exclusão do escravo e principalmente a violência legitimada por intermédios oficiais como a legislação vigente Os textos de Florestan nesse livro80 em coautoria com Bastide são claros no sentido de apontar o caráter econômico ou o fundamento pecuniário da escravidão negra e do caráter exploratório desse tipo de relação social Os africanos transplantados como escravos para a América viram a sua vida e o seu destino associarse a um terrível sistema de exploração do homem pelo homem em que não contavam senão como e enquanto instrumento de trabalho e capital a substituição do escravo indígena pelo escravo negro africano ou crioulo adquiria o caráter de um imperativo econômico BASTIDE FERNANDES 1955 2008 p 27 35 Itálicos do autor A interpretação da escravidão negra na perspectiva de Florestan se difere frontalmente da visão do patriarcalismo benigno de Freyre O escravo é um instrumento de produção pois a escravidão como instituição social se articula dinamicamente com o sistema econômico de que fazia parte se era por ele determinada reagia sobre ele por sua vez e o determinava BASTIDE FERNANDES 1955 2008 p 42 Como instrumento de trabalho e capital o escravo foi visto por ele não como pessoa de casa ou da família mas sim como uma peça numa engrenagem maior da produção social da existência Nessa sociedade estamental ele foi agente passivo rude instrumento de trabalho afinal sobre os ombros dos negros repousava o próprio funcionamento e as engrenagens que moviam o sistema econômico BASTIDE FERNANDES 1955 2008 p 53 A escravidão era a base de um regime de exploração e não de acomodação racial Os privilégios dos brancos que ocupavam todas as funções com alguma expressividade social são exemplares nessa perspectiva de análise O status do negro 80 No caso I Do Escravo ao Cidadão In BASTIDE Roger FERNANDES Florestan Brancos e Negros em São Paulo ensaio sociológico sobre aspectos da formação manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana 4 ed São Paulo Global 2008 p 2790 1955 II Cor e Estrutura Social em Mudança In BASTIDE Roger FERNANDES Florestan Brancos e Negros em São Paulo ensaio sociológico sobre aspectos da formação manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana 4 ed São Paulo Global 2008 p 91153 1955 e V A Luta contra o Preconceito de Cor In BASTIDE Roger FERNANDES Florestan Brancos e Negros em São Paulo ensaio sociológico sobre aspectos da formação manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana 4 ed São Paulo Global 2008 p 224264 1955 61 era inferior ao do branco isto é negritude e escravidão eram conectadas numa forma de relacionamento social que deformou o negro e era balizada por formas sociais violentas e humilhantes A escravidão negra sob o julgo patriarcal não era um paraíso étnico e sim um inferno para o escravo Nada de realização excepcional do português plástico como em Freyre Na perspectiva de Florestan um pragmatismo econômico operava fortemente quando da sua análise do fenômeno históricosocial da escravidão como ele mesmo apontou o recurso à escravidão se impôs como um imperativo de adaptação dos colonizadores à economia colonial na forma que ela deveria assumir nas regiões tropicais BASTIDE FERNANDES 1955 2008 p 92 A organização social do trabalho nada tinha de uma irmandade patriarcal o branco era senhor dono e dominante e o negro era seu escravo O esforço de Florestan em demonstrar o caráter econômico da escravidão negra de sua exploração pode ser compreendido de duas maneiras A primeira é que o sociólogo paulista estava preocupado em informar seus leitores numa visão mais pragmática e direta Sem os rodeios do culturalismo de Freyre e sim por meio de uma compreensão de orientação mais realista e de certa forma mais mecânica o autor se notabilizou em demonstrar que a escravidão foi um recurso de uma metrópole espoliativa e não uma ação nobre do espírito aventureiro lusitano São mercadores que lucram senhores que dominam e homens que exploram outros homens na escravidão A segunda é que o critério da cor ou seja a consciência racial que em Freyre como demonstramos antes praticamente inexistia tanto no português plástico como no mestiço era um fator fundamental de justificação e legitimação da escravidão Se as condições de convivência entre os senhores e os escravos favoreciam a retenção de um caráter físico que poderia por sua natureza exprimir simbolicamente a distância que existia entre as duas camadas sociais não é menos verdade que a própria dinâmica da sociedade de castas que eles constituíam dependia estreitamente de um elemento que servisse como fonte de justificação e de legitimação da conduta expoliativa e exclusivista dos senhores Esse elemento foi a cor que passou a indicar mais que uma diferença física ou uma desigualdade social a supremacia das raças brancas a inferioridade das raças negras e o direito natural dos membros 62 daquela de violarem o seu próprio código ético para explorar outros seres humanos O fundamento pecuniário quer da escravidão quer da exploração do escravo compeliu os brancos a procurar razões emocionais e morais da escravidão fora da relação senhorescravo BASTIDE FERNANDES 1955 2008 p 96 A escravidão estava ligada à seleção da cor como marca social e racial A alienação social da pessoa do negro se processou incialmente como alienação social da pessoa do escravo FERNANDES BASTIDE 1955 2008 p 96 Temas e ideias como alienação e consciência racial são frutos de outro momento dos discursos sociológicos brasileiros Nos anos 1940 e 1950 na USP o núcleo de estudos sociais em que Florestan falava ou seja seu lugar de produção intelectual já combinava a análise funcionalista81 com elementos do materialismo histórico embora o marxismo propriamente dito só viesse a operar claramente nos textos de Florestan no final dos anos 1960 FREITAG 1996 A análise da escravidão nesse momento vai de encontro com as aspirações intelectuais da chamada Escola Paulista de Sociologia da USP a de fundar um centro de estudos sociais no país que fosse ao mesmo tempo rigorosamente científico e crítico sem panfletagem partidária e também fizesse necessariamente a revisão e a crítica das análises anteriores sobre a escravidão negra82 O sistema de produção escravista fazia do escravo uma peça um capitalhumano subordinado a relações de produção que o oprimia e o discriminava nessa forma social que Florestan denominou de castas Afinal 81 Que ele empregou nos textos de mestrado 1947 doutorado 1951 e na tese de livredocência 1953 82 No texto Florestan Fernandes e a formação da sociologia brasileira Octavio Ianni apontou que A escravatura nasce da colonização A pesquisa e a reinterpretação da escravatura compreendem um largo e fundamental capítulo da história da formação do povo brasileiro Daí a importância de uma reflexão crítica sobre as condições e implicações do escravismo Um regime de trabalho que fundamentou toda a vida social econômica política e cultural ao longo de praticamente quatro séculos Um regime de trabalho que implica a incorporação forçada e predatória de populações indígenas e africanas sacrificando modos de vida e trabalho culturas línguas religiões visões de mundo A análise da escravatura envolve a crítica das interpretações prevalecentes In IANNI Octavio Florestan Fernandes Ed São Paulo Ática 2008 Grandes cientistas sociais p 23 63 Inerente à própria organização da sociedade escravocrata a discriminação racial manifestavase sob todas as suas formas típicas Praticamente o escravo não conhecia outro direito senão o que estipulava a vontade ou o arbítrio do senhor não gozava de nenhuma capacidade civil e suportava todos os deveres que a mesma vontade ou arbítrio julgasse conveniente imputarlhe BASTIDE Roger FERNANDES Florestan 1955 2008 p 99 Escravidão e exploração a colonização do Brasil como um processo de violência racial e de violação dos códigos éticos de conduta cristã que balizavam aquilo que Florestan nomeou de mores dominantes são argumentos que se contrapõem em nossa análise à forma mais culturalista de interpretar o escravismo brasileiro feita por Freyre nos anos 1930 Porém além das diferenças discursivas existem certamente temas e ideias recorrentes quando não temáticas comuns todavia trabalhadas e vistas de uma forma diferente A violência sobre o escravo não era apenas um fator excepcional Fora da norma social era parte fundamental do sistema A violência sistemática integrava a lógica de manter os grupos étnicos numa distância social em que um dominava e o outro era o objeto dessa dominação É interessante notar como o autor tem uma clara influência do pensamento de Caio Prado Júnior 19001990 à época professor da USP83 e como a visão mais pragmática de Caio operava como uma referência intelectual para Florestan e sua equipe84 A questão da sexualidade muito bem explorada em Freyre também é uma temática comum em Florestan As conclusões contudo se contrastam uma vez que a incorporação ao sistema de parentesco do branco que Freyre chamou de família extensa se deu de forma violenta e não plenamente no sentido de uma só família pois isso seria igualar brancos e negros Em termos de função social seria uma função regular da escrava proporcionar aos senhores a satisfação de suas necessidades sexuais BASTIDE FERNANDES 1955 2008 p 99 Como se 83 Os textos Formação do Brasil Contemporâneo Colônia 1942 e História Econômica do Brasil 1949 de Caio Prado Júnior são muito citados por Florestan 84 Sobre isso o historiador Robert Slenes ao fazer uma revisão da historiografia sobre o escravismo afirmou que um grupo de autores influenciados por Prado ou com preocupações semelhantes frequentemente apelidado Escola Paulista de Sociologia procurou aprofundar sua análise do escravismo enfatizando como ele a marginalização dos homens livres pobres e a vitimização do escravo por um sistema econômico nefasto SLENES 2011 p 38 64 depreende da visão do autor a violência sobre o escravo era inclusive nas próprias questões que giram em torno da noção de família Se em Freyre a família extensa patriarcal abrigou os escravos como filhos para Florestan essa questão é vista sob outra perspectiva A incorporação do elemento de cor no núcleo legal da família grande acarretaria o reconhecimento formal da igualdade social entre o branco e o negro ou mulato Para evitar que isso acontecesse formaramse representações contrárias ao intercasamento as quais subordinavam as relações matrimoniais a padrões endogâmicos Nesse sentido os dois grupos raciais se integravam originalmente em um sistema de castas e as proibições de casamento interracial asseguravam pela base a integridade social do grupo racial dominante Não só as parceiras sexuais escravas não se elevavam à situação social dos senhores como os filhos dessas uniões se conservavam na mesma condição que as mães princípio do partus sequitur ventrem BASTIDE Roger FERNANDES Florestan 1955 2008 p 98 99 Isso configura uma mudança importante de interpretação da escravidão negra Não para anular ou desconsiderar a perspectiva anterior de Freyre85 A discriminação legal e política do negro era decorrência da própria condição de escravo o negro escravizado estava incapacitado em termos de cidadania não podendo denunciar seu senhor e este praticamente desconhecia pura e simplesmente qualquer limite em relação a castigos físicos e de toda ordem no sentido de oprimir e sujeitar o negro a uma condição de aviltamento social Nesses pontos reside o que consideramos como a reiteração da violência nessa unidade discursiva de Florestan Com exceção dos atos criminosos ilícitos e imorais o senhor tudo podia exigir do escravo com o beneplácito da lei obrigando 85 Como afirmou Fernando Henrique Cardoso em texto introdutório já citado à edição aqui utilizada Florestan Fernandes e Roger Bastide não desconheceram a importância da obra de Gilberto Freyre e suas análises sobre o amestiçamento cultural e racial dos brasileiros Pelo contrário tanto a ideologia das relações ditas cordiais como as práticas mais suaves de tratamento na CasaGrande e o ambiente culturalsentimental que envolvia as relações entre negros e brancos assim como a maior aceitação do mestiço do mulato formavam parte de acomodações interétnicas que impediam as relações de conflito aberto e jogavam importante papel na ordem escravocrata e posteriormente também na sociedade de classes BASTIDE FLORESTAN 1955 2008 p 12 65 se em troca exclusivamente a vestilo alimentálo e proporcionarlhe assistência em suas doenças A legislação vigente só não concedia aos senhores o direito de vida e de morte sobre seus escravos bem como a faculdade de infligir lhes sevícias e castigos corporais açoitamento doméstico além de certos limites Sob o ponto de vista legal e político portanto o contraste entre as duas camadas sociais era completo todas as garantias sociais desfrutadas pela camada dominante não tinham aplicação de nenhuma forma à camada servil A lei consagrava a escravidão e sancionava sem restrições a expoliação de um grupo racial por outros BASTIDE Roger FERNANDES Florestan 1955 2008 p 104 O universo das leis e do Estado as formas de discriminação formalmente legalizadas e o caráter franca e claramente espoliativo do branco sobre o negro na sociedade escravista são expostos nessa perspectiva como pontos de referência para pensar o lado nefasto da instituição da escravidão negra no Brasil Apesar do estudo do autor ter tido como foco principal a região de São Paulo nessa e em outras partes do livro o mesmo trabalhou numa visão mais geral afirmando que o caso paulista em relação à violência e o caráter mercantil da escravidão não diferia em forma mas apenas em grau escala menor do que foi o geral no Brasil Ainda sobre a violência ele afirmou que aliás as limitações sobre o direito de castigar os escravos sempre foram inócuas e a instituição pode durar quase tanto o próprio regime servil pois só foi abolida em novembro de 1886 BASTIDE FERNANDES 1955 2008 p 104 nota 43 A sociedade escravocrata era na verdade segundo Florestan ao invés de um único organismo social na forma do sistema casagrandesenzala duas sociedades que coexistiam A discriminação social abrangia naturalmente todas as esferas ou situações da vida social As fronteiras que separavam o senhor e o escravo só permitiam que eles se encontrassem nessa qualidade em todas as circunstâncias ainda que existissem laços afetivos entre ambos Na verdade senhores e escravos formavam duas sociedades distintas que coexistiam no seio de uma ordem social inclusiva BASTIDE FERNANDES 1955 2008 p 104 Grifo nosso Isso aponta para a perspectiva do autor em demonstrar por meio de uma investigação científica pautada em largo uso de fontes estatísticas como o sistema 66 categorizado como uma sociedade de castas em que os estamentos sociais antagônicos do sistema se relacionavam pautados numa lógica discriminatória em relação ao escravo produziu uma forma de vida social em que duas sociedades interagiam E mesmo que essa interação tenha atingido inclusive questões de foro íntimo laços afetivos entre senhores e escravizados as fronteiras ou seja as distâncias sociais que os separavam eram flagrantes e enormes A estratificação social em castas impôs a segregação social do elemento servil Como peça o negromáquina passivo é o elemento da base do sistema econômico e social Apesar de sua significância vital para o sistema ele era completamente desconsiderado86 através dos meios oficiais e jurídicos e excluído pelos meios sociais que o discriminavam reiteradamente O sistema era fechado e sufocante para o escravo a vigilância a violência e a constante coerção visavam desintegrar qualquer forma embrionária tão logo surgisse de união ou perspectiva de identificação entre os escravizados Isso era essencial em um sistema que garantia sua coesão estamental por meio de um pragmatismo econômico negroforçade trabalho e reiterada violência que mesmo com limitações jurídicas87 eram estas praticamente desconsideradas BASTIDE FERNANDES 1955 2008 p 104 nota 43 Sobre questões ligadas à sexualidade à família e ao patriarcado temaschave na interpretação de Freyre Florestan também ressaltou os aspectos da exclusão e não da inclusão bem longe de ver na família extensa aliás como se depreende de sua análise essa inexistia aspectos de benignidade Ele percebeu como a sexualidade o núcleo familiar e o casamento dos escravos mesmo admitindo a existência de certo paternalismo que suavizava as relações essencialmente violentas para com os escravos domésticos ou crias da casa eram também regulados e expressavam a realidade dura para o negro escravo A vida sexual dos escravos não encontrava uma expressão normal e reguladora no matrimônio Parece que reinou durante muito tempo um 86 A rejeição do escravo nas ocupações nobilitantes praticadas correntemente na vida social era sancionada por lei Em virtude de sua incapacidade civil os escravos não tinham acesso a cargos públicos e eclesiásticos não podendo sequer ser admitidos como praças no exército e na marinha BASTIDE Roger FERNANDES Florestan 1955 2008 p 108 87 No Brasil as leis relativas aos escravos sempre foram frustradas pelos senhores disposições legais destinadas a limitar os castigos não passavam de letra morta BASTIDE Roger FERNANDES Florestan 1955 2008 p 109 Itálico do autor 67 regime de pater incertus mater certa no interior das senzalas o qual era incentivado pelos próprios donos das escravas Além disso as mulheres mais bonitas e novas eram requestadas pelos senhores por seus filhos ou por outros homens de família e não se levava a sério as uniões feitas pelos próprios escravos Separavase o homem da mulher tão facilmente quanto os filhos das mães sem nenhuma consideração para com os sentimentos dos prejudicados O casamento do escravo com uma companheira representava um bom recurso para prendêlo ao senhor e sua família Em suma legalmente não existia uma família escrava e socialmente tanto a estabilidade quanto a harmonia dos matrimônios feitos formalmente dependiam de modo direto dos senhores Os escravos excluídos do núcleo legal da família patriarcal viam seu próprio casamento continuamente ameaçado pela concupiscência ou pela devassidão dos senhores BASTIDE FERNANDES 1955 2008 p 106 107 108 Grifo nosso Evidentemente a questão da inexistência de reconhecimento legal da família escrava não anula a sua existência histórica88 O que importa aqui é observar que em nossa análise mais uma vez esse conjunto de ideias contrastava com a interpretação de Freyre cujo ponto alto do discurso era atentar para o fato de que o patriarcado era excludente e não a unidade orgânica de integração cultural que teria engendrado uma escravidão benigna Um aspecto que se desenvolveu dessa perspectiva de análise que priorizava a questão econômica e a violência foi a percepção histórica do escravo como uma coisa Não como um homem mas como uma coisa isto é o escravo negro era a coisa do branco parte de suas posses e não seu irmão ou parente pobre agregado Nas relações sociais o escravo estava para o senhor ou os familiares e dependentes brancos dele na mesma posição que uma coisa está para seu dono A uma desigualdade tão fundamental tinha que corresponder forçosamente um tratamento assimétrico De um lado estavam os que podiam mandar e conceder de outro os que deviam obedecer e consentir BASTIDE FERNANDES 1955 2008 p 112 88 Frisese que Para Fernandes as duras condições da escravidão e mais especificamente o esforço dos senhores de tolher e solapar todas as formas de união ou de solidariedade dos escravos não apenas tornaram os grupos de parentesco extremamente instáveis mas também destruíram as normas familiares dos cativos deixandoos sem regras para a conduta sexual que incentivasse a formação de unidades familiares ao longo do tempo SLENES 2011 p 39 68 Ao considerar o escravo como uma coisa em nossa análise Florestan buscou demonstrar categoricamente que o sistema escravista não poderia ser considerado como benigno ou familístico e que excepcionais relacionamentos mais intimistas em alguns núcleos de engenho não embasam ou servem de parâmetro explicativo para interpretar a escravidão negra sob a égide de uma suposta suavidade A coisa escravo era uma engrenagem numa engenhosa estrutura social em que a exploração pesava sobre ele com toda intensidade e lhe sugando as forças até a última gota de suor89 Essa forma de ver ou seja essa percepção do escravo como uma coisa influenciou uma série de estudos a partir dos anos 1950 Destacamos aqui as pesquisas dos discípulos e orientandos de Florestan em que no ato de desenvolvimento dos seus estudos na segunda metade da década de 1950 e que foram publicados no início da década seguinte90 essas ideias são perceptíveis numa instituição sociológica da escravidão baseada numa perspectiva que o coisifica e enfatiza a violência sistêmica91 No seu magnum opus A integração do negro na sociedade de classes 2 vols sobre a questão racial que é sua a tese de cátedra na USP em 1964 embora o autor 89 Em texto posterior ele afirmou que viase no escravo uma inversão de capital e um instrumento de trabalho que deveria ser exprimido até o bagaço FERNANDES 1964 1965 p 22 90 Referimosnos aqui a Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni ambos orientandos de doutorado de Florestan Fernandes na USP Os dois desenvolveram estudos sobre a escravidão no chamado Brasil Meridional Rio Grande do Sul e Santa Catarina principalmente Respectivamente os textos Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional O Negro na Sociedade Escravocrata do Rio Grande do Sul 1961 e As Metamorfoses do Escravo Apogeu e crise da escravatura no Brasil Meridional 1961 No primeiro Cardoso seguindo essa perspectiva de coisificação do escravo além da apreensão histórica do caráter essencialmente violento da escravidão afirmou que Do ponto de vista jurídico é óbvio que no sul como no resto do país o escravo era uma coisa A reificação do escravo produzia se objetiva e subjetivamente A hipótese sobre a brutalidade nas relações entre senhores e escravos encontra confirmação em inúmeros testemunhos e registros Além disso numa sociedade onde o regime patrimonialista de mando era pervertido por causa de condições históricas peculiares a coerção necessária à manutenção do regime escravocrata teria de exercerse dentro de padrões que supunham a violência como um traço normal CARDOSO 1961 1977 p 125 133 No segundo Ianni também nessa mesma linha de pensamento afirmou que é inegável que a natureza fundamental do regime foi a mesma em tôdas sic as situações conhecidas que a polarização assimétrica de escravos e senhores de negros e brancos foi o efeito universal inerente à forma pela qual os indivíduos se distribuíam no sistema produtivo IANNI 1961 1962 p 272 91 A equipe de F Fernandes incluindo R Bastide um dos mestres e copesquisadores F H Cardoso O Ianni E V da Costa tomará Casa grande senzala como uma antireferência A escravidão suave é um mito cruel a ser destruído Os escravos não eram cidadãos não podiam ter armas propriedades vestirse como quisessem sair à noite reunirse E se fugissem Moravam em quase prisões amontoados Trabalhavam sob coerção repressão e violência com longas jornadas Eram castigados cruelmente e marcados a ferro quente Suas condições de vida eram as piores Falar em suavidade e ternura nas relações senhorescravo é ir cinicamente contra os fatos REIS 2006 p 210 69 tenha explicado que a pesquisa empírica ou seja a coleta de dados para a redação do texto seja do tempo da pesquisa anterior feita nos anos 195092 Florestan reiterou a fundamentação econômica do sistema da escravidão e principalmente a questão da violência sobre o escravo Essa obra compreendida nesta pesquisa como um corte epistemológico decisivo na interpretação sobre a questão racial brasileira corte principalmente com análise de Freyre feita nos anos 1930 é decisiva pois também se tornou paradigmática nas leituras feitas a partir de então sobre a escravidão negra ressaltando a perspectiva que alguns posteriormente caracterizaram como economicista ou vitimista93 Embora o foco tenha sido especialmente a cidade de São Paulo assim como o texto com Roger Bastide trabalhado anteriormente o autor nesse texto de cátedra também fez generalizações ou considerações sobre a escravidão numa perspectiva mais geral e não restrita à região paulista A obra tem dimensões de enorme abrangência Em termos teóricos e de manuseio de matéria histórica principalmente censos e dados estatísticos o texto é um exemplo da plena maturidade intelectual de Florestan unindo rigor científico com paixão pela causa do negro94 Assim como CGS a AINSC de Florestan é uma obra considerada um marco na história das ciências sociais no Brasil IANNI 2002 MICELI 1989 O livro colocou um dilema histórico não resolvido à época e arriscamos dizer até hoje que era o problema da inserção integração social efetiva no mundo social de forma digna do negro na sociedade capitalista em formação O negro recémegresso de uma sociedade estamental que não o preparou para a vida de homem livre e muito menos lhe concedeu meios de exercer sua cidadania na República instalada seria o 92 Uma parte dos materiais havia sido levantada anteriormente em 19411944 ou 19491951 por alunos ou exalunos de Roger Bastide ou do autor FERNANDES 1964 1965 p XI Nota 1 93 A reificação do escravo teria sido engendrada por Florestan e equipe e somente nos anos 1970 1980 a historiografia sobre a escravidão negra iria ressaltar o caráter cultural e por meio de outras fontes contestar essa visão do escravo como coisa e a insistência em ver apenas o lado da violência do sistema Sobre isto ver QUEIROZ S R Rebeldia escrava e historiografia Estudos Econômicos São Paulo IPEUSP 17 1987 Para uma crítica da noção de patologia social e anomia do escravo de Florestan ver O estudo do comportamento desviante a contribuição da antropologia social In VELHO Gilberto Org Desvio e divergência uma crítica da patologia social 4 ed Rio de Janeiro Zahar 1981 94 O próprio Florestan alertou ao leitor sobre isso Devemos salientar que essa projeção endopática na situação humana do negro e do mulato nasce de uma simpatia profunda e de um desejo ardente de compreender os dilemas com que o negro se defronta socialmente Procuramos evitar cuidadosamente que êsse sic estado de espírito interferisse nas interpretações se aqui ou ali exageramos na conta paciência Tantos já erraram por motivos diferentes deformando e detratando o negro que não haveria mal maior em tal compensação FERNANDES 1964 1965 p XIV 70 elemento chave para conhecer uma parte da história nacional como uma história das transações por cima feita pelas elites que largaram o negro à própria sorte FERNANDES 1964 1965 p 5 A violência do escravismo se contrapõe totalmente à forma tecida anteriormente de Freyre ver a escravidão Paralela à sua inserção apenas como engrenagem e força de trabalho sob a égide do cativeiro Ao mesmo tempo todo um refinado e severo sistema de fiscalização e de castigos foi montado para garantir a subserviência do escravo e a segurança do senhor de sua família ou da ordem social escravocrata A rigidez com que tudo isso se implantou é atestada pelos relatos que acompanham o noticiário das fugas Perdidos em fazendas isoladas ou morando em cidades rústicas com policiamento precário em tôda sic parte quase sempre em inferioridade numérica os brancos seguiram à risca o código escravocrata impedindo por todos os meios que os escravos ou os libertos se organizassem e monopolizando o uso da violência como mecanismo de contrôle sic social FERNANDES 1964 1965 p 36 Grifo nosso A violência era a companheira do escravo negro O código escravocrata era o monopólio do uso da violência Esse mecanismo de controle social não apenas garantia a continuidade da produção como a coesão do mundo social que se dividia em duas sociedades distintas como já citamos antes Essas duas sociedades formavam uma só a brasileira A divisão social do trabalho na escravidão levava como um imperativo à violência Florestan aqui lançou a sua formulação desenvolvida ao longo do livro de que a persistência do passado escravista foi o fator social histórico fundamental para a anomia social do negro pósabolição A não integração do negro na sociedade de classes que iremos abordar de forma mais pormenorizada em outra parte do trabalho foi o legado de um escravismo violento cuja lógica econômica para Florestan fez do liberto um desajustado nessa nova ordem sob a lógica do trabalho livre O desajustamento estrutural do negro95 e do mulato entre aspas pois nos censos muitas vezes o que era categorizado por 95 FERNANDES Florestan A integração do negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 Ed São Paulo Dominus 1964 1965 p 3969 71 mulato na realidade era preto tinha sua origem na escravidão que legaria do passado uma nova exclusão no presente Compreendemos ser pertinente apontar aqui críticas a essas teses Sobre isso é significativa para o nosso trabalho a análise de Sidney Chalhoub em seu estudo de mestrado dos anos 1980 sobre o cotidiano dos trabalhadores do Rio de Janeiro na chamada Primeira República96 Nesse trabalho o autor contestou teses defendidas por Florestan Para ele então o escravismo era um sistema de castas cuja desagregação coincidindo com a formação das classes sociais não se refletiu numa mudança substancial da posição social do negro A escravidão havia ainda destituído os negros de toda a vida familiar e dificultando a criação de formas de cooperação mútua baseadas na família Por conseguinte a herança do escravismo ao produzir entre negros e mulatos um estado de anomia social pobreza e despreparo para o trabalho livre teria sido o principal fator responsável pelo isolamento e subordinação social dos negros e mulatos no período pós Abolição O problema principal suscitado pela análise de Fernandes é esta noção de que negros e mulatos se encontravam num estado de anomia ou patologia social no período pósAbolição estado este que se explicaria com uma herança direta do escravismo A primeira objeção séria que se pode levantar nesse contexto é a que a visão que Fernandes passa do liberto como despreparado para o trabalho livre destituído de vida familiar e etc é perigosamente próxima àquela veiculada pela classe dominante brasileira no momento crucial da transição do trabalho escravo para o trabalho livre CHALHOUB 2001 p 82 83 Antes de avançarmos em nossa leitura histórica dos textos de Florestan sobre a escravidão negra essa crítica de Chalhoub nos permite três considerações A primeira é que na história das ideias não existe uma linearidade em que estas evoluiriam mediante a superação quando não da total refutação das ideias anteriores a segunda é que é muito problemática essa visão reificadora e pragmaticamente econômica da escravidão negra97 pois lança uma perspectiva 96 CHALHOUB Sidney Trabalho lar e botequim o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque 2 ed CampinasSP Editora da Unicamp 2001 97 Que negaria os movimentos do negro dentro da estrutura social escravista e as suas formas de existir socialmente como na formação de núcleos familiares que como vimos para Florestan eram praticamente inexistentes Sobre isto ver MATTOSO Katia Ser escravo no Brasil Ed São Paulo Brasiliense 1982 SLENES Robert Escravidão casamento família parentesco em três comunidades escravas 17601888 Projeto de pesquisa sd 72 determinista das ações humanas no tempo e a terceira é que a crítica de Chalhoub nos faz pensar na historicização de conceitos sociológicos como anomia e patologia social quando no uso para interpretação histórica como eles por vezes são insuficientes para compreender a dinâmica dos vários agenciamentos sociais no tempo A guinada radical98 do pensamento de Florestan acerca do estudo funcionalista dos tupinambá na primeira fase de sua produção intelectual nos anos 1940 e início de 1950 para a questão racial nos anos 1960 também ilustra a crescente politização do autor em seu engajamento em movimentos pela causa negra em São Paulo nessa época Fazia parte do projeto de pesquisa envolver a comunidade negra no processo por isso o uso de entrevistas e de observação in loco Isso também condizia com a própria ideia de interação da universidade com a sociedade que Florestan tanto buscava em sua atividade intelectual e militante CERQUEIRA 2004 Percorrendo outros textos do autor é notável que sua visão sobre a escravidão era bem abrangente e não apenas focada na estrutura do engenho uma vez que para Florestan O Brasil conheceu em sua história colonial e independente várias formas de escravidão as quais se associaram à escravização de raças diferentes com caracteres étnicos e culturais distintos e a formações socioeconômicas escravistas diversas FERNANDES 1971 p 11 Todavia podemos perceber que a questão econômica e a reiteração da violência se revelam uma constante nessa unidade discursiva Em termos de apropriação do homem pela violência a escravidão moderna apresenta muitos pontos de contato e de semelhança com a escravidão antiga No entanto a escravidão moderna é em sua essência uma escravidão mercantil o escravo não só constitui uma mercadoria é a principal mercadoria de uma vasta rede de negócios que vai da captura e do tráfico ao mercado de escravos e à forma de trabalho a qual consta durante muito tempo como um dos nervos ou a mola mestra da acumulação do capital mercantil FERNANDES 1971 p 16 98 Uma trajetória radical Florestan Fernandes In MOTA Carlos Guilherme Ideologia da cultura brasileira pontos de partida para uma revisão histórica 19331974 3 ed São Paulo Editora 34 2008 p 221 73 Como uma apropriação violenta de homens a escravidão era entendida pelo autor como uma relação essencialmente bárbara ou seja paralela à sua análise do fenômeno histórico existe uma condenação da experiência perspectiva bem distinta da feita anteriormente por Freyre embora as teses do autor paulista também fossem em alguns pontos problemáticas como já demonstramos acima com a crítica de Chalhoub 2001 Essa escravidão essencialmente mercantil e violenta teria sido obscurecida pela análise historiográfica como sustentou o próprio autor mais adiante A nossa história tem sido contada de uma perspectiva branca e senhorial por isso ela deixa o escravo como agente humano e econômico na penumbra e quando não se lembra pura e simplesmente de condenar a escravidão descreve os processos econômicos de uma perspectiva tão abstrata que prescinde de um dos elos da ação econômica e da produção agrícola que até a penúltima década do século XIX foi o trabalho escravo FERNANDES 1971 p 23 Nesse ponto o autor visava diretamente em nossa análise a obra de Freyre sustentamos isso não apenas pela bibliografia que nos leva a essa percepção99 Observamos também o mesmo quando do uso do termo senhorial afinal existe e isso juntamente com uma condenação do mundo que o português criou100 que é inclusive um título de um texto de Gilberto Freyre na análise do mundo social escravista uma condenação categórica da relação brancos e negros nessa sociedade denominada por Florestan de estamental Considerados como inimigos públicos101 na ordem social escravocrata os negros eram a fonte da produção de riqueza e ao mesmo tempo a perigosa questão para o senhor pois poderia emergir dessa constante relação violenta as temidas rebeliões de negros que quantitativamente sempre foram em maior número que os 99 Como os textos de IANNI OpCit 2008 REIS OpCit 2003 indicam 100 O mítico paraíso patriarcal escondia pois um mundo sombrio no qual todos os escravos eram oprimidos FERNANDES 1971 p 36 101 A massa de escravos de libertos e de mestiços pobres erguia o fantasma de uma rebelião geral que poderia muito bem ter como estopim o inimigo doméstico que era ao mesmo tempo o inimigo público FERNANDES 1971 p 52 74 seus exploradores Os escravos do eito e os da plantação na separação clássica proposta conforme a perspectiva freyriana são para Florestan tratados de forma idêntica como escravos Mesmo os que de alguma forma logravam o êxito na consecução de algumas benesses dentro da sociabilidade relacional que se desenvolvia no interior da casagrande os frutos dos amores entre o senhor e a escravas ainda herdavam a condição social de suas mães e não dos seus pais ou seja o sistema de parentesco do escravismo seria nessa perspectiva excludente e não extenso o que demonstra a forma de interpretar a sociedade da época da escravidão como essencialmente excludente para o negro A escravidão nessa óptica pesava e inexiste nesse discurso uma saudade do tempo da escravidão ou um aplauso ao presente em que o negro se encontrava socialmente desajustado por causa dessa herança do passado Isso é bem diferente da análise de Freyre embora Florestan tenha também concordando portanto com Freyre apontado para um melhor tratamento e até mesmo proteção aos negros da casagrande e do sobrado102 ele reiterou que mesmo assim a família ou o núcleo legal excluía o negro e o tratava como escravo103 ou seja como um indivíduo não considerado em sua humanidade e igualdade com os brancos nessa sociedade estamental No livro A Revolução burguesa no Brasil 1976 o autor ainda continuava com ideias semelhantes às que podemos encontrar em seus textos dos anos 1950 e 1960 enfatizando sempre o caráter mercantil e a espoliação do negro como mercadoria O que se definia automaticamente como mercadoria através do mercado era o escravo e não o trabalho escravo e a respeito do escravo não se punham questões da compra ou venda de trabalho pois se comprava ou se alugava o escravo de quem se dispunha ad hibitum inclusive de suas faculdades habilidades e força de trabalho FERNANDES 1976 2006 p 227 102 FERNANDES Florestan A integração do negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 Ed São Paulo Dominus 1965 1964 Tese de Cátedra em Sociologia Universidade de São Paulo p 54 103 FERNANDES Op Cit p 66 e passim 75 A sociedade estamental socializou o negro escravo de forma negativa104 e as análises unilaterais ou seja as que não lograram o êxito de compreender a dinâmica do escravismo de forma mais abrangente não conseguiram captar isso pois estariam presas ao sistema casagrandesenzala um microcosmo apenas105 que em si não poderia fornecer uma análise da totalidade do sistema Em um texto já na década de 1980 Florestan afirmou algo que nos embasa a pensar que era uma constante em seu pensamento reiterando as noções de mercadoria coisa e exclusão que A camada senhorial encarava o escravo como uma coisa um fôlego vivo ou seja um animal e uma mercadoria Ele não fazia parte da sociedade estamental era excluído como uma casta e dentro dela não contava como pessoa dotada de condição para valerse de direitos e deveres FERNANDES 1989 p 11 Essa produção de Florestan na época nos anos 195060 assim como a produção do conhecimento histórico em geral estava profundamente marcada por uma relação com o passado106 Como em todo relato histórico existe um componente ideológico107 que lhe dá base de sustentação podemos afirmar que suas análises foram propositalmente feitas em contraste com a sociologia anterior e nesse caso a de Freyre em particular Apesar disso um clássico da história não pode ser invalidado ou anulado por uma descoberta de material empírico ou dados novos108 posteriormente Afinal surge no presente o modo de ser a historiografia dessas duas unidades discursivas de sociologia histórica do passado109 A análise da escravidão negra feita por Florestan Fernandes estava imbuída de uma série de experiências e expectativas das quais todas as histórias são constituídas110 do seu tempo No 104 FERNANDES Florestan A revolução burguesa no Brasil ensaio de interpretação sociológica 5 ed São Paulo Globo 1976 2006 p 232 105 Seria forçoso reconhecer que Freyre teria uma forma de ver reduzida do escravismo negro e todavia essa unilateralidade nasce da redução do macrocosmo social inerente à ordem estamental e de castas ao microcosmo social inerente à plantação ou ao engenho e à fazenda FERNANDES 1971 p 34 35 106 RÜSEN Jörn História viva teoria da história formas e funções do conhecimento histórico Ed Brasília Editora da Universidade de Brasília 2007 p 100 107 WHITE Hayden MetaHistória A Imaginação Histórica do Século XIX Ed São Paulo Editora da Universidade de São Paulo 1992 p 36 108 WHITE Hayden Trópicos do Discurso Ensaios sobre a crítica da cultura 2 ed São Paulo Editora da Universidade de São Paulo 2014 p 114 109 HARTOG François Regimes de historicidade presentismo e experiências do tempo Ed Belo Horizonte Autêntica Editora 2015 p 160 110 KOSELLECK Reinhart Futuro passado contribuição à semântica dos tempos históricos Ed Rio de Janeiro Contraponto PucRio 2006 p 306 76 caso os movimentos sociais negros a universidade a questão da produção de um saber mais crítico e científico do que o ensaísmo da sociologia produzida anteriormente Freyre em particular e nas lutas sociais em São Paulo que Florestan se engajou em sua época Nem mesmo Perdigão Malheiros 18241881 no clássico sobre o tema111 foi capaz de ver a escravidão negra nessa perspectiva mesmo o autor vivendo o contexto histórico da ocorrência dessa experiência social Essa interpretação de Florestan era profundamente de seu tempo sendo no lugar de produção CERTEAU 1982 que elas devem ser compreendidas Afirmamos isso pois as críticas sobre a coisificação do escravo ou a anomia do negro que foram feitas posteriormente112 nem sempre foram em nossa análise condescendentes e por vezes assim como a crítica historiográfica de forma mais geral foram balizadas com uma profunda adjetivação pejorativa113 É evidente em nossa leitura que a perspectiva de Florestan sobre a escravidão buscou da maneira mais direta possível instituir uma visão dos horrores e da forma de segregação social que apontasse e isso por meio de extensa pesquisa e uso de dados para dar cientificidade às argumentações categoricamente que a escravidão foi cruel Isto é que a questão econômica ditou a compra e venda de seres humanos que o senhor de engenho explorava e que a violência era geral114 nessa relação social que no Brasil teve proporções de longa duração deixando marcas na sociedade brasileira principalmente para o negro e o mestiço115 Em síntese os estudos sobre a escravidão negra de Gilberto e Florestan nos permitem concluir duas coisas A primeira é que nos anos 1930 a unidade discursiva freyriana buscou instituir uma visão de escravidão benigna com base principalmente nos relatos de viajantes estrangeiros que estiveram no Brasil no período colonial e 111 MALHEIROS Agostinho Perdigão Marques A escravidão no Brasil Ensaio HistóricoJurídico Social Ed Tipografia Nacional Rio de Janeiro 1866 Vol I 112 Como já nos referimos SLENES 2011 CHALHOUB 2001 MATTOSO 1982 113 ALBUQUERQUE JÚNIOR Durval Muniz de O historiador naïf ou a análise historiográfica como prática de excomunhão In GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado Org Estudos sobre a escrita da História Rio de Janeiro 7 Letras 2006 p 192215 114 Em suma a escravidão irradiouse por toda a ordem estamental todos os estamentos dos nobres e dos homens bons aos oficiais mecânicos viam nos escravos os seus pés e as suas mãos FERNANDES 1971 p 34 115 FERNANDES Florestan A integração do negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 Ed São Paulo Dominus 1965 1964 Tese de Cátedra em Sociologia Universidade de São Paulo 77 imperial e também embasado na visão culturalista da antropologia de Franz Boas que o autor aprendeu enquanto aluno dele em Colúmbia e introduziu pioneiramente na análise da história brasileira A benignidade nesse discurso era parte do sistema patriarcal Esse patriarcalismo teria engendrado as relações étnicas entre brancos e negros e pela miscigenação praticada a família extensa que é o resultado desse hibridismo sócioétnico que teria atenuado a relação entre senhores e escravos processandose de forma benigna no sistema Casagrande Senzala A segunda é que essa forma de pensamento seria frontalmente oposta por Florestan que nos anos 1950 através de uma pesquisa levada a cabo por ele e seu então professor e mentor intelectual na USP Roger Bastide analisou o fenômeno da escravidão com uma base interpretativa nova Entre a publicação de Casagrande e Senzala em 1933 e a publicação dos estudos de Florestan e Bastide em 1955 as obras de Caio Prado Júnior em nossa interpretação foram importantes para orientar e ser uma referência possível para Florestan116 em sua visão da escravidão sob um ponto de vista mais pragmático do lado econômico da mesma que ele chamou de fundamento pecuniário da escravidão117 e para reiterar a violência do sistema escravista que não foi negada por Freyre mas sim suavizada pelo patriarcalismo Compreendendo essas ideias em seu tempo podemos concluir com este capítulo do trabalho que nos anos 1930 um intelectual pernambucano que era imerso em referências ao sistema patriarcal do qual descendia analisou a escravidão negra numa perspectiva de demonstrar que ela não foi tão cruel ou desumana e sim que teve traços peculiares ao sistema social hierarquizado da casagrande de engenho Nos anos 1950 já com a instituição universitária novos parâmetros de pesquisa e uma visão mais crítica Florestan imerso em um contexto de produção intelectual com projeções cientificas ressaltou o caráter econômico a ideia de uma escravidão como socialização negativa discriminatória e violenta O primeiro era um intelectual saudosista do sistema escravista e o segundo um intelectual 116 Os textos de Caio Prado Júnior não são desconhecidos por Freyre inclusive para ilustrar isso citamos uma nota de Freyre em Casagrande senzala que demonstra essa ciência FREYRE 1933 2006 p 56 Nota 5 117 FERNANDES Florestan II Cor e Estrutura Social em Mudança In BASTIDE Roger FERNANDES Florestan Brancos e Negros em São Paulo ensaio sociológico sobre aspectos da formação manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana 4 ed São Paulo Global 1955 2008 p 120 125 78 comprometido com a causa negra em que ambos se ocuparam a formar uma visão sobre a escravidão negra em nossa compreensão em perspectivas antagônicas 79 CAPÍTULO II DEMOCRACIA RACIAL MISCIGENAÇÃO No capítulo anterior buscamos enfatizar as diferenças de perspectiva em relação à compreensão da escravidão negra por parte de Gilberto Freyre e Florestan Fernandes Neste capítulo concentrandonos na obra de Freyre iremos trabalhar com o tema da miscigenação racial e como ela foi de problema como destacaremos analisando autores do final do século XIX e primeiras décadas do XX à solução ou positivação com a obra de Freyre nos anos 1930 que acreditamos que rompeu com essa maneira de enxergar a miscigenação como um problema nacional porém instituindo uma visão que levou à percepção da existência de uma democracia racial O resultado do amálgama de raças que foi baseado na escravidão foi uma demografia social mestiça no Brasil Com o fim legal da escravidão e com a crescente imigração europeia no final do século XIX o problema da mestiçagem ganhou um relevo especial com a importação de teorias científicas como o darwinismo social por vários intelectuais brasileiros que buscavam soluções para o dilema de uma sociedade que pela miscigenação estaria fadada ao fracasso como civilização No primeiro momento desse capítulo dentre os vários autores que buscaram analisar o tema da miscigenação antes de Gilberto Freyre nos anos 1930 iremos destacar a produção de quatro intelectuais Euclides da Cunha Sílvio Romero Nina Rodrigues e Oliveira Viana Faremos isto para destacar posteriormente como a intepretação de Freyre representou um divisor de águas sobre o temário da miscigenação destacando porém como essa mesma interpretação é problemática quando pensada como uma base para se perceber a existência de uma democracia étnica ou racial A escolha desses quatro autores não foi aleatória Eles foram trazidos por nós como prévia para posterior análise da obra de Freyre uma vez que ele mesmo os citou o que nos levou a fazer uma pequena digressão temporal em nossa análise com o intuito porém de embasar a nossa compreensão da obra de Freyre principalmente em CGS como uma obra de ruptura com essas formas de ver a mestiçagem brasileira de forma negativa É evidente que como não podemos acolher o discurso freyriano apenas em sua positividade dando ênfase a seu caráter de ruptura que teria superado e em certo sentido superou apenas as análises precedentes 80 iremos interrogar esse mesmo discurso em seu tempo apontando principalmente dentre outras coisas como ele construiu uma narrativa que instituiu a ideia de uma suposta democracia racial no Brasil 21 O problema e a solução dana mistura de raças Será que estamos fadados ao fracasso como povo e como nação em virtude de uma mistura racial que nos legaria apenas o lado negativo do negro e do índio Essa poderia ser a problemática de pesquisa que esses quatro intelectuais que iremos analisar a seguir tinham quando se puseram a estudar o Brasil e destacar os fatores raciais de nossa formação histórica Sem dúvida não era um problema de pesquisa de fácil resolução e as conclusões ou diagnóstico sobre ele evidentemente teriam que ser diferentes entretanto convergentes em ao menos um ponto a mistura racial era um problema E paradoxalmente é na mistura de raças que estaria a solução pois com a imigração de estoques raciais superiores isto é brancos europeus progressivamente o branqueamento racial iria acontecer O momento em que essas ideias ganharam maior relevo ou seja quando a problemática racial ganhou uma maior relevância se inscreve no período do fim da escravidão e do Império e do início do Regime Republicano Nesse momento de rupturas novas ideias começaram a circular e a questão da viabilidade de uma nação civilizada passou a ter uma significação políticoideológica relevante pois o futuro da nação esbarrava no seu passado de país miscigenado em termos de raças Os estudos no campo da antropologia desenvolvidos no final do século XIX essa nova disciplina científica que tinham fortes elos com visões biologizantes118 e etnocêntricas no caso eurocêntricas embasaram muitos desses intelectuais que iremos tratar a seguir Sobre isso é necessário ressaltar ao menos dois pontos O primeiro é que a importação de certas variantes da antropologia no estudo das raças no Brasil tinha uma espécie de filtro intelectual ou seja a importação se baseava não 118 O momento científico é de fundação de uma antropologia profissional que se volta para os estudos anatômicos e craniológicos procurando responder assim às indagações a respeito das diferenças entre os homens ORTIZ 1985 p 28 81 na absorção acrítica desses postulados considerados científicos e portanto indubitáveis119 O segundo é que essa absorção se deu em uma época em que essas teorias já estavam em franco declínio e sendo fortemente contestadas no lugar de produção em que haviam emergido primeiramente o que indica uma adoção tardia por parte desses intelectuais e isso se torna interessante porque esse aspecto não se explicaria apenas por uma diferença de contato com as ideias textos e publicações quando apareciam na Europa ele se explica quando se pode depreender que essa adoção foi consciente uma vez que se coadunava com a própria intencionalidade dos autores em pensarem o Brasil como mestiço e condenado a não se tornar uma civilização o que daria uma base científica para a política de imigração europeia de tipos eugênicos superiores por exemplo A superação do mestiço Sílvio Romero 18511914 nasceu na cidade de Lagarto então província de Sergipe Cursou direito na Faculdade de Direito de Recife tendo sido um notável e polemista crítico literário e consumidor de teorias científicas além de literatura especializada em vários temas como antropologia e sociologia Suas principais influências foram o evolucionismo e a teoria do darwinismo social principalmente em autores como P Le Play 18061882 e A Comte 17982857120 No seu livro História da Literatura Brasileira 1888 destacou que A estatística mostra que o povo brasileiro compõese atualmente de brancos arianos índios tupiguaranis negros quase todos do grupo banto e mestiços dessas três raças orçando os últimos certamente por mais da metade da população O seu número tende a aumentar ao passo que os índios e negros puros tendem a diminuir Desaparecerão num futuro talvez não muito remoto consumidos pela luta que lhes mover os outros 119 Ou seja não era simples tradução ou mera cópia da ideologia que fundamentava o Imperialismo europeu da época havia uma seleção de textos em que A tradução implica seleção prévia de textos e escolha de certos autores em detrimento de outros No caso o pensamento racial europeu adotado no Brasil não parece fruto da sorte Introduzido de forma crítica e seletiva transformase em instrumento conservador e mesmo autoritário na definição de uma identidade nacional e no respaldo a hierarquias sociais já bastante cristalizadas SHWARCZ 1993 p 55 120 COSTA FILHO Cícero João da No limiar das raças Sílvio Romero 18701914 Tese de Doutorado em História Universidade de São Paulo USP São PauloSP 2012 p 118 119 82 ou desfigurados pelo cruzamento O mestiço que é a genuína formação histórica brasileira ficará só diante do branco quase puro com qual se há de mais cedo ou mais tarde confundir ROMERO 1888 1960 p 20 Grifo nosso É interessante que nessa leitura da miscigenação ele tenha paradoxalmente elevado o mestiço a símbolo da identidade brasileira à época porém fiel à tradição de pensamento evolucionista que dava base de sustentação para suas análises ou seja o horizonte intelectual em que se encontrava imerso ele acreditava que o elemento mestiço ou desapareceria ou seria fatalmente desfigurado pelo cruzamento com um tipo racial superior no caso o branco puro A mestiçagem selecionaria naturalmente os brancos afinal Sabese que na mestiçagem a seleção natural ao cabo de algumas gerações faz prevalecer o tipo de raça mais numerosa e tendo entre nós duas raças puras a mais numerosa pela imigração européia sic tem sido e tende mais a sêlo a branca É conhecido por isso a proverbial tendência do pardo do mulato em geral a fazerse passar por branco quando sua cor pode iludir ROMERO 1888 1960 p 21 Grifo nosso Compreendido em seu tempo ele apontou pioneiramente ao contrário dos autores a seguir121 a identidade mestiça do Brasil embora visualizandoa sob uma perspectiva pessimista conforme seus referenciais de pensamento teórico A ideia era que mesmo enfatizando a identidade mestiça do Brasil essa influência fosse apagada via imigração branca europeia Que o povo brasileiro era mestiço isso era um fato porém essa condição étnica seria gradualmente abolida pela crescente composição étnica de tipos eugênicos superiores no caso os brancos 121 A situação mestiça do país ao contrário do pensamento de ensaístas como Euclides da Cunha e Nina Rodrigues que começaram a escrever depois dele ao invés de ser um mal era responsável pela singularidade brasileira viabilizadora da identidade nacional chave para a compreensão da história brasileira Mesmo sendo parcialmente um teórico racista defensor da raça superior afirmando que a maior contribuição na sociedade brasileira foi do português analisou de maneira minuciosa a influência das raças ditas inferiores como indígenas e negros COSTA FILHO 2012 p 123 Mesmo apontando que a mestiçagem não era um mal para Romero o autor da tese citada reitera o aspecto racista ou meio do autor e várias passagens em que o tom de pessimismo com relação ao futuro de um país mestiço é predominante 83 Raça e criminalidade Nina Rodrigues 18621906 foi um médicoantropólogo nascido em Vargem Grande na província do Maranhão Um dos grandes responsáveis pela pioneira no Brasil junção da análise baseada nas ciências médicas e antropológicas de sua época Sua atuação na Faculdade de Medicina da Bahia fez escola num movimento122 que desde o final do século XIX buscava dentre outros objetivos a instituição de pesquisas sociais no Brasil que fossem ao mesmo tempo médicas e antropológicas A partir principalmente das ideias de um pesquisador chamado Cesare Lombroso 18351909 sobre criminologia e análise craniométrica Nina Rodrigues buscou a base para interpretar o dilema racial brasileiro numa interface especialmente com a questão penal advogando de maneira insistente para que fossem criados no Brasil dois códigos penais um para os brancos e outros para raças cuja mistura determinaria patologicamente ao ato da transgressão No seu livro As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil cuja primeira edição é de 1894 ele afirmou que Desconhecendo a grande lei biológica que considera a evolução ontogenética simples recapitulação abreviada da evolução filogenética o legislador brasileiro cercou a infância do indivíduo das garantias de impunidade por imaturidade mental criando a seu benefício regalias de raça considerando iguais perante o código os descendentes do europeu civilizado os filhos das tribos selvagens da América do Sul bem como os membros das hordas africanas sujeitos à escravidão RODRIGUES 1894 2011 p 25 Sem dúvida uma forma de compreender o país como atrasado tendo como filtro a miscigenação que o degenerara e ainda apontando para o impacto cotidiano no caso a dimensão da criminalidade como um exemplo de como a influência das hordas africanas explicaria o grande número de homicídios e outros crimes 122 À frente desse movimento sobressaía a figura de Nina Rodrigues professor da escola e defensor radical da medicina legal e sua autonomia SCHWARCZ 1993 p 276 84 cometidos123 Não se podia esperar um futuro para o país na perspectiva da viabilização de uma nação civilizada e moderna como a Europa Ocidental da época pois se dependesse do negro isso seria impossível124 A inferioridade do negro era cientificamente provada125 ideia que seria criticada por Freyre como essencialmente anticientífica126 As raças e o meio geográfico Euclides da Cunha 18661909 nascido na então província do Rio de Janeiro teve formação de militar e engenheiro Em 1902 veio a público sua obra Os sertões Reflexão sobre o Norte do país em que se mesclavam ciência poesia e certa antropologia de sua época127 O texto fruto de suas atividades como correspondente do jornal O Estado de São Paulo no ano de 1897 nos interessa sobretudo pela análise da miscigenação racial brasileira como um aspecto negativo diagnóstico que não era apenas seu mas em graus e níveis diferenciados foi idêntico para todos os intelectuais que ora tratamos Na obra dentre outras concepções opera uma correlação quase determinista do meio sobre a raça defendendo que não há um tipo antropológico brasileiro CUNHA 1903 2012 p 120 Na sua análise da gênese do sertanejo Euclides o definiu como uma subcategoria étnica e nisso o meio físico dos sertões atuaria como considerável fator causal 123 Sobre isso ele arrematou A igualdade das diversas raças brasileiras perante nosso código penal vai acrescentar mais um aos numerosos exemplos dessa contradição e inconsequência RODRIGUES 1894 2011 p 24 124 Em outro texto Os Africanos no Brasil 1932 o médicoantropólogo maranhense defendeu que Se o futuro do Brasil dependesse de chegarem os seus negros ao mesmo grau de aperfeiçoamento que os brancos muitas vezes se poderiam transformar antes os seus destinos de povo se é que algum dia houvesse de realizar Ocorre portanto demonstrar que de fato nossa morosidade reside o ponto fraco da civilização dos negros RODRIGUES 1932 1935 p 393 Sobre a obra de Nina Rodrigues tratando especificamente de suas análises a um só tempo médicas e antropológicas sobre o tema da mestiçagem ver NEVES Márcia das Nina Rodrigues as relações entre mestiçagem e eugenia na formação do povo brasileiro Dissertação Mestrado em História São PauloSP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUCSP 2008 71 f 125 Explicava Nina Rodrigues que a inferioridade do africano fora estabelecida fora de qualquer dúvida científica SKIDMORE 1976 p 75 126 Ver OpCit 1933 2006 p 370 127 BRANDÃO Adelino Euclides da Cunha e a Questão Racial no Brasil A antropologia de Os Sertões Ed Presença Rio de Janeiro 1990 85 Porém é a concepção pessimista do Brasil em virtude da mestiçagem racial o que mais nos interessa Para Euclides A mistura de raças mui sic diversas é na maioria dos casos prejudicial Ante as conclusões do evolucionismo ainda quando reaja sobre o produto influxo de uma raça superior despontam vivíssimos estigmas da inferior A mestiçagem extremada é um retrocesso De sorte que o mestiço traço da união entre as raças breve existência individual em que se comprimem esforços seculares é quase sempre um desequilibrado CUNHA 1903 2012 p 141 Grifo nosso Estávamos para Euclides condenados à civilização e ou progrediremos ou desaparecemos e o mulato como subcategoria étnica fazia do Brasil um país o diagnóstico aqui é fatalista onde não existe unidade racial e não a teremos talvez nunca CUNHA 1903 2012 p 104 É evidente que nos quadros de referência teórica que Euclides e outros operaram suas análises a saber uma concepção do evolucionismo social e ainda com ressonâncias de noções de determinismo geográfico e climático sobre o desenvolvimento e no caso de degenerescência das raças sua forma de ver a problemática racial guardava os limites do horizonte intelectual de sua época128 As populações degeneradas Oliveira Viana 18831951 nasceu na localidade do Rio Seco de Saquarema na então província do Rio de Janeiro Dos autores aqui sumariamente tratados é sem dúvida o que nas questões relacionadas à reflexão sobre raça e mestiçagem mais 128 Aqui é digna de nota uma passagem da introdução escrita por Gilberto Freyre em 1939 para o texto Os Sertões da coleção Obras Completas de Euclides da Cunha editora José Olympio coleção que ele mesmo dirigiu afirmando na descrição dos sertões o scientista sic erraria em detalhes de geografia sic de geologia e de botânica de anthropologia sic o sociologo sic em pormenores de explicação e de diagnóstico sociaes sic do povo sertanejo Mas para redimir dos erros de technica sic havia em Euclydes da Cunha o poeta o profeta sic o artista cheio de intuições geniaes sic FREYRE 1939 p XI Sobre a diferença de perspectiva inclusive sobre a influência do meio físico no desenvolvimento das relações raciais na história do Brasil entre Euclides e Freyre iremos tratar mais à frente Para uma leitura sobre a ressonância da obra de Euclides sobre Freyre defendendo inclusive que a feitura de CasaGrande Senzala foi fortemente influenciada pela obra Os Sertões ver NICOLAZZI Fernando Um estilo de história a viagem a memória o ensaio Sobre Casagrande senzala e a representação do passado Tese Doutorado em História Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS Porto AlegreRS 2018 Principalmente Freyre leitor de Euclides p 134 146 86 contrastou em nossa perspectiva com a interpretação de Gilberto Freyre que iremos expor mais adiante129 A problemática das populações degeneradas seria o eixo de reflexão que o guiara para uma ideia de que a mistura racial não era salutar e historicamente como isso era uma peculiaridade nossa contornos a essa condição étnica deveriam ser buscados No seu livro Populações Meridionais do Brasil 1918 ele argumentou seguindo as ideias de leis antropológicas que Quando duas raças se misturam os seus mestiços ficam sujeitos a certos golpes de atavismo que os podem fazer retomarem no fim de algumas gerações a uma dos tipos étnicos geradores Esse regresso ao tipo das raças originárias é uma lei antropológica verificável nos meios étnicos heterogêneos e principalmente num meio étnico como o nosso oriundo de mestiçagens múltiplas Quando os cruzamentos surgem da fusão de raças muito distintas os retornos têm em geral um caráter degenerescente o elemento inferior é que se reconstrói de preferência e absorve os elementos da raça superior VIANA 1918 2005 p 173 O mestiço tipo étnico brasileiro que o autor lamenta preponderar herdaria pois era um degenerado todos os vícios130 Essa é um tipo de argumentação que se inspirava numa visão fatalista via determinismo biológico de uma mestiçagem negativa para o Brasil herdeiro e o mestiço é o símbolo dos elementos inferiores do cruzamento racial histórico Eram populações degeneradas essas do Brasil Meridional embora o autor por vezes deixe explícitas generalizações para o resto do Brasil pois a miscigenação racial que não foi só no Brasil Meridional ou na história da evolução do povo paulista em regra para ele dotava o produto desse intercurso étnico das características inferiores o legado da raça cruzada era uma população mestiça portanto degenerada 129 Exemplo disso se encontra em Casagrande Senzala em que Freyre assim se referiu dentre outras passagens que Este Oliveira Viana ideou um Brasil colonizado em grande parte e organizado principalmente por dólicomouros FREYRE 1933 2004 p 296 130 Para Viana também é lei antropológica que os mestiços herdem com mais freqüencia sic os vícios que as qualidades de seus ancestrais VIANA 1918 2005 p 1734 O autor aponta ainda que a existência dos muitos vadios e arruaceiros seriam o exemplo disso VIANA 1918 2005 p 174 87 Em síntese é evidente que a sumária apresentação da ideia de mistura racial como um problema para esses intelectuais que escreveram e pensaram antes de Gilberto Freyre não apresenta uma visão global dessas ideias o que já é feito em outros trabalhos131 de forma mais pormenorizada e que servem de bibliografia que nos informa no presente momento da pesquisa Entretanto acreditamos que podemos perceber algumas características comuns nesses argumentos que no caso é a ideia de miscigenação como algo negativo e a figura do mestiço como um tipo degenerado inferior que faria do Brasil um país sem futuro ou seja informados pelos paradigmas do darwinismo social e de uma antropologia com profunda base na biologia e em estudos craniométricos estes autores tinham uma visão negativa do país o que dotava também as suas investigações de um argumento político Portanto podemos apontar que em fins do século XIX e primeiras décadas do século XX a miscigenação racial era considerada um problema Era vista como um obstáculo à construção de uma civilização brasileira e foi enxergada como por Silvio Romero Nina Rodrigues Euclides da Cunha e outros132 o símbolo do atraso social do país sendo concebida como o ponto fulcral de nossa tibieza cultural e não modernidade O nosso intuito ao trabalhar com esses autores é que a partir de suas ideias comuns de miscigenação racial como problema e atraso é possível sustentar a hipótese de compreender a obra freyriana nos anos 1930 como uma autêntica inovação que irrompeu na história das ideias no sentido de superar essa visão pessimista e em certos graus racista 131 Como SOUZA Ricardo Luiz Identidade nacional e modernização na historiografia brasileira O diálogo entre Romero Euclides Cascudo e Freyre Tese de Doutorado em História Universidade Federal de Minas Gerais UFMG Belo HorizonteMG 2006 421 f E os já citados textos SCHWARCZ 1993 BRANDÃO 1990 COSTA FILHO 2012 NEVES 2008 132 Renato Ortiz aponta que estes autores precursores das ciências sociais no Brasil através de teorias racistas do darwinismo social e do evolucionismo de Spencer apontavam a mestiçagem como o atraso nacional Neste momento tornase corrente a afirmação de que o Brasil se constituiu através da fusão de três raças fundamentais o branco o negro e o índio O quadro de interpretação social atribuía à raça branca uma posição de superioridade na construção da civilização brasileira As considerações de Sílvio Romero sobre o português de Euclides da Cunha sobre a origem bandeirante do nordestino os escritos de Nina Rodrigues refletem todos a ideologia da supremacia racial do mundo branco ORTIZ 1985 p 19 20 88 É evidente que o horizonte intelectual mudara que a trajetória de pensamento peculiar de Gilberto seu contato com o mundo universitário nos Estados Unidos e Europa além de sua particular forma de articular a sua interpretação sobre o tema eram outros e o fizeram produzir uma obra em que a mistura de raças valorizando o negro era a nossa diferença potencializadora em vez de óbice ele viu singularidade e vantagem Nossa identidade estaria nessa diferença histórica 22 Democracia racial miscigenação É surpreendente que a fragilidade ou mesmo a implausibilidade133 das teorias raciais conforme elas foram reelaboradas por esses intelectuais que trabalhamos acima a partir de modelos europeus variantes do darwinismo e do positivismo já em declínio no lugar de produção que surgiram seriam efetivamente contestadas assim como a leitura pessimista em relação ao Brasil miscigenado subsequente apenas nos anos 1930 Apontamos neste trabalho que foi mais precisamente em 1933 com CGS que isso ocorreu na história das ideias no Brasil134 Sobre isso dois pontos um externo e outro interno se destacam No plano externo o que se deve frisar é o contexto histórico dessa mudança que era o momento de redefinição de uma identidade nacional com a ascensão do governo Vargas O Brasil como uma nação cuja identidade era o brasileiro etnicamente produto do cruzamento étnico era um país mestiço Sendo que esse mestiço precisava ser positivado e as relações raciais deveriam ser colocadas no plano da harmonia e coesão O elemento da coesão e a ordem social característica de um povo unido e harmonicamente constituído seria justamente fruto do processo 133 O que surpreende o leitor ao se retomar as teorias explicativas do Brasil elaboradas em fins do século XIX e início do século XX é a sua implausibilidade Como foi possível a