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ETA Hoffmann 17761822 O homem da areia Tradução de Cláudia Cavalcanti NATANAEL A LOTAR Sem dúvida estão todos preocupados por não lhes ter escrito durante tanto tempo Mamãe deve estar zangada e Clara pode estar pensando que aqui levo uma boa vida esquecendo por completo sua querida imagem angelical tão profundamente gravada em meu coração e em minha mente Mas não é assim todos os dias e a toda hora penso em vocês todos e em doces devaneios aparece a minha querida Clarinha sorrindome com seus olhos tão graciosos como de costume quando estava junto a vocês Ah mas como poderia escreverlhes com o estado de espírito tão dilacerado que vem me confundindo todos os pensamentos Algo de terrível aconteceu em minha vida Sombrios pressentimentos de um cruel e ameaçador destino estendemse sobre mim quais sombras de nuvens negras impenetráveis a qualquer benevolente raio de sol Agora devo dizerlhe o que me aconteceu Reconheço que é necessário fazelo mas só em pensar nisso escapame um riso de louco Ah meu caríssimo Lotar como farei para que de alguma forma você sinta que o que me sucedeu há alguns dias perturbou minha vida de maneira tão terrível Se ao menos você estivesse aqui poderia ver com seus próprios olhos mas tenho certeza certamente vai me considerar um supersticioso visionário Em suma o terrível acontecimento em questão de cuja fatal influência em vão esforçome por evitar consiste simplesmente em que há alguns dias exatamente no dia 30 de outubro ao meiodia um vendedor de barômetros entrou em meu quarto e me ofereceu seus instrumentos Não comprei nada e ameacei jogálo escada abaixo mas ele então saiu voluntariamente Você pode imaginar que somente circunstâncias bem particulares e marcantes de minha existência são capazes de explicar o significado desse incidente e que a pessoa desse funesto caixeiroviajante possa ter um efeito pernicioso sobre mim De fato todo sanguefrio me é necessário para com calma e paciência contarlhe detalhes de minha infância que permitirão a sua mente vivaz compreender tudo de maneira límpida e transparente Agora quando começo tenho a impressão de ouvir o seu riso e as palavras de Clara Tudo isso não passa de criancice Riam por favor riam muito de mim Peçolhes encarecidamente Mas Deus do céu Meus cabelos arrepiamse e é como se eu lhes implorasse loucamente desesperado para que riam de mim como Franz Moor fez a Daniel Vamos aos fatos A exceção da hora do almoço eu e meu irmão pouco víamos nosso pai durante o dia Ele talvez estivesse muito ocupado com os seus negócios Depois do jantar que segundo o velho costume era servido às sete horas íamos todos mamãe conosco ao gabinete de papai e nos sentávamos em tomo de uma mesa redonda Papai fumava seu tabaco e bebia um grande copo de cerveja Muitas vezes narravanos histórias maravilhosas e aquelas narrativas entusiasmavamno tanto que o seu cachimbo sempre se apagava Cabia a mim segurando um papel em chamas acendêlo novamente o que consistia no meu principal divertimento Freqüentemente também ele nos dava livros ilustrados sentavase mudo e inerte em sua poltrona e expelia espessas nuvens de fumaça de forma que todos nós ficávamos como que envoltos na névoa Em noites como essas mamãe ficava muito triste e mal soavam as nove horas falavanos E agora crianças para a cama para a cama O Homem da Areia está chegando já posso ouvir seus passos De fato todas as vezes eu ouvia passadas pesadas e lentas subindo a escada devia ser o Homem da Areia Certa vez aquele andar abafado causoume uma impressão particularmente aterradora Perguntei a mamãe enquanto ela nos levava Mamãe Quem é mesmo o malvado Homem da Areia que sempre nos separa de papai Como é ele Não existe nenhum Homem da Areia meu filho respondeu minha mãe Quando digo que o Homem da Areia está chegando isso quer dizer apenas que vocês estão com sono e não conseguem manter os olhos abertos como se alguém tivesse jogado areia neles A resposta de mamãe não me satisfez em meu espírito infantil desenvolveuse claramente a idéia de que mamãe só negava a existência do Homem da Areia para que não ficássemos amedrontados pois eu ouvia quando ele subia pela escada Curioso em saber mais sobre aquele Homem da Areia e sua relação com crianças como nós finalmente perguntei à velha criada que cuidava de minha irmã sobre que tipo de homem era aquele o Homem da Areia Natanaelzinho respondeu ela você então não sabe É um homem malvado que aparece para as crianças quando elas não querem ir dormir e jogalhes punhados de areia nos olhos de forma que estes saltam do rosto sangrando depois ele os mergulha num saco e carregaos para a Lua para alimentar os seus rebentos Eles ficam lá empoleirados em seu ninho e com o bico recurvado como o das corujas bicam os olhos das criancinhas travessas Aterrorizado a partir de então considerei o Homem da Areia sob um aspecto noturno À noite bastava ouvir o ruído de passos na escada para tremer de medo e horror Mamãe só conseguia arrancar de mim o grito entre lágrimas O Homem da Areia O Homem da Areia depois eu corria para o quarto e durante a noite toda atormentavame a temível imagem do Homem da Areia Eu já estava crescido o suficiente para compreender que aquela história