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POESIA AFRICANA NOVA APOSTILA 2 APOSTILA DE POESIA AFRICANA EM LÍNGUA PORTUGUESA Profª Maria Teresa Salgado David Bernat Ribeiro da Silveira UFRJ FACULDADE DE LETRAS SETOR DE LITERATURAS AFRICANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS VERNÁCULAS 3 ÍNDICE TEXTOS INTRODUTÓRIOS A geração de 50 e a modernidade literária angolana 06 Eu e o outro O invasor Fragmentos de ensaio 10 Sendas de Sonho e Beleza 12 José Craveirinha e a busca pela palavra moçambicana 20 Insularidade na literatura caboverdiana 28 Introdução à literatura de S Tomé e Príncipe 35 Introdução ao espaço guineense 42 ANGOLA Cordeiro da Matta 51 Agostinho Neto 54 Viriato da Cruz 57 António Jacinto 61 Arlindo Barbeitos 64 Paula Tavares 66 MOÇAMBIQUE Rui de Noronha 70 José Craveirinha 71 4 Noémia de Sousa 74 Rui Knopfli 79 CABO VERDE Eugênio Tavares 82 Pedro Cardoso 84 Jorge Barbosa 85 Osvaldo Alcântara 88 Manuel Lopes 90 Ovídio Martins 92 Vera Duarte 95 S TOMÉ E PRÍNCIPE Caetano da Costa Alegre 98 Francisco José Tenreiro 100 Alda do Espírito Santo 102 Conceição Lima 105 GUINÉBISSAU Amilcar Cabral 108 Vasco Cabral 111 António Baticã Ferreira 114 Odete Semedo 116 TEXTOS INTRODUTÓRIOS 6 A Geração de 50 e a Modernidade Literária Angola Maria Teresa Salgado UFRJ Vamos descobrir Angola são as palavras de ordem da geração de 50 De acordo com os historiadores da literatura angolana o primeiro a lançar esse grito foi o poeta Viriato da Cruz que em 1948 reuniase com um grupo de escritores discutindo a necessidade de se criar uma poesia nova voltada para a cultura angolana Retomavase assim o espírito destemido e questionador dos escritores e jornalistas angolanos do final do século XIX e início do século XX como Cordeiro da Matta que haviam trabalhando em favor do resgate da cultura e dos valores nativos Com o apoio da ANANGOLA Associação dos Naturais de Angola um grupo de intelectuais dentre os quais se destacava o poeta António Jacinto passa a se denominar como Movimento dos Novos Intelectuais de Angola1 adotando o lema lançado por Viriato da Cruz e dando início a um projeto que envolvia uma série de atividades culturais campanha de alfabetização fundação de escolas e bibliotecas edição de trabalhos criação de concursos literários lançamento de revistas entre outros planos Nas palavras de Alfredo Margarido 1980 p338 o Movimento dos Novos Intelectuais combatia o respeito exagerado dos valores culturais do Ocidente e convidava os jovens a descobrir Angola através de um trabalho coletivo organizado Um dos requisitos para tal trabalho era a conscientização do povo começando pela sua alfabetização Infelizmente grande parte dos projetos culturais propostos pelo Movimento não pode se concretizar As escolas e bibliotecas não foram fundadas assim como a campanha de alfabetização não chegou a acontecer Como observa Pires Laranjeira 1995 p273 tais projetos eram irrealizáveis a curto e médio prazo e pressupunham a criação de uma nova sociedade Afinal o governo colonial nunca se interessara pela escolarização dos africanos Entretanto a publicação da revista Mensagem embora tenha tido uma vida curta representou um importante passo para a divulgação das ideias ensaios e textos literários que já anunciavam uma literatura que buscava libertarse da tutela dos modelos europeus e aderir ao engajamento social preparando os novos caminhos que levariam à modernidade literária angolana A proibição da revista Mensagem pelo governo português logo após a publicação do segundo exemplar em edição dupla deu a medida de sua ousadia mostrando que a polícia salazarista percebera que as reivindicações literárias e culturais da revista apontavam necessariamente para reivindicações políticas conscientização da exploração colonial e a independência de Portugal Nessa primeira fase segundo Margarido 1980 p239240 são sobretudo as vozes dos poetas António Jacinto Agostinho Neto Viriato da Cruz e Maurício de Almeida Gomes que se destacam ao acenar com as seguintes mudanças no panorama literário angolano recurso ao quimbundo e deformações fonéticas da língua portuguesa apontando já a busca de uma semântica e de uma sintaxe angolanas influência da poesia modernista brasileira conscientização da alienação social valorização do quotidiano angolano e evocação das tradições culturais angolanas 1 Ainda que tenham surgido alguns contistas nessa geração a preponderância no grupo será no campo da poesia 7 Desaparecida Mensagem os escritores angolanos buscam outros meios de divulgar suas produções e encontram na revista Cultura II uma continuação do espírito desbravador de Mensagem Tendo desempenhado entre 1945 e 1954 um papel cultural apenas superficial Cultura recomeçou a ser publicada em 1957 como Cultura II adotando um novo perfil divulga poemas textos e ensaios protestatários e conscientizadores da situação sóciopolítica Ao mesmo tempo em que se abre mais ao que está acontecendo no mundo a revista discute cada vez mais intensamente temas voltados para as línguas e as culturas locais Russell Hamilton 1981 p85 não nos deixa esquecer que Cultura II marca o início de uma crítica literária já com inclinação para a polêmica O debate Poesia de Angola ou poesia de Angola suscitará várias questões que envolvem desde a origem geográfica e cultural do escritor até a cor de sua pele a sua fixação no solo africano e o seu compromisso social António Cardoso Mário Pinto de Andrade Mário de António e Agostinho Neto são nomes que se envolvem nesse debate Como aponta ainda Hamilton 1981 p87 a atualidade cultural será medida sobretudo pelo grau de consciencialização sóciopolítica Por outro lado as reivindicações da cultura angolana e da cor da pele não deixam de ser expressões importantes havendo diversas vezes confusão entre a reivindicação racial e a cultural Poderíamos resumir as posições críticas do momento Hamilton 1981 p8889 citando brevemente alguns pontos de vista Enquanto que para António Cardoso era preciso dar ênfase ao comprometimento político e social Mário António parecia frisar as ambivalências e impedimentos de uma literatura aculturada já Agostinho Neto salientava a responsabilidade social do escritor de restaurar a tradição oral africana buscando incorporála à poesia em língua portuguesa Como já se pode notar são inúmeras e em diversos níveis as tensões que acompanharam essa literatura naquele período aflorando nas antologias e publicações da Casa dos Estudantes do Império CEI Através dessas publicações assistiremos ao desenvolvimento e à afirmação de uma literatura reivindicatória angolana que pouco a pouco destruirá os mitos que haviam sido construídos em torno das culturas tradicionais de origem banta Um deles o de que as línguas africanas não se prestavam à produção poética escrita vem por terra com a publicação pela CEI de poemas angolanos de expressão banta e com as pesquisas em torno da literatura nacional como a de C Easterman2 o qual tentou entender e analisar a natureza dos poemas colhidos nas tradições banto O papel da tradição oral e o trabalho de linguagem envolvendo as línguas de origem banta e o idioma português passam a fazer parte da consciência crítica da época e afloram em publicações e palestras de críticos e escritores como Agostinho Neto que demonstrou uma profunda consciência em relação a essa questão para a afirmação da moderna literatura angolana As mudanças e renovações serão percebidas em primeiro lugar no campo da temática A urgência da mensagem fará com que o tema prevaleça sobre a inovação estilística Por outro lado de acordo com Margarido 1975 p362 essa literatura não pode ser lida apenas como inventário de novos valores estéticos pois um de seus maiores objetivos será o inventário de valores da cultura angolana Daí a organização de uma 2 R Hamilton se refere ao importante trabalho do missionário suíço Easterman página 93 da já citada obra 8 antologia temática como a de Mário Pinto de Andrade3 levantando os temas mais frequentes da poesia angolana de língua portuguesa A terra é o tema por excelência da poesia africana podendo ligarse tanto ao desejo de retorno às origens como na poesia de Alda Lara quanto à imagem perturbadora do trem do comboio que leva os contratados para longe de suas casas como nota Russell Hamilton 1981 p96 contribuindo para a desordem que se instaura no espaço violentado da colonização O retorno às origens por sua vez evocará outro grande tema comum às demais literaturas africanas a homenagem à mãe negra a mãe universal sempre telúrica conforme Margarido 1975 p361 apontando outras vezes para o desamparo e exploração que separa precocemente a criança do colo materno A infância será também um tema bastante recorrente indicando um período preservado em que as diferenças sociais ainda não são tão acentuadas e apontando também para a fase crioula de Luanda Outro tema frequente segundo Hamilton se desenvolverá em torno da identidade cultural e da alienação As ambivalências do branco e do mestiço que procuram identificarse com as aspirações populares evidenciamse de forma criativa em poesias altamente reflexivas de António Jacinto Alda Lara Ernesto Lara ou Agostinho Neto Como podemos notar muitos desses temas estão também bastante ligados entre si e se estendem aos demais sistemas literários africanos Eles apontam não só para um conjunto de ideais e valores africanos mas também para uma linguagem africanizante muitas vezes influenciada por correntes estéticoideológicas como a Negritude o Panafricanismo e o Renascimento Negro Para Hamilton 1981 p103 na literatura angolana esse processo de reafricanização na linguagem se evidencia em diversos momentos e pode ser facilmente exemplificado na produção poética da Geração de 50 no esforço em combinar poesia narrativa e ritmo sincopado trazendo a estrutura musical da rebita uma dança popular de Luanda para dentro da composição como vemos no poema Sô Santo de Viriato da Cruz na inserção da musicalidade da linguagem dos pregões dos bairros populares no Poema da Alienação de António Jacinto e principalmente na tentativa de Agostinho Neto de transmitir o ritmo acelerado da música africana aos seus versos seja pela abolição das pausas marcadas seja pela repetição de palavras seja pela própria acentuação das contradições linguísticas e ideológicas Como vemos o compromisso da Geração de 50 de angolanizar a literatura levou os escritores a resgatar formas e valores da oralidade nos quais descobrem um modo de lutar contra o discurso do opressor afirmando a descolonização literária as fontes da cultural oral tornamse assim um novo começo o antiquíssimo passar a ser uma renovação É o que mostra Laura Padilha pensando com Os FIlhos do Barro de Octávio Paz o traço da modernidade se pode encontrar no velho de milênios se este rompe uma tradição instaurando outra Padilha 2002 p49 Assim recuperar a tradição segundo Padilha significa trazer para o texto a marca da alteridade atingindose a um só tempo a afirmação identitária e a modernidade O grito de Vamos descobrir Angola se fez ouvir atualizando o processo de desterritorialização de que fala Padilha 2002 p49 procurando inverter os sinais de menos impostos às formas culturais angolanas abrindo um espaço para que elas pudessem se expressar 3 Andrade Mario Pinto de Antologia Temática da Poesia Africana vol 1 Na noite grávida de punhais Lisboa Sá da Costa 1976 vol 2 O canto armado 1979 9 Nesse sentido que por sinal não é exclusivo da literatura angolana podemos pensar que a produção literária da geração de 50 já nesse momento acena para o desejo de intervenção no próprio cânone ocidental Ao radicalizar o comprometimento éticosocial e resgatar as fontes tradicionais da oralidade a literatura angolana contrapõese ao discurso hegemônico cristalizado Traz para a cena literária uma discussão em que valores como justiça social e solidariedade não podem ser considerados secundários frente aos padrões estéticos incomodando uma boa parte da crítica O grito desses escritores é portanto um grito que termina por criar novos caminhos para a discussão do próprio conceito de modernidade literária Referências Bibliográficas HAMILTON Russell Literatura Africana Literatura Necessário vol1 Lisboa Edições 70 1981 LARANJEIRA Pires Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa Lisboa Universidade Aberta 1995 MARGARIDO Alfredo Estudos sobre as literaturas das nações africanas de língua portuguesa Lisboa A Regra do Jogo 1980 PADILHA Laura Novos pactos outras ficções Porto Alegre EdiPUCRS 2002 10 Eu e o outro O invasor ou Em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto Fragmentos de ensaio Manuel Rui Quando chegaste mais velhos contavam estórias Tudo estava no seu lugar A água O som A luz Na nossa harmonia O texto oral E só era texto não apenas pela fala mas porque havia árvores paralelas sobre o crepitar de braços da floresta E era texto porque havia gesto Texto porque havia dança Texto porque havia ritual Texto falado ouvido e visto É certo que podias ter pedido para ouvir e ver as estórias que os mais velhos contavam quando chegastes Mas não Preferiste disparar os canhões A partir daí comecei a pensar que tu não eras tu mas outro por me parecer difícil aceitar que da tua identidade fazia parte esse projeto de chegar e bombardear o meu texto Mas tarde viria a constatar que detinhas mais outra arma poderosa além do canhão a escrita E que também sistematicamente no texto que fazias escrito intentavas destruir o meu texto ouvido e visto Eu sou eu e a minha identidade nunca a havia pensado integrando a destruição do que não me pertence Mas agora sinto vontade de me apoderar do teu canhão desmontálo peça a peça refazêlo e disparar ao contra o teu texto não na intenção de o liquidar mas para exterminar dele a parte que me agride Afinal assim identificome sempre euaté posso ajudarte à busca de uma identidade em que sejas tu quando eu te olhoem vez de seres o outro Mas para fazer isto eu tenho que transformar e transformome Assim na minha oratura para além das estórias antigas na memória do tempo eu vou passar a incluirte Vou inventar novas estórias Por exemplo o espantalho silencioso que coloco na lavra para os pássaros não me comerem a massambala passa a ser o outro que não fazia parte do texto Também vou substituir a surucucu cobra maldita Surucucu passa a ser o outro E cobra no meu texto inventado agora passa a ser bela e pacífica se morder o outro com seu veneno mortal E agora o meu texto se ele trouxe a escrita O meu texto tem que se manter assim oraturizado e oraturizante Se eu perco a cosmicidade do rito perco a luta Ah Não tinha reparado Afinal isto é uma luta E eu não posso retirar do meu texto a arma principal A identidade Se o fizer deixo de ser eu e fico outro aliás como o outro quer E agora Vou passar o meu texto oral para a escrita Não É que a partir do momento em que eu o transferir para o espaço da folha branca ele quase morre Não têm árvores Não tem ritual Não tem as crianças sentadas segundo o quadro comunitário estabelecido Não tem som Não tem dança Não tem braços Não tem olhos Não tem bocas O texto são bocas negras na escrita quase redundam num mutismo sobre a folha branca O texto oral tem vezes que só pode ser falado por alguns de nós E há palavras que só alguns de nós podem ouvir No texto escrito posso liquidar este código aglutinador Outra arma secreta para combater o outro e impedir que ele me descodifique para depois me destruir Como escrever a história o poema o provérbio sobre a folha branca Saltando pura e simplesmente da fala para a escrita e submetendome ao rigor do código que a escrita já composta Isso não No texto oral já disse não toco e não o deixo minar pela escrita arma que eu conquistei ao outro Não posso matar o meu texto com a arma do outro Vou é minar 11 a arma do outro com todos os elementos possíveis do meu texto Invento outro texto Interfiro descrevo para que eu conquiste a partir do instrumento escrita um texto escrito meu da minha identidade Os personagens do meu texto têm de se movimentar como no outro texto inicial Têm de cantar Dançar Em suma temos de ser nós Nós mesmos Assim reforço a identidade com a literatura Só que agora porque o meu espaço e tempo foi agredido para o defender por vezes dessituo do espaço e tempo e tempo mais total O emendo não sou eu só O mundo somos nós e os outros E quando a minha literatura transborda a minha identidade é arma de luta e deve ser ação de interferir no mundo total para que se conquiste então o mundo universal Escrever então é viver Escrever assim é lutar Literatura e identidade Princípio e fim Transformador Dinâmico Nunca estático para que além da defesa de mim me reconheça sempre que sou eu a partir e nós também para a desalienação do outro até que um dia virá e os portos do mundo sejam portos de todo o mundo Até lá não se espantem É quase natural que eu escreva também ódio por amor ao amor São Paulo 23051985 RUI Manuel Eu e o outro O Invasor ou Em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto In MEDINA Cremilda Sonha Mamana África São Paulo Epopéia 1987 12 Sendas de Sonho e Beleza Algumas Reflexões Sobre a Poesia Angolana Hoje Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Secco UFRJ Transgressão errância desafio eroticidade metalinguagem e desconstrução são alguns dos vetores da produção poética angolana das últimas décadas A nova poiesis é tecida por perplexidades e incertezas Uma heterogeneidade de tendências reflete a dispersão dessa poesia que oscila entre a revitalização de formas orais da tradição e a ruptura eou recriação em relação a alguns dos procedimentos literários adotados por gerações anteriores A despeito do desencanto frente ao social prenhe de contradições muitos poetas continuam a escrever versos os quais na maioria das vezes se oferecem como instâncias críticas de reflexão acerca das amarguras do povo angolano É pois como resistência que a poesia sobrevive em Angola ora trilhando os caminhos da sátira e da paródia ora os do erotismo e metalinguagem ora os dos mitos e sonhos Estes sempre nutriram o sistema literário angolano e nos tempos presentes embora esgarçados ainda constituem uma espécie de energia subterrânea que impulsiona a imaginação criadora combatendo assim o imobilismo cultural O labor literário atual tem raízes na produção lírica dos anos 70 que voltada para a redescoberta ética e estética do poder da palavra poética foi designada por Luís Kandjimbo como geração do silêncio tendose caracterizado pelo consciência crítica em relação ao ato de escrever ou seja por um mergulho abissal nas entranhas da própria poesia em busca de procedimentos inovadores O poema passou a ser desse modo o lugar do encontro do poeta consigo mesmo o local portanto da descoberta existencial política e literária Nesse sentido deu passagem à poética dos anos 80 que radicalizou em vários aspectos as conquistas estéticas da década de 70 diferenciandose desta contudo por não adotar a práxis do silêncio A poesia dos anos 80 definida por Kandjimbo como geração das incertezas e também a dos anos 90 têm como traço constante a temática da decepção e da angústia diante da situação de Angola que ainda não resolveu completamente a questão da fome e da miséria As dúvidas em relação ao futuro interceptam as possibilidades entreabertas pelos ideais literários dos anos 60 e a poesia se interioriza não se atendo explicitamente às questões sociais Ela inscreve a demiurgia do Homem em todas as suas dimensões engendrando um subsistema literário com signos do tecido social mas também de inquirição cognoscitiva Entre os poetas angolanos contemporâneos destacamos João Maimona João Melo José Luís Mendonça Paula Tavares Lopito Feijó Frederico Ningi Maria Amélia Dalomba Maria Alexandre Dáskalos Conceição Cristovão Fernando Kafukeno Luís Kandjimbo entre outros Em grande parte dessa poesia escrita nas últimas décadas os sonhos se encontram envoltos em uma visão crepuscular Para Maimona por exemplo a trajetória da liberdade foi obliterada pela corrupção e as utopias em Angola foram asfixiadas pelos sofrimentos De quem são as nuvens em ruas de sonho De quem são os desertos que anunciam lágrimas Os poemas de Maimona produzidos nos anos 80 e 90 optam pelas trilhas da alegoria operando com signos de ruína Esqueletos enchem as mãos do poeta São imagens da morte que ocupou o lugar dos sonhos Há todavia nesses textos apesar da 13 desilusão da dor e da solidão a procura de elementos cósmicos o ar o vento as aves as abelhas metáforas do tecido aéreo da poesia Com a paz em Angola em abril de 2002 verificamse mutações na dicção lírica de diversos poetas No livro Lugar e Origem da Beleza de João Maimona editado em Luanda em 2003 pelo Editorial Kilombelombe não obstante a presença da memória dolorida do outrora plasmase um fecundo e criativo diálogo entre a pintura de Van e os poemas da referida obra A plasticidade dos ideogramas pictóricos com imagens de pássaros contracena com a leveza e a sonoridade dos versos com a multidão de traços de esperança com simbólicas sepulturas de homens que embalavam prolongadíssimas tempestades e de quem teria desencadeado incursões contra pacifícas florestas crescia a toponímia das mutações saudando o lugar e a origem da beleza O esboço de uma crescente esperança se plasma ainda tênue no presente mesclandose aos fios interrompidos de um pretérito que imperfeito tenta por sua condição inconclusa reatar as malhas de um passado diversas vezes entrecortado por uma história de sangue e de dor as últimas horas alteraram a história e o dizer obsessivo da imaginação substância das configurações e alma interior do edifício No pretérito imperfeito o verbo dilatava a fertilidade do barco Por entre o despertar da paz e a busca do lugar estético da beleza a poética de João Maimona no entanto ainda cumpre a triste tarefa de exorcizar a memória de sentidas e profundas feridas secular diálogo com uma cicatriz trama de lágrimas na ausência de canções e letras constantes Também os versos de José Luís Mendonça apresentam uma visão melancólica embora sua poiesis procure em última instância acordar a alva alegoria da aurora dos sonhos e do amanhecer da poesia A tempestade arrancou os ventos do meu peito A pele de leão do meu coração faísca Nos subúrbios da noite De quem são estes sonhos perfilados no mural dos meus testículos Essas imagens indicam a perda dos ventos da imaginação frente à noite que se abateu sobre o eupoético cujos sonhos contudo sob a forma de desejos se guardaram nos próprios testículos local conotado que remete à produção representado por isso uma forma de resistência Esse universo sombrio que envolveu Angola e suas cidades também foi denunciado por poemas de Costa Andrade em que Luanda humanizada deu as costas a ela própria 14 Também há sombras e tugúrios indiferenças e murmúrios solidões que matam Paula Tavares em Dizesme coisas amargas como os frutos valendose de contundente onirismo expressa de modo alegórico os absurdos do contexto angolano de guerra no final dos anos 90 e princípio dos 2000 No meu sonho nascem tartarugas de olhos de anjos São elas que voam e eles que resolvem problemas matemáticos Outras vozes poéticas femininas também se revelaram no decorrer dos anos 80 e 90 Ana de Santana Maria Alexandre Dáskalos Amélia Dalomba entre outros nomes Na poesia dessas autoras há a reivindicação do direito de a mulher ser correspondida nos prazeres sexuais desfrutando da própria sexualidade Os sujeitos líricos confessam saudades dos tempos livres onde podiam admirar os flamingos e as andorinhas alegorias dos antigos sonhos da imaginação e dos desejos recalcados Destacamos um poema de Ana de Santana pois em sua poesia o sonho é temática recorrente aparecendo inclusive no título de seu livro Neste o ato de sonhar se institui como lugar da metapoesia espaço sempre possível de desafio e transgressão da palavra poética que soa por vezes sonambulizada em meio a um universo de gritos e lágrimas Reinvento o sonho e curvome para apanhar o teu retrato caído Ao mesmo tempo um imenso nevoeiro para lá de nós e um grito de mulher na noite um choro de criança para além da parede chamando para a normalidade Outro poeta representativo da contemporânea poesia de Angola é João Melo que vem publicando desde os anos 80 O erotismo em sua poiesis se fez arma de resistência para enfrentar medos e dores do passado e do presente povoados por fantasmas pesadelos gemidos Poeta da paixão elegeu o amor como forma de se manter vivo e poder sonhar Estes fantasmas antigos Estas palavras Estes gemidos selvagens eu os arranco de ti amor um segundo apenas um segundo antes da violenta explosão destes tambores medonhos e belos que eu não sei quem solta 15 Poetas como Lopito Feijó e Frederico Ningi cujos discursos romperam iconoclasticamente com cânones estéticos tradicionais recorrendo a metáforas dissonantes corporizações plásticas de palavras e experimentalismos visuais assumiram claramente um viés paródico transgressor e irreverente através do qual apontaram para os complexos pesadelos sociais Frederico Ningi iconicamente se afirmou com uma poética tecida por palavras imagens e símbolos gráficos Sua poesia dissonante e agressiva por intermédio de construções imagéticas surreais buscou advertir que os sonhos e a esperança nas últimas décadas em Angola estavam morrendo sob o peso da corrupção e da guerra Também Lopito Feijó foi autor de uma poiesis sorumbática que se erigiu como crítica violenta ao contexto político de Angola do fim dos anos 90 e início dos 2000 Conotações eróticas entretanto se mantiveram em seus poemas como frágeis possibilidades de não deixarem que os sonhos e os desejos viessem a morrer totalmente Herdeira de conquistas anteriores como por exemplo a do trabalho de intensificação linguística e estética que caracterizou a poesia dos anos 70 e 80 encontramos entre outras no panorama literário angolano dos 90 a poética de Fernando Kafukeno Seu lirismo exacerba o exercício do aproveitamento das potencialidades intrínsecas da língua primando contudo por uma economia capaz de desbastar o verbo poético de excessos e através de uma contundência visual desvelar uma Angola em que os sentidos foram anestesiados o infinito cego háde na penumbra pedalar o surdo ocaso Embora esse poema aponte para o ocaso e a penumbra outro traço se faz recorrente na poiesis de Kafukeno o erotismo sensorial que transforma seus versos em viagem de reflexão e desejo de novos sonhos Estes então se instituem como agentes de manutenção e sobrevivência do prazer poético esta viagem de sonho sabeme à sandálias de couro do túnel que te reveste o prazer na descarga da espada A imagem das sandálias de couro metáfora da imaginação e a contundência da espada rasgando a superfície das palavras em descargas de prazer provam que a despeito do desencanto atual a viagem da poesia ainda é possível Esta conforme José Luís Mendonça é o que brota a raiz e o que mexe na mais obscura sinfonia de cada grão de poeira Na maior parte da produção poética dos anos 90 observamos uma tônica a de que os sonhos foram adiados em razão da catastrófica realidade do país Conceição Cristóvão por exemplo expressou bem isso no poema Apocalipse II turva claridade sonho e realidade adiados da criança é tênue o sorriso 16 precocemente envelhecido ao redor é áspero e perpétuo o ar e meu corpo térreo e estático só o gume das palavras elípticas preenche o abismo do silêncio A crença no gume das palavras e na raiz da própria poesia transferiram os sonhos para o universo dos poemas o que fez com que a literatura e as artes em geral se tivessem constituído como locais privilegiados de resistências segundo versos de João Tala transcritos a seguir raízes da eterna palavra a semente o tempo é a palavra que amadurece o fruto a seiva é um animal que floresce em busca do pássaro inatingível Mostramse frequentes entre os representantes da poesia angolana dos anos 90 as imagens de pássaros como por exemplo nos seguintes versos do poeta Ricardo Manuel onde o eulírico alerta para a perda da liberdade em Angola Gaivotas de asas cortadas e castelos desmoronados à espera da consumação do amor é o que somos Povoam também as obras dos poetas desse período andorinhas flamingos e outras aves geralmente conotando o vôo dos sonhos e da poesia antídotos às distopias que dominam a sociedade angolana desse período como revela o poema a seguir A aura da saudade idade do tempo envolve o vazio No cio O auge da sensação encoberta descobre no drama do destino O pino de uma andorinha piando poesia O cio poético muitas vezes se instituiu entre os poetas dos anos 80 e 90 como um frequente elemento de combate ao tédio provocado pela devastação da pátria Também na poesia de António Panguila esse erotismo se expressou pela tesão que a par do clima de angústia e amargura não deixou de perseguir a foz dos sonhos esta tesão que me persegue háde sufocar meu inocente sangue se as vozes do céu radiante 17 não excitarem as lágrimas de meus poros a encontrar a foz do sonho para capitalizar a desgraça a esgravatar a terra queimada John Bella jovem poeta oriundo das Brigadas Jovens de Literatura elegeu a estação da seca chamada kixibu ocasião em que o cereal masangw baloiçava esfomeado Focalizando o clã de Ngombe denunciou a miséria dos povos pastores de Angola vítimas também das guerras que arrasaram o interior do país Em versos que mesclam o português com palavras de línguas de etnias angolanas apontou para o vazio circundante embora ainda restassem como esperança o sonho e a chuva O vácuo embebido no sonho daurora nomes marcados com a cor da chuva neste clã oh Ngombe masangw baloiça esfomeado no mel do pote há kasumuna e os restos que o Cágado comeu gado ingeriu sementes cujas matérias fecais produziram kibibu Muitas vozes da poesia angolana dos anos 90 refletiram acerca desse malestar ante o estado de penúria social vivido por Angola Grande parte dos poetas advertiu para a atmosfera sufocante de melancolia como demonstram por exemplo os versos de Rui Augusto Retalhos de frustrações de horizontes fechados aquém das promessas Não obstante a falta de perspectivas em relação ao social nos anos 90 em Angola observamos que a poesia dessa fase nunca deixou de se oferecer como força geradora de utopia pois os poetas continuaram a crer no poder transformador da linguagem poética sonhando segundo Adriano Botelho de Vasconcelos com um lugar à passagem da lua que virá fecundar o valor da palavra Também as produções líricas posteriores à paz firmada em Angola em abril de 2002 almejam esse lugar João Maimona se impõe como intérprete da beleza Em sua poesia a palavra se encontra em ressurreição permanente em diálogo intersemiótico com telas de Van conforme apontou Jorge Macedo no prefácio a essa obra Paula Tavares em Exvotos publicado em 2003 percorre os marcos geodésicos da memória Seus poemas desse livro efetuam uma cartografia do sagrado angolano recriando cenas das tradições que se mantiveram esparsas sob os cacos votivos de inúmeras promessas e exvotos formulados no decorrer dos séculos Exvotos se constrói assim como labiríntica e religiosa religiosa no sentido etimológico de religação cósmica com as origens viagem pela história à procura da miragem de uma terra a dar à luz luas de prata Outra significativa voz do mais recente lirismo angolano é Abreu Paxe autor de A chave no repouso da porta Prêmio António Jacinto de Poesia 2003 cujos poemas 18 pressagiam importantes mudanças para o contexto político angolano dos próximos anos O eulírico com a serenidade de quem tem na mãe a chave da porta sabe que esta não tardará a se abrir O poeta então se torna arauto da sonhada harmonia O luar descia orgânico luas subiam as épocas nasciam face os textos cultivados Encerrando nossas reflexões observamos que os temas do amor e do direito à fantasia e à imaginação começam a ser uma constante nas recentes produções literárias de Angola o que se verifica também em algumas obras de ficção como em Um anel de areia de Manuel Rui Outro viés que se delineia é o da correspondência entre as artes onde literatura e pintura dialogam como ocorre por exemplo no já mencionado Lugar e Origem da Beleza de João Maimona e nas estórias do livro Conchas e Búzios de Manuel Rui Monteiro onde as letras dos textos contracenam com telas do famoso pintor moçambicano Malangatana Valente Constatamos por fim que malgrado o hermetismo da linguagem do lirismo angolano dos últimos anos é recorrente neste a metáfora do luar cujas conotações assinalam o sonho o erotismo e a procura por parte dos poetas de inovadoras belezas estéticas capazes de iluminarem e renovarem as propostas estéticas que virão caracterizar este terceiro milênio Referências Bibliográficas KANDJIMBO Luís A nova geração de poetas angolanos In Austral Revista de Bordo da TAAG No 22 Luanda outubro a dezembro de 1997 p 21 KANDJIMBO Luís A nova geração de poetas angolanos In Austral Revista de Bordo da TAAG No 22 Luanda outubro a dezembro de 1997 p 21 MATA Inocência A poesia de João Maimona o canto ao homem total ou a catarse dos lugarescomuns In Revista da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Lisboa 1993 no 155a série pp181188 MAIMONA João Idade das palavras Luanda INALD 1997 p 81 MAIMONA João Lugar e origem da beleza Luanda Ed Kilombelombe 2003 p 109 MAIMONA João Lugar e origem da beleza Luanda Ed Kilombelombe 2003 p 33 MAIMONA João Lugar e origem da beleza Luanda Ed Kilombelombe 2003 p 95 MENDONÇA José Luís Quero acordar a alba Luanda INALD 1997 p37 ANDRADE Fernando Costa Luanda poema em movimento marítimo Luanda Maiadouro 1997 p 29 TAVARES Paula Dizesme coisas amargas como os frutos Lisboa Caminho 2001 p18 SANTANA Ana de Sabores odores sonhos Luanda UEA 1985 p 47 MELO João Tanto amor Luanda UEA 1989 p 52 19 Kafukeno Fernando Sobre o grafite da ceraLuanda Kilombelombe 2000 p 35 Kafukeno Fernando Sobre o grafite da ceraLuanda Kilombelombe 2000 p 49 MENDONÇA José Luís Ngoma do negro metal Luanda Chá de Caxinde 2000 p 15 CRISTÓVÃO Conceição Amores elípticos entre o amor e a transparência Luanda Edição do Autor 1996 p 15 JALA João O gosto da sementeLuandaINIC Instituto Nacional das Indústrias Culturais 2000 Colecção A Letra 2a Série no 19 p 17 MANUEL Ricardo Bruxedos de amor Poesias eróticas Luanda Kilombelombe 1998 p29 GONÇALVES António Buscando o homem Antologia poética Luanda Kilombelombe 2000 p 65 PANGUILA António Amor mendigo Luanda Governo Provincial de Luanda 1997 p 5 BELLA John Panelas cozinharam madrugadasLuanda Ponto Um Indústria Gráfica Edição Comemorativa dos 25 Anos da Independência 2000 p36 AUGUSTO Rui O amor civil Luanda União Cooperativa Editora 1991 Colecção Lavra Oficina 92 p15 VASCONCELOS Adriano Botelho Abismos de silêncio Luanda União dos Escritores Angolanos ABV Editora 1996 p 40 TAVARES Paula Exvotos Lisboa Caminho 2003 p 9 TAVARES Paula Exvotos Lisboa Caminho 2003 p 41 PAXE Abreu A chave no repouso da porta Luanda INIC 2003 p 33 20 José Craveirinha e a busca pela palavra moçambicana Sílvio Renato Jorge O poeta José Craveirinha ganhador do Prêmio Camões de 1991 nasceu em 28 de maio de 1922 na cidade de Maputo antiga Lourenço Marques em Moçambique e faleceu em 06 de fevereiro de 2003 Filho de pai algarvio e mãe africana foi entretanto criado pela esposa oficial de seu pai que ao chegar à África o acolheu como filho Do contato inicial com sua verdadeira mãe permaneceu a aprendizagem da língua ronga fundamental como veremos mais tarde para a constituição de sua linguagem literária Estreitamente ligado às atividades políticas que deram origem ao processo de independência moçambicana pode ser considerado um dos principais articuladores da Frente de de Libertação Moçambicana FRELIMO tendo estado preso pela polícia política portuguesa PIDEDGS de 1965 a 1969 Jornalista trabalhou nos principais jornais de seu país Notícias O Brado Africano A Tribuna Notícias da Beira O Jornal e Voz de Moçambique e foi ainda o primeiro presidente da Associação dos Escritores Moçambicanos AEMO após a independência Tendo publicado inúmeros textos em jornais possui uma obra poética que apesar de pouco divulgada se levarmos em consideração o número de livros trazidos a público e o fato de o poeta preferir guardar seus textos na gaveta foi traduzida para diversos idiomas Merecem destaque as seguintes obras Chigubo publicado inicialmente em 1964 pela Casa do Estudante do Império CEI e sem a interferência do autor reúne treze poemas A segunda edição rebatizada Xigubo é de 1980 e apresenta um maior número de textos vinte e um ao todo É esta a edição considerada oficial pelo poeta Cantico a un dio di catrame Cântico a um deus de alcatrão edição organizada por Joyce Lusso em 1966 Bilíngue também foi feita sem a intervenção do autor e publicada na Itália Karingana ua karingana edição na qual o processo de escolha dos poemas também foi levado adiante inicialmente pelo editor em 1974 teve sua revisão feita pelo autor em 1982 Cela 1 livro de 1980 reúne textos que se referem à experiência do autor na prisão Maria publicado em 1988 reúne poemas dedicados à sua esposa já falecida Obra poética publicada pela Universidade Eduardo Mondlane em setembro de 2002 reúne sua poesia publicada em livro e inéditos cedidos pela família Traz ainda um CD com alguns poemas recitados por Calane da Silva Anabela Adrianopoulos e Jaime Santos Estes livros ainda que de forma parcelar destacam as principais tendências de sua obra que inicialmente marcada pela influência do neorealismo busca descrever através da denúncia a exploração colonial do negro africano e o processo de degradação a que foi 21 submetido Assim a negritude a moçambicanidade e a luta pela libertação nacional são questões constantemente representadas em seus poemas revelando uma indagação profunda acerca do que é escrever em Moçambique subvertendo a língua portuguesa para transformála em instrumento de luta anticolonialista Um bom ponto de partida para pensarmos essas questões é o poema Grito negro em que lemos Eu sou carvão E tu arrancasme brutalmente do chão E fazesme tua alma Patrão Eu sou carvão E tu acendesme patrão Para te servir eternamente como força motriz mas eternamente não Patrão Eu sou carvão E tenho que arder sim E queimar tudo com a força da minha combustão Eu sou carvão Tenho que arder na exploração Arder até às cinzas da maldição Arder vivo como alcatrão meu Irmão Até não ser mais tua mina Patrão Eu sou carvão Tenho que arder E queimar tudo com o fogo da minha combustão Sim Eu serei o teu carvão Patrão Há nesse poema a voz de uma revolta pontuada pela consciência do processo colonial português Tal processo apoiado na degradação moral do negro e de sua cultura postulava a superioridade do branco como elemento fundador de seu direito à posse Diante de um pensamento imperialista profundamente marcado pelo etnocentrismo podemos afirmar que o poema de Craveirinha busca subrepticiamente não apenas denunciar o sofrimento do trabalhador explorado mas ainda investir na valorização do negro através de índices que o revelam como o único instrumento capaz de reescrever a sua própria história O duplo jogo desenhado a partir das palavras patrão e carvão indica que para suplantar o esforço de aniquilamento empreendido pelo patrão colonizador o homem negro precisa queimarse acender o fogo de sua combustão e então agir efetivamente como gerador de uma nova chama a chama da liberdade 22 A utilização de versos curtos que inicialmente parecem referendar a imagem colonialista e reificadora do negro como carvão ou seja como força motriz animalizada Eu sou carvão E tu acendesme patrão Para te servir eternamente como força motriz mas que logo se vê apontam para a revolta e o desejo de luta mas eternamente não ou ainda Eu sou carvão E tenho que arder sim E queimar tudo com a força da minha combustão pontuam o trabalho rítmico perseguido pelo poeta É este trabalho que como não podemos deixar de destacar acaba por desenhar a sua busca por uma dicção própria pautada principalmente pelo aflorar dos ritmos africanos As mesmas questões políticas estão por trás ainda do poema Inclandestinidade O desvelamento da língua e a reflexão sobre o processo que delineia a imposição da cultura portuguesa afloram em seus versos através da referência a Camões a ao dia da raça escrito assim mesmo com minúsculas decompondo qualquer intenção de atribuirselhe superioridade estabelecendo uma leitura responsável por mostrar o quanto o desenvolvimento da raiz africana subversivamente irá clandestinizar o governo ultramarino português Eu jamais movi um dedo na clandestinidade Mas militante de facto sou Por acaso até nasci numa grande e próspera colônia Depus flores na estátua do Sr António Enes recitei versos de Camões num tal dia da raça e cheguei a cantar uma marcha chamada A Portuguesa Cresci Minhas raízes também cresceram e torneime um subversivo na genuína ilegalidade Foi assim que eu subversivamente clandestinizei o governo ultramarino português Foi assim Com isso além do caráter épico que sua poesia adquire ao configurarse como a expressão da gesta do povo moçambicano pela liberdade o texto produzido pelo poeta irá se destacar de forma visível pelo modo como busca posicionarse diante da língua portuguesa Instrumento de cultura e consequentemente sinal da presença colonial do homem português na África o uso da língua é com certeza a questão fundamental a ser pensada por uma escrita vincadamente dessacralizadora por que não dizemos contestadora A grande pergunta em relação à qual José Craveirinha parece ter sido instado a posicionarse é como ser poeta moçambicano em língua portuguesa Ou melhor como cantar o desejo de autonomia da nova pátria a ser desenhada talvez fosse melhor dizer não o desejo de mas o direito à utilizando a língua do colonizador A solução sábia e estimulante encontrada por este homem da palavra parece ter sido a recuperação antropofágica da língua pela sua reconstrução pelo diálogo com o 23 ronga O português subvertido e redescoberto será portanto em muitos de seus poemas entretecido com interferências do vocabulário e da estrutura dessa língua moçambicana transformandose em representação intencional de toda a carga cultural africana Assim se por um lado ele mantém os laços inevitáveis com a cultura do Ocidente por outro utiliza sons e ritmos próprios enfatizando o caráter oral de seu discurso e da literatura que ajuda a criar Em Karingana ua karigana talvez sua obra mais representativa estas questões afloram de forma sistemática O título do livro é uma atualização moçambicana da fórmula tradicionalmente utilizada para introduzir as narrativas orais o que de forma aproximada poderia corresponder ao uso europeu do era uma vez e que indica o caráter ritualístico da narrativa como instrumento de manutenção de valores ancestrais Nele encontramos uma interrogação ativa dos valores que compõem a identidade de Moçambique as suas origens e o peso de sua herança cultural Esta interrogação contudo não se limita à representação da cena africana mas mais do que isso irá também passear pela descoberta de possibilidades linguísticas e sonoras capazes de compor um painel mais ágil e consistente do mundo a ser representado O poema Quero ser tambor atualiza visivelmente os problemas aqui levantados Texto de rara expressão capaz de associar ritmo e palavra na composição daquilo que poderíamos chamar de uma voz moçambicana seus versos elaboram por meio da repetição anafórica e da reiteração constante de palavras no final dos versos a transformação da voz do poeta no som do tambor erguendoa como um canto de liberdade Tambor está velho de gritar ó velho Deus dos homens deixame ser tambor corpo e alma só tambor só tambor gritando na noite quente dos trópicos E nem flor nascida no mato do desespero Nem rio correndo para o mar do desespero Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero Nem nada Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra Eu Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala Só tambor velho de sangrar no batuque do meu povo Só tambor perdido na escuridão da noite perdida Ó velho Deus dos homens eu quero ser tambor e nem rio e nem flor e nem zagaia por enquanto 24 e nem mesmo poesia Só tambor ecoando a canção da força e da vida só tambor noite e dia dia e noite só tambor até à consumação da grande festa do batuque Oh velho Deus dos homens deixame ser tambor só tambor O tambor instrumento de convocação