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adora o verdadeiro É um verso claríssimo que não precisa de explicação Baco deus da fábula e portanto falso adora Cristo verdadeiro Deus Todos os comentadores o lêem assim a começar por Faria e Sousa leitor também ingénuo apesar de vastamente erudito E assim também o leu o autor destas linhas na sua edição dOs Lusíadas 1978 embora já prevenido contra as ciladas de Ca moes Em português tanto o falso deus como O verdadeiro podem ser indiferentemente sujeitos da proposição Passando a frase para a forma passiva tanto se pode dizer que o falso deus era adorado pelo verdadeiro como que o verdadeiro era adorado pelo falso Mas quem é o falso deus e quem é O verdadeiro É aqui que reside a questão Tanto podemos supor que o verdadeiro deus é Cristo e Baco falso figura Extraído de Quademi Portoghesi 7 8 1 1980 39 For Evaluation Only Copyright c by Foxit Software Company 2004 2007 Edited by Foxit PDF Editor 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 do Demónio segundo Faria e Sousa como que o falso é Cristo e o verdadeiro é Baco Mas esta segunda interpretação é inviável porque vai contra a crença de Camões que era cristão e católico sem sombra de dúvida E se dúvida houvesse nunca Camões podia conside rar como verdadeiro um deus da fábula Por isso a primeira in terpretação é óbvia Mas esta primeira interpretação tem por base um pressuposto estético é que Camões em todo o espaço dOs Lusadas tal como na líricat exprimiu directamente a sua subjectividade sendo por isso os deuses da fábula meros ornamentos ou cau sas segundas alegorizadas ou ainda como queria Faria e Sousa que nisto seguia o primeiro censor dOs Lusíadas figuras do Demónio Mas examinemos o contexto do verso sem preconceito Baco quer armar uma cilada aos Portugueses atraindoos a um porto que eles julguem habitado por cristãos para isso finge e fabrica um altar com a imagem do Pentecostes e ajoelhase diante dela com aparência humana queimando incenso ao lado de dois portugueses enviados a averiguar a verdade J e assi por derradeiro O falso deus adora o verdadeiro Isto é Baco adorava a imagem que ele próprio fabricara e fin girat adorava um deus fingido falso feito pelas mãos dele Baco que era o verdadeiro autor deste artifício O falso deus a imagem fingida de Deus era adorado pelo próprio que o fi zera pelo seu autor real A interpretação correcta é portanto a contrária àquela que tem sido dada ao verso o verdadeiro deus Baco adora o deus fingido na pintura do Pentecostes e fingido com a intenção de enganar os Portugueses isto é falso Baco é um deus que fabrica Cristo é um deus fabricado uma imagem Esta interpretação tem a seu favor o contexto anterior e pos terior do verso Logo na estrofe seguinte se diz que os dois por tugueses não se aperceberam da cilada 40 não vendo que enganados Os tinha o falso e santo fingimento Repetese o adjectivo falso seguido de santo ambos apli cados a fingimento como se Camões quisesse esclarecer o sen tido em que empregara o falso na estrofe anterior e acrescentase santo para ressalvar a reverência que se deve às imagens sagradas mesmo quando feitas com a intenção de en ganar De resto na própria estrofe 12 há um verso que parece prepararnos para o falso deus Dizse que os companheiros portugueses se ajoelharam e puseram os sentidos Naquele Deus que o mundo governava Não é o Deus que governa mas o Deus que no fingimento de Baco governava O pretérito imperfeito é o verbo usado no discurso indirecto isto é no discurso atribuído a outros Não indica o que realmente acontece mas sim o que acontece se gundo o ponto de vista de outrem O deus fingido não é o Deus que governa mas o que Baco fingidamente pretendia que go vernava É verdade que por vezes Camões emprega em fim de verso o imperfeito como equivalente do presente para facilidade de rima à semelhança do que se pratica no romanceiro o que poderia prestarse aliás neste caso a uma nova e voluntária ambiguidade A nossa interpretação tem também um pressuposto é que os verdadeiros deuses objectivos nOs Lusíadas são os deuses da fábula e que Deus cristão é um deus subjectivo ilusório den tro da máquina do Poema um deus relativo ao Autor nos seus apartes e aos actantes cristãos mas não deus para dentro do Poema e da sua acção Camões autorpersonagem é cristão Vasco da Gama e os Portugueses são cristãos mas o Poema é construído como se os deuses fossem objectivos independen tes da subjectividade do Poeta e dos heróis É um pressuposto meramente estéticot mas que serve de chave para a coerência do Poema Por ele se explica aquele famoso 41 For Evaluation Only Copyright c by Foxit Software Company 2004 2007 Edited by Foxit PDF Editor il 1 1 1 1 1 j 1 1 1 1 1 i j 1 passo que escandalizou Voltaire Vasco da Gama tendose aper cebido da cilada de Baco quando já estava a salvo implora ajuda da guarda divina para prosseguir a viagem É à guarda divina que ele se dirige como verdadeiro cristão mas quem con cretamente o ouve e responde com a acção à sua súplica é Vé nus para ee invisível Voltaire achou esta cena incongruente e de mau gosto Mas ela é na verdade rigorosamente coerente com o ponto de vista estético adoptado n Os Lusladas Desse ponto de vista a guarda divina cristã não existia objectiva mente era uma crença uma ilusão subjectiva de Vasco da Gama nascido e educado como cristão A realidade corres pondente a essa ilusão é Vénus deusa concreta objectiva actuante Camões foi extremamente coerente pois neste lance em que Vasco da Gama invoca o seu Deus que era também o Deus de Camões não se esqueceu de que os deuses do Poema tal como o planeara e concebera isto é os deuses da fábula sem mistura eram as únicas divindades efectivas do texto Cabe aqui notar que simetricamente a Cristo Mafamede ou o seu Deus tãopouco é um agente do Poema Quando os Mou ros tentam intrigar os Portugueses com o Samorim quem efec tivamente intervém é Baco sob a aparência do Profeta VIII 4850 Baco é aqui um Mafamede fingido como no canto II Cristo fora um falso deus Mas tanto os Mouros como os cris tãos são movidos nos seus comportamentos pelas respectivas crenças subjectivas O mouro que fala a Vasco da Gama em I 53 diz Nós temos a lei certa que insinou O claro descendente de Abraão Vasco da Gama respondelhe na mesma onda 42 A lei tenho daquele a cujo império Obedece o visíbil e invisíbil 1 65 Cada um tem a sua lei ou a sua convicção mas os deuses reais invisíveis são outros independentes da subjectividade Esta a que chamamos a lei estética da objectividade comanda toda a acção do Poema até ao seu desenlace na Ilha de Vénus Só nos cantos III IV v e VII há referências relativamente frequentes a Deust porque nesses cantos quem fala é Vasco da Gama con tando a história de Portugal e a sua própria viagem ou Paulo da Gama contando as pinturas das bandeiras ou o Monçaide muçulmano futuro cristão explicando à sua maneira o misté rio da Trindade não contando as largas intervenções em que o Poeta falat apresentandose pessoalmente Nem Vasco nem Paulo da Gama se referem aos deuses salvo ao gigante Ada mastor que é um espectro e alucinação dos viajantes Os can tos 1 II e VI são os cantos da acção narrativos objectivos a par tir do I 19 acabada a introdução No cantor encontramos duas estrofes em que o Gama descreve a sua fé ao mouro e define o seu Deus No canto II o Gama invoca como já vimos a Divina Guar da e interpreta em termos cristãos um sonho que lhe foi inspi rado por Mercúrio II 65 No canto VI a acção que fora interrompida pelo largo discurso do Gama ao rei de Melinde recomeça e novamente Deus volta a estar ausente só quase no final do canto estrofes 93 e 94 o Gama agradece a Deus a ces sação da tempestade devida à actividade de Vénus mais uma vez Vénus é a causa objectiva Deus a interpretação subjectiva por Vasco da Gama dessa causa O canto VII começa por uma larga exortação do Poeta em seu próprio nome apelando à cruzada e à união dos povos e r príncipes cristãos a descrição da India é feita por meio de um actante histórico o Monçaide e nela os deuses não têm cabi mento tanto mais que é um mouro há vários diálogos entre Cristãos e Mouros que naturalmente não podem referirse aos deuses da fábula este canto acaba com outra longa digressão do Autorpersonagem A intervenção dos deuses da fábula na acção histórica finda no canto VIII com a pálida aparição de Baco disfarçado de Mafamede 43 For Evaluation Only Copyright c by Foxit Software Company 2004 2007 Edited by Foxit PDF Editor I 1 1 1 1 1 1 r 1 1 1 1 1 1 1 1 1 É no canto IX que os deuses ou antes as deusas descem à Terra e tocandoa se desfazem Camões declarao no termo da descrição da festa nupcial Que as ninfas do Oceano tão f ermosas Tétis e a ilha angélica pintada Outra cousa não é que as deleitosas Honras que a vida fazem sublimada As ninfas são alegoria das honras Aquelas preminências gloriosas Os triunfos a fronte coroada De palma e louro a glória e maravilha Estes são os deleites desta ilha IX 89 A partir do canto IX os deuses deixam de agir La comme dia e finita A sua última acção como entidades objectivas foi a intervenção de Baco disfarçado de Mafamede em sonhos É também a partir do canto IX com o regresso dos nautas na estrofe 16 que acaba a acção histórica Daqui para a frente o Poema transformase numa alegoria declarada Os deuses es tão mortos e embalsamados e as suas múmias servem de orna mento Agora sim podese dizer que eles são figuras de retó rica Servem como emissores do discurso sobre as coisas futuras para os Portugueses da viagem à India A lei estética da objec tividade não funciona mais para eles nem tãopouco para os actantes históricos porque não há mais acção Então é o mo mento para Tétis declarar em nome de todos eles como um ac tor que vem despedirse à boca da cena Só pera fazer versos deleitosos Servimos X 82 44 Estes versos não são incongruentes se os considerarmos no con texto do canto x embora neguem a lei estética da objectividade que comanda os cantos anteriores ao IX E não havendo mais deuses já se pode falar de Deus como realidade e não já como crença subjectiva dos personagens cris tãos do Poema A palavra Deus no sentido cristão é referida doze vezes no canto x por Tétis filha do Céu e da Terra e não já ninfa do Oceano a qual além disso conta longamente a es tória de S Tomé É como se o véu se rompesse e desaparecesse a ilusão ficando o espaço limpo envolvido por Deus mas o que é Deus ninguém o entende que a tanto o engenho humano não se estende X 1 80 Deus é aqui definido como o Sujeito incognoscível e com efeito só é possível por definição conhecer o Objecto Deus é o que conhece e portanto está para além de todo o conheci mento Seria negálo referilo como objecto do que quer que fosse mesmo como deus ex machina de um poema E talvez isto tenha que ver profundamente com a lei estética da objectividade que preside à construção dOs Lusfadas Camões podia oferecer nos em espectáculo os deuses em que não acreditava mas não Deus perante quem ele próprio se sentia objecto criado e conhecido Para concluir queremos lembrar o que dizemos noutros lu gares que Os Lusíadas contrariamente à maior parte da lírica não são a expressão romântica da subjectividade do autor mas urna obra voluntariamente objectiva separada dele e em que ele procurou exprimir algo de exterior a si mesmo sem todavia atraiçoar a sua crença mais íntima Não há talvez obra mais objectiva na nossa literatura Por isso é necessário ter muita cau tela para usar o texto dOs Lusfadas como expressão daquilo que Camões sentia ou pensava como o fazemos para a lírica O que Camões pôs no Poema é aquilo que devia ser posto num poema daquele género isto é épico patriótico e cruzadístico 45 For Evaluation Only Copyright c by Foxit Software Company 2004 2007 Edited by Foxit PDF Editor 1 1 t 1 I I I i N 1 1 1 t 1 t 1 11 1 1 j E os deuses são uma esfera isoladora que permite narrar o pro cesso cósmico e histórico sem pressupor e sem empenhar Deus que pertencia à problemática mais funda e íntima de Camões Não quis que figurasse no fingimento a sua crença ou o seu pro blema que não eram fingidos nem mesmo nos apartes em que se suspende a acção para o Autor em pessoa dramática desa bafar as suas queixas contra o desconcerto º mundo 46 ü 1 j porque humanamente divinizado como um discurso de vida e não de morte Sendo assim a melhor conclusão para O exercício exis tencial e poético representado na sua obra lírica é a que se encon tra nos versos que encerram o comiato desta sua última canção Nem eu delicadezas vou cantando co gosto do louvor mas explicando puras verdades já por mim passadas Oxalá foram fábulas sonhadas Diogo do Couto afirmou que Camões era um homem de na turaleza terrível As terríveis naturezas muitas vezes impedem as terríveis desistências Regressado a Portugal do exílio geográfico que transmutara em ex11io metafísico nas rimas de Babel e Síão foi cm Os Lusíadas e a bem diferente visão do mundo que neles pro poe que Camões veio confrontar os seus contemporâneos E se no conJunto da sua poesia lírica Camões tinha tentado transformar o apetite em razão e a experiência em conhecimento assumindo como um projeto pessoal de autodescoberta uma viagem para uma 1va concepção da humanidade Os Lusíadas são a transposição inici at1ca porque cívica dessa viagem o corolário humanístico da sua não desistência de emendar a desrazão do mundo CA1I ÕES E A V I AG EM I N IC I Á T I CA II A ÉPICA D IZERQJE OS LUSÍADAS REPRESENTAM UMA VIAGEM É ÓBV IO ao ponto do irrelevante Mas talvez já não seja tão óbvio nem terá sido suficientemente acentuado qual a natureza simbólica da viagem que a obra representa Um poema épico tende a signifi car como discurso de segundas intenções um percurso espiritual uma viagem iniciática personalizada num herói E há um esque ma básico subjacente a toda viagem iniciática o qual por sua vez corresponde a uma magnificação da fórmula cristalizada nos ritos de passagem Esse esquema define três momentos fundamentais a chamada a viagem propriamente dita e o regresso Depois de ter reconhecido a chamada à aventura e recusála seria iniciar um processo inverso de autodestruição o herói separase do mundo familiar da comunidade a que pertence e parte para o mundo des conhecido Encontra aí forças fabulosas umas que o ajudam e ou tras que se lhe opõem e que ele pode ou não reconhecer pelo que são mas cujos efeitos inevitavelmente sente Para a sua aventura se tornar numa verdadeira iniciação terá de conseguir expandir a sua identidade pessoal ao ultrapassar sucessivos obstáculos até que no encontro com a Magna Mater momento indispensá vel e objetivo implícito da sua demanda tenha assumido o po der paterno de que depende a renovada continuidade da própria comunidade nele personalizada Terá então merecido a apoteose que consagra o seu triunfo e a última benesse que simboliza em si a imortalidade coletiva que conquistou Por essa razão é sempre necessário que regresse e se reintegre na comunidade de que tinha partido de modo a assegurar dentro dela a circulação da regene radora energia espiritual que a sua aventura libertou Com efeito do ponto de vista da comunidade o regresso do herói constitui 0 propósito e é a única justificação da sua longa ausência2 A vida de todos os grandes heróis da aventura religiosa Buda Cris to Maomé corresponde no essencial a este esquema sendo 0 propósito regenerador da sua demanda evidente nas religiões que trouxeram para as suas respectivas comunidades e na promessa li teral de imortalidade que essas religiões contêm e há um propósito de imortalização coletiva nOs Lusíadas tornase claro logo nos primeiros versos que transformam a aber tura do seu modelo ostensivo a Eneída do singular arma virum que cano nas armas plurais e nos múltiplos barões cuja me recida imortalidade Camões se propõe assegurar Vasco da Gama não é Eneias nem Odisseu não é um herói singular é O chefe 0 Capitão um dos barões assinalados cujo discurso dentro do dis curso global do poema tal como por exemplo o de Paulo da Gama também serve para assinalar outros barões numa ficção narrativa que o torna numa extensão ou máscara dramáti ca da voz do próprio poeta que fala através dele E o mesmo é ver dade para a fala de T étis na Ilha dos Amores Aliás Camões tem sempre o cuidado de indicar a ficção implícita na transposição da sua própria voz para as personagens precedendo ou intercalando as falas delas com invocações às musas que acentuam o seu cará ter de artifício dramático Na verdade como já tem sido afirmado mas pareceme nunca inteiramente explicado em termos de uma necessidade estrutural do poema Os Lusíadas são porventura O po ema épico onde a presença pessoal do autor mais vivamente se faz 2 C f C AMPB ELL Joseph 1lero with a thousandfaces C leveland Nova York World Publishing Company 1970 esta obra Campbell estabelece O ar quétipo do herói da viagem iniciática com ampla exemplificação que correla ciona as mitologias e as religiões ocidentais e orientais as tradições popula res e a psicanálise C f também os seus quatro volumes The masks ef God Nova York Viking Press 1968 C AM Õ ES E A V IAGEM I N IC I ÁTI CA sentir3 Os comentários pessoais de Camões que precedem e terminam a narrativa da viagem propriamente dita além de in tervirem nela e nas narrativas concêntricas da História que ela incorpora revelam um esforço permanente de colocar todo o poema numa perspectiva crítica que apresenta corno a sua E esta é a perspectiva do presente da escrita do poema e não a do passa do que o poema celebra A intervenção pessoal do poeta no que tradicionalmente deveria ser um discurso épico impessoal serve lhe assim para definir um referente que não é o Portugal que partiu na aventura mas o Portugal que está a ouvir sobre a aven tura Referente e destinatário coincidem a aventura terminou e 0 poema é o registo dessa aventura a sua comunicação à comuni dade após o regresso Mas quem regressou para a comunicar foi 0 poeta não foram os navegantes Neste sentido parece possível afirmar que é o próprio Camões e não Vasco da Gama quem en carna a figura do herói da viagem iniciática registada nOs Lusíadas 0 que traz à ambiguidade das funções intermutáveis do poeta e das suas personagens corno narradores do poema urna nova signi ficação estrutural Com efeito como também acontece nos con tos tradicionais e no picaresco o sujeito da narrativa dOs Lusíadas vaise alterando sucessivamente mas não o seu predicado que é 0 cantar a pátria4 e este remetese sempre de novo ao sujeito ori ginal da narrativa que é o próprio Camões quer quando usa a sua voz pessoal quer quando explicitamente a empresta às suas per sonagens A intermutabilidade estrutural assim conseguida per 3 orese no entanto que Roger Bismut claramente acentua a novidade da utilização que Camões faz de si próprio n0s Lusíadas em Les Lusiadcs de Ca mões confissíon dím poete Paris Fundação Calousre G ulbenkian Centro C ultu ral Português 1974 E que Jorge de Sena regista o valor funcional dessa uti 1 ização em A estrutura de Os Lusíadas e outros estudos camonianos e de poesia peninsular do século XVI Lisboa Porrugália 1970 uma obra de decisiva importância para a revitalização do estudo da épica camoniana 4 No que respeita especificamente aos contos tradicionais vejase o estudo pioneiro de Vladimi r Propp Morphologie du conte Paris Seuil 1970 11 A EPI CA 49 mite que Camões apresente aos seus contemporâneos e destina tários do poema como se da sua própria aventura se tratasse a aventura dos que nele celebra Personagens e autor convergem e entrelaçamse de tal maneira que o próprio poema adquire um valor semântico idêntico ao da viagem nele registada A implíci ta equivalência entre os feitos e o seu canto celebra tório que aliás representa um desenvolvimento da complementariedade huma nística entre as armas e as letras5 é expressa por Camões em ter mos particularmente claros quando intervém na fala de Paulo da Gama ao Catual para caracterizar a sua própria vida e a escrita do poema dela decorrente em termos de uma viagem marítima equi valente à que está a celebrar nOs Lusíadas Paulo da Gama ia expli car a simbologia das figuras nas bandeiras portuguesas começan do com a de Luso que um ramo na mão tinha Um ramo na mão tinha Mas ó cego eu que cometo insano e temerário sem vós Ninfas do Tejo e do Mondego por caminho tão árduo longo e vário Vosso favor invoco que navego por alto mar com vento tão contrário que se não me ajudais hei grande medo que o meu fraco batel se alague cedo Olhai que há tanto tempo que cantando o vosso Tejo e os vossos lusitanos a Fortuna me traz peregrinando novos trabalhos vendo e novos danos 5 Sobre o desenvolvi mento da temática das armas e das letras na cultura portu guesa é de leitura indispensável o estudo de Luís de Sousa Rebelo Armas e letras no Grande dícíonárío da literatura portuguesa e teoría literária Lisboa 1nicia tivas Editorais 1977 Vol 1 p 426453 posteriormente pubLcado em A tra díção clássíca na literatura portuguesa Lisboa Horizonte Universitário 1982 50 CA MÕES E A VIAGEM I N IC I ÁT ICA agora o mar agora esprimentando os perigos Mavórcios inumanos qual Cânace que à morte se condena nüa mão sempre a espada e noutra a pena VII 78 79 E prossegue inventariando os trabalhos e os perigos que passou Desta maneira ao mesmo tempo que o seu canto cele bra os feitos de outros regista as suas