contada pela amaseca sobre o Homem da Areia e o seu ninho com crianças na Lua realmente não podia estar lá muito correta todavia o Homem da Areia continuava sendo para mim um terrível fantasma e o terror me arrebatava quando o ouvia não apenas subir as escadas como também abrir e entrar violentamente no gabinete de meu pai As vezes passava muito tempo sem aparecer depois vinha muitas vezes consecutivas Isso durou anos e não pude me acostumar à sinistra assombração a figura aterrorizante do Homem da Areia não saía da minha cabeça Suas relações com meu pai passaram a ocupar cada vez mais a minha imaginação e um medo insuperável impediame de interrogálo sobre o assunto mas com os anos sedimentouse e germinou em mim a vontade de investigar o mistério de ver o fabuloso Homem da Areia Ele me conduzira para o caminho do maravilhoso do romanesco que com muita facilidade instalase na alma infantil Nada me agradava mais do que ouvir ou ler aterrorizantes histórias de duendes bruxas e anões Mas em primeiro lugar estava sempre o Homem da Areia que eu desenhava com giz ou carvão da forma mais estranha e abominável em mesas armários e paredes Quando fiz dez anos minha mãe mudoume do quarto de crianças para um pequeno aposento que dava para um corredor não muito distante do gabinete de papai Mal batiam as nove horas e ouvíamos o desconhecido entrar éramos obrigados a nos retirar rapidamente Em meu quartinho percebia quando ele entrava no gabinete de papai e logo em seguida tinha a impressão de que se espalhava pela casa um vapor suave e de raro odor Com minha curiosidade cada vez mais ardia o desejo de com coragem e determinação travar conhecimento com o Homem da Areia Muitas vezes quando mamãe já havia passado eu saía rapidamente do quartinho para o corredor mas nada podia escutar pois o Homem da Areia sempre havia ultrapassado a porta quando eu chegava ao local de onde ele poderia ser visto Levado por um irresistível impulso decidi esconderme no gabinete de papai e esperar o Homem da Areia Certa noite pelo silêncio de papai pela tristeza de mamãe percebi ver que o Homem da Areia viria Dei como pretexto um grande cansaço deixei a sala antes das nove e me escondi bem junto à porta do gabinete num cantinho A porta da casa rangeu e passos lentos pesados e ruidosos atravessaram o corredor em direção à escada Mamãe passou por mim apressadamente com meus irmãos Suavemente bem suavemente abri a porta do aposento de meu pai Como de costume ele estava sentado com as costas voltadas para a porta calado e imóvel não percebeu minha presença e rapidamente entrei e me escondi atrás da cortina que cobria um armário aberto ao lado da porta onde estavam penduradas roupas de meu pai Os passos aproximaramse mais e mais Do lado de fora ouviamse estranhas tosses pigarros e um enigmático murmúrio Meu coração pulsava forte de medo e ansiedade Perto bem perto da porta um passo mais nítido um golpe violento no trinco e a porta se abre com violência Forçandome a tomar coragem ponho cuidadosamente a cabeça para fora O Homem da Areia está no meio do gabinete e diante de meu pai o brilho claro das velas ilumina o seu rosto O Homem da Areia o terrível Homem da Areia é o velho advogado Coppelius que às vezes almoça em nossa casa Porém a mais aterrorizante figura não me teria provocado tanto horror quanto aquele Coppelius Imagine um homem grande de ombros largos com uma cabeça disforme e grande rosto amarelecido sobrancelhas fartas e grisalhas sob as quais faiscava um par de olhos de gato esverdeados e penetrantes e um nariz gigantesco sobre o lábio superior A bocarra retorciase com freqüência num riso malicioso tomando visíveis manchas vermelhas nas bochechas Um chiado estranho atravessava seus dentes cerrados Coppelius sempre aparecia num sobretudo cinzento de corte antigo com o colete e a calça semelhantes mas de meias pretas e sapatos com pequenas fivelas enfeitadas com pedraria A pequena peruca mal lhe cobria o cocuruto dois cachos postiços estavam colados acima das grandes e vermelhas orelhas e um grande coque afastavase da nuca de forma que se via a fivela prateada que fechava o colarinho pregueado A figura no conjunto era medonha e abjeta mas para nós crianças o que nos chocava mais eram suas grandes mãos ossudas e peludas tanto que evitávamos pegar no que tocavam Ele notara essa repugnância e então se divertia em bolinar com as mãos sob esse ou aquele pretexto um pedaço de bolo ou uma fruta que a boa mamãe deixara furtivamente em nosso prato Nós com lágrimas nos olhos não conseguíamos mais desfrutar por nojo e aversão as gulodices antes destinadas ao nosso prazer A mesma coisa ele fazia em dias de festa quando papai nos servia um pequeno cálice de vinho doce Rapidamente ele passava a mão em sua borda ou levava o cálice aos lábios azulados rindo diabolicamente quando percebia que nos era permitido manifestar nossa irritação baixinho aos soluços Tinha por hábito nos chamar de pequenas bestas Não podíamos abrir a boca em sua presença e amaldiçoávamos aquele homem feio e hostil que conseguia estragar propositadamente a menor de nossas alegrias Mamãe como nós parecia odiar o repugnante Coppelius pois quando ele aparecia sua jovialidade seu jeito de ser alegre e despreocupado transformavase