existência de tais interpretações e mais ainda que elas tenham se alçado ao status de Ciências A releitura de Sílvio Romero Euclides da Cunha Nina Rodrigues é esclarecedora na medida em que revela esta dimensão da implausibilidade e aprofunda nossa surpresa por que não um certo malestar uma vez que desvenda nossas origens A questão racial tal como foi colocada pelos precursores das Ciências Sociais no Brasil adquire na verdade um contorno claramente racista mas aponta para além desta constatação um elemento que me parece significativo e constante na história da cultura brasileira a problemática da identidade nacional ORTIZ 1985 p 13 134 Obra fundamental para a compreensão desta guinada emblemática na conformação desses ícones de identidade é Casagrande senzala cuja primeira edição data de 1933 SCHWARCZ In FERNANDES 2007 p 12 Grifo da autora 89 histórico nacional Nesse ponto o cadinho das três raças e a positivação da mistura étnica eram mais que bemvindos ao regime político da época135 No plano interno o que destacamos evidentemente é a emergência de uma narrativa a freyriana que valorizava a miscigenação racial por intermédio de outra forma de ver ou de paradigma teórico no caso o culturalismo antropológico de Franz Boas como um símbolo do Brasil fruto de sua história de sincretismo ao mesmo tempo que étnico igualmente cultural que singularizaria o país e que serviria de exemplo como povo fruto da mistura que saberia equilibrar contrários conviver com antagonismos É sobre essa nova forma de interpretar a miscigenação que iremos tratar neste momento da pesquisa problematizando a partir dos textos de Freyre principalmente duas obras da década de 1930 como essa mesma interpretação se transformou em uma narrativa que embasa uma visão de que no Brasil houvehaveria uma democracia racial136 Freyre deslocou o enfoque biológicodeterminista para o culturalhistórico superando assim a visão negativa sobre a mestiçagem racial brasileira É notório nas próprias palavras de Freyre em prefácio à primeira edição de CGS que o tema era algo a se resolver Não era apenas um problema intelectual mas um problema que ele interpretou também como seu de sua geração ele encarnou essa problemática era como se tudo dependesse de mim e dos de minha geração da nossa maneira de resolver questões seculares E dos problemas brasileiros não havia nenhum que me inquietasse tanto como o da miscigenação FREYRE 1933 2004 p 31 A chave analítica que Freyre tinha ou seja que dispunha para interpretar e resolver à sua maneira o dilema da mistura racial era bem diferente dos autores anteriores Nesse ponto sua trajetória intelectual se impõe 135 Essa visão do Brasil era naturalmente bemvinda pelo regime de Vargas PALARESBURKE BURKE 2009 p 280 136 No terceiro capítulo iremos num primeiro momento discutir como Florestan Fernandes se inseriu nesse debate da democracia racial criticandoa duramente como um mito e como a ideia de uma acomodação racial e social de tipos étnicos brancos e negros no Brasil que a tese da democracia racial subentende esbarrava em limitações e em condicionantes sociais adversos para o negro naquilo que Florestan argumentou como nãointegração do negro na sociedade de classes que se formava no Brasil 90 Foi o estudo de antropologia sob a orientação do professor Boas que primeiro me revelou o negro e o mulato no seu justo valor separados dos traços de raça os efeitos do ambiente ou da experiência cultural Aprendi a considerar a fundamental diferença entre raça e cultura a discriminar entre os efeitos de relações puramente genéticas e os de influências sociais de herança cultural e de meio FREYRE 1933 2004 p 32 Uma primeira e importante característica se impõe nessa verdadeira virada na forma de interpretar o tema da miscigenação137 A diferença entre o elemento racial antes visto do ponto de vista da genética de modo hierarquizante pondo uma assimetria entre os tipos étnicos agora é sublinhada em relação à questão do condicionamento cultural Dentro dessa nova base de informação ou desse novo horizonte intelectual Freyre construiu uma narrativa em que o mestiço e o negro não são frutos degenerados da mistura mas sim tipos raciais e metaraciais que singularizam o Brasil A miscigenação histórica ainda tinha outra característica fundamental para Freyre ela teve uma grande importância no relacionamento social pois A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que de outro modo se teria conservado enorme entre a casagrande e a mata tropical entre a casagrande e a senzala O que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou no sentido de aristocratização extremando a sociedade brasileira em senhores e escravos com uma rala e insignificante lambujem de gente livre sanduichada entre os extremos antagônicos foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da miscigenação FREYRE 1933 2004 p 33 Essa consideração da miscigenação como corretora de distâncias sociais entre senhores e escravos está na base da narrativa freyriana pautandose na noção de antagonismos em equilíbrio que para Freyre teria sido a constante histórica brasileira Essa leitura da forma como historicamente se construiu o Brasil se concentrou em evidenciar que o encontro étnico foi fraterno quase sem conflitos 137 É fundamental em Gilberto Freyre a diferença entre raça e cultura a discriminação entre os efeitos de relações puramente genéticas e os de influências sociais de herança cultural e de meio ALBUQUERQUE 2000 p 87 91 Destacase em CGS a ênfase nos aspectos de sincretismo cultural superando o enfoque anterior na questão da miscigenação puramente biológica ou no determinismo geográfico Não que clima e raça não fossem condicionantes que se devessem desconsiderar na análise sobre a formação social de um país como o Brasil contudo Já se tenta hoje retificar a antropogeografia dos que esquecendo os regimes alimentares tudo atribuem aos fatores raça e clima nesse movimento de retificação deve ser incluída a sociedade brasileira exemplo de que tanto se servem os alarmistas da mistura de raças ou da malignidade dos trópicos a favor de sua tese de degeneração do homem por efeito do clima ou da miscigenação FREYRE 1933 2004 p 104 Nesse ponto sua diferença em relação a Oliveira Vianna foi bastante evidente Para Freyre a generalização de Vianna não condizia com a realidade do processo histórico brasileiro138 A questão foi elevada a outro nível com Freyre sendo reformulada em outros termos139 Nem mesmo em relação a diferenças de tamanho craniano que Freyre criticou em Nina Rodrigues inclusive quando este creditava a essas diferenças uma hierarquia entre raças superiores e inferiores com os negros não podendo sequer se elevar ao cristianismo por ser abstrato demais para a sua raça FREYRE 1933 2004 p 387 440 se deveria ver uma assimetria hierarquizante de tipos raciais brasileiros140 138 As generalizações do professor Oliveira Vianna que nos pintou com tão bonitas cores uma população paulista de grandes proprietários e opulentos fidalgos rústicos têm sido retificadas naqueles seus falsos dourados e azuis por investigadores mais realistas e mais bem documentados que o ilustre sociólogo das Populações meridionais do Brasil FREYRE 1933 2004 p 105 106 Para Freyre Oliveira Vianna teria um arianismo quase místico ou mesmo teria sido o maior místico do arianismo FREYRE 1933 2004 p 296 387 139 Gilberto Freyre reedita a temática racial para constituíla como se fazia no passado em objeto privilegiado de estudo em chave para a compreensão do Brasil Porém ele não vai mais considerála em termos raciais como faziam Euclides da Cunha ou Nina Rodrigues na época em que escreve as teorias antropológicas que desfrutam do estatuto científico são outras por isso ele se volta para o culturalismo de Boas A passagem do conceito de raça para o conceito de cultura elimina uma série de dificuldades colocadas anteriormente a respeito da herança atávica do mestiço Ela permite ainda um maior distanciamento entre o biológico e o social o que possibilita uma análise mais rica da sociedade Mas a operação que Casa Grande e Senzala realiza vai mais além Gilberto transforma a negatividade do mestiço em positividade o que permite completar definitivamente os contornos de uma identidade que há muito vinha sendo desenhada ORTIZ 1985 p 41 140 Ao utilizar os elementos da teoria culturalista de Franz Boas questiona as análises brasileiras fundadas principalmente em Nina Rodrigues que relacionam os caracteres físicos e os mentais BASTOS 2006 p 129 92 Afinal Todo brasileiro mesmo o alvo de cabelo louro traz na alma quando não na alma e no corpo há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil a sombra ou pelo menos a pinta do indígena e do negro Porque nada mais anticientífico que falarse da inferioridade do negro africano em relação ao ameríndio sem discriminarse antes que ameríndio sem distinguirse que negro FREYRE 1933 2004 p 367 370 Ninguém escaparia do sangue negro nas veias e na cultura Aparentemente a distinção entre raça e cultura levou Freyre a considerar as diferenças étnicas na formação nacional com uma nova perspectiva Entretanto algumas problematizações podem ser feitas quando tomamos sua obra como material histórico Antes de nos perguntarmos onde há problemas numa narrativa aparentemente essencial e totalmente positiva que valorizou a cultura africana que retirou a antiga noção racista de inferioridade do negro de que a miscigenação encerraria as possibilidades de uma civilização brasileira apontaremos na própria obra de Freyre argumentações que paralelas ao seu esforço de análise inovador e importante sobre o tema da miscigenação compõe uma paisagem social e histórica romantizada quando não inverossímil que continha um elemento político141 Para Freyre por exemplo Considerada de modo geral a formação brasileira tem sido na verdade um processo de equilíbrio de antagonismos Mas predominando sobre todos os antagonismos o mais geral e o mais profundo o senhor e o escravo É verdade que agindo sempre entre tantos antagonismos amortecendolhes o choque ou harmonizandoos condições de confraternização e de mobilidade social peculiares ao Brasil a miscigenação a dispersão da herança a fácil e frequente mudança de profissão e de residência o fácil e frequente acesso a cargos e a elevadas posições políticas e sociais de mestiços e de filhos naturais o cristianismo lírico à portuguesa a tolerância moral a 141 Essa avaliação otimista que Freyre faz da miscigenação representou um alívio para as elites brasileiras Ele lhes devolveu a autoconfiança que as teorias raciais do final do século XIX lhes tinham tirado Até 1930 pensouse que a miscigenação tinha comprometido definitivamente o futuro do Brasil REIS 2006 p 69 93 hospitalidade a estrangeiros a intercomunicação entre as diferentes zonas do país FREYRE 1933 2004 p 116 117 Em nossa análise é nesse ponto que a ideia da democracia racial se mostra pela primeira vez ainda que de forma implícita É uma visão em que a harmonia e as relações sociais são vistas como democráticas O pior dos antagonismos o do senhor e o do escravo era suavizado pela miscigenação e no indivíduo brasileiro haveria duas faces complementares e confraternizantes mesmo quando socialmente o indivíduo se encontrava numa posição social elevada a de senhor na hierarquia social142 Uma sociedade sem conflitos e de uma forma que a singulariza sempre tendendo para a harmonização dos elementos mais contraditórios Racialmente o português elemento civilizador com o africano e o ameríndio não teria para Freyre nenhuma consciência de raça e sim de religião143 É creditando uma inconsciência racial ao colonizador português que Freyre interpretou a dinâmica das relações raciais como sem discriminação no sentido da segregação espacial ou legal Para isso ele se utilizou principalmente da comparação no caso contrastando a sociedade brasileira com a dos Estados Unidos sobretudo com o Sul onde o regime de monocultura e escravidão teria sido bastante similar ao Nordeste açucareiro apontando que aqui desde o início os contrários estavam em harmonia A religião foi o fator social de integração racial mais poderoso e que teria nessa interpretação suavizado e até mesmo democratizado as relações de raça historicamente no Brasil144 Verificouse entre nós uma profunda confraternização de valores e sentimentos Predominantemente coletivistas os vindos das senzalas puxando para o individualismo e para o privatismo os das casasgrandes Confraternização que dificilmente se teria realizado se outro tipo de cristianismo tivesse dominado a formação social do Brasil um tipo mais clerical mais ascético mais ortodoxo calvinista ou rigidamente católico diverso da 142 Essas duas faces do indivíduo estendemse à sociedade É isso que caracteriza nossa forma de realizar a democracia somos uma democracia racial BASTOS 2006 p 136 Grifo da autora 143 Na falta de sentimento ou da consciência da superioridade da raça tão salientes nos colonizadores ingleses o colonizador do Brasil apoiouse no critério da pureza da fé FREYRE 1933 2004 p 272 144 O catolicismo concordamos ter sido o elemento poderoso de integração brasileira Adaptouse assim às nossas condições de vida tropical e de povo de formação híbrida FREYRE 1936 2004 p 799 94 religião doce doméstica de relações quase de família entre os santos e os homens que presidiu o desenvolvimento social do Brasil FREYRE 1933 2006 p 438 No Brasil visto por Freyre não é que inexistiam contradições raciais elas foram com efeito amaciadas ou democratizadas pela religião de família pela característica da sociedade brasileira de harmonizar os elementos contrários na forma relacional e informal dessa sociedade patriarcal e cristã que se desenvolveu historicamente desde a escravidão que a formou Confraternização e não conflito É nesse ponto que reside a ideia da democracia racial visto que a sociedade brasileira nessa narrativa sempre tenderia para a harmonia baseada na ideia cristã de confraternização universal de raças diferentes O nosso catolicismo doce contrasta com a forma religiosa da América espanhola e inglesa que teriam sido sistemas mais ascéticos e ortodoxos Nessa narrativa o passado já não nos condenava a ponto de impossibilitar a construção de uma civilização pelo contrário a harmonia racial histórica é um dado histórico fundamental de nossa identidade enquanto nação145 Em SM buscando uma nova sistemática da miscigenação no Brasil Gilberto apontou que a formação social híbrida brasileira se processou mediante a reciprocidade racial e tal fator Precisamente o característico mais vivo do ambiente social brasileiro parecenos hoje o de reciprocidade entre as culturas e não o marcado pelo domínio de uma pela outra ao ponto da de baixo nada poder dar de si conservandose como em outros países de miscigenação num estado de quase permanente crispação ou de recalque FREYRE 1936 2004 p 802 Esses elementos de coesão social o patriarcado e a religião católica teriam sido os fatores de integração racial no Brasil que impediriam que os elementos raciais se distanciassem em polos antagônicos É essa visão da sociedade é na tessitura 145 A visão freyriana a mais refinada interpretação do mito da democracia racial à brasileira tornouse um dos principais alicerces ideológicos da construção de uma identidade coletiva na qual o passado não nos condenava MAIO 1999 p 112 95 dessa narrativa que Gilberto construiu uma leitura do Brasil e da sua história que dentre outras coisas instituiu a visão da harmonização racial da ausência de preconceitos de raça e de uma predisposição histórica do brasileiro em conviver com as diferenças de forma harmônica ou seja com essa visão teria como se fundamentar uma ideologia da democracia racial baseada na miscigenação como corretora de antagonismos raciais O Brasil teria uma cultura única no mundo de não segregar os elementos racialmente diferentes essa seria sua marca identitária Freyre é portanto o autor que de alguma forma sistematizou isso em sua obra nos anos 1930146 Nesse tempo Gilberto teria escrito suas obras seminais sobre raça e história apesar das ambiguidades que contrastaria com as obras posteriores147 A argumentação freyriana nesses textos analisados insistia reiteradamente em apontar que a miscigenação suavizou as contradições sociais e mesmo na decadência do patriarcado elementochave também na coesão social mesmo numa sociedade de extremos como a escravocrata tal decadência não engendrou o surgimento de posições polares apesar dos antagonismos terem para Freyre ganhado intensidade nova Com a urbanização do país ganharam tais antagonismos uma intensidade nova o equilíbrio entre brancos de sobrado e pretos caboclos e pardos livres dos mucambos não seria o mesmo que entre os brancos das velhas casasgrandes e os negros das senzalas É verdade que ao mesmo tempo que se acentuavam os antagonismos tornavamse maiores as oportunidades de ascensão social nas cidades para os escravos e para os filhos de escravos que fossem indivíduos dotados de aptidão artística ou intelectual extraordinária ou de qualidades especiais de atração sexual E a miscigenação tão grande nas cidades como nas fazendas amaciou a seu modo 146 Freyre procurou e conseguiu criar um sentimento de identidade nacional brasileiro que permitisse algum orgulho nacional como fonte de solidariedade interna Foi nesse contexto que nasceu a ideia de uma cultura única no mundo lusobrasileira percebida como abertura cultural ao diferente e encontro de contrários Daí também todas as virtudes dominadas posto que associadas ao corpo e não ao espírito que singularizam o brasileiro para ele mesmo e para o estrangeiro Antes de Freyre inexistia uma identidade nacional compartilhada por todos os brasileiros SOUZA 2017 p 28 147 Seus melhores livros são escritos ainda na década de trinta quando o autor era muito jovem Sua obra de juventude é marcada pelo tom aberto propositivo hipotético o que levou a alguns comentadores a interpretálo pelo paradigma da ambiguidade e da contradição constitutivas SOUZA 2000 p 70 96 antagonismos entre os extremos FREYRE 1936 2004 p 270 Grifo nosso Para Freyre mesmo numa sociedade escravista e até após o declínio progressivo do sistema escravista o elemento da miscigenação agiu como nenhum outro no sentido de harmonizar e democratizar racialmente a sociedade É na miscigenação como corretora de distâncias sociais que a retórica da democracia racial se constituiu Nesse discurso em nossa interpretação isso se coaduna com o tempo histórico em que essa unidade discursiva ganhou expressão Roberto Motta 2000 argumenta que com a obra de Freyre um novo paradigma de relações raciais no Brasil se instituiu foi o paradigma da morenidade148 que insistia na morenidade brasileira e que as relações raciais são vistas como exemplo mundial de acomodação racial numa relativa democracia étnica Foi nos anos 1930 que se forjou uma identidade nacional baseada em alguns símbolos nacionais E o mulato produto da miscigenação histórica e para Freyre o tipo étnico característico da sociedade brasileira será elevado à categoria de representante da brasilidade De modo que os antagonismos que não foram nunca absolutos não se tornaram absolutos depois daquela desintegração a do patriarcado E um dos elementos mais poderosos de intercomunicação pelo seu dinamismo de raça e principalmente de cultura têm sido nessa fase difícil o mulato FREYRE 1936 2004 p 808 Freyre tem na história intelectual brasileira um lugar privilegiado por suas interpretações novas em relação ao problema racial e na questão da miscigenação Entretanto é inegável o lado problemático do conteúdo de boa parte de suas ideias expostas nos seus livros dos anos 1930 Sua retórica se aproximava de uma visão conservadora de um pensamento social conservador que enfatizava a estabilidade patriarcal e minimizava os conflitos étnicos tomando a história do Brasil como a história da formação de uma comunidade mestiça sem discriminação de raça que faz 148 MOTTA Roberto Paradigmas de interpretação das relações raciais no Brasil Estudos afroasiáticos n 38 Rio de Janeiro Dez 2000 p 113133 97 o leitor pensar que historicamente as relações raciais foram quase sempre atenuadas e praticamente nunca de franca oposição entre os elementos raciais constituintes As interpretações mais gerais sobre a obra de Freyre não somente as que se referem às suas análises sobre a questão da raça e da mestiçagem sendo a democracia racial subjacente ou subentendida foram bastante incisivas ao afirmar a sua filiação a uma tradição de pensamento conservador apesar de ressaltarem quase em coro os aspectos positivos e inovadores de sua obra à época em que as mesmas foram publicadas Dante Moreira Leite em O caráter nacional brasileiro texto originalmente de 1954 apontou sobre a obra do autor pernambucano que Hoje com a independência dos povos africanos e com a luta dos negros norteamericanos pelos seus direitos civis a posição de Freyre parece inevitavelmente datada e anacrônica Finalmente as posições políticas de Gilberto Freyre tanto no Brasil como com relação ao colonialismo português na África contribuíram para identificálo com os grupos mais conservadores dos países de língua portuguesa e para afastálo dos intelectuais mais criadores Disso resulta que Freyre é hoje pelo menos no Brasil um intelectual de direta aceito pelos grupos no poder mas não pelos jovens intelectuais LEITE 2002 p 359 360 A interpretação sobre a obra de Gilberto feita por esse autor aponta algumas considerações que nós acolhemos em nosso trabalho e que se somam à nossa argumentação neste capítulo Em nossa compreensão a análise da mistura racial como corretora de distâncias sociais não pode ser possível pela persistência inequívoca do racismo e de vários condicionantes adversos que para os negros ou pessoas de cor podem ser incapacitadores ou se converterem em verdadeiras barreiras intransponíveis As imagens de um país sem conflitos ou com conflitos amaciados propostas por Freyre são uma leitura histórica e sociológica e mesmo antropológica feita em nossa análise numa base interpretativa com um viés de conciliação de raça e de classe condizente com a ideia de que o país historicamente não reprimiu o negro na sociedade escravocrata e o integrou completamente com sua mestiçagem corretiva 98 à sociedade como um todo e em todos os ambientes sociais Sua história social foi escrita com o ponto de vista da classe dominante Gilberto escreveu sob o ponto de vista da casa grande LEITE 2002 p 375 373 Apesar de concordamos em parte com a interpretação de Dante Moreira Leite não compreendemos a obra de Freyre apenas nessa perspectiva Seria simplismo demasiado considerar a obra do importante historiador brasileiro apenas sob o ponto de vista de sua vinculação política conservadora Tornase claro porém que sua forma de interpretar o tema da raça e da mestiçagem imprimiu imagens que podem levar a compreender a dinâmica das relações entre brancos e negros sob a égide de uma harmonia social histórica o que de forma contundente abre margem para se pensar na existência de uma democracia racial no Brasil O termo democracia racial parece ter uma historicidade que não se anuncia de forma pioneira em Freyre Como apontam os autores Maria Lúcia PallaresBurke e Peter Burke em texto já citado neste trabalho A expressão democracia racial parece ter sido usada pela primeira vez pelo médico e psicólogo social brasileiro Arthur Ramos em 1941 e depois em 1944 por Roger Bastide ao descrever uma conversa com Freyre A intenção dessa expressão era sugerir que no passado e no presente o Brasil era incomumente democrático apesar de não no sentido de um sistema político no qual todos votavam e ainda menos no sentido de um sistema econômico no qual eram mais ou menos iguais PALLARESBURKE BURKE 2009 p 277 278 Nesse sentido quando argumentamos aqui que a obra de Freyre agenciou elementos que fazem ou nos levam a pensar e a bibliografia consultada também nos direciona a essa forma de compreensão que sua interpretação da dinâmica histórica das relações raciais no Brasil permite dizer que exista uma democracia étnica ou racial evidentemente não estamos creditando ao autor a paternidade do conceito porém apesar de não ser o pai da democracia racial os textos de Freyre são fontes privilegiadas para se perceber na história intelectual brasileira como o discurso sociológico do século XX no Brasil pensou o dilema racial brasileiro com esse viés democrático 99 Não há como se atinar senão pela especulação o que Freyre tinha em mente com esse tipo de pensamento Conhecedor do Brasil e de sua história como poucos em sua época com vasta leitura em antropologia e ciências sociais aparentemente ele queria provar como desde o início o Brasil se desenvolveu menos amparado em termos racistas do que em termos classistas149 no sentido da discriminação social dos indivíduos no mundo que o português criou150nos trópicos Esse mundo no caso o Brasil dos anos 1930 e 1940 socialmente teria uma predisposição a não ter preconceito de raça uma herança do colonizador luso Para os conhecedores da obra de Freyre é perceptível a sua guinada de livros sobre a intepretação histórica do Brasil nos anos 1930 para textos nos anos 1950 e 1960 que enfatizaram sobremaneira a questão portuguesa lusotropical no caso151 inclusive no apoio para alguns bastante claro ao regime fascista de Salazar em Portugal na época152 Além do mais essa visão de uma possível democracia étnica ou racial no Brasil de Freyre o teria feito se esforçar para juntamente com outros pesquisadores do Instituto Joaquim Nabuco para Pesquisas Sociais fundado por ele quando deputado federal Constituinte no Projeto UNESCO o mesmo que Florestan e Bastide 149 Em SM por exemplo ele afirmou que Integração amadurecimento e desintegração que não se verificaram nunca independentemente de outro processo igualmente característico da formação brasileira o de amalgamento de raças e culturas principal dissolvente de quanto houve de rígido nos limites impostos pelo sistema menos feudal de relações entre os homens às situações não tanto de raça como de classe de grupos e indivíduos FREYRE 1936 2004 p 475 Grifo nosso 150 É o título de um livro de Gilberto Freyre que apareceu em 1940 fruto de uma série de conferências na Europa no ano de 1937 151 O chamado Lusotropicalismo é parte importante do programa de quase ciência proposto por Freyre nos anos 1950 Sobre isso em Novo mundo nos trópicos 1971 ele afirmou que E essa filosofia tropicologia se existe implicaria já um pequeno conjunto e até uma suma senão de sínteses ou de conclusões de sugestões ou de interpretações De interpretações e de sugestões com alguma coisa de sínteses e de conclusões as que estão à base da justificativa que do ponto de vista brasileiro o autor vem oferecendo para a formação de Tropicologia geral dentro da qual se desenvolvessem uma Hispanotropicologia e uma Lusotropicologia para estudos específicos de situações humanas também específicas condicionadas por ambientes ou por influências tropicais FREYRE 1971 2011 p 21 Essa Tropicologia cujo lusotropicalismo é parte fundamental já teria sido segundo Freyre ratificada pelos mestres da Sorbonne FREYRE 1971 2001 p 52 152 Jesse Souza em artigo já citado argumenta que Efetivamente Gilberto Freyre conclui na sua obra madura Conclui transformando algumas de suas brilhantes intuições de juventude acerca da especificidade e singularidade da formação social brasileira em uma ideologia nacionalista e luso imperialista de duvidoso potencial democrático O que antes adquiria a forma do questionarse acerca das peculiaridades e transformações de uma cultura européia nos trópicos transformase em tropicologia um conjunto de asserções de cientificidade duvidosa mas facilmente utilizáveis como ideologia unitária do tropical e mestiço Uma ideologia do apagamento das diferenças SOUZA 2000 p 70 Sobre a relação entre Freyre e o salazarismo português ver PINTO João Alberto da Costa Gilberto Freyre e a intelligentsia salazarista em defesa do Império Colonial Português 1951 1974 História v 28 n 1 p 445482 2009 100 participaram nos anos 1950 demonstrar ao mundo que o Brasil vivia uma situação de rara cordialidade entre brancos e negros153 Portanto podemos ver que as imagens de democracia racial para o autor não deveriam ficar apenas patente aos brasileiros Essas imagens deveriam à época de luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e do pósHolocausto na Europa ser exportadas para servir de exemplo ao mundo Todavia há que se notar que a narrativa de Gilberto nesses textos de 1930 não indica ou seja é inexiste o termo democracia racial em nenhuma página São imagens que podemos interpretar como indicativas de uma democracia racial principalmente as ideias de que a miscigenação corrigiu os extremos sociais e a quase inexistência de preconceitos de raça que seriam uma das muitas heranças portuguesas ao brasileiro Entretanto o termo democracia étnica e mesmo o termo democracia racial apareceram em outros textos Quando avançamos na leitura histórica das obras do autor podemos perceber sua insistência em defender que a civilização brasileira nos trópicos teria se desenvolvido sem os extremismos em termos de segregação racial como os existentes nos Estados Unidos e que dentre as características que singularizariam a cultura brasileira seria justamente a ausência de barreiras de cor ou o que ele denominou de relativa democracia étnica um dos fatores mais importantes e destacáveis do Brasil e a sua grande contribuição ao mundo Seria basicamente em língua inglesa que Freyre usaria o termo democracia racial como demonstra César BragaPinto154 De fato a própria expressão democracia racial que até onde conheço não se encontra nas obras em português aparece apenas na última frase da tradução inglesa de Sobrados e mucambos revisada pelo próprio Freyre onde se lê For Brazil is becoming more and more a racial democracy characterized by na almost unique combination of diversity na unity155 153 Em setembro de 1950 Freyre saudava a decisão da 5ª sessão da Conferência Geral da UNESCO em Florença Ele registrava não apenas o interesse políticocientífico pelo Brasil deviase à rara cordialidade das relações raciais existentes no país mas também observava que o valor dessa convivência multirracial era uma herança lusitana MAIO 1999 p 113 154 BRAGAPINTO César Os desvios de Gilberto Freyre Crítica sl sd p 281288 155 O autor se remete a esta edição FREYRE Gilberto The mansions anda the shanties The making of modern Brazil Trad e org de Harriet de Onís Ed Nova York Alfred Knopf 1968 p 431 101 A combinação singular de diversidade na unidade faria ou caracterizaria o Brasil como ou se tornando cada vez mais uma democracia racial É notável que na segunda edição brasileira refundida e acrescentada de cinco novos capítulos de SM em 1959 o termo não apareceu É democracia étnica relativa e imperfeita que veremos aparecer em outros textos também surgidos primeiramente em língua inglesa numa série de conferências que Freyre fez nos anos 1940 nos Estados Unidos em várias universidades Essa ideia de democracia racial na narrativa freyriana foi compreendida em duas vertentes principais uma intelectual e outra política Ou seja uma que se refere à tentativa de interpretação original e ousada e por isso mesmo polêmica e contestável da parte de Freyre em seu tempo principalmente nas décadas de 1930 e 1940 e outra do seu projeto mais geral de Brasil como uma nação que teria solucionado o que em outros países e regiões não teria ocorrido os problemas em relação à questão da mistura de raças e dos conflitos decorrentes desse mesmo contato racial O uso da expressão democracia racial por Gilberto Freyre de forma explícita se deu quase que exclusivamente apenas nos seus escritos em língua inglesa Fazendo uma espécie de arqueologia do conceito em seus textos o pesquisador Levy Cruz 2002 apontou que somente em textos de 1949 1950 1963 na edição de SM já citada em inglês e 1980 foi que Freyre teria se reportado diretamente à existência da democracia racial no Brasil É significativo citar uma entrevista concedida por Gilberto Freyre em 1980 em que ele tratou dessa questão A pergunta de Lêda Rivas foi Até que ponto nós somos uma democracia racial E a resposta de Gilberto Freyre foi esta democracia política é relativa Sempre foi relativa nunca foi absoluta democracia plena é uma bela frase de demagogos que não têm responsabilidade intelectual quando se exprimem sobre assuntos políticos os gregos aclamados como democratas do passado clássico conciliaram sua democracia com a escravidão Os Estados Unidos que foram os continuadores dos gregos como exemplo moderno de 102 democracia no século XVIII conciliaram essa democracia também com a escravidão Os suíços que primaram pela democracia pura até a pouco não permitiam que a mulher votasse São todos exemplos de democracias consideradas nas suas expressões mais puras relativas o Brasil é o país onde há uma maior aproximação à democracia racial quer seja no presente ou no passado humano Eu acho que o brasileiro pode tranquilamente ufanarse de chegar a este ponto Mas é um país de democracia racial perfeita pura Não de modo algum Quando fala em democracia racial você tem que considerar o problema de classe se mistura tanto ao problema de raça ao problema de cultura ao problema de educação isolar os exemplos de democracia racial das suas circunstâncias políticas educacionais culturais e sociais é quase impossível é muito difícil você encontrar no Brasil brasileiros que tenham atingido uma situação igual à dos brancos em certos aspectos Por quê Porque o erro é de base Porque depois que o Brasil fez o seu festivo e retórico 13 de maio quem cuidou da educação do negro Quem cuidou de integrar esse negro liberto à sociedade brasileira A Igreja Era inteiramente ausente A República Nada A nova expressão de poder econômico do Brasil que sucedia ao poder patriarcal agrário e que era a urbana industrial De modo algum De forma que nós estamos hoje com descendentes de negros marginalizados por nós próprios Marginalizados na sua condição social Não há pura democracia no Brasil nem racial nem social nem política mas repito aqui existe muito mais aproximação a uma democracia racial do que em qualquer outra parte do mundo Rivas 1980 1997 p 179 Apud CRUZ 2002 sp Itálicos do autor Apesar de negar explicitamente que não há pura democracia racial e que os negros foram marginalizados após a abolição o autor pernambucano insistia mesmo em 1980 com toda uma série de críticas e balanços de suas ideias já realizados na ideia de que o Brasil mais do que qualquer parte do mundo poderia ou seja era uma possibilidade ser uma democracia racial ao menos quando comparado a outros países Assim como na análise da escravidão benigna e das relações de produção e de tipo de sociabilidade na narrativa freyriana era constante a questão do método comparativo principalmente com a sociedade estadunidense mais especificamente sua região Sul O fato do Brasil não possuir leis raciais como as famigeradas Leis Jim 103 Crow156 não possuir lugar nos ônibus para negros bebedouros escolas bairros enfim uma série de apartheids raciais tinha para ele assim compreendemos um significado importante na sua apreciação das relações tanto históricas como no seu tempo das relações raciais no Brasil Em texto de apresentação do Brasil como civilização europeia nos trópicos tratase do livro Novo Mundo nos Trópicos Freyre afirmou sobre o hibridismo cultural que seria a principal causa ou fator que engendraria uma relação racial cordial entre os brasileiros que Isso parece explicar por que na América portuguesa se encontra atualmente 1971 uma civilização de tão vivas características sendo descrita por alguns autores como uma democracia étnica senão perfeita bastante imperfeita ainda avançada FREYRE 1971 2011 p 175 Outro ponto interessante e que não pode ser desconsiderado pois em nossa leitura é fundamental é que a democracia racial brasileira a democratização étnica nacional fora produto da colonização portuguesa Fruto do catolicismo sincrético da casagrande e sua família extensa a considerar escravos como filhos Foi uma produção da colonização lusitana esse é o ponto de partida A questão principal sobre a existência da democracia racial em Freyre é que ela só foi possível graças aos portugueses que encontraram na América tropical espaço ideal para a expansão e o desenvolvimento de sua civilização etnicamente democrática FREYRE 1971 2011 p 177 A retórica freyriana da democracia racial que lemos aqui enquanto matéria histórica se moveu em nossa compreensão em três diferentes direções que são em sua unidade discursiva interligadas A primeira foi no plano histórico ou seja Freyre projetou para o passado brasileiro a existência de antagonismos em equilíbrio o que é deveras importante na constituição da ideia de uma democracia racial A segunda era o plano presente ou seja pelo método comparativo principalmente afirmando que as condições étnicoraciais no Brasil são mais democráticas ele argumentava que na sua época anos 1930 e 1940 em termos raciais o Brasil era uma autêntica democracia embora não no plano político E a terceira foi o plano futuro em que a 156 Eram leis segregacionistas de cunho racista que existiram nos Estados Unidos até a década de 1960 104 imperfeita e ainda por se fazerconcretizar democracia étnicoracial iria se constituir enquanto processo e possibilidade Retomando aos fundamentos epistemológicos e onde ele concentrou o que compreendemos como plano histórico da análise da democracia racial vemos em CGS as imagens privilegiadas do processo de constituição de um sistema social racialmente democrático no passado brasileiro escravocrata latifundiário e sobretudo híbrido com a amolecedora de contrastes e antíteses que foi a miscigenação racial afinal O Brasil formouse despreocupados os seus colonizadores da unidade ou pureza de raça FREYRE 1933 2006 p 91 A questão da linguagem se revelava para o autor como um ponto importante de reflexão sobre a harmonia social característica da democracia racial histórica pois Mesmo a língua falada conservouse por algum tempo dividida em duas uma das casasgrandes outra das senzalas Mas a aliança da ama negra com o menino branco da mucama com a sinhámoça do sinhozinho com o moleque acabou com essa dualidade Não foi possível separar a cacos de vidro de preconceitos puristas forças que tão frequentemente e intimamente confraternizavam FREYRE 1933 2006 p 416 A aliança entre brancos e negros viabilizada pela ação social da ama de leite negra é determinante para Freyre pensar em relações raciais históricas amenas harmônicas e com doses de doçura A linguagem suavizada pela ama escrava foi um dos fortes elos de comunicação racial O forte poder da linguagem no sentido da comunicação social tem aqui um peso grande por ser creditado por Freyre o valor da harmonização de elementos díspares Mais uma marca característica de nossa formação histórica híbrida A marca do hibridismo tem nesse amolecer da linguagem um fator tão poderoso que por um momento as diferenças sociais entre as raças são anuladas Ainda seguindo a argumentação em CSG ele fez afirmações que condizem com a nossa segunda direção apontada sobre a democracia racial no caso o seu plano presente à época 105 Não que no brasileiro subsistam como no angloamericano duas metades inimigas a branca e a preta o exsenhor e o ex escravo De modo nenhum Somos 1933 duas metades confraternizantes que se vêm mutuamente enriquecendo de valores e experiências diversas quando nos completarmos em todo não será com o sacrifício de um elemento ao outro FREYRE 1933 2006 p 418 Grifo nosso Nesse trecho em que simultaneamente o plano presente e futuro estão expostos Freyre insistiu pelo contraste pela comparação em defender que o Brasil é sim um país de diferenças porém essas diferenças raciais sobretudo foram historicamente apagadas ao longo do processo de constituição da sociedade brasileira A história tem no hibridismo social um argumento forte nesse discurso de apagamento das diferenças raciais que em nossa compreensão foi parte fundamental da retórica da democracia racial Num mundo social onde nos anos 1930 e 1940 eventos em dimensões internacionais tais como a ascensão de regimes totalitários baseados em teorias racistas nazismo a sociedade estadunidense atravessada por leis segregacionistas e o apartheid na África do Sul faziam as análises operadas por Freyre terem em termos de democracia racial para o Brasil na época uma significância e um valor intelectual importante Porém tal forma de interpretação também é bastante problemática pois promove uma ideia em que o não conflito aberto de raças escamoteava a discriminação e o preconceito racial157 Assim como no passado no presente dele em nossa compreensão Freyre projetou essa visão de nãoconflito complementaridade harmonia confraternização racial enfim retórica que envolvia a um só tempo uma narrativa com base histórica passado e análise sociológica presente sobre a questão do contato racial a democracia racial brasileira era visível A questão da tolerância não a negação da distância social entre brancos e negros principalmente também é uma das ideiaschave do que para nós significa nos textos freyrianos apropriados como material histórico a democracia racial no 157 Em capítulo seguinte demonstraremos como Florestan Fernandes se insurgiu contra o que ele denominou de mito da democracia racial brasileira insistindo dentre outras coisas justamente nessa percepção de que o simples fato de não ter abertamente tensões raciais seria indicativo de boas ou democráticas relações raciais 106 plano presente Sobre isso em NMT escrevendo sobre as condições étnicas e sociais do Brasil moderno ele afirmou que Tem existido e ainda existe no Brasil distância social entre os diferentes grupos da população Essa distância porém é e hoje mais verdadeiramente do que no período colonial ou durante o Império quando a escravidão era o fato central da estrutura ou do drama social o resultado de consciência de classe mais do que qualquer preconceito de raça ou de cor De como é de larga tolerância a atitude dos brasileiros em relação a pessoas que embora com sangue africano podem passar por brancos nada mais expressivo do que o dito popular Quem escapa de negro branco é FREYRE 1971 2011 p 150 Essa era uma imagem de condições raciais no Brasil que deveria ser vendida para o público estadunidense afinal tratase acima de uma citação de um livro fruto de uma série de conferências feitas por Freyre nos Estados Unidos em 1944 acrescidos posteriormente de novos capítulos158 A consciência e a discriminação foram mais na perspectiva da classe social do que raça enfatizandas nesse trecho e isso implica em duas possíveis interpretações Uma primeira é a questão do critério de discriminação social que para Freyre no Brasil a questão da classe pesava mais que a raça ele não percebeu ou enfatizou que elas podem ser concomitantes ele as separou Uma segunda leitura sobre isso pode nos indicar que a classe vinda antes ou sendo algo mais forte que a raça é fruto da histórica predisposição do colonizador português de não ter consciência racial159 isso teria portanto se estendido até o presente do autor como algo observável e até mesmo isso acreditamos que sim deveria ser enfatizado como uma das positividades do Brasil 158 Tratase aqui do livro Novo Mundo nos Trópicos que foi baseado no texto mais antigo Brazil and interpretation 1945 texto composto da série de conferências na Universidade de Indiana nos Estados Unidos Em texto de apresentação à edição de Novo Mundo nos Trópicos utilizada neste trabalho o historiador inglês Peter Burke também ele um estudioso da obra de Freyre apontou sobre isso que Em 1944 quando Freyre foi convidado para proferir as Patten Lectures na Universidade de Indiana em Bloomington ele tinha 44 anos de idade Já tinha adquirido uma reputação no Brasil uma década antes mas ainda não era importante no cenário internacional FREYRE 1971 2011 p 11 12 159 Op Cit 1933 2006 p 91 107 Em relação ao plano futuro do que em nossa compreensão é possível identificar no discurso de Freyre como elementos da democracia racial ainda em NMT ele chegou inclusive a se referir explicitamente embora utilizando o termo democracia étnica que Creio que o Brasil como comunidade nacional tem que ser interpretado em termos de uma comunidade cada vez mais consciente do seu status ou do seu destino de democracia social Social e étnica O Brasil destacase como comunidade inclinada para a democracia étnica sobretudo pelo contraste da sua política democrática de raça com a da maioria das nações modernas FREYRE 1971 2011 p 200 Inclinação futura mais embasada numa longa duração de harmonização de conflitos raciais para Freyre a democratização étnicoracial plena a corrigir as imperfeições era no Brasil um processo que iria se constituir sob a base do hibridismo cultural e evidentemente racialhistórico de nossa formação enquanto sociedade de tipo metaracial Até mesmo porque para ele os latinos têm desenvolvido o aspecto étnico da democracia mais do que o político e os anglo saxões o puramente político mais do que o étnico ou o econômico FREYRE 1971 2011 p 220 A ausência de democracia política ou econômica para inglês ver foi contrastada e vista como uma vantagem que ingleses não tinham com a democracia no terreno étnico das nações latinoamericanas e em singular posição o Brasil É evidente que a democracia racial ou as imagens no discurso freyriano aqui investigado nos planos histórico presente e futuro estão sempre quando enunciados por Freyre em nossa compreensão conectados Nós os destacamos porque eles nos remetem a pelo menos uma forma de interpretação desse discurso A saber que para Freyre o Brasil se formou era e seria ainda mais uma democracia racial que se baseava principalmente pela histórica colonização portuguesa No fim das contas seu discurso sempre remetia à questão dos lusos na formação do Brasil como um país mestiço sem discriminação aberta e franca diferente outro uma civilização nos trópicos que pela sua colonização lusa não se transformou em um país 108 racista abertamente com leis segregacionistas e afins como eram os Estados Unidos de sua época por exemplo160 Sem dúvida que o argumento central da obra de Gilberto sobre o tema da raça nos anos 1930 se concentrava na sua perspectiva sobre a diferenciação entre raça e cultura que segundo ele mesmo teria aprendido com o antropólogo Franz Boas na Universidade de Columbia no início da década de 1920 A ideia de amalgamento racial como fator fundamental para entender a sociedade híbrida e sem preconceito racial que se formara nos trópicos teria nessa distinção basilar entre raça e cultura o aspecto determinante que também acreditamos ser fundamental para se discutir a propalada e às vezes implícita noção de democracia racial na narrativa freyriana Sobre esse ponto cabe destacar as afirmações de Ricardo Benzaquem Araújo para alguns o melhor intérprete entre nós da obra freyriana como afirmou o historiador Ronaldo Vainfas161 para quem a distinção entre raça e cultura em Freyre mais especialmente na sua obra nos anos 1930 não estava tão bem discriminada como o autor julgou e que essa imprecisão conceitual abalaria conseqüentemente sic a insistente pretensão de originalidade de Gilberto que recorria ao ensinamento relativista de Boas para se distanciar dos seus antecessores e competidores nacionais ARAÚJO 1993 p 33 Ainda seguindo a argumentação de Araújo em seu estudo importante sobre a obra freyriana nos anos 1930 distinguindo raça de cultura assentado nesse critério ele no mesmo movimento em que se afasta do racismo e admite a relevância de outras culturas nosso autor teria criado uma imagem quase idílica da nossa sociedade colonial ocultando a exploração os conflitos e a discriminação que a escravidão necessariamente implica atrás de uma fantasiosa democracia 160 Nos antecedentes europeus da história brasileira ensaio que também faz parte do livro Novo Mundo nos Trópicos Freyre afirmou retomando ideias explicitas em Casagrande senzala que Segundo autores pela mistura da gente de Portugal com o povo semítico é que há de explicar a capacidade que parecem ter os portugueses mais do que qualquer povo da Europa de se aclimatarem nas mais diversas regiões do mundo e ao lado de judeus os mouros que igualmente teriam contribuído para essa plasticidade do colonizador português FREYRE 1971 2011 p 80 Plasticidade e aclimatabilidade que do colonizador teria sido legado ao brasileiro a questão da não segregação e sim assimilação racial 161 VAINFAS Ronaldo Casagrande erótica A sexualidade na obra prima de Gilberto Freyre In VAINFAS Ronaldo NASCIMENTO Francisco Alcides do História e historiografia Ed Recife Bagaço 2006 p 412 109 racial na qual senhores e escravos se confraternizariam embalados por um clima de extrema intimidade e mútua cooperação ARAÚJO 1993 p 30 31 Seguindo essa argumentação portanto mesmo naquilo que seria o mais significativo e distinto em termos de análise histórica surgido até então no caso a separação entre raça e cultura na análise das relações raciais históricas no Brasil critério que embasa todo o estudo de CGS ainda assim essa mesma diferenciação não teria livrado Freyre de expor em seu trabalho imagens e reminiscências que em conjunto produziram uma imagem mítica das relações entre senhores e escravos ou seja não o tornaria de todo inescusável de apesar de evidentemente não como criador ser um dos intérpretes da história brasileira baseado na ideia de democracia racial É inegável porém a tentativa de Freyre com sua obra nos anos 1930 que deve ser vista em seu tempo como extremamente relevante de superar a visão negativa de nós brasileiros mesmos Como evocou um dos estudiosos de sua obra162 O admirável em Gilberto Freyre é que regressava dos Estados Unidos e da Europa sem estar europeizado ou ianquizado no seu espírito e na sua inteligência o que aprendeu com grandes mestres serviu para aprofundar o mistério nordestino Ele trouxe de lá a explicação de nós mesmos O Brasil de hoje miscigenado moreno mulato caboclo valorizado no seu complexo racial é um Brasil gilbertiano Com CasaGrande Senzala tenho dito mais de uma vez que passamos do preconceito ao conceito O preconceito era o de raça O conceito é o de metaraça PEREIRA In FONSECA 1985 p 72 Grifo nosso Esse tipo metaracial dos trópicos o brasileiro dos anos 1930 produto histórico da hibridização cultural era na narrativa de Freyre em nossa análise o tipo social sem consciência de raça plástico como o colonizador luso contemporizador em 162 PEREIRA Nilo CasaGrande Senzala e o seu tempo In FONSECA Edson Nery da Org Novas perspectivas em CasaGrande Senzala Ed RecifePE Editora Massangana Fundação Joaquim Nabuco 1985 p 6677 110 termos étnicos O Brasil da democracia racial era esse do tipo metaracial descrito por Gilberto Freyre principalmente nos anos 1930 Apesar de sua metodologia nova à época e dentro de um horizonte intelectual muito singular devido à sua trajetória pessoal de estudante em universidades estrangeiras nem mesmo o mais animado dos seus comentadores pode esconder que quando buscamos compreender historicamente suas ideias ele ainda retinha termos do anterior léxico racialista que ele mesmo buscava romper evidentemente tratando a questão velha da raça com uma terminologia nova cultura E nessa retenção abriu margem com suas imagens históricas para se pensar o Brasil em termos de democracia racial tanto no plano histórico como no seu presente e até mesmo projetando isso para o futuro Qual seria o sentido do ponto de vista de uma análise histórica das análises de Gilberto Para nós um sentido eminentemente conservador quando não reacionário 23 O sentido conservador da narrativa freyriana sobre as relações raciais O passado nunca foi o passado continua163 A interpretação freyriana do tipo metaracial brasileiro nos trópicos onde repousaria a democracia racial exportável ao mundo principalmente no pósguerra 1945 tinha de acordo com o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior uma singular significância para as elites nordestinas em crise na época Essa visão plástica da realidade condiz com a sua principal postura política a da busca da harmonização dos conflitos da superação dos antagonismos por uma interpretação conciliatória dos contrários Esta procura da harmonia aliase à procura da permanência da manutenção da ordem por isso o pensamento freyriano se orienta mais no sentido espacial do que temporal ALBUQUERQUE JÚNIOR 2011 p 112 163 Frase de Gilberto Freyre In Epígrafe PALLARESBURKE Maria Lúcia G BURKE Peter Repensando os Trópicos um retrato intelectual de Gilberto Freyre Ed São Paulo Editora da UNESP 2009 p 9 111 Dito isso um caminho possível de análise da obra freyriana que é o que estamos buscando sustentar é apontar o projeto de Brasil que ele comportava com a sua ideia ora implícita ora subentendida de democracia racial baseada na concepção de que a constante da história brasileira e até mesmo do seu presente era a conciliação de contrários da harmonia racial e por conseguinte social Seu projeto de país em que a representação do mesmo repousa em uma interpretação histórica bem particular das relações raciais era portanto um projeto vinculado às elites que nordestinas ou não em crise ou não se beneficiaram e se beneficiavam com a sociedade como ela está ou seja sem abalos na estrutura que perturbe o antagonismo e a hierarquia em equilíbrio histórico164 Não é só portanto no seu explícito e público apoio à ditadura civilmilitar de 1964 BASTOS 2006 p 34 ou no seu também notório e visível apoio ao regime salazarista português nos anos 1950 PINTO 2009 Na sua própria reflexão sobre a história brasileira principalmente na questão das relações raciais repousava uma visão de sociedade vinculada a interesses sociais historicamente associados às elites o que permite compreender sua narrativa como especialmente conservadora LEITE 2002 O historiador Carlos Guilherme Mota em análise sobre a ideologia da cultura brasileira apontou sobre a obra freyriana dos anos 1930 que Uma abordagem sumária permite desde logo vislumbrar em seu comportamento intelectual que também se traduz em nível político possuindo enraizamento social e econômico as expressões de um estamento dominante embora em crise Carrega consigo um certo sentido de mando as marcas da distinção e do prestígio uma visão senhorial do mundo suavizada pelas condições gerais de vida criadas na esteira das transformações sociais e políticas com foco na crise de 1930 MOTA 2008 p 94 Grifo nosso 164 Sobre isso Roberto DaMatta em texto introdutório à edição de SM utilizada nesta pesquisa afirmou que O que Gilberto tenta demonstrar correndo o risco de ser chamado de reacionário e um ideólogo de um escravismo doce é que o sistema funcionava hierarquicamente As diferenças não corriam em paralelo mas faziam parte de uma geometria social de inclusão uma figura na qual os senhores englobavam mas eram também englobados por seus escravos com os quais mantinham laços de interdependência DAMATTA In FREYRE 2004 p 19 112 Essa visão senhorial que se pode caracterizar como um estilo de pensamento conservador165 que à época teve muito sucesso166 revalorizando dentre outras coisas as tradições o tempo perdido em que as elites e principalmente os estratos inferiores da sociedade estavam em seu lugar Nesse ponto portanto narrativa e visão política estão interligadas democracia racial e projeto conservador de Brasil estavam entrelaçados Depreendese da análise da obra de Freyre sobre a questão da discriminação racial que a identificação racial no Brasil seria mais afetada especificamente pelo critério econômico de classe por exemplo do que pela consciência racial stricto senso Essa não poderia existir ou se existia era circunscrita a círculos racistas na sociedade brasileira exógena pois o brasileiro no geral mesmo o mais alvo e loito teria sangue negro como se esse dado por si desimpedisse a discriminação racial que sem dúvida havia e fazia a democracia racial brasileira não fluir plenamente Ele mesmo afirmou em protesto por ocasião de um hotel em São Paulo no ano de 1950 quando ainda era deputado federal ter se recusado a receber a coreógrafa e dançarina negra estadunidense Katherine Dunharm que Este é um momento o ultraje à artista admirável cuja presença honra o Brasil em que o silêncio cômodo seria uma traição aos nossos deveres de representantes de uma nação que faz do ideal se não sempre da prática da democracia racial inclusive a étnica um dos seus motivos de vida uma das suas condições de desenvolvimento FREYRE 1966 p 190 Grifo nosso Aqui é possível perceber claramente ao menos duas coisas Primeiro que do ponto de vista do discurso sobre o Brasil atual década de 1950 aqui Freyre pensou o país em que a democracia racial e étnica se não era uma prática era um ideal da nação Segundo que do ponto de vista mais retrospectivo Freyre pensava que 165 Ver MANHHEIN Karl Conservative thought In Essays on Sociology and Social Psychology Ed London Routledge e Kegan Paul 1953 p 74164 166 Estranho sucesso A invenção ou revalorização das tradições aparece num momento quando os setores dominantes tradicionais ligados à agricultura do açúcar estão claramente em decadência Momento em que seu poder político é questionado Mais uma vez teve razão Hegel ao afirmar que a coruja de Minerva retorna ao crepúsculo Nunca antes da década de 1930 os setores dominantes agrários tiveram tão grande ideólogo E nunca uma interpretação sobre os mesmos tão grande sucesso BASTOS 2006 p 48 113 historicamente as bases da democracia étnica e racial eram as condições do desenvolvimento do Brasil que desde os inícios da colonização lusa já se formava sem consciência de raça Aplicando os conceitos de espaço de experiência e horizonte de expectativa do historiador alemão Reinhart Koselleck167 na obra freyriana é possível compreender sua narrativa nesses dois planos conceituais da seguinte maneira O espaço de experiência freyriano das elites nordestinas em suas casasgrandes de engenho naquela geografia ainda colonial era um espaço de experiência positivo evocado inclusive pela sua memória pessoal sendo ele mesmo descendente de aristocrata família ou seja no espaço de experiência da sociedade brasileira havia algo que se quebrara justamente aquilo que a singularizaria como uma civilização tropical no caso os antagonismos raciais em equilíbrio mesmo em uma sociedade que se dividia fundamentalmente entre senhores brancos de um lado e escravizados negros do outro afinal como ele mesmo afirmou Foi então o Brasil uma sociedade quase sem outras formas ou expressões de status de homem ou família senão as extremas senhor e escravo O desenvolvimento de classes médias ou intermediárias de pequena burguesia de pequena e de média agricultura de pequena e de média indústria é tão recente entre nós sob formas notáveis ou sequer consideráveis que durante todo aquele período colonial seu estudo pode ser quase desprezado e quase ignorada sua presença na história social da família brasileira FREYRE 1936 2004 p 52 53 Nesse trecho é lembrado que a característica do nosso espaço de experiência esse da família patriarcal e tutelar do Brasil é uma sociedade de antagonismos e de hierarquia Uma sociedade cujas engrenagens funcionavam com mãos de ferro porém sem perder o doce característico da açucarocracia do engenho adocicado ainda pelo catolicismo também de família mais sincrético e até mesmo dionisíaco do que o protestantismo mais ascético das colônias inglesas O Brasil do passado de 167 Para quem espaço de experiência se vincula ao tempo passado e o horizonte de expectativa se vincula ao tempo futuro KOSELLECK 2006 p 304327 Sobre esses conceitos em Koselleck ver BARROS José DAssunção Barros O tempo dos historiadores Ed PetrópolisRJ Vozes 2013 p 140 141 114 Freyre era um Brasil bom principalmente para a sua elite econômica e política a mesma que em declínio em poderio tanto econômico e sobretudo político a partir de 1930 teria no discurso de Freyre um intelectual que lhe restituía a grandeza e a opulência de outrora O horizonte de expectativa de Freyre com sua argumentação parecenos o levou a considerar a civilização tropical e seus antagonismos raciais em equilíbrio basilar de sua democracia racial como o modelo a ser exportado para o mundo Modelo de política de integração racial de sucesso que não engendrara como nos Estados Unidos ou África do Sul um regime de segregação racial em termos legais como um apartheid Usando basicamente essa mesma nomenclatura de R Koselleck 2006 o historiador José Carlos Reis sobre o tempo histórico do Brasil em Freyre apontou que Freyre prefere a continuidade à mudança ou a mudança dominada pela continuidade Seu olhar sobre o futuro do Brasil é pessimista nos anos 30 a mudança se acelerava assustandoo pois comprometia a continuidade do passado patriarcal Com sua reflexão ele quer fazer uma defesa desse passado e impedir ou desacelerar a mudança REIS 2006 p 80 Era um intelectual do engenho antimoderno cuja significação política de sua obra se vinculava à crítica da noção de progresso como agente perturbador do equilíbrio social168 Sua produção no que tange ao tema democracia racial pode ser lida também embora não tenhamos nos aferrado a essa estrita conceituação como a de um intelectual tradicional169 ligado às elites em crise de sua época mas nos pareceu simplista demais pensar sua produção nesses termos todavia como se verá num capítulo seguinte a crítica contundente à democracia racial e às relações harmônicas entre as raças proposta principalmente nos anos 1960 por Florestan Fernandes irá diferir frontalmente com essa forma de interpretação do Brasil mediada 168 ALBUQUERQUE JÚNIOR Durval Muniz de A invenção do nordeste e outras artes 5 ed São Paulo Cortez 2011 p 113 169 Ver GRAMSCI Antonio A Formação dos Intelectuais In Os Intelectuais e a Organização da Cultura 4 ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1982 p 323 115 pela ideia da democracia racial de Freyre que tinha uma significação eminentemente conservadora 116 CAPÍTULO III RAÇA E CLASSE A NÃO INTEGRAÇÃO DO NEGRO NO BRASIL O terceiro capítulo do nosso trabalho analisando os textos de Florestan Fernandes busca num primeiro momento identificar sua crítica à ideologia da democracia racial no caso denunciando o mito que essa ideologia representava para o autor paulista Nosso ponto maior posteriormente é compreender a sua análise sobre a não integração do negro no Brasil que para ele representava uma problemática que ia além da pobreza no sentido material Procedemos pois em nossa análise à leitura que Florestan fez nos anos 1960 da não integração do negro na sociedade de classes que se formava feita juntamente com a sua forma de crítica ao mito do Brasil como o país da democracia racial que era a ideia geral que até então se fazia do país principalmente quando se tinha como base os textos de Gilberto Freyre dos anos 1930 e 1940 como demonstramos em capítulo anterior A obra AINSC 1964 fruto de sua tese de cátedra na USP tem o estilo pedregoso da espécie Dois alentados volumes que condensam interpretações quantitativas baseadas em uma análise sociológica com alicerces teóricos variados num leque de referências extraordinariamente extenso Dentro da literatura sociológica sobre as relações raciais a obra se destaca não apenas pela amplitude e pelas formas de análise mas também pelo seu duplo aspecto de ser ao mesmo tempo uma obra científica e uma obra política porém sem perder o elemento de crítica a partir da problemática racial de aspectos mais gerais da sociedade brasileira e sua história afinal como ele mesmo argumentou tratavase de uma obra que problematizava a emergência do povo na história170 Antes de problematizarmos a não integração do negro na perspectiva de Florestan na sociedade classista que se formava iremos num primeiro momento enfatizar a forma de crítica e analisasse o mito da democracia racial conforme Florestan mesmo nomeou Isso se releva importante como análise prévia da não integração do negro em pelo menos dois pontos O primeiro é que a percepção da não integração do negro estaria obscurecida justamente por esse mito que serviria como véu ideológico para que a questão da subalternização do elemento de cor na sociedade capitalista em formação não era percebida e assim atingiria um grau sério 170 FERNANDES OpCit 1964 pXI 1965 117 de invisibilidade O segundo é que faz parte da proposta da nossa pesquisa enfatizar as leituras de Freyre e de Florestan sobre o tema da democracia racial buscando assim desenvolver uma análise de como em tempos diferentes e a partir de perspectivas distintas os dois autores trataram essa questão 31 Florestan A falácia da democracia racial Para Florestan democracia racial era um mito a ser desconstruído Os mitos servem dentre outras coisas para instituir uma visão de mundo que explique uma determinada origem e que sirva socialmente para manter determinados padrões e condutas por parte dos indivíduos O mito da democracia racial serviria para manter intacta ou para disfarçar o histórico caráter segregador da sociedade brasileira em relação aos negros que desde a escravidão foram subjugados Florestan referindose ao mito da democracia racial em AINSC argumentou que Durante quase meio século permaneceu soberana e intocável uma ideologia racial que colidia com as bases ecológicas econômicas psicológicas sociais culturais jurídicas e políticas de uma sociedade multirracial FERNANDES 1964 1965 p 195 Grifo nosso Num primeiro momento destacamse duas observações depreendidas dessa análise de Florestan Primeiro que para ele essa ideologia racial permaneceu por quase meio século ele publicou o seu livro em 1964 ou seja ela precede a obra de Freyre por exemplo e tem na obra dele ao menos uma contraposição sociológica mais direta Segundo que essa mesma ideologia racial colidiria com as bases sociais que ela busca interpretar isto é que tendo uma visão ampla no sentido da ecologia economia psicologia análise sociológica cultural jurídica e política não existe base para se pensar em termos de democracia racial no Brasil nem no plano histórico no sentido de sua vigência e não em termos de existência conceitual nem no plano social à época no caso os anos 195060 que é o contexto do autor Para Florestan falar em termos de democracia racial seria contra os fatos históricos e a realidade empírica presente um duplo erro Erro que 118 Na ânsia de prevenir tensões raciais hipotéticas e de assegurar uma via eficaz para a integração gradativa da população de cor fecharamse todas as portas que poderiam colocar o negro e o mulato na área dos benefícios diretos do processo de democratização dos direitos e garantias sociais FERNANDES 1964 1965 p 197 Esse mito tinha então uma função social de invisibilizar as barreiras de cor Então Engendrouse assim um dos grandes mitos de nossos tempos o mito da democracia racial brasileira Admitiase de passagem que esse mito não nasceu de um momento para outro Ele germinou longamente aparecendo em todas as avaliações que pintavam o jugo escravo como contendo muito pouco fel e sendo suave doce e cristãmente humano Todavia tal mito não possuía sentido na ordem social escravocrata e senhorial FERNANDES 1964 1965 p 197 A ideia de igualdade entre as raças escondia escamoteava o real conflito O estado social racial brasileiro não seria de acomodação social mas de conflito social O engendrar do mito da democracia racial brasileira um dos pilares da identidade nacional da brasilidade escondia o racismo crasso existente em nosso país Historicamente portanto deturpava as relações entre senhores e escravos sendo o pouco fel ou a escravidão benigna como queria Freyre aspectos fundamentais de sua germinação Ainda em AINSC podemos encontrar a seguinte referência ao mito da democracia racial contestado por Florestan O atraso da ordem racial ficou assim como um resíduo do antigo regime e só poderá ser eliminado no futuro pelos efeitos indiretos da normalização progressiva do estilo democrático de vida e da ordem social correspondente Enquanto isso não se der não haverá sincronização possível entre a ordem racial e a ordem social existentes Os brancos constituirão a raça dominante e os negros a raça submetida Doutro lado enquanto o mito da democracia racial não puder ser utilizado abertamente pelos negros e mulatos como um regulador de seus anseios de classificação e de ascensão sociais ele será inócuo em termos da democratização da ordem racial imperante FERNANDES 1964 1965 p 209 210 119 Aqui Florestan apontou como a ordem racial brasileira que nada tinha de democrática era um resíduo da ordem social escravocrata brasileira e a utilização por parte de negros e mulatos do mito da democracia racial era uma possibilidade que dentre outras coisas poderia colaborar na construção de uma ordem racial igualitária e não excludente Como categoria histórica o mito da democracia racial deveria ser reapropriado agora para efetivamente instituir relações raciais e sociais igualitárias e não assimétricas A luta dos negros deveria se dirigir no presente para a democratização racial que só viria plenamente pela sua efetiva ação social orientada para este fim Em ONMB se lê que Em consequência temos que admitir que o mito da democracia racial fomenta outros mitos paralelos que concorrem para esconder ou para enfeitar a realidade e que esses mitos são perfilhados sem