próprias experiências seme lhantes e implicitamente está também a celebrálas reivindican do para si um estatuto heroico semelhante E ainda Ninfas minhas não bastava que tamanhas misérias me cercassem senão que aqueles que eu cantando andava tal prémio de meus versos me tornassem a troco dos descansos que esperava das capelas de louro que me honrassem trabalhos nunca usados me inventaram com que em tão duro estado me deitaram Vll 81 A negação ao poeta das honras que merece é socialmente tanto mais grave quanto é a poesia e não os feitos que ela pos sa celebrar a única garantia da imortalidade e de toda a glória 11 A ÉP ICA Vede Ninfas que engenhos de senhores o vosso Tejo cria valerosos que assi sabem prezar com tais favores a quem os faz cantando gloriosos e exemplos a futuros escritores pera espertar engenhos curiosos 51 pera porem as cousas em memória que merecerem ter eterna glória V I 1 82 Esta diatribe contra os seus contemporâneos vem na sequ ência e é a culminação da valorização que Camões faz das letras de par com o vaJor das armas nos termos do velho tópico da tradi ção clássica Mas gradualmente foi radicalizando o debate a favor das letras e da consequente necessidade da sua recepção e com preensão porque quem não sabe arte não na estima con cluindo que sem Yirgílios e H omeros não poderia haver pios Eneias nem Aquiles feros E logo subliminalmente está a mos trar porquê na justaposição aos nomes desses heróis emblemáti cos dos atributos literários pio e fero que Virgílio e Homero lhes haviam associado e que a partir de então tinham passado a caracterizar a sua veracidade histó rica Disto logicamente se se gue que sem a compreensão do seu poema também não haverá o chefe o capitão o principaJ dos barões assinaJados que sem um Camões não continuará a ter havido um Vasco da Gama Às Musas agardeça o nosso Gama o muito amor da pátria que as obriga a dar aos seus na lira nome e fama de toda a ilustre e bélica fadiga que ele nem quem na esti rpe seu se chama Calíope não tem por tão amiga nem as Filhas do Tejo que deixassem as telas de ouro fino e que o cantassem V 99 Ao contrário do próprio Camões Vasco da Gama é um he rói sem musas próprias incapaz só por si de dar significação aos 52 C AM ÕES E A V IAGEM I N I C I ÁT ICA seus atos A reconstrução literária que tornou Vasco da Gama num herói exemplar é portanto não apenas um produto do en genho poético mas também um equivalente ou porventura supe rior serviço que Camões está a prestar à pátria nOs Lusíadas Ca mões é o autor de Vasco da Gama como se ele e por extensão JS outras personagens históricas dOs Lusíadas não tivessem outra existência além daquela que o texto poético lhes está a conferir Mas se assim é Camões está também a sugerir que não há Histó ria enquanto taJ que só há a significação que possa ser conferida à História E essa significação depende da sua recepção Ao indi ca r a superioridade das letras em relação às armas Camões está portanto também a remeter para o que havia dito na dedicatória a dom Sebastião quando desde logo transpusera a viagem heroica do passado para a viagem de heroicas incertezas que é o discurso poético em que lhe está a dar significação em aJto mar e com vento tão contrário que teme que o seu fraco batel se aJague cedo V ll 78 O naufrágio do seu poema afetaria a percepção da História As relações entre a História e a sua recepção bem como entre a História e o Mito ou entre o verídico e o fantástico são manifestadas por Camões numa linguagem poética que lhe per mite fazer urna articulação sem cesuras entre o factual e o metafó rico com os fatos metaforizados e as metáforas literalizadas As sim tendo começado po r afirmar a superioridade da sua epopeia por ser baseada na veracidade da História e não como as mu sas estranhas nas falsidades do Mito o poema prontamente pas sou a incluir o mítico o fantástico o onírico todo um imaginá rio fabuloso representado na transposição das ações dos homens para as maquinações das divindades pagãs que vão presidir aos seus destinos e conferirlhes significação exemplar Mas no plano da representação literária da História Camões pôde fazêlo sem contradição porque esses invólucros de crenças esvaziadas fo ram transformados em nomes poéticos de veracidades factuais ou seja nas metáforas da História com que veio confrontar dom Se 11 A ÉP ICA 53 bastião e através dele como cabeça do reino os seus contempo râneos Por isso os deuses cumprida a sua função metafórica po dem renunciar a sua manifestada realidade dizendo Só pera fazer versos deleitosos Servimos e se mais o trato humano Nos pode dar é só que o nome nosso Nestas estrelas pôs o engenho vosso Não se trata apenas de um talvez necessário aceno à censura inquisitorial E o poeta também não está apenas a dizer que os no mes dos deuses pagãos já só serviam para dar nomes aos astros como a generalidade dos comentadores tem entendido Diz bem mais do que isso que esses nomes que lhe serviram para fazer os versos de leitosos do seu próprio poema são os veíCLJos fictícios diríamos hoje os signjficantes que lhe permitiran1 rurigir o engenho huma no para a compreensão dos processos inexplicados do universo real Na mesma estrofe os metafóricos deuses da significação po ética afirmam que vão deixar o seu lugar ao vero Deus No en tanto duas estrofes antes num verso que tem alguma equivalência no ambíguo soneto em que a fé em C risto representa o colapso da razão o poeta já havia declarado mas o que é Deus ninguém 0 entende que a tanto o engenho humano não se estende X 80 Ao colocar o saber divino que é sem princípio e meta limita da fora do finito mundo onde se situa o humano entendimen to Camões não se teria afastado das concepções filosóficas aceites pela ortodoxia cristã do seu tempo e sem dúvida por ele partilha das Mas utilizouas para colocar Deus fora do espaço semântico de um discurso poético que visa dar uma significação não teológica ao mundo inteligível e a destinos humanos com princípio e meta limitados Essa significação é aquela que o discurso poético conse guir conferir à transitória existência humana 54 C AMÕES E A V IAGE I I N IC I ÁTIC A Deuses fabulosos e heróis históricos são assim igualmente instituídos como significantes de um texto poético que em últi ma análise remete ao seu autor e se define como autorreferencial O valor metafórico das reiteradas correspondências semânticas entre a viagem factual de Gama presidida por deuses fabulosos e a sua representação no mar irado da linguagem adquire uma explícita conotação de transposta factualidade biográfica na re ferência que o poeta faz aos perigos e trabalhos que ele próprio passou enquanto a Fortuna o traz peregrinando nua mão sempre a espada e noutra a pena VII 79 A equivalência entre as suas experiências de armas e as dos heróis que celebra no po ema é manifesta Mas a estas Camões acrescentou os seus feitos nas letras ou seja a capacidade que ele tem e que eles não têm de conferir significação aos seus atos nesse mesmo poema em que se inclui de par com eles Camões está portanto a assumir para si próprio um estatuto de guerreiro letrado que teria um equivalen te não em Gama mas que paradigmaticamente exemplifica em al guém como Júlio César cuja equivalente capacidade nas letras já havia acentuado antes de caracterizar Vasco da Gama como um herói sem musas próprias De Júlio César o poeta disse nua mão a pena e noutra a lança V 96 e de si próprio como se viu irá dizer nua mão sempre a espada e noutra a pena VII 79 Também não deixa de ser significativo que Faria e Sousa te nha feito notar que Camões salvara o seu poema a nado como Cesar en semejante trabajo sus Comentaríos Camões menciona o seu equivalente naufrágio na foz do rio Mecon no contexto de outros fatos históricos feitos de armas ações virtuosas costumes estranhos lugares remotos e ilhas singulares que em fictícia voz profética são designados na Ilha dos Amores como coisas futuras 11 A ÉP IC A Este receberá plácido e brando No seu regaço o Canto que molhado Vem do naufrágio triste e miserando Dos porcelosos baxos escapando 55 Das fomes dos perigos grandes quando Será o injusto mando executado Naquele cuja Lira sonorosa Será mais afamada que ditosa X 128 A subtil sintaxe desta estrofe torna intermutáveis o poeta e o poema o canto que molhado vem do naufrágio e aquele cuja lira sonorosa será mais afamada que ditosa integrando simul taneamente na significação do poema o naufrágio que ameaçou destruílo e os padecimentos do seu autor A ameaça que paira sobre o poema fica igualmente a pairar sobre a sua matéria poé tica que é a nação que está a ser celebrada no canto que molha do vem do naufrágio Daí o elemento de insidiosa dúvida torna da em crescente desespero nas intervenções pessoais de Camões quando o poema se aproxima do fim Uma das supostas e mais criticadas anomalias do poema o uso da voz pessoal do autor na narrativa épica é portanto funcionalmente determinante da significação global do poema Da perspectiva da metafórica viagem de Camões no mar irado da poesia tornase particularmente iluminador que no que concerne à factual viagem do Gama o poema não registe a chamada à aventura limitandose a encontrar as naus quando já no largo oceano navegavam e que do seu regresso à comu nidade pouco mais diga além de que regressaram sem nada de semelhante à passagem pelas portas de marfim que Eneias atra vessou ao voltar ao mundo para fundar Roma Na verdade do esquema da viagem iniciática do herói ao Gama cabe apenas a fase intermédia a da viagem propriamente dita a qual estando precedida e seguida das falas do poeta aos seus contemporâneos élhes assim claramente proposta como uma representação poé tica de valor simbólico ou exemplar A aventura iniciática de que o poema trata no seu sentido global não é portanto a passada CAMÕES E A V IAGEM I N IC I ATI CA a futura aquela para que o poeta vem chamar no presente os seus contemporâneos ao regressar de uma aventura equivalente que representa na do Gama Desta maneira é o poeta é o pró prio Camões quem pode assumir a função regeneradora do herói regressado à comunidade de onde havia partido para o mundo desconhecido precisamente na medida em que assume a respon sabilidade bárdica ou xamânica inerente à função social da poe sia Por isso se a comunidade o não reconhecer como o seu herói e mensageiro não só a necessária circulação renovada da energia espiritual comum em si personificada ficará para sempre perdi da como inevitavelmente a nova aventura iniciática não virá a ser possível Tornase assim evidente que nOs Lusíadas como Fernan do Pessoa procurou repetir na Mensagem e Cesário Verde aguda mente pressentiu na homenagem a Camões que é O sentimento dum ocídenta0 o propósito da transformação da História em po esia é a criação de um modelo iniciático que entendido sirva como uma chamada à nova aventura que permita a transforma ção de um presente degradado num futuro regenerado Com possivelmente alguma dívida à tradição do espiritualismo joa quimita cuja importância em Portugal está ainda longe de ter sido suficientemente estudada o valor da História para Ca mões parece portanto ter mais a ver com a determinação do futuro do que com a celebração do passado Este propósito está aliás implícito na ambiguidade com que utiliza a profecia nOs Lusíadas ao torná la no registo ficticiamente futuro de aconte cimentos passados Se os seus contemporâneos são os destinatários do poema dentre eles como cabeça do reino Camões dirigese expressa mente a Dom Sebastião a bem nascida segurança da Lusitana antiga liberdade Depois de nas primeiras estrofes se ter propos to cantar aqueles que por obras valerosas se vão da lei da Morte libertando diz ao rei do tempo presente em versos particular mente altivos na sua aparência de submissa homenagem 11 A El ICA 57 E enquanto eu estes canto e a vós não posso sublime Rei que não me atrevo a tanto tomai as rédeas vós do Reino vosso dareis matéria a nunca ouvido canto I 15 sublinhado meu O aviso é evidente O poeta pode cantar os heróis passados e através do seu canto garantirlhes a imortalidade a que os seus feitos lhes deram direito mas não pode cantar o presente rei cujo atribu to de sublime adquire no contexto alguma ambiguidade até que ele tomando as rédeas do seu reino o que implicitamente ainda não fez dê também matéria ao canto celebratório que implicitamente ainda não merece Este aviso com o desafio que encerra vai se tornar ainda majs explícito nas três estrofes que se seguem T étis que nos cantos IX e X irá consagrar simbolicamente a imortali dade dos heróis passados que o poeta já pode cantar terá também para o rei presente o dote aparelhado6 mas para isso 0 rei terá primeiro de renovar a memória e as obras valerosas dos antepas sados e tendo assim assegurado a sua continuidade passar também a merecer não já apenas um canto futuro mas numa subtil fusão de tempos que claramente traz a intenção do poema para O presente o mesmo canto sobre os efeitos passados com que O poeta O veio cha mar para as suas responsabilidades de herói potencial Mas enquanto este tempo passa lento de regerdes os povos que o desejam dai vós favor ao novo atrevimento pera que estes meus versos vossos sejam 1 18 sublinhado meu 6 Em A estmtllrade Os Lusíadas Jorge de Sena chama a atenção para O convite a que o rei como os doges de Veneza case com o mar Cf SENA op cit º 6 11 p 73 58 C fIÕES E A V IAGEM I N I C I ÁT ICA Os Lusíadas situamse no hiato da História entre o passado que celebra e um futuro que desejariam poder celebrar O jovem rei é apenas ainda uma latência num tempo que passa lento Ocupando o hiato da História o novo atrevimento é o próprio poema desse modo investido com uma qualidade equivalente à desse outro atrevimento como lhe chamam Baco e Adamas tor que foi a aventura heroica nele celebrada Os Lusíadas são as sim também e talvez acima de tudo um poema sobre a linguagem e portanto igualmente sobre a sua recepção Segundo o amor tiverdes tereis o entendimento de meus versos escreveu o po eta num soneto como um desafio ao leitor E faz um equivalen te desafio a dom Sebastião e através dele à nação quando o exorta a receber tornandoos seus os versos dOs Lusíadas Porque é no mar irado da representação literária que o tempo cronoló gico pode ser transformado na sua significação permitindo não apenas que o presente veja e assuma o passado mas também que o passado anteveja e invoque um futuro que lhe dê continuidade E vereis ir cortando o salso argento Os vossos Argonautas por que vejam e são vistos de vós no mar irado E habituaivos já a ser invocado 1 18 Na verdade a viagem do herói é cíclica é sempre a mesma viagem recomeçada porque é sempre a viagem da comunidade através do herói que a personifica E é sem dúvida significativo que Camões nas profecias presididas por T étis na J lha do Amor se tenha literalmente incluído a si próprio entre os heróis que ce lebra nOs Lusíadas enquanto que a mesma T étis não pode mais do que ter o dote aparelhado para dom Sebastião Mas qual é a natureza da iniciação que Camões assume como sua por meio da representação literária da viagem históri I I J ÉPICA 59 ca de Gama para com ela vir confrontar o rei quando regressou à pátria Na sua poesia lírica Camões procurara tornar exemplar a sua própria experiência registando o que chamou a transforma ção do apetite em razão e a exploração individual do desconhe cido em busca do conhecimento O seu móbil foi o amo r ão canse o cego amor de me guiar a parte donde não saiba tornarme nem deixe o mundo todo de escutarme enquanto me a voz fraca não deixa r O mesmo é verdade para a viagem do Ga ma como Camões a representa nOs Lusíadas Ela não só significa transposta para o pla no cívico uma equivalente regeneração do apetite ou baixo amor em razão como também a viagem para o desconhecido em que o amor leva ra o poeta a parte donde não soubesse tornarse tem uma óbvia equivalência e a sua solução ampli ficada na viagem coletiva guiada por Vénus a deusa do amor Neste sentido Os Lu síadas também representam a iniciação à imortalidade do próprio Camões o alargamento da sua identidade pessoal no encon tro de uma razão superior à desrazão do mundo que O tinha enleado e consequentemente a rejeição de um impulso autodestrutivo equivalente ao representado nas ri mas de Babel e Síão Recordemos que no esquema tradicional da viagem inici ática a fase intermédia que é representada nOs Lusíadas pela via gem de Gama inclui a intervenção de forças fabulosas 0 assumir do poder paterno o encontro com a Magna Ma ter a Apoteose e a ídtima Benesse que é a consagração da imortalidade Todos esses momentos têm uma expressão equivalente na viagem do Gama No mesmo momento em que o poema pela primeira vez men ciona as naus já no largo Oceano estão também os deuses em consílio glorioso a tomar partido sobre as cousas futuras do O riente que iam ser afetadas pelos portugueses E é através dos deuses que Camões determina os pontos de referência simbólicos 60 C AM ÕES E A V I AG M I N IC l T ICA da viagem Baco opõe violentamente os portugueses Vénus e por amor dela Marte o deus da guerra toma o seu partido o que ao nível metafó rico imediatamente sugere a função determinan te do amor na viagem dos portugueses para o mundo desconheci do do O riente Essa função é aliás confirmada e tem a sua corres pondência no fato de ser possível faze r uma leitura coerente dOs Lusíadas da perspectiva da escala platónica do amor que Camões no entanto modifica e adapta não só ern função do Novo Cicero nismo inerente ao Humanismo Cívico como da sua própria nada convencional valorização do erotismo como possível veículo para o amor sublime Assim o baixo amor equivale à degradante sub missão do amor ao corpo que nOs Lusíadas Camões exemplifica mitologicamente em Adamastor e como exemplo histórico equi valente em dom Fernando o amor misto que equivale à nobre integração do corpo no amor tem porventura em Inês de Cas tro a sua representação mais eloquente no poema e o amor su bli me que para Camões é o amor da pátria a caritas patriae do Humanismo Cívico equivale à redentora ascensão do espírito através do corpo A sua representação nOs Lusíadas é o amor de Vénus pelos portugueses que a leva a seduzir sexualmente o pró prio pai numa evidente correspondência com a Eneída l 227 296 embora o pagão Virgílio mal chegue a sugerir a incestuo sa sexualidade que Camões torna explícita o amor de Maria pela Espanha cristã que no plano histórico a leva a reproduzir mais castamente a ação de Vénus a quem aliás é expressamente com parada quando convence Afonso I V a lutar contra os mouros ao lado do marido e fi nalmente na fusão da mitologia com a His tória representada na Ilha dos A mores é a gnose erótica oferec ida aos portugueses como prémio do seu serviço à pátria Em contraste com o erotismo espiritualmente regenerador que Camões personifica em Vénus Baco o deus cujo poder se pode manifestar na embriaguez e na desmembradora submis são orgiástica da razão aos sentidos significaria o baixo amor O u o Diabo como entendeu Faria e Sousa de uma algo redutora 11 A El ICA 6 1 perspectiva teológica cristã No contexto do esquema iniciático da obra a identificação de Baco com o baixo amor ganharia uma acrescentada importância na medida em que mitologicamente era não só o senhor da Índia que os portugueses demandavam como também o pai de Luso o antepassado mítico dos portugue ses Padre Baco 1 he chama Camões logo na sua primeira inter venção Não é no entanto impossível que sendo o pai précristão dos portugueses também pudesse ser entendido como o inimigo interno numa nação em retrocesso onde se estão amando cousas que nos foram dadas não para ser amadas mas usadas ou que na sua aliança com Netuno além de representar as dificuldades da navegação seja emblemático da mutabilidade tradicionalmente associada ao mar e que historicamente estava sendo manifestada na corrupção consequente ao desgoverno do império marítimo português Dessa perspectiva Baco seria um pai que os próprios filhos procura destruir para preservar um já inadequado poder que eles teriam portanto de conquistar para poderem assumir o seu destino e corrigir o dele Assim ao intervir sucessivamente a favor dos mouros Baco representaria também a religião consi derada corno falsa do ponto de vista da nova ordem cristã levada para o Oriente pelos portugueses Estes elementos estão sem dú vida presentes na caracterização que Camões faz de Baco mas es tão longe de esgotar a sua mais ampla e complexa significação no contexto do poema7 Da perspectiva deste ensaio basta no entanto acentuar que as primeiras armadilhas de Baco são resolvidas pela intervenção de Vénus que responde à súplica cristã de Gama à Divina Guar 7 Em estudos posteriores lidei com algumas das complexides do tratamento de Baco nOs Lusíadas da perspectiva da relação que o poema estabelece entre a celebração épica e a crítica pastoril Cf inter alia MACEDO Helder A 62 poética da verdade dOs Lusíadas 1 n G I L Fernando Viagens do olhar retrospecção visão e profecia no Renascimento português Porto Campo das Letras 1998 p 121 14 1 Luís de Camões 1 nrroducción Poesía de Luís de Camões Madrid Biblioteca de Literatura Universal 2007 p X 1 LXX I 11 C AMÕES E A V IAG Ht I N I C lTI CA da com a sedução de Júpiter a favor dos portugueses episó dio através do qual Camões ao mesmo tempo