numa gravidade triste e sombria Papai comportava se como se fosse ele um ser superior com cujos maus costumes deviase ter paciência e conservar bom humor Bastava uma sutil sugestão sua e preparavamse seus pratos prediletos que eram acompanhados de vinhos raros abertos em sua homenagem Quando vi o tal Coppelius a verdade se me revelou terrível e ameaçadora ninguém senão ele poderia ser o Homem da Areia Mas o Homem da Areia não era mais para mim aquele espantalho das histórias da carochinha que vai arrancar os olhos das criancinhas para servir de alimento a sua ninhada de corujas na Lua Não Era um monstro fantasmagórico que carregava consigo aonde fosse aflição miséria e ruína eternas Eu estava enfeitiçado Frente ao perigo de ser descoberto e como eu pensava duramente castigado continuei ali ouvindo tudo com a cabeça para fora da cortina Meu pai recebeu Coppelius cerimoniosamente Ao trabalho exclamou este com uma voz rouca e rascante desembaraçandose do sobretudo Calma e sombriamente papai tirou seu roupão e ambos vestiram longas túnicas negras Não percebi de onde as haviam tirado Meu pai abriu as portas de um armário e então constatei que aquilo que eu sempre pensara ser um armário era na verdade um nicho profundo onde estava um pequeno fogão Coppelius aproximouse e uma chama azul ardeu Havia ali todo tipo de aparelhos estranhos Ah Deus Ao inclinarse em direção ao fogo meu pai parecia outro Uma dor cruel e convulsiva parecia metamorfosear seus traços na mais horrenda e repugnante imagem diabólica Ele se assemelhava a Coppelius Este brandia tenazes incandescentes e com elas retirava da fumaça densa massas claras e cintilantes que depois martelava com violência Tive a sensação de que rostos humanos tomaramse visíveis a sua volta mas não tinham olhos ao invés deles profundas e horrendas cavidades negras Que venham os olhos que venham os olhos gritou Coppelius com uma voz surda e ameaçadora Completamente aterrado soltei um berro e saindo de meu esconderijo caí no chão Pequena besta Pequena besta rosnou ele rangendo os dentes Subitamente me ergueu e jogoume sobre o fogão de maneira que as chamas começaram a chamuscar meu cabelo Agora temos olhos olhos um lindo par de olhos infantis Foi o que murmurou Coppelius pegando com as mãos um punhado de brasas incandescentes para atirar em meus olhos enquanto meu pai implorava erguendo as mãos e gritando Mestre Mestre Deixe os olhos de meu Natanael deixeos com ele Coppelius gargalhou estridentemente Que o rapazinho conserve os seus olhos para choramingar sua sina pelo mundo Mas agora vamos observar atentamente o mecanismo das mãos e dos pés Com isso pegoume com tanta violência que minhas articulações estalaram girando minhas mãos e meus pés e recolocando os ora aqui ora acolá Não ficam bem em lugar nenhum É melhor deixar como estavam O velho lá de cima entendia bem do riscado Assim Coppelius silvava e ciciava mas tudo a minha volta tomouse negro escuro uma súbita convulsão percorreu meus nervos e ossos eu não sentia mais nada Um sopro suave e morno passou pelo meu rosto e despertei como de um sono de morte Mamãe estava inclinada sobre mim O Homem da Areia ainda está aí balbuciei Não filhinho já foi há muito muito tempo e não lhe fará mal Assim falou mamãe beijando e acariciando o filho predileto já restabelecido Por que fatigarlhe tanto meu caro Lotar contandolhe todos esses detalhes se tanta coisa importante ainda tenho a dizer Em suma fui descoberto enquanto espiava e cruelmente maltratado por Coppelius Medo e susto causaramme uma febre escaldante e fiquei doente por várias semanas O Homem da Areia ainda está aí Estas foram as minhas primeiras palavras concatenadas e o sinal de minha recuperação de minha salvação Devo contarlhe ainda o mais terrível momento de meus anos de infância então ficará convencido de que não é culpa de meus olhos se agora tudo me parece descolorido mas que realmente uma fatalidade cobriu minha vida com um denso véu de nuvens que só com minha morte talvez se dissipará Coppelius não apareceu mais Diziase que deixara a cidade Mais ou menos um ano depois estávamos sentados à noite em torno da mesa redonda segundo o velho e imutável costume Papai estava muito alegre e contava histórias divertidas das viagens que fizera na juventude Foi quando de repente ouvimos às nove horas os gonzos da porta soar e passos lentos e pesados como ferro avançaram em direção à escada É Coppelius disse minha mãe empalidecendo Sim é Coppelius repetiu meu pai com voz frágil e hesitante Lágrimas rolaram dos olhos de minha mãe Meu amigo meu amigo exclamou ela precisa ser assim Pela última vez ele respondeu pela última vez ele virá aqui eu juro Agora vá vá com as crianças Vão para a cama Boa noite Eu estava como que petrificado minha respiração vacilava Vendome imóvel mamãe pegoume pelo braço Venha Natanael venha Deixeime levar e entrei no meu quarto Acalmese acalmese vou pôlo na cama Durma durma pediu minha mãe Porém torturado pela angústia e presa de profunda inquietação não consegui fechar os olhos O odioso e repugnante Coppelius surgia a minha frente com olhos faiscantes e sorria hipocritamente Em vão tentei livrarme de sua imagem Já deveria ser meianoite quando se ouviu um terrível barulho como se uma artilharia