base objetiva mesmo pelos negros e pelos mulatos FERNANDES 1972 2007 p 28 Esse falso idealismo da democracia racial171 que encobria as relações de raça que eram excludentes também se revelava como um entrave para a ação prática Destacavase na escrita de Florestan a reiteração entre pensamento e ação ou seja sua forma de trabalhar com o tema da raça e seu empenho em desconstruir o mito da democracia racial que se revela como um invólucro místico ideológico que encobria a realidade cruel172 do racismo e do preconceito e se relacionavam com a dimensão prática da vida com a ação transformadora com uma proposta de intervenção na realidade de modo a transformála Com efeito A democracia racial não impõe a participação como um desafio passivo para participar o negro e o mulato precisarão dar de si mesmos o que eles possuem de mais criador e produtivo O 171 FERNANDES Florestan O negro no mundo dos brancos 2 ed São Paulo Global 1972 2007 p 30 172 A partir dessa interpretação a tese da cordialidade das relações raciais da democracia racial revelase ficção ideológica IANNI 2008 p 24 120 que pretendemos para o nosso futuro imediato e remoto não é fixação dos dois pólos separando o negro de um lado e o mundo dos brancos de que ele participa marginalmente de outro mas que o mundo dos brancos diluase e desapareça para incorporar em sua plenitude todas as fronteiras do humano que hoje apenas coexistem mecanicamente dentro da sociedade brasileira FERNANDES 1972 2007 p 35 36 Mesmo com a constatação acima citada é inegável como ele mesmo disse mais acima que não se pretendia criar mediante uma desconstrução do mito da democracia racial um mundo de negros à parte de um mundo dos brancos Era a diluição das fronteiras ou barreiras de cor FERNANDES 2007 que se buscava que deveria ser o objetivo de um movimento negro e mulato que modificasse o status quo racialista brasileiro da época Referindose à pesquisa da UNESCO que ele e Roger Bastide participaram nos anos 1950 Florestan argumentou que Ao que parece essa instituição alimentava o propósito de usar o caso brasileiro como material de propaganda se os brancos negros e mestiços podem conviver de forma democrática no Brasil por que o mesmo processo seria impossível em outras regiões Não obstante o que é uma democracia racial A ausência de tensões abertas e de conflitos permanentes é em si mesma índice de boa organização das relações raciais FERNANDES 1972 2007 p 39 Grifo nosso Ao questionar a própria democracia racial o autor problematizava a ideia muito freyriana por sinal de que se inexistem relações abertas de hostilidades em relação à população negra ou de cor exemplificada em residências somente para negros ônibus escolas praças etc inexistiam barreiras de cor Para Florestan só essa ausência de tensões raciais abertas não validariam a ideia de pensar as relações entre brancos e negros sob a perspectiva da democracia étnica ou racial Pois essa mesma ideologia que funcionava como o mecanismo de mascaramento da realidade racial brasileira tinha uma função social e política bastante clara para a população negra Não se revoltem não há porque se revoltar Somos uma democracia racial 121 Em termos de interpretação do social haveria então uma confusão em que se poderia constatar que Em suma a expansão urbana a revolução industrial e a modernização ainda não produziram efeitos bastante profundos para modificar a extrema desigualdade racial que herdamos do passado Essa afirmação contraria o que se costuma dizer sobre a democracia racial que imperaria no Brasil É que se confundem padrões de tolerância estritamente imperativos na esfera do decoro social com igualdade racial propriamente dita FERNANDES 1972 2007 p 67 Porém quanto ao mais não é só a democracia racial que está por constituir se no Brasil É toda a democracia na esfera econômica na esfera social na esfera jurídica e na esfera política FERNANDES 1972 2007 p 40 Para o sociólogo paulista falando nesse texto já no início dos anos 1970 em plena ditadura civilmilitar somado à luta para a construção mediante a ação prática da democracia racial estava também o projeto de construção da democracia no sentido mais amplo do termo Como já enfatizamos ao longo do trabalho é constante quando analisamos o pensamento e as ideias de Florestan o esforço em conciliar pesquisa com ação transformadora Democracia racial não se sustentaria para ele senão como um mito engendrado numa sociedade estamental de castas173 Em síntese O privilégio é tão justo e necessário para as camadas dominantes e também para as suas elites culturais que as formas mais duras de desigualdade e de crueldade são representadas como algo natural e até democrático Está nessa categoria o mito da democracia racial tão entranhado na visão conservadora do mundo no Brasil O que define uma democracia racial Pouco importa O que importa é que o mito seja aceito e que se propague que não existe no mundo outro exemplo de democracia racial FERNANDES 1972 2007 p 294 173 Para o Paulista a sociedade de castas é uma sociedade de classes mais rígida fundamentada em certas relações de produção na qual há pouco ou nenhum espaço para mudança ou mobilidade é a sociedade précapitalista com base econômica e mesmo na versão brasileira apresentando muitas semelhanças com o regime feudal da Europa medieval MOTA 2000 p 125 122 Não é nem a precisão conceitual sua gênese ou mesmo o autor que a formulou Para Florestan no que se referia à democracia racial era a sua aceitação que interessava principalmente aos setores mais conservadores da sociedade brasileira e como apontamos a leitura de Freyre se coaduna bem nesse sentido Embora Florestan não o cite transparece em nossa compreensão um diálogo com a obra de Freyre e sua visão de harmonização dos contrários e de democracia étnica que não destacaria o lado sombrio do mundo que o português criou FERNANDES 1972 2007 Nada de democracia racial poderia ser encontrado nesse mundo criado pelos lusos Há de se citar que a disputa de interpretação sobre raça e relações étnicas aqui expostas não é apenas em termos de teoria ou paradigma explicativo A disputa era também em termos de projeto de Brasil Enquanto Freyre ao salientar a questão da união explicou e buscava a conservação da coesão social Florestan queria uma ação prática transformadora o que dilatava e redimensionava o debate para além do universo das pesquisas e livros em direção ao terreno da política174 Em uma entrevista175 Florestan disse claramente que Os resultados da investigação que fiz em colaboração com o professor Roger Bastide demonstraram que essa propalada democracia racial não passa infelizmente de um mito social E um mito criado pela maioria e tendo em vista os interesses sociais e os valores morais dessa maioria ele não ajuda o branco no sentido de obrigálo a diminuir as forças existentes de resistência à ascensão social do negro nem ajuda o negro a tomar consciência da situação realista da situação e a lutar para modificála de modo a converter a tolerância racial existente em um fator favorável a seu êxito como pessoa e como membro de um estoque racial FERNANDES 1972 2007 p 60 174 Nessa polêmica FreyreF Fernandespesquisadores do Cebrap aparecem duas disputas uma teórica e outra política A primeira opõe marxistas e historicistas o motor da história não são as ideias não são as mentalidades coletivas mas a luta de classes as classes em luta na esfera da produção A visão culturalista é vista como interclassista reacionária pois harmonizadora das contradições reais A segunda disputa opõe duas regiões do Brasil O Nordeste cujas oligarquias locais perdiam o poder desde a abolição do tráfico negreiro e a ascensão do café paulista exatamente nos anos 1850 de Varnhagen e os paulistas que ganhavam poder na mesma proporção em que os primeiros perdiam o seu REIS 2006 p 60 61 175 Publicada por A Gazeta 2781966 Reproduzida em F Fernandes J B Borges e O Nogueira A questão racial brasileira vista por três professores São Paulo Escola de Comunicações e Artes USP 1971 FERNANDES 1972 2007 p 59 Nota 2 123 Isso demonstra ao menos duas coisas Primeiro acreditamos que já enfatizamos esse ponto a democracia racial enquanto ideologia racial orientada com fins de escamotear as contradições raciais como o preconceito e a discriminação racial não resistem a um estudo empírico Ou seja ela é mais uma forma de intuição do que resultado de uma pesquisa objetiva176 Segundo apesar do uso da ideologia que beneficiou de alguma forma o branco ao menos nos tempos da escravidão para Florestan a democracia racial nem ao branco nem ao negro poderia beneficiar Para o primeiro ela não o auxiliaria a barrar o negro em ascensão e para este ela não o ajudaria sem dúvida na tomada de consciência da sua situação enquanto negro imerso num mundo criado para favorecer aos brancos A democracia racial enquanto noção portanto não favorecia nem um dos lados raciais Antes de falarmos da forma como o autor destacou a questão da não integração do negro no Brasil convém enfatizar em termos de conclusão o que em nossa compreensão era a visão de Florestan sobre a democracia racial Como já reiteramos essa discussão sobre a democracia racial é de fundamental importância para a posterior análise da nãointegração do negro na sociedade de classes em formação no Brasil sobretudo com foco na cidade de São Paulo primeiro núcleo capitalista moderno do país Num primeiro momento o autor a denunciou como um mito um dos maiores da época Portanto era importante para Florestan e sua equipe nos anos 1960 à busca pela sua desconstrução inclusive ainda que não o citando de forma clara por exemplo criticando e indo na contramão da argumentação que ele adjetivou de conservadora como a narrativa de Gilberto Freyre nos anos 1930177 Num segundo momento o autor apontou os usos históricos dessa ideologia racial que precede a obra de Freyre pois remonta ao período escravista A principal utilização desse mito 176 Embora frisemos aqui que A teoria de democracia social étnica ou racial de Freyre foi originalmente bem recebida e seguida por alguns sociólogos e antropólogos incluindo norte americanos como Donald Pierson e Charles Wagley e brasileiros Pierson por exemplo observara a ausência comparativa de preconceito racial no Brasil mais especificamente na Bahia graças à miscigenação o preconceito como existe é mais de classe do que preconceito de casta PALLARES BURKE BURKE 2009 p 278 279 177 Onde Freyre havia contado uma história otimista enfatizando a ascensão do mulato e as oportunidades de educação e mobilidade social no século XIX Florestan e seus colegas apresentaram um relato pessimista salientando as conseqüências sic negativas da urbanização e da ascensão do capitalismo e da sociedade de classes para os afrobrasileiros Onde Freyre via fraternização eles viam discriminação PALLARESBURKE BURKE 2009 p 282 283 124 é a conservação dos lugares sociais dos brancos e negros na sociedade E disse ainda que as forças sociais empenhadas na democratização das estruturas raciais brasileiras ainda não são nem muito fortes nem muito organizadas FERNANDES 1972 2007 p 186 187 reiterando que se a democracia racial vier a existir como realidade ela deve vir pela ação prática transformadora Se a democracia racial já tinha servido no passado como legitimação da sociedade escravista e estamental agora anos 1960 na sociedade de classes ela se tornara para o autor obsoleta não servindo nem para bloquear a ascensão ainda que por infiltração do elemento negro ou mestiço para o branco e nem serviria para negros e mulatos na conscientização de sua posição racial e de classe que como veremos não eram dissociadas para o autor A democracia racial fazia parte da ideologia das classes dominantes difundindo assim a ideia de que não haveria racismo ou qualquer tipo de motivação para a contestação da forma como as relações raciais se desenvolveram no Brasil e principalmente como esse padrão de acomodação racial vigente se reproduzia produzindo uma visão harmoniosa sobre as relações raciais brasileiras Evidentemente que o problema étnico no caso as relações conflituosas entre brancos e negros não é restrito à questão da classe sob o ponto de vista econômico Florestan não pensava assim de modo reducionista porém as formas de subalternização sóciohistóricas do negro na emergência de uma sociedade capitalista de classes levou o sociólogo paulista a pensar nessa perspectiva e a apontar como racismo e exclusão econômica operavam como partes da lógica do sistema social em conjunto Sob o ponto de vista histórico é compreensível aqui a figura de um intelectual engajado nas lutas sociais que buscava unir pensamento e ação sendo que a desconstrução desse mito da democracia racial era parte fundamental do problema duplo intelectual e político do dilema do negro Para a história social das ideias que tentamos realizar Florestan nos anos 1960 se impôs como um autor que ao desmistificar a democracia racial abriu espaço para a mesma 125 32 Além da pobreza negra Os dilemas do negro pósAbolição O elemento negro e mestiço recémsaído de uma escravidão violenta e de um sistema de castas não poderia encontrar vida fácil na sociabilidade capitalista que se formava A questão do estudo de Florestan era demonstrar como não se efetivou a integração sóciocultural do negro e do mestiço na sociedade de classes Apesar dos dados coletados terem sido levantados em data anterior num projeto coletivo de pesquisa que contou com a participação de outros pesquisadores178 o texto apresentado em 1964 demonstrou a partir de uma visão históricosocial como a modernização capitalista ou seja a implementação do sistema de classes impeliu o negro e outros elementos de cor à situação social de profunda degradação moral e econômica Sobre a escolha do recorte espacial do trabalho o autor argumentou que A escolha de São Paulo como unidade de investigação explicase naturalmente Ela não só é a comunidade que apresenta um desenvolvimento mais intenso acelerado e homogêneo quanto à elaboração sócioeconômica do regime de classes É também a cidade brasileira na qual a revolução burguesa se processou com maior vitalidade segundo a norma do Trabalholivre na Pátrialivre FERNANDES 1964 p XII 1965 São Paulo representava para Florestan o tipo ideal pioneiro na história brasileira de formação de uma sociedade de classes E nesse ponto residia a sua forma peculiar de ver no processo de formação da sociedade moderna em nosso país não enxergando o processo numa perspectiva empática do progresso e da evolução mas assinalando a permanência e a contradição social e racial como a herança do passado escravista que pesava principalmente para os negros 178 Em Nota explicativa Florestan afirmou nesse sentido que Êste sic trabalho foi escrito com vistas à obrigação do autor de submeterse às provas de concurso da Cadeira de Sociologia I da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo Êle sic teve de ser elaborado um tanto às pressas entre janeiro de 1963 e abril de 1964 Embora nesse período o autor só se dedicasse a esse mister a coleta de dados feita principalmente em 1951 e sua classificação e tratamento analíticos puderam ser concluídos com mais vagar e de forma mais apurada FERNANDES 1964 p XI 1965 126 Nessa cidade palco da revolução burguesa cujo trabalho livre significava pátria livre confundiamse à época os ideais republicanos com os de liberdade individual liberalismo porém nem o Estado os outrora senhores de escravos a Igreja ou qualquer outra instituição social sequer pensou em uma reparação ou na criação de mecanismos sociais de integração do exescravo nessa nova ordem Sendo assim A desagregação do regime escravocrata e senhorial operouse no Brasil sem que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de trabalho livre O liberto viuse convertido sumária e abruptamente em senhor de si mesmo tornando se responsável por sua pessoa e por seus dependentes embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma economia competitiva FERNANDES 1964 p 1 1965 O resultado da ruptura histórica representada pela dupla modificação com o advento da República e com a Abolição foi a continuidade da exclusão social do agora exescravo O fim da sociedade estamental e o início da consolidação da sociedade de classes legaram para o negro os lugares e as posições sociais mais degradantes principalmente no mundo social do trabalho na cidade de São Paulo O fato de não ter havido nenhum tipo de reparação social ao negro pode indicar além do flagrante racismo das elites brasileiras da época que a estratégia social dos grupos dominantes que conduziram o processo de transição do trabalho escravo para o trabalho livre acenava para a perspectiva eugênica de branqueamento racial A não integração do negro na sociedade de classes em formação era uma questão não apenas de ordem econômica e política mas assumia uma forma de purificação racial em que os signos da modernidade como a ordem republicana e o liberalismo se confundiam com o branqueamento como o próprio Florestan apontou Todo o processo orientavase pois não no sentido de converter efetivamente o escravo ou o liberto em trabalhador livre mas de mudar a organização do trabalho para permitir a substituição do negro pelo branco FERNANDES 1964 p 18 1965 127 Todavia é evidente que a acirrada disputa por posições sociais no setor do trabalho principalmente com o imigrante era parte da exclusão econômica do negro afinal o trabalho livre e a europeização deslocou o negro para a margem da sociedade Na sua análise sobre a correlação entre a estrutura do mundo urbano e as propulsões psícosociais do negro Florestan apontou sobre esse período de desajustamento estrutural do negro quando do processo de urbanização capitalista que Os anos do desengano em que o sofrimento e a humilhação se transformaram em fel mas também incitam o negro a vencerse e a sobrepujarse pondose à altura de suas ilusões igualitárias Enfim os anos em que o negro descobre por sua conta e risco que tudo lhe fôra sic negado e que o homem só conquista aquilo que êle sic fôr sic capaz de construir socialmente como agente de sua própria história FERNANDES 1964 p 69 1965 É interessante que mesmo apontando e reiterando as formas de exclusão e a causa econômica material da pobreza negra Florestan vai além Não opera apenas num pragmatismo materialista apontou sim as contradições reais como as causas de desajustamento estrutural e a competição desigual do negro com o imigrante por posições no mundo do trabalho faltava ao negro a qualificação para muitos ofícios além do racismo crasso dos empregadores Mas indicou também os efeitos psicossociais dessa exclusão e desajustamento estrutural histórico na cidade Esse além é justamente o apontar perspectivas de ruptura é à busca por consequências psicológicas e outras nuanças que escapariam a um olhar apenas detido na questão econômica Utilizando forte documentação estatística Florestan também realizou uma abordagem qualitativa compreensiva desses mesmos dados Reafirmou como na citação acima que os homens apesar dos constrangimentos da estrutura são os agentes de sua própria história A pauperização e a anomia179 social do negro no caso as condições materiais e morais de vida que fomentavam a perpetuação do déficit negro 179 É interessante notar que Florestan tenha se utilizado de um conceito de Émile Durkheim 1858 1917 nessa obra pois ilustra bem o ecletismo metodológico e a sólida formação do autor como um intelectual que conhecia várias perspectivas teóricas dentro da chamada sociologia clássica Essa ilustração serve também para apontar as contradições de certos cortes epistemológicos em relação à obra de Florestan que apontam que a partir dos anos 1960 ele teria feito uma guinada rumo ao marxismo e deixado para trás as leituras de outras fontes do pensamento sociológico europeu No 128 FERNANDES 1964 p 93 1965 fizeram parte do processo de modernização capitalista ou seja é a face pobre da nova sistemática das relações sociais agora em termos classistas e não mais tradicionais ou estamentais Era necessária uma reorientação social por parte dos negros Afinal Em suma o negro ordeiro precisava conformarse com um duro e triste destino Diante dele só se abriam as perspectivas oferecidas por uma sorte de especialização tácita involuntária mas quase insuperável que o mantinha eternamente prêso sic aos serviços de negro que consumiam o físico e o moral do agente de trabalho dandolhe em troca parca compensação material e uma existência tão penosa quanto incerta por isso não é de estranharse que muitos preferissem trilhar outro caminho para não ser otário não bancar o trouxa ou não vender o sangue como escravo O vagabundo o ladrão ou a prostituta enfrentavam riscos bem menores e construíam um destino comparativamente melhor FERNANDES 1964 p 109 1965 Para além da pobreza em termos de renda salário poder de compra no estado anômico as implicações de ordem moral e de dignidade da pessoa também fazem parte do dilema negro produzindo um fenômeno social complexo em que ser um vadio ladrão ou prostituta era não só em termos materiais embora isso também pesasse considerado como parte da renúncia em se humilhar em se sujeitar por alguns trocados em trabalhos braçais em ser como outrora na condição de escravo apenas um braço apenas fazer serviços de negro em ser otário numa posição ultrajante e vexatória Era esse o déficit negro180 em sua face para além da pobreza material a ultrajante condição anômica representava também uma pauperização em termos de dignidade Os efeitos sociopáticos da desorganização social dos negros também se refletiam na questão da cidade A urbanização de São Paulo ilustraria seria uma projeto de pesquisa ao texto com Roger Bastide Brancos e negros em São Paulo 1955 aparece explicitamente a alusão às categorias conceituais de Durkheim BASTIDE FLORESTAN 1955 p 268 2008 180 Sobre esse ponto de pensar a questão do negro pósAbolição em termos de déficit é pertinente apontar as críticas do historiador Sidney Chalhoub que indicou as perigosas aproximações da visão de desajustamento de anomia e patologia social do negro de Florestan com a visão preconceituosa das elites da época CHALHOUB 2001 p 83 129 espécie de tipo ideal weberiano bem a adaptação marginal do negro à cidade além dos efeitos sociopáticos concernentes a isso As condições em que se processavam a adaptação à cidade e o isolamento sóciocultural difuso fizeram com que o negro e o mulato não fôssem sic adequadamente socializados para assumir posições e papéis sociais em todos os contextos da vida social de que participassem O indivíduo não era adequadamente socializado sequer para lidar com seu corpo e com sua pessoa expondose a riscos que ameaçavam viariàvelmente sic sua saúde seu equilíbrio seus interêsses sic sua segurança ou sua sobrevivência Por isso não é de estranharse o individualismo agreste quase cego e desenfreado que transparecia nas relações com os outros Se o outro fôsse sic fraco tímido ou dependente e se agisse como trouxa condenavase à servidão FERNANDES 1964 p 183 1965 O desajustamento do negro nessa nova sociedade de classes em formação implicava em perceber sua relação com a cidade como o isolamento sóciocultural apontado por Florestan indicava que a nãointegração do negro também tinha uma forma peculiar de se exprimir na arquitetura da cidade no caso a vida na zona marginal onde a urbanização à esmo e com uma precária estrutura fazia do cotidiano na cidade para o negro um momento de luta por um espaço digno de um homem livre Nesse ponto o poder público era completamente ausente praticamente não considerava isso uma questão relevante preferindo tratar a questão do negro na cidade como questão de polícia numa forma de invisibilizar o problema e iluminar apenas quando o negro poderia ser apontado como causador do problema isto é quando da sua transgressão à lei É importante mencionar também a partir dessa citação que essa perspectiva sobre o problema da nãointegração do negro se dirige a uma forma de analisar a própria história enquanto processo Quando o autor defende a não socialização para assumir papeis sociais e até mesmo para não lidar com o próprio corpo podemos ler que ele frisou o aspecto da continuidade histórica no sentido de que mesmo com a evolução econômica com a República e com a Abolição da escravatura todos estes eventos que promoveram rupturas com a velha ordem estamental o negro ainda permanecia sem os meios de se integrar plenamente como um cidadão livre 130 Era como se o passado permanecesse no presente A significação disso para a história intelectual é deveras importante porém podemos compreender essa importância para a própria história enquanto disciplina Esse estudo de Florestan ilustrado na última citação apontou que a forma como as mudanças sociais se operam não seguem uma lógica linear e teleológica mas podem apontar para a permanência do velho do novo Nesse ponto para a urgência no caso de uma segunda abolição A idéia sic de uma Segunda Abolição com o conteúdo a amplitude e a profundidade com que ela se apresenta na consciência do negro e do mulato em São Paulo pareceria um absurdo e um jôgo sic vazio de palavras para o senso comum do branco Só através do próprio negro no processo de transformação de seu modo de ser e de interagir com a sociedade paulistana seria possível determinar o sentido dessa idéia sic e portanto o que o sombrio período de desorganização pessoal e social representa como uma etapa da árdua luta do homem de côr sic pela liberdade FERNANDES 1964 p 66 1965 É lugarcomum na escrita de Florestan a união da perspectiva analítica com a possibilidade de transformação A segunda abolição agora não mais como uma revolução dentro da ordem mas como uma ação que tinha que irromper na história nacional levada a cabo pelos próprios agentes do movimento negro não apenas para mudar as relações econômicas e a assimetria social no sentido material mas para igualar os seres humanos desconstruindo as diferenciações por critérios étnicos e distinções de pigmentação de pele A heteronomia racial na sociedade de classes engendrava um paradoxo em que a expansão das oportunidades nos parâmetros do liberalismo capitalista mantinha o padrão de desigualdade racial e a correspondente concentração racial de renda prestígio e poder produzindo uma situação histórica de implicações dramáticas para o negro que não tinha meios de subir na vida ficando sempre nos poros da sociedade paulistana à margem da história Esbatendose a situação do negro e do mulato sobre êsse sic amplo pano de fundo históricosocial obtémse uma compreensão relativista e objetiva do drama do negro na cidade As tendências históricas de 131 diferenciação e de reintegração da ordem social não favoreciam de per si nenhum agrupamento étnico ou racial determinado Todavia isso acabava acontecendo por vias indiretas O envolvimento imediato nos processos de crescimento econômico e de desenvolvimento sócio cultural dependia de recursos materiais e morais Ou em outras palavras recursos econômicos de meios técnicos e organizatórios em suma de aptidões para responder efetivamente às exigências da situação históricosocial Como exagentes do trabalho escravo e do tipo de trabalho manual livre que se praticava na sociedade de castas o negro e o mulato ingressaram nesse processo com desvantagens insuperáveis FERNANDES 1964 p 192 1965 Itálico nosso Nessa forma de pensar a persistência do passado como situação social envolvia o negro em uma redoma em que a sua posição só poderia ser marginal afastada e excluída do progresso Nesse cortejo dos vencedores BENJAMIN 1987 negros e mulatos estavam a correr atrás dos carros alegóricos do progresso e da liberdade em que as significações reais desses conceitos só tinham uma ressonância difusa quando não ausente em termos práticos para esses grupos sociais Em síntese para o sociólogo paulista a situação do negro na emergência da sociedade de classes e a consequente pauperização e anomia social que mantinham os padrões tradicionalistas da sociedade de castas produzindo o déficit negro e a heteronomia racial na sociedade moderna de classes Tudo isso evidencia que se deve dar atenção especial à forma assumida pela acomodação racial igualitária Esta não nasceu nem vingou imediatamente como uma relação típica da sociedade de classes Foi pervertida e assimilada pelos padrões tradicionalistas de relações raciais adquirindo a aparência da ordem social democrática mas preservando tenazmente a substância do antigo regime Onde parecia fluir plena igualdade nas acomodações raciais preservavase quase intacta e completa a velha relação heteronômica que separava o branco do negro como o senhor do escravo ou liberto As condições históricosociais de formação e de desenvolvimento do regime de classes em nossa cidade tornaram êsse sic destino do negro inelutável A situação de classe só encontra vigência quando determinada categoria social conquista requisitos econômicos sociais e culturais de uma classe ou de parte de uma classe Em têrmos sic raciais sòmente sic os estoques brancos da população de São Paulo adquiriram desde logo os caracteres psicosociais e sócioculturais típicos da formação de classe Os negros e os mulatos ficaram variàvelmente sic ausentes dêsse sic processo misturados com os segmentos dos estoques raciais brancos que também encontraram dificuldades em participar das novas formações sociais constituindo a gentinha uma sobrevivência da ralé do antigo regime Enquanto se 132 manteve nessa condição o negro vivia numa sociedade organizada em classes sem participar do regime de classes FERNANDES 1964 p 219 1965 Nesse modo de pensar o curso da história brasileira apresenta uma continuidade de implicações fatais para os negros e mulatos Apesar das transformações históricas e das rupturas o antigo regime persistia era como se o século XIX teimasse em não terminar pelos menos em termos de padrões raciais que se mantinham próximos daqueles existentes no período do escravismo A bibliografia específica sobre a questão racial em Florestan corrobora em nossa análise com a forma como compreendemos o pensamento do sociólogo paulista e as implicações disso na história intelectual brasileira Sobre esse ponto cumpre destacar as afirmações de Octavio Ianni por exemplo comentando sobre a reflexão de Florestan sobre a problemática racial afirmando que Tudo isso se ilumina pela reflexão atravessada pela paixão A desagregação do escravismo ofereceu a oportunidade de uma revolução social de porte histórico decisivo No entanto os escravos foram alijados ou reabsorvidos pelo regime de trabalho livre só dos oprimidos restaria esperar uma ruptura com essa tradição de pseudoreforma e de pseudorevolução É a partir desse horizonte que se torna possível revoltar às raízes pretéritas presentes descortinar o futuro IANNI In FERNANDES 2002 p 4043 Outras pesquisas181 também apontam para a coerência de nossa compreensão sobre a reflexão de Florestan indicando que a questão racial em seu pensamento era ligada intrinsicamente à questão de classe por isso raça e classe e também umbilicalmente relacionada à questão revolucionária no sentido radical e socialista 181 Tais como JÚNIOR Aristeu Portela Raça classe e a negação do conflito Revista Olhares Sociais PPGCSUFRB vol 03 n 02 2014 p 2545 MESQUITA Gustavo Rodrigues Florestan Fernandes e o antirracismo nos Estados Unidos e no Brasil 19411964 Tese de Doutorado em História São Paulo SP Universidade de São Paulo USP 2017 p 148157 MOTTA Daniele Cordeiro Desvendando mitos As relações entre raça e classe na obra de Florestan Fernandes Dissertação de Mestrado em Sociologia CampinasSP Universidade Estadual de Campinas UNICAMP 2012 p 18132 BASTOS É R A questão racial e a revolução burguesa In DINCAO M A Org O saber militante ensaios sobre Florestan Fernandes Rio de Janeiro Paz e Terra São Paulo UNESP 1987 p 1413 PEREIRA J B B A questão racial brasileira na obra de Florestan Fernandes Revista USP n 29 1996 p 357 SOARES E V BRAGA M L S COSTA D V O dilema racial brasileiro de Roger Bastide a Florestan Fernandes ou da explicação teórica à proposição política Sociedade e Cultura v 5 n 1 2002 p 405 133 como iremos apontar adiante Essa maneira de pensar de Florestan leva o leitor a refletir a realidade racial e classista brasileira apontando a forma de exclusão como padrão os desajustamentos como reminiscências da antiga ordem o preconceito e a subalternização como os odres velhos no vinho novo da história Somente uma revolução poderia solucionar o problema da nãointegração do negro no Brasil Os legados da raça branca eram os desajustamentos nãointegrativos como antítese disso os movimentos sociais no meio negro teriam dentre os seus objetivos principais impulsões igualitárias de integração racial produzindo ainda que por infiltração às vezes a ascensão social do negro e do mulato Desse legado uma nova era estava no limiar nesse momento o apelo à práxis era cada vez mais defendido por Florestan para quem O dilema racial brasileiro constitui um fenômeno social de natureza sociopática e só poderá ser corrigido através de processos que removam a obstrução introduzida na ordem social competitiva pela desigualdade social a única fôrça sic de sentido realmente inovador e inconformista que opera em consonância com os requisitos de integração e de desenvolvimento da ordem social competitiva procede da ação coletiva dos homens de côr sic desse lado a reorganização da ação coletiva dos movimentos reivindicatórios e sua calibração ao presente parece algo fundamental FERNANDES 1964 p 391 393 1965 Podemos compreender usando um conceito de Koselleck 2006 que nos anos 1960 se descortinava para o sociólogo paulista um novo horizonte de expectativa para a questão racial brasileira Nesse horizonte a descontinuidade a ruptura e a transformação das relações raciais juntamente com a questão de classe eram as diretrizes dos movimentos reivindicatórios que poderiam dar um fim à questão da manutenção dos padrões tradicionalistas de raça que insistiam no apaziguamento e no apagamento das diferenças raciais sob a ideia de que a miscigenação teria dissolvido as diferenças num tipo que Gilberto Freyre chamou de metaracial unificado A ideologia da democracia racial por exemplo seria a representação no campo das ideias dessa forma de relação racial por isso uma contra ideologia racial era fundamental no pensamento de Florestan para a causa do movimento negro no 134 Brasil Seu trabalho de análise da questão pode ser compreendido como um esforço nos anos 1960 e depois do que seria um trabalho de descortinar o véu sob o qual fora envolvida a questão racial brasileira véu esse que o peso da interpretação de Freyre por exemplo tinha uma grande relevância Florestan encerrou sua obra AINSC com uma argumentação que já apontava para a radicalidade de sua proposta de intervenção sobre a questão racial brasileira A nãointegração do negro para além da pobreza sua nãointegração como ser humano era algo que a história brasileira não poderia escamotear À luz do que pudemos desvendar a respeito da situação do negro e do mulato em São Paulo parece óbvio que se deve pensar numa mudança radical de tal orientação e de modo a levarse em conta também contingentes populacionais localizados nas grandes cidades No estabelecimento de uma política de integração assim orientada os diversos segmentos da população de côr sic merecem atenção especial e decidida prioridade De um lado porque de outra maneira seria difícil reaproveitarse totalmente essa importante parcela da população nacional no regime de trabalho livre De outro porque não se pode continuar a manter sem grave injustiça o negro à margem do desenvolvimento de uma civilização que êle sic ajudou a levantar Como escreveu Nabuco temos de reconstruir o Brasil sôbre o trabalho livre a união das raças na liberdade Enquanto não alcançarmos êsse sic objetivo não teremos uma democracia racial e tampouco uma democracia Por um paradoxo da história o negro converteuse em nossa era na pedra de toque da nossa capacidade de forjar nos trópicos êste sic suporte da civilização moderna FERNANDES 1964 p 393 394 1965 O tom eminentemente inconformista produziu uma interpretação que se coadunava bastante com seu projeto de Brasil Em nossa compreensão nos anos 1960 quando esses textos foram publicados Florestan já indicava em um pensamento mais maduro e não apenas estritamente academicista como nos textos dos anos 1940 e 1950 uma forma de reflexão não apenas teórica e sim propositiva Valores sociais e políticos tais como democracia cidadania plena direitos para negros e uma igualdade real e não meramente formal representada em sua luta insistente contra o racismo seu antirracismo que teve inclusive reflexos nos 135 Estados Unidos182 formam o que compreendemos como um projeto que apontava claramente para uma democracia plena e abrangente tanto em termos políticos como no plano econômico e principalmente racial183 Todavia como afirmaremos a seguir esse projeto de Brasil foi cada vez mais se alinhando com a proposta revolucionária com a causa socialista que Florestan problematizou juntamente com a questão racial em que raça e classe se juntavam na transformação revolucionária Relembramos aqui dois momentos importantes que em nossa compreensão explicam ou ao menos indicam possível análise nesse sentido a passagem do pensamento de Florestan de uma defesa da democracia no sentido quase liberal para uma defesa cada vez mais nítida e até intransigente do socialismo como finalidade política dos movimentos negros Em 1964 com a instauração de uma ditatura civilmilitar a Universidade como um todo mas principalmente a USP de Florestan teve uma forte intervenção no sentido da perseguição a professores e estudantes e no que concerne à liberdade de cátedra e de expressão de trabalho intelectual crítico O próprio Florestan fora aposentado compulsoriamente em 1969 numa clara represália por sua atuação como um crítico do regime militar nesse momento difícil para a sociologia brasileira184 Após seu exílio e seu retorno ao Brasil ainda em plena ditatura Florestan se filiou ao Partido dos Trabalhadores PT em 1986 Seu engajamento partidário e sua proposta de transformação da sociedade agora em um contexto menos restrito da chamada distensão política produziram uma reflexão mais radical e ousada agora não mais defendendo uma política dentro dos limites do capitalismo de integração do negro por parte dos poderes instituídos Ele começou a ver que as duas coisas a superação da desigualdade racial e a superação da desigualdade de classe eram parte de uma só contradição social e que sua modificação não poderia ser 182 MESQUITA Gustavo Rodrigues Florestan Fernandes e o antirracismo nos Estados Unidos e no Brasil 19411964 Tese de Doutorado em História São PauloSP Universidade de São Paulo USP 2017 p 135158 183 SOUZA Patrícia Olsen de Os dilemas da democracia no Brasil um estudo sobre o pensamento de Florestan Fernandes Dissertação de Mestrado em Sociologia MaríliaSP Universidade Estadual de São Paulo UNESP 2005 p 207 184 LEITE Adriana Naomi Milagre acadêmico A institucionalização das ciências sociais brasileiras 19641985 Dissertação de Metrado em Sociologia São PauloSP Universidade de São Paulo USP 2015 p 3071 136 possível dentro dos limites estreitos de uma revolução burguesa incompleta como a brasileira A mudança tinha que vir de uma profunda transformação de uma autêntica revolução em um sentido agora declaradamente socialista Nesse ponto para a história das ideias Florestan se singulariza por ter sido um intelectual público que nos anos 1970 e 1980 agora entre a academia e o partido185 foi defensor virulento de uma revolução socializante mas que contivesse uma parte significativa de conteúdo racial já que na sociedade brasileira raça classe e nesse caso socialismo e supressão da desigualdade racial andavam de mãos dadas 33 O sentido radical da reflexão de Florestan sobre as relações raciais É preciso extirpar esse passado para que nos livremos dele186 Qual o significado do protesto negro Esse é um dos títulos de uma das últimas obras publicadas por Florestan Fernandes Nesse livro que é uma compilação de vários textos sobre a questão racial brasileira e sua significação política num sentido bem peculiar conforme a interpretação do autor podemos compreender a forma como foi se desenvolvendo o pensamento do sociólogo paulista para um sentido cada vez mais radicalizado já no que alguns autores denominaram como o tempo em que a linha tênue entre a academia e o partido era praticamente inexistente187 No caso de Florestan Fernandes principalmente a partir da década de 1960 é difícil dissociar teoria e prática estudos e reflexões mais acadêmicas com a sua práxis política e militância em vários planos Fora um autor engajado com os dilemas de seu tempo e o dilema do negro herdado dos padrões de exclusão racial que operaram no plano formal das relações entre brancos e negros e ainda operavam em sua época 185 RODRIGUES Lidiane Soares Entre a academia e o partido a obra de Florestan Fernandes 19691983 Dissertação de Mestrado em História São Paulo Universidade de São Paulo USP 2006 p 56 186 FERNANDES Florestan O significado do protesto negro Ed São Paulo Cortez Autores Associados 1989 p 10 187 Ver COSTA Diogo Valença de Azevedo Florestan Fernandes em questão Um estudo sobre as interpretações de sua sociologia Dissertação de Mestrado em Sociologia RecifePE Universidade Federal de Pernambuco UFPE 2004 p 37 137 por praticamente toda a história brasileira era parte fundamental de sua inquietação de cientista e cidadão engajado no esforço de diminuir as contradições da sociedade A obra de Florestan sobretudo na sua análise das relações raciais que são produto do sistema de longa duração escravista releva uma faceta política de sua interpretação sobre o Brasil Sua narrativa se concentrava em perceber os excluídos e os que ficaram de fora das benesses da modernidade Os dilemas do negro para além da pobreza revelam que raça e classe são indissociáveis o que o levou a pensar que somente com a mudança revolucionária no sentido socialista os problemas de raça iriam juntamente com a abolição das classes progressivamente desaparecer Não havia como separar o dilema racial do dilema classista Nos anos 1960 vários movimentos sociais que militavam em torno da questão do negro no Brasil e no mundo estavam ganhando relativa força e importância188 Nesse período já mais distante daquela figura do scholar academicista que fazia ciência isoladamente na universidade Florestan retomava sua militância que deixara de lado para se profissionalizar como sociólogo em torno das causas sociais que deram à sua investigação sóciohistórica sobre o drama do negro na sociedade capitalista uma significação política um uso político possível para a causa social do negro O projeto de Brasil de Florestan mesclava revolução socialista com ruptura em relação aos padrões raciais vigentes Esses padrões legados de séculos de exploração escravista tinham uma força no tecido social bastante significativa o que fez com que Florestan lesse o problema do negro e seus desajustamentos estruturais Às barreiras de classe para o negro e o mestiço se somava a barreira racial A democratização das relações raciais no Brasil não ocorreria apenas com a democratização formal mas com uma revolução mais geral e radical que irrompesse na história O protagonismo do negro seria fundamental para a concretização do que o autor nomeou como segunda abolição a verdadeira para além da formal e sem nenhuma assistência ao exescravo que foi realizada pelas elites em 1888 188 Ver SILVA Maria Auxiliadora Gonçalves da Encontros e desencontros de um movimento negro Ed Brasília Fundação Cultural Palmares 1994 138 Como já se afirmou a questão racial em Florestan o dilema do negro confundiase com o dilema de classe Opressão racial e de classe estavam juntas e o negro nessa circunstância orientaria sua ação em sentido também duplo em que Ele pode ser assim duplamente revolucionário como proletário e como negro Se não conta com razões imperativas para defender a ordem existente ele tem muitos motivos para negála destruíla e construir uma ordem nova na qual raça e classe deixem de ser uma maldição Por essa razão os de cima estão tão atentos aos movimentos negros FERNANDES 1989 p 11 Nesse sentido de uma forma muito mais aberta e contundente principalmente após a sua entrada na vida política institucional por meio de seus dois mandatos como deputado federal Florestan insistiu que a luta de classes e a luta de raças estavam na mesma proporção caminhando necessariamente em conjunto na perspectiva da transformação do status quo econômico e racial Nessa perspectiva portanto o movimento negro e o movimento socialista são um só ou devem se unificar para que transformações mais profundas sejam possíveis na racista e capitalista sociedade brasileira Nesse confronto histórico as forças reacionárias e defensoras da ordem racial e econômica estariam no outro lado do front da marcha da história que levaria à consolidação de uma nova sociedade ao menos em nossa leitura podemos entender nesses termos O próprio Florestan argumentou que o protesto negro antecipou a substância da realidade histórica do presente que estamos enfrentando com tantas angústias e sobressaltos Cabe às classes subalternas revitalizar a República democrática primeiro para ajudarem a completar em seguida o ciclo da revolução social interrompida e por fim colocarem o Brasil no fluxo das revoluções socialistas do século XX FERNANDES 1989 p 18 A política revolucionária no sentido socialista não podia desconsiderar a questão racial pois nesse discurso era nítida que a condição da transformação econômica era a eclosão de uma revolução em termos raciais A racialização da política revolucionária iria se aproveitar do estoque de insatisfação racial latente na 139 sociedade brasileira para canalizar essa mesma insatisfação para a luta aberta pelo socialismo Essa interpretação global contém uma mensagem clara aos companheiros que tentam refundir e reativar o protesto negro É preciso evitar o equívoco do branco de elite no qual caiu a primeira manifestação histórica do protesto negro Nada de isolar raça e classe Na sociedade brasileira as categorias raciais não contêm em si e por si mesmas uma potencialidade revolucionária FERNANDES 1989 p 18 Ficou evidente em nossa leitura que para Florestan após a desconstrução do mito da democracia racial e da exposição dos dilemas do negro após a Abolição para ele uma revolução dos brancos a união da luta de raças e da luta de classes na sociedade brasileira não era apenas opção teórica mas uma análise condizente com o próprio processo histórico de dupla exclusão racial e de classe Uma revolução autêntica na perspectiva socializante deveria no caso do Brasil necessariamente acoplar na sua agenda programática a questão racial Nesse ponto é interessante como a postura de Florestan um intelectual declaradamente de esquerda de certa forma estava fora da agenda das esquerdas na época de suas reflexões sobre a questão racial brasileira Sua luta pelo esclarecimento da questão racial e sua forma de analisar a questão associandoa a questão de classe não estava em consonância com a agenda por exemplo do Partido Comunista Brasileiro conforme ele mesmo apontou Em 1951 enfrentamos a resistência do PCB que teimava em separar raça e classe e considerava a questão racial como exclusivamente de classe FERNANDES 1989 p 10 Em certa medida sua postura à esquerda não era condizente com a postura e a forma de analisar a situação social do país da esquerda partidária tradicional oficial Sobre a questão de raça e classe uma pesquisadora da obra de Florestan afirmou que A estrutura social brasileira operou durante séculos através de um código social baseado na hierarquia entre as raças Os processos de integração do negro que foram possibilitados pelo crescimento da economia não romperam entretanto com esse aspecto social sendo o 140 racismo importante elemento para pensarmos a relação entre status e posição social Por isso que Florestan aponta para um paralelismo entre raça e classe colocando o racismo como um elemento fundamental para entendermos a formação social brasileira MOTTA 2012 p 128 Como parte de sua perspectiva de abarcar a questão da nãointegração do negro na sociedade de classes em um sentido bem amplo e de fazer da causa do negro um mote para a causa revolucionária era imprescindível e empiricamente verificável como ele se esforçou em mostrar com seus estudos sobre a situação do negro em São Paulo fazer a análise concatenando classe e raça numa perspectiva ampla Assim Desse ângulo o negro vem a ser a pedra de toque da revolução democrática na sociedade brasileira A democracia só seria uma realidade quando houver de fato igualdade racial no Brasil e o negro não sofrer nenhuma espécie de discriminação de preconceito de estigmatização e de segregação seja em termos de classe seja em termos de raça Por isso a luta de classes para o negro deve caminhar juntamente com a luta racial propriamente dita O negro deve participar ativa e intensamente do movimento operário e sindical dos partidos políticos operários radicais e revolucionários mas levando para eles as exigências específicas mais profundas da sua condição de oprimido maior Mesmo quando o negro não sabe o que é socialismo a sua luta por liberdade possui uma significação socialista FERNANDES 1989 p 24 Nesse ponto convergia na perspectiva de Florestan uma dupla revolução conjunta As contestações necessárias do negro oprimido se coadunavam perfeitamente com a contestação igualmente necessária do proletário oprimido Surgia aí também a questão do problema da falta de consciência dessa significação socialista da luta dos negros porém mesmo na ausência da consciência para Florestan o socialismo convergia com os objetivos do protesto negro traduziria em muito o seu significado davalhe portanto uma causa política que se somaria à sua causa social e cultural de raiz eminentemente histórica Aqui a retórica não é nada saudosista ou mesmo compassiva em relação ao status quo racial e econômico Para Florestan a sociedade brasileira tinha na questão do negro não só um símbolo de mais uma das várias questões históricas mal 141 resolvidas no caso não resolvida mas a questão que se fundamentava na postura quando não francamente racista numa postura de ambígua tolerância da parte dos poderes instituídos em relação ao problema do negro Por isso sua problemática nessa perspectiva do sociólogo paulista captava de uma só vez toda uma série de problemáticas a ela associadas problemáticas que o autor direcionou uma significação socialista e revolucionária Era uma narrativa da revolta uma contestação intelectual de uma causa social em que a solução deveria ser parte da agenda de qualquer revolução autenticamente compromissada com a ruptura histórica É possível ler também essa forma de pensamento dentro do contexto mais amplo da luta por mudanças mais radicais no Brasil quando do período da ditadura civilmilitar de 1964 e também como parte de uma reflexão sobre a própria história brasileira Por mais paradoxal que possa parecer a expressão de Freyre sobre o passado não só brasileiro mas o brasileiro em particular de que o passado nunca foi o passado continua tem na reflexão de Florestan uma demonstração empírica É a necessidade da união de forças que consiga implodir a tradição e produzir a mudança a ruptura a abrupta modificação do padrão continuísta da história que Florestan chamou a atenção aqui tão insistente e veementemente No texto luta de raças e de classes contido na coletânea o significado do protesto negro 1989 supracitada podemos encontrar trechos em que Florestan defendia ardorosamente que Classe e raça se fortalecem reciprocamente e combinam forças centrífugas à ordem existente que só podem se recompor em uma unidade mais complexa uma sociedade nova por exemplo Aí está o busílis da questão no plano político revolucionário Se além da classe existem elementos diferenciais revolucionários que são essenciais para a negação da transformação da ordem vigente há distintas racionalidades que precisam ser compreendidas e utilizadas na prática revolucionária como uma unidade uma síntese no diverso FERNANDES 1989 p 62 É notório que para Florestan o aspecto racial de contornos dramáticos no Brasil teria com a revolução socialista uma espécie de resolução do problema do negro 142 Nesse ponto toda a sua construção teórica anterior seus estudos sobre a situação do negro particularmente em São Paulo porém que adquirem em graus variáveis significação mais ampla na emergência da sociedade de classes encontrava na fórmula revolucionária classista sua síntese final dessa histórica dialética senhor escravo189 que envolvia branco e negro senhor e escravo 189 Lembra a célebre forma de Hegel em HEGEL G W F Fenomenologia do espírito Parte I 2 ed PetrópolisRJ 1992 p 126133 Comentando sobre essa questão Devye Redyson em texto introdutório a filosofia de Hegel afirmou que O escravo é aquele que teve medo da morte e para ter salva a vida aceitou a submissão o senhor é aquele que aceitou o risco da morte O domínio do senhor se exerce por meio das coisas que são objeto do apetite o senhor é aquele que desfruta e usufrui enquanto que o escravo trabalha para o senhor REDYSON 2014 p 37 143 CONSIDERAÇÕES FINAIS A dissertação abordou três dimensões do pensamento de Gilberto Freyre e Florestan Fernandes No primeiro capítulo examinouse a primeira dimensão que é a questão da escravidão negra que em nossa compreensão Freyre interpretou esse fenômeno histórico principalmente nos anos 1930 sob o signo da benignidade ou seja as relações entre senhor e escravo no Brasil teriam sido mais suaves menos cruéis quando comparadas por exemplo com a situação dos operários da Europa oitocentista ou mesmo os escravizados pelos espanhóis na América ou ainda com os escravos negros na região sul do que hoje são os Estados Unidos Sendo que toda essa suposta benignidade foi viabilizada pelo patriarcado brasileiro que teria sido um dos elementos centrais de nossa formação histórica e desse modo para Freyre com a sua decadência teria entrado em colapso também a benignidade do sistema Ainda no primeiro capítulo apresentamos a leitura de Florestan nos anos 1950 60 sobre a escravidão que diferiu bastante da leitura anterior efetuada por Freyre Para Florestan a escravidão foi essencialmente motivada por questões econômicas não que Freyre as desprezasse e operava em sua escrita em sua interpretação um pragmatismo econômico e sobretudo uma reiteração da violência do sistema de trabalho baseado na escravidão enfatizando que o escravo não tinha direitos negando inclusive a possibilidade de uma família escrava apontando o arbítrio do senhor na questão sexual e criticando a noção de família extensa núcleo do patriarcado histórico que consoante Florestan não suavizou a escravidão negra o sociólogo paulista deu outra dimensão à análise da escravidão No segundo capítulo ocupamonos em examinar a segunda dimensão que foi a da democracia racial em Gilberto Freyre Antes de adentrar na sua obra e estudando uma temática intrinsicamente ligada à democracia racial foi nosso objetivo apresentar alguns autores do final do século XIX e início do XX no caso Sílvio Romero Euclides da Cunha Nina Rodrigues e Oliveira Vianna anteriores a Freyre autores que ele dialogou ao longo de sua obra aceitando e refutando suas teses na maioria das vezes nesse caso refutando e que pensaram a miscigenação racial de forma negativa apontando portanto para um futuro incerto do Brasil como civilização 144 Superando essa leitura e ao mesmo tempo lançando outra problemática a da existência de uma democracia racial brasileira Gilberto Freyre a partir de sua obra nos anos 1930 identificou na miscigenação o corretor das distâncias sociais que historicamente fez do Brasil uma nação mestiça Isso seria o símbolo de nossa identidade nacional que soube equilibrar os contrários e que sua democracia étnica ou racial poderia ser exportada servindo de modelo para o mundo Visão essa que consideramos conservadora Iniciamos o nosso terceiro capítulo com a crítica que Florestan fez ao que ele denominou como mito da democracia racial apontando sua contundente crítica ao que para ele representava uma ideologia racial que mascarava o caráter violento e a segregação racial do negro especialmente tendo como foco principal a cidade de São Paulo quando de sua modernização capitalista no início do século XX É evidente que a democracia racial enquanto ideologia não tem origem na escrita de Freyre ela precede e tem sua gênese na sociedade categorizada por Florestan como estamental sociedade escravista porém nos textos de Freyre existem elementos que podem ser identificados com a ideia que nos permitiu novamente identificar um contraste entre os autores É no terceiro capítulo que apresentamos a terceira dimensão do nosso estudo no caso a da nãointegração do negro no Brasil conforme a interpretação de Florestan nos anos 1960 Nela identificamos na forma de estudo simultaneamente sincrônico e diacrônico os dilemas sociais enfrentados sobretudo na cidade de São Paulo pelos negros na transição do escravismo para o trabalho livre como o negro foi excluído da revolução burguesa causando assim um estado de pauperização e anomia social que Florestan chamou de déficit negro apontando os efeitos sociopáticos e os diferentes níveis de desorganização social e a manutenção dos padrões tradicionalistas de relações raciais Apontamos ainda no capítulo a junção de raça e classe na obra de Florestan e como a problemática do negro tinha para o autor uma significação socialista Com este trabalho não foi nossa intenção esgotar os temas em estudo Em relação à ausência de recorte temporal rígido podemos apontar que essas dimensões abordadas não se circunscrevem a uma cronologia específica ou seja escravidão negra democracia racial ou étnica e nãointegração do negro do Brasil não se encontram apenas em um ou outro texto isoladamente dos autores Se assim 145 procedêssemos faríamos um estudo demasiado incompleto e que não atingiria os objetos propostos ao longo do percurso deste trabalho e nosso objetivomotivação pessoal com o estudo do tema Em relação aos conceitos de discurso e unidade discursiva usados muitas vezes ao longo do nosso trabalho eles têm evidentemente uma matriz teórica no caso buscamos dialogar com os trabalhos de Foucault 1996 2017 Acreditamos que tais conceitos foram bastante úteis para compreendermos a instituição discursiva de duas narrativas sobre os temas em estudo no sentido de abordálas historicamente apontando como nos anos 1930 Freyre concebeu ideias como escravidão benigna ou mais claramente em outros textos posteriores de democracia étnicaracial e como nos anos 195060 principalmente Florestan criticou essa visão da escravidão benigna e o mito da democracia racial pensando na nãointegração do negro no Brasil em termos de raça e classe Nosso estudo admite certas lacunas e mesmo referências que porventura não foram consultadas Admitindo suas limitações porém elencamos que nosso trabalho buscou se inserir numa história social das ideias e não na sociologia190 subcampo da chamada história intelectual que acreditamos que nossa pesquisa se insere Nesse campo histórico os contrastes de pensamento eram evidentes principalmente quando se tenta realizar uma operação historiográfica categorizada de história intelectual comparada que foi o que buscamos realizar também com essa investigação Não buscamos na assimetria na diferença produzir uma narrativa em que uma unidade discursiva é superior ou melhor a outra Argumentamos nesse sentido para que não fique subentendido que prefiramos ou julgamos Freyre superior a Florestan ou o inverso Nossa intenção como historiador foi compreender essas ideias em seu tempo fazendo a análise dessas duas unidades discursivas em seus respectivos lugares de produção intelectual no Brasil do século XX É assim que o historiador busca realizar sua análise sob a égide da compreensão e não do julgamento ou da análise direcionada a mostrar uma apreciação pessoal sobre o seu objeto de estudo Nossa intenção foi proceder dessa forma e esperamos que tenha ficado claro ao leitor 190 Sobre as zonas de litígio entre história e sociologia ver SILVA Fernando Teixeira História e Ciências Sociais zonas de fronteira História São Paulo v 24 n 1 2005 p 128 146 147 REFERÊNCIAS FONTES 1 Obras de Gilberto Freyre FREYRE Gilberto Vida social do Brasil nos meados do século XIX 4 ed São Paulo Global 2009 1922 FREYRE Gilberto Casagrande senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51 ed São Paulo Global 2006 1933 FREYRE Gilberto Sobrados e Mucambos decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano 15 ed São Paulo Global 2004 1936 FREYRE Gilberto O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX tentativa de interpretação antropológica através de anúncios de jornais brasileiros do século XIX de característicos de personalidade e de formas de corpo de negros ou mestiços fugidos ou expostos à venda como escravos 4 ed São Paulo Global 2010 1963 FREYRE Gilberto Contra o preconceito racial no Brasil In Quase política 2 ed Rio de Janeiro José Olympio 1966 p 190192 2 Obras de Florestan Fernandes I Do Escravo ao Cidadão In BASTIDE Roger FERNANDES Florestan Brancos e Negros em São Paulo ensaio sociológico sobre aspectos da formação manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana 4 ed São Paulo Global 2008 p 2790 1955 II Cor e Estrutura Social em Mudança In BASTIDE Roger FERNANDES Florestan Brancos e Negros em São Paulo ensaio sociológico sobre aspectos da formação manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana 4 ed São Paulo Global 2008 p 91153 1955 V A Luta contra o Preconceito de Cor In BASTIDE Roger FERNANDES Florestan Brancos e Negros em São Paulo ensaio sociológico sobre aspectos da formação 148 manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana 4 ed São Paulo Global 2008 p 224264 1955 FERNANDES Florestan A integração do negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 ed São Paulo Dominus 1965 1964 Tese de Cátedra em Sociologia Universidade de São Paulo FERNANDES Florestan A integração do negro na sociedade de classes no limiar de uma nova era Vol 2 ed São Paulo Dominus 1965 1964 Tese de Cátedra em Sociologia USP FERNANDES Florestan O negro no mundo dos brancos 2 ed São Paulo Global 2007 1972 FERNANDES Florestan A revolução burguesa no Brasil ensaio de interpretação sociológica 5 ed São Paulo Global 1976 2006 FERNANDES Florestan Significado do protesto negro Ed São Paulo Cortez Autores Associados 1989 Coleção polêmicas do nosso tempo v 33 LIVROS ALBUQUERQUE JÚNIOR Durval Muniz de A invenção do nordeste e outras artes 5 ed São Paulo Cortez 2011 ALBUQUERQUE Roberto Cavalcanti de Gilberto Freyre e a invenção do Brasil Ed Rio de Janeiro José Olympio 2000 ALENCASTRO Luiz Felipe de O trato dos viventes formação do Brasil no Atlântico Sul Ed São Paulo Companhia das Letras 2000 ALVES Castro Os Escravos Ed São Paulo Martin Claret 2007 1883 ARAÚJO Ricardo Benzaquen de Guerra e paz Casa Grande Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 1930 Ed Rio de janeiro Editora 34 1994 BARROS José DAssunção A construção social da cor diferença e desigualdade na formação da sociedade brasileira 3 ed PetrópolisRJ Vozes 2014 BASTOS Elide Rugai As criaturas de Prometeu Gilberto Freyre e a formação da sociedade brasileira Ed São Paulo Global 2006 149 BOAS Franz Antropología Cultural Ed Buenos Aires Ediciones Solar y Librería Hachete SA 1964 BOAS Franz Antropologia CulturalFranz Boas textos selecionados Ed Organizador Celso Castro Ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2005 BRANDÃO Adelino Euclides da Cunha e a Questão Racial no Brasil A antropologia de Os Sertões Ed Presença Rio de Janeiro 1990 BRAUDEL Fernand Escritos sobre a história Ed São Paulo Perspectiva 1978 BLOCH Marc Apologia da história ou o ofício de historiador Ed Rio de Janeiro Zahar 2001 BENJAMIN Walter Magia e técnica arte e política Ensaios sobre literatura e história da cultura Obra escolhidas vol 1 Ed São Paulo Brasiliense 1987 CARDOSO Ciro Flamarion S Escravo ou camponês O protocampesinato negro nas Américas Ed São Paulo Brasiliense 1987 CARDOSO Fernando Henrique Um livro perene Apresentação à obra FREYRE Gilberto Casagrande senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51 ed São Paulo Global 2006 p 1928 CARDOSO Fernando Henrique Capitalismo e escravidão no Brasil meridional o negro na sociedade escravocrata do Rio de Grande do Sul 2 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 1977 1961 Tese de Doutorado em Sociologia Universidade de São Paulo CERQUEIRA Laurez Florestan Fernandes vida e obra Ed São Paulo Expressão Popular 2004 CHACON Vamireh Gilberto Freyre Uma biografia intelectual Ed Recife FUNDAJ São Paulo Massangana 1993 CHALHOUB Sidney Trabalho lar e botequim o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque 2 ed CampinasSP Editora da Unicamp 2001 FONSECA Edson Nery da Gilberto Freyre de A a Z Referências essenciais à sua vida e obra Ed Rio de Janeiro FBNZé Mário Editor 2002 FONSECA Edson Nery da Org Novas perspectivas em CasaGrande Senzala Ed RecifePE Editora Massangana Fundação Joaquim Nabuco 1985 150 FOUCAULT Michel A ordem do discurso 5 ed São Paulo Loyola 1996 A arqueologia do saber 8 ed Rio de Janeiro Forense Universitária 2017 FREYRE Gilberto The mansions anda the shanties The making of modern Brazil Trad e org de Harriet de Onís Ed Nova York Alfred Knopf 1968 GARCIA Sylvia G Destino ímpar sobre a formação de Florestan Fernandes Ed Editora 34 São Paulo 2002 GORENDER Jacob O escravismo colonial 6 ed São Paulo Expressão Popular Perseu Abramo 2016 A escravidão reabilitada Ed São Paulo Ática 1990 GRAMSCI Antonio Os Intelectuais e a Organização da Cultura 4 ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1982 HARTOG François Regimes de historicidade presentismo e experiências do tempo Ed Belo Horizonte Autêntica Editora 2015 HEGEL G W F Fenomenologia do espírito Parte I 2 ed PetrópolisRJ 1992 IANNI Octavio Florestan Fernandes Ed São Paulo Ática 2008 Grandes cientistas sociais Florestan Fernandes e a formação da sociologia brasileira In IANNI Octavio Florestan Fernandes Ed São Paulo Ática 2008 Grandes cientistas sociais p 745 As metamorfoses do escravo Apogeu e crise da escravatura no Brasil Meridional Ed São Paulo Difusão Européia do Livro 1962 1961 Tese de Doutorado em Sociologia Universidade de São Paulo JENKINS Keith A história repensada 3 ed São Paulo Contexto 2009 JÚNIOR Caio Prado História Econômica do Brasil Ed 46ª reimpressão São Paulo Brasiliense 2004 KOSELLECK Reinhart Futuro passado contribuição à semântica dos tempos históricos Ed Rio de Janeiro Contraponto PucRio 2006 151 MALHEIROS Agostinho Perdigão Marques A escravidão no Brasil Ensaio Histórico JurídicoSocial Ed Tipografia Nacional Rio de Janeiro 1866 Vol I MATTOSO Katia Ser escravo no Brasil Ed São Paulo Brasiliense 1982 MARX Karl Contribuição à crítica da economia política 2 ed São Paulo Editora Expressão Popular 2008 MICELI Sergio Org História das Ciências Sociais no Brasil Ed Vol 1 São Paulo VérticeIdespFinep 1989 MOTA Carlos Guilherme Ideologia da cultura brasileira 193374 pontos de partida para uma revisão histórica 3 ed São Paulo Editora 34 2008 OLIVEIRA Marcos Marques de Florestan Fernandes Ed Recife Fundação Joaquim Nabuco Massangana 2010 ORTIZ Renato Cultura Brasileira e Identidade Nacional Ed São Paulo Brasiliense 1985 PALLARESBURKE BURKE Peter Repensando os Trópicos um retrato intelectual de Gilberto Freyre Ed São Paulo Editora da UNESP 2009 PINSKY Jaime A escravidão no Brasil 21 ed São Paulo Contexto 2018 REDYSON Deyve 10 lições sobre Hegel 3 ed PetrópolisRJ Editora Vozes 2014 Coleção 10 lições REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 8 ed Rio de Janeiro Editora FGV 2006 RODRIGUES Raimundo Nina As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil Ed Rio de Janeiro Centro Edelstein de Pesquisas Sociais 2011 RÜSEN Jörn História viva teoria da história formas e funções do conhecimento histórico Ed Brasília Editora da Universidade de Brasília 2007 SEREZA Haroldo C Florestan Fernandes a inteligência militante Ed São Paulo Boitempo 2005 SILVA Maria Auxiliadora Gonçalves da Encontros e desencontros de um movimento negro Ed Brasília Fundação Cultural Palmares 1994 152 SKIDMORE Thomas E Preto no branco raça e nacionalidade no pensamento brasileiro 2 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 1976 SLENES Robert W Na senzala uma flor Esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX 2 ed CampinasSP Editora da Unicamp 2011 Escravidão casamento família parentesco em três comunidades escravas 17601888 Projeto de pesquisa sd SOUZA Jessé A elite do atraso da escravidão à Lava Jato Ed Rio de Janeiro Leya 2017 SCHWARCZ Lilia Moritz Raça sempre deu o que falar Apresentação à obra In FERNANDES Florestan O negro no mundo dos brancos 2 ed Revista São Paulo Global Editora 2007 p 1124 SCHWARCZ Lilia Moritz O espetáculo das raças cientistas instituições e questão racial no Brasil 18701930 Ed São Paulo Companhia das Letras 1993 WHITE Hayden MetaHistória A Imaginação Histórica do Século XIX Ed São Paulo Editora da Universidade de São Paulo 1992 Trópicos do Discurso Ensaios sobre a Crítica da Cultura 2 ed São Paulo Editora da Universidade de São Paulo 2014 ARTIGOS DISSERTAÇÕES E TESES ALBIERI Sara A história Intelectual no Brasil se insere na trajetória da História das Ideias In Intelligere Revista de História Intelectual v 01 n 1 São Paulo 2015 ALBUQUERQUE JÚNIOR Durval Muniz de O historiador naïf ou a análise historiográfica como prática de excomunhão In GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado Org Estudos sobre a escrita da História Rio de Janeiro 7 Letras 2006 p 192215 ALTAMIRO Carlos Ideias para um programa de História Intelectual Tempo Social Revista de Sociologia da USP v 19 n 1 2007 p 917 ARMITAGE David A virada internacional na História Intelectual In Intelligere Revista de História Intelectual v 1 n 1 2015 p 115 153 BASTOS É R A questão racial e a revolução burguesa In DINCAO M A Org O saber militante ensaios sobre Florestan Fernandes Rio de Janeiro Paz e Terra São Paulo UNESP 1987 p 140150 BRAGAPINTO César Os desvios de Gilberto Freyre Crítica sl sd p 281288 CANDIDO Antonio O Jovem Florestan Fernandes Estudos Avançados 10 26 1996 p 1115 CARVALHO José Murilo de História intelectual no Brasil a retórica como chave de leitura Topoi Rio de Janeiro n 1 sd p 123152 COSTA FILHO Cícero João da No limiar das raças Sílvio Romero 18701914 Tese de Doutorado em História São PauloSP Universidade de São Paulo USP 2012 495 f COSTA Diogo Valença de Azevedo Florestan Fernandes em questão Um estudo sobre as interpretações de sua sociologia Dissertação de Mestrado em Sociologia RecifePE Universidade Federal de Pernambuco UFPE 2004 139 f CHARTIER Roger A história hoje Dúvidas desafios e propostas Estudos Históricos Rio de Janeiro vol 7 n13 1994 p 97113 CRUZ Luiz Democracia Racial 2002 Disponível em wwwfundajgovbrtpd128html Acesso em 09012019 DOSSE François De lhistorie des idees a lhistorie intelectualle Mímesis Bauru v 24 n 2 2003 p 1328 FREITAG Barbara Florestan Fernandes por ele mesmo Estudos Avançados 10 26 1996 p 129172 GALVÃO Cristina Carrijo A escravidão compartilhada Os relatos de viajantes e os intérpretes da sociedade brasileira Dissertação de Mestrado em História Campinas SP Universidade Estadual de Campinas UNICAMP 2001 249 f JACKSON Luiz Carlos Gerações pioneiras na sociologia paulista 19341969 Tempo social Revista de sociologia da USP v 19 n 1 2007 p 115130 Tensões e disputas na sociologia paulista 19401970 Revista Brasileira de Ciências Sociais Vol 22 n 65 2007 p 3349 154 JÚNIOR Aristeu Portela Raça classe e a negação do conflito Revista Olhares Sociais PPGCSUFRB vol 03 n 02 2014 p 2545 LEIRNER Pierre C A antropologia que Florestan esqueceu Novos estudos CEBRAP v 36 n 108 2007 p 159180 MANHHEIN Karl Conservative thought In Essays on Sociology and Social Psychology Ed London Routledge e Kegan Paul 1953 p 74164 MICELI Sergio Por uma sociologia das ciências sociais In org História das Ciências Sociais no Brasil Ed Vol 1 São Paulo VérticeIdespFinep 1989 MESQUITA Gustavo Rodrigues Florestan Fernandes e o antirracismo nos Estados Unidos e no Brasil 19411964 Tese de Doutorado em História São PauloSP Universidade de São Paulo 2017 182 f MEUCCI Simone Gilberto Freyre e a sociologia no Brasil Da sistematização à constituição do campo científico CampinasSP Universidade Estadual de Campinas UNICAMP 2006 330 f MOTTA Daniele Cordeiro Desvendando mitos As relações entre raça e classe na obra de Florestan Fernandes Dissertação de Mestrado em Sociologia CampinasSP Universidade Estadual de Campinas UNICAMP 2012 140 f MOTTA Roberto Paradigmas de interpretação das relações raciais no Brasil Estudos afroasiáticos n 38 Rio de Janeiro Dez 2000 p 113139 NEVES Márcia das Nina Rodrigues as relações entre mestiçagem e eugenia na formação do povo brasileiro Dissertação de Mestrado em História São PauloSP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUCSP 2008 71 f NICOLAZZI Fernando Um estilo de história a viagem a memória o ensaio Sobre Casagrande senzala e a representação do passado Tese de Doutorado em História Porto AlegreRS Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS 2018 399 f NOGUEIRA Nadia Cristina Sexualidade e socialização em Gilberto Freyre Dissertação de Mestrado em História CampinasSP Universidade Estadual de Campinas UNICAMP 2000 159 f 155 PEREIRA J B B A questão racial brasileira na obra de Florestan Fernandes Revista USP n 29 1996 p 3441 PINTO João Alberto da Costa Gilberto Freyre e a intelligentsia salazarista em defesa do Império Colonial Português 1951 1974 História v28 n1 p445482 2009 PRAXEDES Rosângela Rosa Projeto UNESCO quatro propostas para a questão racial no Brasil Tese de Doutorado em Sociologia São PauloSP Pontifícia Universidade Católica PUCSP 2012 220 f RODRIGUES Lidiane Soares Entre a academia e o partido a obra de Florestan Fernandes 19691983 Dissertação de Mestrado em História São Paulo Universidade de São Paulo USP 2006 250 f QUEIROZ S R Rebeldia escrava e historiografia Estudos Econômicos São Paulo IPEUSP 17 1987 SILVA Alex Gomes da Gilberto Freyre e o legado LusoHispânico Uma construção no pósguerra Tese de Doutorado em História São PauloSP Universidade de São Paulo USP 2016 327 f SILVA Fernando Teixeira História e Ciências Sociais zonas de fronteira História São Paulo v 24 n 1 2005 SILVA Ricardo História Intelectual e Teoria Política Rev Sociol Polit Curitiba v 17 n 34 2009 p 301310 SOARES E V BRAGA M L S COSTA D V O dilema racial brasileiro de Roger Bastide a Florestan Fernandes ou da explicação teórica à proposição política Sociedade e Cultura v 5 n 1 2002 p 3552 SOUZA Jessé A SOCIOLOGIA DUAL DE ROBERTO DA MATTA Descobrindo nossos mistérios ou sistematizando nosso autoengano Revista Brasileira de Ciências Sociais Vol 16 N 45 fevereiro 2001 p 4767 SOUZA Patrícia Olsen de Os dilemas da democracia no Brasil um estudo sobre o pensamento de Florestan Fernandes Dissertação de Mestrado em Sociologia MaríliaSP Universidade Estadual de São Paulo UNESP 2005 156 SOUZA Ricardo Luiz Identidade nacional e modernização na historiografia brasileira o diálogo entre Romero Euclides Cascudo e Freyre Tese de Doutorado em História Belo HorizonteMG Universidade Federal de Minas Gerais UFMG 2006 421 f SCHWARCZ Lilia Moritz Gilberto Freyre adaptação mestiçagem trópicos e privacidade em Novo Mundo nos trópicos Malestar na cultura AbrilNovembro Pós Graduação em Filosofia IFCHUFRGS 2010 p 132 TUNA Gustavo Henrique Viagens e viajantes em Gilberto Freyre Dissertação de Mestrado em História CampinasSP Universidade Estadual de Campinas UNICAMP 2003 127 f VELHO Jorge O estudo do comportamento desviante a contribuição da antropologia social In Org Desvio e divergência uma crítica da patologia social 4 ed Rio de Janeiro Zahar 1981 WASSERMAN Claudia História Intelectual Origem e abordagens Tempos históricos v 19 2015 p 6379 ZANOTTO Gizele História dos intelectuais e história intelectual contribuições da historiografia francesa Biblos Rio Grande 22 1 2008 p 3145 ARQUIVOS DIGITAIS FUNDAÇAO GILBERTO FREYRE httpfundacaogilbertofreyreblogspotcom201012instituicao01html Acesso em 17082018 FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO httpswwwfundajgovbrindexphpbuscasearchwordGILBERTO20FREYREs earchphraseall Acesso em 19122018 DOSSIÊ FLORESTAN FERNANDES httpwwwrevistasuspbrrevuspissueview1881 Acesso em 03022019 GILBERTO FREYRE O QUE É O BRASIL httpswwwyoutubecomwatchv9OgPnt9rtqc Acesso em 05042018 O Mestre de Apipucos 1959 Gilberto Freyre httpswwwyoutubecomwatchvGcATR9QpZw Acesso em 11122018 157 Florestan Fernandes mito da democracia racial raça e classe httpswwwyoutubecomwatchvxMsLXgrBdot121s Acesso em 12122018 Florestan Fernandes O Mestre Documentário de Roberto Stefanelli httpswwwyoutubecomwatchvncGSS2yyhNw Acesso em 18072018 REVISTA CIÊNCIA TRÓPICO httpsperiodicosfundajgovbrCIC Acesso em 19022019 httpsperiodicosfundajgovbrCICsearchsearchsimpleQuerygilbertofreyresea rchFieldquery Acesso em 19022019