acentua o valor do erotismo corno veículo para o sagrado e sugere que a verdadeira expressão do cristianismo é o amor Mas as forças sobrenaturais têm intervindo disfarçadas como Baco em falso sacerdote ou invisíveis como Vénus no lugar da divindade cristã sem que ainda tivesse sido possível aos portugueses tomar consciên cia do mundo fabuloso a que a sua aventura os tinha levado Mas através do seu discurso ao rei de Melinde Vasco da Gama assu miu O estatuto de herói representativo da sua comunidade ao co locar a viagem para que tinha embarcado na seuência e corno a culminação da História de Portugal até então E o momento em que pode contar a prova crucial do seu primeiro encontro face a face com uma força sobrenatural a ameaça divina ou o segre do personificado em Adamastor Exatamente a meio do poema 0 encontro de Gama com Adamastor marca também geografi camente a passagem do Atlântico para o Índico ou do Ocidente para O Oriente ou seja o fim do mundo conhecido e a entrada no mundo desconhecido literal e metaforicamente O herói ia final mente entrar na região das forças indomadas a que atualmente poderíamos chamar de subconsciente e a que os antigos teriam chamado de infernal Com efeito esse é o momento equivalente ao da entrada de Eneias nos Infernos quando atravessa o rio da morte controla o monstruoso Cérbero e finalmente encontra a sombra do seu pai É significativo para a compreensão do valor iniciático que Camões atribui ao amor que nOs Lusíadas o equivalente e não menos monstruoso guarda da passagem para o outro mundo seja apresentado como uma personificação exemplar do baixo amor Pela submissão da sua vontade ao corpo e à terra irredim ida em que por isso foi degradado Adamastor transformou o seu inade quado amor pela Nereida por quem se apaixonara em brutalidade e em violência Recusouse a aceitála como a um sujeito livre e diferente procurou possuíla à força 11 A ÉPICA Como fosse impossibil alcançála pela grandeza feia de meu gesto determinei por armas de tomála Mas ela cum fermoso riso honesto respondeu ai será o amor bastante de infa que sustente o dum Gigante V 53 Aprisionado na rocha em que se transformou ao procurar violá la Adamastor ficou sendo eternamente o carcereiro da sua própria prisão o guarda dos segredos escondidos que em si enclausurou São precisamente as forças obscuras simbolicamente en clausuradas em Adamastor que o herói tem de enfrentar para as conseguir regenerar Mas o poder dessas força manifestase no serem obscuras e em se manterem desconhecidas Uma vez co nhecidas ou tornadas conscientes logo ficam neutralizadas ou podem mesmo passar a servir quem dantes ameaçavam o en tanto se o não forem levarão apenas ao desencadear de desastres anteriormente adormecidos o que Camões representa nas trá gicas profecias formuladas pelo Gigante e efetivamente se trata de uma confrontação entre a vonta de de conhecer e a negação do conhecimento é claramente indicado nas palavras ameaçadoras que Adamastor começa por dirigir a Gama Pois vens ver os segredos escondidos da natureza e do húmido elemento a nenhum grande humano concedidos de nobre ou de imortal merecimento ouve os danos de mi que apercebidos estão a teu sobejo atrevimento V42 CA M LS l A VIAGEM I N JC JATICA Mas os dados que então profetiza como uma punição do sobejo atrevimento dos navegantes representam também uma transferência metonímica das consequências do baixo amor em si representadas E como os fatos por ele narrados como futuros já ti nham na realidade acontecido a metáfora implícita nessa transfe rência tornase numa demonstração explícita dos efeitos do baixo amor em que Portugal veio a cair o que aliás vem ecoar o equiva lente aviso registado na fala do Velho do Restelo à partida das naus Gama só consegue dominar as forças negativas que ameaça vam transformar a sua viagem para o conhecimento numa viagem inversa para a destruição sobrepondo ao medo o desejo de conhe cimento fazendo a pergunta mágica tradicional quem és tu que obrigou Adamastor a autodestruirse nomeandose Mais ia por diante o monstro horrendo dizendo nossos Fados quando alçado lhe disse eu em és tu e esse estupendo corpo certo me tem maravilhado A boca e os olhos negros retorcendo e dando um e pantoso e grande brado me respondeu com voz pesada e amara como quem da pergunta lhe pesara Eu sou aquele oculto e grande Cabo a quem chamais vós outros Tormentório V 49 50 Forçado a ser ele a responder a quem de início confrontara o seu poder negativo virouse contra si próprio como já aconte cera quando quis tomar por arma o amor e vaise gradualmente neutralizando ao contar obsessivamente a história das suas ori gens divinas até à sua degradação presente Assim de novo trans formado de portento sobrenatural em acidente geográfico natural 11 A EPICA 65 um mero cabo rochoso ainda que ambiguamente tormentó rio Adamastor cum medonho choro súbito de ante os olhos se apartou deixando o caminho livre para as naus passarem Neste momento crucial o herói assumiu plenamente a sua missão atravessou o limiar entrou em parte donde ainda não sabe tornarse O caminho para o O riente ficou aberto mas para lá chegar faltava todo o resto do mar símbolo arquetipal da vida mas também da sua mutabilidade Por isso Baco vendo o seu po der posto em perigo por descendentes que renega vai procurar a aliança de Netuno a quem faz sentir que tal como Prometeu os portugueses tinham quebrado os estatutos divinos que represen tavam a humanidade em busca do poder e da sabedoria dos deuses Vistes que com grandíssima ousadia foram já cometer o Céu supremo vistes e ainda vemos cada dia soberbas e insolências tais que temo que do Mar e do Céu em poucos anos venham Deuses a ser e nós humanos Vedes agora a fraca geração que dum vassalo meu o nome toma com soberbo e altivo coração a vós e a mi e o mundo todo doma Vedes o vosso reino devassando os vossos estatutos vão quebrando VI 29 30 Mas ao perigo comum que a quebra de quaisquer estatutos divinos representa sobrepõese para Baco aquele em que os por tugueses tinham posto o seu próprio poder pessoal 66 CA M ÕES E A VIAGEM IN IC IÁTICA E não consinto Deuses que cuideis que por amor de vós do Céu deci nem da mágoa da injúria que sofreis mas da que se me faz também a mi que aquelas grandes honras que sabeis que no mundo ganhei quando venci as terras 1 ndianas do Oriente todas vejo abatidas desta gente VI 32 Netuno convoca então os Ventos e desencadeia a sua fúria para que não haja no mar mais navegantes VI 35 Mas Gama de novo implora proteção à Divina Guarda e é de novo Vénus quem o ouve e quem salva os portugueses A maneira como o faz confirma e desenvolve o significado do subdiscurso simbólico im plícito na narrativa do poema Os Ventos símbolos arquetipais do fálico poder masculino tinham sido desencadeados para ades truição e estavam ao serviço do baixo amor inspirado pelo res sentimento vingativo de Baco A sua intervenção veio aliás na sequência e era compensatória do malogro da equivalente inter venção destrutiva de Adamastor Vénus limitouse a contrapor à sua estéril violência bélica as presenças femininas capazes de a transformarem na regeneradora virilidade do amor l i A ÉP ICA Abrandar determina por amores dos ventos a nojosa companhia mostrandolhe as amadas infas belas que mais fermosas vinham que as estrelas YJ 87 Diz uma delas numa variação ou eco parcial do aviso que ti nha sido dado a Adamastor ão creias fero Bóreas que te creio que me tiveste nunca amor constante que brandura é de amor mais certo arreio e não convém furor a firme amante Se já não pões a tanta insânia freio não esperes de mi daqui cm diante que possa mais amarte mas temerte que amor contigo em medo se converte Mas o que efetivamente acontece é o inverso do ocorrido na histó ria exemplar de Adamastor transformado o medo em amor os portugueses poderão agora chegar ao fim da sua viagem Desta maneira as outras amansavam subitamente os outros amadores e logo à linda Vénus se entregavam amansadas as iras e os furores Ela lhe prometeu vendo que amavam sempiterno favor cm seus amores nas belas mãos tomandolhe homenagem de lhe serem leais esta viagem O significado final da regeneradora transmutação da for ça destrutiva do ódio na força criativa do amor que é O que os episódios compleme ntares de Adamastor e dos Ventos represen tam vai ter a sua expressão definitiva no exemplo supremo que Camões apresenta aos seus contemporâneos nOs Lusíadas que é 0 68 CAMÕES E A VIAG EM IN IC JT ICJ episódio da Ilha dos A mores A chegada à Índia que e ra o pro pósito ostensivo da viagem para que os portugueses tinham e m barcado não era o fim nem o propósito da viagem para o conhe cimento através dela significada nOs Lusíadas Essa que é a viagem simbólica através do amor que Vénus sobrepôs à rota geográfica dos navegantes estava ainda por completar quando as naus co meçaram a regressar com rumo à pátria Cumprida a sua missão temporal os navegantes têm agora direito à Apoteose represen tada no encontro com a Magna Mater que lhes dará a compreen são do fim espiritual da sua aventura Essa compreensão ou gno se é a imortalidade que em nome da comunidade que representa o herói tem de assumir para a poder transm itir no seu regresso Neste momento do poema a simbologia mítica que Camões in corporou na narrativa da viage m de Gama tornase no símbolo puro em que o significado dessa viagem é cristalizado Os nave gantes tinham sentido os efeitos dos poderes sobrenaturais fa voráveis ou contrários sem conseguirem entender a sua nature za Só Adamastor se lhes tornou visível assinalando a entrada no mundo desconhecido Mas se o puderam ver foi porque ele pró prio já se havia degradado em matéria Os deuses representavam o mundo espiritual ou no seu equivalente individual moderno o mundo do subconsciente cuja compreensão é inacessível ao co mum dos mortais Não já agora Passaram a merecer a tangibili dade do espírito e o conhecimento das suas próprias forças inte riores Assim o que Vénus lhes oferece para refocilarem a lassa humanidade é o conhecimento do amor ou seja do poder que os guiou e que sempre os poderá proteger enquanto o não degrada rem em baixo amor8 Materializa no horizonte uma ilha flutuante 8 C f SE op cit p 67 No plano m1tico a criação para os nautas da Ilha dos 111ores corresponde a u111 1110 111ento decisivo na H isnria a gue rra que o A 111or ia 111over ao desconcerto do 111undo e cujos prenüncios se 111anifesta111 nos tiros desordenados dos C upidos mal dextras A Ilha é assi111 o restabe lecimento da l larmo nia de 111odo que a consagração e a transfiguração 111itica 11 1 llI C A que eles primeiro não veem e que vai seguindo a sua rota até que quando finalmente reparam nela fica de repente parada como se sempre ali tivesse estado É uma ilha mágica a representação ter restre do paraíso onde cada um consegue encontrar a forma ideal do seu amor e onde todos adquirem o conhecimento superior que vem da transformação do apetite em razão Nesse locus amoe nus da imaginação todos os opostos se tornam complementa res porque todas as impossibilidades são anuladas o cisne canta em vida e não para morrer Actéon aceita sem horror os cornos da sua animalidade não precisando por isso de fugir de cães que o teriam devorado e de entre os navegantes Lionardo consegue fi nalmente dar expressão sexual ao lirismo de impotente frustração em que passara toda a vida quando todo se desfaz em puro amor sobre a ninfa que Vénus para ele tinha escolhido É o mesmo homem formado só de carne e osso como Ca mões se descrevera na sua poesia lírica que pode concluir com os seguintes versos a sequência em que mostra como cada um dos navegantes encontrou a sua ninfa O que mais passam na manhã e na sesta que Vénus com prazeres inflamava milhor é esprimentálo que julgálo mas julgueo quem não pode esprimentálo IX 83 E é também o mesmo poeta que continuara a afirmar que para si bastava amor somente quando o próprio amor contra ele se tinha conjurado e descrevera como celeste a causa que faz num coração que venha o apetite a ser razão que pode agora con 70 dos Heróis que na Ilha e pela Ilha se operam são também e sobretudo a recolo cação do Amor do verdadeiro Amor como centro daHarmonia do Mundo CA M Õ ES E A V I AGEM IN I C IÁTI CA sagrar o erotismo como veículo para o amor sublim coneito to talmente alheio quer ao neoplatonismo quer ao cnsttamsmo su eo o discurso que iulgara ter errado como a pro contemporan pria vida quando confrontado pela desrazão do mund tem aqui a sua enfática reafirmação a desrazão era do mundo nao era sua 0 mundo da razão ideal que é o da Ilha dos Amores a nm fa ou mais propriamente deusa que Vénus escolheu para Gama e que em doces jogos e em prazer contino o prepara para a imortalidade simbolizada na visão transcendente dos segredos do universo é Tétis filha de Urano e de Gaia esposa de Oceano mãe de todos os rios do mundo a mais nobre de todas as deusas do mar e a personificação mais antiga da sua fecundiade em suma a Magna Mater9 Ferida por Cupido com especial mtens1 dade porque mais que nenhuma lhe era esquiva 1 X 48 apa rece ao Gama e despois de lhe ter dito quem era cum alto exórdio de alta graça ornado dandolhe a entender que ali viera por alta iníluição do imobil Fado pera lhe descobrir da unida Esfera da terra imensa e mar não navegado os segredos por alta profecia o que esta sua nação só merecia tomandoo pela mão o leva e guia pera o cume dum monte alto e divino 9 A identificação de Vénus com a Magna Mater tem uma longa e bem documn tada tradição O próprio Camões a faz obliquamente na amargura acusatona do soneto Cá nesta Babilónia quando escreve Cá onde o puro amor não tem valia que a Mãe que manda mais tudo profana A identificação de Tétis qu nOs Lusíadas é uma personificação funcional de Vénus com a Magna Mater esta implícita no comentário de Jorge de Sena sobre as origens míticas dessa deusa da maior importância na Teogonia helénica Cf SENA op cit nº 6 P 73 li A EP ICA 71 no qual hüa rica fábrica se erguia de cristal toda e de ouro puro e fino A maior parte aqui passam do dia em doces jogos e em prazer contino Ela nos paços logra seus amores as outras pelas sombras entre as flores 1 X 86 87 Consequência do merecimento da nação portuguesa o en contro sexual de T étis e de Gama como Jorge de Sena já indicou tem o valor simbólico da fusão do Ocidente com o Oriente a mo rada mítica de T étis era o extremo Ocidente e aparecendo ela no Oriente para exaltar os portugueses cujo reino olha os extremos ocidentais dos mares isso fecha estes numa inteireza universal de mare nostrumº Mas há outro elemento mitológico que me parece importante referir quando Baco teve de fugir da Trácia após o seu regresso do O riente onde do potente deus primitivo que tinha sido se transformara num imberbe e efeminado efebo obteve refúgio junto a T étis que o abrigou no fundo do oceano Essa an tiga lealdade talvez ajude a explicar a prontidão com que no can to VI dOs Lusíadas Camões a põe a apoiar a causa de Baco exigin do obediência imediata às ordens de Netuno para que os ventos destruíssem os portugueses V I 36 A sua amorosa submissão ao Gama representa assim também o triunfo total dos portugueses e através deles da Humanidade sobre todas as fo rças que se lhe tinham oposto e que o fal so poder paterno de Baco simboliza va Aliás Camões tem o cuidado de indicar o significado metafó rico de tudo o que se passa na Ilha dos Amores em versos que ao mesmo tempo servem para acentuar o sentido iniciático do poema nela ilustrado Afirmando que as Ninfas T étis a própria Ilha an gélica pintada e os seus deleites não eram senão as honras que 10 Ibid 72 CAM ÕES E A V IAG EM I N I CIAT ICA a vida fazem sublimada e os prémios devidos aos barões que esforço e arte divinos os fizeram sendo humanos escolhe este momento exemplar para trazer de novo para o poema o seu refe rente e os seus destinatários contemporâneos ao prossegui r Por isso ó vós que as famas estimais se quiserdes no mundo ser tamanhos despertai já do sono do ócio ignavo que o ânimo de livre faz escravo E Camões lançase então num dos inventários acusatórios dos equivalentes sociais do baixo amor que disseminou pelo po ema a cobiça a ambição pessoal o torpe e escuro vício da ti rania infame e urgente as honras vãs e os bens materiais que verdadeiro valor não dão à gente e que melhor é merecêlos sem os ter que possuílos sem os merecer aos quais contrapõe na paz as leis iguais constantes que aos grandes não dê o dos pe quenos 0 valor do serviço à comunidade e as virtudes cívicas ne cessárias para as justas honras que ilustram tanto as vidas e que exorta os seus contemporâneos a alcançar concluindo A ÉPICA E fareis claro o Rei que tanto amais agora cos conselhos bem cuidados agora coas espadas que imortais vos farão como os vossos já passados Impossibilidades não façais que quem quis sempre pôde e numerados sereis entre os Heróis esclarecidos e nesta Ilha de Vénus recebidos IX 95 73 Ao acentuar a exemplaridade presente do triunfo dos heróis passados Camões trouxe também para o seu referente contem porâneo a alta profecia que T étis vai iniciar como culminação do movimento ascensional pela escala do amor representado na viagem Daí o extremo dramatismo da nova interrupção do dis curso épico em que Camões reintegra nele a sua identidade pes soal para reiterar o serviço que está a prestar à pátria na escrita do próprio poema Aqui minha Calíope te invoco neste trabalho extremo por que em pago me tornes do que escrevo e em vão pretendo o gosto de escrever que vou perdendo Vão os anos decendo e já do Estio há pouco que passar até o Outono a Fortuna me faz o engenho frio do qual já não me jacto nem me abono os desgostos me vão levando ao rio do negro esquecimento e eterno sono Mas tu me dá que cumpra ó grão Rainha das Musas co que quero à nação minha X 8 9 Este portentoso anticlímax em que o poeta ao mesmo tem po contrasta a sua mortalidade pessoal com a imortalidade que de seja dar à pátria através da lição contida no seu poema e subli minalmente também o serviço que assim lhe está a prestar com o sono ignavo dos seus contemporâneos traz um insidioso ele mento de dúvida sobre a viabilidade do seu propósito regenera dor As profecias de T étis que são efetivamente a narrativa dos feitos dos portugueses no O riente até ao momento da escrita do 74 CA MÕES E A V IAGE M IN IC IÁT ICA poema entre os quais é importante recordar Camões também se inclui numa referência explícita ao próprio poema são assim poderosamente reforçadas como se de um último aviso se tra tasse Da mesma maneira a consagração da imortalidade coletiva simbolizada na apoteose dos heróis da viagem passada é também a reiteração de um projeto equivalente para o futuro Tétis deulhes 0 saber só reservado aos divinos ao permitir que eles vissem cos olhos corporais jo que não pode a vãciência dos errados e mí seros mortais E tem já para dom Sebastião o dote aparelhado A visão da máquina do Mundo nOs Lusíadas é inspirada nO sonho de Cípíão a obra de Cícero que veio a contribuir decisi vamente para a defin ição da carítas patríae como o ideal supremo do amor no contexto do Humanismo Cívico renascentista Ao partilhar dessa valorização do amor da pátria Camões trazlhe no entanto uma dimensão humana que aponta para uma concep ção extremamente moderna da relação entre o indivíduo e aso ciedade Cícero descreve os segredos do universo em termos que Camões praticamente reproduziu nOs Lusíadas e também afirma que os propósitos mais altos são aqueles que se relacionam com o bem do Estado e com o seu serviço Mas ao contrário de Ca mões considera para isso indispensável a rejeição do corpo acen tuando que o homem superiormente motivado se deve dedicar à contemplação das coisas do além e ganhar tanta distância do corpo quanto possível porque as almas dos homens ocupados nos prazeres do corpo violam as leis dos homens e dos deuses e nunca poderão ascender ao reino espiritual das estrelas celestiais sem terem passado Eons em tormento Camões que inequivo camente também condena o baixo amor que os fortes enfraque ce vê no entanto uma essencial complementariedade entre o amor físico e o amor espiritual numa nova articulação porven tura transposta e modificada da dialética plotiniana que clara mente sugere que o amor individual com o erotismo que neces sariamente inclui pode levar ao baixo amor ou ao amor sublime conforme a direção espiritual que o orientar A carítas patríae que é li A EP ICA 75 o amor sublime como entendido na tradição ciceronista do Hu manismo Cívico seria assim para Camões a mais alta expres são da totalidade humana individual manifestada no serviço da pátria Por isso embora a sua consagração na Ilha de Vénus seja simbólica de uma imortalidade coletiva os navegantes regressam à pátria levando consigo a companhia desejada das Ninfas que hãode ter eternamente por mais tempo que o Sol o Mun do aquente X 143 Recordese no entanto que poucos momentos antes de re ferir o regresso dos navegantes à pátria na companhia desejada das Ninfas Camões tinha deliberadamente desmontado o me canismo fictício da sua consagração Após ter colocado Deus fora do humano entendimento o que como no soneto a Cristo e nos próprios Lusíadas onde é sempre Vénus quem responde às pre ces de Gama à Divina Guarda pode sugerir que a divindade una e transcendente é essencialmente