ritualística para guerra e para festa é aqui retomado pelo seu poder de evocar a consciência dos traços ancestrais que compõem a identidade do poeta O desejo de transformar sua voz no som do instrumento é também o desejo de erguêla a um novo patamar e atribuirlhe os valores encontrados no tambor Suas palavras deixam de ser rio e flor o espaço poético por excelência do Ocidente e nem mesmo zagaia por enquanto para realizarse como convocação da ancestralidade como instrumento de integração e conscientização do homem africano Se aqui a palavra ronga insinuase de modo tímido porém marcante em Tchaiam estes versos tchaiam ela invade significativamente a língua portuguesa alterando o sistema linguístico do colonizador Trazendo em seu título a alusão aos sons percutidos já que tchaia significa bater ou fazer soar de forma próxima a Quero ser tambor realiza já aí uma busca de legitimação do que seria uma nova língua literária nacional contrapondoa àquela que lhe serve de base a do colonizador português e que como tal deve ser rompida De certa forma o som do batuque recuperado pelos dois poemas o que lemos acima e o que iremos ler a seguir alargam o campo de comunicação dessa literatura recuperando o sonho possível de ultrapassagem da lactofome histórica dos filhos de Moçambique Vamos no prelúdio das aleluias pressentir o mundo no tenso ritual da falange concentricamente humedecida nos mornos imos teus Maria docemente E violas às dedadas de amor tchaiam na insubornável capulana da noite e as polpas dos dedos em puros viceversa tchaiam as melodias bantos no centro dos cajueiros florindo a montanha Mas minhas violas de madeira de caixote minhas violas que tchaiam os instintos perfeitos no grande medo que nos tchaia as calças de caqui no delírio do esplendor dos remendos no ritmo tocado no componde destes versos atrás da sentinela que produz e reproduz na guarita própria a lactofome dos filhos 25 E na coesa ideologia pornográfica de um pão despido na luxúria dos dentes os poetas tchaiam com gosto os queixos da terra como quem tchaia ferro no ferro Mas é tudo ritmo dos dentes Maria que tchaiam nas panelas as insolentes românticas duas colheradas e meia de farinha A esta grande reflexão sobre a língua associase muitas vezes um processo de questionamento das fórmulas literárias tradicionais sejam aquelas que pertencem aos gêneros ocidentais sejam aquelas que se relacionam às formas discursivas da cultura africana Um exemplo disto já foi destacado ao comentarmos o título de Karingana ua karingana É necessário porém enfatizar uma série de releituras feitas com bastante propriedade dos modelos encontrados no percurso da literatura oral Este é o caso de muitas das suas criações que dialogando com a tradição da poesia panegírica dos povos bantu acabam por rever o modelo ocidental de cultura Citando Ana Mafalda Leite reconhecida especialista no trabalho poético do autor convém afirmar Esses poemas a poesia panegírica dos povos Bantu são uma das mais especializadas formas de poesia oral e segundo a descrição de R Finnegan situamse entre o épico e a ode sendo uma combinatória de narração exclamativa e de apóstrofe laudatória os poemas descrevem os mais variados assuntos desde episódios históricos a casos pessoais batalhas aventuras caçadas etc o seu tom é solene o estilo adulatório mas não foge apesar do elogio à crítica Vários poemas de José Craveirinha aponto aqui em especial para Manifesto Hino à minha terra Ode a uma carga incendiada num barco chamado Save podem lerse de perto na base formal e conteudística desta antiga espécie poética os outros guardarão essencialmente a tradição dessa combinatória entre o lírico e o narrativo assim como a sua função eminentemente social e ideológica LEITE 1998 p380 Por outro lado talvez seja eficaz destacar a primeira parte do livro anteriormente referido cujo título sintomaticamente é Fabulário e reúne poemas escritos entre 1945 e 1950 Recuperando a idéia de narrativa exemplar e propondo portanto um diálogo entre gêneros este conjunto de poemas irá refletir de forma aguda e muitas vezes irônica acerca da condição colonial apontando já para o processo de resgate cultural desenvolvido no restante da obra Dele lemos dois textos em que estas características se tornam substanciais O primeiro deles intitulase Fábula recuperando já a partir do título as relações que aqui estamos a perseguir Menino gordo comprou um balão e assoprou assoprou com força o balão amarelo Menino gordo assoprou assoprou 26 assoprou o balão inchou inchou e rebentou Meninos magros apanharam os restos e fizeram balãozinhos O segundo mais divulgado é intitulado Ninguém e encena o processo de apagamento que o colonizador impõe ao colonizado Andaimes até ao décimo andar do moderno edifício de betão armado O ritmo florestal dos ferros erguidos arquitectonicamente no ar e um transeunte curioso que pergunta Já caiu alguém dos andaimes O pausado ronronar dos motores a óleos pesados e a tranquila resposta do senhor empreiteiro Ninguém Só dois pretos Em Fábula dois processos complementares são encenados O primeiro deles é a denúncia da subalternização do colonizado frente ao colonizador O jogo entre o menino gordo metáfora deste e os meninos magros metáfora daquele recupera de forma palpável a imagem do distanciamento existente entre as duas parcelas da sociedade colonial enfatizando uma busca pela sobrevivência que se constrói a partir dos restos a que se tem acesso É o que se pode ver nos dois últimos versos do poema Já o segundo processo é a busca de reconstituição da nação através dos restos possíveis Das ruínas do Império excessivamente explorado o balão inchou inchou e rebentou surge a matéria prima para se estabelecer em marcos de uma nova era No poema Ninguém a ironia marcante da fala do senhor empreiteiro ao informar Ninguém Só dois pretos traz à tona as marcas do olhar imperialista que já havíamos enfatizado É curioso notarmos a freqüência com que nos textos de Craveirinha as palavras senhor e patrão e suas correspondentes adquirem um acento irônico diríamos até sarcástico capaz de desmascarar os traços de ódio e ressentimento elencados pelo poeta Nos dois casos os poemas atualizam estratégias próprias da narrativa o que reforça a busca de uma expressão lírica próxima à oralidade caráter fundamental na recuperação de uma literatura marcadamente africana Como afirmamos no início deste ensaio ao orientar seu processo poético para a demanda de uma linguagem apta a representar a individualização de sua cultura o poeta moçambicano elabora os alicerces de um novo modo de dizer Moçambique A sua poesia constantemente extensa e de cunho 27 narrativo preocupada com uma temática que aponta para os problemas gerados pela dominação e para os questionamentos em torno dos processos de identidade nacional é com certeza um dos principais marcos no surgimento do que reconhecemos como Literatura Moçambicana Referências Bibliográficas ABDALA JR Benjamin Antônio Jacinto José Craveirinha Solano Trindade o sonho diurno de uma poética popular In Anais do I Encontro de Professores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa Niterói EdUFF 1995 p 7786 CHABAL Patrick Vozes moçambicanas Literatura e Nacionalidade Lisboa Veja 1994 CRAVEIRINHA José Cela 1 Lisboa Ed 70 1980 Karingana ua karingana Lisboa Ed 70 1982 Maria Lisboa Alac 1988 Xigubo Lisboa Ed 70 1980 LARANJEIRA Pires Literaturas africanas de expressão portuguesa Lisboa Universidade Aberta 1995 LEITE Ana Mafalda Permanência e transformação das formas tradicionais na poesia de José Craveirinha In Anais do V Congresso da AIL Oxford 1998 p 377384 SAID Edward W Cultura e imperialismo São Paulo Cia das Letras 1995 SILVEIRA Jorge Fernandes da José Craveirinha impoética poesia In Anais do I Encontro de Professores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa Niterói EdUFF 1995 p185194 Jorge Sílvio Renato In África Brasil letras em laços São Paulo Yendis 2006 28 Insularidade na literatura caboverdiana Dina Salústio Qualquer tentativa de abordar a literatura Caboverdiana implica entrar por opção ou descuido no cenário que moldou e marcou Cabo verde e obriga necessariamente a penetrar na intimidade das duas mulheres e dos seus homens modelos traídos pela transparência opaca das palavras companheiras constantes de qualquer outra visão surgenos o mar enorme e sem fim ditando o rumo traçando rotas revelando distâncias marcando o silêncio Imposições que vão definir as relações entre a ilha e o ilhéu e que no conjunto e no desenrolar se pode chamar de insularidade a qual o escritor se entrega por razões de sobrevivência existencial emocional e profissional Se o aspecto existencial ou afectivo são dados pacíficos da afirmação a sobrevivência profissional poderá ser contestada embora pense que apesar da escrita não ser um modo de ganhar a vida o ilhéu exerciaa como um modo de viver a vida com extremo engajamento não se dedicando exclusivamente a ela geralmente por impossibilidade de escolha Jorge Barbosa o poeta que escolhemos para ilustrar o tema escreve Era pra eu Ser panfletário Não o fui O magnífico e heroico destino que eu imaginava tão liricamente ser o meu veneramno afinal a prudência o temor a família venceuo este outro real e melancólico destino burocrático E esta incapacidade de escolha vaise juntar a uma série de outras mais como o ter de conviver com um espaço sempre igual e parado Rochedo que em encalhou na baía forçando a necessidade de explorar até à exaustão o realismo do cenário envolvente com os seus variados contornos e roupagens Mas realismo para o ilhéu é o que ele vê o que projecta e o que fantasia nos cheiros do mar que o isola do resto do mundo e em espasmos de angústia ou em tons de inconcebível alegria curte a espera e em atitude quase mítica entregase desarmado e só à insularidade relação e sentimentos que constituem um autêntico maná matéria prima para a escrita Utilização que de forma nenhuma faz diminuir o impacto da criatividade antes justifica a violenta e desassombrada entrega ao temário No poema Dia Jorge Barbosa escreve Oito horas Começou assim o dia Burocrático Irremediável Cifras caindo arrumadas Indiferentes sobre o livro aberto Dentro da Baía o pequeno veleiro bordejando Meio dia Tem doze anos apenas a pretinha que vende bolos ali à esquina sorrindo Finalmente fundeou o pequeno veleiro Dezassete horas A tarde parada a tarde morrendo O pequeno veleiro balouçando Meia noite e esta ilusão de que a luzita do veleiro acena por mim no meio do escuro da baía Debruçome sonolento sobre o meu poema Acabou assim o dia Irremediável Tentando perceber nessa leitura o sentimento que nos faz o olhar longínquo e o sorriso distante já cheguei a pensar que o recurso à insularidade poderia ser uma forma do escritor se vingar dela que ousou marcálo roubandolhe inclusivamente os espaços 29 abertos e reais que proporcionariam outras vidas outros meios outros estilos De facto abrindo em público as dores as frustrações dos ilhéus gritando a raiva do povo traído abandonado no meio da vida eu penso que é vingança do poetailhéuescritor culpabilizar ou pelo menos apontar o culpado da situação existente Mesmo que ao diabo se chame belo Mas por tudo que se possa dizer sem dúvida nenhuma Há uma relação de amor entre o ilhéuescritorpoeta e o cenário que ele percorre Há o feitiço que foge do mar para o seu todo e o deixa frágil ondeante indeciso entre o mar e carne nos chamados dos oceanos que não acabam nunca e que Jorge Barbosa traduz nestes versos o drama do mar o desassossego do mar sempre sempre dentro de nós Entrando nessa relação marcada também pelo sentimento de injustiça que o ilhéu experimenta face ao isolamento admiro a força que os escritoresilhéus encontraram para contornar uma situação à partida humilhante porque castradora de destinos usurpadora de direitos falseadora de chamadas que não deixam os desejos adormecer para explorandoa terem produzido obras de sonho E é com uma espécie de prazer que se dá o encontro com esse sentimento de fragilidade solidão e angústia alimentado pelas ondas e pelos gritos das noites que atinge o que mais fundo existe nos ilhéus os domina os limita deixandoos imperfeitos como pequeninos portos lhes diminuem o riso e as razões e os lançam à deriva sobre raízes soltas e frágeis roubadas de outras vidas Por isso eu penso que a literatura da insularidade teve ou tem o mérito de despertar a perversão do leitor contribuindo para a projecção desse conflito universal a todos os homens Escrita em tons de lamento que tem cativado a simpatia de muitos lados Outra vez a manifestação indubitável de perversão ou cinismo sagazmente camuflada Mas não é grave esse comportamento porque as perversões fazem parte da essência humana e o escritorilhéu terá naturalmente as dele Tem as dele Manuel Lopes amargo só sofrido assume o drama de ilhéu cercado pelo mar que ficou em terra sonhando espaços viagens e mundos E ficou mudo ouvindo o vento a cantar na penedia olhando as ondas que não param nunca o horizonte sempre igual e este sulco branco que umas hélices deixaram no mar onde se desfazem os últimos esgares duma longa ironia e no extremo do qual flutua ainda o perfil dum vapor que não me quis levar Receio de perder as amarras as únicas que o ligam a qualquer coisa mesmo que o impeçam de procurar outros laços Ambivalência ambiquerência Evasão que lembra a partida e o regresso os sonhos mais sonhados de qualquer ilhéu que de tanto sonhar às vezes parece ele mesmo um sonho ambulante pelos cais de ver partir pelos portos que o não levam Pelos barcos que o deixaram com os chamadospromessasdefelicidadesempreadiada Em Rua morta Barbosa escuta o chamado de todos os dias trazido pelo vento dos lados do mar Passou agora no céu uma estrela cadente No fim da rua soam e ressoam as passadas ritmadas de um polícia No escuro da esquina adivinho um soldado abraçado a uma mulher Sinto chamar mais além talvez por mim pst Esse apelo que sai da noite não sei bem se vem de muito longe Chega dos lados do mar Um silvo de sereia E 30 passa a cambalear o vulto de um bêbado qualquer Oiço ainda chamar timidamente o mesmo apelo insistente pssst E o fantasma de partida transformase em bússola de asas seguras que leva o escritorpoeta ilhéu só por esse mundo fora por mares e ares fugindo das ilhas dos muros gigantes das fronteiras húmidas dos nãoacontecimentos do silêncio para o trazer de volta infeliz feliz rico pobre senhor escravo do seu destino passageiro de uma viagem que muitas vezes nem um minuto durou E nos traz a realidade que nos largou no mar faluchos de tinta à mercê das calmarias das tempestades e de outros iguais faluchos É por isso também que pela escrita dos ilhéus perpassa esse sentimento massado na solidão que mesmo motivo de canto carrega no final de cada letra ainda e sempre o sentido da condenação ao mar à ausência à prisão E adivinho na escrita restos de amargura de paixão contida enfim de masoquismo Sempre sempre o mar dentro de nós que não nos leva e não nos deixa partir E Oswaldo Alcântara fazlhe o elogio no poema Mar És estrela e única vida Vida que sobe das esquinas ocultas no mar sem águas com águas sem sal que vêm a diluirse lá do fundo das distâncias mágicas Mar tu és o que fica Evasão partidas e regressos necessariamente juntos determinando a sempre presente nostalgia máscara onde se esconde a culpa pelo desejo visceral de abandonar as ilhas levantar âncoras erguer o corpo e ombrear com todos os homens e as mulheres livres do mundo Outros humanos Porque no ilhéu o sentimento gregário é muito mais do que a necessidade de se juntar em grupo para se justificar gente Mais do que isso é a necessidade vital de conhecer de se informar de ver de falar de perguntar e de viver Em todas as línguas e por todos os mundos Jorge Barbosa na Carta para Manuel Bandeira poeta brasileiro dános conta dessa ânsia de interlocutores ainda que apenas imaginados Nunca li nenhum dos teus livros Apenas já li a Estrela da Manhã e alguns poemas teus Nem te conheço porque a distância é imensa e os planos das minhas viagens nunca passaram de sonho e de versos Aqui onde estou no outro lado do mesmo mar tu me preocupas Manuel Bandeira meu irmão atlântico E deparamonos com outro recurso do ilhéu enquanto ser modelador da palavra que é a representação onírica da realidade que investe como forma possível de ultrapassar o quotidiano de ousadias curtas que o provocam o inspiram e o modelam envolto na clausura de um mar que não suspende o rugido mesmo quando é urgente ouvir o chamado de outros mares em manifestações quase esquizofrênicas de esperança que chegue a libertação de si mesmo das ondas das limitações da prisão que é a ilha Vemos então o ilhéuescritorpoeta imaginando fugas arquitetando navios fantasiando cidades ousandose no mundo Vêmolo inacabado com as ilhas inacabadas expondose em versos que contudo não conseguem redimilo do seu destino islenho O leitor percebe que há outros homens que não conseguiram soltar as amarras Aguinaldo Brito Fonseca em Herança conta com um pouco da historia que marcou e que de algum modo influenciou todos os ilhéusescritores e que lhes dá a dimensão da procura a insatisfação de raízes prisões eleitas 31 O meu avô escravo legoume estas ilhas incompletas este mar e este céu As ilhas por quererem ser navios ficaram naufragadas entre mar e céu Agora aqui vivo eu e aqui heide morrer Meus sonhos de asas desfeitas pelo sol da vida deslocamse como répteis sobre a areia quente e enroscamse raivosos no cordame petrificado na fragata das mil partidas frustradas Ah meu avô escravo como tu eu também estou encarcerado neste navio fantasma eternamente encalhado entre mar e céu Como tu também tenho a esmola do luar e por amante essa mulher de bruma universal fugaz que vai e vem passeando à beira mar ou cavalgando sobre o dorso das borrascas chamando chamando sempre na voz do vento e das ondas Então o escritor hipotético deus senhor dos mares e dos destinos mais a palavras esse brinquedo que vai e vem ao sabor dos sonhos que o não levam a lugar nenhum descrevem sítios postais contos fantásticos de vivências e dos desejos simples do homem comum este mais do que ninguém flagelado pela insularidade e esquecido por causa dela Em Nostalgia Jorge Barbosa dános a imagem desse sonho que se constrói de olhos abertos e coração suspenso Vejo às vezes os barcos passando E fico por instantes construindo fantasiando cidades terras distantes que apenas sei existirem por aquilo que se diz Fico mais triste pensando nessa Viagem que não fiz Incapaz de dominar as amarras líquidas que o cercam preso num todo previsível e constante o sinal que marca o ilhéuescritorpoeta de forma mais complexa é uma fragilidade enorme que o quase faz menino sem poder de decisão dependente pequena coisa E Pedro Corsino de Azevedo dramático em Terra Longe Aqui perdido distante das realidades que apenas sonhei cansado pela febre do mais além suponho minha mãe a embalarme eu pequenino zangado pelo sono que não vinha ai não montes tal cavalinho tal cavalinho vai terra longe terra longe tem gente gentio gente gentio come gente À doce toada meu sono caía de manso da boca de minha mãe cala cala meu menino terra longe tem gente gentio gente gentio come gente Depois vieram os anos e com eles tantas saudades Hoje lá no fundo gritam vai Mas a voz da minha mãe a gemer de mansinho cantigas de minha infância aconselha ao filho amado terralonge Tem gentegentio gentegentio come gente Terralonge Terralonge Oh mãe que me embalaste Oh meu querer bipartido Mas o ilhéuescritor precisa viver mesmo que o mar seja cada vez mais bravo Então procurar máscaras e ousar usálas é condição de sobrevivência impondose na literatura como um espaço de fugaequilíbrio E o sonho aparece como a única máscara capaz de devolver a dignidade ao ilhéu pelo poder de decidir do seu próprio destino Suprema liberdade Mesmo que pelo tempo suficiente de se dizer ou escrever um poema 32 Pelo tempo de se ler ou ouvir um poema O escritor Manuel Lopes no poema Poema de quem ficou Eu não te quero mal por este orgulho que tu trazes Por este ar de triunfo iluminado com que voltas Que teu irmão que ficou sonhou coisas maiores ainda mais belas que aquelas que conheceste Crispou as mãos à beiramar e teve saudades estranhas de terras estranhas com bosques com rios com outras montanhas bosques de névoa rios de prata montanhas de oiro que nunca viram teus olhos no mundo que percorreste E constroem barcos e partem por esse mundo fora numa escrita onde geme a impotência pelo ramerrão que os fustiga e apouca que nos fustiga e apouca imersos na solidão que não acaba porque o mar não deixa e a terra proíbe Viagens Viagens viagens que outro destino para a ilha para o ilhéuescritorpoeta O destino das ilhas marcado pelo mar que cada dia cada ano aumenta mais cada vez mais com ausências amigos que chegam e partem viajantes que mal atracam lembranças que não ficam portos que se fecham fronteiras que não se abrem O destino das ilhas que afora ao som de ameaças estridentes e histéricas em ondas trabalhadas a cores ou não chegam avisando que a terra longe apesar de tudo esta cada vez mais longe e tem gentegentio que come gente Gentes que as nossas mães já cantavam Ondas que gritam acordos leis e proibições e obrigam o ilhéu a ficar em terra na terra em condenação forçada a ter de ficar sonhando a viagem Jorge Barbosa em poema do mar Ai a cinta do mar que detém ímpetos ao nosso arrebatamento e insinua horizontes para lá do nosso isolamento Este convite de toda a hora que o mar nos faz para a evasão este desespero de querer partir e ter de ficar A insularidade essa camisa de forças que o tolhe os gestos e nos fecunda o peito em propostas de evasão que não nos facilita a viagem que nunca nos levará ao outro que mora ao lado no oceano irmão ou no fim do mundo criado pátria viciada de mil léguas De mil línguas também Tudo porque existe o mar que nos embala e nos leva e nos traz de viagens que não se fez E um dia definitivamente nos levará intocados pelos sonhos dos outros que não souberam de nós dos nossos medos de ir de não poder voltar de querer ir e ter de ficar Os ilhéus sempre eles de pedra e mar presos neste bocado de mundo divididos no desejo Outra vez Jorge Barbosa em O emigrante Quando eu puser os pés no vapor que me levará quando deitar os olhos para trás em derradeiro gesto de desprendimento não chorem por mim Levarei numa pequena mala entre a minha roupa amarrotada de emigrante todos os meus poemas todos os meus sonhos Levarei as minhas lágrimas comigo mas ninguém as verá porque as deixarei cair pelo caminho dentro do mar Levarei já nos olhos a miragem de outras paisagens que me esperam já no coração o bater forte de emoções que eu pressinto E se eu voltar Se voltar para a pobreza da nossa terra tal 33 como fui humilde e sem riquezas também não chorem por mim não tenham pena de mim Mas se eu trouxer esse ar de felicidade que fica a arder na chama de charutos caros que cintila em pedrarias de anéis vistosos se anuncia em risadas ruidosas e se garante na abundância das cifras bancárias então chorem por mim tenham pena de mim porque a pequena mala de emigrante que fui com os meus poemas os meus sonhos ficou esquecida com coisa inútil como peso inútil não sei em que parte do mundo As interrogações a insegurança os nossos sonhos Que é deles E os escritoresilhéus escondemse para acalmarem a sua impotência Há ainda as raízes que se perdem a nostalgia que dói O riso que tai o abraço recusado A realidade Nós e outra vez o mar sozinhos como no princípio dos tempos em vapor que nos leva aos portos dos outros à cultura dos outros à terra dos outros às línguas dos outros às riquezas dos outros aos sonhos dos outros O mesmo mar que nos traz geralmente à nossa mesma praia definitivamente sozinhos A literatura caboverdiana revela o caboverdiano ele próprio que só se compreende na insularidade Que o torna grande quando num falucho tecido com algas avança mar adentro à procura de espaços de ventos da aventura do espanto dorido ou não que marca o rosto na primeira viagem Há também outros faluchos mas esses não são convidados para aqui agora a não ser que tragam cartas dos parentes que ficaram dos amores que se foram e regressem cheios de emigrantes de volta às ilhas de onde não chegaram a partir De onde não deveriam ter partido A insularidade que me faz medrosa insegura e frágil e que traz consigo essa saudade companheira dos ilhéus limitados pelos mares pelos meios e pelos mitos sonhos filhos de cruzamentos penetrações violências soberanias sonhos de todos os portos do mundo de todas as cartas do mundo de todas as cartas do mundo Mas o ilhéu prisioneiro de si e do mar não viu outra solução que tentar roer as cordas que o prenderam rebentas as correrias os nós a indiferença dos deuses e dos seus filhos enfim resistir para não se confundir com as ondas sem fim com o céu vazio a sereia selvagem perdida no fundo com o Gongon da nossa infância E o escritorpoeta provoca a rotura com o sonhos enquanto máscara da impotência e formula uma proposta criativa para a libertação também desta insularidade que condena ao silencia perturba sufoca e desespera Ovídio Martins recusa a fuga do poema Anti evasão Pedirei suplicarei Chorarei Não vou para pasárgada Atirarmeei ao chão e prenderei nas mãos convulsas ervas e pedras de sangue Não vou para pasárgada Gritarei berrarei Matarei Não vou para pasárgada Pasárgada o paraíso renegado por Ovídio Martins e outros poetas que a partir de determinada altura insurgemse contra o destino e o fatalismo pequenos recusandoos e acusando raivosos o cruzar de braços e o olhar contemplativo sobre o mar aceite como parceiro na dança parada da vida sugerindo outros caminhos onde a rebeldia o inconformismo a arrogância e a insurreição deveriam juntarse para desafiar as ameaças assumir o comando dar volta às ondas A todas elas Mario Fonseca num poema seguro desafia 34 Mer de splendeur ô source suprême de grâce Mastu entendu Parle Brise Casse Mais estce silence O dernière chance Mais quaije fait Dit pensé Atelle capté ces pensés Que mon délire ma tout à Iheure dictés Desgraciado Que peuxtu faire pour te faire excuser E antes noutro poema Quando a vida nascer ele enuncia caminhos que já não indicam o mesmo mar as mesmas palavras os mesmos poemas para essas ilhas acidentalmente criadas perversamente ocupadas estupidamente planificadas Quando a vida nascer Rasgarei as grades Rasgarei os açaimes enterrarei a dor Gritarei bem alto a minha sede de viver Aqui soterrado no fim do mundo Prisioneiro do destino do mar Contemplo das grades da minha prisão o cenário habitual Azul rolante cemitério de ilusões caminho o interdito para o mar para a vida pujante adivinhada Além atrás do horizonte que se aproxima e afasta na miragem volante do sonho do dia a dia Terra somente terra Esperando a primeira manifestação máscula do homem para despertar a vida electrizante despedaçando o marasmo abrindo caminhos que não indicam o mar Terra somente terra Quando a vida nascer 35 Introdução à literatura de São Tomé e Príncipe Manuel Ferreira A evolução social de São Tomé e Príncipe teria sido paralela em muitos aspectos à de Cabo Verde Mas em meados do século XIX implantandose o sistema de monocultura a burguesia negra e mestiça vai ser violentamente substituída pelos monopólios portugueses o processo social do Arquipélago alterado e travada a miscigenação étnica e cultural Mesmo assim não podem deixar de ser considerados os efeitos do contacto de culturas A sua poesia de um modo geral exprime exatamente isso mas na essência é genuinamente africana A primeira obra literária de que se tem conhecimento relacionada com S Tomé e Príncipe é o modesto livrinho de poemas Equatoriaes 1896 do português António Almada Negreiros 18681939 que ali viveu muitos anos e terminou por falecer em França A última é a de um moderno poeta português crítico e professor universitário em Cardiff Alexandre Pinheiro Torres cujo título A Terra de meu pai 1972 nos fornece uma pista memorialismo bebido na ilha por artes superiores de criação literária metamorfoseada na ilha que todos éramos neste país solitário Sem uma revista literária sem uma atividade cultural própria sem uma imprensa significativa apesar do seu primeiro periódico O Equador ter sido fundado em 1869 com uma escolaridade mais do que carencial os reduzidos quadros literários do Arquipélago naturalmente só em Portugal encontraram o ambiente propício à revelação das suas potencialidades criadoras O primeiro caso acontece logo nos fins do século XIX com Caetano da Costa Alegre 18641890 Versos 1916 cuja obra foi deixada inédita desde o século passado Cabe aqui todavia uma referência particular ao teatro a que poderemos chamar popular pelas características e relevância que assume no arquipélago de S Tomé e Príncipe Tratase em especial de duas peças O tchiloli ou A tragédia do Marquês de Mântua e do Auto de Floripes de Carloto Magno mas com preferência para a primeira A segunda oriunda da tradição popular portuguesa e O tchiloli supõese ser o auto do dramaturgo português do século XVI de origem madeirense Baltasar Dias levado tudo leva a crer pelos colonos madeirenses na época da ocupação e povoamento Reapropriados pela população de S Tomé e do Príncipe estão profundamente institucionalizados no Arquipélago principalmente O tchiloli à mercê da actuação de vários grupos teatrais populares que continuadamente se dão à sua representação enriquecida por uma readaptação do texto e encenação cenografia e ilustração musical notáveis Parece ter sido um homem infeliz em Lisboa o autor de Versos Costa Alegre Tu tens horror de mim bem sei Aurora Tu és dia eu sou a noite espessa Aurora aqui é um ente humano e não um fenômeno cósmico A ambiguidade resolvese na leitura completa do poema Caetano da Costa Alegre utiliza este signo polissêmico com a intenção ao cabo de ele traduzir a cor branca És a luz eu sou a sombra pavorosa 36 Eu sou a tua antítese frisante A poesia de Caetano da Costa Alegre na quase totalidade funciona espartilhada num mecanismo antitético Exprime a situação desencantada do homem negro numa cidade europeia neste caso Lisboa Versos é porventura a mais acabada confissão que se conhece quiçá mesmo nas outras literaturas africanas de expressão europeia do negro alienado Costa Alegre não se dando conta impossível diríamos no século XIX e no tempo cultural e político da área lusófona das contradições que o bloqueavam fazse cativo da sua condição de humilhado A minha cor é negra Indica luto e pena É luz que nos alegra A tua cor morena É negra a minha raça A tua raça é branca Como tenta Costa Alegre desbloquearse desta situação Porque negra é a sua raça todo ele é um defeito Como pode ele reencontrar o seu equilíbrio psíquico Alienado inconsciencializado batido no deserto social em que se movimenta então cura libertarse através de uma compensação Revoltandose Clamando contra a injustiça que o atinge Não Contrapondo atributos morais Ah pálida mulher se tu és bela Ama o belo também nesta aparência Amiúde às relacionações antinómicas vai buscálas ao Cosmo Só esplendor por fora Só trevas é no centro Ó sol és meu inverno Negro por fora eu tenho amor cá dentro Com efeito a sua poesia é a de um homem infelicitado Amiúde recorrendo à comparação e à antítese as figuras mais pertinentes são as que significam ou simbolizam as cores negro e branco Da erosão da sua alma transita para a obsessão infeliz lutando por restabelecer a sua dignidade no refúgio do apelo à evidência moralizante por norma em poemas líricosentimentais ou de amor Versos fica como o primeiro e único texto onde o problema da cor da pele atua como motivo e de uma forma obsessivamente dramática Consideramolo o caso mais evidente de negrismo da literatura africana de expressão portuguesa Alguns autores angolanos coevos de Costa Alegre deram também uma contribuição para este fenómeno mas percorrendo um espaço menos significativo A LÍRICA Em capítulo anterior assinalamos que Caetano da Costa Alegre poeta oitocentista sãotomense fora o primeiro em todo o espaço africano de língua portuguesa a dar ao tópico da cor um tratamento poético embora numa visão marcadamente alienatória constituindose como produtor de uma expressão de negrismo Curiosamente é também sãotomense o poeta que primeiro em língua portuguesa chamou a si a expressão da negritude Tratase de Francisco José Tenreiro 19211966 que irá assumir uma posição 37 inversa à de Costa Alegre Desalienado liberto dos mitos da inferioridade social identificase com a dor do homem negro e repõeno no quadro que lhe cabe da sabedoria universal Mãos mãos negras que em vós estou sentido Mãos pretas e sábias que nem inventaram a escrita nem a rosadosventos mas que da terra da árvore da água e da música das nuvens beberam as palavras dos corás dos quissanges e das timbila que é o mesmo dizer palavras telegrafadas e recebidas de coração em coração A sua voz é a voz real do homem africano uma voz que vem das origens e ressoa no tempo cantando nós não nascemos num dia sem sol e aí vamos com essa raça humilhada percorrendo a estrada da escravatura mas entretanto iluminada por um rio que vem correndo e cantando desde St Louis e Mississipi Obra poética de Francisco José Tenreiro 1967 p 100 Poeta bivalente Nasci do negro e do brancoe quem olhar para mimé como que se olhassepara um tabuleiro de xadrez na sua vocação para exprimir o mulato que ele era e o negro que ele era fundindose assim no poeta africano que ele foi guindase à categoria de poeta da negritude de expressão portuguesa e tão lucidamente que o surto da literatura angolana e moçambicana que se impôs a partir de cinquenta e muito lhe deve o não teria ultrapassado na pertinência e na genuinidade dos temas Interessante notar que a estrutura externa da poesia de F J Tenreiro adquire características diferentes consoante à substância manipulada poemas longos de longos versos para a negritude poemas curtos de curtos versos enquanto poeta mestiço Dona Jóia dona dona de lindo nome tem um piano alemão desafinando de calor Ou então De coração em África com o grito seiva bruta dos poemas de Guillén de coração em África com a impetuosidade viril de I too am American de coração em África contigo amigo Joaquim quando em versos incendiários cantaste a África distante do Congo da minha saudade do Congo de coração em África Há uma distância solar como se vê entre a humilhação da Costa Alegre e a glorificação dos valores culturais africanos por parte de Francisco Tenreiro que obviamente corresponde à amplitude consciencializadora que vai do século XIX ao século XX O discurso de Alda do Espírito Santo descrevese entre o relato quotidiano da ilha impregnado de alusões simbólicas de esperança ou do registo de anseios de transparência política uma história bela para os homens de todas as terrasciciando em coro canções melodiosasnuma toada universal 08 até ao clamor da revolta de um povo oprimido como em Onde estão os homens caçados neste vento de loucura 38 Que fizeste do meu povo Que respondeis Onde está o meu povo E eu respondo no silêncio das vozes erguidas clamando justiça Um a um todos em fila Para vós carrascos o perdão não tem nome O mesmo clamor da revolta percorre o discurso de Maria Manuela Margarido A noite sangra no mato feriado por uma lança de cólera A cólera A revolta Duas constantes que associadas ao movimento dialéctico da vida que tudo destrói e reconstrói trazem a esperança Na beira do mar nas águas estão acesas a esperançao movimento a revolta do homem social do homem integral e é ainda o verbo de Maria Manuela Margarido Daí a certeza inscrita no devir histórico No céu perpassa a angústia austera da revolta com suas garras suas ânsias suas certezas Em meio da denúncia do cheiro da morte da acusação eu te pergunto Europa eu te pergunto AGORA perpassa a certeza Ou a esperança Não mera esperança idealista A esperança concretizada na dialéctica do real Tomaz Medeiros Amanhã Quando as chuvas caírem Nos braços das árvores Irei Desafiar os mais trágicos destinos à campa de Nhana ressuscitar o meu amor Irei Poesia vinculada à sedimentação de uma consciência anticolonialista mais do que a fala de cada poeta ela se consubstancia na voz colectiva do homem sãotomense Mas não só poesia de signos de símbolos de imagística protestatária aliás de descodificação facilitada Não só poesia da anunciação e assunção Não só Poesia tocada pelo afago lírico das coisas da Ilha Verde rubra de sangue As palmeiras e cacoeiros o aroma dos mamoeiros o cajueiro as modinhas da terra os murmúrios doces dos silêncios as canoas balouçando no mar o sòcòpé os deuses e os mitos orações dos ocás os cazumbis 39 Por derradeiro Marcelo Veiga Numa ordem cronológica Marcelo Veiga 1892 1976 deveria ter sido considerado logo após Costa Alegre Marcelo Veiga pequeno proprietário da ilha do Príncipe estudou no liceu em Lisboa aqui viveu por períodos intermitentes foi amigo de AlmadaNegreiros Mário Eloy Mário Domingues José Monteiro de Castro e Hernâni Cidade Passou despercebido até ao momento em que Alfredo Margarido o incluiu na antologia por ele organizada e publicada da Casa dos Estudantes do Império Poetas de S Tomé e Príncipe 1963 Ultimamente obtivemos alguns poemas seus inéditos datados a partir de 1920 cedidos pelo poeta pouco antes de falecer na sua ilha Ele dá assim antes de F J Tenreiro o sinal do regresso do homem negro o sinal da negritude não só em S Tomé e Príncipe como em toda a área africana da língua portuguesa África não é terra de ninguémDe qualquer que sabe de onde vem A África é nossaÉ nossa é nossa Eis nítida e insofismável a consciência da revolta Filhos a pé a pé que é já manhã Esta África em que quem quer dá coo pé Esta negra África escarumba olé Não a qeremos mais sob o jugo de alguém Ela é nossa mãe Irônico mordaz a língua destravada e rebelde associada ao veneno lúcido da desafronta Sou preto o que ninguém escuta O que não tem socorro O olá tu rapaz O ó meu merda Ó cachorro O ó seu filho da puta E outros mimos mais Ou O preto é bola É pimpampum Vem um Zás na cachola Outro um chut bum A terminar diríamos que a poesia de S Tomé e Príncipe constitui uma expressão africana mais uniforme do que a de Moçambique ou mesmo de Angola ainda considerando a franja de mestiçagem que a percorre Construída apenas por negros ou mestiços este punhado de poetas baliza a área temática no centro do universo das suas ilhas e organiza um signo cuja polissemia é de uma África violentada inchada de cólera a esperança feita revolta 40 A NARRATIVA Modestíssima quantitativa e qualitativamente é a narrativa de S Tomé e Príncipe As esporádicas experiências de Viana de Almeida Maiá Pòçoncontos 1937 e de Mário Domingues O menino entre gigantes 1960 não chegam a ser uma contribuição relevante O primeiro nesse tempo prejudicado ainda por um ponto de vista subsidiário de uma época colonial o segundo também natural de S Tomé e Príncipe mas tornado escritorportuguês pela obra e pela radicação talvez pela carência da dramatização da personagem principal o mulato Zezinho nado e criado em Lisboa De acaso teria sido o conto Os sapatos da irmã sem qualquer relação com S Tomé que Francisco José Tenreiro em 1962 publicou na colectânea Modernos Autores Portugueses Lisboa Acidentais ainda mas já com uma visão ajusta da a um real africano foram também as experiências de Alves Preto limitada cremos a dois contos Um homem igual a tantos e Aconteceu no morro E ainda o caso de Sum Marky i e José Ferreira Marquesbranco nascido em S Tomé autor de vários romances de importância discutível alguns no entanto parcialmente com interesse valendo citar Vila flogá 1963 como testemunho acusatório da exploração colonialista A EXPRESSÃO EM CRIOULO Não obstante ser bilíngue visto que a população utiliza além da língua portuguesa o crioulo de S Tomé a criação literária é reduzida em dialeto domínio que a tradição oral vem monopolizando com substancial interesse Praticamente conheciamse as composições poéticas de Francisco Stockler e uma experiência de Tomaz Medeiros No entanto após a independência nacional parece haver sintomas de uma revitalização no uso literário do crioulo ao nível popular pelo menos a partir de agrupamentos musicais Exemplo são os casos dos caderninhos de Sangazuza e o caderno do Agrupamento daIlha 1976 compostos de músicas revolucionárias e de um modo geral vertidos em rumbas sambas marchas valsas boleros e sòcòpés NOTA SOBRE A LITERATURA SANTOMENSE A literatura sãotomense mergulha as suas raízes no século XIX princípios do séc XX com a tradição do jornalismo praticado pela elite dos filhosdaterra na imprensa revistas jornais e boletins de associações de que era proprietária e de que se destacam O Africano A Voz dÁfrica O Negro AVerdade O Correio dÁfrica entre outros Esses periódicos de carácter não oficial e não governamental que publicavam poemas dispersos dos colaboradores eram dimensionados numa matriz prénacionalista já indiciando uma consciência unitária e libertária Aí desenvolveramse polémi cassobre a dignificação e instrução das populações nativas sobre o abuso do poder violência contra o negro e s obre a questão das terras expropriadas aosnativos durante a época da introdução das culturas do cacau e do café e consequente instauração das estruturas coloniais preparando as condições paraa segunda colonização baseada na monocultura daqueles produtos que era praticada em unidades sócioeconómicas denominadas roças Mas se a poesia de Caetano da Costa Alegre indicia um certo negrismo literário configurador da etnicidade que marcará a literatura africana de língua portuguesa será com Marcelo da Veiga que essa hesitante nomeação da diferença vai construindo um discurso de identidade pela exibição da cor usos e costumes como diferenciadores étnicoculturais pela memória vivencial pela citação das figuras históricas que povoam o imaginário 41 colectivo e pela coletivização da voz já contestatária na primeira metade do século XX A veemência do discurso de identidade de Marcelo da Veiga é tão forte que terá levado Manuel Ferreira a considerálo como o mais longínquo pioneiro de autêntica poesia africana de expressão portuguesa podíamos mesmo adiantar da negritude É pacífica a ideia de que os fundamentos irrecusáveis da literatura sãotomense começam a definirse com precisão em 1942 com Ilha de Nome Santo de Francisco José Tenreiro 42 Introdução ao espaço guineense Moema Parente Augel A GuinéBissau é um dos seis países africanos que passaram pela colonização portuguesa Foi a época da grande expansão imperialista e da desregrada ocupação colonial quando sobretudo a Inglaterra a França a Bélgica a Espanha e Portugal mais tarde também a Alemanha apossaramse da África raptaram seus homens mulheres e crianças extorquindo seus bens materiais culturais simbólicos Diferentemente do que aconteceu com Angola e Moçambique Portugal na Guiné se limitou por muito tempo quase exclusivamente a se servir da região como ponto de apoio para o comércio escravagista ao longo da costa ocidental africana tratandoa como um empório comercial e não uma colônia de assentamento própria para a agricultura No decorrer do século XVI foramse estabelecendo naquela área as bases para a expansão mercantil portuguesa com a criação de feitorias direcionadas prioritariamente para o tráfico de escravos Devido aos muitos conflitos entre estrangeiros e nativos e acirradas disputas dos africanos entre si foi convocada a Conferência de Berlim 18841885 quando representantes de treze países europeus e dos Estados Unidos se reuniram para organizar e regulamentar a ocupação da África e a exploração de seus recursos naturais A partir daí as fronteiras das colônias foram fixadas e quase todo continente africano foi repartido entre as potências estrangeiras a Guiné continuando a pertencer a Portugal assim como Cabo Verde Angola Moçambique São Tomé e Príncipe e mais tarde na Ásia o Timor Leste Os acordos projetados na Conferência de Berlim inteiramente centrados nas ambições colonialistas foram concebidos contra todos os interesses dos povos africanos Prepararam o chão para os grandes movimentos independentistas das décadas de 60 e 70 em toda a África Em janeiro de 1963 foi deflagrada a luta da Guiné pela independência contra o colonialismo português e depois de onze anos de guerra foi proclamada unilateralmente a independência a 24 de setembro de 1973 surgindo o novo país República