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Texto de pré-visualização
UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO UFMA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS CCH PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO EM HISTÓRIA E CONEXÕES ATLÂNTICAS CULTURAS E PODERES MESSIAS ARAUJO CARDOZO Gilberto Freyre e Florestan Fernandes Escravidão democracia racial e integração do negro no Brasil SÃO LUÍS MA 2020 MESSIAS ARAUJO CARDOZO Gilberto Freyre e Florestan Fernandes Escravidão democracia racial e integração do negro no Brasil Dissertação de Mestrado em História apresentada por Messias Araujo Cardozo ao Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Maranhão CCHUFMA como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em História Orientador Dr Marcus Baccega Linha de Pesquisa Cultura e Identidades SÃO LUÍS MA 2020 Ficha gerada por meio do SIGAABiblioteca com dados fornecidos peloa autora Núcleo Integrado de BibliotecasUFMA ARAUJO CARDOZO MESSIAS Gilberto Freyre e Florestan Fernandes Escravidão democracia racial e integração do negro no Brasil MESSIAS ARAUJO CARDOZO 2020 158 f Orientadora MARCUS VINICIUS DE ABREU BACCEGA Dissertação Mestrado Programa de Pósgraduação em Históriacch Universidade Federal do Maranhão SÃO LUÍS 2020 1 DEMOCRACIA RACIAL 2 ESCRAVIDÃO 3 INTEGRAÇÃO DO NEGRO NO BRASIL I DE ABREU BACCEGA MARCUS VINICIUS II Título MESSIAS ARAUJO CARDOZO Gilberto Freyre e Florestan Fernandes Escravidão democracia racial e integração do negro no Brasil Dissertação de Mestrado em História apresentada ao Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Maranhão CCHUFMA como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em História Aprovada em 13032020 Banca Examinadora Professor Dr Marcus Baccega UFMA Orientador Professor Dr Jonas Henrique de Oliveira UESPI Examinador Externo Professor Dr Victor Coelho UFMA Examinador Interno Professor Dr Lyndon Araujo UFMA Examinador Interno À minha mãe Maria Araujo Cardozo Agradecimentos Aos meus familiares que sempre estiveram comigo me ajudando em todos os sentidos em meus projetos Em especial a minha mãe à quem dedico este trabalho Ao meu orientador prof Dr Marcus Baccega pela orientação paciente e pela extrema competência e sensibilidade sabendo como mestre que é exigir e encorajar nos momentos certos Aos meus amigos Diêgo Stéfano Eriton Luís Lucas Gomes Edgleison Souza Eduardo Neto e em especial a minha companheira Maria Miranda pela paciência e amor durante esta caminhada Em especial agradeço a Heitor Câmara pela providencial ajuda ao ceder a casa em que reside em São Luís para a minha estadia tanto no período da seleção como do curso dos créditos assim como em outras ocasiões em que estive em São Luís Obrigado é pouco Ainda nesse sentido agradeço ao senhor Jan pela acolhida em sua casa ao camarada João e a todos que fizeram sentirme em casa Aos companheiros e amigos do mestrado sobretudo Joabe Rocha pela parceria intelectual e trocas de ideias a Silvan Mendes pela inestimável ajuda e paciência sobretudo no quesito transporte público e em geral aos meus companheiros de turma que com o alto nível de discussão me mantiveram em um ambiente fértil e estimulante em termos intelectuais foram providenciais Aos professores da Graduação em História da UESPI e do Mestrado em História da UFMA que tiveram todos singular influência na minha trajetória acadêmica A CAPES pelo apoio financeiro na forma de bolsa de estudos essencial para o custeio de uma pesquisa acadêmica Os homens fazem a sua própria história contudo não a fazem de livre e espontânea vontade pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram Karl Marx 1852 RESUMO Considerando os discursos sociológicos de Gilberto Freyre e Florestan Fernandes objetivase compreender como os autores respectivamente nos anos 1930 e 195060 analisaram temas como Escravidão negra miscigenaçãodemocracia racial e a não integração do negro no Brasil Para tanto procedemos com uma leitura histórica de nossas fontes principais que são as obras Casagrande Senzala 1933 e A Integração do negro na sociedade de classes 1964 cruzando com outras obras Desse modo o trabalho investigou aqueles dois tipos de produção intelectual buscando realizar uma história social das ideias Isso nos permite concluir que para além de interpretações bem contrastantes sobre escravidão democracia racial e integração do negro os autores em questão tinham visões a partir de lugares de produção bem distintos o que desembocava também projetos de Brasil opostos PALAVRASCHAVE Escravidão Democracia racial Integração do Negro ABSTRACT Considering the sociological discourses of Gilberto Freyre and Florestan Fernandes the objective is to understand how the authors respectively in the 1930s and 1950 60s analyzed themes such as Black slavery racial miscegenation democracy and the nonintegration of blacks in Brazil To this end we proceeded with a historical reading of our main sources which are the works Casagrande Senzala 1933 and The Integration of the Negro in the Class Society 1964 crossing with other works In this way the work investigated those two types of intellectual production seeking to realize a social history of ideas This allows us to conclude that in addition to very contrasting interpretations of slavery racial democracy and the integration of blacks the authors in question had visions from very different places of production which also led to opposite Brazilian projects KEYWORDS Slavery Racial democracy Negro integration LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CGS CasaGrande Senzala 1933 SM Sobrados Mucambos 1936 OP Ordem Progresso 1959 NMT Novo Mundo nos Trópicos 1971 BNSP Brancos e Negros em São Paulo 1955 AINSC A Integração do Negro na Sociedade de Classes 1964 ONMB O Negro no Mundo dos Brancos 1972 SUMÁRIO INTRODUÇÃO11 CAPÍTULO I A ESCRAVIDÃO NEGRA NA PERSPECTIVA DE GILBERTO FREYRE E FLORESTAN FERNANDES20 11 O mestre de Apipucos22 12 A benignidade patriarcal e sua decadência30 13 O cientista revolucionário53 14 O pragmatismo econômico e a reiteração da violência59 CAPÍTULO II DEMOCRACIA RACIAL MISCIGENAÇÃO79 21 O problema da mistura de raças80 22 Freyre Democracia racial miscigenação88 23 O sentido conservador da narrativa freyriana sobre as relações raciais110 CAPÍTULO III RAÇA E CLASSE A NÃO INTEGRAÇÃO DO NEGRO NO BRASIL116 31 Florestan A falácia da democracia racial117 32 Além da pobreza negra Os dilemas do negro pósAbolição125 33 O sentido radical da reflexão de Florestan sobre as relações raciais136 CONSIDERAÇÕES FINAIS143 REFERÊNCIAS147 11 INTRODUÇÃO O discurso sociológico brasileiro no século XX tem dois nomes de grande importância intelectual Referimonos aqui a Gilberto Freyre 19001987 e Florestan Fernandes 19201995 Dois intelectuais de renome que operaram grandes análises sobre temas variados da história do Brasil Dentre essas análises amplas e complexas destacamos apenas três dimensões das obras de Gilberto e de Florestan escravidão negra democracia racial e a não integração do negro no Brasil feitas respectivamente sobretudo nas décadas de 1930 e 195060 Uma história social das ideias que pretendemos fazer partirá da problematização sobre essas duas interpretações que em nossa análise buscaram instituir duas representações sobre nossa história e identidade como povo Como os temas da escravidão negra da democracia racial e da integração do negro no Brasil apareceram no discurso de Freyre e Florestan Está é a problematização que organiza esta pesquisa Na perspectiva de tal problemática apontamos certos recortes visando respondêla Como Gilberto Freyre nos anos 1930 a partir de sua obra Casa Grande Senzala 1933 instituiu uma representação harmônica entre brancos e negros durante a escravidão por meio do patriarcado E como a unidade discursiva da sociologia crítica de Florestan Fernandes nos anos 195060 se contrapôs à visão freyriana que ensejava a ideia embuste da democracia racial em sua obra A Integração do Negro na Sociedade de Classes 1965 As justificativas que podem ser aventadas para a pesquisa realizada são de três tipos A primeira é a justificação acadêmica devido à nossa abordagem que enfatiza as três dimensões já citadas das obras dos autores que em nossa perspectiva se situam no campo de uma história social das ideias e que se difere de outros estudos já realizados sobre os autores1 o que nos dá base para defender certa abordagem senão original ao menos bastante diferente para a execução da pesquisa 1 Tais como COSTA Diogo Valença de Azevedo Florestan Fernandes em questão Um estudo sobre as interpretações de sua sociologia Dissertação Mestrado em Sociologia RecifePE Universidade Federal de Pernambuco UFPE 2004 139 f GALVÃO Cristina Carrijo A escravidão compartilhada Os relatos de viajantes e os intérpretes da sociedade brasileira Dissertação Mestrado em História CampinasSP Universidade Estadual de Campinas UNICAMP 2001 249 f MESQUITA Gustavo Rodrigues Florestan Fernandes e o antirracismo nos Estados Unidos e no Brasil 19411964 Tese Doutorado em História São PauloSP Universidade de São Paulo USP 2017 182 f MOTTA Daniele Cordeiro Desvendando mitos As relações entre raça e classe na obra de Florestan Fernandes Dissertação Mestrado em Sociologia CampinasSP Universidade Estadual de Campinas 12 A segunda é a justificação de ordem mais pessoal e aqui cabe uma pequena digressão Quando da nossa participação durante os anos de 2014 a 2016 no Programa de Bolsa de Iniciação à Docência PIBIDCAPES da UESPI cuja temática era a Lei 10 639 que versa sobre questões da obrigatoriedade do ensino de história afrobrasileira e indígena foinos dada a tarefa pessoal dentre outras atividades de leitura de dois textos a saber Casagrande senzala e A integração do negro na sociedade de classes como propostas de leituras antagônicas sobre a escravidão negra A partir daí um interesse em aprofundar as leituras sobre as obras de Gilberto Freyre e Florestan Fernandes aumentou e pudemos perceber uma possibilidade de objeto de pesquisa para um estudo em nível de mestrado estudo este que fosse de historiografia inserindose no campo de uma história social das ideias A terceira forma de justificar nosso projeto e a confecção da dissertação é a relevância social no sentido de que com o nosso trabalho leitores interessados em temáticas como a escravidão negra a mestiçagem a ideologia da democracia racial e suas ressonâncias em políticas sociais ao longo do tempo e a não integração do negro na sociedade de classes possam aprofundar os conhecimentos sobre essas questões no sentido de ter uma melhor senão melhor ao menos com uma base mais sólida no nosso caso historiográfica percepção desses temas em suas atuações em movimentos sociais o que indica uma perspectiva de o trabalho ter uma significância prática condizente com nossa visão de que a história mesmo enquanto texto pode ou deve ter ou vislumbrar uma ressonância no tecido social em que o historiador escreve e atua como observador das ações humanas no tempo Ainda apontamos como justificativa para a realização de uma pesquisa desta natureza a sua relevância para os estudos em torno da história da sociologia brasileira em geral e em particular para os estudos nos autores citados e principalmente em torno de questões históricas sobre as relações de trabalho no escravismo brasileiro os conflitos étnicos entre brancos e negros neste caso e a miscigenação racial que foi largamente tematizada no século XX ensejando explicações das mais diversas vindas de várias matrizes de pensamento sobretudo a antropologia e a sociologia o que justifica uma análise e uma historiografia que pense criticamente estas questões UNICAMP 2012 140 f que não abordam de forma comparada e com mais vagar dessas três abordagens que nos propomos com a realização do nosso trabalho embora evidentemente não deixamos de nos valer das ideias contidas nesses trabalhos 13 Nosso objetivo também é apontar como o tema da democracia racial tem em Gilberto Freyre e sua interpretação da miscigenação racial um ponto de apoio científico e ideológico e como a sua compreensão feita em Casagrande senzala e Sobrados mucambos da problemática da mistura das raças no Brasil rompeu com a noção da mestiçagem feita por intelectuais como Euclides da Cunha Sílvio Romero Nina Rodrigues e Oliveira Viana Temos também a intenção de entender a crítica de Florestan à ideologia da democracia racial que se depreende da leitura das obras de Freyre Ainda buscamos apontar a forma de interpretação de Florestan sobre a não integração do negro no Brasil feita principalmente em A integração do negro na sociedade de classes 1964 como um contraponto da análise anterior de Freyre ressaltando seu lugar de produção e a maneira pela qual com sua reflexão ocorre uma mudança significativa de paradigma de interpretação sobre os dilemas do negro na sociedade brasileira Temos como base teórica a concepção de que história é um tipo de conhecimento cientificamente conduzido FEBVRE 1989 p 30 apesar do tempo das incertezas2 e crise epistemológica do conhecimento histórico Nesse sentido iremos apontar alguns dos aspectos discutíveis da obra freyriana em que se destacam por exemplo segundo CARDOSO 2003 p 25 as suas confusões entre raça e cultura seu ecletismo metodológico o quase embuste do mito da democracia racial a ausência de conflitos de classe São também salientados por outros autores ARAÚJO 1994 DAMATTA 1987 MOTA 1978 as linhas gerais para o que pensamos de seu ensaio de sociologia genética e de história social FREYRE 2003 1933 p 59 Seu texto para nós apresentou nos anos 1930 uma escrita da história produzida em torno de uma unidade discursiva que buscava articular o passado e o presente num todo em que a continuidade sobretudo do patriarcado escravista era 2 Que é um dos diagnósticos geralmente inquietos feitos sobre a história nos últimos anos CHARTIER 1994 p 1 apesar disso Chartier ainda neste texto argumenta que a história pertence às ciências sociais CHARTIER 1994 p 6 O historiador Keith Jenkins aponta ainda que a história é o que os historiadores fazem JEINKINS 2009 p 51 é justamente esta feitura que a pesquisa irá investigar a partir de nossa problematização 14 desejável saudosismo daquele Brasil Colonial quase sem conflitos3 com nossa identidade calcada na mestiçagem e tropicalidade ALBUQUERQUE JÚNIOR 2011 p 111 Como nossa pesquisa é no campo da história e não da sociologia a diferença básica aqui reside na questão da temporalidade afinal é ela que singulariza a historiografia pois o historiador não sai jamais do tempo da história BRAUDEL 1978 p 1084 Seu trabalho sociológico visava em nossa análise denunciar como com a abolição da escravatura a perda da harmonia entre brancos e negros dos tempos patriarcais se extinguira FREYRE 2003 1933 p 51 tecendo uma unidade discursiva em que a escravidão negra é entendida como relação social afetiva em cuja pessoalidade enquanto código identitário nacional historicamente constituído deu o tom das relações entre brancos e negros que trabalhavam sempre cantando FREYRE 2003 1933 p 551 e viviam numa harmonia de contrários sem confronto e síntese Isso não poderia passar em branco ou sem críticas à medida em que a sociologia no Brasil se desenvolvia principalmente com os primeiros estudos realizados pela equipe de pesquisadores da Universidade de São Paulo nos anos 1950 Sobre isto José Carlos Reis apontou que O pensamento social marxista brasileiro vai se opor vigorosamente a Freyre por esta razão F Fernandes e sua equipe de pesquisadores que produziram nos anos 196070 pensarão o Brasil com os conceitos de classe social e luta de classes e vão se opor à visão idílica do Brasil Colonial produzida por Freyre REIS 2006 p 50 Esta escrita da história de Freyre foi frontalmente contraposta nos anos 19605 por Florestan que é o fundador da sociologia crítica no Brasil em que A partir dessa 3 Afinal bem no término de Casa Grande Freyre aponta que Mas não foi toda de alegria a vida dos negros escravos dos ioiôs e das iaiás brancas FREYRE 2003 p 552 Alegria esta que para o autor encheu a casa grande e foi integrante da vida sexual e doméstica do Brasil Colonial 4 É basilar a distinção para nós realizada por Fernand Braudel neste texto principalmente no capítulo História e Sociologia In BRAUDEL Ferdinand Escritos sobre história Ed São Paulo Perspectiva 1978 p 91114 5 A pesquisa da UNESCO foi feita em diversos estados do Brasil com a participação de diversos intelectuais em cada região Roger Bastide era o responsável pela pesquisa em São Paulo A publicação de Roger Bastide e Florestan Fernandes Negros e brancos em São Paulo teve uma edição prévia na Revista Anhembi 1953 O texto foi publicado em 1955 pela Editora Anhembi MOTTA 2012 p 15 15 interpretação a tese da cordialidade das relações raciais da democracia racial revelase ficção ideológica IANNI 2008 p 15 25 Ou seja a sociologia crítica dos anos 1960 se põe como um discurso diferente antagônico e é esta mudança que o estudo se propõe a analisar lançando uma interpretação distante da sociologia cultural dos anos 1930 que analisou a escravidão e os conflitos étnicos com base na harmonização dos contrários Para pensarmos estas questões nossa pesquisa terá como conceitos básicos para tornar a investigação exequível o conceito de lugar de produção na acepção do historiador francês Michel de Certeau Consoante o mesmo Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção sócioeconômico político e cultural Implica um meio de elaboração que circunscrito por determinações próprias uma profissão liberal um posto de observação ou de ensino uma categoria de letrados etc CERTEAU 1982 p 66 Outro conceitochave para operacionalização da pesquisa proposta é o de discurso apreendido a partir de Michel Foucault em que o mesmo não seria apenas um esforço de interpretação mas em si objeto de disputa isto a história não cessa de nos ensinar o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação mais aquilo por que pelo que se luta o poder pelo qual nos queremos apoderar FOUCAULT 1996 p10 Outros conceitos do autor como unidade do discurso e formação discursiva foram também apropriados em nossa dissertação FOUCAULT 2017 p 2348 Em termos metodológicos propomos uma leitura histórica do discurso sociológico indicando a forma de análise as principais bases teóricas e sobretudo lendoas como fontes históricas como construções historiográficas que instituíram formas de se pensar o processo histórico brasileiro dentro de certo contexto de certa metodologia de trabalho própria desta sociologia histórica dos dois autores em questão e como elas lançam teses sobre a escravidão e sobre as relações raciais e os conflitos étnicos entre brancos e negros no trabalho e no âmbito doméstico 16 Nossa metodologia será uma leitura histórica destas obras por nós apropriadas e transformadas como fontes6 situandoas em seus respectivos lugares de produção e contexto sociocultural no caso os anos 1930 para a obra freyreana e os anos 1960 para a obra de Florestan com suas demandas políticas e intelectuais diversas os problemas e dilemas sociais em questão que fomentaram ou não estes estudos dos autores mediante certa congruência com sua realidade brasileira em questão Quando pensamos a noção de documento em história e neste caso nossa investigação proposta pensa as obras como fonte e como apoio bibliográfico apreendemos que a história mudou sua posição acerca do documento ela considera como sua tarefa primordial não interpretálo não determinar se diz a verdade nem qual é seu valor expressivo mas sim trabalhálo no interior e elaborálo ela o organiza recorta distribuiu ordena e reparte em níveis estabelece séries distingue o que é pertinente do que não é identifica elementos define unidades descreve relações FOUCAULT 2008 p 7 Neste sentido e como raça e mestiçagem no Brasil nunca foram apreendidos de forma neutra SCHWARCZ 2010 buscaremos no transcorrer da pesquisa analisar como a partir de nossas fontes o discurso sociológico culturalista de Freyre e a sociologia crítica de Florestan buscaram construir uma escrita da história do Brasil em que a escravidão e os conflitos étnicos entre brancos e negros são analisados de formas distintas quando não antagônicas nos anos trinta e sessenta respectivamente investigando motivações políticas intelectuais e afins no sentido de trabalhar historicamente como os autores em questão produziram discursos sobre o nosso processo histórico Quando pensamos na noção de fonte histórica temos a apreensão de que é fonte tudo que transmite informações sobre uma data temporalidade uma dada sociedade e os textos como produções humanas imbricadas de vontades e produtoras de representações são obviamente material passível de análise do historiador E neste caso a obra de Freyre e de Florestan representam dois modos de análise sobre a identidade nacional e a própria cultura brasileira por meio do estudo 6 Afinal é o historiador ao mergulhar no passado que transforma seus vestígios no nosso caso as obras de Freyre e Florestan em fontes conforme Koselleck KOSELLECK 2006 p 305 17 da história em que o primeiro autor em nossa leitura preliminar identificou a singularidade de nossa identidade numa relação harmoniosa entre brancos e negros e o segundo analisou esta relação sob a ótica do conflito e da imposição da cultura do branco Em relação ao campo da história em que nossa pesquisa se insere a história intelectual buscando produzir uma história social das ideias algumas considerações devem ser feitas Em primeiro lugar inexiste uma forma única de fazer história intelectual7 senão múltiplas formas que se diferem da antiga história das ideias feita por filósofos que geralmente isolavam a ideia do autor do contexto histórico em que ela emergia Em segundo lugar essa forma de história intelectual ao não historicizar o objeto consequentemente não refletia sobre os usos políticos e sociais dessas ideias e nem pensava nos veículos de comunicação e circulação das mesmas8 A nossa pesquisa se insere no campo de forma diferente buscando sair dessa história antiga das ideias e se inserir no campo da história intelectual9 em que a história social das ideias é possível buscando compreender os temas da escravidão negra da democracia racial e da integração do negro no Brasil a partir da forma particular e no respectivo tempo histórico lugar de produção CERTEAU 1982 e horizonte intelectual dos dois autores em questão para assim procedendo interpretar como essas problemáticas operaram nas obras deles e como articularam suas narrativas10 7 A História intelectual como se sabe é praticada de muitas maneiras e não possui em seu âmbito uma linguagem teórica ou modos de proceder que funcionem como modelos obrigatórios nem para analisar nem para interpretar seus objetos nem tampouco para definir sem referência a uma problemática a quais objetos conceder primazia ALTAMIRO 2007 p 9 8 Podese dizer que a história intelectual ou história das idéias sic feita no Brasil resumiase até muito recentemente a dois tipos de abordagem O primeiro de longa tradição aproximavase da prática usada na filosofia de expor o pensamento de cada pensador isoladamente Era uma história centrada no pensador cujas idéias sic supunhase possível interpretar com exatidão Os autores com preocupação histórica acrescentavam à reprodução das idéias sic algum esforço no sentido de situar o pensador em seu contexto social A vinculação entre idéia sic e contexto era mais ou menos estreita de acordo com a convicção metodológica de cada autor CARVALHO sd p 123 9 Conforme DOSSE François De lhistorie des idees a lhistorie intelectualle Mímesis Bauru v 24 n 2 2003 P 1328 10 Para uma visão sobre o campo da história intelectual ver ainda ZANOTTO Gizele História dos intelectuais e história intelectual contribuições da historiografia francesa Biblos Rio Grande 22 1 2008 p 3145 SILVA Ricardo História Intelectual e Teoria Política Rev Sociol Polit Curitiba v 17 n 34 2009 p 301310 WASSERMAN Claudia História Intelectual Origem e abordagens Tempos Históricos v 19 2015 P 6379 ARMITAGE David A virada internacional na História Intelectual Intelligere Revista de História Intelectual v 1 n 1 2015 p 115 18 Organizamos a pesquisa da seguinte forma No primeiro capítulo apresentamos as visões de Gilberto Freyre e de Florestan Fernandes sobre a escravidão negra no Brasil Para o primeiro uma escravidão benigna teria sido o fator diferencial do sistema escravista brasileiro principalmente se compararmos a escravidão negra no Brasil com a praticada no sul dos Estados Unidos O elemento patriarcal teria sido fundamental para consolidar essa harmonia entre brancos senhores e negros escravizados e a família extensa sob o jugo do patriarca senhor de engenho engendrou essa relação entre senhorescravo dotandoa de benignidade tal que com a sua decadência os movimentos de insurreição e a desintegração da harmonia foram se acentuando de forma a desequilibrar a harmonia dos contrários Para o segundo numa visão que categorizamos na dissertação como pragmática no sentido econômico e que reiterava a violência o fenômeno histórico da escravidão nada tinha de tão místico assim pois o mundo da escravidão que o português e o colono criaram era na perspectiva de Florestan violento perverso segregador e o elemento econômico do sistema foi enfatizado mais que elementos culturais como a família extensa Sobre isso para o autor não poderia existir uma família escrava e a discriminação racial imperava na família dos brancos da casa grande No segundo capítulo realizamos uma breve regressão temporal e analisamos alguns autores do final do século XIX e como eles pensaram o Brasil como um país condenado a não se tornar uma civilização por causa da miscigenação Superando essa visão pessimista e com uma retórica baseada no culturalismo antropológico de Franz Boas Freyre nos anos 1930 através de suas obras se opôs a essa visão e enfatizou as contribuições tanto do elemento indígena como do africano na formação da identidade brasileira Ainda nesse segundo capítulo apontamos como a unidade discursiva da obra freyriana conjuntamente com sua visão positiva da miscigenação engendrou uma representação de harmonização racial que em nossa perspectiva e embasados em bibliografia fundamentou a noção de democracia racial parte também fundamental da ideologia da identidade brasileira Ainda neste capítulo apresentamos nossa interpretação sobre a visão de Freyre em relação à questão racial e às implicações disso principalmente no que concernem as ideias de Brasil como paraíso racial 19 No terceiro e último capítulo iniciamos justamente com a crítica da ideologia da democracia racial de Florestan Fernandes Neste capítulo nos concentramos na sua análise da nãointegração do negro no Brasil que para o autor a compreensão do dilema do negro pósAbolição deveria ir necessariamente além da pobreza negra ou seja as formas de desajustamento estrutural o estado de anomia e as formas de subalternização racial e ato contínuo a concentração racial de renda prestígio e poder indicavam que o problema não era apenas material e econômico Acreditamos que com este trabalho contribuímos para a história intelectual brasileira com um estudo sobre dois personagens das ciências sociais do país que em muitas análises assumiram cada um a seu modo os papéis de historiadores sociais do Brasil no século XX Ao apresentarmos nossos resultados ao leitor esperamos que fique claro que como se trata de um trabalho historiográfico nossa intenção não foi julgar e sim compreender as ideias dos autores expostas em textos e entrevistas que nós transformamos em fontes históricas E nesse esforço de compreensão o leitor poderá na verdade deve ir às fontes e contestar nossa leitura que não buscou ser a última palavra mas apenas mais uma leitura nesse esforço de fazer uma história social das ideias no Brasil 20 CAPÍTULO I A ESCRAVIDÃO NEGRA NA PERSPECTIVA DE GILBERTO FREYRE E FLORESTAN FERNANDES A escravidão negra praticada pelos portugueses e colonos no Brasil foi a experiência histórica de longa duração das mais sangrentas e dramáticas para os escravizados africanos com motivações essencialmente econômicas e com reflexos culturais que pesam na história nacional até o presente11 O que se praticou aqui foi uma brutal e violenta forma de cativeiro das peças da África termo usado pelos traficantes e compradores de escravos para a obtenção de lucro nas atividades produtivas ou empresa colonial lusitana no sistema casagrandesenzala nos engenhos de açúcar que foi a principal atividade viabilizada pela metrópole portuguesa e seus colonos durante os séculos XVI XVII e XVIII12 Nas relações sociais que se estabeleceram durante esse processo o intercurso sexual entre senhores e escravizados viabilizou a forma de existência coletiva nesse cenário O trabalho escravo foi a base real sobre a qual repousava toda uma série de formas sociais e culturais secundárias condicionadas podemos compreender pelo sistema de manutenção da escravidão de grande parte da população13 Como exemplo podese indicar as relações de foro íntimo que engendraram a chamada família extensa e patriarcal que tinha sua solidez e teve o seu processamento mediante a coerção física do negro africano escravizado que foi arrancado14 de suas terras e transportado para o Brasil em condições subhumanas para os critérios de hoje Acreditamos que não se pode compreender a história brasileira sem buscar entender que a escravidão foi a base social da maior parte do processo histórico brasileiro As influências ou os resíduos históricos do sistema escravista estão presentes na sociedade e foram uma constante na vida nacional desde por exemplo 11 O mundo que a escravidão criou In SOUZA Jessé A elite do atraso da escravidão à Lava Jato Ed Rio de Janeiro Leya 2017 p 3641 12 JÚNIOR Caio Prado História Econômica do Brasil Ed 46ª reimpressão São Paulo Brasiliense 2004 13 E população é uma abstração quando não se tem em conta por exemplo as classes que a compõem não falamos de classes sociais aqui MARX 2008 p 202 14 Sobre a forma de transporte dos escravos africanos por meio dos navios negreiros para a colônia portuguesa no Brasil ver ALENCASTRO Luiz Felipe de O trato dos viventes formação do Brasil no Atlântico Sul Ed São Paulo Companhia das Letras 2000 E PINSKY Jaime A escravidão no Brasil 21 ed São Paulo Contexto 2018 21 as discussões mais pretéritas sobre a imigração europeia no final do século XIX e início do século XX na ideia de branqueamento da raça até as mais contemporâneas como as cotas raciais para o ingresso em universidades e concursos públicos Desse ponto de vista o historiador brasileiro tem na escravidão uma base analítica de considerável importância para dentre outras coisas compreender toda uma série de arcaísmos e dilemas sociais tais como o preconceito racial e a violência policial que recai majoritariamente sobre os mais escuros Neste capítulo compreendemos em seus respectivos lugares e tempo de produção duas formas de análise da escravidão efetuadas no século passado em temporalidades distintas buscando ao término identificar as diferenças e ainda quando possível fazer uma análise comparativa As duas análises em questão foram respectivamente efetuadas por duas personalidades de peso e renome das ciências sociais no Brasil Gilberto Freyre e Florestan Fernandes Do primeiro iremos analisar basicamente a sua produção nas décadas de 1920 e 1930 com incursões em textos para além desse tempo específico mas que tem sua base nessa temporalidade Do segundo iremos analisar os seus textos produzidos nos anos 1950 e 1960 igualmente com incursões em textos para além desse período mencionado As obras consideradas nossas fontes mais evidentes e importantes são Casa grande senzala e Sobrados mucambos ambos textos de Freyre de 1933 e 1936 respectivamente em suas primeiras edições Antes disso iremos analisar o texto de 1922 de Freyre obra que é o gérmen dessa produção dos anos 1930 fruto da experiência intelectual do autor nos Estados Unidos Os livros Brancos e negros em São Paulo e A integração do negro na sociedade de classes ambos de Florestan o primeiro em coautoria com Roger Bastide15 publicados em 1955 e 1965 respectivamente Dentre as múltiplas possibilidades consideradas de unidades do discurso optamos por duas formas de ler o processo de escravidão negra As mesmas foram escolhidas para objeto de estudo por considerarmos que são emblemáticas e sobretudo opostas porém igualmente complementares em certa medida Não é nosso objetivo contrapor ou identificar as obras ideias e conceitos norteadores dos 15 Intelectual francês e professor de Florestan na Universidade de São Paulo entre as décadas de 1930 e 1950 Iremos falar de forma mais detalhada dele mais adiante no trabalho 22 autores no tempo considerado na perspectiva de estabelecer algum tipo de assimetria qualificando ou desqualificando a primeira sobre a segunda ou viceversa Assim buscamos apenas perceber a mudança da análise da escravidão no discurso sociológico entre os anos 1930 e 195060 visto que dentre outras coisas o historiador deve estar atento às permanências e às rupturas E no campo da história social das ideias essas duas análises da escravidão de Freyre e Florestan são um exemplo típico demonstrando aquilo que a história intelectual crítica busca evidenciar ALBIERI 2015 que as ideias não se mostram em um contínum linear evolutivo mas que as experiências intelectuais devem ser compreendidas pelo historiador em sua dinâmica própria Essa foi a nossa intenção ao redigir o capítulo 11 O mestre de Apipucos Sou um defensor do anarquismo construtivo16 O trecho acima é revelador e diz muito de uma personalidade criativa paradoxal com laivos de gênio e com efeito do verdadeiro criador no sentido da pesquisa e do pensamento sobre o Brasil Tratase do pernambucano Gilberto Freyre Escritor brasileiro sem dúvida um dos mais conhecidos e pesquisados em termos de conhecimento nas áreas da antropologia da sociologia e da história com seus livros traduzidos em vários idiomas com suas ideias e suas formas de análise social lidas criticadas e interpretadas pelos mais proeminentes intelectuais de sua época Premiadíssimo convidado pelas maiores universidades do mundo ocidental para conferências e para cargos efetivos recusando maciçamente a todos a presente nota biográfica se circunscreve apenas no âmbito de sua produção intelectual com poucas incursões em sua vida privada levando em consideração no máximo alguns breves comentários sobre suas ambiguidades no terreno da vida pública e política centrandose mesmo na contextualização de sua vasta obra fonte para diversas leituras por parte de um historiador sendo a nossa apenas uma delas 16 O Mito Gilberto Freyre Autobiografia In BASTOS Elide Rugai As criaturas de Prometeu Gilberto Freyre e a formação da sociedade brasileira Ed São Paulo Global 2006 p 33 23 Gilberto Freyre é um dos grandes pensadores do Brasil no século XX personalidade pela qual uma história intelectual ou antes uma história social das ideias que se debruça sobre a matéria dos discursos sobre a história do Brasil não pode deixar de se deter Famoso por escrever Casagrande senzala 1933 por ter sido ativo na exaltação do negro como civilizador do português plástico e sem consciência de raça por intervenções na imprensa por conferências e palestras no exterior pelo reconhecimento quase imediato como grande antropólogo sociólogo e historiador pela participação no movimento regionalista pelas ideias discutíveis sobre escravidão e patriarcalismo enfim os textos de Gilberto Freyre o mestre de Apipucos não são apenas fonte mas verdadeira inspiração para o historiador Nesta breve nota iremos visualizar fatos e situações que se projetaram na trajetória de um pensador nada convencional por isso mesmo importante e destacado na história das ideias Dentre as várias biografias escritas sobre Gilberto Freyre levaremos em consideração aqui a redigida por Vamireh Chacon17 que já é clássica Sua biografia intelectual apesar do autor confessar a dose de catarse autoanalítica CHACON 1993 p 13 se coaduna bem com o propósito da presente nota biográfica sobretudo pelo seu maior enfoque na produção intelectual historicizando a vasta obra de Freyre situada por Chacon no tempo e no espaço do que em pormenores alheios ao que tanto para o autor como para nós aqui é o mais significativo que é a imensa e controversa obra do mestre de Apipucos Gilberto de Mello Freyre nasceu em 15 de Março de 1900 na cidade do Recife estado de Pernambuco sendo filho de Francisca Teixeira de Mello Freyre e Alfredo Alves da Silva Freyre Este último era professor catedrático de economia política da tradicional Faculdade de Direito de Recife18 Apesar de ser filho de um intelectual acadêmico paradoxal e estranhamente até quase os nove anos o menino Gilberto não sabia ler Sendo notado mais pelo apego aos desenhos do que por outra atividade com certa dose de preocupação especialmente da parte da avó que o julgava com algum nível de retardo pela sua família preocupando o seu pai que teve que buscar alternativas para isso 17 CHACON Vamireh Gilberto Freyre Uma biografia intelectual Ed Recife FNDAJ Massangana Editora Nacional 1993 18 Sobre o seu pai Gilberto apontou Meu pai não era medíocre Alguma inteligência alguma cultura bom conhecimento de latim e excelente Português das línguas e das literaturas Tudo nele no seu saber como na sua conduta correto BASTOS 2006 p 23 24 Eu sou um menino que custou muito a aprender a ler inquietando minha família bastante que diante de um menino que aos oito anos se recusava a ler e a escrever tinha motivos para julgar como minha avó que morreu convencida de que eu era um subnormal BASTOS 2006 p 21 itálico da autora Coube a um inglês Mr Williams19 que elogiou seus desenhos a tarefa de preceptor que conseguiu lograr o êxito de alfabetizar em língua inglesa o menino Gilberto Já meio desesperançado é o pai quem relembra convocou um amigo inglês um certo E O Williams para preceptor do filho caso aparentemente perdido de retardo mental imaginava a família Mr Williams anglicano e inglês muito inglês conquistou a confiança e a simpatia do difícil Gilberto interessandose pelos seus desenhos Compreendendo o que havia nesses desenhos Mr Williams conseguiu que Gilberto começasse a aprender e a escrever e a contar creio que mais na língua inglesa do que na portuguesa CHACON 1993 p 38 Após a tardia alfabetização frisese novamente que primeiramente em língua inglesa fato que sem dúvida foi decisivo para sua produção intelectual e facilitador para o posterior ingresso em universidades estadunidenses Gilberto estudou no Colégio Americano Gilreath no Recife Concluído o curso primário sendo o orador da turma que teve como paraninfo o historiador Oliveira Lima20 Gilberto viajou em 1918 para os Estados Unidos a fim de concluir os estudos na Universidade de Baylor Posso resumir minha impressão da Universidade de Baylor para onde fui em 1918 em duas palavras terrivelmente provinciana BASTOS 2006 p 23 itálico da autora 19 Inglês anglicano que durante algum tempo residiu no Recife G F o descreveu como ruivo bigodudo e típico de sua gente e de sua época Como aos oito anos G F ainda não havia aprendido a ler e escrever sua família o julgava retardado mental Foi esse Mr Williams que alertou os parentes de G F para seus desenhos a lápisdecor que considerava muito expressivos Foi com ele que G F aprendeu a ler e escrever o que paradoxalmente ocorreu em língua inglesa FONSECA 2002 p 179 180 20 Manuel de Oliveira Lima 18671928 Historiador e biógrafo nascido no Recife em 1867 e falecido em Washington DC em 1928 Diplomata serviu em Berlim Washington Londres Tóquio Buenos Aires Venezuela Suécia e Bruxelas Membro fundador da Academia Brasileira de Letras foi também presidente do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano Sua obra é considerada entre as mais importantes da historiografia brasileira G F tinha desde jovem grande admiração por ele e o convidou para paraninfo da turma com a qual concluiu o curso de humanidades no Colégio Americano Gilreath em 1918 FONSECA 2002 p 128 25 Concluído o bacharelado em Artes em 1920 seguiu para a Universidade Columbia em Nova York a fim de realizar estudos de pósgraduação que lhe renderam o título de mestre Magister of Arts em 1922 pela faculdade de Ciências Políticas Jurídicas e Sociais com a tese Social Life in Brazil in the 19th Century21 Sua estadia em Columbia foi decisiva para a sua trajetória intelectual principalmente pelo contato direto com a antropologia cultural de um dos seus professores Franz Boas22 influência decisiva para sua compreensão das raças da miscigenação e do valor do negro na história do Brasil Em 1922 viajou para a Europa estabelecendose em Oxford No ano seguinte 1923 voltou ao Recife iniciando sua colaboração no jornal O Diário de Pernambuco Em 1926 lhe é confiado pelo então governador do estado de Pernambuco Estácio Coimbra 18721937 o cargo de oficial chefe do gabinete Ainda em 1926 promoveu o 1 Congresso Brasileiro de Regionalismo na cidade do Recife É importante destacar nessa época o seu envolvimento no movimento regionalista De acordo com o seu biógrafo Vamireh Chacon já citado Na sua circunstância açucarocrática nordestina o regionalismo de 1926 tinha de ser ao mesmo tempo tradicionalista e modernista fiel às raízes porém sintonizado com os ventos do mundo sempre soprando no porto oceânico do Recife quase Hansa Tropical O próprio Gilberto Freyre fez questão de esclarecer tempos depois quando amainavam um pouco as paixões Não é exato ter eu quando moço iniciado um movimento literário no Recife que tenha sido um movimento tradicionalista ao mesmo tempo que antimoderno23 CHACON 1993 p 193 21 publicada em Baltimore pela Hispanic American Review v 5 n 4 nov 1922 e recebida com elogios pelos professores Haring Sthepherd Robertson Martin Oliveira Lima e H L Mencken que aconselha o autor a expandir o trabalho em livro FREYRE 1922 2009 p 123 124 22 Antropólogo germanoamericano 18581942 que foi professor de Antropologia na Universidade de Columbia quando G F lá seguia o curso de mestrado em ciências sociais Foi a figura de mestre de que me ficou até hoje a maior impressão disse dele G F no prefácio à primeira edição de Casa Grande Senzala obra que se baseia na distinção aurida entre raça e cultura distinção aurida nas aulas de Boas FONSECA 2002 p 36 Sobre isto principalmente a diferença entre raça e cultura ver BOAS Franz Antropología Cultural Buenos Aires Ediciones Solar y Librería Hachete SA 1964 principalmente o capítulo VIII Raza Lenguaje y Cultura p 153166 Ver também BOAS Franz Antropologia CulturalFranz Boas textos selecionados Organizador Celso Castro Ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2005 Segundo o organizador o primeiro texto em português traduzido do autor 23 Sobre o envolvimento de Freyre com o regionalismo e sua antimodernidade ver ALBUQUERQUE JÚNIOR 2011 p 86101 Ver também o verbete regionalismo In FONSECA 2002 p 149 26 Após sua participação ativa ambiguidades à parte no regionalismo em 1928 Freyre foi convidado pelo mesmo governador de Pernambuco Estácio Coimbra para a nova cátedra de sociologia da Escola Normal do Estado de Pernambuco24 período em que Gilberto teve por breve passagem a profissão de docente realizando pesquisas ministrando cursos e orientando os seus alunos a realizarem pesquisas sob uma base inédita no Brasil fruto de sua experiência intelectual em universidades nos Estados Unidos e na Europa MEUCCI 2006 No ano de 1930 com a ascensão de Vargas ao poder Gilberto teve que sair de Recife em virtude de fazer parte do governo deposto exilandose primeiramente na Bahia indo depois para Portugal passando pela África Dácar e Senegal Em 1931 estando Freyre em Portugal surpreendeulhe o convite da Universidade de Stanford para ser um dos seus visitant professours Dos Estados Unidos regressou à Europa onde realizou estudos antropológicos principalmente na Alemanha No ano seguinte estando no Rio de Janeiro então capital federal passando por sérias dificuldades financeiras consultou arquivos e recolheu notas que iriam compor uma de suas obras seminais No mês de dezembro de 1933 publicou CasaGrande Senzala livro imediatamente reconhecido como de fundamental importância para a compreensão da história do Brasil25 Em 1935 iniciou por um breve período apenas dois anos uma experiência docente na então Universidade do Distrito Federal no Rio de Janeiro26 No ano seguinte 1936 publicou Sobrados e Mucambos27 livro que foi a continuação de CasaGrande Senzala Em 1941 se casou com Maria Magdalena Guedes Pereira No mesmo ano recebeu o primeiro dos vários que receberia ao longo da carreira título de doutor honoris causa pela Universidade da Sorbonne Em 1942 foi preso28 sendo solto no dia seguinte à prisão No mesmo ano a Universidade de Yale o convidou para ser 24 primeira cadeira de Sociologia que se estabelece no Brasil com moderna orientação antropológica e pesquisas de campo FREYRE 1963 2010 p 202 Sobre esse tempo ver CHACON 1993 p 199207 BASTOS 2006 p 28 25 Aparecem 1934 em jornais do Rio de Janeiro os primeiros artigos sobre Casagrande Senzala escritos por Yan de Almeida Prado RoquetePinto João Ribeiro e Agrippino Grieco todos elogiosos FREYRE 1922 2009 p 202 26 Ministrou cursos na área das ciências sociais para estudantes de direito com menos oratória e mais pesquisa MEUCCI 2006 p 93180 27 Livro publicado em São Paulo pela Companhia Editora Nacional em 1936 com o seguinte subtítulo Decadência do patriarcado rural no Brasil FONSECA 2002 p 159 28 É preso no Recife por ter denunciado em artigo publicado no Rio de Janeiro atividades nazistas e racistas no Brasil FREYRE 1963 2010 p 205 27 professor convite este recusado por Gilberto que outrossim por meio de carta recusaria os convites para ser catedrático de Sociologia da Universidade do Brasil e também da Universidade de Harvard Em 1945 publicou o importante livro Brazil and interpretation29 em Nova York Nesse ano foi eleito Deputado Federal Constituinte assumindo o cargo em 1946 No plano nacional apresentou neste mesmo ano à Câmara dos Deputados o projeto n 819 que resultou na Criação do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais transformado em Fundação Joaquim Nabuco em 198030 No ano de 1948 a convite da UNESCO foi para Paris participando de um conclave de oito notáveis pesquisadores reconhecidos internacionalmente G Gurvich entre eles por exemplo para o estudo das tensões raciais no pósguerra Recebeu nos anos 1950 diversos prêmios e honrarias pessoais por universidades europeias estadunidenses e brasileiras31 Em 1959 publicou o livro Ordem e Progresso que juntamente com Casagrande Senzala e Sobrados Mucambos e Jazidas e covas rasas livro nunca concluído deveria compor sua série de livros sobre a Introdução à história patriarcal no Brasil No decorrer da década de 1960 residindo no seu solar em Apipucos no Recife continuou recebendo muitos intelectuais personalidades e alguns iniciados como o próprio biógrafo aqui citado CHACON 1993 Proferiu palestras orientou diversos trabalhos sob a égide da sua antropologia e sociologia genética Com o golpe civil militar de 1964 tomou posição como mesmo confessou 29 Série de conferências de Gilberto cujo texto seria grandemente modificado e publicado como o livro New world in the tropics FREYRE 1922 2009 p 211 O texto teria a primeira edição em português somente em 1971 FONSECA 2002 p 124 30 Nesse Instituto sob sua direção ele coordenou uma série de estudos que resultou na chamada Tropicologia que a seu pedido foi criado um Seminário de Tropicologia na Universidade Federal de Pernambuco Sobre a Tropicologia ver FONSECA 2002 p 169 também o prefácio à 1ª edição 1963 do texto Os escravos nos anúncios de jornal brasileiro de Froes da Fonseca FREYRE 1963 2010 p 63 Ver ainda SILVA Alex Gomes da Gilberto Freyre e o legado LusoHispânico Uma construção no pósguerra Tese de doutorado em História São PauloSP Universidade de São Paulo USP 2016 327 f Sobretudo o capítulo IV p 251297 31 No ano de 1955 Para discutir Casagrande Senzala e outras obras ideias e métodos de Gilberto Freyre reúnemse em CerisyLaSalle os escritores e professores M Simon R Bastide G Gurvich Leon Bourdon Henri Gouhier Jean Duvignaud Tavares Bastos Clara Mauraux Nicolas Sombart e Mário Pinto de Andrade talvez a maior homenagem já prestada na Europa a um intelectual brasileiro os demais seminários de Cerisy foram dedicados a filósofos da história como Toynbee e Heidegger FREYRE 1922 2009 p 210 28 Eu me defini a favor do movimento de 1964 sem que isso implicasse uma adesão política O general Castelo Branco então Comandante do IV Exército frequentava muito a minha casa mas vinha para conversar e não para conspirar A meu ver 1964 era inevitável tinha de vir diante do caos a que o Brasil chegara diante da infiltração russo soviética no país De modo que as Forças Armadas prestaram um grande serviço ao Brasil em 1964 BASTOS 2006 p 34 itálico da autora Apesar do pensamento favorável aos acontecimentos do período Freyre recusou o convite de Castelo Branco para ser ministro da educação e cultura BASTOS 2006 p 34 Em 1967 ganhou o Nobel dos Estados Unidos Prêmio do Instituto Aspen de Estudos Humanísticos No ano de 1968 recebeu o título de doutor honoris causa pela Universidade de Münster Alemanha Ocidental em que Florestan Fernandes 19201995 e outros se fizeram presentes32 o que aponta o constante e crescente prestígio do autor por causa de sua obra Em 1970 estava em plena atividade intelectual residindo sempre em Apipucos seu lugar de predileção onde quando do regresso das suas constantes viagens internacionais e mesmo nacionais dizia estar em casa CHACON 1993 Durante aquela década ainda recebia diversos intelectuais e outras personalidades demonstrando seu reconhecimento e constante prestígio apesar das controvérsias e ambiguidades no quesito do seu apoio ao regime político brasileiro da época Na década de 1980 alguns problemas de saúde constantemente impediam o seu trabalho Freyre recusava terminantemente a ideia de aposentarse Os prêmios de doutorado honoris causa e as menções honrosas à sua obra em encontros acadêmicos nacionais e internacionais continuavam a serem a ele endereçados No ano de 1985 dois anos antes de sua morte ele afirmou Detesto devo dizer que me chamem de mestre Eu não me considero mestre não Eu me considero um indivíduo que chega aos 85 anos aprendiz sempre aprendiz BASTOS 2006 p 35 itálico da autora Ou seja aos 85 anos Freyre se considerava um aprendiz leitor voraz ainda que já autor consagrado não se resignava a repetir o já dito e escrito sempre com novas pesquisas em mente Eu acho que o intelectual precisa ser sempre um insatisfeito precisa sempre buscar novas visões novas perspectivas novos rumos de 32 Conforme Vamireh Chacon este assisti pessoalmente em companhia de Celso Furtado Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso CHACON 1993 p 282 29 sua aproximação do que ele considerava verdades a serem descobertas ou redescobertas BASTOS 2006 p 35 itálico da autora Nesse mesmo ano de 1985 viajou para São Paulo sendo hospitalizado para uma cirurgia hérnia de esôfago Em 1986 foi eleito membro da Academia Pernambucana de Letras Em 1987 às quatro horas de 18 de julho morreu no Hospital Português Calavase o mestre de grande influência para toda uma geração de antropólogos sociólogos e historiadores como Roberto DaMatta33 por exemplo dentre inúmeros Era o entardecer de Apipucos Gilberto Freyre queria permanecer lúcido até o fim da sua longa vida ao modo de Joaquim Nabuco que escreveu no seu diário íntimo minha esperança minha oração fervorosa é que quando eu seja afetado pela doença da velhice não o seja na parte de mim que Deus criou à sua imagem e semelhança O corpo pode ser demolido não o seja nunca o espírito Também a prece de Gilberto foi atendida Ele morreu lúcido aos oitenta e sete anos escrevendo artigos e com a derradeira oportunidade para soltar uma risada quando lhe apresentaram jornais com uma foto dele com discípuloscompanheiros tomando banho nus numa pequena cachoeira pernambucana última tentativa em vão de ferilo Ele se transformara em personalidade de si mesmo melhor que dos outros CHACON 1993 p 305 Nesse entardecer no seu adormecer na morte Gilberto Freyre deixou vasta obra assim como um legado que nunca quis como mencionamos acima o de grande mestre Suas reflexões sobre a escravidão sobre a miscigenação a democracia racial que subjaz nas suas obras seu caráter de polemista e até antiacadêmico não convencional fazem da sua personalidade e do seu legado intelectual um material histórico profícuo para a história social das ideias pretendida na presente dissertação brasileira Gilberto como uma metamorfose ambulante sempre se renovava apesar de manter uma unidade em sua obra a partir de temas recorrentes que julgava centrais para a compreensão do complexo processo histórico brasileiro tais como o patriarcado a miscigenação étnicoracial e o trópico BASTOS 2006 33 Sobre DaMatta em entrevista de 1985 ele afirmou Por exemplo o Roberto DaMatta eu acho que é um dos indivíduos mais influenciados pela minha obra BASTOS 2006 p 219 30 Apesar dos temas comuns e recorrentes de sua vasta obra antropológica sociológica e historiográfica seus livros outrossim são portadores de uma enorme variedade causada pelo calor dos momentos de redação ou pela constante obstinação do autor pernambucano em sempre buscar algo novo pondo no centro personagens antes às margens como o negro visto como civilizador em ser maestro de uma orquestra a sua obra que mais que descrever e fixar buscou interpretar e compreender O mestre de Apipucos foi um intelectual em movimento constante 12 A benignidade patriarcal e sua decadência No seu texto de mestrado Vida social no Brasil nos meados do século XIX redigido nos anos 1920 Gilberto Freyre já enunciava um dos temaschave e mais recorrentes em toda sua extensa obra a escravidão negra Frisese que esse texto escrito em tempos de jovem estudante igualmente enunciava uma das principais polêmicas sobre a sua visão em relação ao escravismo Essa polêmica em evidência seria a visão de uma escravidão doce numa quase relação democrática A escravidão negra existente na colônia e no império patriarcal teria sido não apenas positiva como também repleta de lances de benignidade34 Tal visão estava amparada principalmente nos relatos dos viajantes estrangeiros que Freyre enfatizou ter sido um dos pioneiros no uso desses relatos para a reconstituição histórica do Brasil Voltouse para alguns dos estrangeiros que então visitaram o Brasil como para os mais seguros de todos os observadores e críticos sociais do período período de que quase sempre se têm ocupado os brasileiros uns apenas para glorificar desaparecidos outros para sumariamente condenálos Raramente com justo ou equilibrado 34 Na apresentação à edição brasileira utilizada nesse trabalho Gustavo Henrique Tuna indica que já em Vida social Freyre aponta para a suposta benignidade dos senhores no tratamento dos escravos O autor ainda completa apontando um dado importante Ao reescrever o texto em inglês para a sua publicação no Brasil Freyre procurou relativizar as teses da benignidade da escravidão e da proeminência do patriarcalismo em todas as regiões do Brasil defendidas no texto original FREYRE 1922 2009 p 15 17 31 espirito de crítica e puro gosto ou afã de compreensão Notese que nos testemunhos de estrangeiros idôneos apoiouse o autor para a sua visão do regímen de trabalho escravo como particularmente benigno FREYRE 1922 2009 p 23 Grifo nosso Apoiado nesses relatos de viajantes embora ressaltando que os mesmos nos seus relatos sobre o assunto tenham afirmado que tal benignidade era coisa atípica e que no geral poderia não ter sido assim Freyre instituiu uma unidade discursiva em que escravidão e benignidade relações suaves possuem uma singular identificação Foram condições peculiares e especialíssimas sem dúvida porém Freyre as apontou como mais gerais e de forma mais abrangente ou seja como uma espécie de confirmação de uma constante histórica e não tão somente casos excepcionais que fugiram à regra de uma escravidão amarga e não adocicada pelo mel do patriarcalismo Esse texto de Freyre de 1922 é importante não apenas por ser o gérmen de CasaGrande Senzala publicado onze anos depois ele é importante também porque enunciou uma visão da democracia racial uma constante histórica brasileira para o autor já nesse trabalho buscando instituila como visão historiográfica correta e defensável já que é embasada em fontes segundo ele das mais idôneas Esse texto como já se afirmou é considerado um dos embriões dos estudos posteriores dos anos 193035 Freyre nos vários prefácios e introduções à reedição do texto propôs categoricamente que em idade ainda verde ele já esboçava nesse livro as ideias centrais sobre a sua indagação do que seria o Brasil Tais ideias se inspiraram em um critério36 inédito na história das ideias brasileira segundo o próprio Freyre gestaltiano de interpretação sociológica que o levou a considerar a escravidão não apenas como fator econômico mas sobretudo como uma relação 35 Ainda conforme a apresentação de Gustavo Henrique Tuna Encontramse esboçadas neste estudo de Freyre suas primeiras considerações a respeito de aspectos basilares da formação brasileira como a miscigenação a escravidão africana a forte presença da religião católica no cotidiano da população em geral e a concentração do poder econômico nas mãos de uma elite FREYRE 1922 2009 p 18 36 No prefácio a 1ª edição em língua portuguesa 1963 do seu texto de mestrado Freyre apontou que É um critério que se inspira na New History sem dúvida e que se apoia em grande parte nos estudos de Antropologia do autor com o professor Franz Boas na Universidade de Columbia e nos seus contatos em Oxford com os então recentes estudos de História Social e sobretudo de Antropologia Cultural empreendidos por ingleses e em Paris em seu convívio com o sábio Lucien Febvre FREYRE 1922 2009 p 31 32 32 entre pessoas ou seja enfatizando a pessoalidade do sistema sua sensibilidade e até mesmo a positividade do escravismo Os escravos em geral não se esfalfavam nos trabalhos domésticos Era assim tanto nas casasgrandes dos engenhos e das fazendas como nos grandes sobrados igualmente patriarcais nas cidades É verdade que nos meados do século passado a propaganda antiescravista britânica muito comentou o cruel tratamento dos escravos no Brasil Mais tarde esses sombrios comentários ingleses foram repetidos no Brasil por oradores brasileiros contrários ao cativeiro entre eles Joaquin Nabuco e Rui Barbosa homens inflamados pelo idealismo liberal e burguês de Wilberforce e cada um deles animado pelo desejo de resto muito humano de glória pessoal ligada a uma causa humanitária FREYRE 1922 2009 p 79 O trabalho não esfalfava os negros e isso se repetia tanto no campo como na cidade Nesse estudo sobre o Brasil do século XIX Freyre argumentou que foi a propaganda antiescravista inglesa que engendrou essa representação de uma escravidão cruel aspas do próprio Freyre O antropólogosociólogo pernambucano apontou ou antes defendeu que tais comentários estariam interessados na abolição da escravatura e não condiziam com a real situação do negro escravizado no Brasil na época retratada Sendo que A linguagem empregada por tais oradores foi tão enfaticamente persuasiva que o brasileiro médio de hoje 1922 ainda acredita ter sido a escravidão no Brasil toda ela realmente cruel Na verdade a escravidão no Brasil agráriopatriarcal pouco teve de cruel O escravo levava nos meados do século XIX vida de quase anjo se compararmos sua sorte com a dos operários ingleses ou mesmo com as dos operários do continente europeu dos mesmos meados do século passado Sua vida tudo indica era também bem menos penosa que a dos escravos nas minas da América espanhola e nas plantações quando mais industriais do que patriarcais da América inglesa e protestante FREYRE 1922 2009 p 79 Grifo nosso Freyre buscou na comparação histórica com outras condições análogas a ou de escravidão propriamente dita à confirmação para a ideia de uma escravidão 33 benigna37 A vida de quase anjos dos negros nos engenhos nas casasgrandes nas ruas nos sobrados na senzala era repleta de uma alegria celeste tendo o patriarcalismo do senhor como base social de sustentação diferente do escravismo mais industrial inglês não patriarcal por exemplo Mesmo que apresentado aos 22 anos de idade não podemos tomar esse texto de um tom de escrito de juventude como é comum em textos sobre autores em que os cortes epistemológicos a maioria à revelia do autor e bem contestáveis correlacionam textosenxertos de juventude com as veleidades próprias da idade ainda verde e os textos de maturidade em cuja bagagem científica já deixaria o autor inescusável de suas interpretações Entretanto Freyre reiterou em prefácios e introduções a outros textos que sua interpretação à época era pertinente válida e quando não necessária frente a uma unidade discursiva abolicionista ou repleta de retórica liberalburguesa irrealista em termos de visão histórica que lhe precedia É interessante citar a sua descrição sobre a escravidão em que se percebe dentre outros aspectos a reiteração de uma escravidão como fator familístico suave menos cruel ou algo que se pudesse reduzir ao pragmatismo econômico ou à retórica inglesa abolicionista como já aludido acima38 Crianças da família patriarcalismo simpático e outras expressões são aventadas nessa descrição histórica Os trabalhadores dos grandes engenhos e das grandes fazendas patriarcais do Brasil dos meados do século XIX eram de ordinário bem 37 Em texto posterior Os escravos nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX 1ª edição de 1961 tendo surgido primeiramente na forma de uma conferência O escravo nos anúncios de jornal no tempo do império feita no Rio de Janeiro e publicada em número de 1934 da Revista Lanterna Verde Ele afirmou sobre a escravidão benigna nesse texto de mestrado que Explicase assim ter eu estreado em quase livro escrito e publicado em língua inglesa como tese de mestrado na então insigne Universidade de Colúmbia A Colúmbia dos Boas dos Giddngs dos Seligmans dos John Basset Zimmern de Oxford e Haring de Harvard como visitint professor na qual contra a lenda de uma escravidão do africano no Brasil sempre infernalmente cruel opus toda uma série de testemunhos de estrangeiros idôneos no sentido de reconhecerse aquela benignidade FREYRE 1963 2010 p 26 Grifo nosso Posteriormente todavia ele reiterou A benignidade nas relações de senhores com escravos no Brasil patriarcal não é para ser admitida é claro senão em termos relativos Senhor é sempre senhor FREYRE 1963 2010 p 26 Necessário dizer que essa reiteração é de um prefácio a 2ª edição do texto em 1978 38 Sobre isso Freyre enfatizou ainda nesse texto de mestrado 1922 que Mas na própria Inglaterra meninos e meninas de dez anos eram chicoteadas no trabalho e às vezes até nas próprias fábricas dos oradores antiescravistas Eram principalmente nas palavras desses oradores ingleses sectariamente antiescravistas sua seita era do progresso burguêsindustrial fosse como fosse por mais inumano que a rotina agrária ou agráriapatriarcal que se inspiraram desde 1850 abolicionistas brasileiros alguns dos quais mais retóricos do que exatos nas suas críticas ao regime brasileiro de trabalho da época FREYRE 1922 2009 p 81 34 alimentados e recebiam cuidados dos senhores como se fossem depõe um observador estrangeiro uma grande família de crianças Tinham três refeições por dia e um pouco de aguardente de manhã A primeira refeição constituída de farinha ou pirão com frutas e aguardente Ao meiodia faziam uma refeição muito substancial de carne ou peixe À noitinha feijãopreto arroz e verduras Ao pôr do sol o apito do engenho encerra o trabalho do dia Os trabalhadores faziam a sua última refeição e depois iam dormir Mas não sem que antes pedissem muito filialmente a bênção ao seu senhor e à sua senhora Benção Nhonhô Benção Nhahã e a senhora diziam Deus te abençoe e ao mesmo tempo faziam o sinal da cruz O patriarcalismo brasileiro agrário e cristão na sua expressão mais simpática que não foi de modo algum excepcional caracterizou a convivência de senhores com escravos na maioria dos grandes engenhos e das grandes fazendas FREYRE 1922 2009 p 79 81 É como se o núcleo da relação senhorescravo não fosse considerada como relação de estrita submissão Freyre reiterou diversas vezes a violência do patriarcado o senhor continuava senhor porém de uma forma especialíssima e peculiar esses senhores eram pais piedosos melhores que os contramestres austeros da Inglaterra oitocentista ou dos espanhóis e chapetones das colônias hispânicas na América O nhonhô patriarca e católico era bom era pai era autoritário de forma a castigar severamente relevando e clarificando os extremos todavia essa agressão era mais perto da forma como castigava aos filhos Havia extremos de sadismo no manejo do chicote por parte de brancos com relação a negros de senhores com relação a escravos Mas eram extremos semelhantes àqueles em que se desgarravam pais nos castigos a que submetiam os filhos ou velhos nas punições que patriarcalmente infligiam aos meninos FREYRE 1922 2009 p 94 95 Aqui surgia outra forma de agrupamento social privilegiada pelo discurso de Freyre a família no caso a família extensa39 em que agregados parentes distantes e os escravos são inclusos É inserida em sua interpretação histórica no sentido de dotar essencialmente de uma caracterização familiar as relações históricas entre brancos e negros A escravidão morosa assim como em geral foi para o autor vida doméstica no Brasil do tempo dos patriarcas agrários e católicos foi revestida de uma 39 A família é claro que incluía além de pais e filhos de compadres e afilhados a parentela e além da parentela mucamas pajens toda a escravaria doméstica FREYRE 1922 2009 p 94 35 bondade que seria interpretada como tipicamente familiar como entre iguais e entre indivíduos e afetos em troca reciproca ficando o senhor no topo do sistema Mas o sistema em si não era algo como uma engrenagem mecânica a do engenho era uma engrenagem de família esta era extensa inclusiva e doce para com os seus escravizados negros de casa É uma interpretação contida nesse texto certamente ainda não muito sistemática e restrita ao universo imperial brasileiro Entretanto ela se revela de fundamental importância na interpretação historicizante que aqui realizamos sobre o pensamento social freyriano em relação à escravidão negra Ela é importante em ao menos três direções conexas entre si que são dentre outras coisas o que nós poderíamos chamar de substrato da unidade discursiva freyriana sobre o escravismo A primeira é que o patriarcado é uma instituição que para com a escravidão e é visto como paradoxalmente um elemento de violência excessos de sadismo e de fria morbidez ao mesmo tempo em que é interpretado como o elemento suavizador nas relações entre brancos e negros A família patriarcal amava seus negros como pessoas da família como irmãos e irmãs como gente da casa A segunda é justamente a questão da família extensa isto é a escravidão era coisa de família coisa de casa relação de afeto que se fixou na convivência desde a infância na iniciação sexual na puberdade nas relações de amores da vida adulta A terceira é principalmente a questão da proximidade sexual O sexo com a sua interpenetração corporal troca de fluidos e vetor do circuito dos afetos agiu como poderoso elemento de justaposição racial de indicador da razão da benignidade da escravidão negra processada historicamente no Brasil Para Freyre a escravidão não é condenada O historiador Freyre não visualizou a mesma como algo execrável em si Como fenômeno histórico não seria novo como instituição econômica e política nada teria também de original A que existiu na colônia e império patriarcal foi adocicada de mel católico de pessoalismo via sexo e de familismo intermediado pelo resultado do intenso intercurso sexual da proximidade entre os extremos sociais entre raças que mediadas pela plasticidade dos colonizadores portugueses teriam agido mais no sentido de encurtar distâncias sócio raciais do que estancar em abismos entre brancos senhores e negros escravizados 36 Nessa unidade discursiva a escravidão como fator de produção econômica foi essencial para a empresa açucareira colonial e para o sistema social do ciclo do café pósindependência sendo igualmente vital para a engrenagem do sistema casa grandesenzala A escravidão era dolorosa para o escravo uma vez que lhe eram infligidos os trabalhos mais lúgubres e insalubres como carregar os excrementos num balde tigres na cabeça40 todavia tudo isso para Freyre era algo condizente com a própria lógica intimista do sistema patriarcal A escravidão foi violenta humilhante e degradante sim Mas era também ato necessário isto é era necessidade histórica que se singularizou pela suavidade tropical da civilização do açúcar pela influência lusa plástica pela caridade católica pela forma de relação como um pacto entre pessoas apenas de cores diferentes mais de onde a clarividente contradição se engendrou numa formação social conciliatória entre contrários Brancos e negros foram em vez de antípodas irmãos de missa e membros da mesma família na sociedade escravocrata Entretanto a de se ponderar que esse texto de 1922 é a raiz do verdadeiro grande texto freyriano Como ele mesmo disse O que viria a realizarse dez anos depois em língua portuguesa No livro Casagrande senzala seguido por vários outros sobre o assunto Este foi o gérmen FREYRE 1922 2009 p 48 Ou seja para podermos ter uma visão mais ampliada da forma como Gilberto entendia a escravidão negra devemos cotejar os ensaios posteriores em que pudemos desde já apontar a recorrência desse tema dessa escravidão benigna doce e tropical41 40 Essas imundícies eram colocadas em pipas ou barris chamados de tigres e carregadas às cabeças dos escravos que os despejavam nos rios nas praias e nos becos matos FREYRE 1922 2009 p 111 112 Em Casagrande senzala 1933 Gilberto Freyre retomou esse assunto sobre o trabalho vil e imundo termos dele praticado pelo negro Às vezes largavam o fundo dos tigres emporcalhandose então o carregador da cabeça aos pés Foram funções essas e várias outras quase tão vis desempenhadas pelo escravo africano com uma passividade animal FREYRE 1933 2006 p 550 Itálico nosso 41 No intervalo entre 1922 e o texto de 1933 Gilberto escreveu alguns outros textos Existem entre outros os artigos para a Revista do Brasil 19234 para o Diário de Pernambuco e texto organizado por ele Livro do Nordeste 1925 como os principais Além de poemas e cartas FREYRE 1922 2009 p 124 125 Dentre esses textos para investigação aqui em curso eles não fixam e se detém sobre a escravidão de forma sistemática Nesse sentido compreendemos que uma leitura mais atenta da unidade discursiva freyriana sobre a escravidão se releva mais prestimosa aos nossos objetivos quando avançarmos sobre os textos dos anos 1930 primeiro CasaGrande Senzala em larga medida a ampliação das já esboçadas teses no texto de 1922 analisado acima um parêntese para analisar o texto fruto de uma conferência em 1934 apenas publicado em 1963 mas que aponta importantes ideias que o autor tinha sobre a escravidão e finalizamos com a análise do texto Sobrados Mucambos de 1936 Outros textos serão igualmente analisados no final dessa seção do trabalho ainda 37 É no seu magnum opus de 1933 que a análise freyriana tanto sobre a escravidão como sobre o negro e as relações étnicas no período colonial sobretudo na vida social ganhou contornos mais abrangentes todavia o tema não aberta mais subjacentemente da benignidade das relações senhorescravo do patriarcado histórico reapareceu agora com uma força argumentativa bem mais densa do que no texto de mestrado analisado anteriormente Tratase de Casagrande Senzala42 sua introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil Uma distinção que consta no texto e é pertinente para nosso trabalho nesse ponto se faz necessária de imediato Devese porém distinguir entre os escravos de trabalho agrícola e os do serviço doméstico estes beneficiados por essa assistência moral e religiosa que muitas vezes faltava aos do eito Na maior parte das casasgrandes sempre se fez questão de negros batizados houve senhoras de tal modo interessadas no bemestar dos escravos que levavam aos próprios seios molequinhos filhos de negras falecidas em consequência de parto alimentandoos do seu leite de brancas finas que nos engenhos e fazendas vários escravos chegaram a unirse pelo casamento vivendo assim em família com certas regalias que os senhores lhes conferem FREYRE 1933 2006 p 539 A distinção entre escravos de casa doméstico e os do eito das lavouras de canadeaçúcar é importante na análise sobre como Freyre interpretou a escravidão negra em dois sentidos Já se enfatizou que ele privilegiou os primeiros sobre os segundos43 que os idealizou em demasia enfatizando o caráter fraterno e familístico do escravo doméstico O primeiro sentido é que ele descolou a análise da escravidão de fator externo de fora impessoal como que deslocado de processos vivenciados para o âmbito interno de casa E isso permitiu ao autor perceber que como fenômeno histórico a escravidão aqui praticada não teria sido tão destrutiva para os negros no sentido de que mais para uma visualização geral para o leitor do pensamento de Gilberto sobre a escravidão negra 42 Publicado em dezembro de 1933 pelo poeta e editor Agusto Frederico Schimidt e reeditado em 1936 e 1938 o livro obteve enorme repercussão comprovada por recensões e artigos publicados em jornais e revistas nacionais e estrangeiras FONSECA 2002 p 44 43 Na apresentação à edição utilizada neste trabalho Fernando Henrique Cardoso ao considerar Casa como um livro perene afirmou que Freyre deixou de lado no texto os escravos do eito a massa que mais penava nos campos CARDOSO In FREYRE 1933 2006 p 22 38 despersonalizálos retirarlhes a humanidade violálos a ponto de transformálos em homensmáquinas exauridos em trabalhos penosos fustigantes e insalubres O negro era irmão do branco colaborador em cultura e em força social para que o sistema casagrandesenzala tivesse entre outras coisas sua grande originalidade a de ser uma engrenagem movida por pessoas em interação viva em fluxo e não peças impessoais a montar um organismo do tipo de uma interpretação mais pragmática colônia de exploração que divide a formação social entre senhores brancos de engenho donos de terras de meios de produção e de homens de um lado e escravizados negros as peças da África despossuídos mercadorias e indivíduos sem direitos apenas com deveres do outro O patriarcado cimentou a escravidão doméstica de benignidade O segundo sentido é que os escravos domésticos não eram só trabalhadores foram também senhores Senhores da cozinha é claro44 O escravo doméstico foi especialista45 músico iniciador sexual levapancadas quando garoto ou seja foi mais que homemtrabalho servo submisso ou algum sinônimo que de certa forma interpreta a escravidão apenas na autoevidência do seu caráter quase vocabular de cativeiro de trabalho forçado para se produzir riqueza o ouro branco chamado açúcar Entretanto há que se mencionar algumas considerações importantes Primeiro que a circunstância histórica para a viabilidade da empresa colonizadora lusa que no primeiro momento concentrouse apenas na extração vegetal em virtude de não encontrarem de modo abundante e de imediato metais preciosos tendo que se voltar primeiramente para a extração de madeira o paubrasil levou Portugal para a plantação do açúcar bastante rentável no mercado europeu no período Para tanto exigiuse trabalho compulsório o meio exigiu o escravo46 E essa exigência no discurso freyriano não pode manchar a civilização tropical criada pelo português 44 O escravo africano dominou a cozinha colonial FREYRE 1933 2006 p 541 45 Era segundo Freyre extrema a especialização do trabalho escravo negro na cozinha das pretalhonas e negros maricas FREYRE 1933 2006 p 542 46 O historiador José Carlos Reis afirmou em estudo sobre a obra de Freyre especialmente sobre essa questão da exigência do escravo O meio e as circunstâncias exigiram o escravo E complementa Teria sido mesmo um crime transplantar e escravizar o negro Para alguns ele Freyre responde e inclusive Varnhagen mencionado por ele foi um erro enorme Mas e Freyre continua em defesa dos colonizadores portugueses ninguém nos disse até hoje que outro método de suprir as necessidades do trabalho poderia ter adotado o colonizador português no Brasil REIS 2006 p 56 39 Para a escravidão salientese mais uma vez que não necessitava o português de nenhum estímulo Nenhum europeu mais predisposto ao regime de trabalho escravo do que ele No caso brasileiro porém parecenos injusto acusar o português de ter manchado com instituição que hoje 1933 tanto nos repugna sua obra grandiosa de colonização tropical O meio e as circunstâncias exigiram o escravo FREYRE 1933 2006 p 322 Segundo que em sua interpretação a força de trabalho indígena não foi eficiente como a dos negros FREYRE 1933 2006 p 45 A enxada não se firmou na mão do índio e sim na mão do negro Quando comparou o indígena essa criança grande com os nativos que os espanhóis encontraram Freyre afirmou que as tribos encontradas pelos portugueses eram as raças indígenas mais inferiores com cultura verde e incipiente sendo incapazes de se acomodarem às técnicas novas de produção em curso Primitivos em cultura foi sobretudo a mulher indígena a grande colaboradora dos lusos O indígena foi escravo primeiro porém quando este por incapaz e molengo mostrou não corresponder às necessidades da agricultura colonial FREYRE 1933 2006 p 322 foi logo substituído por um alicerce mais forte de força de trabalho trazido do continente negro África Base sólida do sistema o trabalho escravo negro foi o elemento constante que teria até impedido possíveis perturbações da ordem com as minas séc XVIII ou com o café séc XIX Os negros de mãos hábeis foram a força motriz do sistema Porém mais que isso foram a alegria que encheu a casagrande que nos espaços nos corredores sociais entre a casa e a senzala se revelaram em danças em peripécias e em toda a sua forma quase orgástica quando não dionisíaca de viver que contrastou com o índio introvertido e com o português austero porém contemporizador em termos étnicoraciais É notável que a temática da escravidão nesse texto tivesse na sexualidade uma grande ênfase47 Na vida sexual o negro apesar de mais fraco sexualmente que o indígena por exemplo precisando de danças para a sua excitação sexual era extrovertido alegre dionisíaco Nesse sistema que se inicia em um ambiente de 47 Afinal Resultou daí grossa multidão de filhos dentro do liberal patriarcalismo das casasgrandes FREYRE 1933 2006 p 531 Sexualidade e escravidão próximas dentro de um patriarcado que se era rígido e autoritário em outros pontos nesse era liberal 40 quase intoxicação sexual FREYRE 1933 2006 p 161 a escravidão no tocante à sexualidade tornou o negro imoral Nesse ponto uma afirmação do discurso freyriano se faz categórica Não há escravidão sem depravação sexual FREYRE 1933 2006 p 399 O negro que sifilizou o Brasil colonial não foi o negro em si mas o escravo isto é o escravizado africano nas condições sociais impostas pelo sistema patriarcal que era degenerado nos termos da moral católica A discriminação entre negro e escravo também foi fundamental no discurso freyriano pois fora a escravidão que deformou e imoralizou o negro Foi o sistema e não meramente uma condição racial que imoralizou o negro escravo Porém com efeito há que se ressaltar que Mas aceita de modo geral como deletéria a influência da escravidão doméstica sobre a moral e o caráter do brasileiro da casagrande devemos atender às circunstâncias especialíssimas que entre nós modificaram ou atenuaram os males do sistema Desde logo salientamos a doçura nas relações de senhores com escravos domésticos talvez maior no Brasil do que em qualquer outra parte da América FREYRE 1933 2006 p 435 itálico nosso É como pessoa de família no íntimo que a escravidão e a sexualização nesse discurso ganharam uma forte e estreita relação48 No discurso freyriano isso foi o que fez do negro mais que peça coisa uma pessoa um indivíduo com nome cristão e batizado por padre sujeito da casa49 O abuso sádico do senhor o cheiro de sémen nas senzalas e a forte interpenetração no grande intercurso sexual são forças do sistema não tendo um equivalente na consciência de raça que nesse discurso 48 Sobre a temática escravidão e sexualidade fazendo uma leitura crítica sobre a escravidão negra no Brasil no que tange ao tema criticando em grande parte ainda que não explícita mais implicitamente Gilberto Freyre embora não o cite o historiador Jaime Pinsky afirmou que Por seu turno para as escravas uma relação com o patrão poderia reverter em vantagens dentro da sua condição Sabese de violências sexuais atrozes praticadas por senhores e feitores contra as negras escravas PINSKY 2018 p 64 E aponta ainda que De qualquer forma os documentos registram numerosos testemunhos das incursões que os senhores faziam às suas senzalas com ou sem o consentimento das sinhás com ou sem a aprovação das escravas PINSKY 2018 p 65 Para uma visão mais pormenorizada sobre o tema sexualização e escravidão no discurso freyriano ver ainda NOGUEIRA Nadia Cristina Sexualidade e socialização em Gilberto Freyre Dissertação de Mestrado em História CampinasSP Universidade Estadual de Campinas UNICAMP 2000 159 f 49 Indivíduos cujo lugar na família ficava sendo não o de escravos mas o de pessoas de casa FREYRE 1933 2006 p 435 41 senão de todo foi considerada praticamente inexistente nas históricas relações que se teceram no período da escravidão negra sob a égide patriarcal A doçura era baseada no afeto o brasileiro de cor o escravo quase não existe em termos de produção Sendo a base dela ele é de família de casa de sala e sobretudo de cama ou de rede ou pelos matos onde o deleite e a cópula revelam a intimidade a proximidade e literalmente a junção de corpos de afetos e de estratos sociais que mesmo separados em termos jurídicos afinal o negro era propriedade no sentido econômico50 ele era muito mais que isso era um íntimo e se fosse propriedade Freyre o interpretou como um tipo especial de propriedade afetiva O negro era escravo também em termos de paixões tanto que sinhazinhas mandavam cortar mamilos de escravas para que as mesmas não se tornassem mais tão atraentes e os senhores por sua vez mandavam a ferros negros mais afoitos pegos em flertes ou coitos com suas filhas ou esposas A negra abria as pernas não a pedido mas à ordem FREYRE 1933 2006 p 456 era a iniciadora a fuxiqueiraenredeira e amante O sexo era a parte fundamental para a miscigenada sociedade se reproduzir para que se desenvolvesse e se mantivesse A proximidade era tal que até para os detalhes mais íntimos da toalete o negro foi usado FREYRE 1933 2006 p 517 A sexualidade e a escravidão eram a um só termo processos conexos e estreitamente para não dizer intrinsecamente associados no discurso freyriano A proximidade foi até o extremo do negro ficar com duas mãos direitas e o branco com duas esquerdas FREYRE 1933 2006 p 518 A aproximação da convivência familiar ficava bem distante de uma visão tradicional de cativeiro Nesse discurso os negros são escravos mas a escravidão negra não teria sido como a escravidão pensada em termos de cativeiro ferros açoites nos negros como a noite51 A aristocracia patriarcal brasileira do açúcar não foi apesar dos paralelos com a da região do Deep South 52 como a aristocracia latifundiária austera e distante 50 Tanto o era que Freyre apontou que a mortalidade infantil negra importava muito em termos econômicos pesando na balança dos senhores da casagrande como perca de capital FREYRE 1933 2006 p 446 51 Parafraseamos aqui o poema O navio negreiro Tragédia no mar de Castro Alves 18471871 Tinir de ferros estalar de açoite Legiões de homens negros como a noite Horrendos a dançar ALVES 2007 p 98 Original 1883 edição póstuma 52 Região onde o regime patriarcal de economia criou quase o mesmo tipo de aristocrata e de casa grande quase o mesmo tipo de escravo que no Norte do Brasil e em certos trechos do sul O regime econômico de produção o da escravidão e da monocultura dominando a diversidade de clima de 42 estadunidense que teria se encastelado na casa senhorial Foi de quase mera formalidade a separação casagrandesenzala tamanha era a forma de aproximação das alcovas Era familiar a relação era próxima sexualmente era quase justaposta era de todo lugar um regime geral de relação benigna No dia da notada primeiro dia da moagem das canas nunca faltava o padre para benzer o engenho o trabalho iniciavase sob a benção da Igreja O sacerdote primeiro dizia a missa depois dirigiamse todos para o engenho os brancos debaixo de chapéus de sol lentos solenes senhoras gordas de mantilha Os negros contentes já pensando em seus batuques à noite Os moleques dando vivas e soltando foguetes O padre traçava cruzes no ar com o hissope aspergia as moendas com água benta muitos escravos fazendo questão de ser também salpicados pela água sagrada FREYRE 1933 2006 p 523 524 A aristocracia latifundiária escravagista do açúcar era sobretudo do que hoje é o Nordeste juntamente com os escravos negros sob a benção católica uma só face da forma social que foi aqui desenvolvida Processouse uma alegria uma harmoniosa relação racial dentro do escravismo brasileiro com os negros a dançar e a trabalhar Nos engenhos tanto nas plantações como dentro de casa nos tanques de bater roupa nas cozinhas lavando roupa enxugando prato fazendo doce pilando café nas cidades carregando sacos de açúcar pianos sofás de jacarandá de ioiôs brancos os negros trabalharam sempre cantando seus cantos de trabalho tanto os de xangô os de festa os de ninar menino pequeno encheram de alegria africana a vida brasileira FREYRE 1933 2006 p 551 É como se no sistema social o universo do afeto cotidiano do escravismo fosse mais importante que a constatação de sua subalternidade étnica política e econômica Família extensa e religião católica foram às instituições sociais reguladoras dessa dinâmica social histórica que no discurso de Freyre por meio da obra em questão estão como que equivalentes a forças que suavizaram relações raça de moral religiosa criou no sul dos Estados Unidos um tipo aristocrata mórbido franzino quase igual ao do Brasil nas maneiras nos vícios nos gostos e no próprio físico Os ingredientes diversos mas a mesma forma FREYRE 1933 2006 p 30 e 519 43 escravistas mais propriamente perversas típicas de relações de dominadordominado O eixo norteador que unifica essas duas instituições família extensa e igreja católica respectivamente foi o patriarcalismo As relações escravistas dentro desse sistema são interpretadas como benignas quando comparadas a outras formas de escravismo O regime brasileiro patriarcal foi bom para os escravos negros inseriuos na família visualizouos como pessoas como membros e não instrumentos Nessa interpretação o escravismo se torna quase meramente dado histórico para servir de tipologia ou categoria analítica Mera distinção de análise quase irrelevância frente à complexidade desse sistema e sua roupagem mais humana e patriarcalista O patriarcalismo amparou os escravos tanto que quando da ruptura da ordem escravista em 1888 que Freyre chegou a se referir como decâble de 88 houve uma piora nas condições sociais para os negros exescravos53 É justamente a ruptura ou o início da mesma no século XIX com o início do processo de independência 1822 e do período Imperial ou para usar a terminologia freyreana da decadência do patriarcado que modificou segundo sua óptica a relação senhorescravo as estáveis patriarcais e cristãs formas de escravismo aqui praticadas no sistema casa grandesenzala Era o início dos sobrados e mucambos Antes de adentrar na análise da escravidão em Sobrados Mucambos iremos analisar uma conferência que foi lida por Gilberto Freyre no ano de 1934 na Sociedade Felipe dOliveira publicada na Revista Lanterna Verde v 2 fev 1935 chamada O escravo nos anúncios de jornal do tempo do império que foi grandemente ampliada tornandose o livro O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX 196354 Esse texto é singular e bastante interessante neste 53 De modo que da antiga ordem econômica persiste a parte pior do ponto de vista do bemestar geral e das classes trabalhadoras desfeito em 88 1888 o patriarcalismo que até então amparou os escravos alimentouos com certa largueza socorreuos na velhice e na doença proporcionoulhes aos filhos oportunidades de acesso social FREYRE 1933 2006 p 51 Como já apontamos na presente dissertação essa recorrência temática da escravidão benigna também se ampara na ideia de assistencialismo ao escravo já esboçada no texto freyriano anterior de 1922 As santascasas as misericórdias as casas de caridade não tinham sectarismo nenhum suas portas estavam abertas para todos Nelas se exprimia o melhor de um sistema social que sendo patriarcal era também cristão FREYRE 1922 2009 p 109 54 1ª edição pela Imprensa Universitária 2ª edição pela Companhia Editora Nacional e Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais 1979 3ª edição pela Castelo Branco e Associados Propaganda 1984 e a 4ª edição revista e ampliada com fotos e de onde tiramos várias informações presentes constantes na nossa nota biográfica sobre G F da excelente biobliografia organizada por Edson Nery da 44 ponto do nosso trabalho Nele se encontram algumas ideias como a recorrente tese da escravidão benigna porém com a adição de análises mais ampliadas especialmente em relação ao corpo dos escravos suas marcas de nação suas tatuagens cicatrizes e deformações causadas por diversos motivos que são nesse momento da nossa análise imprescindíveis e incontornáveis haja vista nosso propósito de demonstrar a perspectiva freyriana sobre a escravidão negra55 Nesse texto a benignidade da escravidão é enfatizada novamente ou seja é uma em nossa interpretação constante do discurso freyriano A positivação da escravidão negra reiterada tendo como fundamento e isso é importante para o leitor entender principalmente os escritos dos viajantes estrangeiros que Freyre insistiu na totalidade dos textos dele consultados até aqui neste trabalho em que o autor os considera absolutamente idôneos56 imparciais e que testemunhariam a escravidão longe da falsidade da escravidão cruel dos brasilianistas FREYRE 1963 2010 p 39 É interessante que esses anúncios analisados em que as descrições pormenorizadas de tipos corpos e detalhes que poderiam ajudar na identificação eram anúncios de fuga Fugas estas que Freyre interpretou muito mais pela questão da proximidade ou não do escravo para com o senhor visto que os escravos domésticos fugiam menos por se sentirem mais próximos de suas sinhás e ioiôs FREYRE 1963 2010 p 69 Sobre os possíveis destinos quando dos traslados ÁfricaAmérica Freyre insistiu no texto que o Brasil era para os negros escravizados o melhor desses destinos FREYRE 1963 2010 p 72 Sobre o estudo da escravidão é pertinente citar que no texto existe uma consideração de grande importância na compreensão da visão do autor sobre a escravidão Fonseca e Gustavo Henrique Tuna presente nessa edição que vai do nascimento do autor em 1900 até 2009 pela editora Global 2010 edição que usamos na presente investigação 55 Podemos afirmar também a partir da leitura do texto outro pioneirismo de Freyre Esse texto é uma sociologia e antropologia do corpo muito antes da mesma ser um campo de investigação usual na academia 56 Uma interessante leitura sobre a forma como Gilberto Freyre leu esses viajantes se encontra na importante pesquisa de TUNA Gustavo Henrique Viagens e viajantes em Gilberto Freyre Dissertação de Mestrado em História CampinasSP Universidade Estadual de Campinas UNICAMP 2003 127 f Sobretudo em relação à leitura desses viajantes por Freyre sobre os escravos negros ver o capítulo 2 p 5982 45 Ao homem escravo como ao imigrante muito deve a humanidade em geral e o Brasil em particular É justo que os estudemos com o maior dos nossos carinhos Justo que procuremos reconstituir de um depois do outro a figura por vezes heroica embora obscura revivendo ao mesmo tempo seu drama e recompondo o seu passado FREYRE 1963 2010 p 74 Apesar do drama a escravidão é interpretada insistentemente como benigna Foi uma escravidão brasileira patriarcal católica e suave A história do Brasil afirmou Gilberto está também nos jornais E como essa história é até o fim do século XIX em grande parte a história do escravo explorado aliás com certa suavidade porque o Brasil nunca foi um país de extremismos tudo aqui tendendo para amolecerse em contemporizações a adocicarse em transigências pelo senhor de engenho em geral gordo um tanto mole com rompantes apenas de crueldade pela mulher também gorda às vezes obesa e pelo filho pela filha pelo capelão pelo capitãodomato e pelo feitor de engenho FREYRE 1963 2010 p 88 A benignidade era tanta que os escravos acompanhavam consoante Freyre o luto da família do senhor quando este morria visto as carinhosas relações entre brancos e negros FREYRE 1963 2010 p 131 Mesmo apontando que as deformações nos corpos dos escravos que superabundam nos jornais analisados sobretudo dois O Commércio do Rio de Janeiro e O Diário de Pernambuco eram oriundas dos castigos no seu discurso Freyre apontou que isso se aplicava mais aos atos dos fujões FREYRE 1963 2010 p 171 do que à aleatoriedade do sadismo opressor do senhor Os anúncios de jornais também enunciavam a saudade dos cafunés FREYRE 1963 2010 p 112 apontando o intimismo que seria a base da escravidão negra brasileira Intimismo que incorporava o escravo negro como membro da família fato que derivava do modelo escravocrático árabe57 que os portugueses no Brasil reeditaram nos trópicos FREYRE 1963 2010 p 175 176 O resultado foi a escravidão 57 Sobre a escravidão árabe praticada pelos portugueses ver SOUZA Jessé A SOCIOLOGIA DUAL DE ROBERTO DA MATTA Descobrindo nossos mistérios ou sistematizando nosso autoengano Revista Brasileira de Ciências Sociais Vol 16 N 45 fevereiro 2001 p 59 Sobre os árabes e os efeitos de sua invasão em Portugal a forte presença no Brasil e na miscigenação em Portugal ver respectivamente referências na obra do próprio Gilberto FREYRE 1933 2006 p 288299 46 benigna apontada pelos idôneos estrangeiros que redigiram suas impressões das relações entre senhores e escravos negros de forma objetiva E que sem desapego a essa mesma objetividade científica Freyre afirmou ser perfeitamente defensável a tese de uma escravidão majoritariamente benigna FREYRE 1963 2010 p 185 O critério patriarcalcristianizantemaometano de tratar o escravo como membro da família segundo Gilberto escaparia à análise marxista menos atenta a essas sensibilidades FREYRE 1963 2010 p 180 181 Sempre enfatizando a sua base argumentativa e as suas fontes históricas ele defendeu serem Vários porém os depoimentos de estrangeiros idôneos insistase no valor desses depoimentos que nos permitem entrever no Brasil patriarcal um tipo de convivência senhorescravo como tendo sido de modo geral admitidas exceções de modo algum desprezíveis relativamente benigna FREYRE 1963 2010 p 177 É importante fazer uma observação nesse ponto da nossa pesquisa sobre esse texto em questão É que contraditoriamente à ideia de benignidade da escravidão os vários corpos mutilados os cegos coxos que andavam empurrando a perna sem dedos ou partes inteiras de membros com sinais de açoite as escoriações salvo as tatuagens e outras auto e mutilações feitas pelos próprios negros antes na África e depois aqui no Brasil as chamadas marcas de nação que indicavam a procedência do negro escravizado que vinha de várias regiões do continente africano apontam paradoxalmente para o aspecto ou lado mais cruel violento e sádico da escravidão negra Os detalhes mostram negros machucados mutilados com doenças e deficiências físicas causadas artificialmente pelo trabalho e pelo excesso dele inclusive os de casa os escravos domésticos que também fugiam ainda que em menor número segundo Freyre pela afetividade maior com o senhor Retomando entretanto a continuação do estudo de 1933 sobre o texto Sobrados Mucambos Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano são necessárias algumas considerações antes de adentrarmos no texto e discutir em que medida a questão da forma de análise da escravidão tem uma modificação ou seja apresenta uma leve nuance no discurso de Freyre até então 47 de insistência numa escravidão benigna embora a reafirme em certa medida porém declinando juntamente com o enfraquecimento de sua base social de sustentação o patriarcado O texto foi publicado primeiramente em 1936 uma obra para ser lida como extensão da obra de 1933 Introdução à histórica da sociedade patriarcal no Brasil 2 uma continuação agora versando sobre o Brasil Império O subtítulo da obra Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano é importante para a investigação aqui em curso por dois motivos Primeiro que entre outras coisas já enseja a ideia de modificações nas relações entre senhores e escravos Segundo dentre essas modificações a principal neste ponto de nosso trabalho é a enfática defesa da ruptura de uma ordem em que a escravidão era benigna para um acirramento das relações de oposição entre raças A escravidão agora sofrerá crescente oposição das ideias liberais inglesas a decadência do patriarcalismo que amparava os escravos negros terá forte influência negativa para os mesmos pois o patriarcalismo teria sofrido a intrusão de formas sociais mais burguesas em que a ordem escravista brasileira boa e católica teria perdido suas íntimas relações e tornarase cada vez mais impessoal econômica e distante Outro ponto interessante é a relevante e substancialmente grande modificação do texto original publicado em 1936 pela Companhia Editora Nacional volume 64 da Coleção Brasiliana Além de acréscimos nos capítulos primitivos Freyre no prefácio à segunda edição do texto em 1951 afirmou que houve a adição de cinco capítulos inteiramente novos o que de certa forma segundo o próprio autor faz do texto de 1951 um material novo frente ao de 1936 Porém essas adições não interferem em geral no problema aqui tratado A escravidão negra nesse texto nessa parte da unidade discursiva freyriana pode ser compreendida em duas perspectivas A primeira é que o tema geral é o da decadência do patriarcado ponto de coesão importante do discurso freyriano sobre a escravidão benigna interpretação apontada até este ponto de nosso trabalho Tal decadência advinda com a família Real Portuguesa 1808 faz parte da intrusão do Estado da burocracia nas relações tipicamente familiares do senhor de engenho quase déspota nos trópicos Era a intrusão da rua sobre a casa do urbano do bacharel na maioria das vezes filho do senhor rural contrastando também aqui paifilho 48 homemmulher ideias estrangeiras com a tradição etc frente ao rural do patriarca FREYRE 1936 2004 Tal intrusão também significou modificações nas relações senhorescravo Apesar de que comparado por exemplo ao seu texto de 1922 já trabalhado nesta investigação vemos certa contradição uma vez que no texto de 1922 a escravidão é vista com benignidade quase inexistindo conflitos e no texto de 19361951 ambos examinando o Brasil Império oitocentista existe uma análise diferente uma variação portanto da unidade discursiva freyriana pois a decadência patriarcal acirrou para Gilberto as tensões eclodindo disso conflitos que até então eram suavizados pelo patriarcalismo familístico do sistema casagrandesenzala Segundo que seguindo a decadência do patriarcalismo ocorreu a despersonalização do próprio escravo negro À despersonalização das relações entre senhores e escravos é que principalmente se deve atribuir a insatisfação da maioria de africanos ou descendentes de africanos no Brasil com o seu estado de escravos ou de servos E essa despersonalização tendo se verificado desde que aqui se expandiram os primeiros engenhos em grandes fábricas com centenas e não apenas de dezenas de operáriosescravos a seu serviço acentuouse com a exploração das minas e já no século XIX com as frequentes vendas de escravos da Bahia e do Nordeste para o Sul ou para o extremo Norte para cafezais e plantações de caucho exploradas às vezes por senhores ausentes ou por homens ávidos de fortuna rápida E nem sempre por senhores do antigo feitio patriarcal FREYRE 1936 2004 p 659 660 É como se a articulação entre brancos e negros via patriarcado ao se esgarçar e aos poucos se diluir fizesse com que os negros escravizados transplantados sobretudo para áreas de menos feitio patriarcal fossem inseridos em outra lógica em que a benignidade vai assumindo outra forma a de exploração impiedosa dos senhores ávidos por ganho fácil impessoais distantes longe da figura paternal e fraterna do senhor de engenho Aqui também se percebe a perda crescente da 49 hegemonia do Nordeste58 frente às outras regiões do país no desenrolar do oitocentos imperial Não que a despersonalização tivesse apagado a relação amistosa porém foi para Freyre poderoso instrumento de fomento a revolta dos escravos negros Dentro dessa perspectiva de análise é como se a base de sustentação da suposta benignidade tivesse sido seriamente abalada com a intrusão de uma lógica alheia estranha Sobrados e mucambos também de certa forma narrou o início da implementação da lógica capitalista no Brasil ainda que em simbiose quando não conflito aberto especialmente entre o bacharel de cartola e citadino frente ao patriarca rural levado em palaquins redes onde os senhores andavam carregadas por escravos e com um sádico apreço pelo mandonismo que desconhecia até então limites com a lógica rural do pater famílias senhor da casagrande de engenho mal acomodado ao sobrado porém quase empurrado para ele O senhor e o negro foram se tornando extremos antagônicos em termos de raça e de classe no século XIX FREYRE 1936 2004 p 30 O mulato foi quem amoleceu tal antagonismo caracterizando esse momento como o período da progressiva diferenciação da menor absorção do negro escravo pelo proprietário crescendo o individualismo do negro FREYRE 1936 2004 p 126 O escravo de casa família foi sendo deslocado para fora rua sendo ou ficando cada vez mais exposto às veleidades do tratamento impessoal como peça escravos máquinas situação propícia para o desenvolvimento cada vez maior de conflitos Dois tipos nitidamente diferenciados de escravos o que se conservara no serviço das casas de portas a dentro e o que se destinava à rua aos serviços de rua a vender na rua Aquele em contato com os brancos dos sobrados como se fosse pessoa da família O outro menos pessoa da casa que indivíduo exposto aos contatos degradantes da rua FREYRE 1936 2004 p 155 58 Sobre isto é interessante citar novamente o trabalho do historiador Durval Muniz em que o autor pensando o discurso freyriano como instituição sociológica do Nordeste argumentou que a perda palatina da hegemonia econômicopolítica da região faz parte do engenho antimoderno e a análise de Freyre estaria nesse sentido ao enfatizar a tradição patriarcal da sociedade açucareira e a benignidade desse mesmo patriarcalismo frente à modernidade burguesa despersonalizante Com efeito Por isso a sociedade patriarcal será tomada como exemplo de sociabilidade em que o conflito seria superado as relações de poder estariam baseadas entre pessoas e não entre classes grupos ou instituições sociais ALBUQUERQUE JÚNIOR 2011 p 113 50 As fugas de escravos foram se tornando cada vez mais frequentes à medida que as relações patriarcais iam declinando Os negros fugindo de engenhocas e sobretudo das cidades para os grandes engenhos com fama de paternalmente bons FREYRE 1936 2004 p 158 O escravo negro foi o elemento passivo na casa grande em virtude do tratamento benigno que lá recebia nos bons tempos patriarcais que a aristocracia patriarcal lhe proporcionara Afinal os sentimentos do senhor se direcionavam invariavelmente pela proximidade e a consequente afetividade maior com a escravaria doméstica Esses sentimentos o senhor patriarcal no Brasil limitavase a dispensá los àqueles escravos ou servos que considerava uma espécie de pessoas de casa mãespretas mucamas malungos E aos animais que personalizava em parentes as comadrescabras por exemplo Pelos outros sua indiferença era tal que confundiase às vezes com crueldade FREYRE 1936 2004 p 626 Esse sentimentalismo59 se dispersava à medida que as relações pessoais se tornavam relações impessoais à proporção que a família patriarcal perdia terreno para o estado burocrata em que por exemplo o agrarismo oligárquico do senhor de engenho rural da senzala fora permutado pelo mercado pelo banco pelo bacharel citadino de sobrado e o escravo amparado pessoa de casa substituído pelo pária de usina sendo reduzido aos poucos à máquina e por ela às vezes substituído tornandoo obsoleto FREYRE 1936 2004 p 622 669 679 681 De considerados 59 Duramente criticado pelo historiador marxista Jacob Gorender 19232013 por exemplo que chamou a tese de distorção em que segundo ele Freyre teria levado ao extremo a proximidade senhorescravo a ponto de vêla como benignidade GORENDER 2016 p 308 309 Ao fato de Freyre atribuir claramente uma hierarquia de tratamento no que concerne aos tipos domésticos e do eito de escravos Gorender afirmou Tomemos porém o caso das amas de leite que às vezes assumiam a figura da mãepreta nas casas senhoriais Muitas mãespretas tiveram como escreveu Gilberto Freyre carinho maternal pelos filhos das senhoras brancas que amamentaram e ajudaram criar dispensando desse esforço as débeis e prolíficas iaiás Contudo se invertemos o enfoque poderíamos lembrar a crueldade do senhor que obrigava a escrava a abandonar o próprio filho na roda dos expostos a fim de aproveitála como ama de leite do filho dele senhor ou alugála para lhe render 500 ou 600000 apenas num ano à altura de 1871 GORENDER 2016 p 506 507 Gorender afirmou que a visão de Gilberto não ultrapassa a Casagrande tendo a Senzala apenas vagamente como pano de fundo GORENDER 2016 p 309 afirmando que O escravismo colonial que inegavelmente conteve aspectos patriarcais variáveis porém não predominantes se converteu sob tal prisma em escravismo patriarcal Mas a articulação de um escravismo patriarcal brasileiro familista e benevolente para os escravos não lida afinal de contas senão com uns poucos fiapos adrede pinçados do tecido sócio histórico GORENDER 2016 p 509 51 afilhados60 a trabalhadores sem nome rosto ou afinidade dentro da estrutura de parentesco patriarcal em declínio61 De parente da senzala transformado em pária de mucambo FREYRE 1936 2004 p 502 Era a decadência do patriarcado que tanto tratou bem os negros escravos pois São várias as evidências de que escravo africano ou descendente de africano no Brasil sempre que tratado paternalmente por senhor cuja superioridade social e de cultura ele reconhecesse foi indivíduo mais ou menos conformado com seu status Raras parecem ter sido as exceções O negro com que SaintHilaire conversou em Minas Gerais e que confessou ao francês estar satisfeito com sua vida de escravo parece que deve ser considerado limpidamente representativo ou típico da sua época isto é dos tratados paternalmente pelos senhores Dos tratados como pessoas e não como animais ou como máquinas de produção FREYRE 1936 2004 p 659 Tudo isso quebrado pelo declínio do patriarcado pela difusão das ideias abolicionistas pelas perturbadoras novas relações sociais pela Lei de Terras 1850 que dificultava o acesso à terra ao negro a brecha camponesa62 pela intrusão da lógica impessoal e burguesa pela ainda que lenta mas já evidente em alguns traços forma capitalista de produção a se consolidar com o centralismo do imperador cercado de bacharéis com as novas ideias europeias de modernização via capitalismo e urbanização com que haviam entrado em contato em seus estudos em Paris ou Cambridge Era a decadência patriarcal a ferir de morte a escravidão benigna63 a despertar ódios a acirrar as tensões entre senhores e escravos 60 Foram numerosos os escravos que no sistema patriarcal brasileiro gozaram da situação de afilhados de senhores de casasgrandes e de sobrados e foram por este status especial beneficiados em suas pessoas e particularmente protegidos em saúde em seu vestuário em sua educação FREYRE 1936 2004 p 407 61 O golpe final que define a decadência do patriarcalismo foi a abolição da escravatura e sua consequência a proclamação da República BASTOS 2006 p 93 Ainda segundo a autora as relações antes pessoais se transforam em impessoais quando o engenho foi substituído pela usina e o escravo em trabalhador livre sem rosto o que os teria levado à crescente insatisfação e insubordinação derivada dessa despersonalização BASTOS 2006 p 97 itálicos da autora 62 Sobre isto a análise do historiador Ciro Flamarion S Cardoso difere fundamentalmente do exame do já citado Jacob Gorender Ver CARDOSO Ciro Flamarion S Escravo ou camponês O protocampesinato negro nas Américas Ed São Paulo Brasiliense 1987 p 107 Sobre a polêmica mais geral dos dois autores em questão ver o texto de apresentação de Mario Maestri à edição usada neste trabalho do texto já citado GORENDER 2016 p 3441 63 Sobre isto podemos perceber a crítica do historiador já citado Jaime Pinsky Estou convicto de que certos trabalhos que resgatam relações pseudoharmoniosas entre senhores e escravos são 52 Reiteramos que nossa intenção neste primeiro ponto é trabalhar com os textos de Freyre dos anos 1920 e sobretudo dos anos 1930 buscando na unidade discursiva freyriana apontar que a escravidão patriarcal teria engendrado uma relação mais branda para usar um termo do próprio Gilberto benigna e a decadência patriarcal teria sido para o autor o fator principal de ruptura dessa mesma benignidade despersonalizadora do escravo negro Sem dúvida uma análise que para além de possíveis aspectos criticáveis foi inovadora em sua época64 O mundo que a escravidão patriarcal criou para Gilberto foi uma forma de civilização que dentro das possibilidades e dos aspectos próprios do escravismo como o cativeiro os maustratos e as torturas tornouse uma maneira de vida coletiva em que a harmonia social entre senhores e escravos teria sido a regra e não a exceção histórica Nesse ponto a visão de um escravismo benigno tem na realidade histórica uma instituição discursiva que pode ser lida como uma construção que nos anos 1930 contribuiu para dar forma a uma narrativa sobre o Brasil buscandose representar a sociedade brasileira como historicamente avessa a conflitos e harmônica apesar da hierarquia do engenho Baseado como demonstramos na antropologia cultural norteamericana o autor interpretou o fenômeno da escravidão buscando ressaltar sua positividade A forma de análise baseada em fontes como os relatos de viajantes estrangeiros dos mais idôneos fez o autor entender a escravidão negra brasileira principalmente a doméstica dos engenhos menos como fator de produção e mais como amálgama cultural A sexualidade e a miscigenação racial da casagrande penetrando e sendo penetrada pela senzala agiram como os verdadeiros corretivos entre os extremos que para Freyre teriam se mantido quase incomunicáveis sem esse intenso equívocos que encobrem a verdadeira essência da escravidão seu caráter cruel e sua influência perversa na formação de nossa sociedade PINSKY 2018 p 8 64 Gilberto Freyre argumentou contra a teoria racista e fez notáveis descobertas sobre as raízes africanas da cultura brasileira mérito a respeito da qual a crítica da esquerda tem sido omissa Mas isto veio conjugado a duas teses fundamentais a do caráter patriarcal excepcionalmente benigno da escravidão lusobrasileira e da vigência da democracia racial em nossa sociedade GORENDER 1990 p 13 53 intercurso sexual entre os senhores e suas molecas O histórico patriarcalismo65 foi menos violência e mais mistura uma realidade que Freyre identificou como singularidade da nossa história nacional Em síntese frisemos aqui que neste estudo de história intelectual e história social das ideias em que buscamos principalmente o diálogo e a comparação entre a unidade discursiva freyriana dos anos 192030 e a unidade discursiva de Florestan Fernandes dos anos 195060 optamos por apontar as críticas a Gilberto e seguiremos desse modo em relação a Florestan advindas de historiadores da escravidão apenas de forma marginal sobretudo em notas Dito isto cabe no momento após nota biográfica iniciarmos a análise da obra florestaneana a partir daqui para que o leitor veja a diferença através de uma mudança na interpretação sobre a escravidão negra que ocorre nesse período a partir dos anos 195060 13 O cientista e revolucionário Eu nunca teria sido o sociólogo em que me converti sem o meu passado e sem a socialização pré e extraescolar que recebi através das duras lições da vida66 Duras lições pobreza trabalho infantil marginalização social na São Paulo dos anos 192030 essas são algumas características expostas no trecho acima que se referem bem à trajetória de Florestan Fernandes O cientista social brasileiro militante e engajado que foi Florestan nasceu em um cortiço no ano de 1920 Sua trajetória de vida marcou profundamente sua forma de analisar e interpretar a sociedade brasileira A visão aguçada do social percebendo as contradições e a marginalização da maioria foi uma marca sempre presente em seus textos e reflete também além das escolhas teóricas como a própria experiência de vida de Florestan diferiu frontalmente da de Gilberto Freyre 65 É importante notar aqui segundo Jessé Souza que Patriarcalismo para ele Freyre tem a ver com o fato de que não existem limites à autoridade pessoal do senhor de terras e escravos SOUZA 2017 p 51 66 1 Nota biográfica In IANNI Octávio Florestan Fernandes Ed São Paulo Ática 2008 p 8 Coleção Grandes cientistas sociais 54 Florestan foi um sociólogo singular em vários sentidos Sua história de vida que iremos aqui resumir em termos de apresentação ao leitor mostra que o autor em questão teve uma peculiar trajetória como intelectual militante e cientista social A opção pelos objetos de estudo o rigor metodológico as formas sempre imperantes em seus textos de demonstrar as pontas soltas os marginalizados ou os que ele caracterizou como historicamente excluídos em nossa interpretação está diretamente associada à sua vida pessoal de morador de cortiço de trabalhador infantil da ausência de escolarização contínua e de qualidade de ter sido olhado como um menino de rua ou como um colega de sala de segunda classe na USP enfim de pessoa que vinha de baixo porém contra as expectativas de muitos que superou barreiras sociais como poucos na história intelectual brasileira do século XX Iremos nos concentrar aqui no aspecto mais propriamente intelectual de Florestan na sua formação como pesquisador e professor Entretanto alguns momentos de sua vida pessoal foram segundo os biógrafos que consultamos decisivos no processo de constituição do cientista e revolucionário Na história intelectual brasileira o nome de Florestan Fernandes tem uma relevância considerável sem dúvida enorme para os pesquisadores sobre escravidão conflitos étnicos e processos sociais em que a crítica ao sistema econômico e político ganha relevo Porém o que poucos sabem é que a vida de Florestan foi ela mesma um processo complexo e contraditório assim como a história brasileira Florestan Fernandes nasceu na cidade de São Paulo no dia 22 de julho de 1920 Pai desconhecido sua mãe era Maria Fernandes imigrante portuguesa A infância de Florestan lhe fora roubada no sentido de que teve de trabalhar em diversos ofícios para ajudar no seu sustento e no de sua mãe O seu primeiro serviço foi limpando roupas numa barbearia aos sete anos apenas depois passou para o ofício de engraxate Foi nesse período como engraxate que ele adentrou na experiência social direta como menino de rua como mais um dentre os que tinham pela imperiosa necessidade material de abdicar dos estudos para sobreviver A aprendizagem escolar formal de acordo com Laurez Cerqueira em Florestan Fernandes vida e obra 2004 antes do período da USP foi a seguinte 1 O curso primário incompleto até o terceiro ano Grupo Escolar Maria José Bela Vista São Paulo 2 Curso secundário e Colegial Curso de Madureza sob o artigo 100 Ginásio Riachuelo anos letivos de 1938 1939 e 1940 CERQUEIRA 2004 p 179 55 Durante esse período sobretudo no intervalo entre o primário e o ginásio Florestan dentre outros ofícios foi garçom de um restaurante chamado Bidu lá foi convencido a retornar a estudar pelos próprios clientes em especial um jornalista que ficara admirado com aquele garçom que lia atrás do balcão CERQUEIRA 2004 p 27 Fundada em 1934 a Universidade de São Paulo importou vários intelectuais estrangeiros para compor seu quadro docente principalmente franceses e estadunidenses67 Na universidade foi fundada a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras e a Escola Livre de Sociologia e Política O ensino era ministrado nos moldes europeus a língua dos professores era mantida e para o acompanhamento dos cursos e das aulas assim como quando do processo seletivo para o ingresso se subentendia o conhecimento prévio de idiomas como alemão francês e inglês e de textos de edições estrangeiras68 O que foi uma barreira intransponível para muitos Florestan apesar da formação escolar precária e assistemática superou e participou da seleção Assim após estudar os caminhos possíveis Florestan ingressa em 1941 aos 21 anos no curso de ciências sociais da Faculdade Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo FFCLUSP obtendo sucesso num difícil processo seletivo A banca examinadora era composta pelos professores franceses Roger Bastide e Paul Bastide Sorteado os pontos os candidatos tinham de comentar os assuntos e responder às perguntas da banca Para Florestan foi sorteado o trecho de um livro de Émile Durkheim o pai da sociologia Como o ponto e as perguntas eram em francês Florestan que mal lia nesta língua pediu aos professores para fazer a prova em português Ainda que surpresos diante do insólito pedido Roger e Paul decidem aceitar OLIVEIRA 2010 p 1516 Após o ingresso como um dos seis aprovados a que concorreram vinte e nove candidatos Florestan iniciou sua vida estudantil na USP tendo ainda que dividir seu tempo de estudo com o trabalho agora como vendedor de produtos farmacêuticos A 67 Figuras como o historiador francês Fernando Braudel 19021985 e o sociólogo estadunidense Donald Pierson 19001995 que foi professor e depois colega docente de Florestan formaram o primeiro corpo docente da área das ciências humanas na USP 68 Sobre a fundação da USP e da trajetória das ciências sociais no Brasil ver JACKSON Luiz Carlos Gerações pioneiras na sociologia paulista 19341969 Tempo social Revista de sociologia da USP v 19 n 1 2007 p 115130 E MICELI Sergio 1989 Por uma sociologia das ciências sociais In org História das Ciências Sociais no Brasil São Paulo VérticeIdespFinep vol 1 56 amizade com o professor Roger Bastide 18981974 e principalmente com Fernando de Azevedo 18941974 foi determinante para a sua carreira acadêmica69 Durante os anos 1940 paralelo ao trabalho e aos estudos Florestan militou em uma organização trotskista o chamado Partido Socialista Revolucionário PSR porém a militância foi efêmera e o autor optou por se dedicar exclusivamente às pesquisas na universidade CERQUEIRA 2004 p 4243 Nos anos de 1946 e 1947 Florestan estudou na Escola Livre de Sociologia e Política da USP sob a orientação de Herbert Baldus 18991970 Estudou e apresentou para a obtenção do título de mestre em Antropologia o texto A organização social dos Tupinambá em que investigou mediante os relatos dos cronistas seiscentistas a extinta sociedade tupinambá que causou admiração e espanto em antropólogos de renome como LéviStrauss 1908200970 Seguiuse a esse trabalho o texto A função social da guerra entre os Tupinambá defendido em 1952 como tese de doutoramento em Sociologia dessa vez sob orientação de Fernando de Azevedo Esse período de produção dos textos de pósgraduação tem grande relevância pois foi no estudo dos indígenas que já emergia o sociólogo 69 Antônio Candido outro estudante da recém formada USP em artigo O jovem Florestan afirmou sobre esse período que Tendo sido estudante notável quando se formou mais de um professor quis têlo como assistente Penso que entre eles estava Roger Bastide que sempre o admirou e estimou e caso tivesse vaga no momento o indicaria Certamente estava Paul Hugon de Economia Política matéria na qual Florestan brilhara inclusive analisando a obra pesada de Simiand sobre a moeda Mas ele acabou aceitando o convite de Fernando de Azevedo que o indicou para a vaga de 2 assistente da Cadeira de Sociologia II pois o colega que exercia esta função José Francisco de Camargo depois de titular e diretor da Faculdade de Ciências Econômicas preferira demitirse a fim de concorrer a uma cadeira de sociologia de ensino normal cargo que naquele tempo era não apenas melhor remunerado mas tinha a vantagem de dar acesso a uma carreira com aposentadoria assegurada A propósito convém esclarecer que o assistente da Universidade era um funcionário sem qualquer garantia nomeado por indicação do professor e demissível a qualquer momento por simples comunicação escrita dele sem necessidade sequer de justificativa Por isso não tínhamos carreira e éramos assistentes dos professores mais do que da instituição o que seja dito não era ruim se o professor fosse bom A partir de 1944 portanto Florestan Fernandes e eu fomos os dois assistentes de Fernando de Azevedo na Cadeira de Sociologia II CANDIDO 1996 p 11 70 Claude LéviStrauss antropólogo francês que foi professor de Sociologia em São Paulo ao tomar conhecimento do livro disse que Florestan havia realizado verdadeira façanha Foi categórico disse tratarse de uma obra que havia revolucionado a Antropologia CERQUEIRA 2004 p 48 57 comprometido com a reconstrução histórica sob um critério científico e mais formal71 que não correspondia com a forma mais ensaística72 de Gilberto Freyre por exemplo Com a cátedra de Sociologia I vaga em 1953 após o retorno de Roger Bastide para a França Florestan alcançou o cargo de professor livredocente com o texto Ensaio sobre o método de interpretação funcionalista na sociologia Nos anos que se seguiram até 1964 o autor enquanto professor e pesquisador orientou e organizou uma série de pesquisas do que comumente se chama de Escola Paulista de Sociologia73 Em 1964 com A integração do negro na sociedade de classes tornou se catedrático na USP sendo compulsoriamente aposentado da universidade pelo regime militar chegando a ser perseguido e preso em 1964 por ser crítico feroz do regime partindo para o exílio em 196974 Exilado no Canadá foi professor titular da Universidade de Toronto até 197275 quando volta ao Brasil Não retornou porém à USP e sim a convite de Dom Paulo Evaristo Arns 19212016 para a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Na PUC Florestan daria um curso que se tornaria célebre sobre a Revolução Cubana e que indicava dentre outras coisas que o marxismo já operava na obra do autor de uma forma mais clara e preponderante o que poderia corresponder a uma ruptura epistemológica com as análises mais funcionalistas dos anos 1950 e 1960 FREITAG 2005 A década de 1980 foi de intensa militância política e de engajamento partidário Se o cientista austero preocupado com um projeto de racionalização baseado numa cientificidade rígida da análise sociológica dos anos 1950 e 1960 não se comprometia 71 Embora tenhamos que ressaltar que a antropologia praticada por Florestan apesar dos méritos inegáveis também deixou aspectos obscuros quando não incongruentes Sobre isto ver LEIRNER Pierre C A antropologia que Florestan esqueceu Novos estudos CEBRAP v 36 n 108 2007 P 159 180 72 Sobre o ensaísmo predominante antes da USP e seu projeto cientificista mais formal após a sua fundação ver JACKSON Luiz Carlos Tensões e disputas na sociologia paulista 19401970 Revista Brasileira de Ciências Sociais Vol 22 n 65 2007 p 35 73 Dentre os membros dessa escola e orientandos de Florestan se destacaram Octavio Ianni 1926 2004 e Fernando Henrique Cardoso 1931 Os textos de tese de doutoramento de ambos já refletem a mudança na forma de analisar a escravidão REIS 2006 p 210 211 Iremos apontar isso mais adiante 74 Em artigo intitulado Florestan Fernandes revisitado Bárbara Freitag apontou que No início de 1969 o sociólogo em questão perdeu sua cátedra de sociologia na USP com sua aposentadoria compulsória pelo regime que se instaurou com o Golpe militar de 1964 e o AI5 de 1968 FREITAG 2005 p 231 75 O que destaca o reconhecimento internacional do autor Sobre isso e a carreira de Florestan em geral ver GARCIA Sylvia G Destino ímpar sobre a formação de Florestan Fernandes Ed Editora 34 São Paulo 2002 58 com uma forma de sociedade diferente e nem com a luta para a instituição da mesma no caso do socialismo Florestan deu um passo e abraçou a causa de forma evidente quando se filiou ao Partido dos Trabalhadores PT no início dos anos 1980 e elegendose já em 1986 para a Assembleia Constituinte de 198876 Reeleito para um segundo mandato Florestan inicia a década de 1990 com a saúde bastante debilitada Uma transfusão de sangue contaminado em 1972 já o tinha feito contrair uma hepatiteC Assim como Gilberto Freyre Florestan não terminou sua vida praticamente como um inválido pois participava da vida parlamentar da atividade jornalística escrevendo artigos em jornais e redigindo textos de sociologia com a densidade característica de toda a sua trajetória intelectual que primou pela exatidão pela bibliografia extensa notas e mais notas explicativas e por um estilo particularmente denso porém apaixonado e defensor aguerrido dos excluídos Contudo após um transplante de fígado Seis dias depois do transplante no dia 10 de agosto de 1995 na fase de recuperação Florestan faleceu por descuido da equipe médica vítima de uma embolia provocada pela entrada de uma imensa quantidade de ar em vez de sangue nos vasos sanguíneos dos pulmões coração e cérebro CERQUEIRA 2004 p 173 Era o fim de uma trajetória de vida e de produção acadêmica marcante na história intelectual brasileira do século XX Paradoxalmente um homem que tanto acreditava na ciência morreu em virtude de um erro de cientistas Um socialista que combinava paixão e denúncia com método e densidade interpretativa em seus textos Morria assim de forma banal o cientista e revolucionário inovador uma inspiração para toda uma geração e que abriu fronteiras e perspectivas novas e variadas sobre a análise de temas diversos da formação nacional dentre eles destacaremos a seguir o tema da escravidão negra 76 A partir desse momento como parte de sua própria noção de tarefas da inteligência se pôs a serviço na Assembleia Constituinte a trabalhar intensamente sobre a questão da educação básica gratuita e pública SEREZA 2005 59 14 O pragmatismo econômico e a reiteração da violência No texto Brancos e negros em São Paulo 1955 teve início de forma sistemática a análise da escravidão negra como um objeto de investigação por parte de Florestan Tal estudo que chegou a ele por meio de uma pesquisa encomendada sobre relações raciais no Brasil sendo solicitada a Roger Bastide que prontamente indicou seu assistente na cadeira de Sociologia I da USP77 tem uma dupla raiz tanto uma petição da revista Anhembi como um pedido da Unesco intermediado pelo antropólogo Alfred Métraux 19021963 que em 1951 foi incumbido da missão pela instituição internacional em questão de investigar conflitos étnicos no mundo pós guerra mundial78 A ideia da Unesco era apresentar tendo o Brasil como um laboratório o país como um símbolo da harmonia racial em contraste sobretudo com as relações de conflito étnicoracial vigentes em outras sociedades79 Em termos de método o contraste com a forma de análise freyriana dos anos 1930 é evidente e o destacamos aqui em duas perspectivas A primeira é o largo uso dos censos das fontes estatísticas dos fatores quantitativos no sentido de categorizar de maneira científica tendo em vista o projeto científico desse grupo da USP as formas de exclusão do negro escravo A segunda é o modo de interpretar a escravidão que priorizou e enfatizou o lado econômico escravidão mercantil e 77 Sobre isto ver Capítulo 4 A pesquisa de Roger Bastide e Florestan Fernandes In PRAXEDES Rosângela Rosa Projeto UNESCO quatro propostas para a questão racial no Brasil Tese de doutorado em Sociologia São Paulo Pontifícia Universidade Católica PUCSP 2012 p 119167 No capítulo em questão a autora trata de forma detalhada da pesquisa encomendada pela Unesco a Roger Bastide que associou Florestan ao projeto e como o resultado dessa pesquisa foi na contramão do pretendido pela instituição 78 Fernando Henrique Cardoso que chegou a colaborar como um dos assistentes de pesquisa na época em texto introdutório Uma Pesquisa Impactante à edição utilizada neste trabalho do livro de Bastide e Florestan afirmou sobre isso que Foi nesse contexto que o então diretor de Ciências Sociais da Unesco Alfred Métraux chegou a São Paulo com a idéia sic de se fazer uma pesquisa sobre contacto sic interétnico no Brasil Os primeiros passos do estudo na cidade de São Paulo já haviam sido dados graças ao referido patrocínio da revista Anhembi anterior a proposta da Unesco BASTIDE FLORESTAN 1955 2008 p10 79 Lilia Moritz Schwarcz afirmou sobre isso que O consenso momentâneo só pode ser entendido portanto levandose em conta o contexto do pósguerra sendo que a crítica alcançava ainda a persistência do racismo nos Estados Unidos e na África do Sul bem como os novos problemas criados pela descolonização na África e na Ásia É fato que a instituição não desconhecia as desigualdades sociais existentes no país mas é evidente também que confiante nas análises de Freyre e Pierson a Unesco alimentava o propósito de usar o caso brasileiro como material de propaganda e com esse objeto inaugurou o Programa de pesquisas sobre relações raciais no Brasil FERNANDES 1972 2007 p 14 60 reiterou as formas discriminatórias e a exclusão do escravo e principalmente a violência legitimada por intermédios oficiais como a legislação vigente Os textos de Florestan nesse livro80 em coautoria com Bastide são claros no sentido de apontar o caráter econômico ou o fundamento pecuniário da escravidão negra e do caráter exploratório desse tipo de relação social Os africanos transplantados como escravos para a América viram a sua vida e o seu destino associarse a um terrível sistema de exploração do homem pelo homem em que não contavam senão como e enquanto instrumento de trabalho e capital a substituição do escravo indígena pelo escravo negro africano ou crioulo adquiria o caráter de um imperativo econômico BASTIDE FERNANDES 1955 2008 p 27 35 Itálicos do autor A interpretação da escravidão negra na perspectiva de Florestan se