alheia aos destinos humanos Tétis afirmara a fa lsidade de si própria e de todos os deuses pa gãos que haviam presidido à fabulação do poema numa estrofe geralmente entendida como a necessária vénia de Camões à cen sura inquisitorial Aqui só verdadeiros glo riosos divos estão porque eu Saturno e ano Júpiter Juno fomos fabulosos fingidos de mortal e cego engano Só pera fazer versos deleitosos servimos e se mais o trato humano nos pode dar é só que o nome nosso nestas estrelas pôs o engenho vosso Mas relendo estes versos da perspectiva do sentido iniciáti co dOs Lusíadas tornase evidente que na ostensiva desmitificação CIM Õ ES E A VIAGEM INI C I ÁTIC A do poema por eles significada Camões está mais uma vez a afirmar que foi O próprio poema que conduziu ao conhecimento das verda des ficticiamente nele representadas Desta maneira como autor dos versos deleitosos capazes de pôr o engenho humano nestas estrelas assumiu plenamente a função iniciática do verdadeiro herói da aventura para o conhecimento representada nOs Lusíadas E pouco importa se esses versos foram parcialmente força dos ou não pelas circunstâncias políticas e religiosas do seu tem po A verdade é que Camões era um cristão embora também um humanista na vanguarda da sua época e como tal capaz de pôr em questão as ficções da fé à luz das experiências que lhe ensina ram como diz no soneto a Cristo que coisas há i que passam sem ser cridas e cousas cridas há sem ser passadas Mas sem a acei tação do cristianismo como a religião superior um aspecto essen cial dOs Lusíadas que é toda a confrontação dos navegantes com as forças do baixo amor expressamente identificadas com os in fiéis não faria qualquer sentido A modernidade do pensamen to religioso de Camões talvez resida no entanto na dialética em que articula um C risto essencialmente transmundano e alheio aos destinos do homem com a consequente necessidade da diviniza ção do próprio homem através do conhecimento da sua contra ditória humanidade Como Camões disse pela boca de T étis o sumo Deus que por segundas causas obra no Mundo X 85 Essas segundas causas foram representadas nOs Lusía das pelos mesmos deuses pagãos que depois afirmou serem o pro duto do fingimento humano Eles são portanto uma metáfora da própria humanidade a representação poética das suas forças e das suas potencialidades interiores Ao reivindicar assim para a po esia a função de veículo estruturante da evolução do homem para o conhecimento Camões está não só a sublinhar o valor iniciático do que escreveu como também a necessitar a conclusão de que o sentido da vida é aquele que os homens lhe imprimirem Mas tendo precedido a narrativa das profecias de T étis e da visão da máquina do Mundo com um amargo comentário pessoal 11 A ÉPI CA 77 sobre a possível inutilidade do seu canto em face do sono ignavo ds seus contemporâneos mal anuncia o regresso dos navegantes à patna de novo brutalmente interrompe a narrativa e retoma a me ditação anterior passandoa assim para o primeiro plano da obra No mais Musa no mais que a Lira tenho destemperada e a voz enrouquecida e não do canto mas de ver que venho cantar a gente surda e endurecida O favor com que mais se acende o engenho não no dá a pátria não que está metida no gosto da cobiça e na rudeza dhua austera apagada e vil tristeza X 145 aiquer dúvida que ainda pudesse subsistir sobre qual 0 dest111atano e qual o referente do poema desaparece por comple to neste momento de provocatório dramatismo Camões fala no contexto do presente para os seus contemporâneos fala da gente surda e endurecida e para ela A pátria que celebrou não coinci d com a que estava metida no gosto da cobiça e da rudeza de hua austera apagada e vil tristeza aquela era O exemplo heroi co com que tentou acordar esta a representação do amor su bli me no tempo do baixo amor ou metáfora espiritual transposta para um contexto cívico a memória de Sião nos erros de Babel Com o regresso dos navegantes o poema regressou também ao seu momento inicial em está a confrontar a comunidade não é Gam é Camões A aventura não foi a viagem é O poema Mas a cou111dade não reconhece o seu herói nem entende a mensagem e 11ortahdade que ele lhe trouxe O ciclo regenerador da viagem 1111c1anca freou perigosamente ameaçado Os avisos do Velho do Restlo terão sido provados como justas conclusões da experiência amoes confronta de novo a desrazão do mundo da perspectiva da CA MÕ ES E A VIAGElI I N IC I ATI C A razão que personifica Desta maneira as suas queixas sobre a falta de favor com que mais se acende o engenho só muito superficialmen te representam o pedido pessoal de proteção e de benefícios que ge ralmente têm sido considerados Representam sobretudo uma al tiva reiteração da necessidade para a comunidade de se reconhecer nele assumindo como sua a mensagem que lhe trouxe e justifican do assim o continuado exercício do seu canto agora interrompido Aliás dada a maneira brutal como Camões se dirige à gente de quem qualquer benefício pessoal poderia depender a mesma que acusa de estar surda endurecida e em apagada e viJ tristeza só é de surpreender que tenha recebido a sua exígua tença que porventura ficou a dever mais aos seus serviços nas armas do que nas letras Depois da súbita violência em que recusa continuar a can tar para gente surda e endurecida Camões faz ainda o seguinte comentário E nãq sei por que influxo do Destino não rem um ledo o rgulho e geral gosto que os ânimos levanta de contino a ter pera trabalhos ledo o rosto Por isso vós ó Rei que po r divino conselho estais no régio sólio posto olhai que sois e vede as outras gentes senhor só de vassalos excelentes Nesta elíptica sugestão de que o rei só deveria con iderar como seus vassalos os que merecem o atributo de excelen tes Camões aponta ao mesmo tempo para a separação que havia e n tre o poder real e esses vassalos excelentes que como did nas es trofes seguintes alegremente enfrentam por todo o 111u11do os maiores perigos X 147 e que para servir o re i esr10 a tudo aparelhados X 148 não precisa ndo de maior estímulo do que li A EP IC A 79 serem por ele favorecidos com a sua presença e leda humanida de Identificada assim a causa do influxo de Destino que impe dia o ledo orgulho e geral gosto que os ânimos levantasse como a inativa recusa do rei à leda humanidade tão eloquentemente valorizada nOs Lusíadas Camões está ao mesmo tempo a pôr de par consigo esses vassalos para quem também pede o favor do rei Favoreceios logo e alegraios com a presença e leda humanidade de rigorosas leis desalivaios que assi se abre o caminho à santidade Os mais esprimenrados levantaios se com a esperiência tem bondade pera vosso conselho pois que sabem o como o quando e onde as cousas cabem X 149 Na sua poesia lírica Camões tinha afirmado o valor da ex periência e a nobreza da alegre aceitação da sua própria humani dade ideias que estruturadamente desenvolveu nOs Lusíadas nos termos exemplares com que veio confrontar dom Sebastião o rei vrginal mal aconselhado e desatento à governação do reino cujas redeas ainda não tomara como disse Camões logo no início do poema e como sugeriu numa passagem posterior rodeado de tão maus conselheiros que como Actéon pelos seus cães estava ame açado de por eles ser devorado IX 26 11 Significativamente esta sugestão é feita da perspectiva de Vénus por Cupido que deci 11 Cf RAMA LHO Américo da Costa O mito de Actéon em Camões Coimbra fa n tldade de Letras da Universidade de Coimbra Instituto de Estudos Clás sicos 1968 p 68 separara de Humanítas vols X I XXX que corrobora a interpretação desta passagem como uma crítica a dom Sebastião primeiro sugerida por Faria e Sousa 80 C AMÕ ES E A V IAGEM IN IC I ÁTI CA dido a combater os erros grandes dos que amam cousas que nos foram dadas não pera ser amadas mas usadas IX 25 censu ra Actéon por fugir da gente e bela forma humana para seguir um feio animal fero TX 26 Na verdade dom Sebastião é ca racterizado como o exato oposto de tudo quanto um rei deveria ser dentro da concepção humanística da carítas patríae definida no poema sem que ao menos a sua castidade lhe servisse da pers pectiva de Camões como uma virtude redentora Nem a máscara dramática ou persona que Camões o poetaguerreiro que se havia comparado a Júlio César adota perante ele quando procura despertálo e aos seus contemporâ neos da apagada e vil tristeza em que estavam adormecidos é tão humilde como a uma primeira leitura poderia parecer Mas eu que faJo humilde baxo e rudo de vós não conhecido nem sonhado Da boca dos pequenos sei contudo que o louvor sai às vezes acabado Nem me falta na vida honesto estudo com longa esperiencia misturado nem engenho que aqui vereis presente cousas que juntas se acham raramente X 154 Dentro do código humanista a caracterização desta perso na humilde baxo rudo desconhecido mas combi nando a experiência e o engenho significa tudo menos uma postura de modesta submissão É a figura de Sileno que Camões está a en carnar perante o rei a estranha divindade rústica da Antiguidade filho da Terra e de Mercúrio o deus da eloquência que curiosa mente e talvez significativamente no contexto mitológico do poema foi o preceptor de Baco e o companheiro de muitas das suas aventuras A sua aparência era a de um velho rude disfor l i A ÉP IC A 8 1 me grotesco frequentemente embriagado muitas vezes na com panhia de ninfas e de sátiros mas sempre com imensa sensatez e sabedoria Sabia tudo do passado e do futuro e era capaz de pro fetizar o destino de quem o conseguisse amarrar durante o pesa do sono em que caía quando embriagado Platão tinhao em tão alta estima que comparou o seu mestre Sócrates com ele e além de Sócrates Sileno teve tais personificações literárias como Dió genes Epicteto e supremo exemplo da divindade disfarçada num baixo corpo humano o próprio Jesus Cristo Como Sileno de Akibíades nome que veio a ter em Ate nas porventura para dissociar a sua imagem da má companhia de Baco a sabedoria desta personagem que se veio a tornar tão cara ao Humanismo Cívico foi tema de um famoso adágio de Erasmo publicado em 1515 No seu estudo extremamente importante so bre o tópos das armas e das letras Luís de Sousa Rebelo demons trou que este adágio foi acessível aos humanistas portugueses e chamou pela primeira vez a atenção para o fato de que D iogo do Couto inspirou nele a caracterização do seu Soldado Prátíco o pro ve soldado que se apresenta à corte em figura tão rústica mal ordenada e que parece avorrecerá a quem o vir mas em cujas pa lavras debaixo daquela rustiqueza há muita doutrina política moral muitos exemplos muitas verdades e muitas cousas que se se remediarem farão uma república como esta de que se trata tão próspera e tão feiice como foi aquela de Atenas 12 Tudo in dica como aqui fica registado que foi Camões assumindose nela com evidente ironia autobiográfica quem antes de D iogo do Couto trouxe para o contexto do H umanismo Cívico português a figura de Sileno Seja como fo r o mal que procuravam remediar era semelhante e para a compreensão do significado iniciático 12 Cf REBELO op cit p 443 No contexto deste estudo que excede em muito o seu tema ostensivo de armas e letras Luís de Sousa Rebelo coloca numa nova e muito iluminadora perspectiva a especificidade do Humanismo Cívi co português 82 C AMÕ ES E A V IAG EM I N IC I ATI CA dOs Lusíadas corolário de toda a obra de Camões e representaçifo exemplar da sua vida basta registar a coincidência Tendo reafirmado o valor cívico da sua função bárdica de personificação individual do destino coletivo da comunidade de pois de uma final exemplificação em si próprio da complemen taridade das armas e das letras inerente a toda a concepção do poema Camões vai terminar Os Lusíadas como o tinha começado com uma exortação ao rei Pera servivos braço às armas feito pera cantarvos mente às Musas dada só me falece ser de vós aceito de quem virtude deve ser prezada Se me isto o Céu concede e o vosso peito dina empresa tomar de ser cantada como a pressaga mente vaticina olhando a vossa inclinação divina a minha já estimada e leda Musa fico que cm todo o mundo de vós cante de sorte que Alexandro em vós se veja sem à dita de Aquiles ter enveja X 155 I 56 O seu tom de homenagem é mais uma vez imperativo ha vendo uma clara relação de causa e efeito entre o rei o aceitar pre zando como é seu dever a virtude coletiva nele representada e a decisão a que o exorta de dina empresa tomar de ser cantada Dela iria depender a continuidade ameaçada do seu canto que é o mesmo que dizer no contexto do significado iniciático dOs Lusíadas como corolário de toda a obra de Camões a justificação filosófica do seu destino pessoal na renovada continuidade da pátria que cantou 11 ÉlJC I A Relação entre História e Mito em Os Lusíadas e a Função Simbólica dos Deuses Pagãos Introdução Luís de Camões em sua obra magistral Os Lusíadas constrói uma narrativa que transcende a mera crônica das expedições marítimas portuguesas entrelaçando de forma intrincada a história verídica com o rico tecido do mito Este trabalho não só celebra as realizações heroicas dos navegadores lusitanos mas também imerge profundamente no imaginário mítico fundindo o factual e o metafórico em um discurso poético singular Helder Macedo ao examinar esta interação argumenta que Camões manipula uma linguagem poética que possibilita a articulação contínua entre o verídico e o fantástico criando uma interseção onde os fatos são revestidos de metáforas e as metáforas adquirem uma literalidade inerente Macedo 2013 A Confluência de História e Mito Em Os Lusíadas a relação entre história e mito não é apenas uma justaposição de elementos distintos mas uma síntese que confere profundidade e complexidade à narrativa épica Camões ao proclamar a superioridade de sua epopeia por ser fundamentada na veracidade histórica simultaneamente incorpora o mítico e o fantástico transformando o épico em um campo onde o factual e o metafórico coexistem harmoniosamente Nas palavras de Helder Macedo Camões manifesta uma linguagem poética que permite uma articulação sem cesuras entre o factual e o metafórico com os fatos metaforizados e as metáforas literalizadas Macedo 2013 p 53 A crítica moderna como evidenciado por António José Saraiva também enfatiza esta dualidade observando que os deuses pagãos ao intervir nas ações dos homens conferem um significado exemplar ao épico em que os deuses nOs Lusíadas são tratados como entidades objetivas dentro da estrutura do poema Saraiva 1980 Desta forma a mitologia não é relegada a um papel meramente decorativo mas emerge como uma força ativa que molda e enriquece a compreensão dos eventos históricos narrados O Papel Simbólico dos Deuses Pagãos A inclusão dos deuses pagãos em Os Lusíadas transcende a função de adornar a narrativa com elementos fantásticos Esses deuses particularmente figuras como Baco e Vênus representam e simbolizam forças que influenciam diretamente o curso dos acontecimentos Baco que age para frustrar os navegadores portugueses personifica os desafios e adversidades que eles enfrentam enquanto Vênus atua como um símbolo de proteção e favor facilitando o sucesso das jornadas Esta dinâmica confere à narrativa uma profundidade simbólica onde os deuses oferecem uma perspectiva mítica que interage com a realidade histórica Silva 1998 p 112 A intervenção desses deuses permite a Camões explorar temas universais como a luta entre o bem e o mal a perseverança diante da adversidade e a recompensa pela virtude e coragem A história é assim metaforizada com os deuses pagãos representando as forças naturais e sobrenaturais que guiam e desafiam os heróis Segundo Luciana Stegagno Picchio a presença divina nos textos épicos de Camões simboliza as forças adversas e favoráveis que se encontram no caminho dos heróis refletindo a crença na intervenção divina nos destinos humanos Stegagno Picchio 2000 p 205 A Literalização das Metáforas A estratégia de Camões de literalizar metáforas proporciona uma camada adicional de significado à narrativa épica Ao transformar elementos metafóricos em componentes literais da história ele enriquece a interpretação dos eventos e confere um valor simbólico mais profundo aos feitos históricos A mitologia tornase um veículo para a expressão das virtudes e desafios enfrentados pelos navegadores conferindolhes uma dimensão quase transcendente Como observa Michel de Certeau a literalização das metáforas em Os Lusíadas não só enriquece a narrativa mas também expande o horizonte interpretativo da epopeia permitindo uma leitura multifacetada que abrange tanto o histórico quanto o simbólico Certeau 1988 p 98 A transposição dos feitos humanos para as maquinações divinas exemplifica como Camões utiliza a mitologia para elevar os eventos históricos a um plano metafórico onde cada ação e resultado ganha um significado exemplar e transcendente Assim Os Lusíadas não é apenas uma crônica das expedições portuguesas mas uma celebração das virtudes humanas através da lente do mito e da poesia Em suma a interação entre história e mito em Os Lusíadas é essencial para a estrutura e profundidade do épico camoniano Camões ao articular o verídico e o fantástico através de uma linguagem poética inovadora cria uma obra que transcende a mera narrativa histórica para se tornar uma reflexão complexa sobre o papel da mitologia na construção da identidade e do destino humano A presença e função dos deuses pagãos na epopeia não só enriquece a narrativa mas também serve para sublinhar a profunda interdependência entre o factual e o metafórico evidenciando a maestria de Camões em tecer uma narrativa que ressoa com significados tanto literais quanto simbólicos Este processo de metaforização literal confere à epopeia uma riqueza interpretativa que permanece relevante e fascinante na crítica literária contemporânea História e Mito A Complementaridade no Poema Camões ao iniciar Os Lusíadas propõe a superioridade de sua epopeia devido à sua base na veracidade histórica contrastando com a falsidade do mito representada pelas musas estranhas No entanto à medida que o poema avança o autor não apenas incorpora elementos míticos mas entrelaça o fantástico com o histórico criando uma narrativa rica e multifacetada Os deuses pagãos em Os Lusíadas desempenham um papel simbólico crucial na construção de sentido do épico Eles não são meramente figuras ornamentais ou causas segundas alegorizadas mas sim agentes ativos que intervêm no destino dos heróis conferindolhes significação exemplar António José Saraiva destaca que os deuses nOs Lusíadas são tratados como entidades objetivas dentro da estrutura do poema enquanto a divindade cristã permanece como uma crença subjetiva dos personagens A Função dos Deuses Pagãos Os deuses pagãos particularmente figuras como Baco e Vênus são apresentados não apenas como intervenientes diretos nas ações humanas mas também como representações simbólicas das forças que moldam e determinam o curso da história Por exemplo Baco que se opõe às expedições portuguesas personifica os desafios e as adversidades enfrentadas pelos navegadores Vênus por outro lado atua como uma protetora e facilitadora simbolizando o apoio e as bênçãos necessárias para o sucesso das jornadas A presença desses deuses confere à narrativa uma dimensão mítica que transcende a mera crônica histórica Eles proporcionam uma lente através da qual os eventos históricos ganham profundidade e complexidade simbólica refletindo a crença na intervenção divina e no destino preordenado A Metaforização da História Camões metaforiza a história utilizando os deuses para explorar temas como a justiça a coragem e o valor Essa transposição de ações humanas para as maquinações divinas permite uma interpretação que vai além do simples relato factual A mitologia se torna um meio para enriquecer a compreensão dos eventos históricos imbuindoos de uma significância moral e filosófica que ressoa tanto no contexto da epopeia quanto na percepção dos leitores A metáfora ganha uma literalidade própria quando os feitos dos heróis são narrados como façanhas abençoadas ou contrariadas pelos deuses Essa literalização das metáforas reforça a ideia de que a história na visão de Camões não é apenas uma sequência de eventos mas uma trama complexa onde o mito e o real se entrelaçam para criar uma narrativa épica que exalta a nação e os valores que ela representa Conclusão Portanto a relação entre história e mito em Os Lusíadas é essencial para a construção do épico camoniano Os deuses pagãos desempenham um papel fundamental não apenas como figuras decorativas mas como elementos simbólicos que conferem profundidade e significado aos eventos históricos narrados Essa integração do mítico e do histórico reflete a habilidade de Camões em criar uma epopeia que transcende o tempo celebrando tanto as realizações passadas quanto os valores eternos da nação portuguesa Referências bibliográficas CERTEAU Michel de A Invenção do Cotidiano Artes de Fazer Petrópolis Vozes 1988 MACEDO Helder Camões e a Viagem Iniciática Lisboa Edições Colibri 2013 SARAIVA António José Deus e os Deuses dOs Lusíadas Lisboa Gradiva 1980 SILVA Augusto dos A Dialética entre História e Mito em Camões Revista de Estudos Camonianos vol 3 1998 pp 105120 STEGAGNO PICCHIO Luciana Aventura e Engenho Estudos sobre Camões e a Épica Portuguesa Coimbra Almedina 2000