houvesse começado a disparar Toda a casa estremeceu perto da porta de meu quarto passaram ruídos e rumores e então a porta da frente bateu ruidosamente É Coppelius gritei assustado e saltei da cama Então ouvi um lamento dilacerante e inconsolável e precipiteime para o gabinete de meu pai a porta estava aberta um vapor sufocante se fez sentir enquanto a criada gritava Ah patrão ah patrão Diante do fogão fumegante no chão encontravase meu pai morto com o rosto terrivelmente desfigurado e queimado e ao seu redor choravam e gemiam minhas irmãs mamãe a seu lado desmaiada Coppelius maldito Satã você matou meu pai foi assim que gritei perdendo os sentidos Dois dias depois quando foi colocado no caixão seus traços voltaram a ser suaves e tranqüilos como em vida O que foi um consolo pois imaginara em meu espírito que o seu pacto com o diabólico Coppelius poderia condenálo à danação eterna A explosão havia acordado os vizinhos O acontecimento tornouse público e chegou às autoridades que queriam intimar Coppelius como responsável pelo fato Este porém havia desaparecido sem deixar pistas Se lhe disser caro amigo que aquele vendedor de barômetros era justamente o maldito Coppelius você compreenderá por que interpreto sua hostil aparição como presságio de uma terrível desgraça Usava outras roupas mas a figura de Coppelius e os traços do rosto estão de tal modo impregnados em minha memória que não pude deixar de reconhecêlo Além disso ele nem ao menos trocou de nome Fazse passar agora como ouvi dizer por um mecânico piemontês e se denomina Giuseppe Coppola Estou decidido a enfrentálo e vingar a morte de meu pai aconteça o que acontecer Não conte nada a mamãe sobre a aparição desse monstro cruel Dê lembranças a minha encantadora Clara escreverei a ela com mais calma Saudações etc etc CLARA A NATANAEL É verdade que você não me escreve há muito tempo mas mesmo assim acredito que me carrega no coração e no espírito Pois com certeza você estava pensando em mim quando pretendendo destinar sua última carta a meu irmão Lotar endereçoua a mim Com muita alegria abri o envelope e só então percebi o equívoco às primeiras palavras Ah meu caríssimo Lotar Não deveria ter continuado a ler entregando a carta a meu irmão Às vezes você brincava comigo acusandome de possuir um temperamento tão calmo e ponderadamente feminino que se a casa desabasse eu agiria como aquela mulher que antes da fuga rápida ainda arrumou as cortinas da janela Entretanto posso assegurarlhe que o início de sua carta me abalou profundamente Mal pude respirar meus olhos turvaramse Ah meu querido Natanael o que de mais cruel poderia ter acontecido em sua vida Separarme de você nunca mais voltar a vêlo a idéia atravessou minha cabeça como um golpe de punhal em brasa Li reli Sua descrição do repugnante Coppelius é aterradora Só agora soube como o seu bom e velho pai teve uma morte tão terrível e violenta Meu irmão Lotar a quem entreguei o que lhe era de direito procurou acalmarme mas quase nada conseguiu O fatal vendedor de barômetros Giuseppe Coppola me perseguia sem cessar e tenho até vergonha em confessar conseguiu perturbar até meu sono normalmente profundo com toda espécie de sonhos estranhos Mas logo no dia seguinte vi as coisas sob um aspecto mais natural Não me leve a mal portanto meu querido se Lotar lhe disser que eu apesar de seu estranho pressentimento de que Coppelius irá prejudicálo estou tão serena e despreocupada como sempre Com toda a franqueza quero confessarlhe que a meu ver tudo de terrível e assustador de que você fala aconteceu apenas na sua imaginação e que o mundo exterior real teve pouca participação nisso tudo O velho Coppelius era sem dúvida pouco atraente mas o fato de odiar crianças é que despertou em vocês essa profunda aversão por sua pessoa Naturalmente em sua alma infantil o terrível Homem da Areia dos contos da carochinha associouse ao velho Coppelius que permaneceu para você acredite ou não no Homem da Areia um monstro fantasmagórico perigoso principalmente para crianças As práticas sinistras com o seu pai à noite não eram nada senão experiências alquímicas secre tas com as quais sua mãe se afligia já que certamente muito dinheiro era desperdiçado além disso como parece acontecer com quem pratica tais experiências de laboratório o espírito de seu pai desviavase da família já que se concentrava por inteiro na busca ilusória de um saber supremo Seu pai com certeza por um descuido qualquer causou a própria morte e Coppelius não poderia ser acusado Você acreditará em mim se eu disser que ontem perguntei a um farmacêutico experiente meu vizinho se era possível tal explosão repentina e fatal Ele disse Sim claro e descreveume a sua maneira detalhada e morosa como isso poderia ocorrer citando nomes que de tão estranhos não fui capaz de guardar Agora você certamente está irritado com sua Clara e dirá Nesse espírito frio não penetra sequer um raio do Misterioso que muitas vezes envolve os homens com braços invisíveis ela contempla apenas a superfície colorida do mundo e alegrase como uma ingênua criancinha com a fruta de brilho dourado em cujo interior escondese veneno mortal Ah meu bemamado Natanael pois você não acredita que também os espíritos tranqüilos despreocupados e serenos