difere frontalmente da visão do patriarcalismo benigno de Freyre O escravo é um instrumento de produção pois a escravidão como instituição social se articula dinamicamente com o sistema econômico de que fazia parte se era por ele determinada reagia sobre ele por sua vez e o determinava BASTIDE FERNANDES 1955 2008 p 42 Como instrumento de trabalho e capital o escravo foi visto por ele não como pessoa de casa ou da família mas sim como uma peça numa engrenagem maior da produção social da existência Nessa sociedade estamental ele foi agente passivo rude instrumento de trabalho afinal sobre os ombros dos negros repousava o próprio funcionamento e as engrenagens que moviam o sistema econômico BASTIDE FERNANDES 1955 2008 p 53 A escravidão era a base de um regime de exploração e não de acomodação racial Os privilégios dos brancos que ocupavam todas as funções com alguma expressividade social são exemplares nessa perspectiva de análise O status do negro 80 No caso I Do Escravo ao Cidadão In BASTIDE Roger FERNANDES Florestan Brancos e Negros em São Paulo ensaio sociológico sobre aspectos da formação manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana 4 ed São Paulo Global 2008 p 2790 1955 II Cor e Estrutura Social em Mudança In BASTIDE Roger FERNANDES Florestan Brancos e Negros em São Paulo ensaio sociológico sobre aspectos da formação manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana 4 ed São Paulo Global 2008 p 91153 1955 e V A Luta contra o Preconceito de Cor In BASTIDE Roger FERNANDES Florestan Brancos e Negros em São Paulo ensaio sociológico sobre aspectos da formação manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana 4 ed São Paulo Global 2008 p 224264 1955 61 era inferior ao do branco isto é negritude e escravidão eram conectadas numa forma de relacionamento social que deformou o negro e era balizada por formas sociais violentas e humilhantes A escravidão negra sob o julgo patriarcal não era um paraíso étnico e sim um inferno para o escravo Nada de realização excepcional do português plástico como em Freyre Na perspectiva de Florestan um pragmatismo econômico operava fortemente quando da sua análise do fenômeno históricosocial da escravidão como ele mesmo apontou o recurso à escravidão se impôs como um imperativo de adaptação dos colonizadores à economia colonial na forma que ela deveria assumir nas regiões tropicais BASTIDE FERNANDES 1955 2008 p 92 A organização social do trabalho nada tinha de uma irmandade patriarcal o branco era senhor dono e dominante e o negro era seu escravo O esforço de Florestan em demonstrar o caráter econômico da escravidão negra de sua exploração pode ser compreendido de duas maneiras A primeira é que o sociólogo paulista estava preocupado em informar seus leitores numa visão mais pragmática e direta Sem os rodeios do culturalismo de Freyre e sim por meio de uma compreensão de orientação mais realista e de certa forma mais mecânica o autor se notabilizou em demonstrar que a escravidão foi um recurso de uma metrópole espoliativa e não uma ação nobre do espírito aventureiro lusitano São mercadores que lucram senhores que dominam e homens que exploram outros homens na escravidão A segunda é que o critério da cor ou seja a consciência racial que em Freyre como demonstramos antes praticamente inexistia tanto no português plástico como no mestiço era um fator fundamental de justificação e legitimação da escravidão Se as condições de convivência entre os senhores e os escravos favoreciam a retenção de um caráter físico que poderia por sua natureza exprimir simbolicamente a distância que existia entre as duas camadas sociais não é menos verdade que a própria dinâmica da sociedade de castas que eles constituíam dependia estreitamente de um elemento que servisse como fonte de justificação e de legitimação da conduta expoliativa e exclusivista dos senhores Esse elemento foi a cor que passou a indicar mais que uma diferença física ou uma desigualdade social a supremacia das raças brancas a inferioridade das raças negras e o direito natural dos membros 62 daquela de violarem o seu próprio código ético para explorar outros seres humanos O fundamento pecuniário quer da escravidão quer da exploração do escravo compeliu os brancos a procurar razões emocionais e morais da escravidão fora da relação senhorescravo BASTIDE FERNANDES 1955 2008 p 96 A escravidão estava ligada à seleção da cor como marca social e racial A alienação social da pessoa do negro se processou incialmente como alienação social da pessoa do escravo FERNANDES BASTIDE 1955 2008 p 96 Temas e ideias como alienação e consciência racial são frutos de outro momento dos discursos sociológicos brasileiros Nos anos 1940 e 1950 na USP o núcleo de estudos sociais em que Florestan falava ou seja seu lugar de produção intelectual já combinava a análise funcionalista81 com elementos do materialismo histórico embora o marxismo propriamente dito só viesse a operar claramente nos textos de Florestan no final dos anos 1960 FREITAG 1996 A análise da escravidão nesse momento vai de encontro com as aspirações intelectuais da chamada Escola Paulista de Sociologia da USP a de fundar um centro de estudos sociais no país que fosse ao mesmo tempo rigorosamente científico e crítico sem panfletagem partidária e também fizesse necessariamente a revisão e a crítica das análises anteriores sobre a escravidão negra82 O sistema de produção escravista fazia do escravo uma peça um capitalhumano subordinado a relações de produção que o oprimia e o discriminava nessa forma social que Florestan denominou de castas Afinal 81 Que ele empregou nos textos de mestrado 1947 doutorado 1951 e na tese de livredocência 1953 82 No texto Florestan Fernandes e a formação da sociologia brasileira Octavio Ianni apontou que A escravatura nasce da colonização A pesquisa e a reinterpretação da escravatura compreendem um largo e fundamental capítulo da história da formação do povo brasileiro Daí a importância de uma reflexão crítica sobre as condições e implicações do escravismo Um regime de trabalho que fundamentou toda a vida social econômica política e cultural ao longo de praticamente quatro séculos Um regime de trabalho que implica a incorporação forçada e predatória de populações indígenas e africanas sacrificando modos de vida e trabalho culturas línguas religiões visões de mundo A análise da escravatura envolve a crítica das interpretações prevalecentes In IANNI Octavio Florestan Fernandes Ed São Paulo Ática 2008 Grandes cientistas sociais p 23 63 Inerente à própria organização da sociedade escravocrata a discriminação racial manifestavase sob todas as suas formas típicas Praticamente o escravo não conhecia outro direito senão o que estipulava a vontade ou o arbítrio do senhor não gozava de nenhuma capacidade civil e suportava todos os deveres que a mesma vontade ou arbítrio julgasse conveniente imputarlhe BASTIDE Roger FERNANDES Florestan 1955 2008 p 99 Escravidão e exploração a colonização do Brasil como um processo de violência racial e de violação dos códigos éticos de conduta cristã que balizavam aquilo que Florestan nomeou de mores dominantes são argumentos que se contrapõem em nossa análise à forma mais culturalista de interpretar o escravismo brasileiro feita por Freyre nos anos 1930 Porém além das diferenças discursivas existem certamente temas e ideias recorrentes quando não temáticas comuns todavia trabalhadas e vistas de uma forma diferente A violência sobre o escravo não era apenas um fator excepcional Fora da norma social era parte fundamental do sistema A violência sistemática integrava a lógica de manter os grupos étnicos numa distância social em que um dominava e o outro era o objeto dessa dominação É interessante notar como o autor tem uma clara influência do pensamento de Caio Prado Júnior 19001990 à época professor da USP83 e como a visão mais pragmática de Caio operava como uma referência intelectual para Florestan e sua equipe84 A questão da sexualidade muito bem explorada em Freyre também é uma temática comum em Florestan As conclusões contudo se contrastam uma vez que a incorporação ao sistema de parentesco do branco que Freyre chamou de família extensa se deu de forma violenta e não plenamente no sentido de uma só família pois isso seria igualar brancos e negros Em termos de função social seria uma função regular da escrava proporcionar aos senhores a satisfação de suas necessidades sexuais BASTIDE FERNANDES 1955 2008 p 99 Como se 83 Os textos Formação do Brasil Contemporâneo Colônia 1942 e História Econômica do Brasil 1949 de Caio Prado Júnior são muito citados por Florestan 84 Sobre isso o historiador Robert Slenes ao fazer uma revisão da historiografia sobre o escravismo afirmou que um grupo de autores influenciados por Prado ou com preocupações semelhantes frequentemente apelidado Escola Paulista de Sociologia procurou aprofundar sua análise do escravismo enfatizando como ele a marginalização dos homens livres pobres e a vitimização do escravo por um sistema econômico nefasto SLENES 2011 p 38 64 depreende da visão do autor a violência sobre o escravo era inclusive nas próprias questões que giram em torno da noção de família Se em Freyre a família extensa patriarcal abrigou os escravos como filhos para Florestan essa questão é vista sob outra perspectiva A incorporação do elemento de cor no núcleo legal da família grande acarretaria o reconhecimento formal da igualdade social entre o branco e o negro ou mulato Para evitar que isso acontecesse formaramse representações contrárias ao intercasamento as quais subordinavam as relações matrimoniais a padrões endogâmicos Nesse sentido os dois grupos raciais se integravam originalmente em um sistema de castas e as proibições de casamento interracial asseguravam pela base a integridade social do grupo racial dominante Não só as parceiras sexuais escravas não se elevavam à situação social dos senhores como os filhos dessas uniões se conservavam na mesma condição que as mães princípio do partus sequitur ventrem BASTIDE Roger FERNANDES Florestan 1955 2008 p 98 99 Isso configura uma mudança importante de interpretação da escravidão negra Não para anular ou desconsiderar a perspectiva anterior de Freyre85 A discriminação legal e política do negro era decorrência da própria condição de escravo o negro escravizado estava incapacitado em termos de cidadania não podendo denunciar seu senhor e este praticamente desconhecia pura e simplesmente qualquer limite em relação a castigos físicos e de toda ordem no sentido de oprimir e sujeitar o negro a uma condição de aviltamento social Nesses pontos reside o que consideramos como a reiteração da violência nessa unidade discursiva de Florestan Com exceção dos atos criminosos ilícitos e imorais o senhor tudo podia exigir do escravo com o beneplácito da lei obrigando 85 Como afirmou Fernando Henrique Cardoso em texto introdutório já citado à edição aqui utilizada Florestan Fernandes e Roger Bastide não desconheceram a importância da obra de Gilberto Freyre e suas análises sobre o amestiçamento cultural e racial dos brasileiros Pelo contrário tanto a ideologia das relações ditas cordiais como as práticas mais suaves de tratamento na CasaGrande e o ambiente culturalsentimental que envolvia as relações entre negros e brancos assim como a maior aceitação do mestiço do mulato formavam parte de acomodações interétnicas que impediam as relações de conflito aberto e jogavam importante papel na ordem escravocrata e posteriormente também na sociedade de classes BASTIDE FLORESTAN 1955 2008 p 12 65 se em troca exclusivamente a vestilo alimentálo e proporcionarlhe assistência em suas doenças A legislação vigente só não concedia aos senhores o direito de vida e de morte sobre seus escravos bem como a faculdade de infligir lhes sevícias e castigos corporais açoitamento doméstico além de certos limites Sob o ponto de vista legal e político portanto o contraste entre as duas camadas sociais era completo todas as garantias sociais desfrutadas pela camada dominante não tinham aplicação de nenhuma forma à camada servil A lei consagrava a escravidão e sancionava sem restrições a expoliação de um grupo racial por outros BASTIDE Roger FERNANDES Florestan 1955 2008 p 104 O universo das leis e do Estado as formas de discriminação formalmente legalizadas e o caráter franca e claramente espoliativo do branco sobre o negro na sociedade escravista são expostos nessa perspectiva como pontos de referência para pensar o lado nefasto da instituição da escravidão negra no Brasil Apesar do estudo do autor ter tido como foco principal a região de São Paulo nessa e em outras partes do livro o mesmo trabalhou numa visão mais geral afirmando que o caso paulista em relação à violência e o caráter mercantil da escravidão não diferia em forma mas apenas em grau escala menor do que foi o geral no Brasil Ainda sobre a violência ele afirmou que aliás as limitações sobre o direito de castigar os escravos sempre foram inócuas e a instituição pode durar quase tanto o próprio regime servil pois só foi abolida em novembro de 1886 BASTIDE FERNANDES 1955 2008 p 104 nota 43 A sociedade escravocrata era na verdade segundo Florestan ao invés de um único organismo social na forma do sistema casagrandesenzala duas sociedades que coexistiam A discriminação social abrangia naturalmente todas as esferas ou situações da vida social As fronteiras que separavam o senhor e o escravo só permitiam que eles se encontrassem nessa qualidade em todas as circunstâncias ainda que existissem laços afetivos entre ambos Na verdade senhores e escravos formavam duas sociedades distintas que coexistiam no seio de uma ordem social inclusiva BASTIDE FERNANDES 1955 2008 p 104 Grifo nosso Isso aponta para a perspectiva do autor em demonstrar por meio de uma investigação científica pautada em largo uso de fontes estatísticas como o sistema 66 categorizado como uma sociedade de castas em que os estamentos sociais antagônicos do sistema se relacionavam pautados numa lógica discriminatória em relação ao escravo produziu uma forma de vida social em que duas sociedades interagiam E mesmo que essa interação tenha atingido inclusive questões de foro íntimo laços afetivos entre senhores e escravizados as fronteiras ou seja as distâncias sociais que os separavam eram flagrantes e enormes A estratificação social em castas impôs a segregação social do elemento servil Como peça o negromáquina passivo é o elemento da base do sistema econômico e social Apesar de sua significância vital para o sistema ele era completamente desconsiderado86 através dos meios oficiais e jurídicos e excluído pelos meios sociais que o discriminavam reiteradamente O sistema era fechado e sufocante para o escravo a vigilância a violência e a constante coerção visavam desintegrar qualquer forma embrionária tão logo surgisse de união ou perspectiva de identificação entre os escravizados Isso era essencial em um sistema que garantia sua coesão estamental por meio de um pragmatismo econômico negroforçade trabalho e reiterada violência que mesmo com limitações jurídicas87 eram estas praticamente desconsideradas BASTIDE FERNANDES 1955 2008 p 104 nota 43 Sobre questões ligadas à sexualidade à família e ao patriarcado temaschave na interpretação de Freyre Florestan também ressaltou os aspectos da exclusão e não da inclusão bem longe de ver na família extensa aliás como se depreende de sua análise essa inexistia aspectos de benignidade Ele percebeu como a sexualidade o núcleo familiar e o casamento dos escravos mesmo admitindo a existência de certo paternalismo que suavizava as relações essencialmente violentas para com os escravos domésticos ou crias da casa eram também regulados e expressavam a realidade dura para o negro escravo A vida sexual dos escravos não encontrava uma expressão normal e reguladora no matrimônio Parece que reinou durante muito tempo um 86 A rejeição do escravo nas ocupações nobilitantes praticadas correntemente na vida social era sancionada por lei Em virtude de sua incapacidade civil os escravos não tinham acesso a cargos públicos e eclesiásticos não podendo sequer ser admitidos como praças no exército e na marinha BASTIDE Roger FERNANDES Florestan 1955 2008 p 108 87 No Brasil as leis relativas aos escravos sempre foram frustradas pelos senhores disposições legais destinadas a limitar os castigos não passavam de letra morta BASTIDE Roger FERNANDES Florestan 1955 2008 p 109 Itálico do autor 67 regime de pater incertus mater certa no interior das senzalas o qual era incentivado pelos próprios donos das escravas Além disso as mulheres mais bonitas e novas eram requestadas pelos senhores por seus filhos ou por outros homens de família e não se levava a sério as uniões feitas pelos próprios escravos Separavase o homem da mulher tão facilmente quanto os filhos das mães sem nenhuma consideração para com os sentimentos dos prejudicados O casamento do escravo com uma companheira representava um bom recurso para prendêlo ao senhor e sua família Em suma legalmente não existia uma família escrava e socialmente tanto a estabilidade quanto a harmonia dos matrimônios feitos formalmente dependiam de modo direto dos senhores Os escravos excluídos do núcleo legal da família patriarcal viam seu próprio casamento continuamente ameaçado pela concupiscência ou pela devassidão dos senhores BASTIDE FERNANDES 1955 2008 p 106 107 108 Grifo nosso Evidentemente a questão da inexistência de reconhecimento legal da família escrava não anula a sua existência histórica88 O que importa aqui é observar que em nossa análise mais uma vez esse conjunto de ideias contrastava com a interpretação de Freyre cujo ponto alto do discurso era atentar para o fato de que o patriarcado era excludente e não a unidade orgânica de integração cultural que teria engendrado uma escravidão benigna Um aspecto que se desenvolveu dessa perspectiva de análise que priorizava a questão econômica e a violência foi a percepção histórica do escravo como uma coisa Não como um homem mas como uma coisa isto é o escravo negro era a coisa do branco parte de suas posses e não seu irmão ou parente pobre agregado Nas relações sociais o escravo estava para o senhor ou os familiares e dependentes brancos dele na mesma posição que uma coisa está para seu dono A uma desigualdade tão fundamental tinha que corresponder forçosamente um tratamento assimétrico De um lado estavam os que podiam mandar e conceder de outro os que deviam obedecer e consentir BASTIDE FERNANDES 1955 2008 p 112 88 Frisese que Para Fernandes as duras condições da escravidão e mais especificamente o esforço dos senhores de tolher e solapar todas as formas de união ou de solidariedade dos escravos não apenas tornaram os grupos de parentesco extremamente instáveis mas também destruíram as normas familiares dos cativos deixandoos sem regras para a conduta sexual que incentivasse a formação de unidades familiares ao longo do tempo SLENES 2011 p 39 68 Ao considerar o escravo como uma coisa em nossa análise Florestan buscou demonstrar categoricamente que o sistema escravista não poderia ser considerado como benigno ou familístico e que excepcionais relacionamentos mais intimistas em alguns núcleos de engenho não embasam ou servem de parâmetro explicativo para interpretar a escravidão negra sob a égide de uma suposta suavidade A coisa escravo era uma engrenagem numa engenhosa estrutura social em que a exploração pesava sobre ele com toda intensidade e lhe sugando as forças até a última gota de suor89 Essa forma de ver ou seja essa percepção do escravo como uma coisa influenciou uma série de estudos a partir dos anos 1950 Destacamos aqui as pesquisas dos discípulos e orientandos de Florestan em que no ato de desenvolvimento dos seus estudos na segunda metade da década de 1950 e que foram publicados no início da década seguinte90 essas ideias são perceptíveis numa instituição sociológica da escravidão baseada numa perspectiva que o coisifica e enfatiza a violência sistêmica91 No seu magnum opus A integração do negro na sociedade de classes 2 vols sobre a questão racial que é sua a tese de cátedra na USP em 1964 embora o autor 89 Em texto posterior ele afirmou que viase no escravo uma inversão de capital e um instrumento de trabalho que deveria ser exprimido até o bagaço FERNANDES 1964 1965 p 22 90 Referimosnos aqui a Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni ambos orientandos de doutorado de Florestan Fernandes na USP Os dois desenvolveram estudos sobre a escravidão no chamado Brasil Meridional Rio Grande do Sul e Santa Catarina principalmente Respectivamente os textos Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional O Negro na Sociedade Escravocrata do Rio Grande do Sul 1961 e As Metamorfoses do Escravo Apogeu e crise da escravatura no Brasil Meridional 1961 No primeiro Cardoso seguindo essa perspectiva de coisificação do escravo além da apreensão histórica do caráter essencialmente violento da escravidão afirmou que Do ponto de vista jurídico é óbvio que no sul como no resto do país o escravo era uma coisa A reificação do escravo produzia se objetiva e subjetivamente A hipótese sobre a brutalidade nas relações entre senhores e escravos encontra confirmação em inúmeros testemunhos e registros Além disso numa sociedade onde o regime patrimonialista de mando era pervertido por causa de condições históricas peculiares a coerção necessária à manutenção do regime escravocrata teria de exercerse dentro de padrões que supunham a violência como um traço normal CARDOSO 1961 1977 p 125 133 No segundo Ianni também nessa mesma linha de pensamento afirmou que é inegável que a natureza fundamental do regime foi a mesma em tôdas sic as situações conhecidas que a polarização assimétrica de escravos e senhores de negros e brancos foi o efeito universal inerente à forma pela qual os indivíduos se distribuíam no sistema produtivo IANNI 1961 1962 p 272 91 A equipe de F Fernandes incluindo R Bastide um dos mestres e copesquisadores F H Cardoso O Ianni E V da Costa tomará Casa grande senzala como uma antireferência A escravidão suave é um mito cruel a ser destruído Os escravos não eram cidadãos não podiam ter armas propriedades vestirse como quisessem sair à noite reunirse E se fugissem Moravam em quase prisões amontoados Trabalhavam sob coerção repressão e violência com longas jornadas Eram castigados cruelmente e marcados a ferro quente Suas condições de vida eram as piores Falar em suavidade e ternura nas relações senhorescravo é ir cinicamente contra os fatos REIS 2006 p 210 69 tenha explicado que a pesquisa empírica ou seja a coleta de dados para a redação do texto seja do tempo da pesquisa anterior feita nos anos 195092 Florestan reiterou a fundamentação econômica do sistema da escravidão e principalmente a questão da violência sobre o escravo Essa obra compreendida nesta pesquisa como um corte epistemológico decisivo na interpretação sobre a questão racial brasileira corte principalmente com análise de Freyre feita nos anos 1930 é decisiva pois também se tornou paradigmática nas leituras feitas a partir de então sobre a escravidão negra ressaltando a perspectiva que alguns posteriormente caracterizaram como economicista ou vitimista93 Embora o foco tenha sido especialmente a cidade de São Paulo assim como o texto com Roger Bastide trabalhado anteriormente o autor nesse texto de cátedra também fez generalizações ou considerações sobre a escravidão numa perspectiva mais geral e não restrita à região paulista A obra tem dimensões de enorme abrangência Em termos teóricos e de manuseio de matéria histórica principalmente censos e dados estatísticos o texto é um exemplo da plena maturidade intelectual de Florestan unindo rigor científico com paixão pela causa do negro94 Assim como CGS a AINSC de Florestan é uma obra considerada um marco na história das ciências sociais no Brasil IANNI 2002 MICELI 1989 O livro colocou um dilema histórico não resolvido à época e arriscamos dizer até hoje que era o problema da inserção integração social efetiva no mundo social de forma digna do negro na sociedade capitalista em formação O negro recémegresso de uma sociedade estamental que não o preparou para a vida de homem livre e muito menos lhe concedeu meios de exercer sua cidadania na República instalada seria o 92 Uma parte dos materiais havia sido levantada anteriormente em 19411944 ou 19491951 por alunos ou exalunos de Roger Bastide ou do autor FERNANDES 1964 1965 p XI Nota 1 93 A reificação do escravo teria sido engendrada por Florestan e equipe e somente nos anos 1970 1980 a historiografia sobre a escravidão negra iria ressaltar o caráter cultural e por meio de outras fontes contestar essa visão do escravo como coisa e a insistência em ver apenas o lado da violência do sistema Sobre isto ver QUEIROZ S R Rebeldia escrava e historiografia Estudos Econômicos São Paulo IPEUSP 17 1987 Para uma crítica da noção de patologia social e anomia do escravo de Florestan ver O estudo do comportamento desviante a contribuição da antropologia social In VELHO Gilberto Org Desvio e divergência uma crítica da patologia social 4 ed Rio de Janeiro Zahar 1981 94 O próprio Florestan alertou ao leitor sobre isso Devemos salientar que essa projeção endopática na situação humana do negro e do mulato nasce de uma simpatia profunda e de um desejo ardente de compreender os dilemas com que o negro se defronta socialmente Procuramos evitar cuidadosamente que êsse sic estado de espírito interferisse nas interpretações se aqui ou ali exageramos na conta paciência Tantos já erraram por motivos diferentes deformando e detratando o negro que não haveria mal maior em tal compensação FERNANDES 1964 1965 p XIV 70 elemento chave para conhecer uma parte da história nacional como uma história das transações por cima feita pelas elites que largaram o negro à própria sorte FERNANDES 1964 1965 p 5 A violência do escravismo se contrapõe totalmente à forma tecida anteriormente de Freyre ver a escravidão Paralela à sua inserção apenas como engrenagem e força de trabalho sob a égide do cativeiro Ao mesmo tempo todo um refinado e severo sistema de fiscalização e de castigos foi montado para garantir a subserviência do escravo e a segurança do senhor de sua família ou da ordem social escravocrata A rigidez com que tudo isso se implantou é atestada pelos relatos que acompanham o noticiário das fugas Perdidos em fazendas isoladas ou morando em cidades rústicas com policiamento precário em tôda sic parte quase sempre em inferioridade numérica os brancos seguiram à risca o código escravocrata impedindo por todos os meios que os escravos ou os libertos se organizassem e monopolizando o uso da violência como mecanismo de contrôle sic social FERNANDES 1964 1965 p 36 Grifo nosso A violência era a companheira do escravo negro O código escravocrata era o monopólio do uso da violência Esse mecanismo de controle social não apenas garantia a continuidade da produção como a coesão do mundo social que se dividia em duas sociedades distintas como já citamos antes Essas duas sociedades formavam uma só a brasileira A divisão social do trabalho na escravidão levava como um imperativo à violência Florestan aqui lançou a sua formulação desenvolvida ao longo do livro de que a persistência do passado escravista foi o fator social histórico fundamental para a anomia social do negro pósabolição A não integração do negro na sociedade de classes que iremos abordar de forma mais pormenorizada em outra parte do trabalho foi o legado de um escravismo violento cuja lógica econômica para Florestan fez do liberto um desajustado nessa nova ordem sob a lógica do trabalho livre O desajustamento estrutural do negro95 e do mulato entre aspas pois nos censos muitas vezes o que era categorizado por 95 FERNANDES Florestan A integração do negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 Ed São Paulo Dominus 1964 1965 p 3969 71 mulato na realidade era preto tinha sua origem na escravidão que legaria do passado uma nova exclusão no presente Compreendemos ser pertinente apontar aqui críticas a essas teses Sobre isso é significativa para o nosso trabalho a análise de Sidney Chalhoub em seu estudo de mestrado dos anos 1980 sobre o cotidiano dos trabalhadores do Rio de Janeiro na chamada Primeira República96 Nesse trabalho o autor contestou teses defendidas por Florestan Para ele então o escravismo era um sistema de castas cuja desagregação coincidindo com a formação das classes sociais não se refletiu numa mudança substancial da posição social do negro A escravidão havia ainda destituído os negros de toda a vida familiar e dificultando a criação de formas de cooperação mútua baseadas na família Por conseguinte a herança do escravismo ao produzir entre negros e mulatos um estado de anomia social pobreza e despreparo para o trabalho livre teria sido o principal fator responsável pelo isolamento e subordinação social dos negros e mulatos no período pós Abolição O problema principal suscitado pela análise de Fernandes é esta noção de que negros e mulatos se encontravam num estado de anomia ou patologia social no período pósAbolição estado este que se explicaria com uma herança direta do escravismo A primeira objeção séria que se pode levantar nesse contexto é a que a visão que Fernandes passa do liberto como despreparado para o trabalho livre destituído de vida familiar e etc é perigosamente próxima àquela veiculada pela classe dominante brasileira no momento crucial da transição do trabalho escravo para o trabalho livre CHALHOUB 2001 p 82 83 Antes de avançarmos em nossa leitura histórica dos textos de Florestan sobre a escravidão negra essa crítica de Chalhoub nos permite três considerações A primeira é que na história das ideias não existe uma linearidade em que estas evoluiriam mediante a superação quando não da total refutação das ideias anteriores a segunda é que é muito problemática essa visão reificadora e pragmaticamente econômica da escravidão negra97 pois lança uma perspectiva 96 CHALHOUB Sidney Trabalho lar e botequim o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque 2 ed CampinasSP Editora da Unicamp 2001 97 Que negaria os movimentos do negro dentro da estrutura social escravista e as suas formas de existir socialmente como na formação de núcleos familiares que como vimos para Florestan eram praticamente inexistentes Sobre isto ver MATTOSO Katia Ser escravo no Brasil Ed São Paulo Brasiliense 1982 SLENES Robert Escravidão casamento família parentesco em três comunidades escravas 17601888 Projeto de pesquisa sd 72 determinista das ações humanas no tempo e a terceira é que a crítica de Chalhoub nos faz pensar na historicização de conceitos sociológicos como anomia e patologia social quando no uso para interpretação histórica como eles por vezes são insuficientes para compreender a dinâmica dos vários agenciamentos sociais no tempo A guinada radical98 do pensamento de Florestan acerca do estudo funcionalista dos tupinambá na primeira fase de sua produção intelectual nos anos 1940 e início de 1950 para a questão racial nos anos 1960 também ilustra a crescente politização do autor em seu engajamento em movimentos pela causa negra em São Paulo nessa época Fazia parte do projeto de pesquisa envolver a comunidade negra no processo por isso o uso de entrevistas e de observação in loco Isso também condizia com a própria ideia de interação da universidade com a sociedade que Florestan tanto buscava em sua atividade intelectual e militante CERQUEIRA 2004 Percorrendo outros textos do autor é notável que sua visão sobre a escravidão era bem abrangente e não apenas focada na estrutura do engenho uma vez que para Florestan O Brasil conheceu em sua história colonial e independente várias formas de escravidão as quais se associaram à escravização de raças diferentes com caracteres étnicos e culturais distintos e a formações socioeconômicas escravistas diversas FERNANDES 1971 p 11 Todavia podemos perceber que a questão econômica e a reiteração da violência se revelam uma constante nessa unidade discursiva Em termos de apropriação do homem pela violência a escravidão moderna apresenta muitos pontos de contato e de semelhança com a escravidão antiga No entanto a escravidão moderna é em sua essência uma escravidão mercantil o escravo não só constitui uma mercadoria é a principal mercadoria de uma vasta rede de negócios que vai da captura e do tráfico ao mercado de escravos e à forma de trabalho a qual consta durante muito tempo como um dos nervos ou a mola mestra da acumulação do capital mercantil FERNANDES 1971 p 16 98 Uma trajetória radical Florestan Fernandes In MOTA Carlos Guilherme Ideologia da cultura brasileira pontos de partida para uma revisão histórica 19331974 3 ed São Paulo Editora 34 2008 p 221 73 Como uma apropriação violenta de homens a escravidão era entendida pelo autor como uma relação essencialmente bárbara ou seja paralela à sua análise do fenômeno histórico existe uma condenação da experiência perspectiva bem distinta da feita anteriormente por Freyre embora as teses do autor paulista também fossem em alguns pontos problemáticas como já demonstramos acima com a crítica de Chalhoub 2001 Essa escravidão essencialmente mercantil e violenta teria sido obscurecida pela análise historiográfica como sustentou o próprio autor mais adiante A nossa história tem sido contada de uma perspectiva branca e senhorial por isso ela deixa o escravo como agente humano e econômico na penumbra e quando não se lembra pura e simplesmente de condenar a escravidão descreve os processos econômicos de uma perspectiva tão abstrata que prescinde de um dos elos da ação econômica e da produção agrícola que até a penúltima década do século XIX foi o trabalho escravo FERNANDES 1971 p 23 Nesse ponto o autor visava diretamente em nossa análise a obra de Freyre sustentamos isso não apenas pela bibliografia que nos leva a essa percepção99 Observamos também o mesmo quando do uso do termo senhorial afinal existe e isso juntamente com uma condenação do mundo que o português criou100 que é inclusive um título de um texto de Gilberto Freyre na análise do mundo social escravista uma condenação categórica da relação brancos e negros nessa sociedade denominada por Florestan de estamental Considerados como inimigos públicos101 na ordem social escravocrata os negros eram a fonte da produção de riqueza e ao mesmo tempo a perigosa questão para o senhor pois poderia emergir dessa constante relação violenta as temidas rebeliões de negros que quantitativamente sempre foram em maior número que os 99 Como os textos de IANNI OpCit 2008 REIS OpCit 2003 indicam 100 O mítico paraíso patriarcal escondia pois um mundo sombrio no qual todos os escravos eram oprimidos FERNANDES 1971 p 36 101 A massa de escravos de libertos e de mestiços pobres erguia o fantasma de uma rebelião geral que poderia muito bem ter como estopim o inimigo doméstico que era ao mesmo tempo o inimigo público FERNANDES 1971 p 52 74 seus exploradores Os escravos do eito e os da plantação na separação clássica proposta conforme a perspectiva freyriana são para Florestan tratados de forma idêntica como escravos Mesmo os que de alguma forma logravam o êxito na consecução de algumas benesses dentro da sociabilidade relacional que se desenvolvia no interior da casagrande os frutos dos amores entre o senhor e a escravas ainda herdavam a condição social de suas mães e não dos seus pais ou seja o sistema de parentesco do escravismo seria nessa perspectiva excludente e não extenso o que demonstra a forma de interpretar a sociedade da época da escravidão como essencialmente excludente para o negro A escravidão nessa óptica pesava e inexiste nesse discurso uma saudade do tempo da escravidão ou um aplauso ao presente em que o negro se encontrava socialmente desajustado por causa dessa herança do passado Isso é bem diferente da análise de Freyre embora Florestan tenha também concordando portanto com Freyre apontado para um melhor tratamento e até mesmo proteção aos negros da casagrande e do sobrado102 ele reiterou que mesmo assim a família ou o núcleo legal excluía o negro e o tratava como escravo103 ou seja como um indivíduo não considerado em sua humanidade e igualdade com os brancos nessa sociedade estamental No livro A Revolução burguesa no Brasil 1976 o autor ainda continuava com ideias semelhantes às que podemos encontrar em seus textos dos anos 1950 e 1960 enfatizando sempre o caráter mercantil e a espoliação do negro como mercadoria O que se definia automaticamente como mercadoria através do mercado era o escravo e não o trabalho escravo e a respeito do escravo não se punham questões da compra ou venda de trabalho pois se comprava ou se alugava o escravo de quem se dispunha ad hibitum inclusive de suas faculdades habilidades e força de trabalho FERNANDES 1976 2006 p 227 102 FERNANDES Florestan A integração do negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 Ed São Paulo Dominus 1965 1964 Tese de Cátedra em Sociologia Universidade de São Paulo p 54 103 FERNANDES Op Cit p 66 e passim 75 A sociedade estamental socializou o negro escravo de forma negativa104 e as análises unilaterais ou seja as que não lograram o êxito de compreender a dinâmica do escravismo de forma mais abrangente não conseguiram captar isso pois estariam presas ao sistema casagrandesenzala um microcosmo apenas105 que em si não poderia fornecer uma análise da totalidade do sistema Em um texto já na década de 1980 Florestan afirmou algo que nos embasa a pensar que era uma constante em seu pensamento reiterando as noções de mercadoria coisa e exclusão que A camada senhorial encarava o escravo como uma coisa um fôlego vivo ou seja um animal e uma mercadoria Ele não fazia parte da sociedade estamental era excluído como uma casta e dentro dela não contava como pessoa dotada de condição para valerse de direitos e deveres FERNANDES 1989 p 11 Essa produção de Florestan na época nos anos 195060 assim como a produção do conhecimento histórico em geral estava profundamente marcada por uma relação com o passado106 Como em todo relato histórico existe um componente ideológico107 que lhe dá base de sustentação podemos afirmar que suas análises foram propositalmente feitas em contraste com a sociologia anterior e nesse caso a de Freyre em particular Apesar disso um clássico da história não pode ser invalidado ou anulado por uma descoberta de material empírico ou dados novos108 posteriormente Afinal surge no presente o modo de ser a historiografia dessas duas unidades discursivas de sociologia histórica do passado109 A análise da escravidão negra feita por Florestan Fernandes estava imbuída de uma série de experiências e expectativas das quais todas as histórias são constituídas110 do seu tempo No 104 FERNANDES Florestan A revolução burguesa no Brasil ensaio de interpretação sociológica 5 ed São Paulo Globo 1976 2006 p 232 105 Seria forçoso reconhecer que Freyre teria uma forma de ver reduzida do escravismo negro e todavia essa unilateralidade nasce da redução do macrocosmo social inerente à ordem estamental e de castas ao microcosmo social inerente à plantação ou ao engenho e à fazenda FERNANDES 1971 p 34 35 106 RÜSEN Jörn História viva teoria da história formas e funções do conhecimento histórico Ed Brasília Editora da Universidade de Brasília 2007 p 100 107 WHITE Hayden MetaHistória A Imaginação Histórica do Século XIX Ed São Paulo Editora da Universidade de São Paulo 1992 p 36 108 WHITE Hayden Trópicos do Discurso Ensaios sobre a crítica da cultura 2 ed São Paulo Editora da Universidade de São Paulo 2014 p 114 109 HARTOG François Regimes de historicidade presentismo e experiências do tempo Ed Belo Horizonte Autêntica Editora 2015 p 160 110 KOSELLECK Reinhart Futuro passado contribuição à semântica dos tempos históricos Ed Rio de Janeiro Contraponto PucRio 2006 p 306 76 caso os movimentos sociais negros a universidade a questão da produção de um saber mais crítico e científico do que o ensaísmo da sociologia produzida anteriormente Freyre em particular e nas lutas sociais em São Paulo que Florestan se engajou em sua época Nem mesmo Perdigão Malheiros 18241881 no clássico sobre o tema111 foi capaz de ver a escravidão negra nessa perspectiva mesmo o autor vivendo o contexto histórico da ocorrência dessa experiência social Essa interpretação de Florestan era profundamente de seu tempo sendo no lugar de produção CERTEAU 1982 que elas devem ser compreendidas Afirmamos isso pois as críticas sobre a coisificação do escravo ou a anomia do negro que foram feitas posteriormente112 nem sempre foram em nossa análise condescendentes e por vezes assim como a crítica historiográfica de forma mais geral foram balizadas com uma profunda adjetivação pejorativa113 É evidente em nossa leitura que a perspectiva de Florestan sobre a escravidão buscou da maneira mais direta possível instituir uma visão dos horrores e da forma de segregação social que apontasse e isso por meio de extensa pesquisa e uso de dados para dar cientificidade às argumentações categoricamente que a escravidão foi cruel Isto é que a questão econômica ditou a compra e venda de seres humanos que o senhor de engenho explorava e que a violência era geral114 nessa relação social que no Brasil teve proporções de longa duração deixando marcas na sociedade brasileira principalmente para o negro e o mestiço115 Em síntese os estudos sobre a escravidão negra de Gilberto e Florestan nos permitem concluir duas coisas A primeira é que nos anos 1930 a unidade discursiva freyriana buscou instituir uma visão de escravidão benigna com base principalmente nos relatos de viajantes estrangeiros que estiveram no Brasil no período colonial e 111 MALHEIROS Agostinho Perdigão Marques A escravidão no Brasil Ensaio HistóricoJurídico Social Ed Tipografia Nacional Rio de Janeiro 1866 Vol I 112 Como já nos referimos SLENES 2011 CHALHOUB 2001 MATTOSO 1982 113 ALBUQUERQUE JÚNIOR Durval Muniz de O historiador naïf ou a análise historiográfica como prática de excomunhão In GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado Org Estudos sobre a escrita da História Rio de Janeiro 7 Letras 2006 p 192215 114 Em suma a escravidão irradiouse por toda a ordem estamental todos os estamentos dos nobres e dos homens bons aos oficiais mecânicos viam nos escravos os seus pés e as suas mãos FERNANDES 1971 p 34 115 FERNANDES Florestan A integração do negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 Ed São Paulo Dominus 1965 1964 Tese de Cátedra em Sociologia Universidade de São Paulo 77 imperial e também embasado na visão culturalista da antropologia de Franz Boas que o autor aprendeu enquanto aluno dele em Colúmbia e introduziu pioneiramente na análise da história brasileira A benignidade nesse discurso era parte do sistema patriarcal Esse patriarcalismo teria engendrado as relações étnicas entre brancos e negros e pela miscigenação praticada a família extensa que é o resultado desse hibridismo sócioétnico que teria atenuado a relação entre senhores e escravos processandose de forma benigna no sistema Casagrande Senzala A segunda é que essa forma de pensamento seria frontalmente oposta por Florestan que nos anos 1950 através de uma pesquisa levada a cabo por ele e seu então professor e mentor intelectual na USP Roger Bastide analisou o fenômeno da escravidão com uma base interpretativa nova Entre a publicação de Casagrande e Senzala em 1933 e a publicação dos estudos de Florestan e Bastide em 1955 as obras de Caio Prado Júnior em nossa interpretação foram importantes para orientar e ser uma referência possível para Florestan116 em sua visão da escravidão sob um ponto de vista mais pragmático do lado econômico da mesma que ele chamou de fundamento pecuniário da escravidão117 e para reiterar a violência do sistema escravista que não foi negada por Freyre mas sim suavizada pelo patriarcalismo Compreendendo essas ideias em seu tempo podemos concluir com este capítulo do trabalho que nos anos 1930 um intelectual pernambucano que era imerso em referências ao sistema patriarcal do qual descendia analisou a escravidão negra numa perspectiva de demonstrar que ela não foi tão cruel ou desumana e sim que teve traços peculiares ao sistema social hierarquizado da casagrande de engenho Nos anos 1950 já com a instituição universitária novos parâmetros de pesquisa e uma visão mais crítica Florestan imerso em um contexto de produção intelectual com projeções cientificas ressaltou o caráter econômico a ideia de uma escravidão como socialização negativa discriminatória e violenta O primeiro era um intelectual saudosista do sistema escravista e o segundo um intelectual 116 Os textos de Caio Prado Júnior não são desconhecidos por Freyre inclusive para ilustrar isso citamos uma nota de Freyre em Casagrande senzala que demonstra essa ciência FREYRE 1933 2006 p 56 Nota 5 117 FERNANDES Florestan II Cor e Estrutura Social em Mudança In BASTIDE Roger FERNANDES Florestan Brancos e Negros em São Paulo ensaio sociológico sobre aspectos da formação manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana 4 ed São Paulo Global 1955 2008 p 120 125 78 comprometido com a causa negra em que ambos se ocuparam a formar uma visão sobre a escravidão negra em nossa compreensão em perspectivas antagônicas 79 CAPÍTULO II DEMOCRACIA RACIAL MISCIGENAÇÃO No capítulo anterior buscamos enfatizar as diferenças de perspectiva em relação à compreensão da escravidão negra por parte de Gilberto Freyre e Florestan Fernandes Neste capítulo concentrandonos na obra de Freyre iremos trabalhar com o tema da miscigenação racial e como ela foi de problema como destacaremos analisando autores do final do século XIX e primeiras décadas do XX à solução ou positivação com a obra de Freyre nos anos 1930 que acreditamos que rompeu com essa maneira de enxergar a miscigenação como um problema nacional porém instituindo uma visão que levou à percepção da existência de uma democracia racial O resultado do amálgama de raças que foi baseado na escravidão foi uma demografia social mestiça no Brasil Com o fim legal da escravidão e com a crescente imigração europeia no final do século XIX o problema da mestiçagem ganhou um relevo especial com a importação de teorias científicas como o darwinismo social por vários intelectuais brasileiros que buscavam soluções para o dilema de uma sociedade que pela miscigenação estaria fadada ao fracasso como civilização No primeiro momento desse capítulo dentre os vários autores que buscaram analisar o tema da miscigenação antes de Gilberto Freyre nos anos 1930 iremos destacar a produção de quatro intelectuais Euclides da Cunha Sílvio Romero Nina Rodrigues e Oliveira Viana Faremos isto para destacar posteriormente como a intepretação de Freyre representou um divisor de águas sobre o temário da miscigenação destacando porém como essa mesma interpretação é problemática quando pensada como uma base para se perceber a existência de uma democracia étnica ou racial A escolha desses quatro autores não foi aleatória Eles foram trazidos por nós como prévia para posterior análise da obra de Freyre uma vez que ele mesmo os citou o que nos levou a fazer uma pequena digressão temporal em nossa análise com o intuito porém de embasar a nossa compreensão da obra de Freyre principalmente em CGS como uma obra de ruptura com essas formas de ver a mestiçagem brasileira de forma negativa É evidente que como não podemos acolher o discurso freyriano apenas em sua positividade dando ênfase a seu caráter de ruptura que teria superado e em certo sentido superou apenas as análises precedentes 80 iremos interrogar esse mesmo discurso em seu tempo apontando principalmente dentre outras coisas como ele construiu uma narrativa que instituiu a ideia de uma suposta democracia racial no Brasil 21 O problema e a solução dana mistura de raças Será que estamos fadados ao fracasso como povo e como nação em virtude de uma mistura racial que nos legaria apenas o lado negativo do negro e do índio Essa poderia ser a problemática de pesquisa que esses quatro intelectuais que iremos analisar a seguir tinham quando se puseram a estudar o Brasil e destacar os fatores raciais de nossa formação histórica Sem dúvida não era um problema de pesquisa de fácil resolução e as conclusões ou diagnóstico sobre ele evidentemente teriam que ser diferentes entretanto convergentes em ao menos um ponto a mistura racial era um problema E paradoxalmente é na mistura de raças que estaria a solução pois com a imigração de estoques raciais superiores isto é brancos europeus progressivamente o branqueamento racial iria acontecer O momento em que essas ideias ganharam maior relevo ou seja quando a problemática racial ganhou uma maior relevância se inscreve no período do fim da escravidão e do Império e do início do Regime Republicano Nesse momento de rupturas novas ideias começaram a circular e a questão da viabilidade de uma nação civilizada passou a ter uma significação políticoideológica relevante pois o futuro da nação esbarrava no seu passado de país miscigenado em termos de raças Os estudos no campo da antropologia desenvolvidos no final do século XIX essa nova disciplina científica que tinham fortes elos com visões biologizantes118 e etnocêntricas no caso eurocêntricas embasaram muitos desses intelectuais que iremos tratar a seguir Sobre isso é necessário ressaltar ao menos dois pontos O primeiro é que a importação de certas variantes da antropologia no estudo das raças no Brasil tinha uma espécie de filtro intelectual ou seja a importação se baseava não 118 O momento científico é de fundação de uma antropologia profissional que se volta para os estudos anatômicos e craniológicos procurando responder assim às indagações a respeito das diferenças entre os homens ORTIZ 1985 p 28 81 na absorção acrítica desses postulados considerados científicos e portanto indubitáveis119 O segundo é que essa absorção se deu em uma época em que essas teorias já estavam em franco declínio e sendo fortemente contestadas no lugar de produção em que haviam emergido primeiramente o que indica uma adoção tardia por parte desses intelectuais e isso se torna interessante porque esse aspecto não se explicaria apenas por uma diferença de contato com as ideias textos e publicações quando apareciam na Europa ele se explica quando se pode depreender que essa adoção foi consciente uma vez que se coadunava com a própria intencionalidade dos autores em pensarem o Brasil como mestiço e condenado a não se tornar uma civilização o que daria uma base científica para a política de imigração europeia de tipos eugênicos superiores por exemplo A superação do mestiço Sílvio Romero 18511914 nasceu na cidade de Lagarto então província de Sergipe Cursou direito na Faculdade de Direito de Recife tendo sido um notável e polemista crítico literário e consumidor de teorias científicas além de literatura especializada em vários temas como antropologia e sociologia Suas principais influências foram o evolucionismo e a teoria do darwinismo social principalmente em autores como P Le Play 18061882 e A Comte 17982857120 No seu livro História da Literatura Brasileira 1888 destacou que A estatística mostra que o povo brasileiro compõese atualmente de brancos arianos índios tupiguaranis negros quase todos do grupo banto e mestiços dessas três raças orçando os últimos certamente por mais da metade da população O seu número tende a aumentar ao passo que os índios e negros puros tendem a diminuir Desaparecerão num futuro talvez não muito remoto consumidos pela luta que lhes mover os outros 119 Ou seja não era simples tradução ou mera cópia da ideologia que fundamentava o Imperialismo europeu da época havia uma seleção de textos em que A tradução implica seleção prévia de textos e escolha de certos autores em detrimento de outros No caso o pensamento racial europeu adotado no Brasil não parece fruto da sorte Introduzido de forma crítica e seletiva transformase em instrumento conservador e mesmo autoritário na definição de uma identidade nacional e no respaldo a hierarquias sociais já bastante cristalizadas SHWARCZ 1993 p 55 120 COSTA FILHO Cícero João da No limiar das raças Sílvio Romero 18701914 Tese de Doutorado em História Universidade de São Paulo USP São PauloSP 2012 p 118 119 82 ou desfigurados pelo cruzamento O mestiço que é a genuína formação histórica brasileira ficará só diante do branco quase puro com qual se há de mais cedo ou mais tarde confundir ROMERO 1888 1960 p 20 Grifo nosso É interessante que nessa leitura da miscigenação ele tenha paradoxalmente elevado o mestiço a símbolo da identidade brasileira à época porém fiel à tradição de pensamento evolucionista que dava base de sustentação para suas análises ou seja o horizonte intelectual em que se encontrava imerso ele acreditava que o elemento mestiço ou desapareceria ou seria fatalmente desfigurado pelo cruzamento com um tipo racial superior no caso o branco puro A mestiçagem selecionaria naturalmente os brancos afinal Sabese que na mestiçagem a seleção natural ao cabo de algumas gerações faz prevalecer o tipo de raça mais numerosa e tendo entre nós duas raças puras a mais numerosa pela imigração européia sic tem sido e tende mais a sêlo a branca É conhecido por isso a proverbial tendência do pardo do mulato em geral a fazerse passar por branco quando sua cor pode iludir ROMERO 1888 1960 p 21 Grifo nosso Compreendido em seu tempo ele apontou pioneiramente ao contrário dos autores a seguir121 a identidade mestiça do Brasil embora visualizandoa sob uma perspectiva pessimista conforme seus referenciais de pensamento teórico A ideia era que mesmo enfatizando a identidade mestiça do Brasil essa influência fosse apagada via imigração branca europeia Que o povo brasileiro era mestiço isso era um fato porém essa condição étnica seria gradualmente abolida pela crescente composição étnica de tipos eugênicos superiores no caso os brancos 121 A situação mestiça do país ao contrário do pensamento de ensaístas como Euclides da Cunha e Nina Rodrigues que começaram a escrever depois dele ao invés de ser um mal era responsável pela singularidade brasileira viabilizadora da identidade nacional chave para a compreensão da história brasileira Mesmo sendo parcialmente um teórico racista defensor da raça superior afirmando que a maior contribuição na sociedade brasileira foi do português analisou de maneira minuciosa a influência das raças ditas inferiores como indígenas e negros COSTA FILHO 2012 p 123 Mesmo apontando que a mestiçagem não era um mal para Romero o autor da tese citada reitera o aspecto racista ou meio do autor e várias passagens em que o tom de pessimismo com relação ao futuro de um país mestiço é predominante 83 Raça e criminalidade Nina Rodrigues 18621906 foi um médicoantropólogo nascido em Vargem Grande na província do Maranhão Um dos grandes responsáveis pela pioneira no Brasil junção da análise baseada nas ciências médicas e antropológicas de sua época Sua atuação na Faculdade de Medicina da Bahia fez escola num movimento122 que desde o final do século XIX buscava dentre outros objetivos a instituição de pesquisas sociais no Brasil que fossem ao mesmo tempo médicas e antropológicas A partir principalmente das ideias de um pesquisador chamado Cesare Lombroso 18351909 sobre criminologia e análise craniométrica Nina Rodrigues buscou a base para interpretar o dilema racial brasileiro numa interface especialmente com a questão penal advogando de maneira insistente para que fossem criados no Brasil dois códigos penais um para os brancos e outros para raças cuja mistura determinaria patologicamente ao ato da transgressão No seu livro As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil cuja primeira edição é de 1894 ele afirmou que Desconhecendo a grande lei biológica que considera a evolução ontogenética simples recapitulação abreviada da evolução filogenética o legislador brasileiro cercou a infância do indivíduo das garantias de impunidade por imaturidade mental criando a seu benefício regalias de raça considerando iguais perante o código os descendentes do europeu civilizado os filhos das tribos selvagens da América do Sul bem como os membros das hordas africanas sujeitos à escravidão RODRIGUES 1894 2011 p 25 Sem dúvida uma forma de compreender o país como atrasado tendo como filtro a miscigenação que o degenerara e ainda apontando para o impacto cotidiano no caso a dimensão da criminalidade como um exemplo de como a influência das hordas africanas explicaria o grande número de homicídios e outros crimes 122 À frente desse movimento sobressaía a figura de Nina Rodrigues professor da escola e defensor radical da medicina legal e sua autonomia SCHWARCZ 1993 p 276 84 cometidos123 Não se podia esperar um futuro para o país na perspectiva da viabilização de uma nação civilizada e moderna como a Europa Ocidental da época pois se dependesse do negro isso seria impossível124 A inferioridade do negro era cientificamente provada125 ideia que seria criticada por Freyre como essencialmente anticientífica126 As raças e o meio geográfico Euclides da Cunha 18661909 nascido na então província do Rio de Janeiro teve formação de militar e engenheiro Em 1902 veio a público sua obra Os sertões Reflexão sobre o Norte do país em que se mesclavam ciência poesia e certa antropologia de sua época127 O texto fruto de suas atividades como correspondente do jornal O Estado de São Paulo no ano de 1897 nos interessa sobretudo pela análise da miscigenação racial brasileira como um aspecto negativo diagnóstico que não era apenas seu mas em graus e níveis diferenciados foi idêntico para todos os intelectuais que ora tratamos Na obra dentre outras concepções opera uma correlação quase determinista do meio sobre a raça defendendo que não há um tipo antropológico brasileiro CUNHA 1903 2012 p 120 Na sua análise da gênese do sertanejo Euclides o definiu como uma subcategoria étnica e nisso o meio físico dos sertões atuaria como considerável fator causal 123 Sobre isso ele arrematou A igualdade das diversas raças brasileiras perante nosso código penal vai acrescentar mais um aos numerosos exemplos dessa contradição e inconsequência RODRIGUES 1894 2011 p 24 124 Em outro texto Os Africanos no Brasil 1932 o médicoantropólogo maranhense defendeu que Se o futuro do Brasil dependesse de chegarem os seus negros ao mesmo grau de aperfeiçoamento que os brancos muitas vezes se poderiam transformar antes os seus destinos de povo se é que algum dia houvesse de realizar Ocorre portanto demonstrar que de fato nossa morosidade reside o ponto fraco da civilização dos negros RODRIGUES 1932 1935 p 393 Sobre a obra de Nina Rodrigues tratando especificamente de suas análises a um só tempo médicas e antropológicas sobre o tema da mestiçagem ver NEVES Márcia das Nina Rodrigues as relações entre mestiçagem e eugenia na formação do povo brasileiro Dissertação Mestrado em História São PauloSP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUCSP 2008 71 f 125 Explicava Nina Rodrigues que a inferioridade do africano fora estabelecida fora de qualquer dúvida científica SKIDMORE 1976 p 75 126 Ver OpCit 1933 2006 p 370 127 BRANDÃO Adelino Euclides da Cunha e a Questão Racial no Brasil A antropologia de Os Sertões Ed Presença Rio de Janeiro 1990 85 Porém é a concepção pessimista do Brasil em virtude da mestiçagem racial o que mais nos interessa Para Euclides A mistura de raças mui sic diversas é na maioria dos casos prejudicial Ante as conclusões do evolucionismo ainda quando reaja sobre o produto influxo de uma raça superior despontam vivíssimos estigmas da inferior A mestiçagem extremada é um retrocesso De sorte que o mestiço traço da união entre as raças breve existência individual em que se comprimem esforços seculares é quase sempre um desequilibrado CUNHA 1903 2012 p 141 Grifo nosso Estávamos para Euclides condenados à civilização e ou progrediremos ou desaparecemos e o mulato como subcategoria étnica fazia do Brasil um país o diagnóstico aqui é fatalista onde não existe unidade racial e não a teremos talvez nunca CUNHA 1903 2012 p 104 É evidente que nos quadros de referência teórica que Euclides e outros operaram suas análises a saber uma concepção do evolucionismo social e ainda com ressonâncias de noções de determinismo geográfico e climático sobre o desenvolvimento e no caso de degenerescência das raças sua forma de ver a problemática racial guardava os limites do horizonte intelectual de sua época128 As populações degeneradas Oliveira Viana 18831951 nasceu na localidade do Rio Seco de Saquarema na então província do Rio de Janeiro Dos autores aqui sumariamente tratados é sem dúvida o que nas questões relacionadas à reflexão sobre raça e mestiçagem mais 128 Aqui é digna de nota uma passagem da introdução escrita por Gilberto Freyre em 1939 para o texto Os Sertões da coleção Obras Completas de Euclides da Cunha editora José Olympio coleção que ele mesmo dirigiu afirmando na descrição dos sertões o scientista sic erraria em detalhes de geografia sic de geologia e de botânica de anthropologia sic o sociologo sic em pormenores de explicação e de diagnóstico sociaes sic do povo sertanejo Mas para redimir dos erros de technica sic havia em Euclydes da Cunha o poeta o profeta sic o artista cheio de intuições geniaes sic FREYRE 1939 p XI Sobre a diferença de perspectiva inclusive sobre a influência do meio físico no desenvolvimento das relações raciais na história do Brasil entre Euclides e Freyre iremos tratar mais à frente Para uma leitura sobre a ressonância da obra de Euclides sobre Freyre defendendo inclusive que a feitura de CasaGrande Senzala foi fortemente influenciada pela obra Os Sertões ver NICOLAZZI Fernando Um estilo de história a viagem a memória o ensaio Sobre Casagrande senzala e a representação do passado Tese Doutorado em História Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS Porto AlegreRS 2018 Principalmente Freyre leitor de Euclides p 134 146 86 contrastou em nossa perspectiva com a interpretação de Gilberto Freyre que iremos expor mais adiante129 A problemática das populações degeneradas seria o eixo de reflexão que o guiara para uma ideia de que a mistura racial não era salutar e historicamente como isso era uma peculiaridade nossa contornos a essa condição étnica deveriam ser buscados No seu livro Populações Meridionais do Brasil 1918 ele argumentou seguindo as ideias de leis antropológicas que Quando duas raças se misturam os seus mestiços ficam sujeitos a certos golpes de atavismo que os podem fazer retomarem no fim de algumas gerações a uma dos tipos étnicos geradores Esse regresso ao tipo das raças originárias é uma lei antropológica verificável nos meios étnicos heterogêneos e principalmente num meio étnico como o nosso oriundo de mestiçagens múltiplas Quando os cruzamentos surgem da fusão de raças muito distintas os retornos têm em geral um caráter degenerescente o elemento inferior é que se reconstrói de preferência e absorve os elementos da raça superior VIANA 1918 2005 p 173 O mestiço tipo étnico brasileiro que o autor lamenta preponderar herdaria pois era um degenerado todos os vícios130 Essa é um tipo de argumentação que se inspirava numa visão fatalista via determinismo biológico de uma mestiçagem negativa para o Brasil herdeiro e o mestiço é o símbolo dos elementos inferiores do cruzamento racial histórico Eram populações degeneradas essas do Brasil Meridional embora o autor por vezes deixe explícitas generalizações para o resto do Brasil pois a miscigenação racial que não foi só no Brasil Meridional ou na história da evolução do povo paulista em regra para ele dotava o produto desse intercurso étnico das características inferiores o legado da raça cruzada era uma população mestiça portanto degenerada 129 Exemplo disso se encontra em Casagrande Senzala em que Freyre assim se referiu dentre outras passagens que Este Oliveira Viana ideou um Brasil colonizado em grande parte e organizado principalmente por dólicomouros FREYRE 1933 2004 p 296 130 Para Viana também é lei antropológica que os mestiços herdem com mais freqüencia sic os vícios que as qualidades de seus ancestrais VIANA 1918 2005 p 1734 O autor aponta ainda que a existência dos muitos vadios e arruaceiros seriam o exemplo disso VIANA 1918 2005 p 174 87 Em síntese é evidente que a sumária apresentação da ideia de mistura racial como um problema para esses intelectuais que escreveram e pensaram antes de Gilberto Freyre não apresenta uma visão global dessas ideias o que já é feito em outros trabalhos131 de forma mais pormenorizada e que servem de bibliografia que nos informa no presente momento da pesquisa Entretanto acreditamos que podemos perceber algumas características comuns nesses argumentos que no caso é a ideia de miscigenação como algo negativo e a figura do mestiço como um tipo degenerado inferior que faria do Brasil um país sem futuro ou seja informados pelos paradigmas do darwinismo social e de uma antropologia com profunda base na biologia e em estudos craniométricos estes autores tinham uma visão negativa do país o que dotava também as suas investigações de um argumento político Portanto podemos apontar que em fins do século XIX e primeiras décadas do século XX a miscigenação racial era considerada um problema Era vista como um obstáculo à construção de uma civilização brasileira e foi enxergada como por Silvio Romero Nina Rodrigues Euclides da Cunha e outros132 o símbolo do atraso social do país sendo concebida como o ponto fulcral de nossa tibieza cultural e não modernidade O nosso intuito ao trabalhar com esses autores é que a partir de suas ideias comuns de miscigenação racial como problema e atraso é possível sustentar a hipótese de compreender a obra freyriana nos anos 1930 como uma autêntica inovação que irrompeu na história das ideias no sentido de superar essa visão pessimista e em certos graus racista 131 Como SOUZA Ricardo Luiz Identidade nacional e modernização na historiografia brasileira O diálogo entre Romero Euclides Cascudo e Freyre Tese de Doutorado em História Universidade Federal de Minas Gerais UFMG Belo HorizonteMG 2006 421 f E os já citados textos SCHWARCZ 1993 BRANDÃO 1990 COSTA FILHO 2012 NEVES 2008 132 Renato Ortiz aponta que estes autores precursores das ciências sociais no Brasil através de teorias racistas do darwinismo social e do evolucionismo de Spencer apontavam a mestiçagem como o atraso nacional Neste momento tornase corrente a afirmação de que o Brasil se constituiu através da fusão de três raças fundamentais o branco o negro e o índio O quadro de interpretação social atribuía à raça branca uma posição de superioridade na construção da civilização brasileira As considerações de Sílvio Romero sobre o português de Euclides da Cunha sobre a origem bandeirante do nordestino os escritos de Nina Rodrigues refletem todos a ideologia da supremacia racial do mundo branco ORTIZ 1985 p 19 20 88 É evidente que o horizonte intelectual mudara que a trajetória de pensamento peculiar de Gilberto seu contato com o mundo universitário nos Estados Unidos e Europa além de sua particular forma de articular a sua interpretação sobre o tema eram outros e o fizeram produzir uma obra em que a mistura de raças valorizando o negro era a nossa diferença potencializadora em vez de óbice ele viu singularidade e vantagem Nossa identidade estaria nessa diferença histórica 22 Democracia racial miscigenação É surpreendente que a fragilidade ou mesmo a implausibilidade133 das teorias raciais conforme elas foram reelaboradas por esses intelectuais que trabalhamos acima a partir de modelos europeus variantes do darwinismo e do positivismo já em declínio no lugar de produção que surgiram seriam efetivamente contestadas assim como a leitura pessimista em relação ao Brasil miscigenado subsequente apenas nos anos 1930 Apontamos neste trabalho que foi mais precisamente em 1933 com CGS que isso ocorreu na história das ideias no Brasil134 Sobre isso dois pontos um externo e outro interno se destacam No plano externo o que se deve frisar é o contexto histórico dessa mudança que era o momento de redefinição de uma identidade nacional com a ascensão do governo Vargas O Brasil como uma nação cuja identidade era o brasileiro etnicamente produto do cruzamento étnico era um país mestiço Sendo que esse mestiço precisava ser positivado e as relações raciais deveriam ser colocadas no plano da harmonia e coesão O elemento da coesão e a ordem social característica de um povo unido e harmonicamente constituído seria justamente fruto do processo 133 O que surpreende o leitor ao se retomar as teorias explicativas do Brasil elaboradas em fins do século XIX e início do século XX é a sua implausibilidade Como foi possível a existência de tais interpretações e mais ainda que elas tenham se alçado ao status de Ciências A releitura de Sílvio Romero Euclides da Cunha Nina Rodrigues é esclarecedora na medida em que revela esta dimensão da implausibilidade e aprofunda nossa surpresa por que não um certo malestar uma vez que desvenda nossas origens A questão racial tal como foi colocada pelos precursores das Ciências Sociais no Brasil adquire na verdade um contorno claramente racista mas aponta para além desta constatação um elemento que me parece significativo e constante na história da cultura brasileira a problemática da identidade nacional ORTIZ 1985 p 13 134 Obra fundamental para a compreensão desta guinada emblemática na conformação desses ícones de identidade é Casagrande senzala cuja primeira edição data de 1933 