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adora o verdadeiro É um verso claríssimo que não precisa de explicação Baco deus da fábula e portanto falso adora Cristo verdadeiro Deus Todos os comentadores o lêem assim a começar por Faria e Sousa leitor também ingénuo apesar de vastamente erudito E assim também o leu o autor destas linhas na sua edição dOs Lusíadas 1978 embora já prevenido contra as ciladas de Ca moes Em português tanto o falso deus como O verdadeiro podem ser indiferentemente sujeitos da proposição Passando a frase para a forma passiva tanto se pode dizer que o falso deus era adorado pelo verdadeiro como que o verdadeiro era adorado pelo falso Mas quem é o falso deus e quem é O verdadeiro É aqui que reside a questão Tanto podemos supor que o verdadeiro deus é Cristo e Baco falso figura Extraído de Quademi Portoghesi 7 8 1 1980 39 For Evaluation Only Copyright c by Foxit Software Company 2004 2007 Edited by Foxit PDF Editor 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 do Demónio segundo Faria e Sousa como que o falso é Cristo e o verdadeiro é Baco Mas esta segunda interpretação é inviável porque vai contra a crença de Camões que era cristão e católico sem sombra de dúvida E se dúvida houvesse nunca Camões podia conside rar como verdadeiro um deus da fábula Por isso a primeira in terpretação é óbvia Mas esta primeira interpretação tem por base um pressuposto estético é que Camões em todo o espaço dOs Lusadas tal como na líricat exprimiu directamente a sua subjectividade sendo por isso os deuses da fábula meros ornamentos ou cau sas segundas alegorizadas ou ainda como queria Faria e Sousa que nisto seguia o primeiro censor dOs Lusíadas figuras do Demónio Mas examinemos o contexto do verso sem preconceito Baco quer armar uma cilada aos Portugueses atraindoos a um porto que eles julguem habitado por cristãos para isso finge e fabrica um altar com a imagem do Pentecostes e ajoelhase diante dela com aparência humana queimando incenso ao lado de dois portugueses enviados a averiguar a verdade J e assi por derradeiro O falso deus adora o verdadeiro Isto é Baco adorava a imagem que ele próprio fabricara e fin girat adorava um deus fingido falso feito pelas mãos dele Baco que era o verdadeiro autor deste artifício O falso deus a imagem fingida de Deus era adorado pelo próprio que o fi zera pelo seu autor real A interpretação correcta é portanto a contrária àquela que tem sido dada ao verso o verdadeiro deus Baco adora o deus fingido na pintura do Pentecostes e fingido com a intenção de enganar os Portugueses isto é falso Baco é um deus que fabrica Cristo é um deus fabricado uma imagem Esta interpretação tem a seu favor o contexto anterior e pos terior do verso Logo na estrofe seguinte se diz que os dois por tugueses não se aperceberam da cilada 40 não vendo que enganados Os tinha o falso e santo fingimento Repetese o adjectivo falso seguido de santo ambos apli cados a fingimento como se Camões quisesse esclarecer o sen tido em que empregara o falso na estrofe anterior e acrescentase santo para ressalvar a reverência que se deve às imagens sagradas mesmo quando feitas com a intenção de en ganar De resto na própria estrofe 12 há um verso que parece prepararnos para o falso deus Dizse que os companheiros portugueses se ajoelharam e puseram os sentidos Naquele Deus que o mundo governava Não é o Deus que governa mas o Deus que no fingimento de Baco governava O pretérito imperfeito é o verbo usado no discurso indirecto isto é no discurso atribuído a outros Não indica o que realmente acontece mas sim o que acontece se gundo o ponto de vista de outrem O deus fingido não é o Deus que governa mas o que Baco fingidamente pretendia que go vernava É verdade que por vezes Camões emprega em fim de verso o imperfeito como equivalente do presente para facilidade de rima à semelhança do que se pratica no romanceiro o que poderia prestarse aliás neste caso a uma nova e voluntária ambiguidade A nossa interpretação tem também um pressuposto é que os verdadeiros deuses objectivos nOs Lusíadas são os deuses da fábula e que Deus cristão é um deus subjectivo ilusório den tro da máquina do Poema um deus relativo ao Autor nos seus apartes e aos actantes cristãos mas não deus para dentro do Poema e da sua acção Camões autorpersonagem é cristão Vasco da Gama e os Portugueses são cristãos mas o Poema é construído como se os deuses fossem objectivos independen tes da subjectividade do Poeta e dos heróis É um pressuposto meramente estéticot mas que serve de chave para a coerência do Poema Por ele se explica aquele famoso 41 For Evaluation Only Copyright c by Foxit Software Company 2004 2007 Edited by Foxit PDF Editor il 1 1 1 1 1 j 1 1 1 1 1 i j 1 passo que escandalizou Voltaire Vasco da Gama tendose aper cebido da cilada de Baco quando já estava a salvo implora ajuda da guarda divina para prosseguir a viagem É à guarda divina que ele se dirige como verdadeiro cristão mas quem con cretamente o ouve e responde com a acção à sua súplica é Vé nus para ee invisível Voltaire achou esta cena incongruente e de mau gosto Mas ela é na verdade rigorosamente coerente com o ponto de vista estético adoptado n Os Lusladas Desse ponto de vista a guarda divina cristã não existia objectiva mente era uma crença uma ilusão subjectiva de Vasco da Gama nascido e educado como cristão A realidade corres pondente a essa ilusão é Vénus deusa concreta objectiva actuante Camões foi extremamente coerente pois neste lance em que Vasco da Gama invoca o seu Deus que era também o Deus de Camões não se esqueceu de que os deuses do Poema tal como o planeara e concebera isto é os deuses da fábula sem mistura eram as únicas divindades efectivas do texto Cabe aqui notar que simetricamente a Cristo Mafamede ou o seu Deus tãopouco é um agente do Poema Quando os Mou ros tentam intrigar os Portugueses com o Samorim quem efec tivamente intervém é Baco sob a aparência do Profeta VIII 4850 Baco é aqui um Mafamede fingido como no canto II Cristo fora um falso deus Mas tanto os Mouros como os cris tãos são movidos nos seus comportamentos pelas respectivas crenças subjectivas O mouro que fala a Vasco da Gama em I 53 diz Nós temos a lei certa que insinou O claro descendente de Abraão Vasco da Gama respondelhe na mesma onda 42 A lei tenho daquele a cujo império Obedece o visíbil e invisíbil 1 65 Cada um tem a sua lei ou a sua convicção mas os deuses reais invisíveis são outros independentes da subjectividade Esta a que chamamos a lei estética da objectividade comanda toda a acção do Poema até ao seu desenlace na Ilha de Vénus Só nos cantos III IV v e VII há referências relativamente frequentes a Deust porque nesses cantos quem fala é Vasco da Gama con tando a história de Portugal e a sua própria viagem ou Paulo da Gama contando as pinturas das bandeiras ou o Monçaide muçulmano futuro cristão explicando à sua maneira o misté rio da Trindade não contando as largas intervenções em que o Poeta falat apresentandose pessoalmente Nem Vasco nem Paulo da Gama se referem aos deuses salvo ao gigante Ada mastor que é um espectro e alucinação dos viajantes Os can tos 1 II e VI são os cantos da acção narrativos objectivos a par tir do I 19 acabada a introdução No cantor encontramos duas estrofes em que o Gama descreve a sua fé ao mouro e define o seu Deus No canto II o Gama invoca como já vimos a Divina Guar da e interpreta em termos cristãos um sonho que lhe foi inspi rado por Mercúrio II 65 No canto VI a acção que fora interrompida pelo largo discurso do Gama ao rei de Melinde recomeça e novamente Deus volta a estar ausente só quase no final do canto estrofes 93 e 94 o Gama agradece a Deus a ces sação da tempestade devida à actividade de Vénus mais uma vez Vénus é a causa objectiva Deus a interpretação subjectiva por Vasco da Gama dessa causa O canto VII começa por uma larga exortação do Poeta em seu próprio nome apelando à cruzada e à união dos povos e r príncipes cristãos a descrição da India é feita por meio de um actante histórico o Monçaide e nela os deuses não têm cabi mento tanto mais que é um mouro há vários diálogos entre Cristãos e Mouros que naturalmente não podem referirse aos deuses da fábula este canto acaba com outra longa digressão do Autorpersonagem A intervenção dos deuses da fábula na acção histórica finda no canto VIII com a pálida aparição de Baco disfarçado de Mafamede 43 For Evaluation Only Copyright c by Foxit Software Company 2004 2007 Edited by Foxit PDF Editor I 1 1 1 1 1 1 r 1 1 1 1 1 1 1 1 1 É no canto IX que os deuses ou antes as deusas descem à Terra e tocandoa se desfazem Camões declarao no termo da descrição da festa nupcial Que as ninfas do Oceano tão f ermosas Tétis e a ilha angélica pintada Outra cousa não é que as deleitosas Honras que a vida fazem sublimada As ninfas são alegoria das honras Aquelas preminências gloriosas Os triunfos a fronte coroada De palma e louro a glória e maravilha Estes são os deleites desta ilha IX 89 A partir do canto IX os deuses deixam de agir La comme dia e finita A sua última acção como entidades objectivas foi a intervenção de Baco disfarçado de Mafamede em sonhos É também a partir do canto IX com o regresso dos nautas na estrofe 16 que acaba a acção histórica Daqui para a frente o Poema transformase numa alegoria declarada Os deuses es tão mortos e embalsamados e as suas múmias servem de orna mento Agora sim podese dizer que eles são figuras de retó rica Servem como emissores do discurso sobre as coisas futuras para os Portugueses da viagem à India A lei estética da objec tividade não funciona mais para eles nem tãopouco para os actantes históricos porque não há mais acção Então é o mo mento para Tétis declarar em nome de todos eles como um ac tor que vem despedirse à boca da cena Só pera fazer versos deleitosos Servimos X 82 44 Estes versos não são incongruentes se os considerarmos no con texto do canto x embora neguem a lei estética da objectividade que comanda os cantos anteriores ao IX E não havendo mais deuses já se pode falar de Deus como realidade e não já como crença subjectiva dos personagens cris tãos do Poema A palavra Deus no sentido cristão é referida doze vezes no canto x por Tétis filha do Céu e da Terra e não já ninfa do Oceano a qual além disso conta longamente a es tória de S Tomé É como se o véu se rompesse e desaparecesse a ilusão ficando o espaço limpo envolvido por Deus mas o que é Deus ninguém o entende que a tanto o engenho humano não se estende X 1 80 Deus é aqui definido como o Sujeito incognoscível e com efeito só é possível por definição conhecer o Objecto Deus é o que conhece e portanto está para além de todo o conheci mento Seria negálo referilo como objecto do que quer que fosse mesmo como deus ex machina de um poema E talvez isto tenha que ver profundamente com a lei estética da objectividade que preside à construção dOs Lusfadas Camões podia oferecer nos em espectáculo os deuses em que não acreditava mas não Deus perante quem ele próprio se sentia objecto criado e conhecido Para concluir queremos lembrar o que dizemos noutros lu gares que Os Lusíadas contrariamente à maior parte da lírica não são a expressão romântica da subjectividade do autor mas urna obra voluntariamente objectiva separada dele e em que ele procurou exprimir algo de exterior a si mesmo sem todavia atraiçoar a sua crença mais íntima Não há talvez obra mais objectiva na nossa literatura Por isso é necessário ter muita cau tela para usar o texto dOs Lusfadas como expressão daquilo que Camões sentia ou pensava como o fazemos para a lírica O que Camões pôs no Poema é aquilo que devia ser posto num poema daquele género isto é épico patriótico e cruzadístico 45 For Evaluation Only Copyright c by Foxit Software Company 2004 2007 Edited by Foxit PDF Editor 1 1 t 1 I I I i N 1 1 1 t 1 t 1 11 1 1 j E os deuses são uma esfera isoladora que permite narrar o pro cesso cósmico e histórico sem pressupor e sem empenhar Deus que pertencia à problemática mais funda e íntima de Camões Não quis que figurasse no fingimento a sua crença ou o seu pro blema que não eram fingidos nem mesmo nos apartes em que se suspende a acção para o Autor em pessoa dramática desa bafar as suas queixas contra o desconcerto º mundo 46 ü 1 j porque humanamente divinizado como um discurso de vida e não de morte Sendo assim a melhor conclusão para O exercício exis tencial e poético representado na sua obra lírica é a que se encon tra nos versos que encerram o comiato desta sua última canção Nem eu delicadezas vou cantando co gosto do louvor mas explicando puras verdades já por mim passadas Oxalá foram fábulas sonhadas Diogo do Couto afirmou que Camões era um homem de na turaleza terrível As terríveis naturezas muitas vezes impedem as terríveis desistências Regressado a Portugal do exílio geográfico que transmutara em ex11io metafísico nas rimas de Babel e Síão foi cm Os Lusíadas e a bem diferente visão do mundo que neles pro poe que Camões veio confrontar os seus contemporâneos E se no conJunto da sua poesia lírica Camões tinha tentado transformar o apetite em razão e a experiência em conhecimento assumindo como um projeto pessoal de autodescoberta uma viagem para uma 1va concepção da humanidade Os Lusíadas são a transposição inici at1ca porque cívica dessa viagem o corolário humanístico da sua não desistência de emendar a desrazão do mundo CA1I ÕES E A V I AG EM I N IC I Á T I CA II A ÉPICA D IZERQJE OS LUSÍADAS REPRESENTAM UMA VIAGEM É ÓBV IO ao ponto do irrelevante Mas talvez já não seja tão óbvio nem terá sido suficientemente acentuado qual a natureza simbólica da viagem que a obra representa Um poema épico tende a signifi car como discurso de segundas intenções um percurso espiritual uma viagem iniciática personalizada num herói E há um esque ma básico subjacente a toda viagem iniciática o qual por sua vez corresponde a uma magnificação da fórmula cristalizada nos ritos de passagem Esse esquema define três momentos fundamentais a chamada a viagem propriamente dita e o regresso Depois de ter reconhecido a chamada à aventura e recusála seria iniciar um processo inverso de autodestruição o herói separase do mundo familiar da comunidade a que pertence e parte para o mundo des conhecido Encontra aí forças fabulosas umas que o ajudam e ou tras que se lhe opõem e que ele pode ou não reconhecer pelo que são mas cujos efeitos inevitavelmente sente Para a sua aventura se tornar numa verdadeira iniciação terá de conseguir expandir a sua identidade pessoal ao ultrapassar sucessivos obstáculos até que no encontro com a Magna Mater momento indispensá vel e objetivo implícito da sua demanda tenha assumido o po der paterno de que depende a renovada continuidade da própria comunidade nele personalizada Terá então merecido a apoteose que consagra o seu triunfo e a última benesse que simboliza em si a imortalidade coletiva que conquistou Por essa razão é sempre necessário que regresse e se reintegre na comunidade de que tinha partido de modo a assegurar dentro dela a circulação da regene radora energia espiritual que a sua aventura libertou Com efeito do ponto de vista da comunidade o regresso do herói constitui 0 propósito e é a única justificação da sua longa ausência2 A vida de todos os grandes heróis da aventura religiosa Buda Cris to Maomé corresponde no essencial a este esquema sendo 0 propósito regenerador da sua demanda evidente nas religiões que trouxeram para as suas respectivas comunidades e na promessa li teral de imortalidade que essas religiões contêm e há um propósito de imortalização coletiva nOs Lusíadas tornase claro logo nos primeiros versos que transformam a aber tura do seu modelo ostensivo a Eneída do singular arma virum que cano nas armas plurais e nos múltiplos barões cuja me recida imortalidade Camões se propõe assegurar Vasco da Gama não é Eneias nem Odisseu não é um herói singular é O chefe 0 Capitão um dos barões assinalados cujo discurso dentro do dis curso global do poema tal como por exemplo o de Paulo da Gama também serve para assinalar outros barões numa ficção narrativa que o torna numa extensão ou máscara dramáti ca da voz do próprio poeta que fala através dele E o mesmo é ver dade para a fala de T étis na Ilha dos Amores Aliás Camões tem sempre o cuidado de indicar a ficção implícita na transposição da sua própria voz para as personagens precedendo ou intercalando as falas delas com invocações às musas que acentuam o seu cará ter de artifício dramático Na verdade como já tem sido afirmado mas pareceme nunca inteiramente explicado em termos de uma necessidade estrutural do poema Os Lusíadas são porventura O po ema épico onde a presença pessoal do autor mais vivamente se faz 2 C f C AMPB ELL Joseph 1lero with a thousandfaces C leveland Nova York World Publishing Company 1970 esta obra Campbell estabelece O ar quétipo do herói da viagem iniciática com ampla exemplificação que correla ciona as mitologias e as religiões ocidentais e orientais as tradições popula res e a psicanálise C f também os seus quatro volumes The masks ef God Nova York Viking Press 1968 C AM Õ ES E A V IAGEM I N IC I ÁTI CA sentir3 Os comentários pessoais de Camões que precedem e terminam a narrativa da viagem propriamente dita além de in tervirem nela e nas narrativas concêntricas da História que ela incorpora revelam um esforço permanente de colocar todo o poema numa perspectiva crítica que apresenta corno a sua E esta é a perspectiva do presente da escrita do poema e não a do passa do que o poema celebra A intervenção pessoal do poeta no que tradicionalmente deveria ser um discurso épico impessoal serve lhe assim para definir um referente que não é o Portugal que partiu na aventura mas o Portugal que está a ouvir sobre a aven tura Referente e destinatário coincidem a aventura terminou e 0 poema é o registo dessa aventura a sua comunicação à comuni dade após o regresso Mas quem regressou para a comunicar foi 0 poeta não foram os navegantes Neste sentido parece possível afirmar que é o próprio Camões e não Vasco da Gama quem en carna a figura do herói da viagem iniciática registada nOs Lusíadas 0 que traz à ambiguidade das funções intermutáveis do poeta e das suas personagens corno narradores do poema urna nova signi ficação estrutural Com efeito como também acontece nos con tos tradicionais e no picaresco o sujeito da narrativa dOs Lusíadas vaise alterando sucessivamente mas não o seu predicado que é 0 cantar a pátria4 e este remetese sempre de novo ao sujeito ori ginal da narrativa que é o próprio Camões quer quando usa a sua voz pessoal quer quando explicitamente a empresta às suas per sonagens A intermutabilidade estrutural assim conseguida per 3 orese no entanto que Roger Bismut claramente acentua a novidade da utilização que Camões faz de si próprio n0s Lusíadas em Les Lusiadcs de Ca mões confissíon dím poete Paris Fundação Calousre G ulbenkian Centro C ultu ral Português 1974 E que Jorge de Sena regista o valor funcional dessa uti 1 ização em A estrutura de Os Lusíadas e outros estudos camonianos e de poesia peninsular do século XVI Lisboa Porrugália 1970 uma obra de decisiva importância para a revitalização do estudo da épica camoniana 4 No que respeita especificamente aos contos tradicionais vejase o estudo pioneiro de Vladimi r Propp Morphologie du conte Paris Seuil 1970 11 A EPI CA 49 mite que Camões apresente aos seus contemporâneos e destina tários do poema como se da sua própria aventura se tratasse a aventura dos que nele celebra Personagens e autor convergem e entrelaçamse de tal maneira que o próprio poema adquire um valor semântico idêntico ao da viagem nele registada A implíci ta equivalência entre os feitos e o seu canto celebra tório que aliás representa um desenvolvimento da complementariedade huma nística entre as armas e as letras5 é expressa por Camões em ter mos particularmente claros quando intervém na fala de Paulo da Gama ao Catual para caracterizar a sua própria vida e a escrita do poema dela decorrente em termos de uma viagem marítima equi valente à que está a celebrar nOs Lusíadas Paulo da Gama ia expli car a simbologia das figuras nas bandeiras portuguesas começan do com a de Luso que um ramo na mão tinha Um ramo na mão tinha Mas ó cego eu que cometo insano e temerário sem vós Ninfas do Tejo e do Mondego por caminho tão árduo longo e vário Vosso favor invoco que navego por alto mar com vento tão contrário que se não me ajudais hei grande medo que o meu fraco batel se alague cedo Olhai que há tanto tempo que cantando o vosso Tejo e os vossos lusitanos a Fortuna me traz peregrinando novos trabalhos vendo e novos danos 5 Sobre o desenvolvi mento da temática das armas e das letras na cultura portu guesa é de leitura indispensável o estudo de Luís de Sousa Rebelo Armas e letras no Grande dícíonárío da literatura portuguesa e teoría literária Lisboa 1nicia tivas Editorais 1977 Vol 1 p 426453 posteriormente pubLcado em A tra díção clássíca na literatura portuguesa Lisboa Horizonte Universitário 1982 50 CA MÕES E A VIAGEM I N IC I ÁT ICA agora o mar agora esprimentando os perigos Mavórcios inumanos qual Cânace que à morte se condena nüa mão sempre a espada e noutra a pena VII 78 79 E prossegue inventariando os trabalhos e os perigos que passou Desta maneira ao mesmo tempo que o seu canto cele bra os feitos de outros regista as suas