podem abrigar o pressentimento de uma força obscura que almeja apoderarse de nossa consciência Mas perdoeme se eu simplória moça que sou atrevome a insinuar de alguma maneira o que na verdade penso sobre essa espécie de combate interior Afinal quase não encontro as palavras certas e talvez você zombe de mim não porque pense algo de muito tolo mas porque o expresso de maneira tão desajeitada Se existe uma força obscura que hostil e traiçoeira tece em torno de nós um fio com o qual nos agarra e arrasta através de um caminho pérfido e destruidor por onde normalmente não passamos se existe tal força ela então deve assimilarse a nós mesmos tornandose por assim dizer parte de nossa essência pois só assim acreditaríamos nela e lhe daríamos lugar em nosso coração para realizar sua obra secreta Se tivermos a mente suficientemente fortalecida por uma vida serena para reconhecermos sempre enquanto tais as influências estranhas e hostis e seguirmos com passos tranqüilos o caminho ao qual nossa inclinação ou vocação nos apontou então essa força sinistra sucumbirá em seus vãos esforços para nos iludir É também certo acrescenta Lotar que se nos entregarmos a essas forças obscuras nós mesmos produziremos o princípio devorador que nos consome Assim seríamos nós mesmos que atiçamos o espírito que parece falar através dessas formas exatamente como nossa loucura as faz imaginar É o fantasma de nosso próprio ser cuja estreita ligação e profunda influência sobre o nosso espírito mergulhamnos no inferno ou arrebatamnos ao céu Você pode observar meu querido Natanael que nós eu e meu irmão Lotar conversamos longamente a respeito de forças e poderes obscuros assunto que agora depois de ter escrito o essencial e não sem dificuldades pareceme bastante profundo Não entendo muito bem as últimas palavras de Lotar mas presumo o que ele pretendia dizer e sinto que está certo Peçolhe que esqueça o horroroso advogado Coppelius e o vendedor de barômetros Giuseppe Coppola Convençase de que essas figuras estranhas não têm poder sobre você apenas a crença na força hostil delas pode de fato fazêla hostil a você Se cada linha de sua carta não expressasse a mais profunda agitação do espírito se o seu estado não me afligisse no fundo dalma eu poderia afinal zombar do seu Homem da Areia e do vendedor de barômetros Tranqüilizese por favor Decidi que serei para você uma espécie de espírito protetor e espantarei com uma gargalhada o hediondo Coppelius se ele se atrever a introduzirse em seus sonhos Não tenho medo algum dele e de suas mãos feias advogado ou Homem da Areia ele não irá estragar minhas iguarias tampouco lançar areia em meus olhos Eternamente meu bemamado Natanael etc etc etc NATANAEL A LOTAR Foi muito desagradável para mim que em função de minha própria negligência e distração Clara recentemente tenha aberto e lido minha carta dirigida a você Ela me escreveu uma carta bastante grave e filosófica na qual demonstra pormenorizadamente que Coppelius e Coppola só existem em minha mente e são fantasmas de meu eu que se pulveri zarão no momento em que reconhecêlos como tais Aliás é difícil acreditar que esse espírito que muitas vezes brilha como um sonho bom naqueles olhos claros de criança encantadores e sorridentes possa fazer distinções teóricas dignas de mestre Ela se refere a você Vocês falaram sobre mim Talvez você lhe tenha ministrado aulas de lógica para que ela aprendesse a ordenar e distinguir tudo muito bem Renuncie a isso De resto é praticamente certo que o vendedor de barômetros Coppola não seja o velho advogado Coppelius Tenho aulas com um professor de física recémchegado à cidade que tem o mesmo nome do célebre naturalista Spalanzani e é também de origem italiana Ele conhece o Coppola há muitos anos e além disso vêse por sua pronúncia que se trata realmente de um piemontês Coppelius era alemão mas não me parece que fosse legítimo Não estou inteiramente tranqüilizado Você e Clara podem me considerar um sombrio visionário mas não consigo me livrar da impressão que o maldito rosto de Coppelius produziu em mim Fico feliz que ele tenha deixado a cidade como me informou Spalanzani Esse professor é um tipo esquisito Um homenzinho arredondado o rosto de salientes bochechas nariz afilado lábios carnudos olhos pequenos e penetrantes Melhor que qualquer descrição porém é vêlo num retrato de Cagliostro feito por Chodowiecki Daniel Nikolaus Chodowieck 17261801 pintor e gravador alemão num almanaque berlinense qualquer Spalanzani parecese com ele Recentemente subindo as escadas percebi que uma cortina que normalmente permanece bem fechada sobre uma porta de vidro estava um pouco aberta Eu mesmo não sei o que me levou à curiosidade de espiar através dela Uma mulher alta e muito magra esplendidamente vestida estava sentada no quarto diante de uma mesinha sobre a qual pousara os braços com as mãos cruzadas Estava sentada diante da porta de forma que pude ver com clareza o seu belo rosto angelical Ela pareceu não me notar e seu olhar tinha algo de fixo diria até que não via nada como se ela dormisse de olhos abertos Aquilo me pareceu muito desagradável e precipiteime silenciosamente em direção ao anfiteatro que fica ao lado Mais tarde soube que a figura que eu vira era a filha de Spalanzani