da GuinéBissau reconhecida oficialmente por Portugal depois de 25 de abril de 1974 Amílcar Cabral é o grande mentor da independência da Guiné e de Cabo Verde O recente país República da GuinéBissau é muito pequeno se compararmos com os grandes reinos da região no passado o Império dos Mandingas ou Malinkes que posteriormente ficou submetido ao Império de Mali do qual a Guiné fez parte no passado O país tem 36000 km2 sendo que apenas 24800 km são habitáveis É todo cortado por rios entre os quais podemos lembrar o Geba muito citado em poemas mas também o Corubal o Mansoa o rio Grande de Buba entre outros O país tem quase dois milhões de habitantes com a capital Bissau e oito regiões povoadas por numerosas etnias muito diversas entre elas predominando as de religião tradicional e as muçulmanas sendo a percentagem dos seguidores do cristianismo uma muito pequena minoria nem 10 As principais etnias são os Balanta 27 os Fula 23 os Mandingas 12 os Mandjacos 11 os Pepéis 10 os Mancanha A identidade dos diferentes grupos étnicos era salvaguardada pela cultura oral rica em histórias cantigas lendas e mitos provérbios e ditos com seus arautos e seus repositórios da memória coletiva como djidjus passada de geração para geração Na 43 prática eram esses arautos os griots conhecidos na os autênticos portadores da memória da comunidade Muito antes da independência a tradição oral das numerosas etnias do país se encarregou de preservar a conturbada história dos diversos reinos locais reunidos pela força da conquista bélica sob a égide No território da atual GuinéBissau se estabeleceu o reino de Kaabu vassalo de Mali pelo final do século XV Esses tão diversos povos ficaram reunidos em um Estado de muitos estamentos sociais Não é para se desprezar o rico acervo da oratura ainda hoje viva no seio das diferentes etnias nos seus contos cantos e ditos repetidos pelos mais velhos eternizadas pelos griots nos djumbais reuniões espontâneas de convívio social nas mandjuandadis grupos de convivência priorizados por mulheres de organização e costumes próprios importantes na preservação da memória coletiva A falta de meios de divulgação a ausência de editoras de livrarias a má qualidade do ensino e o descaso da governança tudo isso contribuiu para o pouco ou nenhum conhecimento dessas manifestações culturais Mas a oralidade com seu instrumentário por assim dizer mediático continua a ter uma importância basilar para o conhecimento das culturas étnicas a voz impregnando também as letras a literatura São muitas as dificuldades e os obstáculos com que as línguas étnicas se defrontam não tendo até o momento conseguido chegar a constituírem um veículo consolidado para a expressão escrita O crioulo guineense ou simplesmente o guineense desenvolveuse principalmente nas cidades tinha e tem todas as possibilidades de também ser escrito É até hoje basicamente uma língua oral e só a duras penas vem alcançando o estatuto de língua escrita grafada Tratase de uma língua plena de metáforas flexível e maleável que joga com a liberdade da composição e da derivação com a facilidade das transferências categoriais do verbo para o substantivo e viceversa que se deleita com palavras raras e sonoras extraídas do enredado de empréstimos africanos que compõem o crioulo antigo Desde o período das lutas libertárias na primeira metade do século XX têmse registrado vozes que se levantaram para pelo canto e pela poesia manifestarem poeticamente seu apego pela terra natal a ojeriza pelo jugo colonial e o desejo de libertação Carlos Semedo nascido em Bolama foi o primeiro guineense com uma com publicação individual em 1963 ainda portanto nos tempos coloniais um modesto caderno com o título Poemas Radicado em Portugal registra em versos a dolorosa ausência de seu país Sou peça sombria duma Europa patética Minha África distante A saudade fazme louco A partir dos meados da década de 70 vão se registrando obras de autores guineenses A produção literária pós independência fora exceções foi primeiramente enfeixada em algumas obras conjuntas antologias publicadas entre 1973 e 1992 Muitos poemas datam da década anterior embora a publicação tenha sido só depois da independência Mantenhas para quem luta a nova antologia da GuinéBissau Bissau 1977 com 44 poemas da autoria de 14 jovens guineenses a primeira publicação do país independente O título é uma expressão do crioulo guineense e significa saudações para quem luta Está bem explicita no prefácio a prioridade que norteia os autores não se trata de definirse em termos puramente estéticos Tratase de arma de combate ferramenta de construção Abro um parêntese em meio a muitos poetas para chamar a atenção para Domingas Samy a primeira mulher a publicar depois da independência e a primeira voz feminina na ficção na GuinéBissau Seu livro A Escola 1993 esboça em três contos quadros de diversas situações da vida e dos costumes do povo O choque entre os costumes 44 tradicionais e a modernização advinda da urbanização acelerada é tratado ficcionalmente a partir da perspectiva da mulher como o abandono do marido o casamento forçado o comportamento da juventude a gravidez precoce e consequente rejeição do filho não desejado Que se lixe esse bebé Por que veio É só para me estragar a vida A autora concentrou nas suas personagens muitas das questões que envolvem a condição feminina pondo em relevo a sorte de várias mulheres de idades personalidades e situações de vida muito diversas Odete Semedo foi a primeira mulher a publicar um livro de poemas quase todos apresentados nas duas línguas o português e o crioulo É a primeira voz a extravasar uma busca de si mesma num processo de autoconhecimento quando sobressai o tom introspectivo e confessional de sua lírica evidenciando uma grande sensibilidade que também se abre para a dor alheia impulsionada a cantar e contar o que o outro chora e sente Na prosa Odete Semedo publicou contos passadas causos numa linguagem muitas vezes cheia de humor São dois volumes de contos Sonéá Histórias e passadas que ouvi contar I Djênia Histórias e passadas que ouvi contar II em 2000 em Bissau com uma segunda edição em 2003 Traumatizada pela guerra fratricida que abalou o país 19981999 Odete Semedo deu à estampa um extenso poema épicolírico No fundo do canto sua obra culminante onde registra os efeitos daquela convulsão política e social fazendo ecoar um canto sui generis que recupera a seu modo vivências individuais e coletivas que vão muito além do momento traumático da guerra No fundo do canto foi reeditado no Brasil em Belo Horizonte Minas Gerais onde Odete defendeu sua tese de doutorado sobre as cantigas de mandjuandade e no mesmo ano 2010 foi também lançado seu manual GuinéBissau História culturas sociedade e literatura pela editora Nandyala onde a autora esboça um panorama da história do país desde a época précolonial dando ênfase ao papel da tradição oral é legitimada como fonte histórica e nascedouro da oratura e da literatura guineenses Não me será possível por questão de espaço tratar do florescente gênero do conto guineense Muitos outros autores mereceriam ser aqui registrados sobretudo a partir do ano 2000 Apesar de a maioria ser de data bastante recente e publicados não somente na GuinéBissau podese afirmar que esses livros todos passaram imerecidamente quase despercebidos Uma listagem mesmo incluindo apenas contos em português ou seja acessíveis a um público luso falante internacional seria incompleta O romance como gênero literário na GuinéBissau surgiu apenas em 1994 com a primeira publicação de Abdulai Sila Eterna paixão iniciativa da Ku Si Mon Editora Abdulai é um brilhante e profícuo prosador da GuinéBissau Sua fortuna crítica reúne um sem número de artigos e estudos sobre sua obra destacandose a tese de doutorado da professora Érica Bispo TAL E TAL de 2001 que ganhou o primeiro lugar em concurso do INEP e a promessa de publicação Seus livros têm tradução em francês inglês italiano e edições no Brasil Com o recurso do ficcional Abdulai Sila elabora uma verdadeira e sucinta história da GuinéBissau com uma trilogia A última tragédia 1995 situase na época colonial Eterna Paixão 1994 reelabora os primeiros anos do novo país GuinéBissau liberto do jugo colonial português e Mistida 1997 é uma sátira amarga e corrosiva retratando simbolicamente o momento atual por que passa o país quando caíram por terra esquecidos e deturpados os ideais de Amílcar Cabral e seus companheiros que impulsionaram a luta pela independência pela libertação do país das amarras do colonialismo O mais recente romance de Abdulai Sila é Memórias SOMânticas 2016 uma impressionante narrativa confessional por uma voz feminina na primeira pessoa uma antiga 45 combatente que agora idosa e pobre passa em revista sua vida inteira com suas alegrias tristezas e decepções Não caberá aqui uma simples listagem e por isso não me deterei em Filinto de Barros 18422011 Um dos remanescentes das lutas pela independência uma das cabeças pensantes do PAIGC desde sua fundação muitas vezes ministro durante a era Nino Vieira lançou em 1997 o romance Kikia matcho A trama se desenrola em vários planos em torno da morte de N Dingui antigo Combatente da Liberdade da Pátria que terminou seus dias num bairro decadente da capital relegado ao abandono tanto pelos familiares como pelas instituições públicas Filinto de Barros introduz os leitores no mundo mágico e mítico africano ao mesmo tempo em que pela interação das personagens estabelece uma crítica ponte entre o passado e o presente Para nos referirmos mesmo que rapidamente ao teatro na GuinéBissau precisamos voltar a Abdulai Sila que depois de dez anos retoma publicamente sua atividade literária desta vez com uma peça teatral As orações de Mansata Sila 2007 2011 uma ficção dramática crua e sem rodeios do momento político e social de seu país Transposto para o momento atual de crise e desgovernança por que passa a GuinéBissau sua temática e conteúdo espelhamse na luta pelo mando que tudo justifica tanto a traição como a morte Em 2013 Abdulai Sila publica uma segunda peça teatral Dois tiros e uma gargalhada onde comparecem algumas personagens já conhecidas do público leitor As orações de Mansata tematiza a procura implacável de controle por parte de Amambarka o protagonista símbolo da ambição desmedida em uma trama repleta de desordem tirania e violência Em Dois tiros e uma gargalhada Sila põe em relevo a traição o atentado aos direitos humanos o desejo de vingança e a força da sabedoria dos mais velhos A tradição e seus poderes ocultos vão surgir como um regulador do comportamento humano O autor nos quis aqui apresentar a alegoria do seu país da terra tantas vezes condenada tantas vezes sacrificada mas que consegue sempre soerguerse da agonia Em 2018 Sila publicou mais uma peça teatral Kangalutas termo que em português significa cabriolas cambalhotas na qual pretendeu ao caricaturar episódios da vida quotidiana bissauense chamar a atenção para as turbulências de toda ordem que afetam o seu país ridicularizando e denunciando certas situações E mais recentemente Abdulai encenou em Bissau sua quarta peça teatral desta vez na língua guineense onde trata dos diferentes destinos de duas mulheres ligadas por estreitos laços de amizade O título Deih vocábulo tirado da língua fula significa justamente esse sentimento especial de amizade levado às últimas consequências história de duas moças unidas por grande amizade mas com destinos muito diferentes 2022 Apesar de ter havido uma verdadeira cesura na vida social e cultural do país com o conflito armado de 19981999 a vida literária e cultural vem tomando um novo dinamismo Para tal muito contribuiu a criação de mais uma editora privada a Editora Corubal fundada em 2013 a mais nova do país uma cooperativa de produção de divulgação cultural e científica iniciativa de alguns escritores e ativistas culturais dos quais se destacam a personalidade e eficiência do sociólogo Miguel de Barros A Ku Si Mon tem continuado com suas publicações em ritmo mais moderado mas não menos atuante pois a questão financeira é um grave impedimento para iniciativas de cariz cultural Há também editoras portuguesas e brasileiras a publicar com mais frequência que antigamente autores guineenses Não seria possível arrolar aqui todas as publicações de literatura que vieram à estampa nos últimos 20 ou 30 anos na GuinéBissau tal é o número de títulos que vem surgindo no país e no exterior 46 Na GB logo após a independência glorioso feito de um pequeno e modesto país essa euforia esse ufanismo estavam presentes Os poetas desses primeiros momentos de construção da nação guineense cantaram emocionados os eventos recém acontecidos jurando cultuarem para sempre Cabral e seus ensinamentos do chão vermelho do teu sangue camarada caem como gotas de orvalho as flores de nossa luta não secarão Agnelo Regalla A noite colonial foi vencida Mantenhas para quem luta Mantenhas para os que merecerem o merecimento de Pindjiguiti António Soares Júnior depois conhecido com seu nome de casa que adotou como escritor Tony Tcheka É o mesmo Tony Tcheka que em 1996 publica seu primeiro livro individual Noites de insônia na terra adormecida Bissau Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa INEP Colecção Kebur Em 2008 Guiné sabura que doi e em 2015 Desesperança no chão de medo e dor Bissau Corubal Os títulos são por demais eloquentes apontam para uma gradação de sentimentos que vão da euforia passando pela preocupação e chegando à desilusão O que levou o poeta a tanto pessimismo e desolação O discurso poético de Tony Tcheka evidencia e reflete a posição da intelligentsia africana para a qual o destino pessoal é menos tematizado na literatura do que o coletivo tendo a representação simbólica da subalternidade de seu país espelhada metonimicamente na figura do velho do lavrador da viúva do menino carente em poemas em que o eu poético se identifica partícipe com as camadas desprestigiadas e silentes que estão bem longe do exercício ou do usufruto do poder A contestação e a subversão dos valores vigentes em consciente e proposital reversão da ideologia hegemônica num gesto de resistência são características comuns a muitos dos autores contemporâneos aqui estudados e não só O título de seu segundo livro GUINÉ SABURA QUE DÓI aparentemente contraditório talvez até incoerente harmoniza dois conceitos opostos numa só expressão oferecendo assim uma terceira idéia que instiga a interpretação e aguça a curiosidade dos leitores e ouvintes O sentido metafórico desse paradoxo percorre todo o livro São versos que irradiam grande amor e alegria pelas belezas e saburas de sua terra mas também versos doloridos que refletem mágoa tristeza e mesmo revolta pois o poeta não se conforma com o desbarato e o desolador estado político e social de seu país Não são versos idealizados nem irrealistas O poeta tem os pés fincados no chão no chão guineense obviamente é a sua pátria amada flor de canteiros perdidos esfumados em passadas lembranças polifonias de antanho TERRA DI MI SUAVE SABI GUSTÚS plena de SABURA mas também rosa ferida envolta em MUFUNESSA FORONTA KASSABI DISGÚS Confirmando a assertiva de Stuart Hall que afirma fazer geralmente parte da definição do indivíduo nomear sua origem a Guiné terra amada sabura que dói é referida ao longo de toda a obra ora com balbuceios plenos de ternura Guiné minha flor de canteiros perdidos ora com desabafos cheios de tristeza A Guiné desfia as suas dores na esteira do choro estendida na penumbra da lua minguante na esplanada da lala sahelizada onde se filtra o kasabi ou por lamentos amargurados Terra sahel voos amargos esperança a esvair Os dois lados da medalha estão igualmente presentes A atual conjuntura por que passa a GuinéBissau um dos países africanos mais problemáticos na atualidade aflige o poeta que expressa em muitas ocasiões seu descontentamento como por exemplo no poema Terra sofredora em que torna palpável o drama da guerra fratricida e mofina que vergastou o país 47 Terra zurzida plasmada de dores sucumbindo a tormentos amontoados nos becos nas ruas e tabankas Muitos poemas estão impregnados de indignação pelo desbarato social e econômico em que o país está mergulhado pois apesar de ser terra sabi de histórias acontecidas e esquecidas momentaneamente reina o marasmo e o desgoverno na terra adormecida sua bem amada terra tísica terra semelhante à mulhergrande fêmea sofredora terra di mi Tony Tcheka depois de publicar muito jovem nas 4 antologias que enfeixam a produção poética logo depois da independência publicou seu Noites de insônia da terra adormecida 1978 prossegue neste século XXI como escritor participando de congressos e outros encontros culturais em nível nacional e internacional com poemas traduzidos para várias línguas publicando novas obras que encontram ampla aceitação Tony Tcheka publicou até o presente ainda dois livros de poemas Guiné sabura que dói em 2008 e Desesperança no chão de medo e dor em 2015 sempre envolvido emocionalmente com os altos e baixos de sua Guiné oscilando entre as saburas do seu chão natal e de sua gente e as mufunesas e amarguras que lhe causam a deplorável e inquietante situação política do país Jornalista de profissão é também autor do muito bem documentado volume Os media na GuinéBissau que está inclusive disponível na internet Ainda é para registrar sua mais recente publicação na Alemanha de uma delicada e primorosa edição bilíngue de 48 páginas com uma seleção de dez poemas em português e em alemão na tradução de Niki Graça com o título Guiné Bielefeld Hochroth Berlim 2020 Desejo assinalar aqui ainda a mais nova publicação de Tony Tcheka Quando os cravos vermelhos cruzaram o Geba uma coleção de contos com relatos sobre o impacto do 25 de abril de 1974 nos guineenses fato histórico que levou a reações muito diversas atingindo de modo especial os guineenses europeizados e que se sentiam unidos a Portugal sendo para eles difícil de perceber a nova realidade e mais que isso de aceitála São ainda muito poucas as mulheres que publicaram na GB até agora livros independentes A participação em antologias ou postagens na internet é mais numerosa mas mesmo assim muito pouco satisfatória Além de Domingas Samy a que já me referi de Odete Semedo brilhante estrela no firmamento literário lembro aqui Saliatu Costa autora de dois trabalhos poéticos de muito valor com instigantes títulos Outro nome feminino que vem se destacando no panorama literário guineense é Saliatu da Costa que estreou como escritora em 2008 em Bissau com Bendita loucura alguns poemas também na língua guineense numa tiragem de 150 exemplares O título já aponta de certo modo para o conteúdo uma voz que anuncia de antemão não recear a exceção bendizendo mesmo a transgressão Retoma em 2011 seu estado de alerta e de rebeldia contra o status quo quando publica em edição independente Entre a roseira e a pólvora o capim seu segundo livro onde apresenta uma poesia militante de vinculação social sem faltarem manifestações pessimistas de decepção e de indignação por estar seu país num estado de lamentável desorganização social e política O eu enunciador parece insinuar aos leitores inconfessáveis mas benditas loucuras na conquista de novos espaços transgressores liberados Não poderia deixar de assinalar ainda um livro muito especial que foi apresentado em Lisboa e depois em Bissau no final de 2019 José Carlos Schwarz o grande músico guineense compositor letrista poeta é aí retratado pelos olhos e pela pena de Teresa a Noutcha presente em suas canções Minha vida com José Carlos Schwarz Silêncio entre 48 duas notas não é uma simples biografia São recordações transportadas para a escrita as memórias de minha vida com o Zé Carlos reunidas pela esposa Maria Teresa Schwarz hoje Maria Teresa Loff Fernandes É a vida de Zé Carlos como artista combatente político mas também o diaadia de um jovem casal apaixonado desde a infância e a adolescência de cada um na intimidade da família e com pessoas participantes do processo da independência os anos de militância contra o regime opressor português as dificuldades durante o tempo de prisão do marido as estratégias de sobrevivência o apoio recebido por outros companheiros e amigos É a história real de Teresa e Zé Carlos desde que se conheceram até o trágico desaparecimento do artista em Cuba Como a autora declarou esse livro era um dever para com os guineenses principalmente a nova geração por ele ser uma referência E ele não deve ficar no esquecimento Minha vida com José Carlos Schwarz Silêncio entre duas notas Não se trata de uma simples biografia É uma narrativa confessional da autoria da viúva do grande músico guineense que é aí retratado pelos olhos e pela pena de Teresa a Noutcha presente em suas canções São recordações as memórias de minha vida com Zé Carlos transportadas para a escrita reunidas pela esposa Maria Teresa Schwarz hoje Maria Teresa Loff Fernandes Zé Carlos é lembrado como artista militante político Mas o livro enfoca também o diaadia de um jovem casal apaixonado reportandose à infância e à adolescência de cada um vendoos na intimidade da família e como pessoas participantes do processo da independência recuperando os anos de militância contra o regime opressor português as dificuldades durante o tempo de prisão do marido o apoio recebido por outros companheiros e amigos as estratégias de sobrevivência as dificuldades da e na recém fundada República da GuinéBissau É a históra real de dois jovens de Teresa e Zé Carlos desde que se conheceram até o trágico desaparecimento do artista em Cuba aos 26 anos 1977 Como a autora declarou esse livro era um dever para com os guineenses principalmente a nova geração por Zé Carlos ser uma referência para todos ainda hoje Muito recente é a publicação Fora di nos Nhara sikidu textos poéticos 2021 da autoria de Helena Neves Abrahamsson guineense jurista de formação São 40 poemas ora intimistas ora revoltados ora de cunho social ou de crítica diante da má governança Leiamse também versos confessadamente apaixonados em que o eu poético dá vazão a seus sentimentos mais íntimos numa dicção feminina de muito lirismo sobretudo nos poemas em língua guineense com os quais compõe a Vanessa Margarida Buté Vaz nasceu em Lisboa em 1992 títulos bilingües tanto em português como na língua guineense 1 Minha casa Nha Kasa 2 Meu Eu Ami ku mi 3 Devaneios Kabesa na Pupan 4 Na Kriol O primeiro romance de uma mulher guineense neste segundo milênio Pérola roubada de Né Vaz pseudônimo de Vanessa Margarida Buté Vaz veio à estampa em 2018 Pérola Roubada é um romance que desvela facetas talvez chocantes ou constrangedoras da vida de uma jovem mulher de 27 anos que num relato em primeira pessoa relembra e reconstrói em um longo monólogo de forma livre e ousada o que foi a sua existência Um texto dramático e cativante que quebra alguns tabus em 286 páginas e 49 episódios carregados de mistério e surpresa Foi publicado em Portugal festivamente lançado também em Bissau por iniciativa da AEGUI e da Editora Corubal Tratase de um excelente romance escrito na primeira pessoa Né Vaz pseudônimo ou nome de casa de Vanessa Margarida Buté Vaz é a primeira voz feminina a se aventurar nesse gênero literário publicado em Lisboa em 2018 A protagonista Natasha é a narradora e principal personagem Escrevendo na primeira 49 pessoa confia a seu diário sua vida íntima de mulher que conheceu uma primeira infância feliz mas muito cedo ficando aos cuidados de parentes foi abusada sexualmente por um tio Adulta circunstâncias adversas a levaram a deixar os estudos prostituirse e cair cada vez mais na escala social Natasha narra sua vida como prostituta seus muitos amantes e clientes vêse mais tarde dependente de drogas e envolvida no tráfico internacional Expõe cruamente sua decadência moral conseguido finalmente refazerse graças a um relacionamento afetivo que a salvou da degradação Um romance corajoso e cativante um texto dramático rompendo tabus e preconceitos surpreendente único até então único na literatura do país Cinco anos depois de Pérola roubada Né Vaz acaba de lançar em Bissau numa concorrida festa literária outro romance Conversas íntimas A trama se desenrola em trocas de ideias e confissões íntimas entre três amigas Brinsan Graciela e Íris Jovens ligadas por amizade porém muito diferentes uma das outras Três mulheres três dilemas três vidas sem rodeios nem meias palavras comentam suas vivências sexuais trocam impressões e sensações numa crueza e desembaraço inusitados para leitoras e leitores guineenses Coube a Odete Semedo apresentar a obra e como Mais velha e teceu considerações a respeito do papel que exercem oa narrador a narrada o público em geral ANGOLA 51 Joaquim Dias CORDEIRO DA MATTA 18571894 Nascido no distrito de Cabiri pertencente ao município de Ícolo e Bengo Cordeiro da Matta tendo ampla participação na Imprensa Livre foi poeta cronista filólogo pedagogo e jornalista Morreu precocemente aos 37 anos na Barra do Cuanza Sua poesia pretende exaltar a cultura e os povos nativos Negra I Negra negra como a noite duma horrível tempestade mas linda mimosa e bela como a mais gentil beldade Negra negra como a asa do corvo mais negro e escuro mas tendo nos claros olhos o olhar mais límpido e puro Negra negra como o ébano sedutora como Fedra possuindo as celsas formas em que a boa graça medra Negra negra mas tão linda coos seus dentes de marfim que quando os lábios entreabre não sei o que sinto em mim II Só negra como te vejo eu sinto nos seios dalma arderme forte desejo desejo que nada acalma se te roubou este clima do homem a cor primeva branca que ao mundo viesses serias das filhas dEva em beleza ó negra a prima geroute em agro torrão Selevarte ao sexo frágil temeu o rei da criação é qués ó negra criatura a deusa da formosura 52 Uma Quissama A Carlos dAlmeida Em manhã fria nevada nessas manhãs de cacimbo em que uma alma penada não se lembra de ir ao limbo eu vi formosa correta não sendo européia dama a mais sedutora preta das regiões da Quissama Mal quinze anos contava e no seu todo brilhava o ar mais doce e gentil Tinha das mulheres lindas as graças belas infindas dencantos encantos mil Nos lábios posto que escuros viamselhe risos puros em borbotões assomar Tinha nos olhos divinos reverberos cristalinos e fulgores de matar Radiavalhe na fronte como em límpido horizonte radia mimosa luz da virgem casta a candura que soe dar a formosura a graça que brota a flux Embora azeitados panos lhe cobrisse os lácteos pomos denunciavam os arcanos de dois torneados gomos Da cintura a palmo e meio bem tecidinho redondo descialhe em doce enleio um envoltório de hondo Viamselhe a descoberto com arte bem modeladas e que eu mirava de perto umas formas cinzeladas Coo seu andar majestoso coo seu todo gracioso quando a quissama encarei eu possuir um harém e nele ter umas cem como um sultão desejei 53 Kicôla Imitação de uns versos de João E da C Toulson Nesta pequena cidade vi uma certa donzela que muito tinha de bela que fada huri e deidade a quem disse Minha qrida peço um beijo por favor bem sabes oh meu amor queu por ti daria a vida Nquàmiâmi ngna iame não quero caro senhor disse sem mudar de cor Macûto quangandallami Não creio no seu amor Eu querendoa convencer muámôno querem ver exclamou a minha flor O que tassombra donzela nesta minha confissão tornei com muita paixão Olhando sério pra ella Não é dado continuei O que se sente dizer Sem ti não posso viver Só contigo fliz serei Kiri Ki amonequê ninguém a verdade fala Osso a kuamacuto âla toda a gente falsa é Emé ngana nguixicána aceitar não sou capaz o mâca mé ma dilage a sua fala que engana Oh qrida não há motivo para descreres de todos cada qual tem seus modos eu a enganar não vivo Eie ngana úarimûca o senhor é muito esperto queria dizer decerto uzuêla câlá úa cûca Fala como homem didade Não sabes que o deus do amor é um grande inspirador minha formosa beldade Depois faleilhe ao ouvido e me respondeu Kicôla não pode ser Ai que tola por quem o foi proibido 54 António AGOSTINHO NETO 19221979 Nascido em Ícolo e Bengo na freguesia de Caxicane além de escritor e médico foi presidente do Movimento Popular de Libertação de Angola e em 1975 tornouse o primeiro presidente de Angola até sua morte em 1979 Sua poesia foi seu meio de manifestar seu engajamento político Aspiração Ainda o meu canto dolente e a minha tristeza no Congo na Geórgia no Amazonas Ainda o meu sonho de batuque em noites de luar Ainda os meus braços ainda os meus olhos ainda os meus gritos Ainda o dorso vergastado o coração abandonado a alma entregue à fé ainda a dúvida E sobre os meus cantos os meus sonhos os meus olhos os meus gritos sobre o meu mundo isolado o tempo parado Ainda o meu espírito ainda o quissange a marimba a viola o saxofone ainda os meus ritmos de ritual orgíaco Ainda a minha vida oferecida à Vida ainda o meu desejo Ainda o meu sonho o meu grito o meu braço a sustentar o meu Querer E nas senzalas nas casas nos subúrbios das cidades para lá das linhas nos recantos escuros das casas ricas onde os negros murmuram ainda O meu Desejo transformado em força inspirando as consciências desesperadas 55 Consciencialização Medo no ar Em cada esquina sentinelas vigilantes incendeiam olhares em cada casa se substituem apressadamente os fechos velhos das portas e em cada consciência fervilha o temor de se ouvir a si mesma A História está a ser contada de novo Medo no ar Acontece que eu homem humilde ainda mais humilde na pele negra me regresso África para mim com os olhos secos Crueldade Caíram todos na armadilha dos homens postados à esquina E de repente no bairro acabou o baile e as faces endureceram na noite Todos perguntam por que foram presos ninguém o sabe e todos o sabem afinal E ficou o silêncio dum óbito sem gritos que as mulheres agora choram Em coração alarmados segredam místicas razões Da cidade iluminada vêm gargalhadas numa displicência cruel 56 Para banalizar um acontecimento quotidiano vindo no silêncio da noite do musseque Sambizanga um bairro de pretos Confiança O oceano separoume de mim enquanto me fui esquecendo nos séculos e eisme presente reunindo em mim o espaço condensando o tempo Na minha história existe o paradoxo do homem disperso Enquanto o sorriso brilhava no canto de dor e as mãos construíam mundos maravilhosos John foi linchado o irmão chicoteado nas costas nuas a mulher amordaçada e o filho continuou ignorante E do drama intenso duma vida imensa e útil resultou certeza As minhas mãos colocaram pedras nos alicerces do mundo mereço o meu pedaço de pão 57 VIRIATO Clemente DA CRUZ 19281973 Filho de um proprietário de Cuanza Sul tornouse um intelectual preocupado com o movimento anticolonial ligado à cultura fez o mote Vamos descobrir Angola e teve seus poemas impressos na revista Mensagem da Associação dos Naturais de Angola Suas desavenças com Agostinho Neto lhe valeram um espancamento público e um cárcere de onde segue para a China onde falece anos depois sob circunstâncias questionáveis Sua poesia sugere uma reflexão sobre a cultura e os costumes nativos Namoro Mandeilhe uma carta em papel perfumado e com letra bonita eu disse ela tinha um sorrir luminoso tão quente e gaiato como o sol de Novembro brincando de artista nas acácias floridas espalhando diamantes na fímbria do mar e dando calor ao sumo das mangas Sua pele macia era sumaúma Sua pele macia da cor do jambo cheirando a rosas sua pele macia guardava as doçuras do corpo rijo tão rijo e tão doce como o maboque Seus seios laranjas laranjas do Loge seus dentes marfim Mandeilhe essa carta e ela disse que não Mandeilhe um cartão que o amigo Maninho tipografou Por ti sofre o meu coração Num canto SIM noutro canto NÃO E ela o canto do NÃO dobrou Mandeilhe um recado pela Zefa do Sete pedindo rogando de joelhos no chão pela Senhora do Cabo pela Santa Ifigênia me desse a ventura do seu namoro E ela disse que não Levei à avó Chica quimbanda de fama a areia da marca que o seu pé deixou para que fizesse um feitiço forte e seguro que nascesse um amor como o meu E o feitiço falhou Espereia de tarde à porta da fábrica oferteilhe um colar e um anel e um broche pagueilhe doces na calçada da Missão ficamos num banco do largo da Estátua 58 afagueilhe as mãos faleilhe de amor e ela disse que não Andei barbado sujo e descalço como uma monangamba Procuraram por mim Não viu ai não viu não viu Benjamim E perdido me deram no morro da Samba Para me distrair levaramme ao baile de sô Januário mas ela lá estava num canto a rir contando o meu caso às moças mais lindas do Bairro Operário Tocaram uma rumba dancei com ela e num passo maluco voamos na sala qual uma estrela riscando o céu E a malta gritou Aí Benjamim Olheia nos olhos sorriu para mim pedilhe um beijo e ela disse que sim 59 Serão de Menino Na noite morna escura de breu enquanto na vasta sanzala do céu de volta de estrelas quais fogaréus os anjos escutam parábolas de santos na noite de breu ao quente da voz de suas avós meninos se encantam os contos bantos Era uma vez uma corça dona de cabra sem macho Matreiro o cágado lento tuc tuc foi entrando para o conselho animal Tão tarde que ele chegou Abriu a boca e falou deu a sentença final Não tenham medo da força Se o leão o alheio retém luta ao Mal Vitória ao Bem tirese ao leão dêse à corça Mas quando lá fora o vento irado nas frestas chora e ramos xuaxalha de altas mulembras e portas bambas batem em massembas os meninos se apertam de olhos abertos Eué É casumbi E a gente grande bem perto dali feijão descascando para a quitanda a gente grande com gosto ri Com gosto ri porque ela diz que o casumbi males só faz a quem não tem amor aos mais seres buscam em negra noite essa outra voz de casumbi essa outra voz Felicidade 60 Makèzú Kuakié Makèzú Makèzú O pregão da avó Ximinha É mesmo como os seus panos Já não tem a cor berrante Que tinha nos outros anos Avó Xima está velhinha Mas de manhã manhãzinha Pede licença ao reumático E num passo nada prático Rasga estradinhas na areia Lá vai para um cajueiro Que se levanta altaneiro No cruzeiro dos caminhos Das gentes que vão pra Baixa Nem criados nem pedreiros Nem alegres lavadeiras Dessa nova geração Das venidas de alcatrão Ouvem o fraco pregão Da velhinha quitandeira Kuakié Makèzú Makèzú Antão véia hoje nada Nada mano Filisberto Hoje os tempo tá mudado Mas tá passá gente perto Como é aqui tás fazendo isso Não sabe Todo esse povo Pegô um costume novo Qui diz qué civrização Come só pão com chouriço Ou toma café com pão E diz ainda pru cima Hum mbundo kène muxima Qui o nosso bom makèzú É pra veios como tu Eles não sabe o que diz Pru qué qui vivi filiz E tem cem ano eu e tu É pruquê nossas raiz Tem força do makèzú 61 ANTÓNIO JACINTO do Amaral Martins 19241991 Oriundo da capital também esteve empenhado no setor cultural da ANANGOLA Preso no Tarrafal por uma década ao sair dirigiu o Centro de Instrução Revolucionária do MPLA e após a independência tornouse Ministro da Cultura Sua poesia é fortemente inspirada pelo neorealismo português discorrendo sobre a vivência dos trabalhadores angolanos Carta dum Contratado Eu queria escreverte uma carta amor uma carta que dissesse deste anseio de te ver deste receio de te perder deste mais que bem querer que sinto deste mal indefinido que me persegue desta saudade a que vivo todo entregue Eu queria escreverte uma carta amor uma carta de confidências íntimas uma carta de lembranças de ti de ti dos teus lábios vermelho como tacula dos teus cabelos negros como dilôa dos teus olhos doces como macongue dos teus seios duros como maboque do teu andar de onça e dos teus carinhos que maiores não encontrei por aí Eu queria escreverte uma carta amor que recordasse nossos dias na capôpa nossas noites perdidas no capim que recordasse a sombra que nos caía dos jambos o luar que se coava das palmeiras sem fim que recordasse a loucura da nossa paixão e a amargura da nossa separação Eu queria escreverte uma carta amor 62 que a não lesses sem suspirar que a escondesses de papai Bombo que a sonegasses a mamãe Kieza que a relesses sem a frieza do esquecimento uma carta que em todo o Kilombo outra a ela não tivesse merecimento Eu queria escreverte uma carta amor uma carta que te levasse o vento que passa uma cartas que os cajús e cafeeiros que as hienas e palancas que os jacarés e bagres pudessem entender para que se o vento a perdesse no caminho os bichos e plantas compadecidos de nosso pungente sofrer de canto em canto de lamento em lamento de farfalhar em farfalhar te levassem puras e quentes as palavras ardentes as palavras magoadas da minha carta que eu queria escreverte amor Eu queria escreverte uma carta Mas ah meu amor eu não sei compreender por que é por que é por que é meu bem que tu não sabes ler e eu Oh Desespero não sei escrever também Monangamba Naquela roça grande não tem chuva é o suor do meu rosto que rega as plantações Naquela roça grande tem café maduro e aquele vermelhocereja são gotas do meu sangue feitas seiva O café vai ser torrado pisado torturado vai ficar negro negro da cor do contratado Negro da cor do contratado 63 Perguntem às aves que cantam aos regatos de alegre serpentear e ao vento forte do sertão Quem se levanta cedo quem vai à tonga Quem traz pela estrada longe a tipóia ou o cacho de dendém Quem capina e em paga recebe desdém fuba podre peixe podre panos ruins cinquenta angolares porrada se refilares Quem Quem faz o milho crescer e os laranjais florescer Quem Quem dá dinheiro para o patrão comprar máquinas carros senhoras e cabeças de pretos para os motores Quem faz o branco prosperar ter barriga grande ter dinheiro Quem E as aves que cantam os regatos de alegre serpentear e o vento forte do sertão responderão Monangambééé Ah Deixemme ao menos subir às palmeiras Deixemme beber maruvo maruvo e esquecer diluído nas minhas bebedeiras Monangambééé 64 ARLINDO do Carmo Pires BARBEITOS 19402021 Nascido em Catete em Ícolo e Bengo foi obrigado a se exilar de Angola em 1961 vindo a percorrer países europeus cursando Antropologia e Sociologia na Universidade de Frankfurt Dez anos depois de regresso a Angola foi combatente do MPLA Sua poesia se inspira na tradição oral nos provérbios africanos na brevidade da poesia oriental para adequar o corpo do poema a sua mensagem O poeta junto de sua esposa foi uma vítima da pandemia do COVID19 em março de 2021 sem título amada minha amada a revolução não é um conto e uma borboleta não é um elefante como agarrálo devagarinho o menino ia comendo o peixe frito como quem toca gaitadebeiço sem título a identidade ou o voo esquivo de pássaros noturnos em torno da lua identidade é cor de burro fugindo sem título o menino pequeno muito pequeno nu 65 todo nu traz botas botas muito grandes sem título o passado é uma laranja amarga a chuva cai de teus olhos o vento tem cabeça de galo e o jacaré levou tua perna pro palácio de seu rei sem título casinhas pequenas abrigando histórias das histórias da história se fazendo e inda outras casinhas pequenas abrigando famílias das famílias da família se fazendo e inda outras histórias das histórias da história e inda outras famílias das famílias da família e inda outras se emaranhando em um novelo que cresce cresce cresce em casinhas pequenas 66 Ana PAULA Ribeiro TAVARES 1952 Nascida no Lubango na província de Huíla onde mais tarde veio a cursar história Cursou mestrado em Literaturas Africanas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Em 1976 foi nomeada para o Conselho Natural de Cultura Sua poesia apresentando uma corporeidade singular tenta expressar a existência feminina entre modernidade e tradição A Abóbora Menina Tão gentil de distante tão macia aos olhos vacuda gordinha de segredos bem escondidos estendese à distância procurando ser terra quem sabe possa acontecer o milagre folhinhas verdes flor amarela ventre redondo depois é só esperar nela desaguam todos os rapazes A Manga Fruta do paraíso companheira dos deuses as mãos tiramlhe a pele dúctil como se de mantos se tratasse surge a carne chegadinha fio a fio ao coração leve morno mastigável o cheiro permanece para que a encontrem os meninos pelo faro 67 O Mamão Frágil vagina semeada pronta útil semanal Nela se alargam as sedes no meio cresce insondável o vazio Olho de vaca fotografa a morte Grande angular 400 asa retém a preto e branco a solidão Inverte Aumenta Diminui A TERRA Impressionasubverte em grandes planos simultâneos 24x24 a visão panorâmica do espaço para lá do cercado Entre os chifres de perfil O cineolho paralisa a eternidade 68 Boi à Vela Os bois nascido na huíla são altos magros navegáveis de cedo lhes nascem cornos leite cobertura os cornos são volantes indicam o sul as patas lavram o solo deixando espaço para a semente a palavra a solidão sem título As coisas delicadas tratamse com cuidado Filosofia Cabinda Desossasteme cuidadosamente inscrevendome no teu universo como uma ferida uma prótese perfeita maldita necessária conduziste todas as minhas veias para que desaguassem nas tuas sem remédio meio pulmão respira em ti o outro que me lembre mal existe Hoje levanteime cedo pintei de tacula e água fria o corpo aceso não bato a manteiga não ponho o cinto VOU para o sul saltar o cercado MOÇAMBIQUE 70 António RUI DE NORONHA 19091943 Natural de Lourenço Marques atual Maputo a origem de Rui de Noronha é mestiça sendo filho de um pai indiano e de uma mãe africana Colaborou em jornais e foi funcionário público Depois de sua morte precoce aos 34 anos seu professor de francês reuniu 60 poemas seus para a primeira edição póstuma de sua obra É considerado o precursor da moderna poesia moçambicana Surge et Ambula Dormes e o mundo marcha ó pátria do mistério Dormes e o mundo avança o tempo vai seguindo O progresso caminha ao alto de um hemisfério E no outro tu dormes o sono teu infindo A selva faz de ti sinistro eremitério Onde sozinha à noite a fera anda rugindo A terra e a escuridão têm aqui o seu império E tu ao tempo alheia ó África dormindo Desperta Já no alto adejam negros corvos Ansiosos de cair e de beber aos sorvos Teu sangue ainda quente em carne de sonâmbula Desperta O teu dormir já foi mais que terreno Ouve a voz do Progresso este outro Nazareno Que a mão te estende e diz África surge et ambula No Cais Há vibrações metálicas chispando Nas sossegadas águas da baía Gaivotas brancas vão e vêm bicando Peixinhos numa longa gritaria Aos poucos escurece e vão chegando As velas com a farta pescaria As bóias põem no mar um coro brando De luzes a cantar em romaria E entretanto no cais as lidas crescem Altos voltaicos súbito amanhecem A alumiar guindastes e traineiras E ouvese então mais forte mais vibrante Os pretos a cantar noite adiante Por entre a bulha e pó das carvoeiras 71 JOSÉ João CRAVEIRINHA 19222003 O autor José Craveirinha o primeiro de Moçambique e da África a ser laureado com o Prêmio Camões nasceu em Lourenço Marques filho de um pai algarvio e de uma mãe da etnia ronga Colaborou ativamente em periódicos e na FRELIMO o que lhe resultou em 4 anos de prisão política Na sua obra podese encontrar assertivas políticosociais e a representatividade do cotidiano e do espaço moçambicano marcados pela luta anticolonial Grito Negro Eu sou carvão E tu arrancasme brutalmente do chão E fazesme tua alma Patrão Eu sou carvão E tu acendesme patrão Para te servir eternamente como força motriz mas eternamente não Patrão Eu sou carvão E tenho que arder sim E queimar tudo com a força da minha combustão Eu sou carvão Tenho que arder na exploração Arder até às cinzas da maldição Arder vivo como alcatrão meu Irmão Até não ser mais tua mina Patrão Eu sou carvão Tenho que arder E queimar tudo com o fogo da minha combustão Sim Eu serei o teu carvão Patrão Dádiva do Céu Minha guerra será contra os paraquedistas suspensos entre céu e terra Morrerei na minha guerra 72 ou levarei nos braços de guerrilheiro para as crianças da minha terra as sedas lançadas do bojo do bombardeiro E será minha glória as mães contando aos filhos a verdadeira história do primeiro vestido de seda dádiva do céu Síntese Na cidade alinhadas à margem as acácias ao vento urbanizado agitam o sentido carmesim das suas flores E um menino com mais outros meninos todos juntos um dia fecundam na síntese da rua cidade meninos e flores Quero ser Tambor Tambor está velho de gritar ó velho Deus dos homens deixame ser tambor corpo e alma só tambor só tambor gritando na noite quente dos trópicos E nem flor nascida no mato do desespero