próprias experiências seme lhantes e implicitamente está também a celebrálas reivindican do para si um estatuto heroico semelhante E ainda Ninfas minhas não bastava que tamanhas misérias me cercassem senão que aqueles que eu cantando andava tal prémio de meus versos me tornassem a troco dos descansos que esperava das capelas de louro que me honrassem trabalhos nunca usados me inventaram com que em tão duro estado me deitaram Vll 81 A negação ao poeta das honras que merece é socialmente tanto mais grave quanto é a poesia e não os feitos que ela pos sa celebrar a única garantia da imortalidade e de toda a glória 11 A ÉP ICA Vede Ninfas que engenhos de senhores o vosso Tejo cria valerosos que assi sabem prezar com tais favores a quem os faz cantando gloriosos e exemplos a futuros escritores pera espertar engenhos curiosos 51 pera porem as cousas em memória que merecerem ter eterna glória V I 1 82 Esta diatribe contra os seus contemporâneos vem na sequ ência e é a culminação da valorização que Camões faz das letras de par com o vaJor das armas nos termos do velho tópico da tradi ção clássica Mas gradualmente foi radicalizando o debate a favor das letras e da consequente necessidade da sua recepção e com preensão porque quem não sabe arte não na estima con cluindo que sem Yirgílios e H omeros não poderia haver pios Eneias nem Aquiles feros E logo subliminalmente está a mos trar porquê na justaposição aos nomes desses heróis emblemáti cos dos atributos literários pio e fero que Virgílio e Homero lhes haviam associado e que a partir de então tinham passado a caracterizar a sua veracidade histó rica Disto logicamente se se gue que sem a compreensão do seu poema também não haverá o chefe o capitão o principaJ dos barões assinaJados que sem um Camões não continuará a ter havido um Vasco da Gama Às Musas agardeça o nosso Gama o muito amor da pátria que as obriga a dar aos seus na lira nome e fama de toda a ilustre e bélica fadiga que ele nem quem na esti rpe seu se chama Calíope não tem por tão amiga nem as Filhas do Tejo que deixassem as telas de ouro fino e que o cantassem V 99 Ao contrário do próprio Camões Vasco da Gama é um he rói sem musas próprias incapaz só por si de dar significação aos 52 C AM ÕES E A V IAGEM I N I C I ÁT ICA seus atos A reconstrução literária que tornou Vasco da Gama num herói exemplar é portanto não apenas um produto do en genho poético mas também um equivalente ou porventura supe rior serviço que Camões está a prestar à pátria nOs Lusíadas Ca mões é o autor de Vasco da Gama como se ele e por extensão JS outras personagens históricas dOs Lusíadas não tivessem outra existência além daquela que o texto poético lhes está a conferir Mas se assim é Camões está também a sugerir que não há Histó ria enquanto taJ que só há a significação que possa ser conferida à História E essa significação depende da sua recepção Ao indi ca r a superioridade das letras em relação às armas Camões está portanto também a remeter para o que havia dito na dedicatória a dom Sebastião quando desde logo transpusera a viagem heroica do passado para a viagem de heroicas incertezas que é o discurso poético em que lhe está a dar significação em aJto mar e com vento tão contrário que teme que o seu fraco batel se aJague cedo V ll 78 O naufrágio do seu poema afetaria a percepção da História As relações entre a História e a sua recepção bem como entre a História e o Mito ou entre o verídico e o fantástico são manifestadas por Camões numa linguagem poética que lhe per mite fazer urna articulação sem cesuras entre o factual e o metafó rico com os fatos metaforizados e as metáforas literalizadas As sim tendo começado po r afirmar a superioridade da sua epopeia por ser baseada na veracidade da História e não como as mu sas estranhas nas falsidades do Mito o poema prontamente pas sou a incluir o mítico o fantástico o onírico todo um imaginá rio fabuloso representado na transposição das ações dos homens para as maquinações das divindades pagãs que vão presidir aos seus destinos e conferirlhes significação exemplar Mas no plano da representação literária da História Camões pôde fazêlo sem contradição porque esses invólucros de crenças esvaziadas fo ram transformados em nomes poéticos de veracidades factuais ou seja nas metáforas da História com que veio confrontar dom Se 11 A ÉP ICA 53 bastião e através dele como cabeça do reino os seus contempo râneos Por isso os deuses cumprida a sua função metafórica po dem renunciar a sua manifestada realidade dizendo Só pera fazer versos deleitosos Servimos e se mais o trato humano Nos pode dar é só que o nome nosso Nestas estrelas pôs o engenho vosso Não se trata apenas de um talvez necessário aceno à censura inquisitorial E o poeta também não está apenas a dizer que os no mes dos deuses pagãos já só serviam para dar nomes aos astros como a generalidade dos comentadores tem entendido Diz bem mais do que isso que esses nomes que lhe serviram para fazer os versos de leitosos do seu próprio poema são os veíCLJos fictícios diríamos hoje os signjficantes que lhe permitiran1 rurigir o engenho huma no para a compreensão dos processos inexplicados do universo real Na mesma estrofe os metafóricos deuses da significação po ética afirmam que vão deixar o seu lugar ao vero Deus No en tanto duas estrofes antes num verso que tem alguma equivalência no ambíguo soneto em que a fé em C risto representa o colapso da razão o poeta já havia declarado mas o que é Deus ninguém 0 entende que a tanto o engenho humano não se estende X 80 Ao colocar o saber divino que é sem princípio e meta limita da fora do finito mundo onde se situa o humano entendimen to Camões não se teria afastado das concepções filosóficas aceites pela ortodoxia cristã do seu tempo e sem dúvida por ele partilha das Mas utilizouas para colocar Deus fora do espaço semântico de um discurso poético que visa dar uma significação não teológica ao mundo inteligível e a destinos humanos com princípio e meta limitados Essa significação é aquela que o discurso poético conse guir conferir à transitória existência humana 54 C AMÕES E A V IAGE I I N IC I ÁTIC A Deuses fabulosos e heróis históricos são assim igualmente instituídos como significantes de um texto poético que em últi ma análise remete ao seu autor e se define como autorreferencial O valor metafórico das reiteradas correspondências semânticas entre a viagem factual de Gama presidida por deuses fabulosos e a sua representação no mar irado da linguagem adquire uma explícita conotação de transposta factualidade biográfica na re ferência que o poeta faz aos perigos e trabalhos que ele próprio passou enquanto a Fortuna o traz peregrinando nua mão sempre a espada e noutra a pena VII 79 A equivalência entre as suas experiências de armas e as dos heróis que celebra no po ema é manifesta Mas a estas Camões acrescentou os seus feitos nas letras ou seja a capacidade que ele tem e que eles não têm de conferir significação aos seus atos nesse mesmo poema em que se inclui de par com eles Camões está portanto a assumir para si próprio um estatuto de guerreiro letrado que teria um equivalen te não em Gama mas que paradigmaticamente exemplifica em al guém como Júlio César cuja equivalente capacidade nas letras já havia acentuado antes de caracterizar Vasco da Gama como um herói sem musas próprias De Júlio César o poeta disse nua mão a pena e noutra a lança V 96 e de si próprio como se viu irá dizer nua mão sempre a espada e noutra a pena VII 79 Também não deixa de ser significativo que Faria e Sousa te nha feito notar que Camões salvara o seu poema a nado como Cesar en semejante trabajo sus Comentaríos Camões menciona o seu equivalente naufrágio na foz do rio Mecon no contexto de outros fatos históricos feitos de armas ações virtuosas costumes estranhos lugares remotos e ilhas singulares que em fictícia voz profética são designados na Ilha dos Amores como coisas futuras 11 A ÉP IC A Este receberá plácido e brando No seu regaço o Canto que molhado Vem do naufrágio triste e miserando Dos porcelosos baxos escapando 55 Das fomes dos perigos grandes quando Será o injusto mando executado Naquele cuja Lira sonorosa Será mais afamada que ditosa X 128 A subtil sintaxe desta estrofe torna intermutáveis o poeta e o poema o canto que molhado vem do naufrágio e aquele cuja lira sonorosa será mais afamada que ditosa integrando simul taneamente na significação do poema o naufrágio que ameaçou destruílo e os padecimentos do seu autor A ameaça que paira sobre o poema fica igualmente a pairar sobre a sua matéria poé tica que é a nação que está a ser celebrada no canto que molha do vem do naufrágio Daí o elemento de insidiosa dúvida torna da em crescente desespero nas intervenções pessoais de Camões quando o poema se aproxima do fim Uma das supostas e mais criticadas anomalias do poema o uso da voz pessoal do autor na narrativa épica é portanto funcionalmente determinante da significação global do poema Da perspectiva da metafórica viagem de Camões no mar irado da poesia tornase particularmente iluminador que no que concerne à factual viagem do Gama o poema não registe a chamada à aventura limitandose a encontrar as naus quando já no largo oceano navegavam e que do seu regresso à comu nidade pouco mais diga além de que regressaram sem nada de semelhante à passagem pelas portas de marfim que Eneias atra vessou ao voltar ao mundo para fundar Roma Na verdade do esquema da viagem iniciática do herói ao Gama cabe apenas a fase intermédia a da viagem propriamente dita a qual estando precedida e seguida das falas do poeta aos seus contemporâneos élhes assim claramente proposta como uma representação poé tica de valor simbólico ou exemplar A aventura iniciática de que o poema trata no seu sentido global não é portanto a passada CAMÕES E A V IAGEM I N IC I ATI CA a futura aquela para que o poeta vem chamar no presente os seus contemporâneos ao regressar de uma aventura equivalente que representa na do Gama Desta maneira é o poeta é o pró prio Camões quem pode assumir a função regeneradora do herói regressado à comunidade de onde havia partido para o mundo desconhecido precisamente na medida em que assume a respon sabilidade bárdica ou xamânica inerente à função social da poe sia Por isso se a comunidade o não reconhecer como o seu herói e mensageiro não só a necessária circulação renovada da energia espiritual comum em si personificada ficará para sempre perdi da como inevitavelmente a nova aventura iniciática não virá a ser possível Tornase assim evidente que nOs Lusíadas como Fernan do Pessoa procurou repetir na Mensagem e Cesário Verde aguda mente pressentiu na homenagem a Camões que é O sentimento dum ocídenta0 o propósito da transformação da História em po esia é a criação de um modelo iniciático que entendido sirva como uma chamada à nova aventura que permita a transforma ção de um presente degradado num futuro regenerado Com possivelmente alguma dívida à tradição do espiritualismo joa quimita cuja importância em Portugal está ainda longe de ter sido suficientemente estudada o valor da História para Ca mões parece portanto ter mais a ver com a determinação do futuro do que com a celebração do passado Este propósito está aliás implícito na ambiguidade com que utiliza a profecia nOs Lusíadas ao torná la no registo ficticiamente futuro de aconte cimentos passados Se os seus contemporâneos são os destinatários do poema dentre eles como cabeça do reino Camões dirigese expressa mente a Dom Sebastião a bem nascida segurança da Lusitana antiga liberdade Depois de nas primeiras estrofes se ter propos to cantar aqueles que por obras valerosas se vão da lei da Morte libertando diz ao rei do tempo presente em versos particular mente altivos na sua aparência de submissa homenagem 11 A El ICA 57 E enquanto eu estes canto e a vós não posso sublime Rei que não me atrevo a tanto tomai as rédeas vós do Reino vosso dareis matéria a nunca ouvido canto I 15 sublinhado meu O aviso é evidente O poeta pode cantar os heróis passados e através do seu canto garantirlhes a imortalidade a que os seus feitos lhes deram direito mas não pode cantar o presente rei cujo atribu to de sublime adquire no contexto alguma ambiguidade até que ele tomando as rédeas do seu reino o que implicitamente ainda não fez dê também matéria ao canto celebratório que implicitamente ainda não merece Este aviso com o desafio que encerra vai se tornar ainda majs explícito nas três estrofes que se seguem T étis que nos cantos IX e X irá consagrar simbolicamente a imortali dade dos heróis passados que o poeta já pode cantar terá também para o rei presente o dote aparelhado6 mas para isso 0 rei terá primeiro de renovar a memória e as obras valerosas dos antepas sados e tendo assim assegurado a sua continuidade passar também a merecer não já apenas um canto futuro mas numa subtil fusão de tempos que claramente traz a intenção do poema para O presente o mesmo canto sobre os efeitos passados com que O poeta O veio cha mar para as suas responsabilidades de herói potencial Mas enquanto este tempo passa lento de regerdes os povos que o desejam dai vós favor ao novo atrevimento pera que estes meus versos vossos sejam 1 18 sublinhado meu 6 Em A estmtllrade Os Lusíadas Jorge de Sena chama a atenção para O convite a que o rei como os doges de Veneza case com o mar Cf SENA op cit º 6 11 p 73 58 C fIÕES E A V IAGEM I N I C I ÁT ICA Os Lusíadas situamse no hiato da História entre o passado que celebra e um futuro que desejariam poder celebrar O jovem rei é apenas ainda uma latência num tempo que passa lento Ocupando o hiato da História o novo atrevimento é o próprio poema desse modo investido com uma qualidade equivalente à desse outro atrevimento como lhe chamam Baco e Adamas tor que foi a aventura heroica nele celebrada Os Lusíadas são as sim também e talvez acima de tudo um poema sobre a linguagem e portanto igualmente sobre a sua recepção Segundo o amor tiverdes tereis o entendimento de meus versos escreveu o po eta num soneto como um desafio ao leitor E faz um equivalen te desafio a dom Sebastião e através dele à nação quando o exorta a receber tornandoos seus os versos dOs Lusíadas Porque é no mar irado da representação literária que o tempo cronoló gico pode ser transformado na sua significação permitindo não apenas que o presente veja e assuma o passado mas também que o passado anteveja e invoque um futuro que lhe dê continuidade E vereis ir cortando o salso argento Os vossos Argonautas por que vejam e são vistos de vós no mar irado E habituaivos já a ser invocado 1 18 Na verdade a viagem do herói é cíclica é sempre a mesma viagem recomeçada porque é sempre a viagem da comunidade através do herói que a personifica E é sem dúvida significativo que Camões nas profecias presididas por T étis na J lha do Amor se tenha literalmente incluído a si próprio entre os heróis que ce lebra nOs Lusíadas enquanto que a mesma T étis não pode mais do que ter o dote aparelhado para dom Sebastião Mas qual é a natureza da iniciação que Camões assume como sua por meio da representação literária da viagem históri I I J ÉPICA 59 ca de Gama para com ela vir confrontar o rei quando regressou à pátria Na sua poesia lírica Camões procurara tornar exemplar a sua própria experiência registando o que chamou a transforma ção do apetite em razão e a exploração individual do desconhe cido em busca do conhecimento O seu móbil foi o amo r ão canse o cego amor de me guiar a parte donde não saiba tornarme nem deixe o mundo todo de escutarme enquanto me a voz fraca não deixa r O mesmo é verdade para a viagem do Ga ma como Camões a representa nOs Lusíadas Ela não só significa transposta para o pla no cívico uma equivalente regeneração do apetite ou baixo amor em razão como também a viagem para o desconhecido em que o amor leva ra o poeta a parte donde não soubesse tornarse tem uma óbvia equivalência e a sua solução ampli ficada na viagem coletiva guiada por Vénus a deusa do amor Neste sentido Os Lu síadas também representam a iniciação à imortalidade do próprio Camões o alargamento da sua identidade pessoal no encon tro de uma razão superior à desrazão do mundo que O tinha enleado e consequentemente a rejeição de um impulso autodestrutivo equivalente ao representado nas ri mas de Babel e Síão Recordemos que no esquema tradicional da viagem inici ática a fase intermédia que é representada nOs Lusíadas pela via gem de Gama inclui a intervenção de forças fabulosas 0 assumir do poder paterno o encontro com a Magna Ma ter a Apoteose e a ídtima Benesse que é a consagração da imortalidade Todos esses momentos têm uma expressão equivalente na viagem do Gama No mesmo momento em que o poema pela primeira vez men ciona as naus já no largo Oceano estão também os deuses em consílio glorioso a tomar partido sobre as cousas futuras do O riente que iam ser afetadas pelos portugueses E é através dos deuses que Camões determina os pontos de referência simbólicos 60 C AM ÕES E A V I AG M I N IC l T ICA da viagem Baco opõe violentamente os portugueses Vénus e por amor dela Marte o deus da guerra toma o seu partido o que ao nível metafó rico imediatamente sugere a função determinan te do amor na viagem dos portugueses para o mundo desconheci do do O riente Essa função é aliás confirmada e tem a sua corres pondência no fato de ser possível faze r uma leitura coerente dOs Lusíadas da perspectiva da escala platónica do amor que Camões no entanto modifica e adapta não só ern função do Novo Cicero nismo inerente ao Humanismo Cívico como da sua própria nada convencional valorização do erotismo como possível veículo para o amor sublime Assim o baixo amor equivale à degradante sub missão do amor ao corpo que nOs Lusíadas Camões exemplifica mitologicamente em Adamastor e como exemplo histórico equi valente em dom Fernando o amor misto que equivale à nobre integração do corpo no amor tem porventura em Inês de Cas tro a sua representação mais eloquente no poema e o amor su bli me que para Camões é o amor da pátria a caritas patriae do Humanismo Cívico equivale à redentora ascensão do espírito através do corpo A sua representação nOs Lusíadas é o amor de Vénus pelos portugueses que a leva a seduzir sexualmente o pró prio pai numa evidente correspondência com a Eneída l 227 296 embora o pagão Virgílio mal chegue a sugerir a incestuo sa sexualidade que Camões torna explícita o amor de Maria pela Espanha cristã que no plano histórico a leva a reproduzir mais castamente a ação de Vénus a quem aliás é expressamente com parada quando convence Afonso I V a lutar contra os mouros ao lado do marido e fi nalmente na fusão da mitologia com a His tória representada na Ilha dos A mores é a gnose erótica oferec ida aos portugueses como prémio do seu serviço à pátria Em contraste com o erotismo espiritualmente regenerador que Camões personifica em Vénus Baco o deus cujo poder se pode manifestar na embriaguez e na desmembradora submis são orgiástica da razão aos sentidos significaria o baixo amor O u o Diabo como entendeu Faria e Sousa de uma algo redutora 11 A El ICA 6 1 perspectiva teológica cristã No contexto do esquema iniciático da obra a identificação de Baco com o baixo amor ganharia uma acrescentada importância na medida em que mitologicamente era não só o senhor da Índia que os portugueses demandavam como também o pai de Luso o antepassado mítico dos portugue ses Padre Baco 1 he chama Camões logo na sua primeira inter venção Não é no entanto impossível que sendo o pai précristão dos portugueses também pudesse ser entendido como o inimigo interno numa nação em retrocesso onde se estão amando cousas que nos foram dadas não para ser amadas mas usadas ou que na sua aliança com Netuno além de representar as dificuldades da navegação seja emblemático da mutabilidade tradicionalmente associada ao mar e que historicamente estava sendo manifestada na corrupção consequente ao desgoverno do império marítimo português Dessa perspectiva Baco seria um pai que os próprios filhos procura destruir para preservar um já inadequado poder que eles teriam portanto de conquistar para poderem assumir o seu destino e corrigir o dele Assim ao intervir sucessivamente a favor dos mouros Baco representaria também a religião consi derada corno falsa do ponto de vista da nova ordem cristã levada para o Oriente pelos portugueses Estes elementos estão sem dú vida presentes na caracterização que Camões faz de Baco mas es tão longe de esgotar a sua mais ampla e complexa significação no contexto do poema7 Da perspectiva deste ensaio basta no entanto acentuar que as primeiras armadilhas de Baco são resolvidas pela intervenção de Vénus que responde à súplica cristã de Gama à Divina Guar 7 Em estudos posteriores lidei com algumas das complexides do tratamento de Baco nOs Lusíadas da perspectiva da relação que o poema estabelece entre a celebração épica e a crítica pastoril Cf inter alia MACEDO Helder A 62 poética da verdade dOs Lusíadas 1 n G I L Fernando Viagens do olhar retrospecção visão e profecia no Renascimento português Porto Campo das Letras 1998 p 121 14 1 Luís de Camões 1 nrroducción Poesía de Luís de Camões Madrid Biblioteca de Literatura Universal 2007 p X 1 LXX I 11 C AMÕES E A V IAG Ht I N I C lTI CA da com a sedução de Júpiter a favor dos portugueses episó dio através do qual Camões ao mesmo tempo