Olímpia que ele mantém reclusa por motivos singulares e suspeitos de maneira que a ninguém é permitido aproximarse dela Talvez realmente haja algo de estranho com ela talvez seja demente ou coisa parecida Por que lhe escrevo tudo isto Teria sido melhor narrarlhe tudo pessoalmente e com detalhes Saiba que em duas semanas estarei com vocês Preciso rever meu doce anjo minha querida Clara Então se dissipará essa sensação que devo confessar quis apoderarse de mim depois daquela judiciosa carta que me escreveu É por isso que hoje não lhe escreverei Muitas lembranças etc etc etc Não se poderia inventar nada de mais estranho e singular do que o ocorrido com o meu pobre amigo o jovem estudante Natanael e que agora decido contarlhe caro leitor Alguma vez benevolente leitor você já vivenciou algo que houvesse ocupado todo o seu peito mente e pensamentos deixando de lado o resto Quem nunca experimentou a sensação de uma fervura interna que incandescente percorre o sangue nas veias colorindo o rosto de um encarnado sombrio Seu olhar então tornase estranho como se você quisesse apreender no espaço vazio formas invisíveis a seus olhos e as palavras se diluem em sombrios soluços Em vão os amigos lhe perguntam O que está acontecendo meu caro O que tem honrado amigo E então você descreveria sua sensação íntima em todas as suas cores ardentes sombras e luzes lutando inutilmente para encontrar as palavras que pudessem refletir seu pensamento Mas era como se você precisasse resumir logo na primeira palavra tudo o que de maravilhoso esplêndido terrível divertido e cruel lhe aconteceu causando a todos a sensação de um choque elétrico Mas cada palavra cada sílaba tudo lhe pareceria sem cor frio e morto Você procuraria e procuraria gaguejaria e balbuciaria e as tímidas perguntas dos amigos arrefeceriam como um sopro de vento gelado o seu ardor interior até que este se apagasse Mas se como um pintor destemido esboçasse você com poucos e ousados traços o contorno de sua pintura interior então facilmente você passaria a colorila gradualmente e o vivo tumulto de figuras multiformes arrebataria seus amigos e eles como você se veriam nesse quadro criado por sua imaginação Devo confessar caro leitor que ninguém me pediu que contasse a história do jovem Natanael mas você bem sabe que pertenço à particular espécie de autores que carregando consigo algo como o que acabei de descrever tem a sensação de que todos que se aproximam e ainda o mundo inteiro perguntam O que aconteceu Conte meu caro Foi essa força que me arrastou a contar o fatal destino que assaltou a vida de Natanael O maravilhoso e estranho dessa aventura arrebatou minha alma e eis por que caro leitor eu precisava despertar em você a inclinação para o fantástico o que não é nada fácil e me esforçar para começar a história de Natanael de forma significativa original surpreendente Era uma vez o mais belo começo para qualquer história mas muito tímido Na pequena cidade do interior S morava um pouco melhor pelo menos prepara para o clímax Ou logo medias in res Vá para o diabo exclamou o estudante Natanael lançando olhares ferozes quando o vendedor de barômetros Giuseppe Coppola na verdade eu começara assim quando acreditei sentir nos olhares ferozes do estudante Natanael algo de burlesco mas a história porém nada tem de divertido Não me ocorreu nenhum discurso que pudesse pelo menos refletir o brilho colorido do quadro que eu elaborara no espírito Decidi então simplesmente não começar Aceite portanto caro leitor três cartas que o amigo Lotar gentilmente me cedeu como o esboço da imagem à qual a partir de agora me esforçarei para dar mais e mais cor Talvez eu consiga rabiscar algumas figuras como um bom pintor de retratos fazendo com que você ache parecido sem conhecer o original sim como se você tivesse a sensação de ter visto a pessoa muitas vezes com os próprios olhos Talvez então o leitor acredite que nada é mais fantástico e louco do que a vida real e que o escritor só poderia apreender tudo isso como um reflexo confuso de um espelho mal polido Para que fique mais claro o que é preciso saber logo de início convém acrescentar às cartas precedentes que logo em seguida à morte do pai de Natanael Clara e Lotar filhos de um parente afastado também falecido foram acolhidos pela mãe de Natanael Clara e Natanael cultivaram uma grande afeição um pelo outro contra a qual ninguém apresentou qualquer objeção assim estavam noivos quando Natanael deixou a cidade para continuar seus estudos em G É lá que se encontra ao escrever a última carta e é lá que assiste às aulas do famoso professor de física Spalanzani Agora eu poderia continuar a narração tranqüilamente mas neste momento a imagem de Clara está tão viva diante de mim que não consigo desviar os olhos o que sempre acontecia quando ela me fitava com um sorriso tão encantador Clara não poderia ser considerada bonita era o que diziam todos que entendiam de beleza por ofício Mas os arquitetos elogiavam as proporções delicadas de seu corpo os pintores viam algo de casto na forma de sua nuca ombros e colo mas apaixonavamse era pelos maravilhosos cabelos que lembravam a Madalena de Correggio e falavam muito das tonalidades de sua tez digna de um Battoni Referência a um quadro do