SCHWARCZ In FERNANDES 2007 p 12 Grifo da autora 89 histórico nacional Nesse ponto o cadinho das três raças e a positivação da mistura étnica eram mais que bemvindos ao regime político da época135 No plano interno o que destacamos evidentemente é a emergência de uma narrativa a freyriana que valorizava a miscigenação racial por intermédio de outra forma de ver ou de paradigma teórico no caso o culturalismo antropológico de Franz Boas como um símbolo do Brasil fruto de sua história de sincretismo ao mesmo tempo que étnico igualmente cultural que singularizaria o país e que serviria de exemplo como povo fruto da mistura que saberia equilibrar contrários conviver com antagonismos É sobre essa nova forma de interpretar a miscigenação que iremos tratar neste momento da pesquisa problematizando a partir dos textos de Freyre principalmente duas obras da década de 1930 como essa mesma interpretação se transformou em uma narrativa que embasa uma visão de que no Brasil houvehaveria uma democracia racial136 Freyre deslocou o enfoque biológicodeterminista para o culturalhistórico superando assim a visão negativa sobre a mestiçagem racial brasileira É notório nas próprias palavras de Freyre em prefácio à primeira edição de CGS que o tema era algo a se resolver Não era apenas um problema intelectual mas um problema que ele interpretou também como seu de sua geração ele encarnou essa problemática era como se tudo dependesse de mim e dos de minha geração da nossa maneira de resolver questões seculares E dos problemas brasileiros não havia nenhum que me inquietasse tanto como o da miscigenação FREYRE 1933 2004 p 31 A chave analítica que Freyre tinha ou seja que dispunha para interpretar e resolver à sua maneira o dilema da mistura racial era bem diferente dos autores anteriores Nesse ponto sua trajetória intelectual se impõe 135 Essa visão do Brasil era naturalmente bemvinda pelo regime de Vargas PALARESBURKE BURKE 2009 p 280 136 No terceiro capítulo iremos num primeiro momento discutir como Florestan Fernandes se inseriu nesse debate da democracia racial criticandoa duramente como um mito e como a ideia de uma acomodação racial e social de tipos étnicos brancos e negros no Brasil que a tese da democracia racial subentende esbarrava em limitações e em condicionantes sociais adversos para o negro naquilo que Florestan argumentou como nãointegração do negro na sociedade de classes que se formava no Brasil 90 Foi o estudo de antropologia sob a orientação do professor Boas que primeiro me revelou o negro e o mulato no seu justo valor separados dos traços de raça os efeitos do ambiente ou da experiência cultural Aprendi a considerar a fundamental diferença entre raça e cultura a discriminar entre os efeitos de relações puramente genéticas e os de influências sociais de herança cultural e de meio FREYRE 1933 2004 p 32 Uma primeira e importante característica se impõe nessa verdadeira virada na forma de interpretar o tema da miscigenação137 A diferença entre o elemento racial antes visto do ponto de vista da genética de modo hierarquizante pondo uma assimetria entre os tipos étnicos agora é sublinhada em relação à questão do condicionamento cultural Dentro dessa nova base de informação ou desse novo horizonte intelectual Freyre construiu uma narrativa em que o mestiço e o negro não são frutos degenerados da mistura mas sim tipos raciais e metaraciais que singularizam o Brasil A miscigenação histórica ainda tinha outra característica fundamental para Freyre ela teve uma grande importância no relacionamento social pois A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que de outro modo se teria conservado enorme entre a casagrande e a mata tropical entre a casagrande e a senzala O que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou no sentido de aristocratização extremando a sociedade brasileira em senhores e escravos com uma rala e insignificante lambujem de gente livre sanduichada entre os extremos antagônicos foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da miscigenação FREYRE 1933 2004 p 33 Essa consideração da miscigenação como corretora de distâncias sociais entre senhores e escravos está na base da narrativa freyriana pautandose na noção de antagonismos em equilíbrio que para Freyre teria sido a constante histórica brasileira Essa leitura da forma como historicamente se construiu o Brasil se concentrou em evidenciar que o encontro étnico foi fraterno quase sem conflitos 137 É fundamental em Gilberto Freyre a diferença entre raça e cultura a discriminação entre os efeitos de relações puramente genéticas e os de influências sociais de herança cultural e de meio ALBUQUERQUE 2000 p 87 91 Destacase em CGS a ênfase nos aspectos de sincretismo cultural superando o enfoque anterior na questão da miscigenação puramente biológica ou no determinismo geográfico Não que clima e raça não fossem condicionantes que se devessem desconsiderar na análise sobre a formação social de um país como o Brasil contudo Já se tenta hoje retificar a antropogeografia dos que esquecendo os regimes alimentares tudo atribuem aos fatores raça e clima nesse movimento de retificação deve ser incluída a sociedade brasileira exemplo de que tanto se servem os alarmistas da mistura de raças ou da malignidade dos trópicos a favor de sua tese de degeneração do homem por efeito do clima ou da miscigenação FREYRE 1933 2004 p 104 Nesse ponto sua diferença em relação a Oliveira Vianna foi bastante evidente Para Freyre a generalização de Vianna não condizia com a realidade do processo histórico brasileiro138 A questão foi elevada a outro nível com Freyre sendo reformulada em outros termos139 Nem mesmo em relação a diferenças de tamanho craniano que Freyre criticou em Nina Rodrigues inclusive quando este creditava a essas diferenças uma hierarquia entre raças superiores e inferiores com os negros não podendo sequer se elevar ao cristianismo por ser abstrato demais para a sua raça FREYRE 1933 2004 p 387 440 se deveria ver uma assimetria hierarquizante de tipos raciais brasileiros140 138 As generalizações do professor Oliveira Vianna que nos pintou com tão bonitas cores uma população paulista de grandes proprietários e opulentos fidalgos rústicos têm sido retificadas naqueles seus falsos dourados e azuis por investigadores mais realistas e mais bem documentados que o ilustre sociólogo das Populações meridionais do Brasil FREYRE 1933 2004 p 105 106 Para Freyre Oliveira Vianna teria um arianismo quase místico ou mesmo teria sido o maior místico do arianismo FREYRE 1933 2004 p 296 387 139 Gilberto Freyre reedita a temática racial para constituíla como se fazia no passado em objeto privilegiado de estudo em chave para a compreensão do Brasil Porém ele não vai mais considerála em termos raciais como faziam Euclides da Cunha ou Nina Rodrigues na época em que escreve as teorias antropológicas que desfrutam do estatuto científico são outras por isso ele se volta para o culturalismo de Boas A passagem do conceito de raça para o conceito de cultura elimina uma série de dificuldades colocadas anteriormente a respeito da herança atávica do mestiço Ela permite ainda um maior distanciamento entre o biológico e o social o que possibilita uma análise mais rica da sociedade Mas a operação que Casa Grande e Senzala realiza vai mais além Gilberto transforma a negatividade do mestiço em positividade o que permite completar definitivamente os contornos de uma identidade que há muito vinha sendo desenhada ORTIZ 1985 p 41 140 Ao utilizar os elementos da teoria culturalista de Franz Boas questiona as análises brasileiras fundadas principalmente em Nina Rodrigues que relacionam os caracteres físicos e os mentais BASTOS 2006 p 129 92 Afinal Todo brasileiro mesmo o alvo de cabelo louro traz na alma quando não na alma e no corpo há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil a sombra ou pelo menos a pinta do indígena e do negro Porque nada mais anticientífico que falarse da inferioridade do negro africano em relação ao ameríndio sem discriminarse antes que ameríndio sem distinguirse que negro FREYRE 1933 2004 p 367 370 Ninguém escaparia do sangue negro nas veias e na cultura Aparentemente a distinção entre raça e cultura levou Freyre a considerar as diferenças étnicas na formação nacional com uma nova perspectiva Entretanto algumas problematizações podem ser feitas quando tomamos sua obra como material histórico Antes de nos perguntarmos onde há problemas numa narrativa aparentemente essencial e totalmente positiva que valorizou a cultura africana que retirou a antiga noção racista de inferioridade do negro de que a miscigenação encerraria as possibilidades de uma civilização brasileira apontaremos na própria obra de Freyre argumentações que paralelas ao seu esforço de análise inovador e importante sobre o tema da miscigenação compõe uma paisagem social e histórica romantizada quando não inverossímil que continha um elemento político141 Para Freyre por exemplo Considerada de modo geral a formação brasileira tem sido na verdade um processo de equilíbrio de antagonismos Mas predominando sobre todos os antagonismos o mais geral e o mais profundo o senhor e o escravo É verdade que agindo sempre entre tantos antagonismos amortecendolhes o choque ou harmonizandoos condições de confraternização e de mobilidade social peculiares ao Brasil a miscigenação a dispersão da herança a fácil e frequente mudança de profissão e de residência o fácil e frequente acesso a cargos e a elevadas posições políticas e sociais de mestiços e de filhos naturais o cristianismo lírico à portuguesa a tolerância moral a 141 Essa avaliação otimista que Freyre faz da miscigenação representou um alívio para as elites brasileiras Ele lhes devolveu a autoconfiança que as teorias raciais do final do século XIX lhes tinham tirado Até 1930 pensouse que a miscigenação tinha comprometido definitivamente o futuro do Brasil REIS 2006 p 69 93 hospitalidade a estrangeiros a intercomunicação entre as diferentes zonas do país FREYRE 1933 2004 p 116 117 Em nossa análise é nesse ponto que a ideia da democracia racial se mostra pela primeira vez ainda que de forma implícita É uma visão em que a harmonia e as relações sociais são vistas como democráticas O pior dos antagonismos o do senhor e o do escravo era suavizado pela miscigenação e no indivíduo brasileiro haveria duas faces complementares e confraternizantes mesmo quando socialmente o indivíduo se encontrava numa posição social elevada a de senhor na hierarquia social142 Uma sociedade sem conflitos e de uma forma que a singulariza sempre tendendo para a harmonização dos elementos mais contraditórios Racialmente o português elemento civilizador com o africano e o ameríndio não teria para Freyre nenhuma consciência de raça e sim de religião143 É creditando uma inconsciência racial ao colonizador português que Freyre interpretou a dinâmica das relações raciais como sem discriminação no sentido da segregação espacial ou legal Para isso ele se utilizou principalmente da comparação no caso contrastando a sociedade brasileira com a dos Estados Unidos sobretudo com o Sul onde o regime de monocultura e escravidão teria sido bastante similar ao Nordeste açucareiro apontando que aqui desde o início os contrários estavam em harmonia A religião foi o fator social de integração racial mais poderoso e que teria nessa interpretação suavizado e até mesmo democratizado as relações de raça historicamente no Brasil144 Verificouse entre nós uma profunda confraternização de valores e sentimentos Predominantemente coletivistas os vindos das senzalas puxando para o individualismo e para o privatismo os das casasgrandes Confraternização que dificilmente se teria realizado se outro tipo de cristianismo tivesse dominado a formação social do Brasil um tipo mais clerical mais ascético mais ortodoxo calvinista ou rigidamente católico diverso da 142 Essas duas faces do indivíduo estendemse à sociedade É isso que caracteriza nossa forma de realizar a democracia somos uma democracia racial BASTOS 2006 p 136 Grifo da autora 143 Na falta de sentimento ou da consciência da superioridade da raça tão salientes nos colonizadores ingleses o colonizador do Brasil apoiouse no critério da pureza da fé FREYRE 1933 2004 p 272 144 O catolicismo concordamos ter sido o elemento poderoso de integração brasileira Adaptouse assim às nossas condições de vida tropical e de povo de formação híbrida FREYRE 1936 2004 p 799 94 religião doce doméstica de relações quase de família entre os santos e os homens que presidiu o desenvolvimento social do Brasil FREYRE 1933 2006 p 438 No Brasil visto por Freyre não é que inexistiam contradições raciais elas foram com efeito amaciadas ou democratizadas pela religião de família pela característica da sociedade brasileira de harmonizar os elementos contrários na forma relacional e informal dessa sociedade patriarcal e cristã que se desenvolveu historicamente desde a escravidão que a formou Confraternização e não conflito É nesse ponto que reside a ideia da democracia racial visto que a sociedade brasileira nessa narrativa sempre tenderia para a harmonia baseada na ideia cristã de confraternização universal de raças diferentes O nosso catolicismo doce contrasta com a forma religiosa da América espanhola e inglesa que teriam sido sistemas mais ascéticos e ortodoxos Nessa narrativa o passado já não nos condenava a ponto de impossibilitar a construção de uma civilização pelo contrário a harmonia racial histórica é um dado histórico fundamental de nossa identidade enquanto nação145 Em SM buscando uma nova sistemática da miscigenação no Brasil Gilberto apontou que a formação social híbrida brasileira se processou mediante a reciprocidade racial e tal fator Precisamente o característico mais vivo do ambiente social brasileiro parecenos hoje o de reciprocidade entre as culturas e não o marcado pelo domínio de uma pela outra ao ponto da de baixo nada poder dar de si conservandose como em outros países de miscigenação num estado de quase permanente crispação ou de recalque FREYRE 1936 2004 p 802 Esses elementos de coesão social o patriarcado e a religião católica teriam sido os fatores de integração racial no Brasil que impediriam que os elementos raciais se distanciassem em polos antagônicos É essa visão da sociedade é na tessitura 145 A visão freyriana a mais refinada interpretação do mito da democracia racial à brasileira tornouse um dos principais alicerces ideológicos da construção de uma identidade coletiva na qual o passado não nos condenava MAIO 1999 p 112 95 dessa narrativa que Gilberto construiu uma leitura do Brasil e da sua história que dentre outras coisas instituiu a visão da harmonização racial da ausência de preconceitos de raça e de uma predisposição histórica do brasileiro em conviver com as diferenças de forma harmônica ou seja com essa visão teria como se fundamentar uma ideologia da democracia racial baseada na miscigenação como corretora de antagonismos raciais O Brasil teria uma cultura única no mundo de não segregar os elementos racialmente diferentes essa seria sua marca identitária Freyre é portanto o autor que de alguma forma sistematizou isso em sua obra nos anos 1930146 Nesse tempo Gilberto teria escrito suas obras seminais sobre raça e história apesar das ambiguidades que contrastaria com as obras posteriores147 A argumentação freyriana nesses textos analisados insistia reiteradamente em apontar que a miscigenação suavizou as contradições sociais e mesmo na decadência do patriarcado elementochave também na coesão social mesmo numa sociedade de extremos como a escravocrata tal decadência não engendrou o surgimento de posições polares apesar dos antagonismos terem para Freyre ganhado intensidade nova Com a urbanização do país ganharam tais antagonismos uma intensidade nova o equilíbrio entre brancos de sobrado e pretos caboclos e pardos livres dos mucambos não seria o mesmo que entre os brancos das velhas casasgrandes e os negros das senzalas É verdade que ao mesmo tempo que se acentuavam os antagonismos tornavamse maiores as oportunidades de ascensão social nas cidades para os escravos e para os filhos de escravos que fossem indivíduos dotados de aptidão artística ou intelectual extraordinária ou de qualidades especiais de atração sexual E a miscigenação tão grande nas cidades como nas fazendas amaciou a seu modo 146 Freyre procurou e conseguiu criar um sentimento de identidade nacional brasileiro que permitisse algum orgulho nacional como fonte de solidariedade interna Foi nesse contexto que nasceu a ideia de uma cultura única no mundo lusobrasileira percebida como abertura cultural ao diferente e encontro de contrários Daí também todas as virtudes dominadas posto que associadas ao corpo e não ao espírito que singularizam o brasileiro para ele mesmo e para o estrangeiro Antes de Freyre inexistia uma identidade nacional compartilhada por todos os brasileiros SOUZA 2017 p 28 147 Seus melhores livros são escritos ainda na década de trinta quando o autor era muito jovem Sua obra de juventude é marcada pelo tom aberto propositivo hipotético o que levou a alguns comentadores a interpretálo pelo paradigma da ambiguidade e da contradição constitutivas SOUZA 2000 p 70 96 antagonismos entre os extremos FREYRE 1936 2004 p 270 Grifo nosso Para Freyre mesmo numa sociedade escravista e até após o declínio progressivo do sistema escravista o elemento da miscigenação agiu como nenhum outro no sentido de harmonizar e democratizar racialmente a sociedade É na miscigenação como corretora de distâncias sociais que a retórica da democracia racial se constituiu Nesse discurso em nossa interpretação isso se coaduna com o tempo histórico em que essa unidade discursiva ganhou expressão Roberto Motta 2000 argumenta que com a obra de Freyre um novo paradigma de relações raciais no Brasil se instituiu foi o paradigma da morenidade148 que insistia na morenidade brasileira e que as relações raciais são vistas como exemplo mundial de acomodação racial numa relativa democracia étnica Foi nos anos 1930 que se forjou uma identidade nacional baseada em alguns símbolos nacionais E o mulato produto da miscigenação histórica e para Freyre o tipo étnico característico da sociedade brasileira será elevado à categoria de representante da brasilidade De modo que os antagonismos que não foram nunca absolutos não se tornaram absolutos depois daquela desintegração a do patriarcado E um dos elementos mais poderosos de intercomunicação pelo seu dinamismo de raça e principalmente de cultura têm sido nessa fase difícil o mulato FREYRE 1936 2004 p 808 Freyre tem na história intelectual brasileira um lugar privilegiado por suas interpretações novas em relação ao problema racial e na questão da miscigenação Entretanto é inegável o lado problemático do conteúdo de boa parte de suas ideias expostas nos seus livros dos anos 1930 Sua retórica se aproximava de uma visão conservadora de um pensamento social conservador que enfatizava a estabilidade patriarcal e minimizava os conflitos étnicos tomando a história do Brasil como a história da formação de uma comunidade mestiça sem discriminação de raça que faz 148 MOTTA Roberto Paradigmas de interpretação das relações raciais no Brasil Estudos afroasiáticos n 38 Rio de Janeiro Dez 2000 p 113133 97 o leitor pensar que historicamente as relações raciais foram quase sempre atenuadas e praticamente nunca de franca oposição entre os elementos raciais constituintes As interpretações mais gerais sobre a obra de Freyre não somente as que se referem às suas análises sobre a questão da raça e da mestiçagem sendo a democracia racial subjacente ou subentendida foram bastante incisivas ao afirmar a sua filiação a uma tradição de pensamento conservador apesar de ressaltarem quase em coro os aspectos positivos e inovadores de sua obra à época em que as mesmas foram publicadas Dante Moreira Leite em O caráter nacional brasileiro texto originalmente de 1954 apontou sobre a obra do autor pernambucano que Hoje com a independência dos povos africanos e com a luta dos negros norteamericanos pelos seus direitos civis a posição de Freyre parece inevitavelmente datada e anacrônica Finalmente as posições políticas de Gilberto Freyre tanto no Brasil como com relação ao colonialismo português na África contribuíram para identificálo com os grupos mais conservadores dos países de língua portuguesa e para afastálo dos intelectuais mais criadores Disso resulta que Freyre é hoje pelo menos no Brasil um intelectual de direta aceito pelos grupos no poder mas não pelos jovens intelectuais LEITE 2002 p 359 360 A interpretação sobre a obra de Gilberto feita por esse autor aponta algumas considerações que nós acolhemos em nosso trabalho e que se somam à nossa argumentação neste capítulo Em nossa compreensão a análise da mistura racial como corretora de distâncias sociais não pode ser possível pela persistência inequívoca do racismo e de vários condicionantes adversos que para os negros ou pessoas de cor podem ser incapacitadores ou se converterem em verdadeiras barreiras intransponíveis As imagens de um país sem conflitos ou com conflitos amaciados propostas por Freyre são uma leitura histórica e sociológica e mesmo antropológica feita em nossa análise numa base interpretativa com um viés de conciliação de raça e de classe condizente com a ideia de que o país historicamente não reprimiu o negro na sociedade escravocrata e o integrou completamente com sua mestiçagem corretiva 98 à sociedade como um todo e em todos os ambientes sociais Sua história social foi escrita com o ponto de vista da classe dominante Gilberto escreveu sob o ponto de vista da casa grande LEITE 2002 p 375 373 Apesar de concordamos em parte com a interpretação de Dante Moreira Leite não compreendemos a obra de Freyre apenas nessa perspectiva Seria simplismo demasiado considerar a obra do importante historiador brasileiro apenas sob o ponto de vista de sua vinculação política conservadora Tornase claro porém que sua forma de interpretar o tema da raça e da mestiçagem imprimiu imagens que podem levar a compreender a dinâmica das relações entre brancos e negros sob a égide de uma harmonia social histórica o que de forma contundente abre margem para se pensar na existência de uma democracia racial no Brasil O termo democracia racial parece ter uma historicidade que não se anuncia de forma pioneira em Freyre Como apontam os autores Maria Lúcia PallaresBurke e Peter Burke em texto já citado neste trabalho A expressão democracia racial parece ter sido usada pela primeira vez pelo médico e psicólogo social brasileiro Arthur Ramos em 1941 e depois em 1944 por Roger Bastide ao descrever uma conversa com Freyre A intenção dessa expressão era sugerir que no passado e no presente o Brasil era incomumente democrático apesar de não no sentido de um sistema político no qual todos votavam e ainda menos no sentido de um sistema econômico no qual eram mais ou menos iguais PALLARESBURKE BURKE 2009 p 277 278 Nesse sentido quando argumentamos aqui que a obra de Freyre agenciou elementos que fazem ou nos levam a pensar e a bibliografia consultada também nos direciona a essa forma de compreensão que sua interpretação da dinâmica histórica das relações raciais no Brasil permite dizer que exista uma democracia étnica ou racial evidentemente não estamos creditando ao autor a paternidade do conceito porém apesar de não ser o pai da democracia racial os textos de Freyre são fontes privilegiadas para se perceber na história intelectual brasileira como o discurso sociológico do século XX no Brasil pensou o dilema racial brasileiro com esse viés democrático 99 Não há como se atinar senão pela especulação o que Freyre tinha em mente com esse tipo de pensamento Conhecedor do Brasil e de sua história como poucos em sua época com vasta leitura em antropologia e ciências sociais aparentemente ele queria provar como desde o início o Brasil se desenvolveu menos amparado em termos racistas do que em termos classistas149 no sentido da discriminação social dos indivíduos no mundo que o português criou150nos trópicos Esse mundo no caso o Brasil dos anos 1930 e 1940 socialmente teria uma predisposição a não ter preconceito de raça uma herança do colonizador luso Para os conhecedores da obra de Freyre é perceptível a sua guinada de livros sobre a intepretação histórica do Brasil nos anos 1930 para textos nos anos 1950 e 1960 que enfatizaram sobremaneira a questão portuguesa lusotropical no caso151 inclusive no apoio para alguns bastante claro ao regime fascista de Salazar em Portugal na época152 Além do mais essa visão de uma possível democracia étnica ou racial no Brasil de Freyre o teria feito se esforçar para juntamente com outros pesquisadores do Instituto Joaquim Nabuco para Pesquisas Sociais fundado por ele quando deputado federal Constituinte no Projeto UNESCO o mesmo que Florestan e Bastide 149 Em SM por exemplo ele afirmou que Integração amadurecimento e desintegração que não se verificaram nunca independentemente de outro processo igualmente característico da formação brasileira o de amalgamento de raças e culturas principal dissolvente de quanto houve de rígido nos limites impostos pelo sistema menos feudal de relações entre os homens às situações não tanto de raça como de classe de grupos e indivíduos FREYRE 1936 2004 p 475 Grifo nosso 150 É o título de um livro de Gilberto Freyre que apareceu em 1940 fruto de uma série de conferências na Europa no ano de 1937 151 O chamado Lusotropicalismo é parte importante do programa de quase ciência proposto por Freyre nos anos 1950 Sobre isso em Novo mundo nos trópicos 1971 ele afirmou que E essa filosofia tropicologia se existe implicaria já um pequeno conjunto e até uma suma senão de sínteses ou de conclusões de sugestões ou de interpretações De interpretações e de sugestões com alguma coisa de sínteses e de conclusões as que estão à base da justificativa que do ponto de vista brasileiro o autor vem oferecendo para a formação de Tropicologia geral dentro da qual se desenvolvessem uma Hispanotropicologia e uma Lusotropicologia para estudos específicos de situações humanas também específicas condicionadas por ambientes ou por influências tropicais FREYRE 1971 2011 p 21 Essa Tropicologia cujo lusotropicalismo é parte fundamental já teria sido segundo Freyre ratificada pelos mestres da Sorbonne FREYRE 1971 2001 p 52 152 Jesse Souza em artigo já citado argumenta que Efetivamente Gilberto Freyre conclui na sua obra madura Conclui transformando algumas de suas brilhantes intuições de juventude acerca da especificidade e singularidade da formação social brasileira em uma ideologia nacionalista e luso imperialista de duvidoso potencial democrático O que antes adquiria a forma do questionarse acerca das peculiaridades e transformações de uma cultura européia nos trópicos transformase em tropicologia um conjunto de asserções de cientificidade duvidosa mas facilmente utilizáveis como ideologia unitária do tropical e mestiço Uma ideologia do apagamento das diferenças SOUZA 2000 p 70 Sobre a relação entre Freyre e o salazarismo português ver PINTO João Alberto da Costa Gilberto Freyre e a intelligentsia salazarista em defesa do Império Colonial Português 1951 1974 História v 28 n 1 p 445482 2009 100 participaram nos anos 1950 demonstrar ao mundo que o Brasil vivia uma situação de rara cordialidade entre brancos e negros153 Portanto podemos ver que as imagens de democracia racial para o autor não deveriam ficar apenas patente aos brasileiros Essas imagens deveriam à época de luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e do pósHolocausto na Europa ser exportadas para servir de exemplo ao mundo Todavia há que se notar que a narrativa de Gilberto nesses textos de 1930 não indica ou seja é inexiste o termo democracia racial em nenhuma página São imagens que podemos interpretar como indicativas de uma democracia racial principalmente as ideias de que a miscigenação corrigiu os extremos sociais e a quase inexistência de preconceitos de raça que seriam uma das muitas heranças portuguesas ao brasileiro Entretanto o termo democracia étnica e mesmo o termo democracia racial apareceram em outros textos Quando avançamos na leitura histórica das obras do autor podemos perceber sua insistência em defender que a civilização brasileira nos trópicos teria se desenvolvido sem os extremismos em termos de segregação racial como os existentes nos Estados Unidos e que dentre as características que singularizariam a cultura brasileira seria justamente a ausência de barreiras de cor ou o que ele denominou de relativa democracia étnica um dos fatores mais importantes e destacáveis do Brasil e a sua grande contribuição ao mundo Seria basicamente em língua inglesa que Freyre usaria o termo democracia racial como demonstra César BragaPinto154 De fato a própria expressão democracia racial que até onde conheço não se encontra nas obras em português aparece apenas na última frase da tradução inglesa de Sobrados e mucambos revisada pelo próprio Freyre onde se lê For Brazil is becoming more and more a racial democracy characterized by na almost unique combination of diversity na unity155 153 Em setembro de 1950 Freyre saudava a decisão da 5ª sessão da Conferência Geral da UNESCO em Florença Ele registrava não apenas o interesse políticocientífico pelo Brasil deviase à rara cordialidade das relações raciais existentes no país mas também observava que o valor dessa convivência multirracial era uma herança lusitana MAIO 1999 p 113 154 BRAGAPINTO César Os desvios de Gilberto Freyre Crítica sl sd p 281288 155 O autor se remete a esta edição FREYRE Gilberto The mansions anda the shanties The making of modern Brazil Trad e org de Harriet de Onís Ed Nova York Alfred Knopf 1968 p 431 101 A combinação singular de diversidade na unidade faria ou caracterizaria o Brasil como ou se tornando cada vez mais uma democracia racial É notável que na segunda edição brasileira refundida e acrescentada de cinco novos capítulos de SM em 1959 o termo não apareceu É democracia étnica relativa e imperfeita que veremos aparecer em outros textos também surgidos primeiramente em língua inglesa numa série de conferências que Freyre fez nos anos 1940 nos Estados Unidos em várias universidades Essa ideia de democracia racial na narrativa freyriana foi compreendida em duas vertentes principais uma intelectual e outra política Ou seja uma que se refere à tentativa de interpretação original e ousada e por isso mesmo polêmica e contestável da parte de Freyre em seu tempo principalmente nas décadas de 1930 e 1940 e outra do seu projeto mais geral de Brasil como uma nação que teria solucionado o que em outros países e regiões não teria ocorrido os problemas em relação à questão da mistura de raças e dos conflitos decorrentes desse mesmo contato racial O uso da expressão democracia racial por Gilberto Freyre de forma explícita se deu quase que exclusivamente apenas nos seus escritos em língua inglesa Fazendo uma espécie de arqueologia do conceito em seus textos o pesquisador Levy Cruz 2002 apontou que somente em textos de 1949 1950 1963 na edição de SM já citada em inglês e 1980 foi que Freyre teria se reportado diretamente à existência da democracia racial no Brasil É significativo citar uma entrevista concedida por Gilberto Freyre em 1980 em que ele tratou dessa questão A pergunta de Lêda Rivas foi Até que ponto nós somos uma democracia racial E a resposta de Gilberto Freyre foi esta democracia política é relativa Sempre foi relativa nunca foi absoluta democracia plena é uma bela frase de demagogos que não têm responsabilidade intelectual quando se exprimem sobre assuntos políticos os gregos aclamados como democratas do passado clássico conciliaram sua democracia com a escravidão Os Estados Unidos que foram os continuadores dos gregos como exemplo moderno de 102 democracia no século XVIII conciliaram essa democracia também com a escravidão Os suíços que primaram pela democracia pura até a pouco não permitiam que a mulher votasse São todos exemplos de democracias consideradas nas suas expressões mais puras relativas o Brasil é o país onde há uma maior aproximação à democracia racial quer seja no presente ou no passado humano Eu acho que o brasileiro pode tranquilamente ufanarse de chegar a este ponto Mas é um país de democracia racial perfeita pura Não de modo algum Quando fala em democracia racial você tem que considerar o problema de classe se mistura tanto ao problema de raça ao problema de cultura ao problema de educação isolar os exemplos de democracia racial das suas circunstâncias políticas educacionais culturais e sociais é quase impossível é muito difícil você encontrar no Brasil brasileiros que tenham atingido uma situação igual à dos brancos em certos aspectos Por quê Porque o erro é de base Porque depois que o Brasil fez o seu festivo e retórico 13 de maio quem cuidou da educação do negro Quem cuidou de integrar esse negro liberto à sociedade brasileira A Igreja Era inteiramente ausente A República Nada A nova expressão de poder econômico do Brasil que sucedia ao poder patriarcal agrário e que era a urbana industrial De modo algum De forma que nós estamos hoje com descendentes de negros marginalizados por nós próprios Marginalizados na sua condição social Não há pura democracia no Brasil nem racial nem social nem política mas repito aqui existe muito mais aproximação a uma democracia racial do que em qualquer outra parte do mundo Rivas 1980 1997 p 179 Apud CRUZ 2002 sp Itálicos do autor Apesar de negar explicitamente que não há pura democracia racial e que os negros foram marginalizados após a abolição o autor pernambucano insistia mesmo em 1980 com toda uma série de críticas e balanços de suas ideias já realizados na ideia de que o Brasil mais do que qualquer parte do mundo poderia ou seja era uma possibilidade ser uma democracia racial ao menos quando comparado a outros países Assim como na análise da escravidão benigna e das relações de produção e de tipo de sociabilidade na narrativa freyriana era constante a questão do método comparativo principalmente com a sociedade estadunidense mais especificamente sua região Sul O fato do Brasil não possuir leis raciais como as famigeradas Leis Jim 103 Crow156 não possuir lugar nos ônibus para negros bebedouros escolas bairros enfim uma série de apartheids raciais tinha para ele assim compreendemos um significado importante na sua apreciação das relações tanto históricas como no seu tempo das relações raciais no Brasil Em texto de apresentação do Brasil como civilização europeia nos trópicos tratase do livro Novo Mundo nos Trópicos Freyre afirmou sobre o hibridismo cultural que seria a principal causa ou fator que engendraria uma relação racial cordial entre os brasileiros que Isso parece explicar por que na América portuguesa se encontra atualmente 1971 uma civilização de tão vivas características sendo descrita por alguns autores como uma democracia étnica senão perfeita bastante imperfeita ainda avançada FREYRE 1971 2011 p 175 Outro ponto interessante e que não pode ser desconsiderado pois em nossa leitura é fundamental é que a democracia racial brasileira a democratização étnica nacional fora produto da colonização portuguesa Fruto do catolicismo sincrético da casagrande e sua família extensa a considerar escravos como filhos Foi uma produção da colonização lusitana esse é o ponto de partida A questão principal sobre a existência da democracia racial em Freyre é que ela só foi possível graças aos portugueses que encontraram na América tropical espaço ideal para a expansão e o desenvolvimento de sua civilização etnicamente democrática FREYRE 1971 2011 p 177 A retórica freyriana da democracia racial que lemos aqui enquanto matéria histórica se moveu em nossa compreensão em três diferentes direções que são em sua unidade discursiva interligadas A primeira foi no plano histórico ou seja Freyre projetou para o passado brasileiro a existência de antagonismos em equilíbrio o que é deveras importante na constituição da ideia de uma democracia racial A segunda era o plano presente ou seja pelo método comparativo principalmente afirmando que as condições étnicoraciais no Brasil são mais democráticas ele argumentava que na sua época anos 1930 e 1940 em termos raciais o Brasil era uma autêntica democracia embora não no plano político E a terceira foi o plano futuro em que a 156 Eram leis segregacionistas de cunho racista que existiram nos Estados Unidos até a década de 1960 104 imperfeita e ainda por se fazerconcretizar democracia étnicoracial iria se constituir enquanto processo e possibilidade Retomando aos fundamentos epistemológicos e onde ele concentrou o que compreendemos como plano histórico da análise da democracia racial vemos em CGS as imagens privilegiadas do processo de constituição de um sistema social racialmente democrático no passado brasileiro escravocrata latifundiário e sobretudo híbrido com a amolecedora de contrastes e antíteses que foi a miscigenação racial afinal O Brasil formouse despreocupados os seus colonizadores da unidade ou pureza de raça FREYRE 1933 2006 p 91 A questão da linguagem se revelava para o autor como um ponto importante de reflexão sobre a harmonia social característica da democracia racial histórica pois Mesmo a língua falada conservouse por algum tempo dividida em duas uma das casasgrandes outra das senzalas Mas a aliança da ama negra com o menino branco da mucama com a sinhámoça do sinhozinho com o moleque acabou com essa dualidade Não foi possível separar a cacos de vidro de preconceitos puristas forças que tão frequentemente e intimamente confraternizavam FREYRE 1933 2006 p 416 A aliança entre brancos e negros viabilizada pela ação social da ama de leite negra é determinante para Freyre pensar em relações raciais históricas amenas harmônicas e com doses de doçura A linguagem suavizada pela ama escrava foi um dos fortes elos de comunicação racial O forte poder da linguagem no sentido da comunicação social tem aqui um peso grande por ser creditado por Freyre o valor da harmonização de elementos díspares Mais uma marca característica de nossa formação histórica híbrida A marca do hibridismo tem nesse amolecer da linguagem um fator tão poderoso que por um momento as diferenças sociais entre as raças são anuladas Ainda seguindo a argumentação em CSG ele fez afirmações que condizem com a nossa segunda direção apontada sobre a democracia racial no caso o seu plano presente à época 105 Não que no brasileiro subsistam como no angloamericano duas metades inimigas a branca e a preta o exsenhor e o ex escravo De modo nenhum Somos 1933 duas metades confraternizantes que se vêm mutuamente enriquecendo de valores e experiências diversas quando nos completarmos em todo não será com o sacrifício de um elemento ao outro FREYRE 1933 2006 p 418 Grifo nosso Nesse trecho em que simultaneamente o plano presente e futuro estão expostos Freyre insistiu pelo contraste pela comparação em defender que o Brasil é sim um país de diferenças porém essas diferenças raciais sobretudo foram historicamente apagadas ao longo do processo de constituição da sociedade brasileira A história tem no hibridismo social um argumento forte nesse discurso de apagamento das diferenças raciais que em nossa compreensão foi parte fundamental da retórica da democracia racial Num mundo social onde nos anos 1930 e 1940 eventos em dimensões internacionais tais como a ascensão de regimes totalitários baseados em teorias racistas nazismo a sociedade estadunidense atravessada por leis segregacionistas e o apartheid na África do Sul faziam as análises operadas por Freyre terem em termos de democracia racial para o Brasil na época uma significância e um valor intelectual importante Porém tal forma de interpretação também é bastante problemática pois promove uma ideia em que o não conflito aberto de raças escamoteava a discriminação e o preconceito racial157 Assim como no passado no presente dele em nossa compreensão Freyre projetou essa visão de nãoconflito complementaridade harmonia confraternização racial enfim retórica que envolvia a um só tempo uma narrativa com base histórica passado e análise sociológica presente sobre a questão do contato racial a democracia racial brasileira era visível A questão da tolerância não a negação da distância social entre brancos e negros principalmente também é uma das ideiaschave do que para nós significa nos textos freyrianos apropriados como material histórico a democracia racial no 157 Em capítulo seguinte demonstraremos como Florestan Fernandes se insurgiu contra o que ele denominou de mito da democracia racial brasileira insistindo dentre outras coisas justamente nessa percepção de que o simples fato de não ter abertamente tensões raciais seria indicativo de boas ou democráticas relações raciais 106 plano presente Sobre isso em NMT escrevendo sobre as condições étnicas e sociais do Brasil moderno ele afirmou que Tem existido e ainda existe no Brasil distância social entre os diferentes grupos da população Essa distância porém é e hoje mais verdadeiramente do que no período colonial ou durante o Império quando a escravidão era o fato central da estrutura ou do drama social o resultado de consciência de classe mais do que qualquer preconceito de raça ou de cor De como é de larga tolerância a atitude dos brasileiros em relação a pessoas que embora com sangue africano podem passar por brancos nada mais expressivo do que o dito popular Quem escapa de negro branco é FREYRE 1971 2011 p 150 Essa era uma imagem de condições raciais no Brasil que deveria ser vendida para o público estadunidense afinal tratase acima de uma citação de um livro fruto de uma série de conferências feitas por Freyre nos Estados Unidos em 1944 acrescidos posteriormente de novos capítulos158 A consciência e a discriminação foram mais na perspectiva da classe social do que raça enfatizandas nesse trecho e isso implica em duas possíveis interpretações Uma primeira é a questão do critério de discriminação social que para Freyre no Brasil a questão da classe pesava mais que a raça ele não percebeu ou enfatizou que elas podem ser concomitantes ele as separou Uma segunda leitura sobre isso pode nos indicar que a classe vinda antes ou sendo algo mais forte que a raça é fruto da histórica predisposição do colonizador português de não ter consciência racial159 isso teria portanto se estendido até o presente do autor como algo observável e até mesmo isso acreditamos que sim deveria ser enfatizado como uma das positividades do Brasil 158 Tratase aqui do livro Novo Mundo nos Trópicos que foi baseado no texto mais antigo Brazil and interpretation 1945 texto composto da série de conferências na Universidade de Indiana nos Estados Unidos Em texto de apresentação à edição de Novo Mundo nos Trópicos utilizada neste trabalho o historiador inglês Peter Burke também ele um estudioso da obra de Freyre apontou sobre isso que Em 1944 quando Freyre foi convidado para proferir as Patten Lectures na Universidade de Indiana em Bloomington ele tinha 44 anos de idade Já tinha adquirido uma reputação no Brasil uma década antes mas ainda não era importante no cenário internacional FREYRE 1971 2011 p 11 12 159 Op Cit 1933 2006 p 91 107 Em relação ao plano futuro do que em nossa compreensão é possível identificar no discurso de Freyre como elementos da democracia racial ainda em NMT ele chegou inclusive a se referir explicitamente embora utilizando o termo democracia étnica que Creio que o Brasil como comunidade nacional tem que ser interpretado em termos de uma comunidade cada vez mais consciente do seu status ou do seu destino de democracia social Social e étnica O Brasil destacase como comunidade inclinada para a democracia étnica sobretudo pelo contraste da sua política democrática de raça com a da maioria das nações modernas FREYRE 1971 2011 p 200 Inclinação futura mais embasada numa longa duração de harmonização de conflitos raciais para Freyre a democratização étnicoracial plena a corrigir as imperfeições era no Brasil um processo que iria se constituir sob a base do hibridismo cultural e evidentemente racialhistórico de nossa formação enquanto sociedade de tipo metaracial Até mesmo porque para ele os latinos têm desenvolvido o aspecto étnico da democracia mais do que o político e os anglo saxões o puramente político mais do que o étnico ou o econômico FREYRE 1971 2011 p 220 A ausência de democracia política ou econômica para inglês ver foi contrastada e vista como uma vantagem que ingleses não tinham com a democracia no terreno étnico das nações latinoamericanas e em singular posição o Brasil É evidente que a democracia racial ou as imagens no discurso freyriano aqui investigado nos planos histórico presente e futuro estão sempre quando enunciados por Freyre em nossa compreensão conectados Nós os destacamos porque eles nos remetem a pelo menos uma forma de interpretação desse discurso A saber que para Freyre o Brasil se formou era e seria ainda mais uma democracia racial que se baseava principalmente pela histórica colonização portuguesa No fim das contas seu discurso sempre remetia à questão dos lusos na formação do Brasil como um país mestiço sem discriminação aberta e franca diferente outro uma civilização nos trópicos que pela sua colonização lusa não se transformou em um país 108 racista abertamente com leis segregacionistas e afins como eram os Estados Unidos de sua época por exemplo160 Sem dúvida que o argumento central da obra de Gilberto sobre o tema da raça nos anos 1930 se concentrava na sua perspectiva sobre a diferenciação entre raça e cultura que segundo ele mesmo teria aprendido com o antropólogo Franz Boas na Universidade de Columbia no início da década de 1920 A ideia de amalgamento racial como fator fundamental para entender a sociedade híbrida e sem preconceito racial que se formara nos trópicos teria nessa distinção basilar entre raça e cultura o aspecto determinante que também acreditamos ser fundamental para se discutir a propalada e às vezes implícita noção de democracia racial na narrativa freyriana Sobre esse ponto cabe destacar as afirmações de Ricardo Benzaquem Araújo para alguns o melhor intérprete entre nós da obra freyriana como afirmou o historiador Ronaldo Vainfas161 para quem a distinção entre raça e cultura em Freyre mais especialmente na sua obra nos anos 1930 não estava tão bem discriminada como o autor julgou e que essa imprecisão conceitual abalaria conseqüentemente sic a insistente pretensão de originalidade de Gilberto que recorria ao ensinamento relativista de Boas para se distanciar dos seus antecessores e competidores nacionais ARAÚJO 1993 p 33 Ainda seguindo a argumentação de Araújo em seu estudo importante sobre a obra freyriana nos anos 1930 distinguindo raça de cultura assentado nesse critério ele no mesmo movimento em que se afasta do racismo e admite a relevância de outras culturas nosso autor teria criado uma imagem quase idílica da nossa sociedade colonial ocultando a exploração os conflitos e a discriminação que a escravidão necessariamente implica atrás de uma fantasiosa democracia 160 Nos antecedentes europeus da história brasileira ensaio que também faz parte do livro Novo Mundo nos Trópicos Freyre afirmou retomando ideias explicitas em Casagrande senzala que Segundo autores pela mistura da gente de Portugal com o povo semítico é que há de explicar a capacidade que parecem ter os portugueses mais do que qualquer povo da Europa de se aclimatarem nas mais diversas regiões do mundo e ao lado de judeus os mouros que igualmente teriam contribuído para essa plasticidade do colonizador português FREYRE 1971 2011 p 80 Plasticidade e aclimatabilidade que do colonizador teria sido legado ao brasileiro a questão da não segregação e sim assimilação racial 161 VAINFAS Ronaldo Casagrande erótica A sexualidade na obra prima de Gilberto Freyre In VAINFAS Ronaldo NASCIMENTO Francisco Alcides do História e historiografia Ed Recife Bagaço 2006 p 412 109 racial na qual senhores e escravos se confraternizariam embalados por um clima de extrema intimidade e mútua cooperação ARAÚJO 1993 p 30 31 Seguindo essa argumentação portanto mesmo naquilo que seria o mais significativo e distinto em termos de análise histórica surgido até então no caso a separação entre raça e cultura na análise das relações raciais históricas no Brasil critério que embasa todo o estudo de CGS ainda assim essa mesma diferenciação não teria livrado Freyre de expor em seu trabalho imagens e reminiscências que em conjunto produziram uma imagem mítica das relações entre senhores e escravos ou seja não o tornaria de todo inescusável de apesar de evidentemente não como criador ser um dos intérpretes da história brasileira baseado na ideia de democracia racial É inegável porém a tentativa de Freyre com sua obra nos anos 1930 que deve ser vista em seu tempo como extremamente relevante de superar a visão negativa de nós brasileiros mesmos Como evocou um dos estudiosos de sua obra162 O admirável em Gilberto Freyre é que regressava dos Estados Unidos e da Europa sem estar europeizado ou ianquizado no seu espírito e na sua inteligência o que aprendeu com grandes mestres serviu para aprofundar o mistério nordestino Ele trouxe de lá a explicação de nós mesmos O Brasil de hoje miscigenado moreno mulato caboclo valorizado no seu complexo racial é um Brasil gilbertiano Com CasaGrande Senzala tenho dito mais de uma vez que passamos do preconceito ao conceito O preconceito era o de raça O conceito é o de metaraça PEREIRA In FONSECA 1985 p 72 Grifo nosso Esse tipo metaracial dos trópicos o brasileiro dos anos 1930 produto histórico da hibridização cultural era na narrativa de Freyre em nossa análise o tipo social sem consciência de raça plástico como o colonizador luso contemporizador em 162 PEREIRA Nilo CasaGrande Senzala e o seu tempo In FONSECA Edson Nery da Org Novas perspectivas em CasaGrande Senzala Ed RecifePE Editora Massangana Fundação Joaquim Nabuco 1985 p 6677 110 termos étnicos O Brasil da democracia racial era esse do tipo metaracial descrito por Gilberto Freyre principalmente nos anos 1930 Apesar de sua metodologia nova à época e dentro de um horizonte intelectual muito singular devido à sua trajetória pessoal de estudante em universidades estrangeiras nem mesmo o mais animado dos seus comentadores pode esconder que quando buscamos compreender historicamente suas ideias ele ainda retinha termos do anterior léxico racialista que ele mesmo buscava romper evidentemente tratando a questão velha da raça com uma terminologia nova cultura E nessa retenção abriu margem com suas imagens históricas para se pensar o Brasil em termos de democracia racial tanto no plano histórico como no seu presente e até mesmo projetando isso para o futuro Qual seria o sentido do ponto de vista de uma análise histórica das análises de Gilberto Para nós um sentido eminentemente conservador quando não reacionário 23 O sentido conservador da narrativa freyriana sobre as relações raciais O passado nunca foi o passado continua163 A interpretação freyriana do tipo metaracial brasileiro nos trópicos onde repousaria a democracia racial exportável ao mundo principalmente no pósguerra 1945 tinha de acordo com o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior uma singular significância para as elites nordestinas em crise na época Essa visão plástica da realidade condiz com a sua principal postura política a da busca da harmonização dos conflitos da superação dos antagonismos por uma interpretação conciliatória dos contrários Esta procura da harmonia aliase à procura da permanência da manutenção da ordem por isso o pensamento freyriano se orienta mais no sentido espacial do que temporal ALBUQUERQUE JÚNIOR 2011 p 112 163 Frase de Gilberto Freyre In Epígrafe PALLARESBURKE Maria Lúcia G BURKE Peter Repensando os Trópicos um retrato intelectual de Gilberto Freyre Ed São Paulo Editora da UNESP 2009 p 9 111 Dito isso um caminho possível de análise da obra freyriana que é o que estamos buscando sustentar é apontar o projeto de Brasil que ele comportava com a sua ideia ora implícita ora subentendida de democracia racial baseada na concepção de que a constante da história brasileira e até mesmo do seu presente era a conciliação de contrários da harmonia racial e por conseguinte social Seu projeto de país em que a representação do mesmo repousa em uma interpretação histórica bem particular das relações raciais era portanto um projeto vinculado às elites que nordestinas ou não em crise ou não se beneficiaram e se beneficiavam com a sociedade como ela está ou seja sem abalos na estrutura que perturbe o antagonismo e a hierarquia em equilíbrio histórico164 Não é só portanto no seu explícito e público apoio à ditadura civilmilitar de 1964 BASTOS 2006 p 34 ou no seu também notório e visível apoio ao regime salazarista português nos anos 1950 PINTO 2009 Na sua própria reflexão sobre a história brasileira principalmente na questão das relações raciais repousava uma visão de sociedade vinculada a interesses sociais historicamente associados às elites o que permite compreender sua narrativa como especialmente conservadora LEITE 2002 O historiador Carlos Guilherme Mota em análise sobre a ideologia da cultura brasileira apontou sobre a obra freyriana dos anos 1930 que Uma abordagem sumária permite desde logo vislumbrar em seu comportamento intelectual que também se traduz em nível político possuindo enraizamento social e econômico as expressões de um estamento dominante embora em crise Carrega consigo um certo sentido de mando as marcas da distinção e do prestígio uma visão senhorial do mundo suavizada pelas condições gerais de vida criadas na esteira das transformações sociais e políticas com foco na crise de 1930 MOTA 2008 p 94 Grifo nosso 164 Sobre isso Roberto DaMatta em texto introdutório à edição de SM utilizada nesta pesquisa afirmou que O que Gilberto tenta demonstrar correndo o risco de ser chamado de reacionário e um ideólogo de um escravismo doce é que o sistema funcionava hierarquicamente As diferenças não corriam em paralelo mas faziam parte de uma geometria social de inclusão uma figura na qual os senhores englobavam mas eram também englobados por seus escravos com os quais mantinham laços de interdependência DAMATTA In FREYRE 2004 p 19 112 Essa visão senhorial que se pode caracterizar como um estilo de pensamento conservador165 que à época teve muito sucesso166 revalorizando dentre outras coisas as tradições o tempo perdido em que as elites e principalmente os estratos inferiores da sociedade estavam em seu lugar Nesse ponto portanto narrativa e visão política estão interligadas democracia racial e projeto conservador de Brasil estavam entrelaçados Depreendese da análise da obra de Freyre sobre a questão da discriminação racial que a identificação racial no Brasil seria mais afetada especificamente pelo critério econômico de classe por exemplo do que pela consciência racial stricto senso Essa não poderia existir ou se existia era circunscrita a círculos racistas na sociedade brasileira exógena pois o brasileiro no geral mesmo o mais alvo e loito teria sangue negro como se esse dado por si desimpedisse a discriminação racial que sem dúvida havia e fazia a democracia racial brasileira não fluir plenamente Ele mesmo afirmou em protesto por ocasião de um hotel em São Paulo no ano de 1950 quando ainda era deputado federal ter se recusado a receber a coreógrafa e dançarina negra estadunidense Katherine Dunharm que Este é um momento o ultraje à artista admirável cuja presença honra o Brasil em que o silêncio cômodo seria uma traição aos nossos deveres de representantes de uma nação que faz do ideal se não sempre da prática da democracia racial inclusive a étnica um dos seus motivos de vida uma das suas condições de desenvolvimento FREYRE 1966 p 190 Grifo nosso Aqui é possível perceber claramente ao menos duas coisas Primeiro que do ponto de vista do discurso sobre o Brasil atual década de 1950 aqui Freyre pensou o país em que a democracia racial e étnica se não era uma prática era um ideal da nação Segundo que do ponto de vista mais retrospectivo Freyre pensava que 165 Ver MANHHEIN Karl Conservative thought In Essays on Sociology and Social Psychology Ed London Routledge e Kegan Paul 1953 p 74164 166 Estranho sucesso A invenção ou revalorização das tradições aparece num momento quando os setores dominantes tradicionais ligados à agricultura do açúcar estão claramente em decadência Momento em que seu poder político é questionado Mais uma vez teve razão Hegel ao afirmar que a coruja de Minerva retorna ao crepúsculo Nunca antes da década de 1930 os setores dominantes agrários tiveram tão grande ideólogo E nunca uma interpretação sobre os mesmos tão grande sucesso BASTOS 2006 p 48 113 historicamente as bases da democracia étnica e racial eram as condições do desenvolvimento do Brasil que desde os inícios da colonização lusa já se formava sem consciência de raça Aplicando os conceitos de espaço de experiência e horizonte de expectativa do historiador alemão Reinhart Koselleck167 na obra freyriana é possível compreender sua narrativa nesses dois planos conceituais da seguinte maneira O espaço de experiência freyriano das elites nordestinas em suas casasgrandes de engenho naquela geografia ainda colonial era um espaço de experiência positivo evocado inclusive pela sua memória pessoal sendo ele mesmo descendente de aristocrata família ou seja no espaço de experiência da sociedade brasileira havia algo que se quebrara justamente aquilo que a singularizaria como uma civilização tropical no caso os antagonismos raciais em equilíbrio mesmo em uma sociedade que se dividia fundamentalmente entre senhores brancos de um lado e escravizados negros do outro afinal como ele mesmo afirmou Foi então o Brasil uma sociedade quase sem outras formas ou expressões de status de homem ou família senão as extremas senhor e escravo O desenvolvimento de classes médias ou intermediárias de pequena burguesia de pequena e de média agricultura de pequena e de média indústria é tão recente entre nós sob formas notáveis ou sequer consideráveis que durante todo aquele período colonial seu estudo pode ser quase desprezado e quase ignorada sua presença na história social da família brasileira FREYRE 1936 2004 p 52 53 Nesse trecho é lembrado que a característica do nosso espaço de experiência esse da família patriarcal e tutelar do Brasil é uma sociedade de antagonismos e de hierarquia Uma sociedade cujas engrenagens funcionavam com mãos de ferro porém sem perder o doce característico da açucarocracia do engenho adocicado ainda pelo catolicismo também de família mais sincrético e até mesmo dionisíaco do que o protestantismo mais ascético das colônias inglesas O Brasil do passado de 167 Para quem espaço de experiência se vincula ao tempo passado e o horizonte de expectativa se vincula ao tempo futuro KOSELLECK 2006 p 304327 Sobre esses conceitos em Koselleck ver BARROS José DAssunção Barros O tempo dos historiadores Ed PetrópolisRJ Vozes 2013 p 140 141 114 Freyre era um Brasil bom principalmente para a sua elite econômica e política a mesma que em declínio em poderio tanto econômico e sobretudo político a partir de 1930 teria no discurso de Freyre um intelectual que lhe restituía a grandeza e a opulência de outrora O horizonte de expectativa de Freyre com sua argumentação parecenos o levou a considerar a civilização tropical e seus antagonismos raciais em equilíbrio basilar de sua democracia racial como o modelo a ser exportado para o mundo Modelo de política de integração racial de sucesso que não engendrara como nos Estados Unidos ou África do Sul um regime de segregação racial em termos legais como um apartheid Usando basicamente essa mesma nomenclatura de R Koselleck 2006 o historiador José Carlos Reis sobre o tempo histórico do Brasil em Freyre apontou que Freyre prefere a continuidade à mudança ou a mudança dominada pela continuidade Seu olhar sobre o futuro do Brasil é pessimista nos anos 30 a mudança se acelerava assustandoo pois comprometia a continuidade do passado patriarcal Com sua reflexão ele quer fazer uma defesa desse passado e impedir ou desacelerar a mudança REIS 2006 p 80 Era um intelectual do engenho antimoderno cuja significação política de sua obra se vinculava à crítica da noção de progresso como agente perturbador do equilíbrio social168 Sua produção no que tange ao tema democracia racial pode ser lida também embora não tenhamos nos aferrado a essa estrita conceituação como a de um intelectual tradicional169 ligado às elites em crise de sua época mas nos pareceu simplista demais pensar sua produção nesses termos todavia como se verá num capítulo seguinte a crítica contundente à democracia racial e às relações harmônicas entre as raças proposta principalmente nos anos 1960 por Florestan Fernandes irá diferir frontalmente com essa forma de interpretação do Brasil mediada 168 ALBUQUERQUE JÚNIOR Durval Muniz de A invenção do nordeste e outras artes 5 ed São Paulo Cortez 2011 p 113 169 Ver GRAMSCI Antonio A Formação dos Intelectuais In Os Intelectuais e a Organização da Cultura 4 ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1982 p 323 115 pela ideia da democracia racial de Freyre que tinha uma significação eminentemente conservadora 116 CAPÍTULO III RAÇA E CLASSE A NÃO INTEGRAÇÃO DO NEGRO NO BRASIL O terceiro capítulo do nosso trabalho analisando os textos de Florestan Fernandes busca num primeiro momento identificar sua crítica à ideologia da democracia racial no caso denunciando o mito que essa ideologia representava para o autor paulista Nosso ponto maior posteriormente é compreender a sua análise sobre a não integração do negro no Brasil que para ele representava uma problemática que ia além da pobreza no sentido material Procedemos pois em nossa análise à leitura que Florestan fez nos anos 1960 da não integração do negro na sociedade de classes que se formava feita juntamente com a sua forma de crítica ao mito do Brasil como o país da democracia racial que era a ideia geral que até então se fazia do país principalmente quando se tinha como base os textos de Gilberto Freyre dos anos 1930 e 1940 como demonstramos em capítulo anterior A obra AINSC 1964 fruto de sua tese de cátedra na USP tem o estilo pedregoso da espécie Dois alentados volumes que condensam interpretações quantitativas baseadas em uma análise sociológica com alicerces teóricos variados num leque de referências extraordinariamente extenso Dentro da literatura sociológica sobre as relações raciais a obra se destaca não apenas pela amplitude e pelas formas de análise mas também pelo seu duplo aspecto de ser ao mesmo tempo uma obra científica e uma obra política porém sem perder o elemento de crítica a partir da problemática racial de aspectos mais gerais da sociedade brasileira e sua história afinal como ele mesmo argumentou tratavase de uma obra que problematizava a emergência do povo na história170 Antes de problematizarmos a não integração do negro na perspectiva de Florestan na sociedade classista que se formava iremos num primeiro momento enfatizar a forma de crítica e analisasse o mito da democracia racial conforme Florestan mesmo nomeou Isso se releva importante como análise prévia da não integração do negro em pelo menos dois pontos O primeiro é que a percepção da não integração do negro estaria obscurecida justamente por esse mito que serviria como véu ideológico para que a questão da subalternização do elemento de cor na sociedade capitalista em formação não era percebida e assim atingiria um grau sério 170 FERNANDES OpCit 1964 pXI 1965 117 de invisibilidade O segundo é que faz parte da proposta da nossa pesquisa enfatizar as leituras de Freyre e de Florestan sobre o tema da democracia racial buscando assim desenvolver uma análise de como em tempos diferentes e a partir de perspectivas distintas os dois autores trataram essa questão 31 Florestan A falácia da democracia racial Para Florestan democracia racial era um mito a ser desconstruído Os mitos servem dentre outras coisas para instituir uma visão de mundo que explique uma determinada origem e que sirva socialmente para manter determinados padrões e condutas por parte dos indivíduos O mito da democracia racial serviria para manter intacta ou para disfarçar o histórico caráter segregador da sociedade brasileira em relação aos negros que desde a escravidão foram subjugados Florestan referindose ao mito da democracia racial em AINSC argumentou que Durante quase meio século permaneceu soberana e intocável uma ideologia racial que colidia com as bases ecológicas econômicas psicológicas sociais culturais jurídicas e políticas de uma sociedade multirracial FERNANDES 1964 1965 p 195 Grifo nosso Num primeiro momento destacamse duas observações depreendidas dessa análise de Florestan Primeiro que para ele essa ideologia racial permaneceu por quase meio século ele publicou o seu livro em 1964 ou seja ela precede a obra de Freyre por exemplo e tem na obra dele ao menos uma contraposição sociológica mais direta Segundo que essa mesma ideologia racial colidiria com as bases sociais que ela busca interpretar isto é que tendo uma visão ampla no sentido da ecologia economia psicologia análise sociológica cultural jurídica e política não existe base para se pensar em termos de democracia racial no Brasil nem no plano histórico no sentido de sua vigência e não em termos de existência conceitual nem no plano social à época no caso os anos 195060 que é o contexto do autor Para Florestan falar em termos de democracia racial seria contra os fatos históricos e a realidade empírica presente um duplo erro Erro que 118 Na ânsia de prevenir tensões raciais hipotéticas e de assegurar uma via eficaz para a integração gradativa da população de cor fecharamse todas as portas que poderiam colocar o negro e o mulato na área dos benefícios diretos do processo de democratização dos direitos e garantias sociais FERNANDES 1964 1965 p 197 Esse mito tinha então uma função social de invisibilizar as barreiras de cor Então Engendrouse assim um dos grandes mitos de nossos tempos o mito da democracia racial brasileira Admitiase de passagem que esse mito não nasceu de um momento para outro Ele germinou longamente aparecendo em todas as avaliações que pintavam o jugo escravo como contendo muito pouco fel e sendo suave doce e cristãmente humano Todavia tal mito não possuía sentido na ordem social escravocrata e senhorial FERNANDES 1964 1965 p 197 A ideia de igualdade entre as raças escondia escamoteava o real conflito O estado social racial brasileiro não seria de acomodação social mas de conflito social O engendrar do mito da democracia racial brasileira um dos pilares da identidade nacional da brasilidade escondia o racismo crasso existente em nosso país Historicamente portanto deturpava as relações entre senhores e escravos sendo o pouco fel ou a escravidão benigna como queria Freyre aspectos fundamentais de sua germinação Ainda em AINSC podemos encontrar a seguinte referência ao mito da democracia racial contestado por Florestan O atraso da ordem racial ficou assim como um resíduo do antigo regime e só poderá ser eliminado no futuro pelos efeitos indiretos da normalização progressiva do estilo democrático de vida e da ordem social correspondente Enquanto isso não se der não haverá sincronização possível entre a ordem racial e a ordem social existentes Os brancos constituirão a raça dominante e os negros a raça submetida Doutro lado enquanto o mito da democracia racial não puder ser utilizado abertamente pelos negros e mulatos como um regulador de seus anseios de classificação e de ascensão sociais ele será inócuo em termos da democratização da ordem racial imperante FERNANDES 1964 1965 p 209 210 119 Aqui Florestan apontou como a ordem racial brasileira que nada tinha de democrática era um resíduo da ordem social escravocrata brasileira e a utilização por parte de negros e mulatos do mito da democracia racial era uma possibilidade que dentre outras coisas poderia colaborar na construção de uma ordem racial igualitária e não excludente Como categoria histórica o mito da democracia racial deveria ser reapropriado agora para efetivamente instituir relações raciais e sociais igualitárias e não assimétricas A luta dos negros deveria se dirigir no presente para a democratização racial que só viria plenamente pela sua efetiva ação social orientada para este fim Em ONMB se lê que Em consequência temos que admitir que o mito da democracia racial fomenta outros mitos paralelos que concorrem para esconder ou para enfeitar a realidade e que esses mitos são perfilhados sem base objetiva mesmo pelos negros e pelos mulatos FERNANDES 1972 2007 p 28 Esse falso idealismo da democracia racial171 que encobria as relações de raça que eram excludentes também se revelava como um entrave para a ação prática Destacavase na escrita de Florestan a reiteração entre pensamento e ação ou seja sua forma de trabalhar com o tema da raça e seu empenho em desconstruir o mito da democracia racial que se revela como um invólucro místico ideológico que encobria a realidade cruel172 do racismo e do preconceito e se relacionavam com a dimensão prática da vida com a ação transformadora com uma proposta de intervenção na realidade de modo a transformála Com efeito A democracia racial não impõe a participação como um desafio passivo para participar o negro e o mulato precisarão dar de si mesmos