Nem rio correndo para o mar do desespero Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero Nem nada Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra Eu Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala Só tambor velho de sangrar no batuque do meu povo 73 Só tambor perdido na escuridão da noite perdida Ó velho Deus dos homens eu quero ser tambor e nem rio e nem flor e nem zagaia por enquanto e nem mesmo poesia Só tambor ecoando a canção da força e da vida só tambor noite e dia dia e noite só tambor até à consumação da grande festa do batuque Oh velho Deus dos homens deixame ser tambor só tambor Aforismo Havia uma formiga compartilhando comigo o isolamento e comendo juntos Estávamos iguais com duas diferenças Não era interrogada e por descuido podiam pisála Mas aos dois intencionalmente podiam pôrnos de rastos mas não podiam ajoelharnos Pena Zangado acreditas no insulto e chamasme negro Mas não me chames de negro Assim não te odeio Porque se me chamas negro encolho os meus elásticos ombros e com pena de ti sorrio 74 Carolina NOÉMIA Abranches DE SOUSA Soares 19262002 Noémia de Sousa considerada a mãe dos poetas moçambicanos nasceu em Catembe um subúrbio da atual cidade de Maputo de uma família de origem mestiça Suas primeiras publicações foram feitas no jornal de sua escola vindo mais tarde a ter uma uma atuação muito importante na imprensa como em O Brado Africano ou Mensagem Seus poemas escritos enquanto morava no bairro da Mafalala tornaramse símbolos da luta anticolonial Na década de 50 morou em Lisboa mas teve de se exilar em Paris por motivos políticos Viajou por toda a África como jornalista e militante política depois retornando a Lisboa Sua poesia foi reunida no volume Sangue Negro em 2001 Porquê Por que é que as acácias de repente floriram flores de sangue Por que é que as noites já não são calmas e doces por que são agora carregadas de eletricidade e longas longas Ah por que é que os negros já não gemem noite fora Por que é que os negros gritam gritam à luz do dia Nossa Irmã a Lua Não não nos digam que a lua não é nossa irmã uma irmãzinha meiga que nos cubra a todos com a quentura terna e gostosa do seu carinho que entorne toda a sua doce claridade sobre as nossas tristes cabeças vergadas e como um feitiço forte e misterioso nos afugente as raivas fundas e dolorosas de revoltados com sua morna carícia de veludo Sua enorme mão luminosamente branca conseguenos tudo E sob o seu feitiço potente serenamos E pouco a pouco momento a momento sossegando vamos Fechando nossos olhos impacientes de esperar já podemos vogar no mar parado dos nossos sonhos cansados e até podemos cantar Até podemos cantar o nosso lamento 75 De olhos para dentro para dentro de nós sentimonos novamente humanos somos nós novamente e não brutos e cegos animais aguilhoados Sim Nós cantamos amorosamente a lua amida que é nossa irmão Embora nos repitam que não nós o sentimos fundo no coração que bem vemos que no seu largo rosto de leite há sorrisos brandos de doçura para nós seus irmãos Só não compreendemos como é que sendo tão branca a lua nossa irmã nos possa ser tão completamente cristã se nós somos tão negros tão negros como a noite mais solitária e mais desoladamente escura Súplica Tiremnos tudo mas deixemnos a música Tiremnos a terra em que nascemos onde crescemos e onde descobrimos pela primeira vez que o mundo é assim um tabuleiro de xadrez Tiramnos a luz do sol que nos aquece a lua lírica do xingombela nas noites mulatas da selva moçambicana essa lua que nos semeou no coração a poesia que encontramos na vida tiremnos a palhota humilde cubata onde vivemos e amamos tiremnos a machamba que nos dá o pão tiremnos o calor de lume que nos é quase tudo mas não nos tirem a música Podem desterrarnos levarnos para longes terras vendernos como mercadoria acorrentarnos à terra do sol à lua e da lua ao sol 76 mas seremos sempre livres se nos deixarem a música Que onde estiver nossa canção mesmo escravos senhores seremos e mesmo mortos viveremos e no nosso lamento escravo estará a terra onde nascemos a luz do nosso sol a lua dos xingombelas o calor do lume a palhota onde vivemos a machamba que nos dá o pão E tudo será novamente nosso ainda que cadeias nos pés e azorrague no dorso E o nosso queixume será uma libertação derramada em nosso canto Por isso pedimos de joelhos pedimos Tiremnos tudo mas não nos tirem a vida não nos levem a música Moças das Docas a Duarte Galvão Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines viemos do outro lado da cidade com nossos olhos espantados nossas almas trancadas nossos corpos submissos escancarados De mãos ávidas e vazias de ancas bamboleantes lâmpadas vermelhas se acendendo de corações amarrados de repulsa descemos atraídas pelas luzes da cidade acenando convites aliciantes como sinais luminosos na noite Viemos Fugitivas dos telhados de zinco pingando cacimba do sem sabor do caril de amendoim quotidiano do doer de espádua todo o dia vergadas sobre sedas que outras exibirão 77 dos vestidos desbotados de chita da certeza terrível do dia de amanhã retrato fiel do que passou sem uma pincelada verde forte falando de esperança Viemos E para além de tudo por sobre Índico de desespero e revoltas fatalismo e repulsas trouxemos esperança Esperança de que a xituculumucumba já não virá em noites infindáveis de pesadelo sugar com seus lábios de velha nossos estômagos esfarrapados de fome E viemos Oh sim viemos Sob o chicote da esperança nossos corpos capulanas quentes embrulharam com carinho marítimos nómadas de outro portos saciaram generosamente fomes e sedes violentas Nossos corpos pão e água para toda a gente Viemos Ai mais nossa esperança venda sobre nossos olhos ignorantes partiu desfeita no olhar enfeitiçado de mar dos homens loiros e tatuados de portos distantes partiu no desprezo e no asco salivado das mulheres de aro de ouro no dedo partiu na crueldade fria e tilintintante das moedas de cobre substituindo as de prata partiu na indiferença sombria de caderneta E agora sem desespero nem esperança seremos em breve fugitivas das ruas marinheiras da cidade E regressaremos Sombrias corpos floridos de feridas incuráveis rangendo dentes apodrecidos de tabaco e álcool voltaremos aos telhados de zinco pingando cacimba ao sem sabor do caril de amendoim e ao doer do corpo todo mais cruel mais insuportável Mas não é a piedade que pedimos vida Não queremos piedade daqueles que nos roubaram e nos mataram valendose de nossas almas ignorantes e de nossos corpos macios 78 Piedade não trará de volta as nossas ilusões de felicidade e segurança não nos dará os filhos e o luar que ambicionávamos Piedade não é para nós Agora vida só queremos que nos dês esperança para aguardar o dia luminoso que se avizinha quando mãos molhadas de ternura vierem erguer nossos corpos doridos submersos no pântano quando nossas cabeças se puderem levantar novamente com dignidade e formos novamente mulheres 79 RUI Manuel Correia KNOPFLI 19321997 Rui Knopfli nascido em Inhambane viveu em Moçambique até seus 43 anos com forte atuação na imprensa e na edição de suplementos literários Em 1975 teve que se exilar em Londres Sua poesia pode conter imagens díspares e contrastantes mas o que prevalece é uma harmonia serena e indiferente efeito da concisão e do depuramento Naturalidade Europeu me dizem Eivamme de literaturas e doutrina europeias e europeu me chamam Não sei se o que escrevo tem a raiz de algum pensamento europeu É provável Não É certo mas africano sou Pulsame o coração ao ritmo dolente desta luz e deste quebranto Trago no sangue uma amplidão de coordenadas geográficas e mar Índico Rosas não me dizem nada casome mais à agrura das micaias e ao silêncio longo e roxo das tardes com gritos de aves estranhas Chamaisme europeu Pronto calome Mas dentro de mim há savanas de aridez e planuras sem fim com longos rios langues e sinuosos uma fita de fumo vertical um negro e uma viola estalando Mangas Verdes com Sal Sabor longínquo sabor acre da infância a canivete repartida no largo semicírculo da amizade Sabor lento alegria reconstituída no instante desprevenido na marébaixa no minuto da suprema humilhação Sabor insinuante que retorna devagar ao palato amargo à boca ardida à crista do tempo ao meio da vida 80 Autoretrato De português tenho a nostalgia lírica de coisas passadistas de uma infância amortalhadas entre loucos girassóis e folguedos a ardência árabe dos olhos o pendor para os extremos da lágrima pronta à incandescência súbita das palavras contundentes do riso claro à angústia mais amarga De português a costela macabra a alma enquistada de fado resistente a todas as ablações de ordem cultural e o saber que o tinto melhor que o branco háde atestar a taça na ortodoxia de certas virtualhas de consistência e paladar telúrico De português o olhinho malandro concupiscente e plurirracial lesto na mirada ao seio entrevisto à nesga de perna à fímbria de nádega a resposta certeira e lépida a dardejar nos lábios o prazer saboroso e enternecido da málíngua De suíço tenho herdados de meu bisavô um relógio de bolso antigo e um vago estranho nome Ilha Dourada A fortaleza mergulha no mar os cansados flancos e sonha com impossíveis naves moiras Tudo mais são ruas prisioneiras e casas velhas a mirar o tédio As gentes calam na voz uma vontade antiga de lágrimas e um riquexó de sono desce a Travessa da Amizade Em pleno dia claro vejote adormecer na distância Ilha de Moçambique e façote estes versos de sal e esquecimento CABO VERDE 82 EUGÉNIO de Paula TAVARES 19671930 Tendo sua origem na Ilha da Brava é conhecido como o maior poeta de expressão crioula Embora autodidata por causa dos cargos que ocupou acabou por conhecer bem a realidade e a cultura de Cabo Verde Depois de certo entusiasmo vindo do governador decide falar na imprensa e nos seus poemas sobre a vida de sua gente Suas composições e suas mornas por tão bem expressarem o sentimento colectivo dos ilhéus são tidas como parte da herança cultural caboverdiana Morna de Despedida e tradução Hora di bai Hora de ir Hora di dor Hora de dor Jan qré Já quero Pa el ca manchê Que não amanheça De cada bêz De cada vez Que n ta lembrâ Que eu lembro Man qré Mais eu quero Fica n morrê Ficar e morrer Hora di bai Hora de ir Hora di dor Hora de dor Amor Amor Dixan chorâ Deixeme chorar Corpo catibo Corpo cativo Ba bo que é escrabo Vai tu que és escravo Ó alma bibo Ó alma viva Quem que al lebabo Quem que já te levou Se bem é doce Se voltar é doce Bai é maguado Ir é magoado Mas se ca bado Mas se não fores Ca ta birado Não voltas Se no morrê Se nós morremos Na despedida Na despedida Nhor Des na volta Senhor Deus na volta Ta dano bida Dános vida Dicham chorâ Deixame chorar Destino de home Destino de homem Es dor Essa dor Que ca tem nome Que não tem nome Dor de crecheu Dor de apaixonado Dor de sodade Dor de saudade De alguem De alguém Quen qré que qrem Que eu quero e que me quer 83 Dicham chorâ Deixame chorar Destino de home Destino de homem Oh Dor Ó dor Que ca tem nome Que não tem nome Sofrí na vista Sofrer na vida Se tem certeza Se tem certeza Morrê na ausencia Morrer na ausência Na bo tristeza Da tua tristeza Canção ao Mar Mar Eterno Oh mar eterno sem fundo Sem fim Oh mar de túrbidas vagas Oh mar De ti e das bocas do mundo a mim Só me vem dores e pragas Oh mar Que mal te fiz oh mar oh mar Que ao verme põeste a arfar a arfar Quebrando as ondas tuas De encontro às rochas nuas Suspende a zanga um momento Escuta A voz do meu sofrimento Na luta Que o amor acende em meu peito Desfeito De tanto amar e penar Oh mar Que até parece oh mar oh mar Um coração a arfar a arfar Em ondas pelas fráguas Quebrando as suas máguas Dáme notícias do meu amor Amor Que um dia os ventos do céu Oh dor Nos seus braços furiosos Levaram E ao meu sorriso invejosos Roubaram Não mais voltou ao lar ao lar Não mais o vi oh mar oh mar Mar fria sepultura Desta minha alma escura Roubasteme a luz querida Do amor E me deixaste sem vida No horror Oh alma da tempestade Amansa Não me leves a saudade E a esperança Que esta saudade é quem é quem Me ampara tão fiel fiel É como a doce mãe Suavíssima e cruel Mas máguas desta aflição Que agita Meu infeliz coração Bendita Bendita seja a esperança Que ainda Lá me promete a bonança Tão linda 84 PEDRO Monteiro CARDOSO 18901942 Nascido na Ilha do Fogo foi professor de ensino primário além de um importante ativista tendo publicado volumes em prol dos direitos dos crioulos e sobre o folclore de Cabo Verde Discutia temas desde analfabetismo arborização até questões como o nativismo e a autonomia da província Suas composições políticas ou não estão muito ligadas à condição de insularidade do paísarquipélago XI A minha Pátria é uma montanha Olímpica tamanha Do seio azul do Atlântico brotada E aos astros com vigor arrernessada Pelo braço potente do Criador Sobranceia cem léguas em redor E tão alta que acima do seu cume Só o plaustro de Apolo coruscante Só o bando estelar de águias de lume E a mente ousada de um Camões ou Dante Como é formosa E majestosa A minha amada Terra natal Quer do Sol sob a clâmide doirada Quer da Lua sob a lúcida cambraia é tão formosa que não tem rival Além das nuvens alevantada O bravo Oceano a seus pés desmaia Para a gloria do mando fêla Deus Altiva e forte generosa e brava Assim foram outrora os filhos seus Se lhe palpita o coração robusto Em derredor tudo estremece logo Pálida e fria de pavor a Brava E em ânsias Santiago e o Maio adusto Fala e as palavras fluem em torrentes De lavas rugidoras e candentes Na verdade escutai chamase Fogo Quando vier Pátria amada A morte pra me levar Deixame a fronte cansada Em teu seio repousar 85 JORGE VeraCruz BARBOSA 19021971 Fez os estudos primários entre Lisboa e a Ilha de Santiago onde nasceu Com dezoito anos começou a trabalhar na alfândega de São Vicente Seu primeiro livro de foi editado em 1935 um ano antes de surgir a revista Claridade que ajudou a fundar e abriu o caminho para que uma modernidade poética renovasse a lírica caboverdiana discorrendo sobre temas de interesse nacional através de uma retórica marcada por um prosaísmo reflexivo Prelúdio Quando o descobridor chegou à primeira ilha nem homens nus nem mulheres nuas espreitando inocentes e medrosos detrás da vegetação Nem setas venenosas vindas no ar nem gritos de alarme e de guerra ecoando pelos montes Havia somente as aves de rapina de garras afiadas as aves marítimas de voo largo as aves canoras assobiando inéditas melodias E a vegetação cujas sementes vieram presas nas asas dos pássaros ao serem arrastadas para cá pelas fúrias dos temporais Quando o descobrir chegou e saltou da proa do escaler varado na praia enterrando o pé direito na areia molhada e se persignou receoso ainda e surpreso pensando nElRei nessa hora então nessa hora inicial começou a cumprirse este destino de todos nós 86 Panorama Destroços de que continente de que cataclismos de que sismos de que mistérios Ilhas perdidas no meio do mar esquecidas num canto do Mundo que as ondas embalam maltratam abraçam Montes alerta implorando ao céu Montes alerta nos seus contorcionismos extáticos de séculos rindo para o oceano gargalhadas que ficaram apenas começadas sorrindo para o céu esgares enigmáticos como que a evocaram um drama milenário Praias desertas de areias macias com fosforências ao sol e restos de navios apodrecendo ao longo praias abertas às brisas marinhas praias cobertas de conchas caprichosas búzios multicores calhaus hostis praias onde naufragaram navios aonde aportaram caravelas onde saltaram marinheiros queimados corsários escravos aventureiros condenados fidalgos negreiros donatários das ilhas CapitãesMores 87 Regresso Navio aonde vais deitado sobre o mar Aonde vais levado pelo vento Que rumo é o teu navio do mar largo Aquele país talvez onde a vida é uma grande promessa e um grande deslumbramento Levame contigo navio Mas torname a trazer 88 OSVALDO ALCÂNTARA 19071989 Pseudônimo de Baltasar Lopes da Silva cujo nascimento se deu na Ilha de São Nicolau Depois de concluir os estudos secundários foi cursar universidade em Lisboa Ao se formar retornou ao Cabo Verde onde teve uma carreira na educação Foi um dos fundadores da revista Claridade que propunha o lema de fincar os pés na terra engajada nos problemas e nas discussões nacionais Além de poeta seu romance Chiquinho foi bastante influente nessa nova literatura caboverdiana Sua poesia além de um importante diálogo com certos poetas brasileiros discorre sobre a vida e os dilemas com os quais se ocupam os ilhéus Itinerário de Pasárgada Saudade fina de Pasárgada Em Pasárgada eu saberia onde é que Deus tinha depositado o meu destino E na altura em que tudo morre cavalinhos de Nosso Senhor correm no céu a vizinha acalenta o sono do filho rezingão Tói Mulato foge a bordo de um vapor o comerciante tirou a menina de casa os mocinhos da minha rua cantam Indo eu indo eu a caminho de Viseu Na hora em que tudo morre esta saudade fina de Pasárgada é um veneno gostoso dentro do meu coração Ressaca Venham todas as vozes todos os ruídos e todos os gritos venham os silêncios compadecidos e também os silêncios satisfeitos venham todas as coisas que não consigo ver na superfície da sociedade dos homens venham todas as areias lodos fragmentos de rocha que a sonda recolhe nos oceanos navegáveis venham os sermões daqueles que não têm medo do destino das suas palavras venha a resposta captada por aqueles que dispõem de aparelhos detectores apropriados volte tudo ao ponto de partida e venham as odes dos poetas casemse os poetas com a respiração do mundo venham todos de braço dado na ronda dos pecadores que as criaturas se façam criadores venha tudo o que sinto que é verdade além do círculo embaciado da vidraça 89 Eu estarei de mãos postas à espera do tesouro que me venha na onda do mar A minha principal certeza é o chão em que se amachucam os meus joelhos doloridos mas todos os que vierem me encontrarão agitando a minha lanterna de todas as cores na linha de todas as batalhas Mar É estrela e única vida Vida que sobe das esquinas ocultas no mar sem águas no mar com águas sem sal que vêm a diluirse lá do fundo das distâncias mágicas Vida para quê Ó distância da vida pouco e pouco escoandose Mistério do caminho cada vez mais certo E as auroras que eu via e nelas me alava para as viagens futuras Mas não esta viagem em limite de passadas mutiladas Mar tu és o que fica 90 MANUEL dos Santos LOPES 19072005 Oriundo do Mindelo ao fim da infância emigrou com sua família para Coimbra Quatro anos depois regressou para o arquipélago como funcionário de uma firma inglesa Foi um dos fundadores da revista Claridade junto dos mais importantes e contestadores intelectuais de Cabo Verde da época Sua vasta obra apresenta uma interessante diversidade já que seus romances Chuva Braba e Os Flagelados do Vento Leste figuram como algumas das mais importantes obras da ficção caboverdiana Sua poesia visita os temas de Cabo Verde com um lirismo que expressa a melancolia da subjetividade nacional Cais Nunca parti deste cais e tenho o mundo na mão Para mim nunca é de mais responder sim cinquenta vezes a cada não Por cada barco que me negou cinquenta partem por mim Mundo pequeno para quem ficou Mundo pequeno para quem ficou Naufrágio Ai a tristeza do vento chorando Ai as nuvens indo à solta em louca corrida medrosas fugindo à mão estendida Ai a solidão dos montes despidos à nossa volta onde a vida aos poucos se consome seios nus ensanguentados onde as raízes morrem de fome E nos rostos ensombrados rondam saudades países navegam velas distâncias Gestos parados caladas ânsias gritos sem voz Dorme o Nosso Senhor Só dentro de cada um de nós 91 envolvido pelo pó que o vento remexeu e levantou Ai este Atlântico triste que nos deu a nostalgia dum mundo que só existe no sonho que ele povoou Encruzilhada Que disse a Esfinge aos homens mestiços de cara chupada Esta encruzilhada de caminhos e de raças onde vai ter Por que virgens paragens se prolonga Aonde vão nas suas andanças os homens mestiços de cara chupada Que significa para eles o amanhecer Ilhas de heroísmos e derrotas e esperanças que a História não escreve onde a hora é longa e o dia breve Ruína Mar parado na tarde incerta No horizonte uma vela que se perde atrás da rocha com cara de gente Voz sem boca canta morna monocordicamente quando o Sol diz adeus no raio verde A tarde é morta na praia deserta A voz é rouca O céu é sangue ou brasa Mão decepada acena ao sol ausente inútil adeus pela porta que ficou aberta num muro que já foi casa 92 OVÍDIO de Sousa MARTINS 1928 Logo após ter completado o liceu no Mindelo cidade onde nasceu parte para Lisboa matriculandose na Faculdade de Direito Jamais chegaria a se formar devido a perda quase completa da audição Da sua importante atividade cultural podese tomar como exemplo a participação como fundador do Suplemento Cultural cujo tom era bastante reivindicativo Por causa desses engajamentos teve de se exilar na Holanda Sua poesia tem um caráter bastante político numa retórica que não foge ao combate Flagelados do Vento Leste Nós somos os flagelados do VentoLeste A nossa favor não houve campanhas de solidariedade não se abriram os lares para nos abrigar e não houve braços estendidos fraternalmente para nós Somos os flagelados do VentoLeste O mar transmitiunos a sua perseverança Aprendemos com o vento a bailar na desgraça As cabras ensinaramnos a comer pedras para não perecermos Somos os flagelados do VentoLeste Morremos e ressuscitamos todos os anos para desespero dos que nos impedem a caminhada Teimosamente continuamos de pé num desafio aos deuses e aos homens E as estiagens já não nos metem medo porque descobrimos a origem das coisas quando pudermos Somos os flagelados do VentoLeste Os homens esqueceramse de nos chamar irmãos E as vozes solidárias que temos sempre escutado São apenas as vozes do mar que nos salgou o sangue as vozes do vento 93 que nos entranhou o ritmo do equilíbrio e as vozes das nossas montanhas estranha e silenciosamente musicais Nós somos os flagelados do VentoLeste Antievasão Pedirei Suplicarei Chorarei Não vou para Pasárgada Atirarmeei ao chão e prenderei nas mãos convulsas ervas e pedras de sangue Não vou para Pasárgada Gritarei Berrarei Matarei Não vou para Pasárgada O único impossível Mordaças A um Poeta Loucura E porque não Fechar na mão uma estrela O Universo num dedal Era mais fácil Engolir o mar Extinguir o brilho aos astros Mordaças A um Poeta Absurdo E porque não 94 Parar o vento Travar todo o movimento Era mais fácil deslocar montanhas com uma flor Desviar cursos de água com um sorriso Mordaças A um Poeta Não me façam rir Experimentam primeiro Deixar de respirar Ou rimar mordaças Com Liberdade 95 VERA Valentina Benrós de Melo DUARTE Lobo de Pina 1952 Nascida no Mindelo depois de terminar os estudos secundários em Cabo Verde cursa a Universidade de Lisboa Ao voltar ao arquipélago tornase jurista na Suprema Corte mais tarde atuando como conselheira do presidente Estreou na literatura em 1993 com um livro de poesias Desde então sua obra na qual consta também diversos livros de ficção tem sido bastante lida e difundida na lusofonia e em várias traduções pelo mundo A rapariga do vestido azul O meu vestido azul ultramarino Feito de miosótis e flocos de neve Cobria a minha nudez De códigos amarrotados E desejos por saciar Em fogo me entreguei a ti Trémula ardente carente Num tempo devorado pela peste Em toda a minha nudez Vestida de azul ultramarino Em fratura exposta Na urgência do desejo Meu coração se rendeu desesperado À paixão da carne intumescida Que incendiou meus sonhos de ti Meu vestido azul ultramarino Bordado de miosótis e flocos de neve Que cobria minha nudez Não cabe mais em mim Neste destino implacável Que tu me decretaste Meu vestido azul ultramarino Em flocos de neve bordado Ficou abandonado Sujo e destroçado Num qualquer porão negreiro Junto a meus sonhos esfrangalhados Desejos Queria ser um poema lindo cheirando a terra com sabor a cana 96 Queria ver morrer assassinado um tempo de luto de homens indignos Queria desabrochar flor rubra do chão fecundado da terra ver raiar a aurora transparente ser rbeira djulion em tempo de são joão nos anos de fartura despiga dmidje E ser riso flor fragrante em cânticos na manhã renovada S TOMÉ E PRÍNCIPE 98 CAETANO DA COSTA ALEGRE 18641890 Natural de São Tomé de uma família crioula portuguesa em 1882 se mudou para Lisboa onde buscava formação médica Veio a morrer de tuberculose antes de obter o diploma Um amigo publicou em 1916 um volume com seus versos cujo êxito foi enorme Sua poesia expressa assuntos raciais de maneira aberta tendo o poeta sofrido de racismo ao ser rejeitado por uma mulher branca devido à cor de sua pele A Negra Negra gentil carvão mimoso e lindo Donde o diamante sai Filha do sol estrela requeimada Pelo calor do Pai Encosta o rosto cândido e formoso Aqui no peito meu Dorme donzela rola abandonada Porque te velo eu Não chores mais criança enxuga o pranto Sorrite para mim Deixame ver as pérolas brilhantes Os dentes de marfim No teu divino seio existe oculta Mal sabes quanta luz Que absorve a tua escurecida pele Que tanto me seduz Eu gosto de te ver a negra e meiga E acetinada cor Porque me lembro ó Pomba que és queimada Pelas chamas do amor Que outrora foste neve e amaste um lírio Pálida flor do vale Fugiute o lírio um triste amor queimoute O seio virginal Não chores mais criança a quem eu amo Ó lindo querubim O amor é como a rosa porque vive No campo ou no jardim Tu tens o meu amor ardente e basta Para seres feliz Ama a violeta que a violeta adorate Esquece a flordelis Aurora Tu tens horror de mim bem sei Aurora Tu és o dia eu sou a noite espessa Onde eu acabo é que o teu ser começa Não amas flor que esta minha alma adora És a luz eu a sombra pavorosa Eu sou a tua antítese frisante Mas não estranhes que te aspire formosa Do carvão sai o brilho do diamante Olha que esta paixão cruel ardente Na resistência cresce qual torrente 99 É a paixão fatal que vem da sorte É a paixão selvática da fera É a paixão do peito da pantera Que me obriga a dizerte amor ou morte A minha cor é negra A minha cor é negra Indica luto e pena É luz que nos alegra A tua cor morena É negra a minha raça A tua raça é branca Tu és cheia de graça Tens a alegria franca Que brota a flux do peito Das cândidas crianças Todo eu sou um defeito Sucumbo sem esperanças E o meu olhar atesta Que é triste o meu sonhar Que a minha vida é mesta E assim há de findar Tu és a luz divina Em mil canções divagas Eu sou a horrenda furna Em que se quebram vagas Porém brilhante e pura Talvez seja a manhã Irmã da noite escura Serás tu minha irmã Contraste O Sol astro mais belo do universo O Sol diz a ciência dando a aurora Em tanta luz imerso Só esplendor por fora Só trevas é no centro Ó sol és meu inverno Negro por fora eu tenho amor cá dentro 100 FRANCISCO JOSÉ de Vasques TENREIRO 19211963 Nascido em São Tomé bem cedo foi estudar em Lisboa onde chegou a concluir estudos superiores tornandose um geógrafo Esteve em contato com o movimento neorealista português e o Novo Cancioneiro além do movimento Négritude na França o que fez com que fizesse um ensaio geográficosociológico de São Tomé Sendo mestiço pela cor e pela cultura sua obra expressa essa profunda relação heterogênea Canção do Mestiço Mestiço Nasci do negro e do branco e quem olhar para mim é como que se olhasse para um tabuleiro de xadrez a vista passando depressa fica baralhando cor no olho alumbrado de quem me vê Mestiço E tenho no peito uma alma grande uma alma feita de adição como 1 e 1 são 2 Foi por isso que um dia o branco cheio de raiva contou os dedos das mãos fez uma tabuada e falou grosso mestiço a tua conta está errada Teu lugar é ao pé do negro Ah Mas eu não me danei e muito calminho arrepanhei o meu cabelo para trás fiz saltar fumo do meu cigarro cantei do alto a minha gargalhada livre que encheu o branco de calor Mestiço Quando amo a branca sou branco 101 Quando amo a negra sou negro Pois é Corpo Moreno Se eu dissesse que o teu corpo moreno tem o ritmo da cobra preta deslisando mentia Mentia se comparasse o teu rosto fruto ao das estátuas adormecidas das velhas civilizações de África de olhos rasgados em sonhos de luar e boca em segredos de amor Como a minha Ilha é o teu corpo mulato tronco forte que dá amorosamente ramos folhas flores e frutos e há frutos na geografia do teu corpo Teu rosto de fruto olhos oblíquos de safú boca fresca de framboesa silvestre és tu És tu minha Ilha e minha África forte e desdenhosa dos que te falam à volta Canto do Òbó O sol golpeia as costas do negro e rios de suor ficam correndo Ardor O machim golpeia o pau e rios de seiva escorrendo Ardor Os olhos do branco como chicotes ferem o mato que está gritando Só o água sussurrantemente calmo corre prao mar tal qual a alma da terra 102 ALDA Neves da Graça DO ESPÍRITO SANTO 19262010 Tendo nascido em São Tomé de uma professora primária e de um funcionário dos Correios fez os primeiros estudos no arquipélago Em 1940 mudase com a família para o norte de Portugal vindo depois a cursar ensino superior em Lisboa Sua casa tornouse o ponto de encontro do Centro de Estudos Africanos Em 1953 retorna a São Tomé e atua como professora e jornalista Seus poemas possuem um forte caráter político de uma retórica direta e com imagens que denunciam violência e repressão Onde estão os homens caçados neste vento de loucura O sangue caindo em gotas na terra homens morrendo no mato e o sangue caindo caindo nas gentes lançadas no mar Fernão Dias para sempre na história da Ilha Verde rubra de sangue dos homens tombados na arena imensa do cais Ai o cais o sangue os homens os grilhões os golpes das pancadas a soarem a soarem a soarem caindo no silêncio das vidas tombadas dos gritos dos uivos de dor dos homens que não são homens na mão dos verdugos sem nome Zé Mulato na história do cais baleando homens no silêncio de tombar dos corpos Ai Zé Mulato Zé Mulato as vítimas clamam vingança o mar o mar de Fernão Dias engolindo vidas humanas está rubro de sangue Nós estamos de pé Nossos olhos se viram para ti Nossas vidas enterradas nos campos da morte os homens do cinco de Fevereiro os homens caídos na estufa da morte clamando piedade gritando pla vida mortos sem ar e sem água levantamse todos da vala comum e de pé no coro de justiça clamam vingança 103 Os corpos tombados no mato as casas as casas dos homens destruídas na voragem do fogo incendiário as vidas queimadas erguem o coro insólito de justiça clamando vingança E vós todos carrascos e vós todos algozes sentados nos bancos dos réus Que fizeste do meu povo Que respondeis Onde está o meu povo E eu respondo no silêncio das vozes erguidas clamando justiça Um a um todos em fila Para vós carrascos o perdão não tem nome A justiça vai soar E o sangue das vidas caídas nos matos da morte o sangue inocente ensopando a terra num silêncio de arrepios vai fecundar a terra clamando justiça É a chama da humanidade cantando a esperança num mundo sem peias onde a liberdade é a pátria dos homens Repressão Os abutres varrem a face da Terra Jamais jamais enquanto a vida eu tiver Poderei esquecer o horrendo dia que esta data simboliza Marcada a ferrete dentro de mim Eu solidarizome com todas as vítimas Que sofreram o mesmo suplício Que todas as vítimas imoladas Possam soltar o canto da libertação S Tomé e Príncipe Irmãos de S Tomé e Príncipe 104 As datas são marcos da nossa história Setembro de setenta e quatro É uma fase nova e decisiva da nossa luta Um passo em frente é pontaria certeira Atenção irmãos do arquipélago isolado Cada hora é uma afirmação Duma viragem sem precedentes Nossos passos certos nas minas lançadas Nos trilhos das nossas caminhadas São granadas de alcance longo É preciso saltar as minas Nas emboscadas dos muros coloniais Nossa guerrilha é unidade na luta Nosso fuzil é palavra de ordem Pronta a disparar no momento exacto Irmãos do mundo nós somos guerrilheiros Das ilhas do mar sem fim A muralha colonial é nosso campo de batalha Rastilho engatilhada aponta contra nós Perspicácia do ilhéu é coluna na nossa luta Manobras multiplicadas avançam hora após hora Condicionalismo geográfico Nega eco à voz do ilhéu Rádio e imprensa estão distantes do processo irreversíveis Das ilhas do fim do mundo Mas o mar da separação não afoga nossa luta Nós somos guerrilheiros Com armas de alto calibre O mar da divisão Dá força ao fuzil do ilhéu A força da unidade é nossa metralhadora 105 Maria da CONCEIÇÃO de Deus LIMA 1961 Natural de Santana foi estudar jornalismo em Portugal e ao retornar ao seu país trabalhou na rádio na televisão e na imprensa Sua poesia é preocupada em expressar o ambiente de São Tomé e Príncipe no período póscolonial quando nem todos os ideais dos indivíduos que lutaram pela independência foram mantidos Na praia de São João Há séculos que a sua fronte taciturna desafia a premonição das estrelas os rijos movimentos o solitário remo a herdada sapiência de pressentir o cheiro da calema e a mandíbula do tubarão Ele que acredita em deus e nos deuses na bondade dos amuletos na ciência dos astros na falível destreza dos seus braços há séculos que parte com a alvorada sem ninguém o ver Todos os dias aguardamos porém o seu retorno a brancura do sal nos músculos retesados o impulso final e a canoa implantada no colo da praia Em seu rasto perscrutamos ao cair do dia os limites do mar Por seu vulto ganham nova pressa os passos das mulheres o tilintar das moedas o pregão das palayês E se enchem de falas as feiras ao entardecer Deste lado a outra margem do infinito onde o crepúsculo saúda o regresso de lá do horizonte do hemisfério da espuma da linha oculta no azul espesso do lugar onde a água só conhece a voz da água Nós te aguardamos mercador lunar despercebido guerreiro e ao brilho das escamas que revelas Pois sem ti a praia seria apenas praia o perfil do mar a queixa do vento ou a nudez de anónimas pegadas na areia 106 Inegável Por dote recebite à nascença e conheço em minha voz a tua fala No teu âmago como a semente na fruta o verso no poema existo Casa marinha fonte não eleita a ti pertenço e chamote minha como à mãe que não escolhi e contudo amo A Lenda da Bruxa San Malanzo era velha muito velha San Malanzo era pobre muito pobre Não tinha filhos não tinha netos Não tinha sobrinhos não tinha afilhados Nem primos tinha e nem enteados Ela era muito pobre e muito velha Muito velha e muito pobre era Era velha era pobre san Malanzo Pobre e muito velha Velha e muito pobre Era velha e pobre Era pobre e velha Velha pobre Pobre velha Velha Pobre Feiticeira Os Heróis Na raiz da praça sob o mastro ossos visíveis severos palpitam Pássaros em pânico derrubam trombetas recuam em silêncio as estátuas para paisagens longínquas Os mortos que morreram sem perguntas regressam devagar de olhos abertos indagando por suas asas crucificadas GUINÉBISSAU 108 AMÍLCAR Lopes da Costa CABRAL 19241973 Nascido na cidade guineense de Bafatá mudouse aos oito anos para Cabo Verde onde fez estudos primários e médios Foi cursar ensino superior em Lisboa onde esteve em contato com diversos estudantes vindos da África Vai para Bissau em 1952 de onde por questões políticas tem de se mudar para Angola e se junta ao MPLA Funda o Partido Africano de Independência o qual depois de anos na militância começa a luta armada em 1963 Em 1973 foi assassinado por dois membros do seu próprio partido Seus poemas impressos em jornais mostram um indivíduo preocupado com dilemas humanos e sociais num tom embora reflexivo ainda esperançoso A minha Poesia sou eu Não Poesia Não te escondas nas grutas de meu ser não fujas à Vida Quebra as grades invisíveis da minha prisão abre de par em par as portas do meu ser sai Sai para a luta a vida é luta os homens lá fora chamam por ti e tu Poesia és também um Homem Ama as Poesias de todo o Mundo ama os Homens Solta teus poemas para todas as raças para todas as coisas Confundete comigo Vai Poesia Toma os meus braços para abraçares o Mundo dáme os teus braços para que abrace a Vida A minha Poesia sou eu Que fazer Que fazer Eu não compreendo o Amor eu não compreendo a Vida Mistérios insondáveis Formidáveis Mistérios que o Homem enfrenta Mistérios de um mistério Que é a alma humana Eu não compreendo a Vida Há luta entre os humanos Há guerra Há fome e há injustiça imensa 109 Há pobres seculares Aspirações que morrem Enquanto os fortes gastam Em gastos não precisos Aquilo que outros querem Eu não compreendo o amor Amamos quem sabemos impossível Sentir por nós aquilo Que tanto cobiçamos A Vida não me entende Eu não compreendo a Vida Quero entender o Amor E o amor não me compreende Poema Quem é que não se lembra Daquele grito que parecia trovão É que ontem Soltei meu grito de revolta Meu grito de revolta ecoou pelos vales mais longínquos da Terra Atravessou os mares e os oceanos Transpôs os Himalaias de todo o Mundo Não respeitou fronteiras E fez vibrar meu peito Meu grito de revolta fez vibrar os peitos de todos os Homens Confraternizou todos os Homens E transformou a Vida Ah O meu grito de revolta que percorreu o Mundo Que não transpôs o Mundo O Mundo que sou eu Ah O meu grito de revolta que feneceu lá longe Muito longe Na minha garganta Na garganta de todos os Homens Sim querote Querote quando solitário cismo na nossa vida nossa triste vida 110 e otimista esperançoso eu vejo o meu futuro o teu futuro e uma vida melhor Querote quando a nossa melodia a nossa morna cantas docemente e eu sonho eu vivo e eu subo a escada mágica da tua voz serena e eu vou viver contigo Querote quando contemplo o nosso mundo um mundo de misérias de dor e de ilusões e penso e creio e tenho a máxima Certeza do que o romper da aurora do dia para todos não tarda e vem já perto E o mundo de misérias será um mundo de Homens Eu querote Eu querote Como o dia de amanhã 111 VASCO CABRAL 19262005 Oriundo de Farim no norte da GuinéBissau participa ativamente da oposição antisalazarista Conclui em Lisboa o ensino superior e parte numa viagem para Bucareste Ao voltar acaba preso passando cinco anos em cárcere por motivos políticos Depois da prisão passa à clandestinidade mais tarde vindo a aderir ao PAIGC Escapou por pouco do atentado que vitimou Amílcar Cabral De 1980 até um ano antes de sua morte ocupou vários cargos no governo guineense Sua poesia típica do momento político em que viveu tem um forte engajamento e uma vontade de esperança A luta é a minha primavera A luta é a minha primavera Sinfonia de vida o grito estridente dos rios a gargalhada das fontes o cantar das pedras e das rochas o suor das estrelas a linha harmonia dum cisne Onde está a poesia A poesia está nas asas da aurora quando o sol desperta A poesia está na flor quando a pétala se abre às lágrimas do orvalho A poesia está no mar quando a onda avança e branda e suavemente beija a areia da praia A poesia está no rosto da mãe quando na dor do parto a criança nasce A poesia está nos teus lábios quando confiante Sorris à vida A poesia está na prisão quando o condenado à morte dá uma vida à liberdade A poesia está na vitória 112 quando a luta avança e triunfa e chega a Primavera A poesia está no meu povo quando transforma o sangue derramado em balas e flores em balas para o inimigo e em flores para as crianças A poesia está na vida porque a vida é luta Saudades dos que dizem adeus Saudade dos que dizem adeus lágrima voando voando como asa de brisa E longe mas perto o coração a bater a bater Saudade dos que dizem adeus grito com eco repercutindo no peito em silêncio em silêncio É dor sem ser dor fogo que queima na alma Presença do inefável do vago Murmúrio da onda que chega e parte sem se mover Saudade dos que dizem adeus lágrima voando voando como pássaro triste Desabafo Oh Que bom seria transformar Os falcões em pombas 113 E fazer as pombas sorrirem na Primavera Oh Como gostaria eu De beijar na boca a madrugada E afagar com os meus dedos os cabelos do futuro para que a paz e a liberdade fossem universais 114 ANTÓNIO BATICÃ FERREIRA 1939 Após um curto período passado em GuinéBissau desde seu nascimento com seis anos se muda para Dakar um ano depois continua os estudos em Paris Obtém o diploma de medicina pela Faculdade de Lausanne com o qual fez residência em um hospital em Lisboa Nunca deixou de visitar com frequência seu país natal Embora tenha começado a escrever poesia em francês eventualmente começou a alternála com a escrita em língua portuguesa Sua poesia apresenta certa nostalgia embora um tanto amarga com os espaços da África e mais especificamente da GuinéBissau País Natal Um sentimento de amor pátrio sobe no meu coração Em espírito demando o meu país natal E lembro aquela floresta africana Cheia de caça e de verdura Lembro as suas imensas árvores gigantes A folhagem verde ou amarela Que nos perfuma Revejo a minha infância Toda cheia de alegrias Eu corria pelo mato Espiava os animais selvagens Sem medo E olhava os lavradores nos campos E no mar os pescadores Que lutavam contra o vento para agarrar o peixe E que eu atento seguia com o olhar Como gostava de os ver no oceano Domar as vagas que lhes queriam virar as barcas Ah bem me lembro bem me lembro do meu país natal Infância Eu corria através dos bosques e das florestas Eu corno o ruído vibrante de um bosque desvendado Eu via belos pássaros voando pelos campos E parecia ser levado por seus cantos Subitamente desviei os meus olhos Para o alto mar e para os grandes celeiros Cheios da colheita dos bravos camponeses Que terminando o dia regressavam à noite entoando Canções tradicionais das selvas africanas Que lhes lembravam os ódios ardentes Dos velhos Subitamente uma corça gritou 115 Fugindo na frente dos leões esfomeados Aos saltos os leões perseguiram a corça Derrubando as lianas e afugentando os pássaros A desgraçada atingiu a planície E os dois reis breve a alcançaram Amargura Meu coração chora Saio da cidade e vagueio Pelos campos na planura Por arrozais e florestas Um vento brusco e potente Sacode as árvores As aves cantam Rugem leões Urram elefantes Sinto odores nauseantes De folhas apodrecidas Venceme cada vez mais a amargura Só estou só e perdido Na floresta africana Os animais selváticos não entendem a minha voz Falo com o vento as flores Os montes Venceme fatal melancolia Só o vento me acaricia Estou longe dos homens Longe dos meus semelhantes Dos amigos Muito longe Longe do gênero humano Só Só Só 116 Maria ODETE da Costa Soares SEMEDO 1959 Tendo suas origens na cidade de Bissau aos 18 anos começou sua carreira na educação Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas por uma universidade portuguesa ao voltar ao seu país exerceu vários cargos no âmbito da educação chegando a ser Ministra da Educação e Ministra da Saúde Em 2008 se muda para o Brasil cursando doutorado na PUC de Minas Retornando ao seu país assume a reitoria da Universidade Amílcar Cabral Sua poesia explora a subjetividade lírica de um indivíduo que manifesta um desabafo escancarado de uma situação a do seu país e do seu povo Flor sem nome Flor sem nome Em chão árido e seco No deserto envolvente Um fundo verde Da esperança longínqua Eu só nessa flor A florir longe de pensamentos Longe de sentimentos E ao longe Lágrimas cobrindo rostos Essa flor sou eu Sem nome sem cheiro A beira mar Colorida Sobrevive também pelo verde Ilhas sem nome Meus olhos Ilhas sem nome Maré alta a transbordar no oceano Ondas salgadas Que insuportam o acordar Vazias de vida Meus olhos Olhos sem nome Precipitam e atentam Contra o impávido Meus olhos nossos olhos Ilhas sem nome Aprisionados pelas mãos pelos Soltam raios dedos Reconhecem outros olhos E inacreditam esqueletos ousados 117 Abandonados pela carne Espreitando Meus olhos Nossos olhos todos os olhos Ilhas sem nome Ganharam um nome Passaram a ser Olhosquejánãoacreditam E ninguém podia crer E ninguém podia crer Entre a dor que sinto e o que pressinto na alma da minha terra que caminho trilhar Entre a dor que sinto entre o ser e o estar venceram a ganância a violência e o desespero E nós não acredito no que os meus olhos vêem Heroína do teu conto Quero ser heroína Do conto que inventares Que firme segue o seu destino Quero ser uma mortal Guiada pelo teu poder E pela tua voz Quero ser uma semideusa E vencer os obstáculos Que tu teceres Escapar das nuvens e do próprio sol Quero ser a deusa lua no teu conto Acompanhar as crianças Nas suas fantasias E no sonho seguir os seus desígnios Quero ser a heroína do teu conto Ou apenas um verso do teu canto