pintor barroco Pompeo Battoni 17081787 Um deles de muita imaginação estranhamente comparou os olhos de Clara a um lago de Ruisdaël Jacob van Tuisdaeël 16281682 onde se refletem o céu claro de raro azul bosques e campos floridos a rica paisagem de uma vida colorida e serena Poetas e artistas porém iam mais longe e falavam Que lago que nada que espelho que nada Será que podemos olhar para a moça sem que seus olhos irradiem maravilhosos e divinos cantos e sons que penetram em nossa alma de forma que tudo se toma vivo e animado Se não cantamos nada de autêntico então nada de autêntico existe em nós e isto lemos nitidamente no fino sorriso em torno dos lábios de Clara quando nos atrevemos a tartamudearlhe algo que tem a pretensão de ser música ou poesia embora apenas alguns sons estejam sendo embaralhados De fato era assim Clara tinha a vigorosa fantasia de uma criança alegre e despreocupada um coração profundamente feminino e doce uma inteligência penetrante e lúcida Os espíritos levianos e presunçosos tinham nela uma difícil adversária pois sem falar muito o que aliás condizia com sua natureza silenciosa aquele olhar nítido aquele sorriso refinado e irônico diziamlhes Queridos amigos Como podem imaginar que eu considere essas sombras difusas como figuras reais com vida e calor Por esse motivo Clara era vista por muitos como fria insensível e prosaica Mas outros que conseguem captar a vida com sua transparente profundidade gostavam muito da moça cheia de vida sensata e com espírito infantil No entanto ninguém a amava mais que Natanael que se dedicava então com força e entusiasmo ao mundo da ciência e da arte Clara amavao de todo o coração as primeiras sombras surgiram no momento que a deixou Qual não foi sua alegria ao voar em seus braços quando ele conforme dizia na última carta a Lotar realmente chegou à cidade natal e entrou na sala da casa de sua mãe Tudo aconteceu como Natanael esperava pois no momento em que reviu Clara não pensou nem no advogado Coppelius nem na racional carta de Clara Desaparecera qualquer irritação Entretanto Natanael tinha razão ao escrever a seu amigo Lotar que a repugnante figura do vendedor de barômetros Coppola de fato entrara de forma hostil em sua vida Todos sentiram isso já que logo nos primeiros dias Natanael mostrarase diferente do que habitualmente era Mergulhou em divagações sombrias e logo começou a agir de modo estra nho como ninguém vira antes Tudo toda a vida era para ele sonho e pressentimento falava sempre que toda pessoa julgandose livre só fazia servir a poderes obscuros num jogo cruel contra os quais é inútil revoltarse deviase submeter humildemente àquilo que designara o destino Chegou a afirmar que achava tolice considerar a criação na arte e na ciência um ato de vontade pois o entusiasmo imprescindível para criar não parte da alma sendo o efeito de um princípio superior exterior a nós Para a sensata Clara aquelas exaltações místicas eram altamente desagradáveis mas parecia inútil tentar contradizêlas Só quando Natanael demonstrava que Coppelius era o princípio do Mal que momentaneamente se apoderara dele ao espreitar atrás da cortina e que esse demônio repugnante iria perturbar terrivelmente a sua felicidade amorosa é que Clara ficava muito séria e dizialhe Sim Natanael você tem razão Coppelius é um princípio maligno e hostil ele pode provocar coisas terríveis como uma força diabólica que penetrou em sua vida mas isso apenas se você não o banir de seu espírito Enquanto acreditar nele ele exitirá e agirá a sua credulidade é a força dele Natanael um dia irritado por Clara insistir em atribuir a existência do demônio apenas a seu espírito fraco pôsse então a discursar sobre todos os ensinamentos místicos a respeito de demônios e forças cruéis Desgostosa Clara pôs fim à conversa passando a falar de coisas sem maior importância para despeito de Natanael Ele acreditava que espíritos frios e pouco receptivos não estão aptos a compreender mistérios tão profundos sem se dar conta de que com isso considerava Clara uma dessas naturezas inferiores embora não desistisse de tentar iniciála naqueles mistérios De manhã cedo quando ela o ajudava a preparar o café ele vinha para o seu lado e começava a ler diversas passagens de seus livros místicos Mas querido Natanael comentou Clara depois de uns instantes de atenção se eu dissesse que você é o princípio do Mal que tem efeitos hostis sobre o meu café Pois se eu como você quer deixasse tudo de lado e durante sua conferência o olhasse nos olhos o café acabaria por derramar no fogo e então ninguém teria café da manhã Natanael fechou o livro com violência e furioso foi para o seu quarto Outrora ele alimentara um talento especial para a composição de histórias encantadoras e graciosas as quais Clara ouvia com o maior prazer agora seus textos eram sombrios incompreensíveis disformes de modo que mesmo quando Clara não o dizia ele mesmo sentia que eles pouco lhe haviam interessado Nada era para Clara pior do que o tédio em seu olhar e em suas palavras expressavase uma invencível sonolência mental Ora as composições de Natanael eram de fato entediantes Seu desgosto para com o espírito frio e prosaico de Clara aumentou e esta não podia superar a sua irritação com o sombrio obscuro