acentua o valor do erotismo corno veículo para o sagrado e sugere que a verdadeira expressão do cristianismo é o amor Mas as forças sobrenaturais têm intervindo disfarçadas como Baco em falso sacerdote ou invisíveis como Vénus no lugar da divindade cristã sem que ainda tivesse sido possível aos portugueses tomar consciên cia do mundo fabuloso a que a sua aventura os tinha levado Mas através do seu discurso ao rei de Melinde Vasco da Gama assu miu O estatuto de herói representativo da sua comunidade ao co locar a viagem para que tinha embarcado na seuência e corno a culminação da História de Portugal até então E o momento em que pode contar a prova crucial do seu primeiro encontro face a face com uma força sobrenatural a ameaça divina ou o segre do personificado em Adamastor Exatamente a meio do poema 0 encontro de Gama com Adamastor marca também geografi camente a passagem do Atlântico para o Índico ou do Ocidente para O Oriente ou seja o fim do mundo conhecido e a entrada no mundo desconhecido literal e metaforicamente O herói ia final mente entrar na região das forças indomadas a que atualmente poderíamos chamar de subconsciente e a que os antigos teriam chamado de infernal Com efeito esse é o momento equivalente ao da entrada de Eneias nos Infernos quando atravessa o rio da morte controla o monstruoso Cérbero e finalmente encontra a sombra do seu pai É significativo para a compreensão do valor iniciático que Camões atribui ao amor que nOs Lusíadas o equivalente e não menos monstruoso guarda da passagem para o outro mundo seja apresentado como uma personificação exemplar do baixo amor Pela submissão da sua vontade ao corpo e à terra irredim ida em que por isso foi degradado Adamastor transformou o seu inade quado amor pela Nereida por quem se apaixonara em brutalidade e em violência Recusouse a aceitála como a um sujeito livre e diferente procurou possuíla à força 11 A ÉPICA Como fosse impossibil alcançála pela grandeza feia de meu gesto determinei por armas de tomála Mas ela cum fermoso riso honesto respondeu ai será o amor bastante de infa que sustente o dum Gigante V 53 Aprisionado na rocha em que se transformou ao procurar violá la Adamastor ficou sendo eternamente o carcereiro da sua própria prisão o guarda dos segredos escondidos que em si enclausurou São precisamente as forças obscuras simbolicamente en clausuradas em Adamastor que o herói tem de enfrentar para as conseguir regenerar Mas o poder dessas força manifestase no serem obscuras e em se manterem desconhecidas Uma vez co nhecidas ou tornadas conscientes logo ficam neutralizadas ou podem mesmo passar a servir quem dantes ameaçavam o en tanto se o não forem levarão apenas ao desencadear de desastres anteriormente adormecidos o que Camões representa nas trá gicas profecias formuladas pelo Gigante e efetivamente se trata de uma confrontação entre a vonta de de conhecer e a negação do conhecimento é claramente indicado nas palavras ameaçadoras que Adamastor começa por dirigir a Gama Pois vens ver os segredos escondidos da natureza e do húmido elemento a nenhum grande humano concedidos de nobre ou de imortal merecimento ouve os danos de mi que apercebidos estão a teu sobejo atrevimento V42 CA M LS l A VIAGEM I N JC JATICA Mas os dados que então profetiza como uma punição do sobejo atrevimento dos navegantes representam também uma transferência metonímica das consequências do baixo amor em si representadas E como os fatos por ele narrados como futuros já ti nham na realidade acontecido a metáfora implícita nessa transfe rência tornase numa demonstração explícita dos efeitos do baixo amor em que Portugal veio a cair o que aliás vem ecoar o equiva lente aviso registado na fala do Velho do Restelo à partida das naus Gama só consegue dominar as forças negativas que ameaça vam transformar a sua viagem para o conhecimento numa viagem inversa para a destruição sobrepondo ao medo o desejo de conhe cimento fazendo a pergunta mágica tradicional quem és tu que obrigou Adamastor a autodestruirse nomeandose Mais ia por diante o monstro horrendo dizendo nossos Fados quando alçado lhe disse eu em és tu e esse estupendo corpo certo me tem maravilhado A boca e os olhos negros retorcendo e dando um e pantoso e grande brado me respondeu com voz pesada e amara como quem da pergunta lhe pesara Eu sou aquele oculto e grande Cabo a quem chamais vós outros Tormentório V 49 50 Forçado a ser ele a responder a quem de início confrontara o seu poder negativo virouse contra si próprio como já aconte cera quando quis tomar por arma o amor e vaise gradualmente neutralizando ao contar obsessivamente a história das suas ori gens divinas até à sua degradação presente Assim de novo trans formado de portento sobrenatural em acidente geográfico natural 11 A EPICA 65 um mero cabo rochoso ainda que ambiguamente tormentó rio Adamastor cum medonho choro súbito de ante os olhos se apartou deixando o caminho livre para as naus passarem Neste momento crucial o herói assumiu plenamente a sua missão atravessou o limiar entrou em parte donde ainda não sabe tornarse O caminho para o O riente ficou aberto mas para lá chegar faltava todo o resto do mar símbolo arquetipal da vida mas também da sua mutabilidade Por isso Baco vendo o seu po der posto em perigo por descendentes que renega vai procurar a aliança de Netuno a quem faz sentir que tal como Prometeu os portugueses tinham quebrado os estatutos divinos que represen tavam a humanidade em busca do poder e da sabedoria dos deuses Vistes que com grandíssima ousadia foram já cometer o Céu supremo vistes e ainda vemos cada dia soberbas e insolências tais que temo que do Mar e do Céu em poucos anos venham Deuses a ser e nós humanos Vedes agora a fraca geração que dum vassalo meu o nome toma com soberbo e altivo coração a vós e a mi e o mundo todo doma Vedes o vosso reino devassando os vossos estatutos vão quebrando VI 29 30 Mas ao perigo comum que a quebra de quaisquer estatutos divinos representa sobrepõese para Baco aquele em que os por tugueses tinham posto o seu próprio poder pessoal 66 CA M ÕES E A VIAGEM IN IC IÁTICA E não consinto Deuses que cuideis que por amor de vós do Céu deci nem da mágoa da injúria que sofreis mas da que se me faz também a mi que aquelas grandes honras que sabeis que no mundo ganhei quando venci as terras 1 ndianas do Oriente todas vejo abatidas desta gente VI 32 Netuno convoca então os Ventos e desencadeia a sua fúria para que não haja no mar mais navegantes VI 35 Mas Gama de novo implora proteção à Divina Guarda e é de novo Vénus quem o ouve e quem salva os portugueses A maneira como o faz confirma e desenvolve o significado do subdiscurso simbólico im plícito na narrativa do poema Os Ventos símbolos arquetipais do fálico poder masculino tinham sido desencadeados para ades truição e estavam ao serviço do baixo amor inspirado pelo res sentimento vingativo de Baco A sua intervenção veio aliás na sequência e era compensatória do malogro da equivalente inter venção destrutiva de Adamastor Vénus limitouse a contrapor à sua estéril violência bélica as presenças femininas capazes de a transformarem na regeneradora virilidade do amor l i A ÉP ICA Abrandar determina por amores dos ventos a nojosa companhia mostrandolhe as amadas infas belas que mais fermosas vinham que as estrelas YJ 87 Diz uma delas numa variação ou eco parcial do aviso que ti nha sido dado a Adamastor ão creias fero Bóreas que te creio que me tiveste nunca amor constante que brandura é de amor mais certo arreio e não convém furor a firme amante Se já não pões a tanta insânia freio não esperes de mi daqui cm diante que possa mais amarte mas temerte que amor contigo em medo se converte Mas o que efetivamente acontece é o inverso do ocorrido na histó ria exemplar de Adamastor transformado o medo em amor os portugueses poderão agora chegar ao fim da sua viagem Desta maneira as outras amansavam subitamente os outros amadores e logo à linda Vénus se entregavam amansadas as iras e os furores Ela lhe prometeu vendo que amavam sempiterno favor cm seus amores nas belas mãos tomandolhe homenagem de lhe serem leais esta viagem O significado final da regeneradora transmutação da for ça destrutiva do ódio na força criativa do amor que é O que os episódios compleme ntares de Adamastor e dos Ventos represen tam vai ter a sua expressão definitiva no exemplo supremo que Camões apresenta aos seus contemporâneos nOs Lusíadas que é 0 68 CAMÕES E A VIAG EM IN IC JT ICJ episódio da Ilha dos A mores A chegada à Índia que e ra o pro pósito ostensivo da viagem para que os portugueses tinham e m barcado não era o fim nem o propósito da viagem para o conhe cimento através dela significada nOs Lusíadas Essa que é a viagem simbólica através do amor que Vénus sobrepôs à rota geográfica dos navegantes estava ainda por completar quando as naus co meçaram a regressar com rumo à pátria Cumprida a sua missão temporal os navegantes têm agora direito à Apoteose represen tada no encontro com a Magna Mater que lhes dará a compreen são do fim espiritual da sua aventura Essa compreensão ou gno se é a imortalidade que em nome da comunidade que representa o herói tem de assumir para a poder transm itir no seu regresso Neste momento do poema a simbologia mítica que Camões in corporou na narrativa da viage m de Gama tornase no símbolo puro em que o significado dessa viagem é cristalizado Os nave gantes tinham sentido os efeitos dos poderes sobrenaturais fa voráveis ou contrários sem conseguirem entender a sua nature za Só Adamastor se lhes tornou visível assinalando a entrada no mundo desconhecido Mas se o puderam ver foi porque ele pró prio já se havia degradado em matéria Os deuses representavam o mundo espiritual ou no seu equivalente individual moderno o mundo do subconsciente cuja compreensão é inacessível ao co mum dos mortais Não já agora Passaram a merecer a tangibili dade do espírito e o conhecimento das suas próprias forças inte riores Assim o que Vénus lhes oferece para refocilarem a lassa humanidade é o conhecimento do amor ou seja do poder que os guiou e que sempre os poderá proteger enquanto o não degrada rem em baixo amor8 Materializa no horizonte uma ilha flutuante 8 C f SE op cit p 67 No plano m1tico a criação para os nautas da Ilha dos 111ores corresponde a u111 1110 111ento decisivo na H isnria a gue rra que o A 111or ia 111over ao desconcerto do 111undo e cujos prenüncios se 111anifesta111 nos tiros desordenados dos C upidos mal dextras A Ilha é assi111 o restabe lecimento da l larmo nia de 111odo que a consagração e a transfiguração 111itica 11 1 llI C A que eles primeiro não veem e que vai seguindo a sua rota até que quando finalmente reparam nela fica de repente parada como se sempre ali tivesse estado É uma ilha mágica a representação ter restre do paraíso onde cada um consegue encontrar a forma ideal do seu amor e onde todos adquirem o conhecimento superior que vem da transformação do apetite em razão Nesse locus amoe nus da imaginação todos os opostos se tornam complementa res porque todas as impossibilidades são anuladas o cisne canta em vida e não para morrer Actéon aceita sem horror os cornos da sua animalidade não precisando por isso de fugir de cães que o teriam devorado e de entre os navegantes Lionardo consegue fi nalmente dar expressão sexual ao lirismo de impotente frustração em que passara toda a vida quando todo se desfaz em puro amor sobre a ninfa que Vénus para ele tinha escolhido É o mesmo homem formado só de carne e osso como Ca mões se descrevera na sua poesia lírica que pode concluir com os seguintes versos a sequência em que mostra como cada um dos navegantes encontrou a sua ninfa O que mais passam na manhã e na sesta que Vénus com prazeres inflamava milhor é esprimentálo que julgálo mas julgueo quem não pode esprimentálo IX 83 E é também o mesmo poeta que continuara a afirmar que para si bastava amor somente quando o próprio amor contra ele se tinha conjurado e descrevera como celeste a causa que faz num coração que venha o apetite a ser razão que pode agora con 70 dos Heróis que na Ilha e pela Ilha se operam são também e sobretudo a recolo cação do Amor do verdadeiro Amor como centro daHarmonia do Mundo CA M Õ ES E A V I AGEM IN I C IÁTI CA sagrar o erotismo como veículo para o amor sublim coneito to talmente alheio quer ao neoplatonismo quer ao cnsttamsmo su eo o discurso que iulgara ter errado como a pro contemporan pria vida quando confrontado pela desrazão do mund tem aqui a sua enfática reafirmação a desrazão era do mundo nao era sua 0 mundo da razão ideal que é o da Ilha dos Amores a nm fa ou mais propriamente deusa que Vénus escolheu para Gama e que em doces jogos e em prazer contino o prepara para a imortalidade simbolizada na visão transcendente dos segredos do universo é Tétis filha de Urano e de Gaia esposa de Oceano mãe de todos os rios do mundo a mais nobre de todas as deusas do mar e a personificação mais antiga da sua fecundiade em suma a Magna Mater9 Ferida por Cupido com especial mtens1 dade porque mais que nenhuma lhe era esquiva 1 X 48 apa rece ao Gama e despois de lhe ter dito quem era cum alto exórdio de alta graça ornado dandolhe a entender que ali viera por alta iníluição do imobil Fado pera lhe descobrir da unida Esfera da terra imensa e mar não navegado os segredos por alta profecia o que esta sua nação só merecia tomandoo pela mão o leva e guia pera o cume dum monte alto e divino 9 A identificação de Vénus com a Magna Mater tem uma longa e bem documn tada tradição O próprio Camões a faz obliquamente na amargura acusatona do soneto Cá nesta Babilónia quando escreve Cá onde o puro amor não tem valia que a Mãe que manda mais tudo profana A identificação de Tétis qu nOs Lusíadas é uma personificação funcional de Vénus com a Magna Mater esta implícita no comentário de Jorge de Sena sobre as origens míticas dessa deusa da maior importância na Teogonia helénica Cf SENA op cit nº 6 P 73 li A EP ICA 71 no qual hüa rica fábrica se erguia de cristal toda e de ouro puro e fino A maior parte aqui passam do dia em doces jogos e em prazer contino Ela nos paços logra seus amores as outras pelas sombras entre as flores 1 X 86 87 Consequência do merecimento da nação portuguesa o en contro sexual de T étis e de Gama como Jorge de Sena já indicou tem o valor simbólico da fusão do Ocidente com o Oriente a mo rada mítica de T étis era o extremo Ocidente e aparecendo ela no Oriente para exaltar os portugueses cujo reino olha os extremos ocidentais dos mares isso fecha estes numa inteireza universal de mare nostrumº Mas há outro elemento mitológico que me parece importante referir quando Baco teve de fugir da Trácia após o seu regresso do O riente onde do potente deus primitivo que tinha sido se transformara num imberbe e efeminado efebo obteve refúgio junto a T étis que o abrigou no fundo do oceano Essa an tiga lealdade talvez ajude a explicar a prontidão com que no can to VI dOs Lusíadas Camões a põe a apoiar a causa de Baco exigin do obediência imediata às ordens de Netuno para que os ventos destruíssem os portugueses V I 36 A sua amorosa submissão ao Gama representa assim também o triunfo total dos portugueses e através deles da Humanidade sobre todas as fo rças que se lhe tinham oposto e que o fal so poder paterno de Baco simboliza va Aliás Camões tem o cuidado de indicar o significado metafó rico de tudo o que se passa na Ilha dos Amores em versos que ao mesmo tempo servem para acentuar o sentido iniciático do poema nela ilustrado Afirmando que as Ninfas T étis a própria Ilha an gélica pintada e os seus deleites não eram senão as honras que 10 Ibid 72 CAM ÕES E A V IAG EM I N I CIAT ICA a vida fazem sublimada e os prémios devidos aos barões que esforço e arte divinos os fizeram sendo humanos escolhe este momento exemplar para trazer de novo para o poema o seu refe rente e os seus destinatários contemporâneos ao prossegui r Por isso ó vós que as famas estimais se quiserdes no mundo ser tamanhos despertai já do sono do ócio ignavo que o ânimo de livre faz escravo E Camões lançase então num dos inventários acusatórios dos equivalentes sociais do baixo amor que disseminou pelo po ema a cobiça a ambição pessoal o torpe e escuro vício da ti rania infame e urgente as honras vãs e os bens materiais que verdadeiro valor não dão à gente e que melhor é merecêlos sem os ter que possuílos sem os merecer aos quais contrapõe na paz as leis iguais constantes que aos grandes não dê o dos pe quenos 0 valor do serviço à comunidade e as virtudes cívicas ne cessárias para as justas honras que ilustram tanto as vidas e que exorta os seus contemporâneos a alcançar concluindo A ÉPICA E fareis claro o Rei que tanto amais agora cos conselhos bem cuidados agora coas espadas que imortais vos farão como os vossos já passados Impossibilidades não façais que quem quis sempre pôde e numerados sereis entre os Heróis esclarecidos e nesta Ilha de Vénus recebidos IX 95 73 Ao acentuar a exemplaridade presente do triunfo dos heróis passados Camões trouxe também para o seu referente contem porâneo a alta profecia que T étis vai iniciar como culminação do movimento ascensional pela escala do amor representado na viagem Daí o extremo dramatismo da nova interrupção do dis curso épico em que Camões reintegra nele a sua identidade pes soal para reiterar o serviço que está a prestar à pátria na escrita do próprio poema Aqui minha Calíope te invoco neste trabalho extremo por que em pago me tornes do que escrevo e em vão pretendo o gosto de escrever que vou perdendo Vão os anos decendo e já do Estio há pouco que passar até o Outono a Fortuna me faz o engenho frio do qual já não me jacto nem me abono os desgostos me vão levando ao rio do negro esquecimento e eterno sono Mas tu me dá que cumpra ó grão Rainha das Musas co que quero à nação minha X 8 9 Este portentoso anticlímax em que o poeta ao mesmo tem po contrasta a sua mortalidade pessoal com a imortalidade que de seja dar à pátria através da lição contida no seu poema e subli minalmente também o serviço que assim lhe está a prestar com o sono ignavo dos seus contemporâneos traz um insidioso ele mento de dúvida sobre a viabilidade do seu propósito regenera dor As profecias de T étis que são efetivamente a narrativa dos feitos dos portugueses no O riente até ao momento da escrita do 74 CA MÕES E A V IAGE M IN IC IÁT ICA poema entre os quais é importante recordar Camões também se inclui numa referência explícita ao próprio poema são assim poderosamente reforçadas como se de um último aviso se tra tasse Da mesma maneira a consagração da imortalidade coletiva simbolizada na apoteose dos heróis da viagem passada é também a reiteração de um projeto equivalente para o futuro Tétis deulhes 0 saber só reservado aos divinos ao permitir que eles vissem cos olhos corporais jo que não pode a vãciência dos errados e mí seros mortais E tem já para dom Sebastião o dote aparelhado A visão da máquina do Mundo nOs Lusíadas é inspirada nO sonho de Cípíão a obra de Cícero que veio a contribuir decisi vamente para a defin ição da carítas patríae como o ideal supremo do amor no contexto do Humanismo Cívico renascentista Ao partilhar dessa valorização do amor da pátria Camões trazlhe no entanto uma dimensão humana que aponta para uma concep ção extremamente moderna da relação entre o indivíduo e aso ciedade Cícero descreve os segredos do universo em termos que Camões praticamente reproduziu nOs Lusíadas e também afirma que os propósitos mais altos são aqueles que se relacionam com o bem do Estado e com o seu serviço Mas ao contrário de Ca mões considera para isso indispensável a rejeição do corpo acen tuando que o homem superiormente motivado se deve dedicar à contemplação das coisas do além e ganhar tanta distância do corpo quanto possível porque as almas dos homens ocupados nos prazeres do corpo violam as leis dos homens e dos deuses e nunca poderão ascender ao reino espiritual das estrelas celestiais sem terem passado Eons em tormento Camões que inequivo camente também condena o baixo amor que os fortes enfraque ce vê no entanto uma essencial complementariedade entre o amor físico e o amor espiritual numa nova articulação porven tura transposta e modificada da dialética plotiniana que clara mente sugere que o amor individual com o erotismo que neces sariamente inclui pode levar ao baixo amor ou ao amor sublime conforme a direção espiritual que o orientar A carítas patríae que é li A EP ICA 75 o amor sublime como entendido na tradição ciceronista do Hu manismo Cívico seria assim para Camões a mais alta expres são da totalidade humana individual manifestada no serviço da pátria Por isso embora a sua consagração na Ilha de Vénus seja simbólica de uma imortalidade coletiva os navegantes regressam à pátria levando consigo a companhia desejada das Ninfas que hãode ter eternamente por mais tempo que o Sol o Mun do aquente X 143 Recordese no entanto que poucos momentos antes de re ferir o regresso dos navegantes à pátria na companhia desejada das Ninfas Camões tinha deliberadamente desmontado o me canismo fictício da sua consagração Após ter colocado Deus fora do humano entendimento o que como no soneto a Cristo e nos próprios Lusíadas onde é sempre Vénus quem responde às pre ces de Gama à Divina Guarda pode sugerir que a divindade una e transcendente é essencialmente