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POESIA AFRICANA NOVA APOSTILA 2 APOSTILA DE POESIA AFRICANA EM LÍNGUA PORTUGUESA Profª Maria Teresa Salgado David Bernat Ribeiro da Silveira UFRJ FACULDADE DE LETRAS SETOR DE LITERATURAS AFRICANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS VERNÁCULAS 3 ÍNDICE TEXTOS INTRODUTÓRIOS A geração de 50 e a modernidade literária angolana 06 Eu e o outro O invasor Fragmentos de ensaio 10 Sendas de Sonho e Beleza 12 José Craveirinha e a busca pela palavra moçambicana 20 Insularidade na literatura caboverdiana 28 Introdução à literatura de S Tomé e Príncipe 35 Introdução ao espaço guineense 42 ANGOLA Cordeiro da Matta 51 Agostinho Neto 54 Viriato da Cruz 57 António Jacinto 61 Arlindo Barbeitos 64 Paula Tavares 66 MOÇAMBIQUE Rui de Noronha 70 José Craveirinha 71 4 Noémia de Sousa 74 Rui Knopfli 79 CABO VERDE Eugênio Tavares 82 Pedro Cardoso 84 Jorge Barbosa 85 Osvaldo Alcântara 88 Manuel Lopes 90 Ovídio Martins 92 Vera Duarte 95 S TOMÉ E PRÍNCIPE Caetano da Costa Alegre 98 Francisco José Tenreiro 100 Alda do Espírito Santo 102 Conceição Lima 105 GUINÉBISSAU Amilcar Cabral 108 Vasco Cabral 111 António Baticã Ferreira 114 Odete Semedo 116 TEXTOS INTRODUTÓRIOS 6 A Geração de 50 e a Modernidade Literária Angola Maria Teresa Salgado UFRJ Vamos descobrir Angola são as palavras de ordem da geração de 50 De acordo com os historiadores da literatura angolana o primeiro a lançar esse grito foi o poeta Viriato da Cruz que em 1948 reuniase com um grupo de escritores discutindo a necessidade de se criar uma poesia nova voltada para a cultura angolana Retomavase assim o espírito destemido e questionador dos escritores e jornalistas angolanos do final do século XIX e início do século XX como Cordeiro da Matta que haviam trabalhando em favor do resgate da cultura e dos valores nativos Com o apoio da ANANGOLA Associação dos Naturais de Angola um grupo de intelectuais dentre os quais se destacava o poeta António Jacinto passa a se denominar como Movimento dos Novos Intelectuais de Angola1 adotando o lema lançado por Viriato da Cruz e dando início a um projeto que envolvia uma série de atividades culturais campanha de alfabetização fundação de escolas e bibliotecas edição de trabalhos criação de concursos literários lançamento de revistas entre outros planos Nas palavras de Alfredo Margarido 1980 p338 o Movimento dos Novos Intelectuais combatia o respeito exagerado dos valores culturais do Ocidente e convidava os jovens a descobrir Angola através de um trabalho coletivo organizado Um dos requisitos para tal trabalho era a conscientização do povo começando pela sua alfabetização Infelizmente grande parte dos projetos culturais propostos pelo Movimento não pode se concretizar As escolas e bibliotecas não foram fundadas assim como a campanha de alfabetização não chegou a acontecer Como observa Pires Laranjeira 1995 p273 tais projetos eram irrealizáveis a curto e médio prazo e pressupunham a criação de uma nova sociedade Afinal o governo colonial nunca se interessara pela escolarização dos africanos Entretanto a publicação da revista Mensagem embora tenha tido uma vida curta representou um importante passo para a divulgação das ideias ensaios e textos literários que já anunciavam uma literatura que buscava libertarse da tutela dos modelos europeus e aderir ao engajamento social preparando os novos caminhos que levariam à modernidade literária angolana A proibição da revista Mensagem pelo governo português logo após a publicação do segundo exemplar em edição dupla deu a medida de sua ousadia mostrando que a polícia salazarista percebera que as reivindicações literárias e culturais da revista apontavam necessariamente para reivindicações políticas conscientização da exploração colonial e a independência de Portugal Nessa primeira fase segundo Margarido 1980 p239240 são sobretudo as vozes dos poetas António Jacinto Agostinho Neto Viriato da Cruz e Maurício de Almeida Gomes que se destacam ao acenar com as seguintes mudanças no panorama literário angolano recurso ao quimbundo e deformações fonéticas da língua portuguesa apontando já a busca de uma semântica e de uma sintaxe angolanas influência da poesia modernista brasileira conscientização da alienação social valorização do quotidiano angolano e evocação das tradições culturais angolanas 1 Ainda que tenham surgido alguns contistas nessa geração a preponderância no grupo será no campo da poesia 7 Desaparecida Mensagem os escritores angolanos buscam outros meios de divulgar suas produções e encontram na revista Cultura II uma continuação do espírito desbravador de Mensagem Tendo desempenhado entre 1945 e 1954 um papel cultural apenas superficial Cultura recomeçou a ser publicada em 1957 como Cultura II adotando um novo perfil divulga poemas textos e ensaios protestatários e conscientizadores da situação sóciopolítica Ao mesmo tempo em que se abre mais ao que está acontecendo no mundo a revista discute cada vez mais intensamente temas voltados para as línguas e as culturas locais Russell Hamilton 1981 p85 não nos deixa esquecer que Cultura II marca o início de uma crítica literária já com inclinação para a polêmica O debate Poesia de Angola ou poesia de Angola suscitará várias questões que envolvem desde a origem geográfica e cultural do escritor até a cor de sua pele a sua fixação no solo africano e o seu compromisso social António Cardoso Mário Pinto de Andrade Mário de António e Agostinho Neto são nomes que se envolvem nesse debate Como aponta ainda Hamilton 1981 p87 a atualidade cultural será medida sobretudo pelo grau de consciencialização sóciopolítica Por outro lado as reivindicações da cultura angolana e da cor da pele não deixam de ser expressões importantes havendo diversas vezes confusão entre a reivindicação racial e a cultural Poderíamos resumir as posições críticas do momento Hamilton 1981 p8889 citando brevemente alguns pontos de vista Enquanto que para António Cardoso era preciso dar ênfase ao comprometimento político e social Mário António parecia frisar as ambivalências e impedimentos de uma literatura aculturada já Agostinho Neto salientava a responsabilidade social do escritor de restaurar a tradição oral africana buscando incorporála à poesia em língua portuguesa Como já se pode notar são inúmeras e em diversos níveis as tensões que acompanharam essa literatura naquele período aflorando nas antologias e publicações da Casa dos Estudantes do Império CEI Através dessas publicações assistiremos ao desenvolvimento e à afirmação de uma literatura reivindicatória angolana que pouco a pouco destruirá os mitos que haviam sido construídos em torno das culturas tradicionais de origem banta Um deles o de que as línguas africanas não se prestavam à produção poética escrita vem por terra com a publicação pela CEI de poemas angolanos de expressão banta e com as pesquisas em torno da literatura nacional como a de C Easterman2 o qual tentou entender e analisar a natureza dos poemas colhidos nas tradições banto O papel da tradição oral e o trabalho de linguagem envolvendo as línguas de origem banta e o idioma português passam a fazer parte da consciência crítica da época e afloram em publicações e palestras de críticos e escritores como Agostinho Neto que demonstrou uma profunda consciência em relação a essa questão para a afirmação da moderna literatura angolana As mudanças e renovações serão percebidas em primeiro lugar no campo da temática A urgência da mensagem fará com que o tema prevaleça sobre a inovação estilística Por outro lado de acordo com Margarido 1975 p362 essa literatura não pode ser lida apenas como inventário de novos valores estéticos pois um de seus maiores objetivos será o inventário de valores da cultura angolana Daí a organização de uma 2 R Hamilton se refere ao importante trabalho do missionário suíço Easterman página 93 da já citada obra 8 antologia temática como a de Mário Pinto de Andrade3 levantando os temas mais frequentes da poesia angolana de língua portuguesa A terra é o tema por excelência da poesia africana podendo ligarse tanto ao desejo de retorno às origens como na poesia de Alda Lara quanto à imagem perturbadora do trem do comboio que leva os contratados para longe de suas casas como nota Russell Hamilton 1981 p96 contribuindo para a desordem que se instaura no espaço violentado da colonização O retorno às origens por sua vez evocará outro grande tema comum às demais literaturas africanas a homenagem à mãe negra a mãe universal sempre telúrica conforme Margarido 1975 p361 apontando outras vezes para o desamparo e exploração que separa precocemente a criança do colo materno A infância será também um tema bastante recorrente indicando um período preservado em que as diferenças sociais ainda não são tão acentuadas e apontando também para a fase crioula de Luanda Outro tema frequente segundo Hamilton se desenvolverá em torno da identidade cultural e da alienação As ambivalências do branco e do mestiço que procuram identificarse com as aspirações populares evidenciamse de forma criativa em poesias altamente reflexivas de António Jacinto Alda Lara Ernesto Lara ou Agostinho Neto Como podemos notar muitos desses temas estão também bastante ligados entre si e se estendem aos demais sistemas literários africanos Eles apontam não só para um conjunto de ideais e valores africanos mas também para uma linguagem africanizante muitas vezes influenciada por correntes estéticoideológicas como a Negritude o Panafricanismo e o Renascimento Negro Para Hamilton 1981 p103 na literatura angolana esse processo de reafricanização na linguagem se evidencia em diversos momentos e pode ser facilmente exemplificado na produção poética da Geração de 50 no esforço em combinar poesia narrativa e ritmo sincopado trazendo a estrutura musical da rebita uma dança popular de Luanda para dentro da composição como vemos no poema Sô Santo de Viriato da Cruz na inserção da musicalidade da linguagem dos pregões dos bairros populares no Poema da Alienação de António Jacinto e principalmente na tentativa de Agostinho Neto de transmitir o ritmo acelerado da música africana aos seus versos seja pela abolição das pausas marcadas seja pela repetição de palavras seja pela própria acentuação das contradições linguísticas e ideológicas Como vemos o compromisso da Geração de 50 de angolanizar a literatura levou os escritores a resgatar formas e valores da oralidade nos quais descobrem um modo de lutar contra o discurso do opressor afirmando a descolonização literária as fontes da cultural oral tornamse assim um novo começo o antiquíssimo passar a ser uma renovação É o que mostra Laura Padilha pensando com Os FIlhos do Barro de Octávio Paz o traço da modernidade se pode encontrar no velho de milênios se este rompe uma tradição instaurando outra Padilha 2002 p49 Assim recuperar a tradição segundo Padilha significa trazer para o texto a marca da alteridade atingindose a um só tempo a afirmação identitária e a modernidade O grito de Vamos descobrir Angola se fez ouvir atualizando o processo de desterritorialização de que fala Padilha 2002 p49 procurando inverter os sinais de menos impostos às formas culturais angolanas abrindo um espaço para que elas pudessem se expressar 3 Andrade Mario Pinto de Antologia Temática da Poesia Africana vol 1 Na noite grávida de punhais Lisboa Sá da Costa 1976 vol 2 O canto armado 1979 9 Nesse sentido que por sinal não é exclusivo da literatura angolana podemos pensar que a produção literária da geração de 50 já nesse momento acena para o desejo de intervenção no próprio cânone ocidental Ao radicalizar o comprometimento éticosocial e resgatar as fontes tradicionais da oralidade a literatura angolana contrapõese ao discurso hegemônico cristalizado Traz para a cena literária uma discussão em que valores como justiça social e solidariedade não podem ser considerados secundários frente aos padrões estéticos incomodando uma boa parte da crítica O grito desses escritores é portanto um grito que termina por criar novos caminhos para a discussão do próprio conceito de modernidade literária Referências Bibliográficas HAMILTON Russell Literatura Africana Literatura Necessário vol1 Lisboa Edições 70 1981 LARANJEIRA Pires Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa Lisboa Universidade Aberta 1995 MARGARIDO Alfredo Estudos sobre as literaturas das nações africanas de língua portuguesa Lisboa A Regra do Jogo 1980 PADILHA Laura Novos pactos outras ficções Porto Alegre EdiPUCRS 2002 10 Eu e o outro O invasor ou Em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto Fragmentos de ensaio Manuel Rui Quando chegaste mais velhos contavam estórias Tudo estava no seu lugar A água O som A luz Na nossa harmonia O texto oral E só era texto não apenas pela fala mas porque havia árvores paralelas sobre o crepitar de braços da floresta E era texto porque havia gesto Texto porque havia dança Texto porque havia ritual Texto falado ouvido e visto É certo que podias ter pedido para ouvir e ver as estórias que os mais velhos contavam quando chegastes Mas não Preferiste disparar os canhões A partir daí comecei a pensar que tu não eras tu mas outro por me parecer difícil aceitar que da tua identidade fazia parte esse projeto de chegar e bombardear o meu texto Mas tarde viria a constatar que detinhas mais outra arma poderosa além do canhão a escrita E que também sistematicamente no texto que fazias escrito intentavas destruir o meu texto ouvido e visto Eu sou eu e a minha identidade nunca a havia pensado integrando a destruição do que não me pertence Mas agora sinto vontade de me apoderar do teu canhão desmontálo peça a peça refazêlo e disparar ao contra o teu texto não na intenção de o liquidar mas para exterminar dele a parte que me agride Afinal assim identificome sempre euaté posso ajudarte à busca de uma identidade em que sejas tu quando eu te olhoem vez de seres o outro Mas para fazer isto eu tenho que transformar e transformome Assim na minha oratura para além das estórias antigas na memória do tempo eu vou passar a incluirte Vou inventar novas estórias Por exemplo o espantalho silencioso que coloco na lavra para os pássaros não me comerem a massambala passa a ser o outro que não fazia parte do texto Também vou substituir a surucucu cobra maldita Surucucu passa a ser o outro E cobra no meu texto inventado agora passa a ser bela e pacífica se morder o outro com seu veneno mortal E agora o meu texto se ele trouxe a escrita O meu texto tem que se manter assim oraturizado e oraturizante Se eu perco a cosmicidade do rito perco a luta Ah Não tinha reparado Afinal isto é uma luta E eu não posso retirar do meu texto a arma principal A identidade Se o fizer deixo de ser eu e fico outro aliás como o outro quer E agora Vou passar o meu texto oral para a escrita Não É que a partir do momento em que eu o transferir para o espaço da folha branca ele quase morre Não têm árvores Não tem ritual Não tem as crianças sentadas segundo o quadro comunitário estabelecido Não tem som Não tem dança Não tem braços Não tem olhos Não tem bocas O texto são bocas negras na escrita quase redundam num mutismo sobre a folha branca O texto oral tem vezes que só pode ser falado por alguns de nós E há palavras que só alguns de nós podem ouvir No texto escrito posso liquidar este código aglutinador Outra arma secreta para combater o outro e impedir que ele me descodifique para depois me destruir Como escrever a história o poema o provérbio sobre a folha branca Saltando pura e simplesmente da fala para a escrita e submetendome ao rigor do código que a escrita já composta Isso não No texto oral já disse não toco e não o deixo minar pela escrita arma que eu conquistei ao outro Não posso matar o meu texto com a arma do outro Vou é minar 11 a arma do outro com todos os elementos possíveis do meu texto Invento outro texto Interfiro descrevo para que eu conquiste a partir do instrumento escrita um texto escrito meu da minha identidade Os personagens do meu texto têm de se movimentar como no outro texto inicial Têm de cantar Dançar Em suma temos de ser nós Nós mesmos Assim reforço a identidade com a literatura Só que agora porque o meu espaço e tempo foi agredido para o defender por vezes dessituo do espaço e tempo e tempo mais total O emendo não sou eu só O mundo somos nós e os outros E quando a minha literatura transborda a minha identidade é arma de luta e deve ser ação de interferir no mundo total para que se conquiste então o mundo universal Escrever então é viver Escrever assim é lutar Literatura e identidade Princípio e fim Transformador Dinâmico Nunca estático para que além da defesa de mim me reconheça sempre que sou eu a partir e nós também para a desalienação do outro até que um dia virá e os portos do mundo sejam portos de todo o mundo Até lá não se espantem É quase natural que eu escreva também ódio por amor ao amor São Paulo 23051985 RUI Manuel Eu e o outro O Invasor ou Em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto In MEDINA Cremilda Sonha Mamana África São Paulo Epopéia 1987 12 Sendas de Sonho e Beleza Algumas Reflexões Sobre a Poesia Angolana Hoje Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Secco UFRJ Transgressão errância desafio eroticidade metalinguagem e desconstrução são alguns dos vetores da produção poética angolana das últimas décadas A nova poiesis é tecida por perplexidades e incertezas Uma heterogeneidade de tendências reflete a dispersão dessa poesia que oscila entre a revitalização de formas orais da tradição e a ruptura eou recriação em relação a alguns dos procedimentos literários adotados por gerações anteriores A despeito do desencanto frente ao social prenhe de contradições muitos poetas continuam a escrever versos os quais na maioria das vezes se oferecem como instâncias críticas de reflexão acerca das amarguras do povo angolano É pois como resistência que a poesia sobrevive em Angola ora trilhando os caminhos da sátira e da paródia ora os do erotismo e metalinguagem ora os dos mitos e sonhos Estes sempre nutriram o sistema literário angolano e nos tempos presentes embora esgarçados ainda constituem uma espécie de energia subterrânea que impulsiona a imaginação criadora combatendo assim o imobilismo cultural O labor literário atual tem raízes na produção lírica dos anos 70 que voltada para a redescoberta ética e estética do poder da palavra poética foi designada por Luís Kandjimbo como geração do silêncio tendose caracterizado pelo consciência crítica em relação ao ato de escrever ou seja por um mergulho abissal nas entranhas da própria poesia em busca de procedimentos inovadores O poema passou a ser desse modo o lugar do encontro do poeta consigo mesmo o local portanto da descoberta existencial política e literária Nesse sentido deu passagem à poética dos anos 80 que radicalizou em vários aspectos as conquistas estéticas da década de 70 diferenciandose desta contudo por não adotar a práxis do silêncio A poesia dos anos 80 definida por Kandjimbo como geração das incertezas e também a dos anos 90 têm como traço constante a temática da decepção e da angústia diante da situação de Angola que ainda não resolveu completamente a questão da fome e da miséria As dúvidas em relação ao futuro interceptam as possibilidades entreabertas pelos ideais literários dos anos 60 e a poesia se interioriza não se atendo explicitamente às questões sociais Ela inscreve a demiurgia do Homem em todas as suas dimensões engendrando um subsistema literário com signos do tecido social mas também de inquirição cognoscitiva Entre os poetas angolanos contemporâneos destacamos João Maimona João Melo José Luís Mendonça Paula Tavares Lopito Feijó Frederico Ningi Maria Amélia Dalomba Maria Alexandre Dáskalos Conceição Cristovão Fernando Kafukeno Luís Kandjimbo entre outros Em grande parte dessa poesia escrita nas últimas décadas os sonhos se encontram envoltos em uma visão crepuscular Para Maimona por exemplo a trajetória da liberdade foi obliterada pela corrupção e as utopias em Angola foram asfixiadas pelos sofrimentos De quem são as nuvens em ruas de sonho De quem são os desertos que anunciam lágrimas Os poemas de Maimona produzidos nos anos 80 e 90 optam pelas trilhas da alegoria operando com signos de ruína Esqueletos enchem as mãos do poeta São imagens da morte que ocupou o lugar dos sonhos Há todavia nesses textos apesar da 13 desilusão da dor e da solidão a procura de elementos cósmicos o ar o vento as aves as abelhas metáforas do tecido aéreo da poesia Com a paz em Angola em abril de 2002 verificamse mutações na dicção lírica de diversos poetas No livro Lugar e Origem da Beleza de João Maimona editado em Luanda em 2003 pelo Editorial Kilombelombe não obstante a presença da memória dolorida do outrora plasmase um fecundo e criativo diálogo entre a pintura de Van e os poemas da referida obra A plasticidade dos ideogramas pictóricos com imagens de pássaros contracena com a leveza e a sonoridade dos versos com a multidão de traços de esperança com simbólicas sepulturas de homens que embalavam prolongadíssimas tempestades e de quem teria desencadeado incursões contra pacifícas florestas crescia a toponímia das mutações saudando o lugar e a origem da beleza O esboço de uma crescente esperança se plasma ainda tênue no presente mesclandose aos fios interrompidos de um pretérito que imperfeito tenta por sua condição inconclusa reatar as malhas de um passado diversas vezes entrecortado por uma história de sangue e de dor as últimas horas alteraram a história e o dizer obsessivo da imaginação substância das configurações e alma interior do edifício No pretérito imperfeito o verbo dilatava a fertilidade do barco Por entre o despertar da paz e a busca do lugar estético da beleza a poética de João Maimona no entanto ainda cumpre a triste tarefa de exorcizar a memória de sentidas e profundas feridas secular diálogo com uma cicatriz trama de lágrimas na ausência de canções e letras constantes Também os versos de José Luís Mendonça apresentam uma visão melancólica embora sua poiesis procure em última instância acordar a alva alegoria da aurora dos sonhos e do amanhecer da poesia A tempestade arrancou os ventos do meu peito A pele de leão do meu coração faísca Nos subúrbios da noite De quem são estes sonhos perfilados no mural dos meus testículos Essas imagens indicam a perda dos ventos da imaginação frente à noite que se abateu sobre o eupoético cujos sonhos contudo sob a forma de desejos se guardaram nos próprios testículos local conotado que remete à produção representado por isso uma forma de resistência Esse universo sombrio que envolveu Angola e suas cidades também foi denunciado por poemas de Costa Andrade em que Luanda humanizada deu as costas a ela própria 14 Também há sombras e tugúrios indiferenças e murmúrios solidões que matam Paula Tavares em Dizesme coisas amargas como os frutos valendose de contundente onirismo expressa de modo alegórico os absurdos do contexto angolano de guerra no final dos anos 90 e princípio dos 2000 No meu sonho nascem tartarugas de olhos de anjos São elas que voam e eles que resolvem problemas matemáticos Outras vozes poéticas femininas também se revelaram no decorrer dos anos 80 e 90 Ana de Santana Maria Alexandre Dáskalos Amélia Dalomba entre outros nomes Na poesia dessas autoras há a reivindicação do direito de a mulher ser correspondida nos prazeres sexuais desfrutando da própria sexualidade Os sujeitos líricos confessam saudades dos tempos livres onde podiam admirar os flamingos e as andorinhas alegorias dos antigos sonhos da imaginação e dos desejos recalcados Destacamos um poema de Ana de Santana pois em sua poesia o sonho é temática recorrente aparecendo inclusive no título de seu livro Neste o ato de sonhar se institui como lugar da metapoesia espaço sempre possível de desafio e transgressão da palavra poética que soa por vezes sonambulizada em meio a um universo de gritos e lágrimas Reinvento o sonho e curvome para apanhar o teu retrato caído Ao mesmo tempo um imenso nevoeiro para lá de nós e um grito de mulher na noite um choro de criança para além da parede chamando para a normalidade Outro poeta representativo da contemporânea poesia de Angola é João Melo que vem publicando desde os anos 80 O erotismo em sua poiesis se fez arma de resistência para enfrentar medos e dores do passado e do presente povoados por fantasmas pesadelos gemidos Poeta da paixão elegeu o amor como forma de se manter vivo e poder sonhar Estes fantasmas antigos Estas palavras Estes gemidos selvagens eu os arranco de ti amor um segundo apenas um segundo antes da violenta explosão destes tambores medonhos e belos que eu não sei quem solta 15 Poetas como Lopito Feijó e Frederico Ningi cujos discursos romperam iconoclasticamente com cânones estéticos tradicionais recorrendo a metáforas dissonantes corporizações plásticas de palavras e experimentalismos visuais assumiram claramente um viés paródico transgressor e irreverente através do qual apontaram para os complexos pesadelos sociais Frederico Ningi iconicamente se afirmou com uma poética tecida por palavras imagens e símbolos gráficos Sua poesia dissonante e agressiva por intermédio de construções imagéticas surreais buscou advertir que os sonhos e a esperança nas últimas décadas em Angola estavam morrendo sob o peso da corrupção e da guerra Também Lopito Feijó foi autor de uma poiesis sorumbática que se erigiu como crítica violenta ao contexto político de Angola do fim dos anos 90 e início dos 2000 Conotações eróticas entretanto se mantiveram em seus poemas como frágeis possibilidades de não deixarem que os sonhos e os desejos viessem a morrer totalmente Herdeira de conquistas anteriores como por exemplo a do trabalho de intensificação linguística e estética que caracterizou a poesia dos anos 70 e 80 encontramos entre outras no panorama literário angolano dos 90 a poética de Fernando Kafukeno Seu lirismo exacerba o exercício do aproveitamento das potencialidades intrínsecas da língua primando contudo por uma economia capaz de desbastar o verbo poético de excessos e através de uma contundência visual desvelar uma Angola em que os sentidos foram anestesiados o infinito cego háde na penumbra pedalar o surdo ocaso Embora esse poema aponte para o ocaso e a penumbra outro traço se faz recorrente na poiesis de Kafukeno o erotismo sensorial que transforma seus versos em viagem de reflexão e desejo de novos sonhos Estes então se instituem como agentes de manutenção e sobrevivência do prazer poético esta viagem de sonho sabeme à sandálias de couro do túnel que te reveste o prazer na descarga da espada A imagem das sandálias de couro metáfora da imaginação e a contundência da espada rasgando a superfície das palavras em descargas de prazer provam que a despeito do desencanto atual a viagem da poesia ainda é possível Esta conforme José Luís Mendonça é o que brota a raiz e o que mexe na mais obscura sinfonia de cada grão de poeira Na maior parte da produção poética dos anos 90 observamos uma tônica a de que os sonhos foram adiados em razão da catastrófica realidade do país Conceição Cristóvão por exemplo expressou bem isso no poema Apocalipse II turva claridade sonho e realidade adiados da criança é tênue o sorriso 16 precocemente envelhecido ao redor é áspero e perpétuo o ar e meu corpo térreo e estático só o gume das palavras elípticas preenche o abismo do silêncio A crença no gume das palavras e na raiz da própria poesia transferiram os sonhos para o universo dos poemas o que fez com que a literatura e as artes em geral se tivessem constituído como locais privilegiados de resistências segundo versos de João Tala transcritos a seguir raízes da eterna palavra a semente o tempo é a palavra que amadurece o fruto a seiva é um animal que floresce em busca do pássaro inatingível Mostramse frequentes entre os representantes da poesia angolana dos anos 90 as imagens de pássaros como por exemplo nos seguintes versos do poeta Ricardo Manuel onde o eulírico alerta para a perda da liberdade em Angola Gaivotas de asas cortadas e castelos desmoronados à espera da consumação do amor é o que somos Povoam também as obras dos poetas desse período andorinhas flamingos e outras aves geralmente conotando o vôo dos sonhos e da poesia antídotos às distopias que dominam a sociedade angolana desse período como revela o poema a seguir A aura da saudade idade do tempo envolve o vazio No cio O auge da sensação encoberta descobre no drama do destino O pino de uma andorinha piando poesia O cio poético muitas vezes se instituiu entre os poetas dos anos 80 e 90 como um frequente elemento de combate ao tédio provocado pela devastação da pátria Também na poesia de António Panguila esse erotismo se expressou pela tesão que a par do clima de angústia e amargura não deixou de perseguir a foz dos sonhos esta tesão que me persegue háde sufocar meu inocente sangue se as vozes do céu radiante 17 não excitarem as lágrimas de meus poros a encontrar a foz do sonho para capitalizar a desgraça a esgravatar a terra queimada John Bella jovem poeta oriundo das Brigadas Jovens de Literatura elegeu a estação da seca chamada kixibu ocasião em que o cereal masangw baloiçava esfomeado Focalizando o clã de Ngombe denunciou a miséria dos povos pastores de Angola vítimas também das guerras que arrasaram o interior do país Em versos que mesclam o português com palavras de línguas de etnias angolanas apontou para o vazio circundante embora ainda restassem como esperança o sonho e a chuva O vácuo embebido no sonho daurora nomes marcados com a cor da chuva neste clã oh Ngombe masangw baloiça esfomeado no mel do pote há kasumuna e os restos que o Cágado comeu gado ingeriu sementes cujas matérias fecais produziram kibibu Muitas vozes da poesia angolana dos anos 90 refletiram acerca desse malestar ante o estado de penúria social vivido por Angola Grande parte dos poetas advertiu para a atmosfera sufocante de melancolia como demonstram por exemplo os versos de Rui Augusto Retalhos de frustrações de horizontes fechados aquém das promessas Não obstante a falta de perspectivas em relação ao social nos anos 90 em Angola observamos que a poesia dessa fase nunca deixou de se oferecer como força geradora de utopia pois os poetas continuaram a crer no poder transformador da linguagem poética sonhando segundo Adriano Botelho de Vasconcelos com um lugar à passagem da lua que virá fecundar o valor da palavra Também as produções líricas posteriores à paz firmada em Angola em abril de 2002 almejam esse lugar João Maimona se impõe como intérprete da beleza Em sua poesia a palavra se encontra em ressurreição permanente em diálogo intersemiótico com telas de Van conforme apontou Jorge Macedo no prefácio a essa obra Paula Tavares em Exvotos publicado em 2003 percorre os marcos geodésicos da memória Seus poemas desse livro efetuam uma cartografia do sagrado angolano recriando cenas das tradições que se mantiveram esparsas sob os cacos votivos de inúmeras promessas e exvotos formulados no decorrer dos séculos Exvotos se constrói assim como labiríntica e religiosa religiosa no sentido etimológico de religação cósmica com as origens viagem pela história à procura da miragem de uma terra a dar à luz luas de prata Outra significativa voz do mais recente lirismo angolano é Abreu Paxe autor de A chave no repouso da porta Prêmio António Jacinto de Poesia 2003 cujos poemas 18 pressagiam importantes mudanças para o contexto político angolano dos próximos anos O eulírico com a serenidade de quem tem na mãe a chave da porta sabe que esta não tardará a se abrir O poeta então se torna arauto da sonhada harmonia O luar descia orgânico luas subiam as épocas nasciam face os textos cultivados Encerrando nossas reflexões observamos que os temas do amor e do direito à fantasia e à imaginação começam a ser uma constante nas recentes produções literárias de Angola o que se verifica também em algumas obras de ficção como em Um anel de areia de Manuel Rui Outro viés que se delineia é o da correspondência entre as artes onde literatura e pintura dialogam como ocorre por exemplo no já mencionado Lugar e Origem da Beleza de João Maimona e nas estórias do livro Conchas e Búzios de Manuel Rui Monteiro onde as letras dos textos contracenam com telas do famoso pintor moçambicano Malangatana Valente Constatamos por fim que malgrado o hermetismo da linguagem do lirismo angolano dos últimos anos é recorrente neste a metáfora do luar cujas conotações assinalam o sonho o erotismo e a procura por parte dos poetas de inovadoras belezas estéticas capazes de iluminarem e renovarem as propostas estéticas que virão caracterizar este terceiro milênio Referências Bibliográficas KANDJIMBO Luís A nova geração de poetas angolanos In Austral Revista de Bordo da TAAG No 22 Luanda outubro a dezembro de 1997 p 21 KANDJIMBO Luís A nova geração de poetas angolanos In Austral Revista de Bordo da TAAG No 22 Luanda outubro a dezembro de 1997 p 21 MATA Inocência A poesia de João Maimona o canto ao homem total ou a catarse dos lugarescomuns In Revista da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Lisboa 1993 no 155a série pp181188 MAIMONA João Idade das palavras Luanda INALD 1997 p 81 MAIMONA João Lugar e origem da beleza Luanda Ed Kilombelombe 2003 p 109 MAIMONA João Lugar e origem da beleza Luanda Ed Kilombelombe 2003 p 33 MAIMONA João Lugar e origem da beleza Luanda Ed Kilombelombe 2003 p 95 MENDONÇA José Luís Quero acordar a alba Luanda INALD 1997 p37 ANDRADE Fernando Costa Luanda poema em movimento marítimo Luanda Maiadouro 1997 p 29 TAVARES Paula Dizesme coisas amargas como os frutos Lisboa Caminho 2001 p18 SANTANA Ana de Sabores odores sonhos Luanda UEA 1985 p 47 MELO João Tanto amor Luanda UEA 1989 p 52 19 Kafukeno Fernando Sobre o grafite da ceraLuanda Kilombelombe 2000 p 35 Kafukeno Fernando Sobre o grafite da ceraLuanda Kilombelombe 2000 p 49 MENDONÇA José Luís Ngoma do negro metal Luanda Chá de Caxinde 2000 p 15 CRISTÓVÃO Conceição Amores elípticos entre o amor e a transparência Luanda Edição do Autor 1996 p 15 JALA João O gosto da sementeLuandaINIC Instituto Nacional das Indústrias Culturais 2000 Colecção A Letra 2a Série no 19 p 17 MANUEL Ricardo Bruxedos de amor Poesias eróticas Luanda Kilombelombe 1998 p29 GONÇALVES António Buscando o homem Antologia poética Luanda Kilombelombe 2000 p 65 PANGUILA António Amor mendigo Luanda Governo Provincial de Luanda 1997 p 5 BELLA John Panelas cozinharam madrugadasLuanda Ponto Um Indústria Gráfica Edição Comemorativa dos 25 Anos da Independência 2000 p36 AUGUSTO Rui O amor civil Luanda União Cooperativa Editora 1991 Colecção Lavra Oficina 92 p15 VASCONCELOS Adriano Botelho Abismos de silêncio Luanda União dos Escritores Angolanos ABV Editora 1996 p 40 TAVARES Paula Exvotos Lisboa Caminho 2003 p 9 TAVARES Paula Exvotos Lisboa Caminho 2003 p 41 PAXE Abreu A chave no repouso da porta Luanda INIC 2003 p 33 20 José Craveirinha e a busca pela palavra moçambicana Sílvio Renato Jorge O poeta José Craveirinha ganhador do Prêmio Camões de 1991 nasceu em 28 de maio de 1922 na cidade de Maputo antiga Lourenço Marques em Moçambique e faleceu em 06 de fevereiro de 2003 Filho de pai algarvio e mãe africana foi entretanto criado pela esposa oficial de seu pai que ao chegar à África o acolheu como filho Do contato inicial com sua verdadeira mãe permaneceu a aprendizagem da língua ronga fundamental como veremos mais tarde para a constituição de sua linguagem literária Estreitamente ligado às atividades políticas que deram origem ao processo de independência moçambicana pode ser considerado um dos principais articuladores da Frente de de Libertação Moçambicana FRELIMO tendo estado preso pela polícia política portuguesa PIDEDGS de 1965 a 1969 Jornalista trabalhou nos principais jornais de seu país Notícias O Brado Africano A Tribuna Notícias da Beira O Jornal e Voz de Moçambique e foi ainda o primeiro presidente da Associação dos Escritores Moçambicanos AEMO após a independência Tendo publicado inúmeros textos em jornais possui uma obra poética que apesar de pouco divulgada se levarmos em consideração o número de livros trazidos a público e o fato de o poeta preferir guardar seus textos na gaveta foi traduzida para diversos idiomas Merecem destaque as seguintes obras Chigubo publicado inicialmente em 1964 pela Casa do Estudante do Império CEI e sem a interferência do autor reúne treze poemas A segunda edição rebatizada Xigubo é de 1980 e apresenta um maior número de textos vinte e um ao todo É esta a edição considerada oficial pelo poeta Cantico a un dio di catrame Cântico a um deus de alcatrão edição organizada por Joyce Lusso em 1966 Bilíngue também foi feita sem a intervenção do autor e publicada na Itália Karingana ua karingana edição na qual o processo de escolha dos poemas também foi levado adiante inicialmente pelo editor em 1974 teve sua revisão feita pelo autor em 1982 Cela 1 livro de 1980 reúne textos que se referem à experiência do autor na prisão Maria publicado em 1988 reúne poemas dedicados à sua esposa já falecida Obra poética publicada pela Universidade Eduardo Mondlane em setembro de 2002 reúne sua poesia publicada em livro e inéditos cedidos pela família Traz ainda um CD com alguns poemas recitados por Calane da Silva Anabela Adrianopoulos e Jaime Santos Estes livros ainda que de forma parcelar destacam as principais tendências de sua obra que inicialmente marcada pela influência do neorealismo busca descrever através da denúncia a exploração colonial do negro africano e o processo de degradação a que foi 21 submetido Assim a negritude a moçambicanidade e a luta pela libertação nacional são questões constantemente representadas em seus poemas revelando uma indagação profunda acerca do que é escrever em Moçambique subvertendo a língua portuguesa para transformála em instrumento de luta anticolonialista Um bom ponto de partida para pensarmos essas questões é o poema Grito negro em que lemos Eu sou carvão E tu arrancasme brutalmente do chão E fazesme tua alma Patrão Eu sou carvão E tu acendesme patrão Para te servir eternamente como força motriz mas eternamente não Patrão Eu sou carvão E tenho que arder sim E queimar tudo com a força da minha combustão Eu sou carvão Tenho que arder na exploração Arder até às cinzas da maldição Arder vivo como alcatrão meu Irmão Até não ser mais tua mina Patrão Eu sou carvão Tenho que arder E queimar tudo com o fogo da minha combustão Sim Eu serei o teu carvão Patrão Há nesse poema a voz de uma revolta pontuada pela consciência do processo colonial português Tal processo apoiado na degradação moral do negro e de sua cultura postulava a superioridade do branco como elemento fundador de seu direito à posse Diante de um pensamento imperialista profundamente marcado pelo etnocentrismo podemos afirmar que o poema de Craveirinha busca subrepticiamente não apenas denunciar o sofrimento do trabalhador explorado mas ainda investir na valorização do negro através de índices que o revelam como o único instrumento capaz de reescrever a sua própria história O duplo jogo desenhado a partir das palavras patrão e carvão indica que para suplantar o esforço de aniquilamento empreendido pelo patrão colonizador o homem negro precisa queimarse acender o fogo de sua combustão e então agir efetivamente como gerador de uma nova chama a chama da liberdade 22 A utilização de versos curtos que inicialmente parecem referendar a imagem colonialista e reificadora do negro como carvão ou seja como força motriz animalizada Eu sou carvão E tu acendesme patrão Para te servir eternamente como força motriz mas que logo se vê apontam para a revolta e o desejo de luta mas eternamente não ou ainda Eu sou carvão E tenho que arder sim E queimar tudo com a força da minha combustão pontuam o trabalho rítmico perseguido pelo poeta É este trabalho que como não podemos deixar de destacar acaba por desenhar a sua busca por uma dicção própria pautada principalmente pelo aflorar dos ritmos africanos As mesmas questões políticas estão por trás ainda do poema Inclandestinidade O desvelamento da língua e a reflexão sobre o processo que delineia a imposição da cultura portuguesa afloram em seus versos através da referência a Camões a ao dia da raça escrito assim mesmo com minúsculas decompondo qualquer intenção de atribuirselhe superioridade estabelecendo uma leitura responsável por mostrar o quanto o desenvolvimento da raiz africana subversivamente irá clandestinizar o governo ultramarino português Eu jamais movi um dedo na clandestinidade Mas militante de facto sou Por acaso até nasci numa grande e próspera colônia Depus flores na estátua do Sr António Enes recitei versos de Camões num tal dia da raça e cheguei a cantar uma marcha chamada A Portuguesa Cresci Minhas raízes também cresceram e torneime um subversivo na genuína ilegalidade Foi assim que eu subversivamente clandestinizei o governo ultramarino português Foi assim Com isso além do caráter épico que sua poesia adquire ao configurarse como a expressão da gesta do povo moçambicano pela liberdade o texto produzido pelo poeta irá se destacar de forma visível pelo modo como busca posicionarse diante da língua portuguesa Instrumento de cultura e consequentemente sinal da presença colonial do homem português na África o uso da língua é com certeza a questão fundamental a ser pensada por uma escrita vincadamente dessacralizadora por que não dizemos contestadora A grande pergunta em relação à qual José Craveirinha parece ter sido instado a posicionarse é como ser poeta moçambicano em língua portuguesa Ou melhor como cantar o desejo de autonomia da nova pátria a ser desenhada talvez fosse melhor dizer não o desejo de mas o direito à utilizando a língua do colonizador A solução sábia e estimulante encontrada por este homem da palavra parece ter sido a recuperação antropofágica da língua pela sua reconstrução pelo diálogo com o 23 ronga O português subvertido e redescoberto será portanto em muitos de seus poemas entretecido com interferências do vocabulário e da estrutura dessa língua moçambicana transformandose em representação intencional de toda a carga cultural africana Assim se por um lado ele mantém os laços inevitáveis com a cultura do Ocidente por outro utiliza sons e ritmos próprios enfatizando o caráter oral de seu discurso e da literatura que ajuda a criar Em Karingana ua karigana talvez sua obra mais representativa estas questões afloram de forma sistemática O título do livro é uma atualização moçambicana da fórmula tradicionalmente utilizada para introduzir as narrativas orais o que de forma aproximada poderia corresponder ao uso europeu do era uma vez e que indica o caráter ritualístico da narrativa como instrumento de manutenção de valores ancestrais Nele encontramos uma interrogação ativa dos valores que compõem a identidade de Moçambique as suas origens e o peso de sua herança cultural Esta interrogação contudo não se limita à representação da cena africana mas mais do que isso irá também passear pela descoberta de possibilidades linguísticas e sonoras capazes de compor um painel mais ágil e consistente do mundo a ser representado O poema Quero ser tambor atualiza visivelmente os problemas aqui levantados Texto de rara expressão capaz de associar ritmo e palavra na composição daquilo que poderíamos chamar de uma voz moçambicana seus versos elaboram por meio da repetição anafórica e da reiteração constante de palavras no final dos versos a transformação da voz do poeta no som do tambor erguendoa como um canto de liberdade Tambor está velho de gritar ó velho Deus dos homens deixame ser tambor corpo e alma só tambor só tambor gritando na noite quente dos trópicos E nem flor nascida no mato do desespero Nem rio correndo para o mar do desespero Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero Nem nada Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra Eu Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala Só tambor velho de sangrar no batuque do meu povo Só tambor perdido na escuridão da noite perdida Ó velho Deus dos homens eu quero ser tambor e nem rio e nem flor e nem zagaia por enquanto 24 e nem mesmo poesia Só tambor ecoando a canção da força e da vida só tambor noite e dia dia e noite só tambor até à consumação da grande festa do batuque Oh velho Deus dos homens deixame ser tambor só tambor O tambor instrumento de convocação