o que eles possuem de mais criador e produtivo O 171 FERNANDES Florestan O negro no mundo dos brancos 2 ed São Paulo Global 1972 2007 p 30 172 A partir dessa interpretação a tese da cordialidade das relações raciais da democracia racial revelase ficção ideológica IANNI 2008 p 24 120 que pretendemos para o nosso futuro imediato e remoto não é fixação dos dois pólos separando o negro de um lado e o mundo dos brancos de que ele participa marginalmente de outro mas que o mundo dos brancos diluase e desapareça para incorporar em sua plenitude todas as fronteiras do humano que hoje apenas coexistem mecanicamente dentro da sociedade brasileira FERNANDES 1972 2007 p 35 36 Mesmo com a constatação acima citada é inegável como ele mesmo disse mais acima que não se pretendia criar mediante uma desconstrução do mito da democracia racial um mundo de negros à parte de um mundo dos brancos Era a diluição das fronteiras ou barreiras de cor FERNANDES 2007 que se buscava que deveria ser o objetivo de um movimento negro e mulato que modificasse o status quo racialista brasileiro da época Referindose à pesquisa da UNESCO que ele e Roger Bastide participaram nos anos 1950 Florestan argumentou que Ao que parece essa instituição alimentava o propósito de usar o caso brasileiro como material de propaganda se os brancos negros e mestiços podem conviver de forma democrática no Brasil por que o mesmo processo seria impossível em outras regiões Não obstante o que é uma democracia racial A ausência de tensões abertas e de conflitos permanentes é em si mesma índice de boa organização das relações raciais FERNANDES 1972 2007 p 39 Grifo nosso Ao questionar a própria democracia racial o autor problematizava a ideia muito freyriana por sinal de que se inexistem relações abertas de hostilidades em relação à população negra ou de cor exemplificada em residências somente para negros ônibus escolas praças etc inexistiam barreiras de cor Para Florestan só essa ausência de tensões raciais abertas não validariam a ideia de pensar as relações entre brancos e negros sob a perspectiva da democracia étnica ou racial Pois essa mesma ideologia que funcionava como o mecanismo de mascaramento da realidade racial brasileira tinha uma função social e política bastante clara para a população negra Não se revoltem não há porque se revoltar Somos uma democracia racial 121 Em termos de interpretação do social haveria então uma confusão em que se poderia constatar que Em suma a expansão urbana a revolução industrial e a modernização ainda não produziram efeitos bastante profundos para modificar a extrema desigualdade racial que herdamos do passado Essa afirmação contraria o que se costuma dizer sobre a democracia racial que imperaria no Brasil É que se confundem padrões de tolerância estritamente imperativos na esfera do decoro social com igualdade racial propriamente dita FERNANDES 1972 2007 p 67 Porém quanto ao mais não é só a democracia racial que está por constituir se no Brasil É toda a democracia na esfera econômica na esfera social na esfera jurídica e na esfera política FERNANDES 1972 2007 p 40 Para o sociólogo paulista falando nesse texto já no início dos anos 1970 em plena ditadura civilmilitar somado à luta para a construção mediante a ação prática da democracia racial estava também o projeto de construção da democracia no sentido mais amplo do termo Como já enfatizamos ao longo do trabalho é constante quando analisamos o pensamento e as ideias de Florestan o esforço em conciliar pesquisa com ação transformadora Democracia racial não se sustentaria para ele senão como um mito engendrado numa sociedade estamental de castas173 Em síntese O privilégio é tão justo e necessário para as camadas dominantes e também para as suas elites culturais que as formas mais duras de desigualdade e de crueldade são representadas como algo natural e até democrático Está nessa categoria o mito da democracia racial tão entranhado na visão conservadora do mundo no Brasil O que define uma democracia racial Pouco importa O que importa é que o mito seja aceito e que se propague que não existe no mundo outro exemplo de democracia racial FERNANDES 1972 2007 p 294 173 Para o Paulista a sociedade de castas é uma sociedade de classes mais rígida fundamentada em certas relações de produção na qual há pouco ou nenhum espaço para mudança ou mobilidade é a sociedade précapitalista com base econômica e mesmo na versão brasileira apresentando muitas semelhanças com o regime feudal da Europa medieval MOTA 2000 p 125 122 Não é nem a precisão conceitual sua gênese ou mesmo o autor que a formulou Para Florestan no que se referia à democracia racial era a sua aceitação que interessava principalmente aos setores mais conservadores da sociedade brasileira e como apontamos a leitura de Freyre se coaduna bem nesse sentido Embora Florestan não o cite transparece em nossa compreensão um diálogo com a obra de Freyre e sua visão de harmonização dos contrários e de democracia étnica que não destacaria o lado sombrio do mundo que o português criou FERNANDES 1972 2007 Nada de democracia racial poderia ser encontrado nesse mundo criado pelos lusos Há de se citar que a disputa de interpretação sobre raça e relações étnicas aqui expostas não é apenas em termos de teoria ou paradigma explicativo A disputa era também em termos de projeto de Brasil Enquanto Freyre ao salientar a questão da união explicou e buscava a conservação da coesão social Florestan queria uma ação prática transformadora o que dilatava e redimensionava o debate para além do universo das pesquisas e livros em direção ao terreno da política174 Em uma entrevista175 Florestan disse claramente que Os resultados da investigação que fiz em colaboração com o professor Roger Bastide demonstraram que essa propalada democracia racial não passa infelizmente de um mito social E um mito criado pela maioria e tendo em vista os interesses sociais e os valores morais dessa maioria ele não ajuda o branco no sentido de obrigálo a diminuir as forças existentes de resistência à ascensão social do negro nem ajuda o negro a tomar consciência da situação realista da situação e a lutar para modificála de modo a converter a tolerância racial existente em um fator favorável a seu êxito como pessoa e como membro de um estoque racial FERNANDES 1972 2007 p 60 174 Nessa polêmica FreyreF Fernandespesquisadores do Cebrap aparecem duas disputas uma teórica e outra política A primeira opõe marxistas e historicistas o motor da história não são as ideias não são as mentalidades coletivas mas a luta de classes as classes em luta na esfera da produção A visão culturalista é vista como interclassista reacionária pois harmonizadora das contradições reais A segunda disputa opõe duas regiões do Brasil O Nordeste cujas oligarquias locais perdiam o poder desde a abolição do tráfico negreiro e a ascensão do café paulista exatamente nos anos 1850 de Varnhagen e os paulistas que ganhavam poder na mesma proporção em que os primeiros perdiam o seu REIS 2006 p 60 61 175 Publicada por A Gazeta 2781966 Reproduzida em F Fernandes J B Borges e O Nogueira A questão racial brasileira vista por três professores São Paulo Escola de Comunicações e Artes USP 1971 FERNANDES 1972 2007 p 59 Nota 2 123 Isso demonstra ao menos duas coisas Primeiro acreditamos que já enfatizamos esse ponto a democracia racial enquanto ideologia racial orientada com fins de escamotear as contradições raciais como o preconceito e a discriminação racial não resistem a um estudo empírico Ou seja ela é mais uma forma de intuição do que resultado de uma pesquisa objetiva176 Segundo apesar do uso da ideologia que beneficiou de alguma forma o branco ao menos nos tempos da escravidão para Florestan a democracia racial nem ao branco nem ao negro poderia beneficiar Para o primeiro ela não o auxiliaria a barrar o negro em ascensão e para este ela não o ajudaria sem dúvida na tomada de consciência da sua situação enquanto negro imerso num mundo criado para favorecer aos brancos A democracia racial enquanto noção portanto não favorecia nem um dos lados raciais Antes de falarmos da forma como o autor destacou a questão da não integração do negro no Brasil convém enfatizar em termos de conclusão o que em nossa compreensão era a visão de Florestan sobre a democracia racial Como já reiteramos essa discussão sobre a democracia racial é de fundamental importância para a posterior análise da nãointegração do negro na sociedade de classes em formação no Brasil sobretudo com foco na cidade de São Paulo primeiro núcleo capitalista moderno do país Num primeiro momento o autor a denunciou como um mito um dos maiores da época Portanto era importante para Florestan e sua equipe nos anos 1960 à busca pela sua desconstrução inclusive ainda que não o citando de forma clara por exemplo criticando e indo na contramão da argumentação que ele adjetivou de conservadora como a narrativa de Gilberto Freyre nos anos 1930177 Num segundo momento o autor apontou os usos históricos dessa ideologia racial que precede a obra de Freyre pois remonta ao período escravista A principal utilização desse mito 176 Embora frisemos aqui que A teoria de democracia social étnica ou racial de Freyre foi originalmente bem recebida e seguida por alguns sociólogos e antropólogos incluindo norte americanos como Donald Pierson e Charles Wagley e brasileiros Pierson por exemplo observara a ausência comparativa de preconceito racial no Brasil mais especificamente na Bahia graças à miscigenação o preconceito como existe é mais de classe do que preconceito de casta PALLARES BURKE BURKE 2009 p 278 279 177 Onde Freyre havia contado uma história otimista enfatizando a ascensão do mulato e as oportunidades de educação e mobilidade social no século XIX Florestan e seus colegas apresentaram um relato pessimista salientando as conseqüências sic negativas da urbanização e da ascensão do capitalismo e da sociedade de classes para os afrobrasileiros Onde Freyre via fraternização eles viam discriminação PALLARESBURKE BURKE 2009 p 282 283 124 é a conservação dos lugares sociais dos brancos e negros na sociedade E disse ainda que as forças sociais empenhadas na democratização das estruturas raciais brasileiras ainda não são nem muito fortes nem muito organizadas FERNANDES 1972 2007 p 186 187 reiterando que se a democracia racial vier a existir como realidade ela deve vir pela ação prática transformadora Se a democracia racial já tinha servido no passado como legitimação da sociedade escravista e estamental agora anos 1960 na sociedade de classes ela se tornara para o autor obsoleta não servindo nem para bloquear a ascensão ainda que por infiltração do elemento negro ou mestiço para o branco e nem serviria para negros e mulatos na conscientização de sua posição racial e de classe que como veremos não eram dissociadas para o autor A democracia racial fazia parte da ideologia das classes dominantes difundindo assim a ideia de que não haveria racismo ou qualquer tipo de motivação para a contestação da forma como as relações raciais se desenvolveram no Brasil e principalmente como esse padrão de acomodação racial vigente se reproduzia produzindo uma visão harmoniosa sobre as relações raciais brasileiras Evidentemente que o problema étnico no caso as relações conflituosas entre brancos e negros não é restrito à questão da classe sob o ponto de vista econômico Florestan não pensava assim de modo reducionista porém as formas de subalternização sóciohistóricas do negro na emergência de uma sociedade capitalista de classes levou o sociólogo paulista a pensar nessa perspectiva e a apontar como racismo e exclusão econômica operavam como partes da lógica do sistema social em conjunto Sob o ponto de vista histórico é compreensível aqui a figura de um intelectual engajado nas lutas sociais que buscava unir pensamento e ação sendo que a desconstrução desse mito da democracia racial era parte fundamental do problema duplo intelectual e político do dilema do negro Para a história social das ideias que tentamos realizar Florestan nos anos 1960 se impôs como um autor que ao desmistificar a democracia racial abriu espaço para a mesma 125 32 Além da pobreza negra Os dilemas do negro pósAbolição O elemento negro e mestiço recémsaído de uma escravidão violenta e de um sistema de castas não poderia encontrar vida fácil na sociabilidade capitalista que se formava A questão do estudo de Florestan era demonstrar como não se efetivou a integração sóciocultural do negro e do mestiço na sociedade de classes Apesar dos dados coletados terem sido levantados em data anterior num projeto coletivo de pesquisa que contou com a participação de outros pesquisadores178 o texto apresentado em 1964 demonstrou a partir de uma visão históricosocial como a modernização capitalista ou seja a implementação do sistema de classes impeliu o negro e outros elementos de cor à situação social de profunda degradação moral e econômica Sobre a escolha do recorte espacial do trabalho o autor argumentou que A escolha de São Paulo como unidade de investigação explicase naturalmente Ela não só é a comunidade que apresenta um desenvolvimento mais intenso acelerado e homogêneo quanto à elaboração sócioeconômica do regime de classes É também a cidade brasileira na qual a revolução burguesa se processou com maior vitalidade segundo a norma do Trabalholivre na Pátrialivre FERNANDES 1964 p XII 1965 São Paulo representava para Florestan o tipo ideal pioneiro na história brasileira de formação de uma sociedade de classes E nesse ponto residia a sua forma peculiar de ver no processo de formação da sociedade moderna em nosso país não enxergando o processo numa perspectiva empática do progresso e da evolução mas assinalando a permanência e a contradição social e racial como a herança do passado escravista que pesava principalmente para os negros 178 Em Nota explicativa Florestan afirmou nesse sentido que Êste sic trabalho foi escrito com vistas à obrigação do autor de submeterse às provas de concurso da Cadeira de Sociologia I da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo Êle sic teve de ser elaborado um tanto às pressas entre janeiro de 1963 e abril de 1964 Embora nesse período o autor só se dedicasse a esse mister a coleta de dados feita principalmente em 1951 e sua classificação e tratamento analíticos puderam ser concluídos com mais vagar e de forma mais apurada FERNANDES 1964 p XI 1965 126 Nessa cidade palco da revolução burguesa cujo trabalho livre significava pátria livre confundiamse à época os ideais republicanos com os de liberdade individual liberalismo porém nem o Estado os outrora senhores de escravos a Igreja ou qualquer outra instituição social sequer pensou em uma reparação ou na criação de mecanismos sociais de integração do exescravo nessa nova ordem Sendo assim A desagregação do regime escravocrata e senhorial operouse no Brasil sem que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de trabalho livre O liberto viuse convertido sumária e abruptamente em senhor de si mesmo tornando se responsável por sua pessoa e por seus dependentes embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma economia competitiva FERNANDES 1964 p 1 1965 O resultado da ruptura histórica representada pela dupla modificação com o advento da República e com a Abolição foi a continuidade da exclusão social do agora exescravo O fim da sociedade estamental e o início da consolidação da sociedade de classes legaram para o negro os lugares e as posições sociais mais degradantes principalmente no mundo social do trabalho na cidade de São Paulo O fato de não ter havido nenhum tipo de reparação social ao negro pode indicar além do flagrante racismo das elites brasileiras da época que a estratégia social dos grupos dominantes que conduziram o processo de transição do trabalho escravo para o trabalho livre acenava para a perspectiva eugênica de branqueamento racial A não integração do negro na sociedade de classes em formação era uma questão não apenas de ordem econômica e política mas assumia uma forma de purificação racial em que os signos da modernidade como a ordem republicana e o liberalismo se confundiam com o branqueamento como o próprio Florestan apontou Todo o processo orientavase pois não no sentido de converter efetivamente o escravo ou o liberto em trabalhador livre mas de mudar a organização do trabalho para permitir a substituição do negro pelo branco FERNANDES 1964 p 18 1965 127 Todavia é evidente que a acirrada disputa por posições sociais no setor do trabalho principalmente com o imigrante era parte da exclusão econômica do negro afinal o trabalho livre e a europeização deslocou o negro para a margem da sociedade Na sua análise sobre a correlação entre a estrutura do mundo urbano e as propulsões psícosociais do negro Florestan apontou sobre esse período de desajustamento estrutural do negro quando do processo de urbanização capitalista que Os anos do desengano em que o sofrimento e a humilhação se transformaram em fel mas também incitam o negro a vencerse e a sobrepujarse pondose à altura de suas ilusões igualitárias Enfim os anos em que o negro descobre por sua conta e risco que tudo lhe fôra sic negado e que o homem só conquista aquilo que êle sic fôr sic capaz de construir socialmente como agente de sua própria história FERNANDES 1964 p 69 1965 É interessante que mesmo apontando e reiterando as formas de exclusão e a causa econômica material da pobreza negra Florestan vai além Não opera apenas num pragmatismo materialista apontou sim as contradições reais como as causas de desajustamento estrutural e a competição desigual do negro com o imigrante por posições no mundo do trabalho faltava ao negro a qualificação para muitos ofícios além do racismo crasso dos empregadores Mas indicou também os efeitos psicossociais dessa exclusão e desajustamento estrutural histórico na cidade Esse além é justamente o apontar perspectivas de ruptura é à busca por consequências psicológicas e outras nuanças que escapariam a um olhar apenas detido na questão econômica Utilizando forte documentação estatística Florestan também realizou uma abordagem qualitativa compreensiva desses mesmos dados Reafirmou como na citação acima que os homens apesar dos constrangimentos da estrutura são os agentes de sua própria história A pauperização e a anomia179 social do negro no caso as condições materiais e morais de vida que fomentavam a perpetuação do déficit negro 179 É interessante notar que Florestan tenha se utilizado de um conceito de Émile Durkheim 1858 1917 nessa obra pois ilustra bem o ecletismo metodológico e a sólida formação do autor como um intelectual que conhecia várias perspectivas teóricas dentro da chamada sociologia clássica Essa ilustração serve também para apontar as contradições de certos cortes epistemológicos em relação à obra de Florestan que apontam que a partir dos anos 1960 ele teria feito uma guinada rumo ao marxismo e deixado para trás as leituras de outras fontes do pensamento sociológico europeu No 128 FERNANDES 1964 p 93 1965 fizeram parte do processo de modernização capitalista ou seja é a face pobre da nova sistemática das relações sociais agora em termos classistas e não mais tradicionais ou estamentais Era necessária uma reorientação social por parte dos negros Afinal Em suma o negro ordeiro precisava conformarse com um duro e triste destino Diante dele só se abriam as perspectivas oferecidas por uma sorte de especialização tácita involuntária mas quase insuperável que o mantinha eternamente prêso sic aos serviços de negro que consumiam o físico e o moral do agente de trabalho dandolhe em troca parca compensação material e uma existência tão penosa quanto incerta por isso não é de estranharse que muitos preferissem trilhar outro caminho para não ser otário não bancar o trouxa ou não vender o sangue como escravo O vagabundo o ladrão ou a prostituta enfrentavam riscos bem menores e construíam um destino comparativamente melhor FERNANDES 1964 p 109 1965 Para além da pobreza em termos de renda salário poder de compra no estado anômico as implicações de ordem moral e de dignidade da pessoa também fazem parte do dilema negro produzindo um fenômeno social complexo em que ser um vadio ladrão ou prostituta era não só em termos materiais embora isso também pesasse considerado como parte da renúncia em se humilhar em se sujeitar por alguns trocados em trabalhos braçais em ser como outrora na condição de escravo apenas um braço apenas fazer serviços de negro em ser otário numa posição ultrajante e vexatória Era esse o déficit negro180 em sua face para além da pobreza material a ultrajante condição anômica representava também uma pauperização em termos de dignidade Os efeitos sociopáticos da desorganização social dos negros também se refletiam na questão da cidade A urbanização de São Paulo ilustraria seria uma projeto de pesquisa ao texto com Roger Bastide Brancos e negros em São Paulo 1955 aparece explicitamente a alusão às categorias conceituais de Durkheim BASTIDE FLORESTAN 1955 p 268 2008 180 Sobre esse ponto de pensar a questão do negro pósAbolição em termos de déficit é pertinente apontar as críticas do historiador Sidney Chalhoub que indicou as perigosas aproximações da visão de desajustamento de anomia e patologia social do negro de Florestan com a visão preconceituosa das elites da época CHALHOUB 2001 p 83 129 espécie de tipo ideal weberiano bem a adaptação marginal do negro à cidade além dos efeitos sociopáticos concernentes a isso As condições em que se processavam a adaptação à cidade e o isolamento sóciocultural difuso fizeram com que o negro e o mulato não fôssem sic adequadamente socializados para assumir posições e papéis sociais em todos os contextos da vida social de que participassem O indivíduo não era adequadamente socializado sequer para lidar com seu corpo e com sua pessoa expondose a riscos que ameaçavam viariàvelmente sic sua saúde seu equilíbrio seus interêsses sic sua segurança ou sua sobrevivência Por isso não é de estranharse o individualismo agreste quase cego e desenfreado que transparecia nas relações com os outros Se o outro fôsse sic fraco tímido ou dependente e se agisse como trouxa condenavase à servidão FERNANDES 1964 p 183 1965 O desajustamento do negro nessa nova sociedade de classes em formação implicava em perceber sua relação com a cidade como o isolamento sóciocultural apontado por Florestan indicava que a nãointegração do negro também tinha uma forma peculiar de se exprimir na arquitetura da cidade no caso a vida na zona marginal onde a urbanização à esmo e com uma precária estrutura fazia do cotidiano na cidade para o negro um momento de luta por um espaço digno de um homem livre Nesse ponto o poder público era completamente ausente praticamente não considerava isso uma questão relevante preferindo tratar a questão do negro na cidade como questão de polícia numa forma de invisibilizar o problema e iluminar apenas quando o negro poderia ser apontado como causador do problema isto é quando da sua transgressão à lei É importante mencionar também a partir dessa citação que essa perspectiva sobre o problema da nãointegração do negro se dirige a uma forma de analisar a própria história enquanto processo Quando o autor defende a não socialização para assumir papeis sociais e até mesmo para não lidar com o próprio corpo podemos ler que ele frisou o aspecto da continuidade histórica no sentido de que mesmo com a evolução econômica com a República e com a Abolição da escravatura todos estes eventos que promoveram rupturas com a velha ordem estamental o negro ainda permanecia sem os meios de se integrar plenamente como um cidadão livre 130 Era como se o passado permanecesse no presente A significação disso para a história intelectual é deveras importante porém podemos compreender essa importância para a própria história enquanto disciplina Esse estudo de Florestan ilustrado na última citação apontou que a forma como as mudanças sociais se operam não seguem uma lógica linear e teleológica mas podem apontar para a permanência do velho do novo Nesse ponto para a urgência no caso de uma segunda abolição A idéia sic de uma Segunda Abolição com o conteúdo a amplitude e a profundidade com que ela se apresenta na consciência do negro e do mulato em São Paulo pareceria um absurdo e um jôgo sic vazio de palavras para o senso comum do branco Só através do próprio negro no processo de transformação de seu modo de ser e de interagir com a sociedade paulistana seria possível determinar o sentido dessa idéia sic e portanto o que o sombrio período de desorganização pessoal e social representa como uma etapa da árdua luta do homem de côr sic pela liberdade FERNANDES 1964 p 66 1965 É lugarcomum na escrita de Florestan a união da perspectiva analítica com a possibilidade de transformação A segunda abolição agora não mais como uma revolução dentro da ordem mas como uma ação que tinha que irromper na história nacional levada a cabo pelos próprios agentes do movimento negro não apenas para mudar as relações econômicas e a assimetria social no sentido material mas para igualar os seres humanos desconstruindo as diferenciações por critérios étnicos e distinções de pigmentação de pele A heteronomia racial na sociedade de classes engendrava um paradoxo em que a expansão das oportunidades nos parâmetros do liberalismo capitalista mantinha o padrão de desigualdade racial e a correspondente concentração racial de renda prestígio e poder produzindo uma situação histórica de implicações dramáticas para o negro que não tinha meios de subir na vida ficando sempre nos poros da sociedade paulistana à margem da história Esbatendose a situação do negro e do mulato sobre êsse sic amplo pano de fundo históricosocial obtémse uma compreensão relativista e objetiva do drama do negro na cidade As tendências históricas de 131 diferenciação e de reintegração da ordem social não favoreciam de per si nenhum agrupamento étnico ou racial determinado Todavia isso acabava acontecendo por vias indiretas O envolvimento imediato nos processos de crescimento econômico e de desenvolvimento sócio cultural dependia de recursos materiais e morais Ou em outras palavras recursos econômicos de meios técnicos e organizatórios em suma de aptidões para responder efetivamente às exigências da situação históricosocial Como exagentes do trabalho escravo e do tipo de trabalho manual livre que se praticava na sociedade de castas o negro e o mulato ingressaram nesse processo com desvantagens insuperáveis FERNANDES 1964 p 192 1965 Itálico nosso Nessa forma de pensar a persistência do passado como situação social envolvia o negro em uma redoma em que a sua posição só poderia ser marginal afastada e excluída do progresso Nesse cortejo dos vencedores BENJAMIN 1987 negros e mulatos estavam a correr atrás dos carros alegóricos do progresso e da liberdade em que as significações reais desses conceitos só tinham uma ressonância difusa quando não ausente em termos práticos para esses grupos sociais Em síntese para o sociólogo paulista a situação do negro na emergência da sociedade de classes e a consequente pauperização e anomia social que mantinham os padrões tradicionalistas da sociedade de castas produzindo o déficit negro e a heteronomia racial na sociedade moderna de classes Tudo isso evidencia que se deve dar atenção especial à forma assumida pela acomodação racial igualitária Esta não nasceu nem vingou imediatamente como uma relação típica da sociedade de classes Foi pervertida e assimilada pelos padrões tradicionalistas de relações raciais adquirindo a aparência da ordem social democrática mas preservando tenazmente a substância do antigo regime Onde parecia fluir plena igualdade nas acomodações raciais preservavase quase intacta e completa a velha relação heteronômica que separava o branco do negro como o senhor do escravo ou liberto As condições históricosociais de formação e de desenvolvimento do regime de classes em nossa cidade tornaram êsse sic destino do negro inelutável A situação de classe só encontra vigência quando determinada categoria social conquista requisitos econômicos sociais e culturais de uma classe ou de parte de uma classe Em têrmos sic raciais sòmente sic os estoques brancos da população de São Paulo adquiriram desde logo os caracteres psicosociais e sócioculturais típicos da formação de classe Os negros e os mulatos ficaram variàvelmente sic ausentes dêsse sic processo misturados com os segmentos dos estoques raciais brancos que também encontraram dificuldades em participar das novas formações sociais constituindo a gentinha uma sobrevivência da ralé do antigo regime Enquanto se 132 manteve nessa condição o negro vivia numa sociedade organizada em classes sem participar do regime de classes FERNANDES 1964 p 219 1965 Nesse modo de pensar o curso da história brasileira apresenta uma continuidade de implicações fatais para os negros e mulatos Apesar das transformações históricas e das rupturas o antigo regime persistia era como se o século XIX teimasse em não terminar pelos menos em termos de padrões raciais que se mantinham próximos daqueles existentes no período do escravismo A bibliografia específica sobre a questão racial em Florestan corrobora em nossa análise com a forma como compreendemos o pensamento do sociólogo paulista e as implicações disso na história intelectual brasileira Sobre esse ponto cumpre destacar as afirmações de Octavio Ianni por exemplo comentando sobre a reflexão de Florestan sobre a problemática racial afirmando que Tudo isso se ilumina pela reflexão atravessada pela paixão A desagregação do escravismo ofereceu a oportunidade de uma revolução social de porte histórico decisivo No entanto os escravos foram alijados ou reabsorvidos pelo regime de trabalho livre só dos oprimidos restaria esperar uma ruptura com essa tradição de pseudoreforma e de pseudorevolução É a partir desse horizonte que se torna possível revoltar às raízes pretéritas presentes descortinar o futuro IANNI In FERNANDES 2002 p 4043 Outras pesquisas181 também apontam para a coerência de nossa compreensão sobre a reflexão de Florestan indicando que a questão racial em seu pensamento era ligada intrinsicamente à questão de classe por isso raça e classe e também umbilicalmente relacionada à questão revolucionária no sentido radical e socialista 181 Tais como JÚNIOR Aristeu Portela Raça classe e a negação do conflito Revista Olhares Sociais PPGCSUFRB vol 03 n 02 2014 p 2545 MESQUITA Gustavo Rodrigues Florestan Fernandes e o antirracismo nos Estados Unidos e no Brasil 19411964 Tese de Doutorado em História São Paulo SP Universidade de São Paulo USP 2017 p 148157 MOTTA Daniele Cordeiro Desvendando mitos As relações entre raça e classe na obra de Florestan Fernandes Dissertação de Mestrado em Sociologia CampinasSP Universidade Estadual de Campinas UNICAMP 2012 p 18132 BASTOS É R A questão racial e a revolução burguesa In DINCAO M A Org O saber militante ensaios sobre Florestan Fernandes Rio de Janeiro Paz e Terra São Paulo UNESP 1987 p 1413 PEREIRA J B B A questão racial brasileira na obra de Florestan Fernandes Revista USP n 29 1996 p 357 SOARES E V BRAGA M L S COSTA D V O dilema racial brasileiro de Roger Bastide a Florestan Fernandes ou da explicação teórica à proposição política Sociedade e Cultura v 5 n 1 2002 p 405 133 como iremos apontar adiante Essa maneira de pensar de Florestan leva o leitor a refletir a realidade racial e classista brasileira apontando a forma de exclusão como padrão os desajustamentos como reminiscências da antiga ordem o preconceito e a subalternização como os odres velhos no vinho novo da história Somente uma revolução poderia solucionar o problema da nãointegração do negro no Brasil Os legados da raça branca eram os desajustamentos nãointegrativos como antítese disso os movimentos sociais no meio negro teriam dentre os seus objetivos principais impulsões igualitárias de integração racial produzindo ainda que por infiltração às vezes a ascensão social do negro e do mulato Desse legado uma nova era estava no limiar nesse momento o apelo à práxis era cada vez mais defendido por Florestan para quem O dilema racial brasileiro constitui um fenômeno social de natureza sociopática e só poderá ser corrigido através de processos que removam a obstrução introduzida na ordem social competitiva pela desigualdade social a única fôrça sic de sentido realmente inovador e inconformista que opera em consonância com os requisitos de integração e de desenvolvimento da ordem social competitiva procede da ação coletiva dos homens de côr sic desse lado a reorganização da ação coletiva dos movimentos reivindicatórios e sua calibração ao presente parece algo fundamental FERNANDES 1964 p 391 393 1965 Podemos compreender usando um conceito de Koselleck 2006 que nos anos 1960 se descortinava para o sociólogo paulista um novo horizonte de expectativa para a questão racial brasileira Nesse horizonte a descontinuidade a ruptura e a transformação das relações raciais juntamente com a questão de classe eram as diretrizes dos movimentos reivindicatórios que poderiam dar um fim à questão da manutenção dos padrões tradicionalistas de raça que insistiam no apaziguamento e no apagamento das diferenças raciais sob a ideia de que a miscigenação teria dissolvido as diferenças num tipo que Gilberto Freyre chamou de metaracial unificado A ideologia da democracia racial por exemplo seria a representação no campo das ideias dessa forma de relação racial por isso uma contra ideologia racial era fundamental no pensamento de Florestan para a causa do movimento negro no 134 Brasil Seu trabalho de análise da questão pode ser compreendido como um esforço nos anos 1960 e depois do que seria um trabalho de descortinar o véu sob o qual fora envolvida a questão racial brasileira véu esse que o peso da interpretação de Freyre por exemplo tinha uma grande relevância Florestan encerrou sua obra AINSC com uma argumentação que já apontava para a radicalidade de sua proposta de intervenção sobre a questão racial brasileira A nãointegração do negro para além da pobreza sua nãointegração como ser humano era algo que a história brasileira não poderia escamotear À luz do que pudemos desvendar a respeito da situação do negro e do mulato em São Paulo parece óbvio que se deve pensar numa mudança radical de tal orientação e de modo a levarse em conta também contingentes populacionais localizados nas grandes cidades No estabelecimento de uma política de integração assim orientada os diversos segmentos da população de côr sic merecem atenção especial e decidida prioridade De um lado porque de outra maneira seria difícil reaproveitarse totalmente essa importante parcela da população nacional no regime de trabalho livre De outro porque não se pode continuar a manter sem grave injustiça o negro à margem do desenvolvimento de uma civilização que êle sic ajudou a levantar Como escreveu Nabuco temos de reconstruir o Brasil sôbre o trabalho livre a união das raças na liberdade Enquanto não alcançarmos êsse sic objetivo não teremos uma democracia racial e tampouco uma democracia Por um paradoxo da história o negro converteuse em nossa era na pedra de toque da nossa capacidade de forjar nos trópicos êste sic suporte da civilização moderna FERNANDES 1964 p 393 394 1965 O tom eminentemente inconformista produziu uma interpretação que se coadunava bastante com seu projeto de Brasil Em nossa compreensão nos anos 1960 quando esses textos foram publicados Florestan já indicava em um pensamento mais maduro e não apenas estritamente academicista como nos textos dos anos 1940 e 1950 uma forma de reflexão não apenas teórica e sim propositiva Valores sociais e políticos tais como democracia cidadania plena direitos para negros e uma igualdade real e não meramente formal representada em sua luta insistente contra o racismo seu antirracismo que teve inclusive reflexos nos 135 Estados Unidos182 formam o que compreendemos como um projeto que apontava claramente para uma democracia plena e abrangente tanto em termos políticos como no plano econômico e principalmente racial183 Todavia como afirmaremos a seguir esse projeto de Brasil foi cada vez mais se alinhando com a proposta revolucionária com a causa socialista que Florestan problematizou juntamente com a questão racial em que raça e classe se juntavam na transformação revolucionária Relembramos aqui dois momentos importantes que em nossa compreensão explicam ou ao menos indicam possível análise nesse sentido a passagem do pensamento de Florestan de uma defesa da democracia no sentido quase liberal para uma defesa cada vez mais nítida e até intransigente do socialismo como finalidade política dos movimentos negros Em 1964 com a instauração de uma ditatura civilmilitar a Universidade como um todo mas principalmente a USP de Florestan teve uma forte intervenção no sentido da perseguição a professores e estudantes e no que concerne à liberdade de cátedra e de expressão de trabalho intelectual crítico O próprio Florestan fora aposentado compulsoriamente em 1969 numa clara represália por sua atuação como um crítico do regime militar nesse momento difícil para a sociologia brasileira184 Após seu exílio e seu retorno ao Brasil ainda em plena ditatura Florestan se filiou ao Partido dos Trabalhadores PT em 1986 Seu engajamento partidário e sua proposta de transformação da sociedade agora em um contexto menos restrito da chamada distensão política produziram uma reflexão mais radical e ousada agora não mais defendendo uma política dentro dos limites do capitalismo de integração do negro por parte dos poderes instituídos Ele começou a ver que as duas coisas a superação da desigualdade racial e a superação da desigualdade de classe eram parte de uma só contradição social e que sua modificação não poderia ser 182 MESQUITA Gustavo Rodrigues Florestan Fernandes e o antirracismo nos Estados Unidos e no Brasil 19411964 Tese de Doutorado em História São PauloSP Universidade de São Paulo USP 2017 p 135158 183 SOUZA Patrícia Olsen de Os dilemas da democracia no Brasil um estudo sobre o pensamento de Florestan Fernandes Dissertação de Mestrado em Sociologia MaríliaSP Universidade Estadual de São Paulo UNESP 2005 p 207 184 LEITE Adriana Naomi Milagre acadêmico A institucionalização das ciências sociais brasileiras 19641985 Dissertação de Metrado em Sociologia São PauloSP Universidade de São Paulo USP 2015 p 3071 136 possível dentro dos limites estreitos de uma revolução burguesa incompleta como a brasileira A mudança tinha que vir de uma profunda transformação de uma autêntica revolução em um sentido agora declaradamente socialista Nesse ponto para a história das ideias Florestan se singulariza por ter sido um intelectual público que nos anos 1970 e 1980 agora entre a academia e o partido185 foi defensor virulento de uma revolução socializante mas que contivesse uma parte significativa de conteúdo racial já que na sociedade brasileira raça classe e nesse caso socialismo e supressão da desigualdade racial andavam de mãos dadas 33 O sentido radical da reflexão de Florestan sobre as relações raciais É preciso extirpar esse passado para que nos livremos dele186 Qual o significado do protesto negro Esse é um dos títulos de uma das últimas obras publicadas por Florestan Fernandes Nesse livro que é uma compilação de vários textos sobre a questão racial brasileira e sua significação política num sentido bem peculiar conforme a interpretação do autor podemos compreender a forma como foi se desenvolvendo o pensamento do sociólogo paulista para um sentido cada vez mais radicalizado já no que alguns autores denominaram como o tempo em que a linha tênue entre a academia e o partido era praticamente inexistente187 No caso de Florestan Fernandes principalmente a partir da década de 1960 é difícil dissociar teoria e prática estudos e reflexões mais acadêmicas com a sua práxis política e militância em vários planos Fora um autor engajado com os dilemas de seu tempo e o dilema do negro herdado dos padrões de exclusão racial que operaram no plano formal das relações entre brancos e negros e ainda operavam em sua época 185 RODRIGUES Lidiane Soares Entre a academia e o partido a obra de Florestan Fernandes 19691983 Dissertação de Mestrado em História São Paulo Universidade de São Paulo USP 2006 p 56 186 FERNANDES Florestan O significado do protesto negro Ed São Paulo Cortez Autores Associados 1989 p 10 187 Ver COSTA Diogo Valença de Azevedo Florestan Fernandes em questão Um estudo sobre as interpretações de sua sociologia Dissertação de Mestrado em Sociologia RecifePE Universidade Federal de Pernambuco UFPE 2004 p 37 137 por praticamente toda a história brasileira era parte fundamental de sua inquietação de cientista e cidadão engajado no esforço de diminuir as contradições da sociedade A obra de Florestan sobretudo na sua análise das relações raciais que são produto do sistema de longa duração escravista releva uma faceta política de sua interpretação sobre o Brasil Sua narrativa se concentrava em perceber os excluídos e os que ficaram de fora das benesses da modernidade Os dilemas do negro para além da pobreza revelam que raça e classe são indissociáveis o que o levou a pensar que somente com a mudança revolucionária no sentido socialista os problemas de raça iriam juntamente com a abolição das classes progressivamente desaparecer Não havia como separar o dilema racial do dilema classista Nos anos 1960 vários movimentos sociais que militavam em torno da questão do negro no Brasil e no mundo estavam ganhando relativa força e importância188 Nesse período já mais distante daquela figura do scholar academicista que fazia ciência isoladamente na universidade Florestan retomava sua militância que deixara de lado para se profissionalizar como sociólogo em torno das causas sociais que deram à sua investigação sóciohistórica sobre o drama do negro na sociedade capitalista uma significação política um uso político possível para a causa social do negro O projeto de Brasil de Florestan mesclava revolução socialista com ruptura em relação aos padrões raciais vigentes Esses padrões legados de séculos de exploração escravista tinham uma força no tecido social bastante significativa o que fez com que Florestan lesse o problema do negro e seus desajustamentos estruturais Às barreiras de classe para o negro e o mestiço se somava a barreira racial A democratização das relações raciais no Brasil não ocorreria apenas com a democratização formal mas com uma revolução mais geral e radical que irrompesse na história O protagonismo do negro seria fundamental para a concretização do que o autor nomeou como segunda abolição a verdadeira para além da formal e sem nenhuma assistência ao exescravo que foi realizada pelas elites em 1888 188 Ver SILVA Maria Auxiliadora Gonçalves da Encontros e desencontros de um movimento negro Ed Brasília Fundação Cultural Palmares 1994 138 Como já se afirmou a questão racial em Florestan o dilema do negro confundiase com o dilema de classe Opressão racial e de classe estavam juntas e o negro nessa circunstância orientaria sua ação em sentido também duplo em que Ele pode ser assim duplamente revolucionário como proletário e como negro Se não conta com razões imperativas para defender a ordem existente ele tem muitos motivos para negála destruíla e construir uma ordem nova na qual raça e classe deixem de ser uma maldição Por essa razão os de cima estão tão atentos aos movimentos negros FERNANDES 1989 p 11 Nesse sentido de uma forma muito mais aberta e contundente principalmente após a sua entrada na vida política institucional por meio de seus dois mandatos como deputado federal Florestan insistiu que a luta de classes e a luta de raças estavam na mesma proporção caminhando necessariamente em conjunto na perspectiva da transformação do status quo econômico e racial Nessa perspectiva portanto o movimento negro e o movimento socialista são um só ou devem se unificar para que transformações mais profundas sejam possíveis na racista e capitalista sociedade brasileira Nesse confronto histórico as forças reacionárias e defensoras da ordem racial e econômica estariam no outro lado do front da marcha da história que levaria à consolidação de uma nova sociedade ao menos em nossa leitura podemos entender nesses termos O próprio Florestan argumentou que o protesto negro antecipou a substância da realidade histórica do presente que estamos enfrentando com tantas angústias e sobressaltos Cabe às classes subalternas revitalizar a República democrática primeiro para ajudarem a completar em seguida o ciclo da revolução social interrompida e por fim colocarem o Brasil no fluxo das revoluções socialistas do século XX FERNANDES 1989 p 18 A política revolucionária no sentido socialista não podia desconsiderar a questão racial pois nesse discurso era nítida que a condição da transformação econômica era a eclosão de uma revolução em termos raciais A racialização da política revolucionária iria se aproveitar do estoque de insatisfação racial latente na 139 sociedade brasileira para canalizar essa mesma insatisfação para a luta aberta pelo socialismo Essa interpretação global contém uma mensagem clara aos companheiros que tentam refundir e reativar o protesto negro É preciso evitar o equívoco do branco de elite no qual caiu a primeira manifestação histórica do protesto negro Nada de isolar raça e classe Na sociedade brasileira as categorias raciais não contêm em si e por si mesmas uma potencialidade revolucionária FERNANDES 1989 p 18 Ficou evidente em nossa leitura que para Florestan após a desconstrução do mito da democracia racial e da exposição dos dilemas do negro após a Abolição para ele uma revolução dos brancos a união da luta de raças e da luta de classes na sociedade brasileira não era apenas opção teórica mas uma análise condizente com o próprio processo histórico de dupla exclusão racial e de classe Uma revolução autêntica na perspectiva socializante deveria no caso do Brasil necessariamente acoplar na sua agenda programática a questão racial Nesse ponto é interessante como a postura de Florestan um intelectual declaradamente de esquerda de certa forma estava fora da agenda das esquerdas na época de suas reflexões sobre a questão racial brasileira Sua luta pelo esclarecimento da questão racial e sua forma de analisar a questão associandoa a questão de classe não estava em consonância com a agenda por exemplo do Partido Comunista Brasileiro conforme ele mesmo apontou Em 1951 enfrentamos a resistência do PCB que teimava em separar raça e classe e considerava a questão racial como exclusivamente de classe FERNANDES 1989 p 10 Em certa medida sua postura à esquerda não era condizente com a postura e a forma de analisar a situação social do país da esquerda partidária tradicional oficial Sobre a questão de raça e classe uma pesquisadora da obra de Florestan afirmou que A estrutura social brasileira operou durante séculos através de um código social baseado na hierarquia entre as raças Os processos de integração do negro que foram possibilitados pelo crescimento da economia não romperam entretanto com esse aspecto social sendo o 140 racismo importante elemento para pensarmos a relação entre status e posição social Por isso que Florestan aponta para um paralelismo entre raça e classe colocando o racismo como um elemento fundamental para entendermos a formação social brasileira MOTTA 2012 p 128 Como parte de sua perspectiva de abarcar a questão da nãointegração do negro na sociedade de classes em um sentido bem amplo e de fazer da causa do negro um mote para a causa revolucionária era imprescindível e empiricamente verificável como ele se esforçou em mostrar com seus estudos sobre a situação do negro em São Paulo fazer a análise concatenando classe e raça numa perspectiva ampla Assim Desse ângulo o negro vem a ser a pedra de toque da revolução democrática na sociedade brasileira A democracia só seria uma realidade quando houver de fato igualdade racial no Brasil e o negro não sofrer nenhuma espécie de discriminação de preconceito de estigmatização e de segregação seja em termos de classe seja em termos de raça Por isso a luta de classes para o negro deve caminhar juntamente com a luta racial propriamente dita O negro deve participar ativa e intensamente do movimento operário e sindical dos partidos políticos operários radicais e revolucionários mas levando para eles as exigências específicas mais profundas da sua condição de oprimido maior Mesmo quando o negro não sabe o que é socialismo a sua luta por liberdade possui uma significação socialista FERNANDES 1989 p 24 Nesse ponto convergia na perspectiva de Florestan uma dupla revolução conjunta As contestações necessárias do negro oprimido se coadunavam perfeitamente com a contestação igualmente necessária do proletário oprimido Surgia aí também a questão do problema da falta de consciência dessa significação socialista da luta dos negros porém mesmo na ausência da consciência para Florestan o socialismo convergia com os objetivos do protesto negro traduziria em muito o seu significado davalhe portanto uma causa política que se somaria à sua causa social e cultural de raiz eminentemente histórica Aqui a retórica não é nada saudosista ou mesmo compassiva em relação ao status quo racial e econômico Para Florestan a sociedade brasileira tinha na questão do negro não só um símbolo de mais uma das várias questões históricas mal 141 resolvidas no caso não resolvida mas a questão que se fundamentava na postura quando não francamente racista numa postura de ambígua tolerância da parte dos poderes instituídos em relação ao problema do negro Por isso sua problemática nessa perspectiva do sociólogo paulista captava de uma só vez toda uma série de problemáticas a ela associadas problemáticas que o autor direcionou uma significação socialista e revolucionária Era uma narrativa da revolta uma contestação intelectual de uma causa social em que a solução deveria ser parte da agenda de qualquer revolução autenticamente compromissada com a ruptura histórica É possível ler também essa forma de pensamento dentro do contexto mais amplo da luta por mudanças mais radicais no Brasil quando do período da ditadura civilmilitar de 1964 e também como parte de uma reflexão sobre a própria história brasileira Por mais paradoxal que possa parecer a expressão de Freyre sobre o passado não só brasileiro mas o brasileiro em particular de que o passado nunca foi o passado continua tem na reflexão de Florestan uma demonstração empírica É a necessidade da união de forças que consiga implodir a tradição e produzir a mudança a ruptura a abrupta modificação do padrão continuísta da história que Florestan chamou a atenção aqui tão insistente e veementemente No texto luta de raças e de classes contido na coletânea o significado do protesto negro 1989 supracitada podemos encontrar trechos em que Florestan defendia ardorosamente que Classe e raça se fortalecem reciprocamente e combinam forças centrífugas à ordem existente que só podem se recompor em uma unidade mais complexa uma sociedade nova por exemplo Aí está o busílis da questão no plano político revolucionário Se além da classe existem elementos diferenciais revolucionários que são essenciais para a negação da transformação da ordem vigente há distintas racionalidades que precisam ser compreendidas e utilizadas na prática revolucionária como uma unidade uma síntese no diverso FERNANDES 1989 p 62 É notório que para Florestan o aspecto racial de contornos dramáticos no Brasil teria com a revolução socialista uma espécie de resolução do problema do negro 142 Nesse ponto toda a sua construção teórica anterior seus estudos sobre a situação do negro particularmente em São Paulo porém que adquirem em graus variáveis significação mais ampla na emergência da sociedade de classes encontrava na fórmula revolucionária classista sua síntese final dessa histórica dialética senhor escravo189 que envolvia branco e negro senhor e escravo 189 Lembra a célebre forma de Hegel em HEGEL G W F Fenomenologia do espírito Parte I 2 ed PetrópolisRJ 1992 p 126133 Comentando sobre essa questão Devye Redyson em texto introdutório a filosofia de Hegel afirmou que O escravo é aquele que teve medo da morte e para ter salva a vida aceitou a submissão o senhor é aquele que aceitou o risco da morte O domínio do senhor se exerce por meio das coisas que são objeto do apetite o senhor é aquele que desfruta e usufrui enquanto que o escravo trabalha para o senhor REDYSON 2014 p 37 143 CONSIDERAÇÕES FINAIS A dissertação abordou três dimensões do pensamento de Gilberto Freyre e Florestan Fernandes No primeiro capítulo examinouse a primeira dimensão que é a questão da escravidão negra que em nossa compreensão Freyre interpretou esse fenômeno histórico principalmente nos anos 1930 sob o signo da benignidade ou seja as relações entre senhor e escravo no Brasil teriam sido mais suaves menos cruéis quando comparadas por exemplo com a situação dos operários da Europa oitocentista ou mesmo os escravizados pelos espanhóis na América ou ainda com os escravos negros na região sul do que hoje são os Estados Unidos Sendo que toda essa suposta benignidade foi viabilizada pelo patriarcado brasileiro que teria sido um dos elementos centrais de nossa formação histórica e desse modo para Freyre com a sua decadência teria entrado em colapso também a benignidade do sistema Ainda no primeiro capítulo apresentamos a leitura de Florestan nos anos 1950 60 sobre a escravidão que diferiu bastante da leitura anterior efetuada por Freyre Para Florestan a escravidão foi essencialmente motivada por questões econômicas não que Freyre as desprezasse e operava em sua escrita em sua interpretação um pragmatismo econômico e sobretudo uma reiteração da violência do sistema de trabalho baseado na escravidão enfatizando que o escravo não tinha direitos negando inclusive a possibilidade de uma família escrava apontando o arbítrio do senhor na questão sexual e criticando a noção de família extensa núcleo do patriarcado histórico que consoante Florestan não suavizou a escravidão negra o sociólogo paulista deu outra dimensão à análise da escravidão No segundo capítulo ocupamonos em examinar a segunda dimensão que foi a da democracia racial em Gilberto Freyre Antes de adentrar na sua obra e estudando uma temática intrinsicamente ligada à democracia racial foi nosso objetivo apresentar alguns autores do final do século XIX e início do XX no caso Sílvio Romero Euclides da Cunha Nina Rodrigues e Oliveira Vianna anteriores a Freyre autores que ele dialogou ao longo de sua obra aceitando e refutando suas teses na maioria das vezes nesse caso refutando e que pensaram a miscigenação racial de forma negativa apontando portanto para um futuro incerto do Brasil como civilização 144 Superando essa leitura e ao mesmo tempo lançando outra problemática a da existência de uma democracia racial brasileira Gilberto Freyre a partir de sua obra nos anos 1930 identificou na miscigenação o corretor das distâncias sociais que historicamente fez do Brasil uma nação mestiça Isso seria o símbolo de nossa identidade nacional que soube equilibrar os contrários e que sua democracia étnica ou racial poderia ser exportada servindo de modelo para o mundo Visão essa que consideramos conservadora Iniciamos o nosso terceiro capítulo com a crítica que Florestan fez ao que ele denominou como mito da democracia racial apontando sua contundente crítica ao que para ele representava uma ideologia racial que mascarava o caráter violento e a segregação racial do negro especialmente tendo como foco principal a cidade de São Paulo quando de sua modernização capitalista no início do século XX É evidente que a democracia racial enquanto ideologia não tem origem na escrita de Freyre ela precede e tem sua gênese na sociedade categorizada por Florestan como estamental sociedade escravista porém nos textos de Freyre existem elementos que podem ser identificados com a ideia que nos permitiu novamente identificar um contraste entre os autores É no terceiro capítulo que apresentamos a terceira dimensão do nosso estudo no caso a da nãointegração do negro no Brasil conforme a interpretação de Florestan nos anos 1960 Nela identificamos na forma de estudo simultaneamente sincrônico e diacrônico os dilemas sociais enfrentados sobretudo na cidade de São Paulo pelos negros na transição do escravismo para o trabalho livre como o negro foi excluído da revolução burguesa causando assim um estado de pauperização e anomia social que Florestan chamou de déficit negro apontando os efeitos sociopáticos e os diferentes níveis de desorganização social e a manutenção dos padrões tradicionalistas de relações raciais Apontamos ainda no capítulo a junção de raça e classe na obra de Florestan e como a problemática do negro tinha para o autor uma significação socialista Com este trabalho não foi nossa intenção esgotar os temas em estudo Em relação à ausência de recorte temporal rígido podemos apontar que essas dimensões abordadas não se circunscrevem a uma cronologia específica ou seja escravidão negra democracia racial ou étnica e nãointegração do negro do Brasil não se encontram apenas em um ou outro texto isoladamente dos autores Se assim 145 procedêssemos faríamos um estudo demasiado incompleto e que não atingiria os objetos propostos ao longo do percurso deste trabalho e nosso objetivomotivação pessoal com o estudo do tema Em relação aos conceitos de discurso e unidade discursiva usados muitas vezes ao longo do nosso trabalho eles têm evidentemente uma matriz teórica no caso buscamos dialogar com os trabalhos de Foucault 1996 2017 Acreditamos que tais conceitos foram bastante úteis para compreendermos a instituição discursiva de duas narrativas sobre os temas em estudo no sentido de abordálas historicamente apontando como nos anos 1930 Freyre concebeu ideias como escravidão benigna ou mais claramente em outros textos posteriores de democracia étnicaracial e como nos anos 195060 principalmente Florestan criticou essa visão da escravidão benigna e o mito da democracia racial pensando na nãointegração do negro no Brasil em termos de raça e classe Nosso estudo admite certas lacunas e mesmo referências que porventura não foram consultadas Admitindo suas limitações porém elencamos que nosso trabalho buscou se inserir numa história social das ideias e não na sociologia190 subcampo da chamada história intelectual que acreditamos que nossa pesquisa se insere Nesse campo histórico os contrastes de pensamento eram evidentes principalmente quando se tenta realizar uma operação historiográfica categorizada de história intelectual comparada que foi o que buscamos realizar também com essa investigação Não buscamos na assimetria na diferença produzir uma narrativa em que uma unidade discursiva é superior ou melhor a outra Argumentamos nesse sentido para que não fique subentendido que prefiramos ou julgamos Freyre superior a Florestan ou o inverso Nossa intenção como historiador foi compreender essas ideias em seu tempo fazendo a análise dessas duas unidades discursivas em seus respectivos lugares de produção intelectual no Brasil do século XX É assim que o historiador busca realizar sua análise sob a égide da compreensão e não do julgamento ou da análise direcionada a mostrar uma apreciação pessoal sobre o seu objeto de estudo Nossa intenção foi proceder dessa forma e esperamos que tenha ficado claro ao leitor 190 Sobre as zonas de litígio entre história e sociologia ver SILVA Fernando Teixeira História e Ciências Sociais zonas de fronteira História São Paulo v 24 n 1 2005 p 128 146 147 REFERÊNCIAS FONTES 1 Obras de Gilberto Freyre FREYRE Gilberto Vida social do Brasil nos meados do século XIX 4 ed São Paulo Global 2009 1922 FREYRE Gilberto Casagrande senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51 ed São Paulo Global 2006 1933 FREYRE Gilberto Sobrados e Mucambos decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano 15 ed São Paulo Global 2004 1936 FREYRE Gilberto O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX tentativa de interpretação antropológica através de anúncios de jornais brasileiros do século XIX de característicos de personalidade e de formas de corpo de negros ou mestiços fugidos ou expostos à venda como escravos 4 ed São Paulo Global 2010 1963 FREYRE Gilberto Contra o preconceito racial no Brasil In Quase política 2 ed Rio de Janeiro José Olympio 1966 p 190192 2 Obras de Florestan Fernandes I Do Escravo ao Cidadão In BASTIDE Roger FERNANDES Florestan Brancos e Negros em São Paulo ensaio sociológico sobre aspectos da formação manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana 4 ed São Paulo Global 2008 p 2790 1955 II Cor e Estrutura Social em Mudança In BASTIDE Roger FERNANDES Florestan Brancos e Negros em São Paulo ensaio sociológico sobre aspectos da formação manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana 4 ed São Paulo Global 2008 p 91153 1955 V A Luta contra o Preconceito de Cor In BASTIDE Roger FERNANDES Florestan Brancos e Negros em São Paulo ensaio sociológico sobre aspectos da formação 148 manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana 4 ed São Paulo Global 2008 p 224264 1955 FERNANDES Florestan A integração do negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 ed São Paulo Dominus 1965 1964 Tese de Cátedra em Sociologia Universidade de São Paulo FERNANDES Florestan A integração do negro na sociedade de classes no limiar de uma nova era Vol 2 ed São Paulo Dominus 1965 1964 Tese de Cátedra em Sociologia USP FERNANDES Florestan O negro no mundo dos brancos 2 ed São Paulo Global 2007 1972 FERNANDES Florestan A revolução burguesa no Brasil ensaio de interpretação sociológica 5 ed São Paulo Global 1976 2006 FERNANDES Florestan Significado do protesto negro Ed São Paulo Cortez Autores Associados 1989 Coleção polêmicas do nosso tempo v 33 LIVROS ALBUQUERQUE JÚNIOR Durval Muniz de A invenção do nordeste e outras artes 5 ed São Paulo Cortez 2011 ALBUQUERQUE Roberto Cavalcanti de Gilberto Freyre e a invenção do Brasil Ed Rio de Janeiro José Olympio 2000 ALENCASTRO Luiz Felipe de O trato dos viventes formação do Brasil no Atlântico Sul Ed São Paulo Companhia das Letras 2000 ALVES Castro Os Escravos Ed São Paulo Martin Claret 2007 1883 ARAÚJO Ricardo Benzaquen de Guerra e paz Casa Grande Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 1930 Ed Rio de janeiro Editora 34 1994 BARROS José DAssunção A construção social da cor diferença e desigualdade na formação da sociedade brasileira 3 ed PetrópolisRJ Vozes 2014 BASTOS Elide Rugai As criaturas de Prometeu Gilberto Freyre e a formação 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História intelectual no Brasil a retórica como chave de leitura Topoi Rio de Janeiro n 1 sd p 123152 COSTA FILHO Cícero João da No limiar das raças Sílvio Romero 18701914 Tese de Doutorado em História São PauloSP Universidade de São Paulo USP 2012 495 f COSTA Diogo Valença de Azevedo Florestan Fernandes em questão Um estudo sobre as interpretações de sua sociologia Dissertação de Mestrado em Sociologia RecifePE Universidade Federal de Pernambuco UFPE 2004 139 f CHARTIER Roger A história hoje Dúvidas desafios e propostas Estudos Históricos Rio de Janeiro vol 7 n13 1994 p 97113 CRUZ Luiz Democracia Racial 2002 Disponível em wwwfundajgovbrtpd128html Acesso em 09012019 DOSSE François De lhistorie des idees a lhistorie intelectualle Mímesis Bauru v 24 n 2 2003 p 1328 FREITAG Barbara Florestan Fernandes por ele mesmo Estudos Avançados 10 26 1996 p 129172 GALVÃO Cristina Carrijo A escravidão compartilhada Os relatos de viajantes e os intérpretes da sociedade brasileira Dissertação de Mestrado em História Campinas SP Universidade Estadual de Campinas UNICAMP 2001 249 f JACKSON Luiz Carlos Gerações pioneiras na sociologia paulista 19341969 Tempo social Revista de sociologia da USP v 19 n 1 2007 p 115130 Tensões e disputas na sociologia paulista 19401970 Revista Brasileira de Ciências Sociais Vol 22 n 65 2007 p 3349 154 JÚNIOR Aristeu Portela Raça classe e a negação do conflito Revista Olhares Sociais PPGCSUFRB vol 03 n 02 2014 p 2545 LEIRNER Pierre C A antropologia que Florestan esqueceu Novos estudos CEBRAP v 36 n 108 2007 p 159180 MANHHEIN Karl Conservative thought In Essays on Sociology and Social Psychology Ed London Routledge e Kegan Paul 1953 p 74164 MICELI Sergio Por uma sociologia das ciências sociais In org História das Ciências Sociais no Brasil Ed Vol 1 São Paulo VérticeIdespFinep 1989 MESQUITA Gustavo Rodrigues Florestan Fernandes e o antirracismo nos Estados Unidos e no Brasil 19411964 Tese de Doutorado em História São PauloSP Universidade de São Paulo 2017 182 f MEUCCI Simone Gilberto Freyre e a sociologia no Brasil Da sistematização à constituição do campo científico CampinasSP Universidade Estadual de Campinas UNICAMP 2006 330 f MOTTA Daniele Cordeiro Desvendando mitos As relações entre raça e classe na obra de Florestan Fernandes Dissertação de Mestrado em Sociologia CampinasSP Universidade Estadual de Campinas UNICAMP 2012 140 f MOTTA Roberto Paradigmas de interpretação das relações raciais no Brasil Estudos afroasiáticos n 38 Rio de Janeiro Dez 2000 p 113139 NEVES Márcia das Nina Rodrigues as relações entre mestiçagem e eugenia na formação do povo brasileiro Dissertação de Mestrado em História São PauloSP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUCSP 2008 71 f NICOLAZZI Fernando Um estilo de história a viagem a memória o ensaio Sobre Casagrande senzala e a representação do passado Tese de Doutorado em História Porto AlegreRS Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS 2018 399 f NOGUEIRA Nadia Cristina Sexualidade e socialização em Gilberto Freyre Dissertação de Mestrado em História CampinasSP Universidade Estadual de Campinas UNICAMP 2000 159 f 155 PEREIRA J B B A questão racial brasileira na obra de Florestan Fernandes Revista USP n 29 1996 p 3441 PINTO João Alberto da Costa Gilberto Freyre e a intelligentsia salazarista em defesa do Império Colonial Português 1951 1974 História v28 n1 p445482 2009 PRAXEDES Rosângela Rosa Projeto UNESCO quatro propostas para a questão racial no Brasil Tese de Doutorado em Sociologia São PauloSP Pontifícia Universidade Católica PUCSP 2012 220 f RODRIGUES Lidiane Soares Entre a academia e o partido a obra de Florestan Fernandes 19691983 Dissertação de Mestrado em História São Paulo Universidade de São Paulo USP 2006 250 f QUEIROZ S R Rebeldia escrava e historiografia Estudos Econômicos São Paulo IPEUSP 17 1987 SILVA Alex Gomes da Gilberto Freyre e o legado LusoHispânico Uma construção no pósguerra Tese de Doutorado em História São PauloSP Universidade de São Paulo USP 2016 327 f SILVA Fernando Teixeira História e Ciências Sociais zonas de fronteira História São Paulo v 24 n 1 2005 SILVA Ricardo História Intelectual e Teoria Política Rev Sociol Polit Curitiba v 17 n 34 2009 p 301310 SOARES E V BRAGA M L S COSTA D V O dilema racial brasileiro de Roger Bastide a Florestan Fernandes ou da explicação teórica à proposição política Sociedade e Cultura v 5 n 1 2002 p 3552 SOUZA Jessé A SOCIOLOGIA DUAL DE ROBERTO DA MATTA Descobrindo nossos mistérios ou sistematizando nosso autoengano Revista Brasileira de Ciências Sociais Vol 16 N 45 fevereiro 2001 p 4767 SOUZA Patrícia Olsen de Os dilemas da democracia no Brasil um estudo sobre o pensamento de Florestan Fernandes Dissertação de Mestrado em Sociologia MaríliaSP Universidade Estadual de São Paulo UNESP 2005 156 SOUZA Ricardo Luiz Identidade nacional e modernização na historiografia brasileira o diálogo entre Romero Euclides Cascudo e Freyre Tese de Doutorado em História Belo HorizonteMG Universidade Federal de Minas Gerais UFMG 2006 421 f SCHWARCZ Lilia Moritz Gilberto Freyre adaptação mestiçagem trópicos e privacidade em Novo Mundo nos trópicos Malestar na cultura AbrilNovembro Pós Graduação em Filosofia IFCHUFRGS 2010 p 132 TUNA Gustavo Henrique Viagens e viajantes em Gilberto Freyre Dissertação de Mestrado em História CampinasSP Universidade Estadual de Campinas UNICAMP 2003 127 f VELHO Jorge O estudo do comportamento desviante a contribuição da antropologia social In Org Desvio e divergência uma crítica da patologia social 4 ed Rio de Janeiro Zahar 1981 WASSERMAN Claudia História Intelectual Origem e abordagens Tempos históricos v 19 2015 p 6379 ZANOTTO Gizele História dos intelectuais e história intelectual contribuições da historiografia francesa Biblos Rio Grande 22 1 2008 p 3145 ARQUIVOS DIGITAIS FUNDAÇAO GILBERTO FREYRE httpfundacaogilbertofreyreblogspotcom201012instituicao01html Acesso em 17082018 FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO httpswwwfundajgovbrindexphpbuscasearchwordGILBERTO20FREYREs earchphraseall Acesso em 19122018 DOSSIÊ FLORESTAN FERNANDES httpwwwrevistasuspbrrevuspissueview1881 Acesso em 03022019 GILBERTO FREYRE O QUE É O BRASIL httpswwwyoutubecomwatchv9OgPnt9rtqc Acesso em 05042018 O Mestre de Apipucos 1959 Gilberto Freyre httpswwwyoutubecomwatchvGcATR9QpZw Acesso em 11122018 157 Florestan Fernandes mito da democracia racial raça e classe httpswwwyoutubecomwatchvxMsLXgrBdot121s Acesso em 12122018 Florestan Fernandes O Mestre Documentário de Roberto Stefanelli httpswwwyoutubecomwatchvncGSS2yyhNw Acesso em 18072018 REVISTA CIÊNCIA TRÓPICO httpsperiodicosfundajgovbrCIC Acesso em 19022019 httpsperiodicosfundajgovbrCICsearchsearchsimpleQuerygilbertofreyresea rchFieldquery Acesso em 19022019