alheia aos destinos humanos Tétis afirmara a fa lsidade de si própria e de todos os deuses pa gãos que haviam presidido à fabulação do poema numa estrofe geralmente entendida como a necessária vénia de Camões à cen sura inquisitorial Aqui só verdadeiros glo riosos divos estão porque eu Saturno e ano Júpiter Juno fomos fabulosos fingidos de mortal e cego engano Só pera fazer versos deleitosos servimos e se mais o trato humano nos pode dar é só que o nome nosso nestas estrelas pôs o engenho vosso Mas relendo estes versos da perspectiva do sentido iniciáti co dOs Lusíadas tornase evidente que na ostensiva desmitificação CIM Õ ES E A VIAGEM INI C I ÁTIC A do poema por eles significada Camões está mais uma vez a afirmar que foi O próprio poema que conduziu ao conhecimento das verda des ficticiamente nele representadas Desta maneira como autor dos versos deleitosos capazes de pôr o engenho humano nestas estrelas assumiu plenamente a função iniciática do verdadeiro herói da aventura para o conhecimento representada nOs Lusíadas E pouco importa se esses versos foram parcialmente força dos ou não pelas circunstâncias políticas e religiosas do seu tem po A verdade é que Camões era um cristão embora também um humanista na vanguarda da sua época e como tal capaz de pôr em questão as ficções da fé à luz das experiências que lhe ensina ram como diz no soneto a Cristo que coisas há i que passam sem ser cridas e cousas cridas há sem ser passadas Mas sem a acei tação do cristianismo como a religião superior um aspecto essen cial dOs Lusíadas que é toda a confrontação dos navegantes com as forças do baixo amor expressamente identificadas com os in fiéis não faria qualquer sentido A modernidade do pensamen to religioso de Camões talvez resida no entanto na dialética em que articula um C risto essencialmente transmundano e alheio aos destinos do homem com a consequente necessidade da diviniza ção do próprio homem através do conhecimento da sua contra ditória humanidade Como Camões disse pela boca de T étis o sumo Deus que por segundas causas obra no Mundo X 85 Essas segundas causas foram representadas nOs Lusía das pelos mesmos deuses pagãos que depois afirmou serem o pro duto do fingimento humano Eles são portanto uma metáfora da própria humanidade a representação poética das suas forças e das suas potencialidades interiores Ao reivindicar assim para a po esia a função de veículo estruturante da evolução do homem para o conhecimento Camões está não só a sublinhar o valor iniciático do que escreveu como também a necessitar a conclusão de que o sentido da vida é aquele que os homens lhe imprimirem Mas tendo precedido a narrativa das profecias de T étis e da visão da máquina do Mundo com um amargo comentário pessoal 11 A ÉPI CA 77 sobre a possível inutilidade do seu canto em face do sono ignavo ds seus contemporâneos mal anuncia o regresso dos navegantes à patna de novo brutalmente interrompe a narrativa e retoma a me ditação anterior passandoa assim para o primeiro plano da obra No mais Musa no mais que a Lira tenho destemperada e a voz enrouquecida e não do canto mas de ver que venho cantar a gente surda e endurecida O favor com que mais se acende o engenho não no dá a pátria não que está metida no gosto da cobiça e na rudeza dhua austera apagada e vil tristeza X 145 aiquer dúvida que ainda pudesse subsistir sobre qual 0 dest111atano e qual o referente do poema desaparece por comple to neste momento de provocatório dramatismo Camões fala no contexto do presente para os seus contemporâneos fala da gente surda e endurecida e para ela A pátria que celebrou não coinci d com a que estava metida no gosto da cobiça e da rudeza de hua austera apagada e vil tristeza aquela era O exemplo heroi co com que tentou acordar esta a representação do amor su bli me no tempo do baixo amor ou metáfora espiritual transposta para um contexto cívico a memória de Sião nos erros de Babel Com o regresso dos navegantes o poema regressou também ao seu momento inicial em está a confrontar a comunidade não é Gam é Camões A aventura não foi a viagem é O poema Mas a cou111dade não reconhece o seu herói nem entende a mensagem e 11ortahdade que ele lhe trouxe O ciclo regenerador da viagem 1111c1anca freou perigosamente ameaçado Os avisos do Velho do Restlo terão sido provados como justas conclusões da experiência amoes confronta de novo a desrazão do mundo da perspectiva da CA MÕ ES E A VIAGElI I N IC I ATI C A razão que personifica Desta maneira as suas queixas sobre a falta de favor com que mais se acende o engenho só muito superficialmen te representam o pedido pessoal de proteção e de benefícios que ge ralmente têm sido considerados Representam sobretudo uma al tiva reiteração da necessidade para a comunidade de se reconhecer nele assumindo como sua a mensagem que lhe trouxe e justifican do assim o continuado exercício do seu canto agora interrompido Aliás dada a maneira brutal como Camões se dirige à gente de quem qualquer benefício pessoal poderia depender a mesma que acusa de estar surda endurecida e em apagada e viJ tristeza só é de surpreender que tenha recebido a sua exígua tença que porventura ficou a dever mais aos seus serviços nas armas do que nas letras Depois da súbita violência em que recusa continuar a can tar para gente surda e endurecida Camões faz ainda o seguinte comentário E nãq sei por que influxo do Destino não rem um ledo o rgulho e geral gosto que os ânimos levanta de contino a ter pera trabalhos ledo o rosto Por isso vós ó Rei que po r divino conselho estais no régio sólio posto olhai que sois e vede as outras gentes senhor só de vassalos excelentes Nesta elíptica sugestão de que o rei só deveria con iderar como seus vassalos os que merecem o atributo de excelen tes Camões aponta ao mesmo tempo para a separação que havia e n tre o poder real e esses vassalos excelentes que como did nas es trofes seguintes alegremente enfrentam por todo o 111u11do os maiores perigos X 147 e que para servir o re i esr10 a tudo aparelhados X 148 não precisa ndo de maior estímulo do que li A EP IC A 79 serem por ele favorecidos com a sua presença e leda humanida de Identificada assim a causa do influxo de Destino que impe dia o ledo orgulho e geral gosto que os ânimos levantasse como a inativa recusa do rei à leda humanidade tão eloquentemente valorizada nOs Lusíadas Camões está ao mesmo tempo a pôr de par consigo esses vassalos para quem também pede o favor do rei Favoreceios logo e alegraios com a presença e leda humanidade de rigorosas leis desalivaios que assi se abre o caminho à santidade Os mais esprimenrados levantaios se com a esperiência tem bondade pera vosso conselho pois que sabem o como o quando e onde as cousas cabem X 149 Na sua poesia lírica Camões tinha afirmado o valor da ex periência e a nobreza da alegre aceitação da sua própria humani dade ideias que estruturadamente desenvolveu nOs Lusíadas nos termos exemplares com que veio confrontar dom Sebastião o rei vrginal mal aconselhado e desatento à governação do reino cujas redeas ainda não tomara como disse Camões logo no início do poema e como sugeriu numa passagem posterior rodeado de tão maus conselheiros que como Actéon pelos seus cães estava ame açado de por eles ser devorado IX 26 11 Significativamente esta sugestão é feita da perspectiva de Vénus por Cupido que deci 11 Cf RAMA LHO Américo da Costa O mito de Actéon em Camões Coimbra fa n tldade de Letras da Universidade de Coimbra Instituto de Estudos Clás sicos 1968 p 68 separara de Humanítas vols X I XXX que corrobora a interpretação desta passagem como uma crítica a dom Sebastião primeiro sugerida por Faria e Sousa 80 C AMÕ ES E A V IAGEM IN IC I ÁTI CA dido a combater os erros grandes dos que amam cousas que nos foram dadas não pera ser amadas mas usadas IX 25 censu ra Actéon por fugir da gente e bela forma humana para seguir um feio animal fero TX 26 Na verdade dom Sebastião é ca racterizado como o exato oposto de tudo quanto um rei deveria ser dentro da concepção humanística da carítas patríae definida no poema sem que ao menos a sua castidade lhe servisse da pers pectiva de Camões como uma virtude redentora Nem a máscara dramática ou persona que Camões o poetaguerreiro que se havia comparado a Júlio César adota perante ele quando procura despertálo e aos seus contemporâ neos da apagada e vil tristeza em que estavam adormecidos é tão humilde como a uma primeira leitura poderia parecer Mas eu que faJo humilde baxo e rudo de vós não conhecido nem sonhado Da boca dos pequenos sei contudo que o louvor sai às vezes acabado Nem me falta na vida honesto estudo com longa esperiencia misturado nem engenho que aqui vereis presente cousas que juntas se acham raramente X 154 Dentro do código humanista a caracterização desta perso na humilde baxo rudo desconhecido mas combi nando a experiência e o engenho significa tudo menos uma postura de modesta submissão É a figura de Sileno que Camões está a en carnar perante o rei a estranha divindade rústica da Antiguidade filho da Terra e de Mercúrio o deus da eloquência que curiosa mente e talvez significativamente no contexto mitológico do poema foi o preceptor de Baco e o companheiro de muitas das suas aventuras A sua aparência era a de um velho rude disfor l i A ÉP IC A 8 1 me grotesco frequentemente embriagado muitas vezes na com panhia de ninfas e de sátiros mas sempre com imensa sensatez e sabedoria Sabia tudo do passado e do futuro e era capaz de pro fetizar o destino de quem o conseguisse amarrar durante o pesa do sono em que caía quando embriagado Platão tinhao em tão alta estima que comparou o seu mestre Sócrates com ele e além de Sócrates Sileno teve tais personificações literárias como Dió genes Epicteto e supremo exemplo da divindade disfarçada num baixo corpo humano o próprio Jesus Cristo Como Sileno de Akibíades nome que veio a ter em Ate nas porventura para dissociar a sua imagem da má companhia de Baco a sabedoria desta personagem que se veio a tornar tão cara ao Humanismo Cívico foi tema de um famoso adágio de Erasmo publicado em 1515 No seu estudo extremamente importante so bre o tópos das armas e das letras Luís de Sousa Rebelo demons trou que este adágio foi acessível aos humanistas portugueses e chamou pela primeira vez a atenção para o fato de que D iogo do Couto inspirou nele a caracterização do seu Soldado Prátíco o pro ve soldado que se apresenta à corte em figura tão rústica mal ordenada e que parece avorrecerá a quem o vir mas em cujas pa lavras debaixo daquela rustiqueza há muita doutrina política moral muitos exemplos muitas verdades e muitas cousas que se se remediarem farão uma república como esta de que se trata tão próspera e tão feiice como foi aquela de Atenas 12 Tudo in dica como aqui fica registado que foi Camões assumindose nela com evidente ironia autobiográfica quem antes de D iogo do Couto trouxe para o contexto do H umanismo Cívico português a figura de Sileno Seja como fo r o mal que procuravam remediar era semelhante e para a compreensão do significado iniciático 12 Cf REBELO op cit p 443 No contexto deste estudo que excede em muito o seu tema ostensivo de armas e letras Luís de Sousa Rebelo coloca numa nova e muito iluminadora perspectiva a especificidade do Humanismo Cívi co português 82 C AMÕ ES E A V IAG EM I N IC I ATI CA dOs Lusíadas corolário de toda a obra de Camões e representaçifo exemplar da sua vida basta registar a coincidência Tendo reafirmado o valor cívico da sua função bárdica de personificação individual do destino coletivo da comunidade de pois de uma final exemplificação em si próprio da complemen taridade das armas e das letras inerente a toda a concepção do poema Camões vai terminar Os Lusíadas como o tinha começado com uma exortação ao rei Pera servivos braço às armas feito pera cantarvos mente às Musas dada só me falece ser de vós aceito de quem virtude deve ser prezada Se me isto o Céu concede e o vosso peito dina empresa tomar de ser cantada como a pressaga mente vaticina olhando a vossa inclinação divina a minha já estimada e leda Musa fico que cm todo o mundo de vós cante de sorte que Alexandro em vós se veja sem à dita de Aquiles ter enveja X 155 I 56 O seu tom de homenagem é mais uma vez imperativo ha vendo uma clara relação de causa e efeito entre o rei o aceitar pre zando como é seu dever a virtude coletiva nele representada e a decisão a que o exorta de dina empresa tomar de ser cantada Dela iria depender a continuidade ameaçada do seu canto que é o mesmo que dizer no contexto do significado iniciático dOs Lusíadas como corolário de toda a obra de Camões a justificação filosófica do seu destino pessoal na renovada continuidade da pátria que cantou 11 ÉlJC I A Relação entre História e Mito em Os Lusíadas e a Função Simbólica dos Deuses Pagãos Introdução Luís de Camões em sua obra magistral Os Lusíadas constrói uma narrativa que transcende a mera crônica das expedições marítimas portuguesas entrelaçando de forma intrincada a história verídica com o rico tecido do mito Este trabalho não só celebra as realizações heroicas dos navegadores lusitanos mas também imerge profundamente no imaginário mítico fundindo o factual e o metafórico em um discurso poético singular Helder Macedo ao examinar esta interação argumenta que Camões manipula uma linguagem poética que possibilita a articulação contínua entre o verídico e o fantástico criando uma interseção onde os fatos são revestidos de metáforas e as metáforas adquirem uma literalidade inerente Macedo 2013 A Confluência de História e Mito Em Os Lusíadas a relação entre história e mito não é apenas uma justaposição de elementos distintos mas uma síntese que confere profundidade e complexidade à narrativa épica Camões ao proclamar a superioridade de sua epopeia por ser fundamentada na veracidade histórica simultaneamente incorpora o mítico e o fantástico transformando o épico em um campo onde o factual e o metafórico coexistem harmoniosamente Nas palavras de Helder Macedo Camões manifesta uma linguagem poética que permite uma articulação sem cesuras entre o factual e o metafórico com os fatos metaforizados e as metáforas literalizadas Macedo 2013 p 53 A crítica moderna como evidenciado por António José Saraiva também enfatiza esta dualidade observando que os deuses pagãos ao intervir nas ações dos homens conferem um significado exemplar ao épico em que os deuses nOs Lusíadas são tratados como entidades objetivas dentro da estrutura do poema Saraiva 1980 Desta forma a mitologia não é relegada a um papel meramente decorativo mas emerge como uma força ativa que molda e enriquece a compreensão dos eventos históricos narrados O Papel Simbólico dos Deuses Pagãos A inclusão dos deuses pagãos em Os Lusíadas transcende a função de adornar a narrativa com elementos fantásticos Esses deuses particularmente figuras como Baco e Vênus representam e simbolizam forças que influenciam diretamente o curso dos acontecimentos Baco que age para frustrar os navegadores portugueses personifica os desafios e adversidades que eles enfrentam enquanto Vênus atua como um símbolo de proteção e favor facilitando o sucesso das jornadas Esta dinâmica confere à narrativa uma profundidade simbólica onde os deuses oferecem uma perspectiva mítica que interage com a realidade histórica Silva 1998 p 112 A intervenção desses deuses permite a Camões explorar temas universais como a luta entre o bem e o mal a perseverança diante da adversidade e a recompensa pela virtude e coragem A história é assim metaforizada com os deuses pagãos representando as forças naturais e sobrenaturais que guiam e desafiam os heróis Segundo Luciana Stegagno Picchio a presença divina nos textos épicos de Camões simboliza as forças adversas e favoráveis que se encontram no caminho dos heróis refletindo a crença na intervenção divina nos destinos humanos Stegagno Picchio 2000 p 205 A Literalização das Metáforas A estratégia de Camões de literalizar metáforas proporciona uma camada adicional de significado à narrativa épica Ao transformar elementos metafóricos em componentes literais da história ele enriquece a interpretação dos eventos e confere um valor simbólico mais profundo aos feitos históricos A mitologia tornase um veículo para a expressão das virtudes e desafios enfrentados pelos navegadores conferindolhes uma dimensão quase transcendente Como observa Michel de Certeau a literalização das metáforas em Os Lusíadas não só enriquece a narrativa mas também expande o horizonte interpretativo da epopeia permitindo uma leitura multifacetada que abrange tanto o histórico quanto o simbólico Certeau 1988 p 98 A transposição dos feitos humanos para as maquinações divinas exemplifica como Camões utiliza a mitologia para elevar os eventos históricos a um plano metafórico onde cada ação e resultado ganha um significado exemplar e transcendente Assim Os Lusíadas não é apenas uma crônica das expedições portuguesas mas uma celebração das virtudes humanas através da lente do mito e da poesia Em suma a interação entre história e mito em Os Lusíadas é essencial para a estrutura e profundidade do épico camoniano Camões ao articular o verídico e o fantástico através de uma linguagem poética inovadora cria uma obra que transcende a mera narrativa histórica para se tornar uma reflexão complexa sobre o papel da mitologia na construção da identidade e do destino humano A presença e função dos deuses pagãos na epopeia não só enriquece a narrativa mas também serve para sublinhar a profunda interdependência entre o factual e o metafórico evidenciando a maestria de Camões em tecer uma narrativa que ressoa com significados tanto literais quanto simbólicos Este processo de metaforização literal confere à epopeia uma riqueza interpretativa que permanece relevante e fascinante na crítica literária contemporânea História e Mito A Complementaridade no Poema Camões ao iniciar Os Lusíadas propõe a superioridade de sua epopeia devido à sua base na veracidade histórica contrastando com a falsidade do mito representada pelas musas estranhas No entanto à medida que o poema avança o autor não apenas incorpora elementos míticos mas entrelaça o fantástico com o histórico criando uma narrativa rica e multifacetada Os deuses pagãos em Os Lusíadas desempenham um papel simbólico crucial na construção de sentido do épico Eles não são meramente figuras ornamentais ou causas segundas alegorizadas mas sim agentes ativos que intervêm no destino dos heróis conferindolhes significação exemplar António José Saraiva destaca que os deuses nOs Lusíadas são tratados como entidades objetivas dentro da estrutura do poema enquanto a divindade cristã permanece como uma crença subjetiva dos personagens A Função dos Deuses Pagãos Os deuses pagãos particularmente figuras como Baco e Vênus são apresentados não apenas como intervenientes diretos nas ações humanas mas também como representações simbólicas das forças que moldam e determinam o curso da história Por exemplo Baco que se opõe às expedições portuguesas personifica os desafios e as adversidades enfrentadas pelos navegadores Vênus por outro lado atua como uma protetora e facilitadora simbolizando o apoio e as bênçãos necessárias para o sucesso das jornadas A presença desses deuses confere à narrativa uma dimensão mítica que transcende a mera crônica histórica Eles proporcionam uma lente através da qual os eventos históricos ganham profundidade e complexidade simbólica refletindo a crença na intervenção divina e no destino preordenado A Metaforização da História Camões metaforiza a história utilizando os deuses para explorar temas como a justiça a coragem e o valor Essa transposição de ações humanas para as maquinações divinas permite uma interpretação que vai além do simples relato factual A mitologia se torna um meio para enriquecer a compreensão dos eventos históricos imbuindoos de uma significância moral e filosófica que ressoa tanto no contexto da epopeia quanto na percepção dos leitores A metáfora ganha uma literalidade própria quando os feitos dos heróis são narrados como façanhas abençoadas ou contrariadas pelos deuses Essa literalização das metáforas reforça a ideia de que a história na visão de Camões não é apenas uma sequência de eventos mas uma trama complexa onde o mito e o real se entrelaçam para criar uma narrativa épica que exalta a nação e os valores que ela representa Conclusão Portanto a relação entre história e mito em Os Lusíadas é essencial para a construção do épico camoniano Os deuses pagãos desempenham um papel fundamental não apenas como figuras decorativas mas como elementos simbólicos que conferem profundidade e significado aos eventos históricos narrados Essa integração do mítico e do histórico reflete a habilidade de Camões em criar uma epopeia que transcende o tempo celebrando tanto as realizações passadas quanto os valores eternos da nação portuguesa Referências bibliográficas CERTEAU Michel de A Invenção do Cotidiano Artes de Fazer Petrópolis Vozes 1988 MACEDO Helder Camões e a Viagem Iniciática Lisboa Edições Colibri 2013 SARAIVA António José Deus e os Deuses dOs Lusíadas Lisboa Gradiva 1980 SILVA Augusto dos A Dialética entre História e Mito em Camões Revista de Estudos Camonianos vol 3 1998 pp 105120 STEGAGNO PICCHIO Luciana Aventura e Engenho Estudos sobre Camões e a Épica Portuguesa Coimbra Almedina 2000