ritualística para guerra e para festa é aqui retomado pelo seu poder de evocar a consciência dos traços ancestrais que compõem a identidade do poeta O desejo de transformar sua voz no som do instrumento é também o desejo de erguêla a um novo patamar e atribuirlhe os valores encontrados no tambor Suas palavras deixam de ser rio e flor o espaço poético por excelência do Ocidente e nem mesmo zagaia por enquanto para realizarse como convocação da ancestralidade como instrumento de integração e conscientização do homem africano Se aqui a palavra ronga insinuase de modo tímido porém marcante em Tchaiam estes versos tchaiam ela invade significativamente a língua portuguesa alterando o sistema linguístico do colonizador Trazendo em seu título a alusão aos sons percutidos já que tchaia significa bater ou fazer soar de forma próxima a Quero ser tambor realiza já aí uma busca de legitimação do que seria uma nova língua literária nacional contrapondoa àquela que lhe serve de base a do colonizador português e que como tal deve ser rompida De certa forma o som do batuque recuperado pelos dois poemas o que lemos acima e o que iremos ler a seguir alargam o campo de comunicação dessa literatura recuperando o sonho possível de ultrapassagem da lactofome histórica dos filhos de Moçambique Vamos no prelúdio das aleluias pressentir o mundo no tenso ritual da falange concentricamente humedecida nos mornos imos teus Maria docemente E violas às dedadas de amor tchaiam na insubornável capulana da noite e as polpas dos dedos em puros viceversa tchaiam as melodias bantos no centro dos cajueiros florindo a montanha Mas minhas violas de madeira de caixote minhas violas que tchaiam os instintos perfeitos no grande medo que nos tchaia as calças de caqui no delírio do esplendor dos remendos no ritmo tocado no componde destes versos atrás da sentinela que produz e reproduz na guarita própria a lactofome dos filhos 25 E na coesa ideologia pornográfica de um pão despido na luxúria dos dentes os poetas tchaiam com gosto os queixos da terra como quem tchaia ferro no ferro Mas é tudo ritmo dos dentes Maria que tchaiam nas panelas as insolentes românticas duas colheradas e meia de farinha A esta grande reflexão sobre a língua associase muitas vezes um processo de questionamento das fórmulas literárias tradicionais sejam aquelas que pertencem aos gêneros ocidentais sejam aquelas que se relacionam às formas discursivas da cultura africana Um exemplo disto já foi destacado ao comentarmos o título de Karingana ua karingana É necessário porém enfatizar uma série de releituras feitas com bastante propriedade dos modelos encontrados no percurso da literatura oral Este é o caso de muitas das suas criações que dialogando com a tradição da poesia panegírica dos povos bantu acabam por rever o modelo ocidental de cultura Citando Ana Mafalda Leite reconhecida especialista no trabalho poético do autor convém afirmar Esses poemas a poesia panegírica dos povos Bantu são uma das mais especializadas formas de poesia oral e segundo a descrição de R Finnegan situamse entre o épico e a ode sendo uma combinatória de narração exclamativa e de apóstrofe laudatória os poemas descrevem os mais variados assuntos desde episódios históricos a casos pessoais batalhas aventuras caçadas etc o seu tom é solene o estilo adulatório mas não foge apesar do elogio à crítica Vários poemas de José Craveirinha aponto aqui em especial para Manifesto Hino à minha terra Ode a uma carga incendiada num barco chamado Save podem lerse de perto na base formal e conteudística desta antiga espécie poética os outros guardarão essencialmente a tradição dessa combinatória entre o lírico e o narrativo assim como a sua função eminentemente social e ideológica LEITE 1998 p380 Por outro lado talvez seja eficaz destacar a primeira parte do livro anteriormente referido cujo título sintomaticamente é Fabulário e reúne poemas escritos entre 1945 e 1950 Recuperando a idéia de narrativa exemplar e propondo portanto um diálogo entre gêneros este conjunto de poemas irá refletir de forma aguda e muitas vezes irônica acerca da condição colonial apontando já para o processo de resgate cultural desenvolvido no restante da obra Dele lemos dois textos em que estas características se tornam substanciais O primeiro deles intitulase Fábula recuperando já a partir do título as relações que aqui estamos a perseguir Menino gordo comprou um balão e assoprou assoprou com força o balão amarelo Menino gordo assoprou assoprou 26 assoprou o balão inchou inchou e rebentou Meninos magros apanharam os restos e fizeram balãozinhos O segundo mais divulgado é intitulado Ninguém e encena o processo de apagamento que o colonizador impõe ao colonizado Andaimes até ao décimo andar do moderno edifício de betão armado O ritmo florestal dos ferros erguidos arquitectonicamente no ar e um transeunte curioso que pergunta Já caiu alguém dos andaimes O pausado ronronar dos motores a óleos pesados e a tranquila resposta do senhor empreiteiro Ninguém Só dois pretos Em Fábula dois processos complementares são encenados O primeiro deles é a denúncia da subalternização do colonizado frente ao colonizador O jogo entre o menino gordo metáfora deste e os meninos magros metáfora daquele recupera de forma palpável a imagem do distanciamento existente entre as duas parcelas da sociedade colonial enfatizando uma busca pela sobrevivência que se constrói a partir dos restos a que se tem acesso É o que se pode ver nos dois últimos versos do poema Já o segundo processo é a busca de reconstituição da nação através dos restos possíveis Das ruínas do Império excessivamente explorado o balão inchou inchou e rebentou surge a matéria prima para se estabelecer em marcos de uma nova era No poema Ninguém a ironia marcante da fala do senhor empreiteiro ao informar Ninguém Só dois pretos traz à tona as marcas do olhar imperialista que já havíamos enfatizado É curioso notarmos a freqüência com que nos textos de Craveirinha as palavras senhor e patrão e suas correspondentes adquirem um acento irônico diríamos até sarcástico capaz de desmascarar os traços de ódio e ressentimento elencados pelo poeta Nos dois casos os poemas atualizam estratégias próprias da narrativa o que reforça a busca de uma expressão lírica próxima à oralidade caráter fundamental na recuperação de uma literatura marcadamente africana Como afirmamos no início deste ensaio ao orientar seu processo poético para a demanda de uma linguagem apta a representar a individualização de sua cultura o poeta moçambicano elabora os alicerces de um novo modo de dizer Moçambique A sua poesia constantemente extensa e de cunho 27 narrativo preocupada com uma temática que aponta para os problemas gerados pela dominação e para os questionamentos em torno dos processos de identidade nacional é com certeza um dos principais marcos no surgimento do que reconhecemos como Literatura Moçambicana Referências Bibliográficas ABDALA JR Benjamin Antônio Jacinto José Craveirinha Solano Trindade o sonho diurno de uma poética popular In Anais do I Encontro de Professores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa Niterói EdUFF 1995 p 7786 CHABAL Patrick Vozes moçambicanas Literatura e Nacionalidade Lisboa Veja 1994 CRAVEIRINHA José Cela 1 Lisboa Ed 70 1980 Karingana ua karingana Lisboa Ed 70 1982 Maria Lisboa Alac 1988 Xigubo Lisboa Ed 70 1980 LARANJEIRA Pires Literaturas africanas de expressão portuguesa Lisboa Universidade Aberta 1995 LEITE Ana Mafalda Permanência e transformação das formas tradicionais na poesia de José Craveirinha In Anais do V Congresso da AIL Oxford 1998 p 377384 SAID Edward W Cultura e imperialismo São Paulo Cia das Letras 1995 SILVEIRA Jorge Fernandes da José Craveirinha impoética poesia In Anais do I Encontro de Professores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa Niterói EdUFF 1995 p185194 Jorge Sílvio Renato In África Brasil letras em laços São Paulo Yendis 2006 28 Insularidade na literatura caboverdiana Dina Salústio Qualquer tentativa de abordar a literatura Caboverdiana implica entrar por opção ou descuido no cenário que moldou e marcou Cabo verde e obriga necessariamente a penetrar na intimidade das duas mulheres e dos seus homens modelos traídos pela transparência opaca das palavras companheiras constantes de qualquer outra visão surgenos o mar enorme e sem fim ditando o rumo traçando rotas revelando distâncias marcando o silêncio Imposições que vão definir as relações entre a ilha e o ilhéu e que no conjunto e no desenrolar se pode chamar de insularidade a qual o escritor se entrega por razões de sobrevivência existencial emocional e profissional Se o aspecto existencial ou afectivo são dados pacíficos da afirmação a sobrevivência profissional poderá ser contestada embora pense que apesar da escrita não ser um modo de ganhar a vida o ilhéu exerciaa como um modo de viver a vida com extremo engajamento não se dedicando exclusivamente a ela geralmente por impossibilidade de escolha Jorge Barbosa o poeta que escolhemos para ilustrar o tema escreve Era pra eu Ser panfletário Não o fui O magnífico e heroico destino que eu imaginava tão liricamente ser o meu veneramno afinal a prudência o temor a família venceuo este outro real e melancólico destino burocrático E esta incapacidade de escolha vaise juntar a uma série de outras mais como o ter de conviver com um espaço sempre igual e parado Rochedo que em encalhou na baía forçando a necessidade de explorar até à exaustão o realismo do cenário envolvente com os seus variados contornos e roupagens Mas realismo para o ilhéu é o que ele vê o que projecta e o que fantasia nos cheiros do mar que o isola do resto do mundo e em espasmos de angústia ou em tons de inconcebível alegria curte a espera e em atitude quase mítica entregase desarmado e só à insularidade relação e sentimentos que constituem um autêntico maná matéria prima para a escrita Utilização que de forma nenhuma faz diminuir o impacto da criatividade antes justifica a violenta e desassombrada entrega ao temário No poema Dia Jorge Barbosa escreve Oito horas Começou assim o dia Burocrático Irremediável Cifras caindo arrumadas Indiferentes sobre o livro aberto Dentro da Baía o pequeno veleiro bordejando Meio dia Tem doze anos apenas a pretinha que vende bolos ali à esquina sorrindo Finalmente fundeou o pequeno veleiro Dezassete horas A tarde parada a tarde morrendo O pequeno veleiro balouçando Meia noite e esta ilusão de que a luzita do veleiro acena por mim no meio do escuro da baía Debruçome sonolento sobre o meu poema Acabou assim o dia Irremediável Tentando perceber nessa leitura o sentimento que nos faz o olhar longínquo e o sorriso distante já cheguei a pensar que o recurso à insularidade poderia ser uma forma do escritor se vingar dela que ousou marcálo roubandolhe inclusivamente os espaços 29 abertos e reais que proporcionariam outras vidas outros meios outros estilos De facto abrindo em público as dores as frustrações dos ilhéus gritando a raiva do povo traído abandonado no meio da vida eu penso que é vingança do poetailhéuescritor culpabilizar ou pelo menos apontar o culpado da situação existente Mesmo que ao diabo se chame belo Mas por tudo que se possa dizer sem dúvida nenhuma Há uma relação de amor entre o ilhéuescritorpoeta e o cenário que ele percorre Há o feitiço que foge do mar para o seu todo e o deixa frágil ondeante indeciso entre o mar e carne nos chamados dos oceanos que não acabam nunca e que Jorge Barbosa traduz nestes versos o drama do mar o desassossego do mar sempre sempre dentro de nós Entrando nessa relação marcada também pelo sentimento de injustiça que o ilhéu experimenta face ao isolamento admiro a força que os escritoresilhéus encontraram para contornar uma situação à partida humilhante porque castradora de destinos usurpadora de direitos falseadora de chamadas que não deixam os desejos adormecer para explorandoa terem produzido obras de sonho E é com uma espécie de prazer que se dá o encontro com esse sentimento de fragilidade solidão e angústia alimentado pelas ondas e pelos gritos das noites que atinge o que mais fundo existe nos ilhéus os domina os limita deixandoos imperfeitos como pequeninos portos lhes diminuem o riso e as razões e os lançam à deriva sobre raízes soltas e frágeis roubadas de outras vidas Por isso eu penso que a literatura da insularidade teve ou tem o mérito de despertar a perversão do leitor contribuindo para a projecção desse conflito universal a todos os homens Escrita em tons de lamento que tem cativado a simpatia de muitos lados Outra vez a manifestação indubitável de perversão ou cinismo sagazmente camuflada Mas não é grave esse comportamento porque as perversões fazem parte da essência humana e o escritorilhéu terá naturalmente as dele Tem as dele Manuel Lopes amargo só sofrido assume o drama de ilhéu cercado pelo mar que ficou em terra sonhando espaços viagens e mundos E ficou mudo ouvindo o vento a cantar na penedia olhando as ondas que não param nunca o horizonte sempre igual e este sulco branco que umas hélices deixaram no mar onde se desfazem os últimos esgares duma longa ironia e no extremo do qual flutua ainda o perfil dum vapor que não me quis levar Receio de perder as amarras as únicas que o ligam a qualquer coisa mesmo que o impeçam de procurar outros laços Ambivalência ambiquerência Evasão que lembra a partida e o regresso os sonhos mais sonhados de qualquer ilhéu que de tanto sonhar às vezes parece ele mesmo um sonho ambulante pelos cais de ver partir pelos portos que o não levam Pelos barcos que o deixaram com os chamadospromessasdefelicidadesempreadiada Em Rua morta Barbosa escuta o chamado de todos os dias trazido pelo vento dos lados do mar Passou agora no céu uma estrela cadente No fim da rua soam e ressoam as passadas ritmadas de um polícia No escuro da esquina adivinho um soldado abraçado a uma mulher Sinto chamar mais além talvez por mim pst Esse apelo que sai da noite não sei bem se vem de muito longe Chega dos lados do mar Um silvo de sereia E 30 passa a cambalear o vulto de um bêbado qualquer Oiço ainda chamar timidamente o mesmo apelo insistente pssst E o fantasma de partida transformase em bússola de asas seguras que leva o escritorpoeta ilhéu só por esse mundo fora por mares e ares fugindo das ilhas dos muros gigantes das fronteiras húmidas dos nãoacontecimentos do silêncio para o trazer de volta infeliz feliz rico pobre senhor escravo do seu destino passageiro de uma viagem que muitas vezes nem um minuto durou E nos traz a realidade que nos largou no mar faluchos de tinta à mercê das calmarias das tempestades e de outros iguais faluchos É por isso também que pela escrita dos ilhéus perpassa esse sentimento massado na solidão que mesmo motivo de canto carrega no final de cada letra ainda e sempre o sentido da condenação ao mar à ausência à prisão E adivinho na escrita restos de amargura de paixão contida enfim de masoquismo Sempre sempre o mar dentro de nós que não nos leva e não nos deixa partir E Oswaldo Alcântara fazlhe o elogio no poema Mar És estrela e única vida Vida que sobe das esquinas ocultas no mar sem águas com águas sem sal que vêm a diluirse lá do fundo das distâncias mágicas Mar tu és o que fica Evasão partidas e regressos necessariamente juntos determinando a sempre presente nostalgia máscara onde se esconde a culpa pelo desejo visceral de abandonar as ilhas levantar âncoras erguer o corpo e ombrear com todos os homens e as mulheres livres do mundo Outros humanos Porque no ilhéu o sentimento gregário é muito mais do que a necessidade de se juntar em grupo para se justificar gente Mais do que isso é a necessidade vital de conhecer de se informar de ver de falar de perguntar e de viver Em todas as línguas e por todos os mundos Jorge Barbosa na Carta para Manuel Bandeira poeta brasileiro dános conta dessa ânsia de interlocutores ainda que apenas imaginados Nunca li nenhum dos teus livros Apenas já li a Estrela da Manhã e alguns poemas teus Nem te conheço porque a distância é imensa e os planos das minhas viagens nunca passaram de sonho e de versos Aqui onde estou no outro lado do mesmo mar tu me preocupas Manuel Bandeira meu irmão atlântico E deparamonos com outro recurso do ilhéu enquanto ser modelador da palavra que é a representação onírica da realidade que investe como forma possível de ultrapassar o quotidiano de ousadias curtas que o provocam o inspiram e o modelam envolto na clausura de um mar que não suspende o rugido mesmo quando é urgente ouvir o chamado de outros mares em manifestações quase esquizofrênicas de esperança que chegue a libertação de si mesmo das ondas das limitações da prisão que é a ilha Vemos então o ilhéuescritorpoeta imaginando fugas arquitetando navios fantasiando cidades ousandose no mundo Vêmolo inacabado com as ilhas inacabadas expondose em versos que contudo não conseguem redimilo do seu destino islenho O leitor percebe que há outros homens que não conseguiram soltar as amarras Aguinaldo Brito Fonseca em Herança conta com um pouco da historia que marcou e que de algum modo influenciou todos os ilhéusescritores e que lhes dá a dimensão da procura a insatisfação de raízes prisões eleitas 31 O meu avô escravo legoume estas ilhas incompletas este mar e este céu As ilhas por quererem ser navios ficaram naufragadas entre mar e céu Agora aqui vivo eu e aqui heide morrer Meus sonhos de asas desfeitas pelo sol da vida deslocamse como répteis sobre a areia quente e enroscamse raivosos no cordame petrificado na fragata das mil partidas frustradas Ah meu avô escravo como tu eu também estou encarcerado neste navio fantasma eternamente encalhado entre mar e céu Como tu também tenho a esmola do luar e por amante essa mulher de bruma universal fugaz que vai e vem passeando à beira mar ou cavalgando sobre o dorso das borrascas chamando chamando sempre na voz do vento e das ondas Então o escritor hipotético deus senhor dos mares e dos destinos mais a palavras esse brinquedo que vai e vem ao sabor dos sonhos que o não levam a lugar nenhum descrevem sítios postais contos fantásticos de vivências e dos desejos simples do homem comum este mais do que ninguém flagelado pela insularidade e esquecido por causa dela Em Nostalgia Jorge Barbosa dános a imagem desse sonho que se constrói de olhos abertos e coração suspenso Vejo às vezes os barcos passando E fico por instantes construindo fantasiando cidades terras distantes que apenas sei existirem por aquilo que se diz Fico mais triste pensando nessa Viagem que não fiz Incapaz de dominar as amarras líquidas que o cercam preso num todo previsível e constante o sinal que marca o ilhéuescritorpoeta de forma mais complexa é uma fragilidade enorme que o quase faz menino sem poder de decisão dependente pequena coisa E Pedro Corsino de Azevedo dramático em Terra Longe Aqui perdido distante das realidades que apenas sonhei cansado pela febre do mais além suponho minha mãe a embalarme eu pequenino zangado pelo sono que não vinha ai não montes tal cavalinho tal cavalinho vai terra longe terra longe tem gente gentio gente gentio come gente À doce toada meu sono caía de manso da boca de minha mãe cala cala meu menino terra longe tem gente gentio gente gentio come gente Depois vieram os anos e com eles tantas saudades Hoje lá no fundo gritam vai Mas a voz da minha mãe a gemer de mansinho cantigas de minha infância aconselha ao filho amado terralonge Tem gentegentio gentegentio come gente Terralonge Terralonge Oh mãe que me embalaste Oh meu querer bipartido Mas o ilhéuescritor precisa viver mesmo que o mar seja cada vez mais bravo Então procurar máscaras e ousar usálas é condição de sobrevivência impondose na literatura como um espaço de fugaequilíbrio E o sonho aparece como a única máscara capaz de devolver a dignidade ao ilhéu pelo poder de decidir do seu próprio destino Suprema liberdade Mesmo que pelo tempo suficiente de se dizer ou escrever um poema 32 Pelo tempo de se ler ou ouvir um poema O escritor Manuel Lopes no poema Poema de quem ficou Eu não te quero mal por este orgulho que tu trazes Por este ar de triunfo iluminado com que voltas Que teu irmão que ficou sonhou coisas maiores ainda mais belas que aquelas que conheceste Crispou as mãos à beiramar e teve saudades estranhas de terras estranhas com bosques com rios com outras montanhas bosques de névoa rios de prata montanhas de oiro que nunca viram teus olhos no mundo que percorreste E constroem barcos e partem por esse mundo fora numa escrita onde geme a impotência pelo ramerrão que os fustiga e apouca que nos fustiga e apouca imersos na solidão que não acaba porque o mar não deixa e a terra proíbe Viagens Viagens viagens que outro destino para a ilha para o ilhéuescritorpoeta O destino das ilhas marcado pelo mar que cada dia cada ano aumenta mais cada vez mais com ausências amigos que chegam e partem viajantes que mal atracam lembranças que não ficam portos que se fecham fronteiras que não se abrem O destino das ilhas que afora ao som de ameaças estridentes e histéricas em ondas trabalhadas a cores ou não chegam avisando que a terra longe apesar de tudo esta cada vez mais longe e tem gentegentio que come gente Gentes que as nossas mães já cantavam Ondas que gritam acordos leis e proibições e obrigam o ilhéu a ficar em terra na terra em condenação forçada a ter de ficar sonhando a viagem Jorge Barbosa em poema do mar Ai a cinta do mar que detém ímpetos ao nosso arrebatamento e insinua horizontes para lá do nosso isolamento Este convite de toda a hora que o mar nos faz para a evasão este desespero de querer partir e ter de ficar A insularidade essa camisa de forças que o tolhe os gestos e nos fecunda o peito em propostas de evasão que não nos facilita a viagem que nunca nos levará ao outro que mora ao lado no oceano irmão ou no fim do mundo criado pátria viciada de mil léguas De mil línguas também Tudo porque existe o mar que nos embala e nos leva e nos traz de viagens que não se fez E um dia definitivamente nos levará intocados pelos sonhos dos outros que não souberam de nós dos nossos medos de ir de não poder voltar de querer ir e ter de ficar Os ilhéus sempre eles de pedra e mar presos neste bocado de mundo divididos no desejo Outra vez Jorge Barbosa em O emigrante Quando eu puser os pés no vapor que me levará quando deitar os olhos para trás em derradeiro gesto de desprendimento não chorem por mim Levarei numa pequena mala entre a minha roupa amarrotada de emigrante todos os meus poemas todos os meus sonhos Levarei as minhas lágrimas comigo mas ninguém as verá porque as deixarei cair pelo caminho dentro do mar Levarei já nos olhos a miragem de outras paisagens que me esperam já no coração o bater forte de emoções que eu pressinto E se eu voltar Se voltar para a pobreza da nossa terra tal 33 como fui humilde e sem riquezas também não chorem por mim não tenham pena de mim Mas se eu trouxer esse ar de felicidade que fica a arder na chama de charutos caros que cintila em pedrarias de anéis vistosos se anuncia em risadas ruidosas e se garante na abundância das cifras bancárias então chorem por mim tenham pena de mim porque a pequena mala de emigrante que fui com os meus poemas os meus sonhos ficou esquecida com coisa inútil como peso inútil não sei em que parte do mundo As interrogações a insegurança os nossos sonhos Que é deles E os escritoresilhéus escondemse para acalmarem a sua impotência Há ainda as raízes que se perdem a nostalgia que dói O riso que tai o abraço recusado A realidade Nós e outra vez o mar sozinhos como no princípio dos tempos em vapor que nos leva aos portos dos outros à cultura dos outros à terra dos outros às línguas dos outros às riquezas dos outros aos sonhos dos outros O mesmo mar que nos traz geralmente à nossa mesma praia definitivamente sozinhos A literatura caboverdiana revela o caboverdiano ele próprio que só se compreende na insularidade Que o torna grande quando num falucho tecido com algas avança mar adentro à procura de espaços de ventos da aventura do espanto dorido ou não que marca o rosto na primeira viagem Há também outros faluchos mas esses não são convidados para aqui agora a não ser que tragam cartas dos parentes que ficaram dos amores que se foram e regressem cheios de emigrantes de volta às ilhas de onde não chegaram a partir De onde não deveriam ter partido A insularidade que me faz medrosa insegura e frágil e que traz consigo essa saudade companheira dos ilhéus limitados pelos mares pelos meios e pelos mitos sonhos filhos de cruzamentos penetrações violências soberanias sonhos de todos os portos do mundo de todas as cartas do mundo de todas as cartas do mundo Mas o ilhéu prisioneiro de si e do mar não viu outra solução que tentar roer as cordas que o prenderam rebentas as correrias os nós a indiferença dos deuses e dos seus filhos enfim resistir para não se confundir com as ondas sem fim com o céu vazio a sereia selvagem perdida no fundo com o Gongon da nossa infância E o escritorpoeta provoca a rotura com o sonhos enquanto máscara da impotência e formula uma proposta criativa para a libertação também desta insularidade que condena ao silencia perturba sufoca e desespera Ovídio Martins recusa a fuga do poema Anti evasão Pedirei suplicarei Chorarei Não vou para pasárgada Atirarmeei ao chão e prenderei nas mãos convulsas ervas e pedras de sangue Não vou para pasárgada Gritarei berrarei Matarei Não vou para pasárgada Pasárgada o paraíso renegado por Ovídio Martins e outros poetas que a partir de determinada altura insurgemse contra o destino e o fatalismo pequenos recusandoos e acusando raivosos o cruzar de braços e o olhar contemplativo sobre o mar aceite como parceiro na dança parada da vida sugerindo outros caminhos onde a rebeldia o inconformismo a arrogância e a insurreição deveriam juntarse para desafiar as ameaças assumir o comando dar volta às ondas A todas elas Mario Fonseca num poema seguro desafia 34 Mer de splendeur ô source suprême de grâce Mastu entendu Parle Brise Casse Mais estce silence O dernière chance Mais quaije fait Dit pensé Atelle capté ces pensés Que mon délire ma tout à Iheure dictés Desgraciado Que peuxtu faire pour te faire excuser E antes noutro poema Quando a vida nascer ele enuncia caminhos que já não indicam o mesmo mar as mesmas palavras os mesmos poemas para essas ilhas acidentalmente criadas perversamente ocupadas estupidamente planificadas Quando a vida nascer Rasgarei as grades Rasgarei os açaimes enterrarei a dor Gritarei bem alto a minha sede de viver Aqui soterrado no fim do mundo Prisioneiro do destino do mar Contemplo das grades da minha prisão o cenário habitual Azul rolante cemitério de ilusões caminho o interdito para o mar para a vida pujante adivinhada Além atrás do horizonte que se aproxima e afasta na miragem volante do sonho do dia a dia Terra somente terra Esperando a primeira manifestação máscula do homem para despertar a vida electrizante despedaçando o marasmo abrindo caminhos que não indicam o mar Terra somente terra Quando a vida nascer 35 Introdução à literatura de São Tomé e Príncipe Manuel Ferreira A evolução social de São Tomé e Príncipe teria sido paralela em muitos aspectos à de Cabo Verde Mas em meados do século XIX implantandose o sistema de monocultura a burguesia negra e mestiça vai ser violentamente substituída pelos monopólios portugueses o processo social do Arquipélago alterado e travada a miscigenação étnica e cultural Mesmo assim não podem deixar de ser considerados os efeitos do contacto de culturas A sua poesia de um modo geral exprime exatamente isso mas na essência é genuinamente africana A primeira obra literária de que se tem conhecimento relacionada com S Tomé e Príncipe é o modesto livrinho de poemas Equatoriaes 1896 do português António Almada Negreiros 18681939 que ali viveu muitos anos e terminou por falecer em França A última é a de um moderno poeta português crítico e professor universitário em Cardiff Alexandre Pinheiro Torres cujo título A Terra de meu pai 1972 nos fornece uma pista memorialismo bebido na ilha por artes superiores de criação literária metamorfoseada na ilha que todos éramos neste país solitário Sem uma revista literária sem uma atividade cultural própria sem uma imprensa significativa apesar do seu primeiro periódico O Equador ter sido fundado em 1869 com uma escolaridade mais do que carencial os reduzidos quadros literários do Arquipélago naturalmente só em Portugal encontraram o ambiente propício à revelação das suas potencialidades criadoras O primeiro caso acontece logo nos fins do século XIX com Caetano da Costa Alegre 18641890 Versos 1916 cuja obra foi deixada inédita desde o século passado Cabe aqui todavia uma referência particular ao teatro a que poderemos chamar popular pelas características e relevância que assume no arquipélago de S Tomé e Príncipe Tratase em especial de duas peças O tchiloli ou A tragédia do Marquês de Mântua e do Auto de Floripes de Carloto Magno mas com preferência para a primeira A segunda oriunda da tradição popular portuguesa e O tchiloli supõese ser o auto do dramaturgo português do século XVI de origem madeirense Baltasar Dias levado tudo leva a crer pelos colonos madeirenses na época da ocupação e povoamento Reapropriados pela população de S Tomé e do Príncipe estão profundamente institucionalizados no Arquipélago principalmente O tchiloli à mercê da actuação de vários grupos teatrais populares que continuadamente se dão à sua representação enriquecida por uma readaptação do texto e encenação cenografia e ilustração musical notáveis Parece ter sido um homem infeliz em Lisboa o autor de Versos Costa Alegre Tu tens horror de mim bem sei Aurora Tu és dia eu sou a noite espessa Aurora aqui é um ente humano e não um fenômeno cósmico A ambiguidade resolvese na leitura completa do poema Caetano da Costa Alegre utiliza este signo polissêmico com a intenção ao cabo de ele traduzir a cor branca És a luz eu sou a sombra pavorosa 36 Eu sou a tua antítese frisante A poesia de Caetano da Costa Alegre na quase totalidade funciona espartilhada num mecanismo antitético Exprime a situação desencantada do homem negro numa cidade europeia neste caso Lisboa Versos é porventura a mais acabada confissão que se conhece quiçá mesmo nas outras literaturas africanas de expressão europeia do negro alienado Costa Alegre não se dando conta impossível diríamos no século XIX e no tempo cultural e político da área lusófona das contradições que o bloqueavam fazse cativo da sua condição de humilhado A minha cor é negra Indica luto e pena É luz que nos alegra A tua cor morena É negra a minha raça A tua raça é branca Como tenta Costa Alegre desbloquearse desta situação Porque negra é a sua raça todo ele é um defeito Como pode ele reencontrar o seu equilíbrio psíquico Alienado inconsciencializado batido no deserto social em que se movimenta então cura libertarse através de uma compensação Revoltandose Clamando contra a injustiça que o atinge Não Contrapondo atributos morais Ah pálida mulher se tu és bela Ama o belo também nesta aparência Amiúde às relacionações antinómicas vai buscálas ao Cosmo Só esplendor por fora Só trevas é no centro Ó sol és meu inverno Negro por fora eu tenho amor cá dentro Com efeito a sua poesia é a de um homem infelicitado Amiúde recorrendo à comparação e à antítese as figuras mais pertinentes são as que significam ou simbolizam as cores negro e branco Da erosão da sua alma transita para a obsessão infeliz lutando por restabelecer a sua dignidade no refúgio do apelo à evidência moralizante por norma em poemas líricosentimentais ou de amor Versos fica como o primeiro e único texto onde o problema da cor da pele atua como motivo e de uma forma obsessivamente dramática Consideramolo o caso mais evidente de negrismo da literatura africana de expressão portuguesa Alguns autores angolanos coevos de Costa Alegre deram também uma contribuição para este fenómeno mas percorrendo um espaço menos significativo A LÍRICA Em capítulo anterior assinalamos que Caetano da Costa Alegre poeta oitocentista sãotomense fora o primeiro em todo o espaço africano de língua portuguesa a dar ao tópico da cor um tratamento poético embora numa visão marcadamente alienatória constituindose como produtor de uma expressão de negrismo Curiosamente é também sãotomense o poeta que primeiro em língua portuguesa chamou a si a expressão da negritude Tratase de Francisco José Tenreiro 19211966 que irá assumir uma posição 37 inversa à de Costa Alegre Desalienado liberto dos mitos da inferioridade social identificase com a dor do homem negro e repõeno no quadro que lhe cabe da sabedoria universal Mãos mãos negras que em vós estou sentido Mãos pretas e sábias que nem inventaram a escrita nem a rosadosventos mas que da terra da árvore da água e da música das nuvens beberam as palavras dos corás dos quissanges e das timbila que é o mesmo dizer palavras telegrafadas e recebidas de coração em coração A sua voz é a voz real do homem africano uma voz que vem das origens e ressoa no tempo cantando nós não nascemos num dia sem sol e aí vamos com essa raça humilhada percorrendo a estrada da escravatura mas entretanto iluminada por um rio que vem correndo e cantando desde St Louis e Mississipi Obra poética de Francisco José Tenreiro 1967 p 100 Poeta bivalente Nasci do negro e do brancoe quem olhar para mimé como que se olhassepara um tabuleiro de xadrez na sua vocação para exprimir o mulato que ele era e o negro que ele era fundindose assim no poeta africano que ele foi guindase à categoria de poeta da negritude de expressão portuguesa e tão lucidamente que o surto da literatura angolana e moçambicana que se impôs a partir de cinquenta e muito lhe deve o não teria ultrapassado na pertinência e na genuinidade dos temas Interessante notar que a estrutura externa da poesia de F J Tenreiro adquire características diferentes consoante à substância manipulada poemas longos de longos versos para a negritude poemas curtos de curtos versos enquanto poeta mestiço Dona Jóia dona dona de lindo nome tem um piano alemão desafinando de calor Ou então De coração em África com o grito seiva bruta dos poemas de Guillén de coração em África com a impetuosidade viril de I too am American de coração em África contigo amigo Joaquim quando em versos incendiários cantaste a África distante do Congo da minha saudade do Congo de coração em África Há uma distância solar como se vê entre a humilhação da Costa Alegre e a glorificação dos valores culturais africanos por parte de Francisco Tenreiro que obviamente corresponde à amplitude consciencializadora que vai do século XIX ao século XX O discurso de Alda do Espírito Santo descrevese entre o relato quotidiano da ilha impregnado de alusões simbólicas de esperança ou do registo de anseios de transparência política uma história bela para os homens de todas as terrasciciando em coro canções melodiosasnuma toada universal 08 até ao clamor da revolta de um povo oprimido como em Onde estão os homens caçados neste vento de loucura 38 Que fizeste do meu povo Que respondeis Onde está o meu povo E eu respondo no silêncio das vozes erguidas clamando justiça Um a um todos em fila Para vós carrascos o perdão não tem nome O mesmo clamor da revolta percorre o discurso de Maria Manuela Margarido A noite sangra no mato feriado por uma lança de cólera A cólera A revolta Duas constantes que associadas ao movimento dialéctico da vida que tudo destrói e reconstrói trazem a esperança Na beira do mar nas águas estão acesas a esperançao movimento a revolta do homem social do homem integral e é ainda o verbo de Maria Manuela Margarido Daí a certeza inscrita no devir histórico No céu perpassa a angústia austera da revolta com suas garras suas ânsias suas certezas Em meio da denúncia do cheiro da morte da acusação eu te pergunto Europa eu te pergunto AGORA perpassa a certeza Ou a esperança Não mera esperança idealista A esperança concretizada na dialéctica do real Tomaz Medeiros Amanhã Quando as chuvas caírem Nos braços das árvores Irei Desafiar os mais trágicos destinos à campa de Nhana ressuscitar o meu amor Irei Poesia vinculada à sedimentação de uma consciência anticolonialista mais do que a fala de cada poeta ela se consubstancia na voz colectiva do homem sãotomense Mas não só poesia de signos de símbolos de imagística protestatária aliás de descodificação facilitada Não só poesia da anunciação e assunção Não só Poesia tocada pelo afago lírico das coisas da Ilha Verde rubra de sangue As palmeiras e cacoeiros o aroma dos mamoeiros o cajueiro as modinhas da terra os murmúrios doces dos silêncios as canoas balouçando no mar o sòcòpé os deuses e os mitos orações dos ocás os cazumbis 39 Por derradeiro Marcelo Veiga Numa ordem cronológica Marcelo Veiga 1892 1976 deveria ter sido considerado logo após Costa Alegre Marcelo Veiga pequeno proprietário da ilha do Príncipe estudou no liceu em Lisboa aqui viveu por períodos intermitentes foi amigo de AlmadaNegreiros Mário Eloy Mário Domingues José Monteiro de Castro e Hernâni Cidade Passou despercebido até ao momento em que Alfredo Margarido o incluiu na antologia por ele organizada e publicada da Casa dos Estudantes do Império Poetas de S Tomé e Príncipe 1963 Ultimamente obtivemos alguns poemas seus inéditos datados a partir de 1920 cedidos pelo poeta pouco antes de falecer na sua ilha Ele dá assim antes de F J Tenreiro o sinal do regresso do homem negro o sinal da negritude não só em S Tomé e Príncipe como em toda a área africana da língua portuguesa África não é terra de ninguémDe qualquer que sabe de onde vem A África é nossaÉ nossa é nossa Eis nítida e insofismável a consciência da revolta Filhos a pé a pé que é já manhã Esta África em que quem quer dá coo pé Esta negra África escarumba olé Não a qeremos mais sob o jugo de alguém Ela é nossa mãe Irônico mordaz a língua destravada e rebelde associada ao veneno lúcido da desafronta Sou preto o que ninguém escuta O que não tem socorro O olá tu rapaz O ó meu merda Ó cachorro O ó seu filho da puta E outros mimos mais Ou O preto é bola É pimpampum Vem um Zás na cachola Outro um chut bum A terminar diríamos que a poesia de S Tomé e Príncipe constitui uma expressão africana mais uniforme do que a de Moçambique ou mesmo de Angola ainda considerando a franja de mestiçagem que a percorre Construída apenas por negros ou mestiços este punhado de poetas baliza a área temática no centro do universo das suas ilhas e organiza um signo cuja polissemia é de uma África violentada inchada de cólera a esperança feita revolta 40 A NARRATIVA Modestíssima quantitativa e qualitativamente é a narrativa de S Tomé e Príncipe As esporádicas experiências de Viana de Almeida Maiá Pòçoncontos 1937 e de Mário Domingues O menino entre gigantes 1960 não chegam a ser uma contribuição relevante O primeiro nesse tempo prejudicado ainda por um ponto de vista subsidiário de uma época colonial o segundo também natural de S Tomé e Príncipe mas tornado escritorportuguês pela obra e pela radicação talvez pela carência da dramatização da personagem principal o mulato Zezinho nado e criado em Lisboa De acaso teria sido o conto Os sapatos da irmã sem qualquer relação com S Tomé que Francisco José Tenreiro em 1962 publicou na colectânea Modernos Autores Portugueses Lisboa Acidentais ainda mas já com uma visão ajusta da a um real africano foram também as experiências de Alves Preto limitada cremos a dois contos Um homem igual a tantos e Aconteceu no morro E ainda o caso de Sum Marky i e José Ferreira Marquesbranco nascido em S Tomé autor de vários romances de importância discutível alguns no entanto parcialmente com interesse valendo citar Vila flogá 1963 como testemunho acusatório da exploração colonialista A EXPRESSÃO EM CRIOULO Não obstante ser bilíngue visto que a população utiliza além da língua portuguesa o crioulo de S Tomé a criação literária é reduzida em dialeto domínio que a tradição oral vem monopolizando com substancial interesse Praticamente conheciamse as composições poéticas de Francisco Stockler e uma experiência de Tomaz Medeiros No entanto após a independência nacional parece haver sintomas de uma revitalização no uso literário do crioulo ao nível popular pelo menos a partir de agrupamentos musicais Exemplo são os casos dos caderninhos de Sangazuza e o caderno do Agrupamento daIlha 1976 compostos de músicas revolucionárias e de um modo geral vertidos em rumbas sambas marchas valsas boleros e sòcòpés NOTA SOBRE A LITERATURA SANTOMENSE A literatura sãotomense mergulha as suas raízes no século XIX princípios do séc XX com a tradição do jornalismo praticado pela elite dos filhosdaterra na imprensa revistas jornais e boletins de associações de que era proprietária e de que se destacam O Africano A Voz dÁfrica O Negro AVerdade O Correio dÁfrica entre outros Esses periódicos de carácter não oficial e não governamental que publicavam poemas dispersos dos colaboradores eram dimensionados numa matriz prénacionalista já indiciando uma consciência unitária e libertária Aí desenvolveramse polémi cassobre a dignificação e instrução das populações nativas sobre o abuso do poder violência contra o negro e s obre a questão das terras expropriadas aosnativos durante a época da introdução das culturas do cacau e do café e consequente instauração das estruturas coloniais preparando as condições paraa segunda colonização baseada na monocultura daqueles produtos que era praticada em unidades sócioeconómicas denominadas roças Mas se a poesia de Caetano da Costa Alegre indicia um certo negrismo literário configurador da etnicidade que marcará a literatura africana de língua portuguesa será com Marcelo da Veiga que essa hesitante nomeação da diferença vai construindo um discurso de identidade pela exibição da cor usos e costumes como diferenciadores étnicoculturais pela memória vivencial pela citação das figuras históricas que povoam o imaginário 41 colectivo e pela coletivização da voz já contestatária na primeira metade do século XX A veemência do discurso de identidade de Marcelo da Veiga é tão forte que terá levado Manuel Ferreira a considerálo como o mais longínquo pioneiro de autêntica poesia africana de expressão portuguesa podíamos mesmo adiantar da negritude É pacífica a ideia de que os fundamentos irrecusáveis da literatura sãotomense começam a definirse com precisão em 1942 com Ilha de Nome Santo de Francisco José Tenreiro 42 Introdução ao espaço guineense Moema Parente Augel A GuinéBissau é um dos seis países africanos que passaram pela colonização portuguesa Foi a época da grande expansão imperialista e da desregrada ocupação colonial quando sobretudo a Inglaterra a França a Bélgica a Espanha e Portugal mais tarde também a Alemanha apossaramse da África raptaram seus homens mulheres e crianças extorquindo seus bens materiais culturais simbólicos Diferentemente do que aconteceu com Angola e Moçambique Portugal na Guiné se limitou por muito tempo quase exclusivamente a se servir da região como ponto de apoio para o comércio escravagista ao longo da costa ocidental africana tratandoa como um empório comercial e não uma colônia de assentamento própria para a agricultura No decorrer do século XVI foramse estabelecendo naquela área as bases para a expansão mercantil portuguesa com a criação de feitorias direcionadas prioritariamente para o tráfico de escravos Devido aos muitos conflitos entre estrangeiros e nativos e acirradas disputas dos africanos entre si foi convocada a Conferência de Berlim 18841885 quando representantes de treze países europeus e dos Estados Unidos se reuniram para organizar e regulamentar a ocupação da África e a exploração de seus recursos naturais A partir daí as fronteiras das colônias foram fixadas e quase todo continente africano foi repartido entre as potências estrangeiras a Guiné continuando a pertencer a Portugal assim como Cabo Verde Angola Moçambique São Tomé e Príncipe e mais tarde na Ásia o Timor Leste Os acordos projetados na Conferência de Berlim inteiramente centrados nas ambições colonialistas foram concebidos contra todos os interesses dos povos africanos Prepararam o chão para os grandes movimentos independentistas das décadas de 60 e 70 em toda a África Em janeiro de 1963 foi deflagrada a luta da Guiné pela independência contra o colonialismo português e depois de onze anos de guerra foi proclamada unilateralmente a independência a 24 de setembro de 1973 surgindo o novo país República da GuinéBissau reconhecida oficialmente por Portugal depois de 25 de abril de 1974 Amílcar Cabral é o grande mentor da independência da Guiné e de Cabo Verde O recente país República da GuinéBissau é muito pequeno se compararmos com os grandes reinos da região no passado o Império dos Mandingas ou Malinkes que posteriormente ficou submetido ao Império de Mali do qual a Guiné fez parte no passado O país tem 36000 km2 sendo que apenas 24800 km são habitáveis É todo cortado por rios entre os quais podemos lembrar o Geba muito citado em poemas mas também o Corubal o Mansoa o rio Grande de Buba entre outros O país tem quase dois milhões de habitantes com a capital Bissau e oito regiões povoadas por numerosas etnias muito diversas entre elas predominando as de religião tradicional e as muçulmanas sendo a percentagem dos seguidores do cristianismo uma muito pequena minoria nem 10 As principais etnias são os Balanta 27 os Fula 23 os Mandingas 12 os Mandjacos 11 os Pepéis 10 os Mancanha A identidade dos diferentes grupos étnicos era salvaguardada pela cultura oral rica em histórias cantigas lendas e mitos provérbios e ditos com seus arautos e seus repositórios da memória coletiva como djidjus passada de geração para geração Na 43 prática eram esses arautos os griots conhecidos na os autênticos portadores da memória da comunidade Muito antes da independência a tradição oral das numerosas etnias do país se encarregou de preservar a conturbada história dos diversos reinos locais reunidos pela força da conquista bélica sob a égide No território da atual GuinéBissau se estabeleceu o reino de Kaabu vassalo de Mali pelo final do século XV Esses tão diversos povos ficaram reunidos em um Estado de muitos estamentos sociais Não é para se desprezar o rico acervo da oratura ainda hoje viva no seio das diferentes etnias nos seus contos cantos e ditos repetidos pelos mais velhos eternizadas pelos griots nos djumbais reuniões espontâneas de convívio social nas mandjuandadis grupos de convivência priorizados por mulheres de organização e costumes próprios importantes na preservação da memória coletiva A falta de meios de divulgação a ausência de editoras de livrarias a má qualidade do ensino e o descaso da governança tudo isso contribuiu para o pouco ou nenhum conhecimento dessas manifestações culturais Mas a oralidade com seu instrumentário por assim dizer mediático continua a ter uma importância basilar para o conhecimento das culturas étnicas a voz impregnando também as letras a literatura São muitas as dificuldades e os obstáculos com que as línguas étnicas se defrontam não tendo até o momento conseguido chegar a constituírem um veículo consolidado para a expressão escrita O crioulo guineense ou simplesmente o guineense desenvolveuse principalmente nas cidades tinha e tem todas as possibilidades de também ser escrito É até hoje basicamente uma língua oral e só a duras penas vem alcançando o estatuto de língua escrita grafada Tratase de uma língua plena de metáforas flexível e maleável que joga com a liberdade da composição e da derivação com a facilidade das transferências categoriais do verbo para o substantivo e viceversa que se deleita com palavras raras e sonoras extraídas do enredado de empréstimos africanos que compõem o crioulo antigo Desde o período das lutas libertárias na primeira metade do século XX têmse registrado vozes que se levantaram para pelo canto e pela poesia manifestarem poeticamente seu apego pela terra natal a ojeriza pelo jugo colonial e o desejo de libertação Carlos Semedo nascido em Bolama foi o primeiro guineense com uma com publicação individual em 1963 ainda portanto nos tempos coloniais um modesto caderno com o título Poemas Radicado em Portugal registra em versos a dolorosa ausência de seu país Sou peça sombria duma Europa patética Minha África distante A saudade fazme louco A partir dos meados da década de 70 vão se registrando obras de autores guineenses A produção literária pós independência fora exceções foi primeiramente enfeixada em algumas obras conjuntas antologias publicadas entre 1973 e 1992 Muitos poemas datam da década anterior embora a publicação tenha sido só depois da independência Mantenhas para quem luta a nova antologia da GuinéBissau Bissau 1977 com 44 poemas da autoria de 14 jovens guineenses a primeira publicação do país independente O título é uma expressão do crioulo guineense e significa saudações para quem luta Está bem explicita no prefácio a prioridade que norteia os autores não se trata de definirse em termos puramente estéticos Tratase de arma de combate ferramenta de construção Abro um parêntese em meio a muitos poetas para chamar a atenção para Domingas Samy a primeira mulher a publicar depois da independência e a primeira voz feminina na ficção na GuinéBissau Seu livro A Escola 1993 esboça em três contos quadros de diversas situações da vida e dos costumes do povo O choque entre os costumes 44 tradicionais e a modernização advinda da urbanização acelerada é tratado ficcionalmente a partir da perspectiva da mulher como o abandono do marido o casamento forçado o comportamento da juventude a gravidez precoce e consequente rejeição do filho não desejado Que se lixe esse bebé Por que veio É só para me estragar a vida A autora concentrou nas suas personagens muitas das questões que envolvem a condição feminina pondo em relevo a sorte de várias mulheres de idades personalidades e situações de vida muito diversas Odete Semedo foi a primeira mulher a publicar um livro de poemas quase todos apresentados nas duas línguas o português e o crioulo É a primeira voz a extravasar uma busca de si mesma num processo de autoconhecimento quando sobressai o tom introspectivo e confessional de sua lírica evidenciando uma grande sensibilidade que também se abre para a dor alheia impulsionada a cantar e contar o que o outro chora e sente Na prosa Odete Semedo publicou contos passadas causos numa linguagem muitas vezes cheia de humor São dois volumes de contos Sonéá Histórias e passadas que ouvi contar I Djênia Histórias e passadas que ouvi contar II em 2000 em Bissau com uma segunda edição em 2003 Traumatizada pela guerra fratricida que abalou o país 19981999 Odete Semedo deu à estampa um extenso poema épicolírico No fundo do canto sua obra culminante onde registra os efeitos daquela convulsão política e social fazendo ecoar um canto sui generis que recupera a seu modo vivências individuais e coletivas que vão muito além do momento traumático da guerra No fundo do canto foi reeditado no Brasil em Belo Horizonte Minas Gerais onde Odete defendeu sua tese de doutorado sobre as cantigas de mandjuandade e no mesmo ano 2010 foi também lançado seu manual GuinéBissau História culturas sociedade e literatura pela editora Nandyala onde a autora esboça um panorama da história do país desde a época précolonial dando ênfase ao papel da tradição oral é legitimada como fonte histórica e nascedouro da oratura e da literatura guineenses Não me será possível por questão de espaço tratar do florescente gênero do conto guineense Muitos outros autores mereceriam ser aqui registrados sobretudo a partir do ano 2000 Apesar de a maioria ser de data bastante recente e publicados não somente na GuinéBissau podese afirmar que esses livros todos passaram imerecidamente quase despercebidos Uma listagem mesmo incluindo apenas contos em português ou seja acessíveis a um público luso falante internacional seria incompleta O romance como gênero literário na GuinéBissau surgiu apenas em 1994 com a primeira publicação de Abdulai Sila Eterna paixão iniciativa da Ku Si Mon Editora Abdulai é um brilhante e profícuo prosador da GuinéBissau Sua fortuna crítica reúne um sem número de artigos e estudos sobre sua obra destacandose a tese de doutorado da professora Érica Bispo TAL E TAL de 2001 que ganhou o primeiro lugar em concurso do INEP e a promessa de publicação Seus livros têm tradução em francês inglês italiano e edições no Brasil Com o recurso do ficcional Abdulai Sila elabora uma verdadeira e sucinta história da GuinéBissau com uma trilogia A última tragédia 1995 situase na época colonial Eterna Paixão 1994 reelabora os primeiros anos do novo país GuinéBissau liberto do jugo colonial português e Mistida 1997 é uma sátira amarga e corrosiva retratando simbolicamente o momento atual por que passa o país quando caíram por terra esquecidos e deturpados os ideais de Amílcar Cabral e seus companheiros que impulsionaram a luta pela independência pela libertação do país das amarras do colonialismo O mais recente romance de Abdulai Sila é Memórias SOMânticas 2016 uma impressionante narrativa confessional por uma voz feminina na primeira pessoa uma antiga 45 combatente que agora idosa e pobre passa em revista sua vida inteira com suas alegrias tristezas e decepções Não caberá aqui uma simples listagem e por isso não me deterei em Filinto de Barros 18422011 Um dos remanescentes das lutas pela independência uma das cabeças pensantes do PAIGC desde sua fundação muitas vezes ministro durante a era Nino Vieira lançou em 1997 o romance Kikia matcho A trama se desenrola em vários planos em torno da morte de N Dingui antigo Combatente da Liberdade da Pátria que terminou seus dias num bairro decadente da capital relegado ao abandono tanto pelos familiares como pelas instituições públicas Filinto de Barros introduz os leitores no mundo mágico e mítico africano ao mesmo tempo em que pela interação das personagens estabelece uma crítica ponte entre o passado e o presente Para nos referirmos mesmo que rapidamente ao teatro na GuinéBissau precisamos voltar a Abdulai Sila que depois de dez anos retoma publicamente sua atividade literária desta vez com uma peça teatral As orações de Mansata Sila 2007 2011 uma ficção dramática crua e sem rodeios do momento político e social de seu país Transposto para o momento atual de crise e desgovernança por que passa a GuinéBissau sua temática e conteúdo espelhamse na luta pelo mando que tudo justifica tanto a traição como a morte Em 2013 Abdulai Sila publica uma segunda peça teatral Dois tiros e uma gargalhada onde comparecem algumas personagens já conhecidas do público leitor As orações de Mansata tematiza a procura implacável de controle por parte de Amambarka o protagonista símbolo da ambição desmedida em uma trama repleta de desordem tirania e violência Em Dois tiros e uma gargalhada Sila põe em relevo a traição o atentado aos direitos humanos o desejo de vingança e a força da sabedoria dos mais velhos A tradição e seus poderes ocultos vão surgir como um regulador do comportamento humano O autor nos quis aqui apresentar a alegoria do seu país da terra tantas vezes condenada tantas vezes sacrificada mas que consegue sempre soerguerse da agonia Em 2018 Sila publicou mais uma peça teatral Kangalutas termo que em português significa cabriolas cambalhotas na qual pretendeu ao caricaturar episódios da vida quotidiana bissauense chamar a atenção para as turbulências de toda ordem que afetam o seu país ridicularizando e denunciando certas situações E mais recentemente Abdulai encenou em Bissau sua quarta peça teatral desta vez na língua guineense onde trata dos diferentes destinos de duas mulheres ligadas por estreitos laços de amizade O título Deih vocábulo tirado da língua fula significa justamente esse sentimento especial de amizade levado às últimas consequências história de duas moças unidas por grande amizade mas com destinos muito diferentes 2022 Apesar de ter havido uma verdadeira cesura na vida social e cultural do país com o conflito armado de 19981999 a vida literária e cultural vem tomando um novo dinamismo Para tal muito contribuiu a criação de mais uma editora privada a Editora Corubal fundada em 2013 a mais nova do país uma cooperativa de produção de divulgação cultural e científica iniciativa de alguns escritores e ativistas culturais dos quais se destacam a personalidade e eficiência do sociólogo Miguel de Barros A Ku Si Mon tem continuado com suas publicações em ritmo mais moderado mas não menos atuante pois a questão financeira é um grave impedimento para iniciativas de cariz cultural Há também editoras portuguesas e brasileiras a publicar com mais frequência que antigamente autores guineenses Não seria possível arrolar aqui todas as publicações de literatura que vieram à estampa nos últimos 20 ou 30 anos na GuinéBissau tal é o número de títulos que vem surgindo no país e no exterior 46 Na GB logo após a independência glorioso feito de um pequeno e modesto país essa euforia esse ufanismo estavam presentes Os poetas desses primeiros momentos de construção da nação guineense cantaram emocionados os eventos recém acontecidos jurando cultuarem para sempre Cabral e seus ensinamentos do chão vermelho do teu sangue camarada caem como gotas de orvalho as flores de nossa luta não secarão Agnelo Regalla A noite colonial foi vencida Mantenhas para quem luta Mantenhas para os que merecerem o merecimento de Pindjiguiti António Soares Júnior depois conhecido com seu nome de casa que adotou como escritor Tony Tcheka É o mesmo Tony Tcheka que em 1996 publica seu primeiro livro individual Noites de insônia na terra adormecida Bissau Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa INEP Colecção Kebur Em 2008 Guiné sabura que doi e em 2015 Desesperança no chão de medo e dor Bissau Corubal Os títulos são por demais eloquentes apontam para uma gradação de sentimentos que vão da euforia passando pela preocupação e chegando à desilusão O que levou o poeta a tanto pessimismo e desolação O discurso poético de Tony Tcheka evidencia e reflete a posição da intelligentsia africana para a qual o destino pessoal é menos tematizado na literatura do que o coletivo tendo a representação simbólica da subalternidade de seu país espelhada metonimicamente na figura do velho do lavrador da viúva do menino carente em poemas em que o eu poético se identifica partícipe com as camadas desprestigiadas e silentes que estão bem longe do exercício ou do usufruto do poder A contestação e a subversão dos valores vigentes em consciente e proposital reversão da ideologia hegemônica num gesto de resistência são características comuns a muitos dos autores contemporâneos aqui estudados e não só O título de seu segundo livro GUINÉ SABURA QUE DÓI aparentemente contraditório talvez até incoerente harmoniza dois conceitos opostos numa só expressão oferecendo assim uma terceira idéia que instiga a interpretação e aguça a curiosidade dos leitores e ouvintes O sentido metafórico desse paradoxo percorre todo o livro São versos que irradiam grande amor e alegria pelas belezas e saburas de sua terra mas também versos doloridos que refletem mágoa tristeza e mesmo revolta pois o poeta não se conforma com o desbarato e o desolador estado político e social de seu país Não são versos idealizados nem irrealistas O poeta tem os pés fincados no chão no chão guineense obviamente é a sua pátria amada flor de canteiros perdidos esfumados em passadas lembranças polifonias de antanho TERRA DI MI SUAVE SABI GUSTÚS plena de SABURA mas também rosa ferida envolta em MUFUNESSA FORONTA KASSABI DISGÚS Confirmando a assertiva de Stuart Hall que afirma fazer geralmente parte da definição do indivíduo nomear sua origem a Guiné terra amada sabura que dói é referida ao longo de toda a obra ora com balbuceios plenos de ternura Guiné minha flor de canteiros perdidos ora com desabafos cheios de tristeza A Guiné desfia as suas dores na esteira do choro estendida na penumbra da lua minguante na esplanada da lala sahelizada onde se filtra o kasabi ou por lamentos amargurados Terra sahel voos amargos esperança a esvair Os dois lados da medalha estão igualmente presentes A atual conjuntura por que passa a GuinéBissau um dos países africanos mais problemáticos na atualidade aflige o poeta que expressa em muitas ocasiões seu descontentamento como por exemplo no poema Terra sofredora em que torna palpável o drama da guerra fratricida e mofina que vergastou o país 47 Terra zurzida plasmada de dores sucumbindo a tormentos amontoados nos becos nas ruas e tabankas Muitos poemas estão impregnados de indignação pelo desbarato social e econômico em que o país está mergulhado pois apesar de ser terra sabi de histórias acontecidas e esquecidas momentaneamente reina o marasmo e o desgoverno na terra adormecida sua bem amada terra tísica terra semelhante à mulhergrande fêmea sofredora terra di mi Tony Tcheka depois de publicar muito jovem nas 4 antologias que enfeixam a produção poética logo depois da independência publicou seu Noites de insônia da terra adormecida 1978 prossegue neste século XXI como escritor participando de congressos e outros encontros culturais em nível nacional e internacional com poemas traduzidos para várias línguas publicando novas obras que encontram ampla aceitação Tony Tcheka publicou até o presente ainda dois livros de poemas Guiné sabura que dói em 2008 e Desesperança no chão de medo e dor em 2015 sempre envolvido emocionalmente com os altos e baixos de sua Guiné oscilando entre as saburas do seu chão natal e de sua gente e as mufunesas e amarguras que lhe causam a deplorável e inquietante situação política do país Jornalista de profissão é também autor do muito bem documentado volume Os media na GuinéBissau que está inclusive disponível na internet Ainda é para registrar sua mais recente publicação na Alemanha de uma delicada e primorosa edição bilíngue de 48 páginas com uma seleção de dez poemas em português e em alemão na tradução de Niki Graça com o título Guiné Bielefeld Hochroth Berlim 2020 Desejo assinalar aqui ainda a mais nova publicação de Tony Tcheka Quando os cravos vermelhos cruzaram o Geba uma coleção de contos com relatos sobre o impacto do 25 de abril de 1974 nos guineenses fato histórico que levou a reações muito diversas atingindo de modo especial os guineenses europeizados e que se sentiam unidos a Portugal sendo para eles difícil de perceber a nova realidade e mais que isso de aceitála São ainda muito poucas as mulheres que publicaram na GB até agora livros independentes A participação em antologias ou postagens na internet é mais numerosa mas mesmo assim muito pouco satisfatória Além de Domingas Samy a que já me referi de Odete Semedo brilhante estrela no firmamento literário lembro aqui Saliatu Costa autora de dois trabalhos poéticos de muito valor com instigantes títulos Outro nome feminino que vem se destacando no panorama literário guineense é Saliatu da Costa que estreou como escritora em 2008 em Bissau com Bendita loucura alguns poemas também na língua guineense numa tiragem de 150 exemplares O título já aponta de certo modo para o conteúdo uma voz que anuncia de antemão não recear a exceção bendizendo mesmo a transgressão Retoma em 2011 seu estado de alerta e de rebeldia contra o status quo quando publica em edição independente Entre a roseira e a pólvora o capim seu segundo livro onde apresenta uma poesia militante de vinculação social sem faltarem manifestações pessimistas de decepção e de indignação por estar seu país num estado de lamentável desorganização social e política O eu enunciador parece insinuar aos leitores inconfessáveis mas benditas loucuras na conquista de novos espaços transgressores liberados Não poderia deixar de assinalar ainda um livro muito especial que foi apresentado em Lisboa e depois em Bissau no final de 2019 José Carlos Schwarz o grande músico guineense compositor letrista poeta é aí retratado pelos olhos e pela pena de Teresa a Noutcha presente em suas canções Minha vida com José Carlos Schwarz Silêncio entre 48 duas notas não é uma simples biografia São recordações transportadas para a escrita as memórias de minha vida com o Zé Carlos reunidas pela esposa Maria Teresa Schwarz hoje Maria Teresa Loff Fernandes É a vida de Zé Carlos como artista combatente político mas também o diaadia de um jovem casal apaixonado desde a infância e a adolescência de cada um na intimidade da família e com pessoas participantes do processo da independência os anos de militância contra o regime opressor português as dificuldades durante o tempo de prisão do marido as estratégias de sobrevivência o apoio recebido por outros companheiros e amigos É a história real de Teresa e Zé Carlos desde que se conheceram até o trágico desaparecimento do artista em Cuba Como a autora declarou esse livro era um dever para com os guineenses principalmente a nova geração por ele ser uma referência E ele não deve ficar no esquecimento Minha vida com José Carlos Schwarz Silêncio entre duas notas Não se trata de uma simples biografia É uma narrativa confessional da autoria da viúva do grande músico guineense que é aí retratado pelos olhos e pela pena de Teresa a Noutcha presente em suas canções São recordações as memórias de minha vida com Zé Carlos transportadas para a escrita reunidas pela esposa Maria Teresa Schwarz hoje Maria Teresa Loff Fernandes Zé Carlos é lembrado como artista militante político Mas o livro enfoca também o diaadia de um jovem casal apaixonado reportandose à infância e à adolescência de cada um vendoos na intimidade da família e como pessoas participantes do processo da independência recuperando os anos de militância contra o regime opressor português as dificuldades durante o tempo de prisão do marido o apoio recebido por outros companheiros e amigos as estratégias de sobrevivência as dificuldades da e na recém fundada República da GuinéBissau É a históra real de dois jovens de Teresa e Zé Carlos desde que se conheceram até o trágico desaparecimento do artista em Cuba aos 26 anos 1977 Como a autora declarou esse livro era um dever para com os guineenses principalmente a nova geração por Zé Carlos ser uma referência para todos ainda hoje Muito recente é a publicação Fora di nos Nhara sikidu textos poéticos 2021 da autoria de Helena Neves Abrahamsson guineense jurista de formação São 40 poemas ora intimistas ora revoltados ora de cunho social ou de crítica diante da má governança Leiamse também versos confessadamente apaixonados em que o eu poético dá vazão a seus sentimentos mais íntimos numa dicção feminina de muito lirismo sobretudo nos poemas em língua guineense com os quais compõe a Vanessa Margarida Buté Vaz nasceu em Lisboa em 1992 títulos bilingües tanto em português como na língua guineense 1 Minha casa Nha Kasa 2 Meu Eu Ami ku mi 3 Devaneios Kabesa na Pupan 4 Na Kriol O primeiro romance de uma mulher guineense neste segundo milênio Pérola roubada de Né Vaz pseudônimo de Vanessa Margarida Buté Vaz veio à estampa em 2018 Pérola Roubada é um romance que desvela facetas talvez chocantes ou constrangedoras da vida de uma jovem mulher de 27 anos que num relato em primeira pessoa relembra e reconstrói em um longo monólogo de forma livre e ousada o que foi a sua existência Um texto dramático e cativante que quebra alguns tabus em 286 páginas e 49 episódios carregados de mistério e surpresa Foi publicado em Portugal festivamente lançado também em Bissau por iniciativa da AEGUI e da Editora Corubal Tratase de um excelente romance escrito na primeira pessoa Né Vaz pseudônimo ou nome de casa de Vanessa Margarida Buté Vaz é a primeira voz feminina a se aventurar nesse gênero literário publicado em Lisboa em 2018 A protagonista Natasha é a narradora e principal personagem Escrevendo na primeira 49 pessoa confia a seu diário sua vida íntima de mulher que conheceu uma primeira infância feliz mas muito cedo ficando aos cuidados de parentes foi abusada sexualmente por um tio Adulta circunstâncias adversas a levaram a deixar os estudos prostituirse e cair cada vez mais na escala social Natasha narra sua vida como prostituta seus muitos amantes e clientes vêse mais tarde dependente de drogas e envolvida no tráfico internacional Expõe cruamente sua decadência moral conseguido finalmente refazerse graças a um relacionamento afetivo que a salvou da degradação Um romance corajoso e cativante um texto dramático rompendo tabus e preconceitos surpreendente único até então único na literatura do país Cinco anos depois de Pérola roubada Né Vaz acaba de lançar em Bissau numa concorrida festa literária outro romance Conversas íntimas A trama se desenrola em trocas de ideias e confissões íntimas entre três amigas Brinsan Graciela e Íris Jovens ligadas por amizade porém muito diferentes uma das outras Três mulheres três dilemas três vidas sem rodeios nem meias palavras comentam suas vivências sexuais trocam impressões e sensações numa crueza e desembaraço inusitados para leitoras e leitores guineenses Coube a Odete Semedo apresentar a obra e como Mais velha e teceu considerações a respeito do papel que exercem oa narrador a narrada o público em geral ANGOLA 51 Joaquim Dias CORDEIRO DA MATTA 18571894 Nascido no distrito de Cabiri pertencente ao município de Ícolo e Bengo Cordeiro da Matta tendo ampla participação na Imprensa Livre foi poeta cronista filólogo pedagogo e jornalista Morreu precocemente aos 37 anos na Barra do Cuanza Sua poesia pretende exaltar a cultura e os povos nativos Negra I Negra negra como a noite duma horrível tempestade mas linda mimosa e bela como a mais gentil beldade Negra negra como a asa do corvo mais negro e escuro mas tendo nos claros olhos o olhar mais límpido e puro Negra negra como o ébano sedutora como Fedra possuindo as celsas formas em que a boa graça medra Negra negra mas tão linda coos seus dentes de marfim que quando os lábios entreabre não sei o que sinto em mim II Só negra como te vejo eu sinto nos seios dalma arderme forte desejo desejo que nada acalma se te roubou este clima do homem a cor primeva branca que ao mundo viesses serias das filhas dEva em beleza ó negra a prima geroute em agro torrão Selevarte ao sexo frágil temeu o rei da criação é qués ó negra criatura a deusa da formosura 52 Uma Quissama A Carlos dAlmeida Em manhã fria nevada nessas manhãs de cacimbo em que uma alma penada não se lembra de ir ao limbo eu vi formosa correta não sendo européia dama a mais sedutora preta das regiões da Quissama Mal quinze anos contava e no seu todo brilhava o ar mais doce e gentil Tinha das mulheres lindas as graças belas infindas dencantos encantos mil Nos lábios posto que escuros viamselhe risos puros em borbotões assomar Tinha nos olhos divinos reverberos cristalinos e fulgores de matar Radiavalhe na fronte como em límpido horizonte radia mimosa luz da virgem casta a candura que soe dar a formosura a graça que brota a flux Embora azeitados panos lhe cobrisse os lácteos pomos denunciavam os arcanos de dois torneados gomos Da cintura a palmo e meio bem tecidinho redondo descialhe em doce enleio um envoltório de hondo Viamselhe a descoberto com arte bem modeladas e que eu mirava de perto umas formas cinzeladas Coo seu andar majestoso coo seu todo gracioso quando a quissama encarei eu possuir um harém e nele ter umas cem como um sultão desejei 53 Kicôla Imitação de uns versos de João E da C Toulson Nesta pequena cidade vi uma certa donzela que muito tinha de bela que fada huri e deidade a quem disse Minha qrida peço um beijo por favor bem sabes oh meu amor queu por ti daria a vida Nquàmiâmi ngna iame não quero caro senhor disse sem mudar de cor Macûto quangandallami Não creio no seu amor Eu querendoa convencer muámôno querem ver exclamou a minha flor O que tassombra donzela nesta minha confissão tornei com muita paixão Olhando sério pra ella Não é dado continuei O que se sente dizer Sem ti não posso viver Só contigo fliz serei Kiri Ki amonequê ninguém a verdade fala Osso a kuamacuto âla toda a gente falsa é Emé ngana nguixicána aceitar não sou capaz o mâca mé ma dilage a sua fala que engana Oh qrida não há motivo para descreres de todos cada qual tem seus modos eu a enganar não vivo Eie ngana úarimûca o senhor é muito esperto queria dizer decerto uzuêla câlá úa cûca Fala como homem didade Não sabes que o deus do amor é um grande inspirador minha formosa beldade Depois faleilhe ao ouvido e me respondeu Kicôla não pode ser Ai que tola por quem o foi proibido 54 António AGOSTINHO NETO 19221979 Nascido em Ícolo e Bengo na freguesia de Caxicane além de escritor e médico foi presidente do Movimento Popular de Libertação de Angola e em 1975 tornouse o primeiro presidente de Angola até sua morte em 1979 Sua poesia foi seu meio de manifestar seu engajamento político Aspiração Ainda o meu canto dolente e a minha tristeza no Congo na Geórgia no Amazonas Ainda o meu sonho de batuque em noites de luar Ainda os meus braços ainda os meus olhos ainda os meus gritos Ainda o dorso vergastado o coração abandonado a alma entregue à fé ainda a dúvida E sobre os meus cantos os meus sonhos os meus olhos os meus gritos sobre o meu mundo isolado o tempo parado Ainda o meu espírito ainda o quissange a marimba a viola o saxofone ainda os meus ritmos de ritual orgíaco Ainda a minha vida oferecida à Vida ainda o meu desejo Ainda o meu sonho o meu grito o meu braço a sustentar o meu Querer E nas senzalas nas casas nos subúrbios das cidades para lá das linhas nos recantos escuros das casas ricas onde os negros murmuram ainda O meu Desejo transformado em força inspirando as consciências desesperadas 55 Consciencialização Medo no ar Em cada esquina sentinelas vigilantes incendeiam olhares em cada casa se substituem apressadamente os fechos velhos das portas e em cada consciência fervilha o temor de se ouvir a si mesma A História está a ser contada de novo Medo no ar Acontece que eu homem humilde ainda mais humilde na pele negra me regresso África para mim com os olhos secos Crueldade Caíram todos na armadilha dos homens postados à esquina E de repente no bairro acabou o baile e as faces endureceram na noite Todos perguntam por que foram presos ninguém o sabe e todos o sabem afinal E ficou o silêncio dum óbito sem gritos que as mulheres agora choram Em coração alarmados segredam místicas razões Da cidade iluminada vêm gargalhadas numa displicência cruel 56 Para banalizar um acontecimento quotidiano vindo no silêncio da noite do musseque Sambizanga um bairro de pretos Confiança O oceano separoume de mim enquanto me fui esquecendo nos séculos e eisme presente reunindo em mim o espaço condensando o tempo Na minha história existe o paradoxo do homem disperso Enquanto o sorriso brilhava no canto de dor e as mãos construíam mundos maravilhosos John foi linchado o irmão chicoteado nas costas nuas a mulher amordaçada e o filho continuou ignorante E do drama intenso duma vida imensa e útil resultou certeza As minhas mãos colocaram pedras nos alicerces do mundo mereço o meu pedaço de pão 57 VIRIATO Clemente DA CRUZ 19281973 Filho de um proprietário de Cuanza Sul tornouse um intelectual preocupado com o movimento anticolonial ligado à cultura fez o mote Vamos descobrir Angola e teve seus poemas impressos na revista Mensagem da Associação dos Naturais de Angola Suas desavenças com Agostinho Neto lhe valeram um espancamento público e um cárcere de onde segue para a China onde falece anos depois sob circunstâncias questionáveis Sua poesia sugere uma reflexão sobre a cultura e os costumes nativos Namoro Mandeilhe uma carta em papel perfumado e com letra bonita eu disse ela tinha um sorrir luminoso tão quente e gaiato como o sol de Novembro brincando de artista nas acácias floridas espalhando diamantes na fímbria do mar e dando calor ao sumo das mangas Sua pele macia era sumaúma Sua pele macia da cor do jambo cheirando a rosas sua pele macia guardava as doçuras do corpo rijo tão rijo e tão doce como o maboque Seus seios laranjas laranjas do Loge seus dentes marfim Mandeilhe essa carta e ela disse que não Mandeilhe um cartão que o amigo Maninho tipografou Por ti sofre o meu coração Num canto SIM noutro canto NÃO E ela o canto do NÃO dobrou Mandeilhe um recado pela Zefa do Sete pedindo rogando de joelhos no chão pela Senhora do Cabo pela Santa Ifigênia me desse a ventura do seu namoro E ela disse que não Levei à avó Chica quimbanda de fama a areia da marca que o seu pé deixou para que fizesse um feitiço forte e seguro que nascesse um amor como o meu E o feitiço falhou Espereia de tarde à porta da fábrica oferteilhe um colar e um anel e um broche pagueilhe doces na calçada da Missão ficamos num banco do largo da Estátua 58 afagueilhe as mãos faleilhe de amor e ela disse que não Andei barbado sujo e descalço como uma monangamba Procuraram por mim Não viu ai não viu não viu Benjamim E perdido me deram no morro da Samba Para me distrair levaramme ao baile de sô Januário mas ela lá estava num canto a rir contando o meu caso às moças mais lindas do Bairro Operário Tocaram uma rumba dancei com ela e num passo maluco voamos na sala qual uma estrela riscando o céu E a malta gritou Aí Benjamim Olheia nos olhos sorriu para mim pedilhe um beijo e ela disse que sim 59 Serão de Menino Na noite morna escura de breu enquanto na vasta sanzala do céu de volta de estrelas quais fogaréus os anjos escutam parábolas de santos na noite de breu ao quente da voz de suas avós meninos se encantam os contos bantos Era uma vez uma corça dona de cabra sem macho Matreiro o cágado lento tuc tuc foi entrando para o conselho animal Tão tarde que ele chegou Abriu a boca e falou deu a sentença final Não tenham medo da força Se o leão o alheio retém luta ao Mal Vitória ao Bem tirese ao leão dêse à corça Mas quando lá fora o vento irado nas frestas chora e ramos xuaxalha de altas mulembras e portas bambas batem em massembas os meninos se apertam de olhos abertos Eué É casumbi E a gente grande bem perto dali feijão descascando para a quitanda a gente grande com gosto ri Com gosto ri porque ela diz que o casumbi males só faz a quem não tem amor aos mais seres buscam em negra noite essa outra voz de casumbi essa outra voz Felicidade 60 Makèzú Kuakié Makèzú Makèzú O pregão da avó Ximinha É mesmo como os seus panos Já não tem a cor berrante Que tinha nos outros anos Avó Xima está velhinha Mas de manhã manhãzinha Pede licença ao reumático E num passo nada prático Rasga estradinhas na areia Lá vai para um cajueiro Que se levanta altaneiro No cruzeiro dos caminhos Das gentes que vão pra Baixa Nem criados nem pedreiros Nem alegres lavadeiras Dessa nova geração Das venidas de alcatrão Ouvem o fraco pregão Da velhinha quitandeira Kuakié Makèzú Makèzú Antão véia hoje nada Nada mano Filisberto Hoje os tempo tá mudado Mas tá passá gente perto Como é aqui tás fazendo isso Não sabe Todo esse povo Pegô um costume novo Qui diz qué civrização Come só pão com chouriço Ou toma café com pão E diz ainda pru cima Hum mbundo kène muxima Qui o nosso bom makèzú É pra veios como tu Eles não sabe o que diz Pru qué qui vivi filiz E tem cem ano eu e tu É pruquê nossas raiz Tem força do makèzú 61 ANTÓNIO JACINTO do Amaral Martins 19241991 Oriundo da capital também esteve empenhado no setor cultural da ANANGOLA Preso no Tarrafal por uma década ao sair dirigiu o Centro de Instrução Revolucionária do MPLA e após a independência tornouse Ministro da Cultura Sua poesia é fortemente inspirada pelo neorealismo português discorrendo sobre a vivência dos trabalhadores angolanos Carta dum Contratado Eu queria escreverte uma carta amor uma carta que dissesse deste anseio de te ver deste receio de te perder deste mais que bem querer que sinto deste mal indefinido que me persegue desta saudade a que vivo todo entregue Eu queria escreverte uma carta amor uma carta de confidências íntimas uma carta de lembranças de ti de ti dos teus lábios vermelho como tacula dos teus cabelos negros como dilôa dos teus olhos doces como macongue dos teus seios duros como maboque do teu andar de onça e dos teus carinhos que maiores não encontrei por aí Eu queria escreverte uma carta amor que recordasse nossos dias na capôpa nossas noites perdidas no capim que recordasse a sombra que nos caía dos jambos o luar que se coava das palmeiras sem fim que recordasse a loucura da nossa paixão e a amargura da nossa separação Eu queria escreverte uma carta amor 62 que a não lesses sem suspirar que a escondesses de papai Bombo que a sonegasses a mamãe Kieza que a relesses sem a frieza do esquecimento uma carta que em todo o Kilombo outra a ela não tivesse merecimento Eu queria escreverte uma carta amor uma carta que te levasse o vento que passa uma cartas que os cajús e cafeeiros que as hienas e palancas que os jacarés e bagres pudessem entender para que se o vento a perdesse no caminho os bichos e plantas compadecidos de nosso pungente sofrer de canto em canto de lamento em lamento de farfalhar em farfalhar te levassem puras e quentes as palavras ardentes as palavras magoadas da minha carta que eu queria escreverte amor Eu queria escreverte uma carta Mas ah meu amor eu não sei compreender por que é por que é por que é meu bem que tu não sabes ler e eu Oh Desespero não sei escrever também Monangamba Naquela roça grande não tem chuva é o suor do meu rosto que rega as plantações Naquela roça grande tem café maduro e aquele vermelhocereja são gotas do meu sangue feitas seiva O café vai ser torrado pisado torturado vai ficar negro negro da cor do contratado Negro da cor do contratado 63 Perguntem às aves que cantam aos regatos de alegre serpentear e ao vento forte do sertão Quem se levanta cedo quem vai à tonga Quem traz pela estrada longe a tipóia ou o cacho de dendém Quem capina e em paga recebe desdém fuba podre peixe podre panos ruins cinquenta angolares porrada se refilares Quem Quem faz o milho crescer e os laranjais florescer Quem Quem dá dinheiro para o patrão comprar máquinas carros senhoras e cabeças de pretos para os motores Quem faz o branco prosperar ter barriga grande ter dinheiro Quem E as aves que cantam os regatos de alegre serpentear e o vento forte do sertão responderão Monangambééé Ah Deixemme ao menos subir às palmeiras Deixemme beber maruvo maruvo e esquecer diluído nas minhas bebedeiras Monangambééé 64 ARLINDO do Carmo Pires BARBEITOS 19402021 Nascido em Catete em Ícolo e Bengo foi obrigado a se exilar de Angola em 1961 vindo a percorrer países europeus cursando Antropologia e Sociologia na Universidade de Frankfurt Dez anos depois de regresso a Angola foi combatente do MPLA Sua poesia se inspira na tradição oral nos provérbios africanos na brevidade da poesia oriental para adequar o corpo do poema a sua mensagem O poeta junto de sua esposa foi uma vítima da pandemia do COVID19 em março de 2021 sem título amada minha amada a revolução não é um conto e uma borboleta não é um elefante como agarrálo devagarinho o menino ia comendo o peixe frito como quem toca gaitadebeiço sem título a identidade ou o voo esquivo de pássaros noturnos em torno da lua identidade é cor de burro fugindo sem título o menino pequeno muito pequeno nu 65 todo nu traz botas botas muito grandes sem título o passado é uma laranja amarga a chuva cai de teus olhos o vento tem cabeça de galo e o jacaré levou tua perna pro palácio de seu rei sem título casinhas pequenas abrigando histórias das histórias da história se fazendo e inda outras casinhas pequenas abrigando famílias das famílias da família se fazendo e inda outras histórias das histórias da história e inda outras famílias das famílias da família e inda outras se emaranhando em um novelo que cresce cresce cresce em casinhas pequenas 66 Ana PAULA Ribeiro TAVARES 1952 Nascida no Lubango na província de Huíla onde mais tarde veio a cursar história Cursou mestrado em Literaturas Africanas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Em 1976 foi nomeada para o Conselho Natural de Cultura Sua poesia apresentando uma corporeidade singular tenta expressar a existência feminina entre modernidade e tradição A Abóbora Menina Tão gentil de distante tão macia aos olhos vacuda gordinha de segredos bem escondidos estendese à distância procurando ser terra quem sabe possa acontecer o milagre folhinhas verdes flor amarela ventre redondo depois é só esperar nela desaguam todos os rapazes A Manga Fruta do paraíso companheira dos deuses as mãos tiramlhe a pele dúctil como se de mantos se tratasse surge a carne chegadinha fio a fio ao coração leve morno mastigável o cheiro permanece para que a encontrem os meninos pelo faro 67 O Mamão Frágil vagina semeada pronta útil semanal Nela se alargam as sedes no meio cresce insondável o vazio Olho de vaca fotografa a morte Grande angular 400 asa retém a preto e branco a solidão Inverte Aumenta Diminui A TERRA Impressionasubverte em grandes planos simultâneos 24x24 a visão panorâmica do espaço para lá do cercado Entre os chifres de perfil O cineolho paralisa a eternidade 68 Boi à Vela Os bois nascido na huíla são altos magros navegáveis de cedo lhes nascem cornos leite cobertura os cornos são volantes indicam o sul as patas lavram o solo deixando espaço para a semente a palavra a solidão sem título As coisas delicadas tratamse com cuidado Filosofia Cabinda Desossasteme cuidadosamente inscrevendome no teu universo como uma ferida uma prótese perfeita maldita necessária conduziste todas as minhas veias para que desaguassem nas tuas sem remédio meio pulmão respira em ti o outro que me lembre mal existe Hoje levanteime cedo pintei de tacula e água fria o corpo aceso não bato a manteiga não ponho o cinto VOU para o sul saltar o cercado MOÇAMBIQUE 70 António RUI DE NORONHA 19091943 Natural de Lourenço Marques atual Maputo a origem de Rui de Noronha é mestiça sendo filho de um pai indiano e de uma mãe africana Colaborou em jornais e foi funcionário público Depois de sua morte precoce aos 34 anos seu professor de francês reuniu 60 poemas seus para a primeira edição póstuma de sua obra É considerado o precursor da moderna poesia moçambicana Surge et Ambula Dormes e o mundo marcha ó pátria do mistério Dormes e o mundo avança o tempo vai seguindo O progresso caminha ao alto de um hemisfério E no outro tu dormes o sono teu infindo A selva faz de ti sinistro eremitério Onde sozinha à noite a fera anda rugindo A terra e a escuridão têm aqui o seu império E tu ao tempo alheia ó África dormindo Desperta Já no alto adejam negros corvos Ansiosos de cair e de beber aos sorvos Teu sangue ainda quente em carne de sonâmbula Desperta O teu dormir já foi mais que terreno Ouve a voz do Progresso este outro Nazareno Que a mão te estende e diz África surge et ambula No Cais Há vibrações metálicas chispando Nas sossegadas águas da baía Gaivotas brancas vão e vêm bicando Peixinhos numa longa gritaria Aos poucos escurece e vão chegando As velas com a farta pescaria As bóias põem no mar um coro brando De luzes a cantar em romaria E entretanto no cais as lidas crescem Altos voltaicos súbito amanhecem A alumiar guindastes e traineiras E ouvese então mais forte mais vibrante Os pretos a cantar noite adiante Por entre a bulha e pó das carvoeiras 71 JOSÉ João CRAVEIRINHA 19222003 O autor José Craveirinha o primeiro de Moçambique e da África a ser laureado com o Prêmio Camões nasceu em Lourenço Marques filho de um pai algarvio e de uma mãe da etnia ronga Colaborou ativamente em periódicos e na FRELIMO o que lhe resultou em 4 anos de prisão política Na sua obra podese encontrar assertivas políticosociais e a representatividade do cotidiano e do espaço moçambicano marcados pela luta anticolonial Grito Negro Eu sou carvão E tu arrancasme brutalmente do chão E fazesme tua alma Patrão Eu sou carvão E tu acendesme patrão Para te servir eternamente como força motriz mas eternamente não Patrão Eu sou carvão E tenho que arder sim E queimar tudo com a força da minha combustão Eu sou carvão Tenho que arder na exploração Arder até às cinzas da maldição Arder vivo como alcatrão meu Irmão Até não ser mais tua mina Patrão Eu sou carvão Tenho que arder E queimar tudo com o fogo da minha combustão Sim Eu serei o teu carvão Patrão Dádiva do Céu Minha guerra será contra os paraquedistas suspensos entre céu e terra Morrerei na minha guerra 72 ou levarei nos braços de guerrilheiro para as crianças da minha terra as sedas lançadas do bojo do bombardeiro E será minha glória as mães contando aos filhos a verdadeira história do primeiro vestido de seda dádiva do céu Síntese Na cidade alinhadas à margem as acácias ao vento urbanizado agitam o sentido carmesim das suas flores E um menino com mais outros meninos todos juntos um dia fecundam na síntese da rua cidade meninos e flores Quero ser Tambor Tambor está velho de gritar ó velho Deus dos homens deixame ser tambor corpo e alma só tambor só tambor gritando na noite quente dos trópicos E nem flor nascida no mato do desespero Nem rio correndo para o mar do desespero Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero Nem nada Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra Eu Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala Só tambor velho de sangrar no batuque do meu povo 73 Só tambor perdido na escuridão da noite perdida Ó velho Deus dos homens eu quero ser tambor e nem rio e nem flor e nem zagaia por enquanto e nem mesmo poesia Só tambor ecoando a canção da força e da vida só tambor noite e dia dia e noite só tambor até à consumação da grande festa do batuque Oh velho Deus dos homens deixame ser tambor só tambor Aforismo Havia uma formiga compartilhando comigo o isolamento e comendo juntos Estávamos iguais com duas diferenças Não era interrogada e por descuido podiam pisála Mas aos dois intencionalmente podiam pôrnos de rastos mas não podiam ajoelharnos Pena Zangado acreditas no insulto e chamasme negro Mas não me chames de negro Assim não te odeio Porque se me chamas negro encolho os meus elásticos ombros e com pena de ti sorrio 74 Carolina NOÉMIA Abranches DE SOUSA Soares 19262002 Noémia de Sousa considerada a mãe dos poetas moçambicanos nasceu em Catembe um subúrbio da atual cidade de Maputo de uma família de origem mestiça Suas primeiras publicações foram feitas no jornal de sua escola vindo mais tarde a ter uma uma atuação muito importante na imprensa como em O Brado Africano ou Mensagem Seus poemas escritos enquanto morava no bairro da Mafalala tornaramse símbolos da luta anticolonial Na década de 50 morou em Lisboa mas teve de se exilar em Paris por motivos políticos Viajou por toda a África como jornalista e militante política depois retornando a Lisboa Sua poesia foi reunida no volume Sangue Negro em 2001 Porquê Por que é que as acácias de repente floriram flores de sangue Por que é que as noites já não são calmas e doces por que são agora carregadas de eletricidade e longas longas Ah por que é que os negros já não gemem noite fora Por que é que os negros gritam gritam à luz do dia Nossa Irmã a Lua Não não nos digam que a lua não é nossa irmã uma irmãzinha meiga que nos cubra a todos com a quentura terna e gostosa do seu carinho que entorne toda a sua doce claridade sobre as nossas tristes cabeças vergadas e como um feitiço forte e misterioso nos afugente as raivas fundas e dolorosas de revoltados com sua morna carícia de veludo Sua enorme mão luminosamente branca conseguenos tudo E sob o seu feitiço potente serenamos E pouco a pouco momento a momento sossegando vamos Fechando nossos olhos impacientes de esperar já podemos vogar no mar parado dos nossos sonhos cansados e até podemos cantar Até podemos cantar o nosso lamento 75 De olhos para dentro para dentro de nós sentimonos novamente humanos somos nós novamente e não brutos e cegos animais aguilhoados Sim Nós cantamos amorosamente a lua amida que é nossa irmão Embora nos repitam que não nós o sentimos fundo no coração que bem vemos que no seu largo rosto de leite há sorrisos brandos de doçura para nós seus irmãos Só não compreendemos como é que sendo tão branca a lua nossa irmã nos possa ser tão completamente cristã se nós somos tão negros tão negros como a noite mais solitária e mais desoladamente escura Súplica Tiremnos tudo mas deixemnos a música Tiremnos a terra em que nascemos onde crescemos e onde descobrimos pela primeira vez que o mundo é assim um tabuleiro de xadrez Tiramnos a luz do sol que nos aquece a lua lírica do xingombela nas noites mulatas da selva moçambicana essa lua que nos semeou no coração a poesia que encontramos na vida tiremnos a palhota humilde cubata onde vivemos e amamos tiremnos a machamba que nos dá o pão tiremnos o calor de lume que nos é quase tudo mas não nos tirem a música Podem desterrarnos levarnos para longes terras vendernos como mercadoria acorrentarnos à terra do sol à lua e da lua ao sol 76 mas seremos sempre livres se nos deixarem a música Que onde estiver nossa canção mesmo escravos senhores seremos e mesmo mortos viveremos e no nosso lamento escravo estará a terra onde nascemos a luz do nosso sol a lua dos xingombelas o calor do lume a palhota onde vivemos a machamba que nos dá o pão E tudo será novamente nosso ainda que cadeias nos pés e azorrague no dorso E o nosso queixume será uma libertação derramada em nosso canto Por isso pedimos de joelhos pedimos Tiremnos tudo mas não nos tirem a vida não nos levem a música Moças das Docas a Duarte Galvão Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines viemos do outro lado da cidade com nossos olhos espantados nossas almas trancadas nossos corpos submissos escancarados De mãos ávidas e vazias de ancas bamboleantes lâmpadas vermelhas se acendendo de corações amarrados de repulsa descemos atraídas pelas luzes da cidade acenando convites aliciantes como sinais luminosos na noite Viemos Fugitivas dos telhados de zinco pingando cacimba do sem sabor do caril de amendoim quotidiano do doer de espádua todo o dia vergadas sobre sedas que outras exibirão 77 dos vestidos desbotados de chita da certeza terrível do dia de amanhã retrato fiel do que passou sem uma pincelada verde forte falando de esperança Viemos E para além de tudo por sobre Índico de desespero e revoltas fatalismo e repulsas trouxemos esperança Esperança de que a xituculumucumba já não virá em noites infindáveis de pesadelo sugar com seus lábios de velha nossos estômagos esfarrapados de fome E viemos Oh sim viemos Sob o chicote da esperança nossos corpos capulanas quentes embrulharam com carinho marítimos nómadas de outro portos saciaram generosamente fomes e sedes violentas Nossos corpos pão e água para toda a gente Viemos Ai mais nossa esperança venda sobre nossos olhos ignorantes partiu desfeita no olhar enfeitiçado de mar dos homens loiros e tatuados de portos distantes partiu no desprezo e no asco salivado das mulheres de aro de ouro no dedo partiu na crueldade fria e tilintintante das moedas de cobre substituindo as de prata partiu na indiferença sombria de caderneta E agora sem desespero nem esperança seremos em breve fugitivas das ruas marinheiras da cidade E regressaremos Sombrias corpos floridos de feridas incuráveis rangendo dentes apodrecidos de tabaco e álcool voltaremos aos telhados de zinco pingando cacimba ao sem sabor do caril de amendoim e ao doer do corpo todo mais cruel mais insuportável Mas não é a piedade que pedimos vida Não queremos piedade daqueles que nos roubaram e nos mataram valendose de nossas almas ignorantes e de nossos corpos macios 78 Piedade não trará de volta as nossas ilusões de felicidade e segurança não nos dará os filhos e o luar que ambicionávamos Piedade não é para nós Agora vida só queremos que nos dês esperança para aguardar o dia luminoso que se avizinha quando mãos molhadas de ternura vierem erguer nossos corpos doridos submersos no pântano quando nossas cabeças se puderem levantar novamente com dignidade e formos novamente mulheres 79 RUI Manuel Correia KNOPFLI 19321997 Rui Knopfli nascido em Inhambane viveu em Moçambique até seus 43 anos com forte atuação na imprensa e na edição de suplementos literários Em 1975 teve que se exilar em Londres Sua poesia pode conter imagens díspares e contrastantes mas o que prevalece é uma harmonia serena e indiferente efeito da concisão e do depuramento Naturalidade Europeu me dizem Eivamme de literaturas e doutrina europeias e europeu me chamam Não sei se o que escrevo tem a raiz de algum pensamento europeu É provável Não É certo mas africano sou Pulsame o coração ao ritmo dolente desta luz e deste quebranto Trago no sangue uma amplidão de coordenadas geográficas e mar Índico Rosas não me dizem nada casome mais à agrura das micaias e ao silêncio longo e roxo das tardes com gritos de aves estranhas Chamaisme europeu Pronto calome Mas dentro de mim há savanas de aridez e planuras sem fim com longos rios langues e sinuosos uma fita de fumo vertical um negro e uma viola estalando Mangas Verdes com Sal Sabor longínquo sabor acre da infância a canivete repartida no largo semicírculo da amizade Sabor lento alegria reconstituída no instante desprevenido na marébaixa no minuto da suprema humilhação Sabor insinuante que retorna devagar ao palato amargo à boca ardida à crista do tempo ao meio da vida 80 Autoretrato De português tenho a nostalgia lírica de coisas passadistas de uma infância amortalhadas entre loucos girassóis e folguedos a ardência árabe dos olhos o pendor para os extremos da lágrima pronta à incandescência súbita das palavras contundentes do riso claro à angústia mais amarga De português a costela macabra a alma enquistada de fado resistente a todas as ablações de ordem cultural e o saber que o tinto melhor que o branco háde atestar a taça na ortodoxia de certas virtualhas de consistência e paladar telúrico De português o olhinho malandro concupiscente e plurirracial lesto na mirada ao seio entrevisto à nesga de perna à fímbria de nádega a resposta certeira e lépida a dardejar nos lábios o prazer saboroso e enternecido da málíngua De suíço tenho herdados de meu bisavô um relógio de bolso antigo e um vago estranho nome Ilha Dourada A fortaleza mergulha no mar os cansados flancos e sonha com impossíveis naves moiras Tudo mais são ruas prisioneiras e casas velhas a mirar o tédio As gentes calam na voz uma vontade antiga de lágrimas e um riquexó de sono desce a Travessa da Amizade Em pleno dia claro vejote adormecer na distância Ilha de Moçambique e façote estes versos de sal e esquecimento CABO VERDE 82 EUGÉNIO de Paula TAVARES 19671930 Tendo sua origem na Ilha da Brava é conhecido como o maior poeta de expressão crioula Embora autodidata por causa dos cargos que ocupou acabou por conhecer bem a realidade e a cultura de Cabo Verde Depois de certo entusiasmo vindo do governador decide falar na imprensa e nos seus poemas sobre a vida de sua gente Suas composições e suas mornas por tão bem expressarem o sentimento colectivo dos ilhéus são tidas como parte da herança cultural caboverdiana Morna de Despedida e tradução Hora di bai Hora de ir Hora di dor Hora de dor Jan qré Já quero Pa el ca manchê Que não amanheça De cada bêz De cada vez Que n ta lembrâ Que eu lembro Man qré Mais eu quero Fica n morrê Ficar e morrer Hora di bai Hora de ir Hora di dor Hora de dor Amor Amor Dixan chorâ Deixeme chorar Corpo catibo Corpo cativo Ba bo que é escrabo Vai tu que és escravo Ó alma bibo Ó alma viva Quem que al lebabo Quem que já te levou Se bem é doce Se voltar é doce Bai é maguado Ir é magoado Mas se ca bado Mas se não fores Ca ta birado Não voltas Se no morrê Se nós morremos Na despedida Na despedida Nhor Des na volta Senhor Deus na volta Ta dano bida Dános vida Dicham chorâ Deixame chorar Destino de home Destino de homem Es dor Essa dor Que ca tem nome Que não tem nome Dor de crecheu Dor de apaixonado Dor de sodade Dor de saudade De alguem De alguém Quen qré que qrem Que eu quero e que me quer 83 Dicham chorâ Deixame chorar Destino de home Destino de homem Oh Dor Ó dor Que ca tem nome Que não tem nome Sofrí na vista Sofrer na vida Se tem certeza Se tem certeza Morrê na ausencia Morrer na ausência Na bo tristeza Da tua tristeza Canção ao Mar Mar Eterno Oh mar eterno sem fundo Sem fim Oh mar de túrbidas vagas Oh mar De ti e das bocas do mundo a mim Só me vem dores e pragas Oh mar Que mal te fiz oh mar oh mar Que ao verme põeste a arfar a arfar Quebrando as ondas tuas De encontro às rochas nuas Suspende a zanga um momento Escuta A voz do meu sofrimento Na luta Que o amor acende em meu peito Desfeito De tanto amar e penar Oh mar Que até parece oh mar oh mar Um coração a arfar a arfar Em ondas pelas fráguas Quebrando as suas máguas Dáme notícias do meu amor Amor Que um dia os ventos do céu Oh dor Nos seus braços furiosos Levaram E ao meu sorriso invejosos Roubaram Não mais voltou ao lar ao lar Não mais o vi oh mar oh mar Mar fria sepultura Desta minha alma escura Roubasteme a luz querida Do amor E me deixaste sem vida No horror Oh alma da tempestade Amansa Não me leves a saudade E a esperança Que esta saudade é quem é quem Me ampara tão fiel fiel É como a doce mãe Suavíssima e cruel Mas máguas desta aflição Que agita Meu infeliz coração Bendita Bendita seja a esperança Que ainda Lá me promete a bonança Tão linda 84 PEDRO Monteiro CARDOSO 18901942 Nascido na Ilha do Fogo foi professor de ensino primário além de um importante ativista tendo publicado volumes em prol dos direitos dos crioulos e sobre o folclore de Cabo Verde Discutia temas desde analfabetismo arborização até questões como o nativismo e a autonomia da província Suas composições políticas ou não estão muito ligadas à condição de insularidade do paísarquipélago XI A minha Pátria é uma montanha Olímpica tamanha Do seio azul do Atlântico brotada E aos astros com vigor arrernessada Pelo braço potente do Criador Sobranceia cem léguas em redor E tão alta que acima do seu cume Só o plaustro de Apolo coruscante Só o bando estelar de águias de lume E a mente ousada de um Camões ou Dante Como é formosa E majestosa A minha amada Terra natal Quer do Sol sob a clâmide doirada Quer da Lua sob a lúcida cambraia é tão formosa que não tem rival Além das nuvens alevantada O bravo Oceano a seus pés desmaia Para a gloria do mando fêla Deus Altiva e forte generosa e brava Assim foram outrora os filhos seus Se lhe palpita o coração robusto Em derredor tudo estremece logo Pálida e fria de pavor a Brava E em ânsias Santiago e o Maio adusto Fala e as palavras fluem em torrentes De lavas rugidoras e candentes Na verdade escutai chamase Fogo Quando vier Pátria amada A morte pra me levar Deixame a fronte cansada Em teu seio repousar 85 JORGE VeraCruz BARBOSA 19021971 Fez os estudos primários entre Lisboa e a Ilha de Santiago onde nasceu Com dezoito anos começou a trabalhar na alfândega de São Vicente Seu primeiro livro de foi editado em 1935 um ano antes de surgir a revista Claridade que ajudou a fundar e abriu o caminho para que uma modernidade poética renovasse a lírica caboverdiana discorrendo sobre temas de interesse nacional através de uma retórica marcada por um prosaísmo reflexivo Prelúdio Quando o descobridor chegou à primeira ilha nem homens nus nem mulheres nuas espreitando inocentes e medrosos detrás da vegetação Nem setas venenosas vindas no ar nem gritos de alarme e de guerra ecoando pelos montes Havia somente as aves de rapina de garras afiadas as aves marítimas de voo largo as aves canoras assobiando inéditas melodias E a vegetação cujas sementes vieram presas nas asas dos pássaros ao serem arrastadas para cá pelas fúrias dos temporais Quando o descobrir chegou e saltou da proa do escaler varado na praia enterrando o pé direito na areia molhada e se persignou receoso ainda e surpreso pensando nElRei nessa hora então nessa hora inicial começou a cumprirse este destino de todos nós 86 Panorama Destroços de que continente de que cataclismos de que sismos de que mistérios Ilhas perdidas no meio do mar esquecidas num canto do Mundo que as ondas embalam maltratam abraçam Montes alerta implorando ao céu Montes alerta nos seus contorcionismos extáticos de séculos rindo para o oceano gargalhadas que ficaram apenas começadas sorrindo para o céu esgares enigmáticos como que a evocaram um drama milenário Praias desertas de areias macias com fosforências ao sol e restos de navios apodrecendo ao longo praias abertas às brisas marinhas praias cobertas de conchas caprichosas búzios multicores calhaus hostis praias onde naufragaram navios aonde aportaram caravelas onde saltaram marinheiros queimados corsários escravos aventureiros condenados fidalgos negreiros donatários das ilhas CapitãesMores 87 Regresso Navio aonde vais deitado sobre o mar Aonde vais levado pelo vento Que rumo é o teu navio do mar largo Aquele país talvez onde a vida é uma grande promessa e um grande deslumbramento Levame contigo navio Mas torname a trazer 88 OSVALDO ALCÂNTARA 19071989 Pseudônimo de Baltasar Lopes da Silva cujo nascimento se deu na Ilha de São Nicolau Depois de concluir os estudos secundários foi cursar universidade em Lisboa Ao se formar retornou ao Cabo Verde onde teve uma carreira na educação Foi um dos fundadores da revista Claridade que propunha o lema de fincar os pés na terra engajada nos problemas e nas discussões nacionais Além de poeta seu romance Chiquinho foi bastante influente nessa nova literatura caboverdiana Sua poesia além de um importante diálogo com certos poetas brasileiros discorre sobre a vida e os dilemas com os quais se ocupam os ilhéus Itinerário de Pasárgada Saudade fina de Pasárgada Em Pasárgada eu saberia onde é que Deus tinha depositado o meu destino E na altura em que tudo morre cavalinhos de Nosso Senhor correm no céu a vizinha acalenta o sono do filho rezingão Tói Mulato foge a bordo de um vapor o comerciante tirou a menina de casa os mocinhos da minha rua cantam Indo eu indo eu a caminho de Viseu Na hora em que tudo morre esta saudade fina de Pasárgada é um veneno gostoso dentro do meu coração Ressaca Venham todas as vozes todos os ruídos e todos os gritos venham os silêncios compadecidos e também os silêncios satisfeitos venham todas as coisas que não consigo ver na superfície da sociedade dos homens venham todas as areias lodos fragmentos de rocha que a sonda recolhe nos oceanos navegáveis venham os sermões daqueles que não têm medo do destino das suas palavras venha a resposta captada por aqueles que dispõem de aparelhos detectores apropriados volte tudo ao ponto de partida e venham as odes dos poetas casemse os poetas com a respiração do mundo venham todos de braço dado na ronda dos pecadores que as criaturas se façam criadores venha tudo o que sinto que é verdade além do círculo embaciado da vidraça 89 Eu estarei de mãos postas à espera do tesouro que me venha na onda do mar A minha principal certeza é o chão em que se amachucam os meus joelhos doloridos mas todos os que vierem me encontrarão agitando a minha lanterna de todas as cores na linha de todas as batalhas Mar É estrela e única vida Vida que sobe das esquinas ocultas no mar sem águas no mar com águas sem sal que vêm a diluirse lá do fundo das distâncias mágicas Vida para quê Ó distância da vida pouco e pouco escoandose Mistério do caminho cada vez mais certo E as auroras que eu via e nelas me alava para as viagens futuras Mas não esta viagem em limite de passadas mutiladas Mar tu és o que fica 90 MANUEL dos Santos LOPES 19072005 Oriundo do Mindelo ao fim da infância emigrou com sua família para Coimbra Quatro anos depois regressou para o arquipélago como funcionário de uma firma inglesa Foi um dos fundadores da revista Claridade junto dos mais importantes e contestadores intelectuais de Cabo Verde da época Sua vasta obra apresenta uma interessante diversidade já que seus romances Chuva Braba e Os Flagelados do Vento Leste figuram como algumas das mais importantes obras da ficção caboverdiana Sua poesia visita os temas de Cabo Verde com um lirismo que expressa a melancolia da subjetividade nacional Cais Nunca parti deste cais e tenho o mundo na mão Para mim nunca é de mais responder sim cinquenta vezes a cada não Por cada barco que me negou cinquenta partem por mim Mundo pequeno para quem ficou Mundo pequeno para quem ficou Naufrágio Ai a tristeza do vento chorando Ai as nuvens indo à solta em louca corrida medrosas fugindo à mão estendida Ai a solidão dos montes despidos à nossa volta onde a vida aos poucos se consome seios nus ensanguentados onde as raízes morrem de fome E nos rostos ensombrados rondam saudades países navegam velas distâncias Gestos parados caladas ânsias gritos sem voz Dorme o Nosso Senhor Só dentro de cada um de nós 91 envolvido pelo pó que o vento remexeu e levantou Ai este Atlântico triste que nos deu a nostalgia dum mundo que só existe no sonho que ele povoou Encruzilhada Que disse a Esfinge aos homens mestiços de cara chupada Esta encruzilhada de caminhos e de raças onde vai ter Por que virgens paragens se prolonga Aonde vão nas suas andanças os homens mestiços de cara chupada Que significa para eles o amanhecer Ilhas de heroísmos e derrotas e esperanças que a História não escreve onde a hora é longa e o dia breve Ruína Mar parado na tarde incerta No horizonte uma vela que se perde atrás da rocha com cara de gente Voz sem boca canta morna monocordicamente quando o Sol diz adeus no raio verde A tarde é morta na praia deserta A voz é rouca O céu é sangue ou brasa Mão decepada acena ao sol ausente inútil adeus pela porta que ficou aberta num muro que já foi casa 92 OVÍDIO de Sousa MARTINS 1928 Logo após ter completado o liceu no Mindelo cidade onde nasceu parte para Lisboa matriculandose na Faculdade de Direito Jamais chegaria a se formar devido a perda quase completa da audição Da sua importante atividade cultural podese tomar como exemplo a participação como fundador do Suplemento Cultural cujo tom era bastante reivindicativo Por causa desses engajamentos teve de se exilar na Holanda Sua poesia tem um caráter bastante político numa retórica que não foge ao combate Flagelados do Vento Leste Nós somos os flagelados do VentoLeste A nossa favor não houve campanhas de solidariedade não se abriram os lares para nos abrigar e não houve braços estendidos fraternalmente para nós Somos os flagelados do VentoLeste O mar transmitiunos a sua perseverança Aprendemos com o vento a bailar na desgraça As cabras ensinaramnos a comer pedras para não perecermos Somos os flagelados do VentoLeste Morremos e ressuscitamos todos os anos para desespero dos que nos impedem a caminhada Teimosamente continuamos de pé num desafio aos deuses e aos homens E as estiagens já não nos metem medo porque descobrimos a origem das coisas quando pudermos Somos os flagelados do VentoLeste Os homens esqueceramse de nos chamar irmãos E as vozes solidárias que temos sempre escutado São apenas as vozes do mar que nos salgou o sangue as vozes do vento 93 que nos entranhou o ritmo do equilíbrio e as vozes das nossas montanhas estranha e silenciosamente musicais Nós somos os flagelados do VentoLeste Antievasão Pedirei Suplicarei Chorarei Não vou para Pasárgada Atirarmeei ao chão e prenderei nas mãos convulsas ervas e pedras de sangue Não vou para Pasárgada Gritarei Berrarei Matarei Não vou para Pasárgada O único impossível Mordaças A um Poeta Loucura E porque não Fechar na mão uma estrela O Universo num dedal Era mais fácil Engolir o mar Extinguir o brilho aos astros Mordaças A um Poeta Absurdo E porque não 94 Parar o vento Travar todo o movimento Era mais fácil deslocar montanhas com uma flor Desviar cursos de água com um sorriso Mordaças A um Poeta Não me façam rir Experimentam primeiro Deixar de respirar Ou rimar mordaças Com Liberdade 95 VERA Valentina Benrós de Melo DUARTE Lobo de Pina 1952 Nascida no Mindelo depois de terminar os estudos secundários em Cabo Verde cursa a Universidade de Lisboa Ao voltar ao arquipélago tornase jurista na Suprema Corte mais tarde atuando como conselheira do presidente Estreou na literatura em 1993 com um livro de poesias Desde então sua obra na qual consta também diversos livros de ficção tem sido bastante lida e difundida na lusofonia e em várias traduções pelo mundo A rapariga do vestido azul O meu vestido azul ultramarino Feito de miosótis e flocos de neve Cobria a minha nudez De códigos amarrotados E desejos por saciar Em fogo me entreguei a ti Trémula ardente carente Num tempo devorado pela peste Em toda a minha nudez Vestida de azul ultramarino Em fratura exposta Na urgência do desejo Meu coração se rendeu desesperado À paixão da carne intumescida Que incendiou meus sonhos de ti Meu vestido azul ultramarino Bordado de miosótis e flocos de neve Que cobria minha nudez Não cabe mais em mim Neste destino implacável Que tu me decretaste Meu vestido azul ultramarino Em flocos de neve bordado Ficou abandonado Sujo e destroçado Num qualquer porão negreiro Junto a meus sonhos esfrangalhados Desejos Queria ser um poema lindo cheirando a terra com sabor a cana 96 Queria ver morrer assassinado um tempo de luto de homens indignos Queria desabrochar flor rubra do chão fecundado da terra ver raiar a aurora transparente ser rbeira djulion em tempo de são joão nos anos de fartura despiga dmidje E ser riso flor fragrante em cânticos na manhã renovada S TOMÉ E PRÍNCIPE 98 CAETANO DA COSTA ALEGRE 18641890 Natural de São Tomé de uma família crioula portuguesa em 1882 se mudou para Lisboa onde buscava formação médica Veio a morrer de tuberculose antes de obter o diploma Um amigo publicou em 1916 um volume com seus versos cujo êxito foi enorme Sua poesia expressa assuntos raciais de maneira aberta tendo o poeta sofrido de racismo ao ser rejeitado por uma mulher branca devido à cor de sua pele A Negra Negra gentil carvão mimoso e lindo Donde o diamante sai Filha do sol estrela requeimada Pelo calor do Pai Encosta o rosto cândido e formoso Aqui no peito meu Dorme donzela rola abandonada Porque te velo eu Não chores mais criança enxuga o pranto Sorrite para mim Deixame ver as pérolas brilhantes Os dentes de marfim No teu divino seio existe oculta Mal sabes quanta luz Que absorve a tua escurecida pele Que tanto me seduz Eu gosto de te ver a negra e meiga E acetinada cor Porque me lembro ó Pomba que és queimada Pelas chamas do amor Que outrora foste neve e amaste um lírio Pálida flor do vale Fugiute o lírio um triste amor queimoute O seio virginal Não chores mais criança a quem eu amo Ó lindo querubim O amor é como a rosa porque vive No campo ou no jardim Tu tens o meu amor ardente e basta Para seres feliz Ama a violeta que a violeta adorate Esquece a flordelis Aurora Tu tens horror de mim bem sei Aurora Tu és o dia eu sou a noite espessa Onde eu acabo é que o teu ser começa Não amas flor que esta minha alma adora És a luz eu a sombra pavorosa Eu sou a tua antítese frisante Mas não estranhes que te aspire formosa Do carvão sai o brilho do diamante Olha que esta paixão cruel ardente Na resistência cresce qual torrente 99 É a paixão fatal que vem da sorte É a paixão selvática da fera É a paixão do peito da pantera Que me obriga a dizerte amor ou morte A minha cor é negra A minha cor é negra Indica luto e pena É luz que nos alegra A tua cor morena É negra a minha raça A tua raça é branca Tu és cheia de graça Tens a alegria franca Que brota a flux do peito Das cândidas crianças Todo eu sou um defeito Sucumbo sem esperanças E o meu olhar atesta Que é triste o meu sonhar Que a minha vida é mesta E assim há de findar Tu és a luz divina Em mil canções divagas Eu sou a horrenda furna Em que se quebram vagas Porém brilhante e pura Talvez seja a manhã Irmã da noite escura Serás tu minha irmã Contraste O Sol astro mais belo do universo O Sol diz a ciência dando a aurora Em tanta luz imerso Só esplendor por fora Só trevas é no centro Ó sol és meu inverno Negro por fora eu tenho amor cá dentro 100 FRANCISCO JOSÉ de Vasques TENREIRO 19211963 Nascido em São Tomé bem cedo foi estudar em Lisboa onde chegou a concluir estudos superiores tornandose um geógrafo Esteve em contato com o movimento neorealista português e o Novo Cancioneiro além do movimento Négritude na França o que fez com que fizesse um ensaio geográficosociológico de São Tomé Sendo mestiço pela cor e pela cultura sua obra expressa essa profunda relação heterogênea Canção do Mestiço Mestiço Nasci do negro e do branco e quem olhar para mim é como que se olhasse para um tabuleiro de xadrez a vista passando depressa fica baralhando cor no olho alumbrado de quem me vê Mestiço E tenho no peito uma alma grande uma alma feita de adição como 1 e 1 são 2 Foi por isso que um dia o branco cheio de raiva contou os dedos das mãos fez uma tabuada e falou grosso mestiço a tua conta está errada Teu lugar é ao pé do negro Ah Mas eu não me danei e muito calminho arrepanhei o meu cabelo para trás fiz saltar fumo do meu cigarro cantei do alto a minha gargalhada livre que encheu o branco de calor Mestiço Quando amo a branca sou branco 101 Quando amo a negra sou negro Pois é Corpo Moreno Se eu dissesse que o teu corpo moreno tem o ritmo da cobra preta deslisando mentia Mentia se comparasse o teu rosto fruto ao das estátuas adormecidas das velhas civilizações de África de olhos rasgados em sonhos de luar e boca em segredos de amor Como a minha Ilha é o teu corpo mulato tronco forte que dá amorosamente ramos folhas flores e frutos e há frutos na geografia do teu corpo Teu rosto de fruto olhos oblíquos de safú boca fresca de framboesa silvestre és tu És tu minha Ilha e minha África forte e desdenhosa dos que te falam à volta Canto do Òbó O sol golpeia as costas do negro e rios de suor ficam correndo Ardor O machim golpeia o pau e rios de seiva escorrendo Ardor Os olhos do branco como chicotes ferem o mato que está gritando Só o água sussurrantemente calmo corre prao mar tal qual a alma da terra 102 ALDA Neves da Graça DO ESPÍRITO SANTO 19262010 Tendo nascido em São Tomé de uma professora primária e de um funcionário dos Correios fez os primeiros estudos no arquipélago Em 1940 mudase com a família para o norte de Portugal vindo depois a cursar ensino superior em Lisboa Sua casa tornouse o ponto de encontro do Centro de Estudos Africanos Em 1953 retorna a São Tomé e atua como professora e jornalista Seus poemas possuem um forte caráter político de uma retórica direta e com imagens que denunciam violência e repressão Onde estão os homens caçados neste vento de loucura O sangue caindo em gotas na terra homens morrendo no mato e o sangue caindo caindo nas gentes lançadas no mar Fernão Dias para sempre na história da Ilha Verde rubra de sangue dos homens tombados na arena imensa do cais Ai o cais o sangue os homens os grilhões os golpes das pancadas a soarem a soarem a soarem caindo no silêncio das vidas tombadas dos gritos dos uivos de dor dos homens que não são homens na mão dos verdugos sem nome Zé Mulato na história do cais baleando homens no silêncio de tombar dos corpos Ai Zé Mulato Zé Mulato as vítimas clamam vingança o mar o mar de Fernão Dias engolindo vidas humanas está rubro de sangue Nós estamos de pé Nossos olhos se viram para ti Nossas vidas enterradas nos campos da morte os homens do cinco de Fevereiro os homens caídos na estufa da morte clamando piedade gritando pla vida mortos sem ar e sem água levantamse todos da vala comum e de pé no coro de justiça clamam vingança 103 Os corpos tombados no mato as casas as casas dos homens destruídas na voragem do fogo incendiário as vidas queimadas erguem o coro insólito de justiça clamando vingança E vós todos carrascos e vós todos algozes sentados nos bancos dos réus Que fizeste do meu povo Que respondeis Onde está o meu povo E eu respondo no silêncio das vozes erguidas clamando justiça Um a um todos em fila Para vós carrascos o perdão não tem nome A justiça vai soar E o sangue das vidas caídas nos matos da morte o sangue inocente ensopando a terra num silêncio de arrepios vai fecundar a terra clamando justiça É a chama da humanidade cantando a esperança num mundo sem peias onde a liberdade é a pátria dos homens Repressão Os abutres varrem a face da Terra Jamais jamais enquanto a vida eu tiver Poderei esquecer o horrendo dia que esta data simboliza Marcada a ferrete dentro de mim Eu solidarizome com todas as vítimas Que sofreram o mesmo suplício Que todas as vítimas imoladas Possam soltar o canto da libertação S Tomé e Príncipe Irmãos de S Tomé e Príncipe 104 As datas são marcos da nossa história Setembro de setenta e quatro É uma fase nova e decisiva da nossa luta Um passo em frente é pontaria certeira Atenção irmãos do arquipélago isolado Cada hora é uma afirmação Duma viragem sem precedentes Nossos passos certos nas minas lançadas Nos trilhos das nossas caminhadas São granadas de alcance longo É preciso saltar as minas Nas emboscadas dos muros coloniais Nossa guerrilha é unidade na luta Nosso fuzil é palavra de ordem Pronta a disparar no momento exacto Irmãos do mundo nós somos guerrilheiros Das ilhas do mar sem fim A muralha colonial é nosso campo de batalha Rastilho engatilhada aponta contra nós Perspicácia do ilhéu é coluna na nossa luta Manobras multiplicadas avançam hora após hora Condicionalismo geográfico Nega eco à voz do ilhéu Rádio e imprensa estão distantes do processo irreversíveis Das ilhas do fim do mundo Mas o mar da separação não afoga nossa luta Nós somos guerrilheiros Com armas de alto calibre O mar da divisão Dá força ao fuzil do ilhéu A força da unidade é nossa metralhadora 105 Maria da CONCEIÇÃO de Deus LIMA 1961 Natural de Santana foi estudar jornalismo em Portugal e ao retornar ao seu país trabalhou na rádio na televisão e na imprensa Sua poesia é preocupada em expressar o ambiente de São Tomé e Príncipe no período póscolonial quando nem todos os ideais dos indivíduos que lutaram pela independência foram mantidos Na praia de São João Há séculos que a sua fronte taciturna desafia a premonição das estrelas os rijos movimentos o solitário remo a herdada sapiência de pressentir o cheiro da calema e a mandíbula do tubarão Ele que acredita em deus e nos deuses na bondade dos amuletos na ciência dos astros na falível destreza dos seus braços há séculos que parte com a alvorada sem ninguém o ver Todos os dias aguardamos porém o seu retorno a brancura do sal nos músculos retesados o impulso final e a canoa implantada no colo da praia Em seu rasto perscrutamos ao cair do dia os limites do mar Por seu vulto ganham nova pressa os passos das mulheres o tilintar das moedas o pregão das palayês E se enchem de falas as feiras ao entardecer Deste lado a outra margem do infinito onde o crepúsculo saúda o regresso de lá do horizonte do hemisfério da espuma da linha oculta no azul espesso do lugar onde a água só conhece a voz da água Nós te aguardamos mercador lunar despercebido guerreiro e ao brilho das escamas que revelas Pois sem ti a praia seria apenas praia o perfil do mar a queixa do vento ou a nudez de anónimas pegadas na areia 106 Inegável Por dote recebite à nascença e conheço em minha voz a tua fala No teu âmago como a semente na fruta o verso no poema existo Casa marinha fonte não eleita a ti pertenço e chamote minha como à mãe que não escolhi e contudo amo A Lenda da Bruxa San Malanzo era velha muito velha San Malanzo era pobre muito pobre Não tinha filhos não tinha netos Não tinha sobrinhos não tinha afilhados Nem primos tinha e nem enteados Ela era muito pobre e muito velha Muito velha e muito pobre era Era velha era pobre san Malanzo Pobre e muito velha Velha e muito pobre Era velha e pobre Era pobre e velha Velha pobre Pobre velha Velha Pobre Feiticeira Os Heróis Na raiz da praça sob o mastro ossos visíveis severos palpitam Pássaros em pânico derrubam trombetas recuam em silêncio as estátuas para paisagens longínquas Os mortos que morreram sem perguntas regressam devagar de olhos abertos indagando por suas asas crucificadas GUINÉBISSAU 108 AMÍLCAR Lopes da Costa CABRAL 19241973 Nascido na cidade guineense de Bafatá mudouse aos oito anos para Cabo Verde onde fez estudos primários e médios Foi cursar ensino superior em Lisboa onde esteve em contato com diversos estudantes vindos da África Vai para Bissau em 1952 de onde por questões políticas tem de se mudar para Angola e se junta ao MPLA Funda o Partido Africano de Independência o qual depois de anos na militância começa a luta armada em 1963 Em 1973 foi assassinado por dois membros do seu próprio partido Seus poemas impressos em jornais mostram um indivíduo preocupado com dilemas humanos e sociais num tom embora reflexivo ainda esperançoso A minha Poesia sou eu Não Poesia Não te escondas nas grutas de meu ser não fujas à Vida Quebra as grades invisíveis da minha prisão abre de par em par as portas do meu ser sai Sai para a luta a vida é luta os homens lá fora chamam por ti e tu Poesia és também um Homem Ama as Poesias de todo o Mundo ama os Homens Solta teus poemas para todas as raças para todas as coisas Confundete comigo Vai Poesia Toma os meus braços para abraçares o Mundo dáme os teus braços para que abrace a Vida A minha Poesia sou eu Que fazer Que fazer Eu não compreendo o Amor eu não compreendo a Vida Mistérios insondáveis Formidáveis Mistérios que o Homem enfrenta Mistérios de um mistério Que é a alma humana Eu não compreendo a Vida Há luta entre os humanos Há guerra Há fome e há injustiça imensa 109 Há pobres seculares Aspirações que morrem Enquanto os fortes gastam Em gastos não precisos Aquilo que outros querem Eu não compreendo o amor Amamos quem sabemos impossível Sentir por nós aquilo Que tanto cobiçamos A Vida não me entende Eu não compreendo a Vida Quero entender o Amor E o amor não me compreende Poema Quem é que não se lembra Daquele grito que parecia trovão É que ontem Soltei meu grito de revolta Meu grito de revolta ecoou pelos vales mais longínquos da Terra Atravessou os mares e os oceanos Transpôs os Himalaias de todo o Mundo Não respeitou fronteiras E fez vibrar meu peito Meu grito de revolta fez vibrar os peitos de todos os Homens Confraternizou todos os Homens E transformou a Vida Ah O meu grito de revolta que percorreu o Mundo Que não transpôs o Mundo O Mundo que sou eu Ah O meu grito de revolta que feneceu lá longe Muito longe Na minha garganta Na garganta de todos os Homens Sim querote Querote quando solitário cismo na nossa vida nossa triste vida 110 e otimista esperançoso eu vejo o meu futuro o teu futuro e uma vida melhor Querote quando a nossa melodia a nossa morna cantas docemente e eu sonho eu vivo e eu subo a escada mágica da tua voz serena e eu vou viver contigo Querote quando contemplo o nosso mundo um mundo de misérias de dor e de ilusões e penso e creio e tenho a máxima Certeza do que o romper da aurora do dia para todos não tarda e vem já perto E o mundo de misérias será um mundo de Homens Eu querote Eu querote Como o dia de amanhã 111 VASCO CABRAL 19262005 Oriundo de Farim no norte da GuinéBissau participa ativamente da oposição antisalazarista Conclui em Lisboa o ensino superior e parte numa viagem para Bucareste Ao voltar acaba preso passando cinco anos em cárcere por motivos políticos Depois da prisão passa à clandestinidade mais tarde vindo a aderir ao PAIGC Escapou por pouco do atentado que vitimou Amílcar Cabral De 1980 até um ano antes de sua morte ocupou vários cargos no governo guineense Sua poesia típica do momento político em que viveu tem um forte engajamento e uma vontade de esperança A luta é a minha primavera A luta é a minha primavera Sinfonia de vida o grito estridente dos rios a gargalhada das fontes o cantar das pedras e das rochas o suor das estrelas a linha harmonia dum cisne Onde está a poesia A poesia está nas asas da aurora quando o sol desperta A poesia está na flor quando a pétala se abre às lágrimas do orvalho A poesia está no mar quando a onda avança e branda e suavemente beija a areia da praia A poesia está no rosto da mãe quando na dor do parto a criança nasce A poesia está nos teus lábios quando confiante Sorris à vida A poesia está na prisão quando o condenado à morte dá uma vida à liberdade A poesia está na vitória 112 quando a luta avança e triunfa e chega a Primavera A poesia está no meu povo quando transforma o sangue derramado em balas e flores em balas para o inimigo e em flores para as crianças A poesia está na vida porque a vida é luta Saudades dos que dizem adeus Saudade dos que dizem adeus lágrima voando voando como asa de brisa E longe mas perto o coração a bater a bater Saudade dos que dizem adeus grito com eco repercutindo no peito em silêncio em silêncio É dor sem ser dor fogo que queima na alma Presença do inefável do vago Murmúrio da onda que chega e parte sem se mover Saudade dos que dizem adeus lágrima voando voando como pássaro triste Desabafo Oh Que bom seria transformar Os falcões em pombas 113 E fazer as pombas sorrirem na Primavera Oh Como gostaria eu De beijar na boca a madrugada E afagar com os meus dedos os cabelos do futuro para que a paz e a liberdade fossem universais 114 ANTÓNIO BATICÃ FERREIRA 1939 Após um curto período passado em GuinéBissau desde seu nascimento com seis anos se muda para Dakar um ano depois continua os estudos em Paris Obtém o diploma de medicina pela Faculdade de Lausanne com o qual fez residência em um hospital em Lisboa Nunca deixou de visitar com frequência seu país natal Embora tenha começado a escrever poesia em francês eventualmente começou a alternála com a escrita em língua portuguesa Sua poesia apresenta certa nostalgia embora um tanto amarga com os espaços da África e mais especificamente da GuinéBissau País Natal Um sentimento de amor pátrio sobe no meu coração Em espírito demando o meu país natal E lembro aquela floresta africana Cheia de caça e de verdura Lembro as suas imensas árvores gigantes A folhagem verde ou amarela Que nos perfuma Revejo a minha infância Toda cheia de alegrias Eu corria pelo mato Espiava os animais selvagens Sem medo E olhava os lavradores nos campos E no mar os pescadores Que lutavam contra o vento para agarrar o peixe E que eu atento seguia com o olhar Como gostava de os ver no oceano Domar as vagas que lhes queriam virar as barcas Ah bem me lembro bem me lembro do meu país natal Infância Eu corria através dos bosques e das florestas Eu corno o ruído vibrante de um bosque desvendado Eu via belos pássaros voando pelos campos E parecia ser levado por seus cantos Subitamente desviei os meus olhos Para o alto mar e para os grandes celeiros Cheios da colheita dos bravos camponeses Que terminando o dia regressavam à noite entoando Canções tradicionais das selvas africanas Que lhes lembravam os ódios ardentes Dos velhos Subitamente uma corça gritou 115 Fugindo na frente dos leões esfomeados Aos saltos os leões perseguiram a corça Derrubando as lianas e afugentando os pássaros A desgraçada atingiu a planície E os dois reis breve a alcançaram Amargura Meu coração chora Saio da cidade e vagueio Pelos campos na planura Por arrozais e florestas Um vento brusco e potente Sacode as árvores As aves cantam Rugem leões Urram elefantes Sinto odores nauseantes De folhas apodrecidas Venceme cada vez mais a amargura Só estou só e perdido Na floresta africana Os animais selváticos não entendem a minha voz Falo com o vento as flores Os montes Venceme fatal melancolia Só o vento me acaricia Estou longe dos homens Longe dos meus semelhantes Dos amigos Muito longe Longe do gênero humano Só Só Só 116 Maria ODETE da Costa Soares SEMEDO 1959 Tendo suas origens na cidade de Bissau aos 18 anos começou sua carreira na educação Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas por uma universidade portuguesa ao voltar ao seu país exerceu vários cargos no âmbito da educação chegando a ser Ministra da Educação e Ministra da Saúde Em 2008 se muda para o Brasil cursando doutorado na PUC de Minas Retornando ao seu país assume a reitoria da Universidade Amílcar Cabral Sua poesia explora a subjetividade lírica de um indivíduo que manifesta um desabafo escancarado de uma situação a do seu país e do seu povo Flor sem nome Flor sem nome Em chão árido e seco No deserto envolvente Um fundo verde Da esperança longínqua Eu só nessa flor A florir longe de pensamentos Longe de sentimentos E ao longe Lágrimas cobrindo rostos Essa flor sou eu Sem nome sem cheiro A beira mar Colorida Sobrevive também pelo verde Ilhas sem nome Meus olhos Ilhas sem nome Maré alta a transbordar no oceano Ondas salgadas Que insuportam o acordar Vazias de vida Meus olhos Olhos sem nome Precipitam e atentam Contra o impávido Meus olhos nossos olhos Ilhas sem nome Aprisionados pelas mãos pelos Soltam raios dedos Reconhecem outros olhos E inacreditam esqueletos ousados 117 Abandonados pela carne Espreitando Meus olhos Nossos olhos todos os olhos Ilhas sem nome Ganharam um nome Passaram a ser Olhosquejánãoacreditam E ninguém podia crer E ninguém podia crer Entre a dor que sinto e o que pressinto na alma da minha terra que caminho trilhar Entre a dor que sinto entre o ser e o estar venceram a ganância a violência e o desespero E nós não acredito no que os meus olhos vêem Heroína do teu conto Quero ser heroína Do conto que inventares Que firme segue o seu destino Quero ser uma mortal Guiada pelo teu poder E pela tua voz Quero ser uma semideusa E vencer os obstáculos Que tu teceres Escapar das nuvens e do próprio sol Quero ser a deusa lua no teu conto Acompanhar as crianças Nas suas fantasias E no sonho seguir os seus desígnios Quero ser a heroína do teu conto Ou apenas um verso do teu canto