e entediante misticismo de Natanael e sem perceber o fato ambos se distanciavam cada vez mais um do outro A figura do hediondo Coppelius como confessava o próprio Natanael empalidecera em sua imaginação e às vezes muito lhe custava revestilo de cores vivas em seus poemas onde aparecia como um terrível espantalho Um dia para completar ocorreulhe que aquele sombrio pressentimento de que Coppelius iria perturbar a sua felicidade amorosa poderia ser matéria de um poema Representou então a si e a Clara ligados por um amor fiel Mas de tempos em tempos era como se uma mão negra interviesse em suas vidas subtraindolhes qualquer espécie de alegria Finalmente quando se encontravam diante do altar aparecia o terrível Coppelius e tocava os encantadores olhos de Clara que saltavam no peito de Natanael como faíscas sangrentas chamuscando e ardendo Coppelius apoderavase dele e jogavao num círculo de fogo em chamas que girava com a rapidez de uma tempestade e o levava para longe zunindo e bramindo Era o rugido de um furacão que chicoteava irado as espumantes ondas do mar que se erguiam como gigantes negros de cabeças brancas numa luta furiosa Mas através desse rugido selvagem ele ouvia a voz de Clara Será que você pode me ver Coppelius o enganou não foram os meus olhos que queimaram em seu peito mas gotas ardentes do sangue de seu próprio coração tenho os meus olhos olhe para mim Natanael pensava É Clara e serei dela eternamente Esse pensamento entrava então de forma tão violenta no círculo de fogo que ele se detinha e no abismo negro o estrondo perdiase num som abafado Natanael olhou nos olhos da noiva mas era a morte que o contemplava calmamente nos olhos de Clara Enquanto Natanael escrevia esse poema estava muito calmo e circunspecto burilando e melhorando cada verso e como se submetera ao incômodo da métrica não descansou até que tudo soasse agradável e perfeito Quando porém finalmente terminou e leu o poema em voz alta um horror e terror selvagem o assaltaram fazendo com que excla masse De quem é essa voz medonha Mas logo em seguida aquilo lhe pareceu um poema muito bemsucedido e acreditou que conseguiria inflamar o frio espírito de Clara embora não percebesse com nitidez por que deveria inflamála e por que afinal amedrontála com imagens aterradoras que profetizavam um destino cruel destruidor de seu amor Estavam os dois sentados no pequeno jardim da casa Clara estava muito alegre pois Natanael já há três dias durante os quais escrevera seu poema não a torturava com seus sonhos e pressentimentos Como antes voltara a conversar com animação e entusiasmo sobre coisas divertidas fazendo Clara comentar Agora o tenho de volta por inteiro Viu como expulsamos o horroroso Coppelius Nesse instante Natanael se lembrou de que trazia o poema no bolso e disse que gostaria de declamálo De imediato puxou as folhas e começou a ler Clara supondo como de costume algo entediante resignouse e começou a tricotar tranqüilamente Mas à medida que as sombrias nuvens tornavamse cada vez mais negras ela abaixou a meia que tricotava e fitou imóvel os olhos de Natanael Este continuou o seu poema sem interrupções seu rosto avermelharase com o fogo interior lágrimas rolaram de seus olhos Finalmente ao terminar gemeu de profundo cansaço pegou a mão de Clara e suspirou como se sucumbido a uma dor inconsolável Ah Clara Clara Clara apertouo docemente contra o seio e disselhe em voz baixa mas lenta e seriamente Natanael meu amado Natanael Jogue ao fogo essa história louca absurda delirante Indignado Natanael levantouse abruptamente e gritou repelindo Clara Maldito autômato sem vida Saiu correndo enquanto Clara profundamente ferida chorava com amargura Ah ele nunca me amou pois não consegue me entender dizia em voz alta aos soluços Lotar entrou no caramanchão Clara teve de narrarlhe o ocorrido ele amava sua irmã de todo o coração e cada palavra de sua queixa caíalhe como uma brasa no coração de maneira que a predisposição que há muito nutria contra Natanael e seus devaneios ardeu numa fúria selvagem Correu até ele e acusouo com pesadas palavras pelo comportamento absurdo com a amada irmã às quais Natanael revidou com a mesma fúria Um janota louco e delirante foi revidado por um sujeito miserável e vulgar O duelo era inevitável Decidiram confrontarse na manhã seguinte atrás do jardim com floretes bem afiados segundo um costume acadêmico Calados e circunspectos rondavam o local Clara escutara a violenta discussão e percebera quando ao alvorecer o mestre de esgrima trouxera os floretes Ela pressentia o que deveria acontecer Ao chegarem ao local da luta Lotar e Natanael sombriamente silenciosos tiraram os sobretudos Com os olhos faiscantes e sedentos de luta já iam lançarse um sobre o outro quando Clara precipitouse pela porta do jardim Soluçando gritava Vocês são homens selvagens e terríveis Matemme logo antes de se lançarem um sobre o outro pois como poderei viver neste mundo se o amado matou o irmão ou o irmão o amado Lotar abaixou a arma e olhou calado para o chão mas no coração de Natanael renasceu melancolicamente todo o amor que sentira pela encantadora Clara nos mais belos dias de sua feliz juventude A arma assassina caiu de suas mãos e ele aos pés de Clara Será que um dia poderá perdoarme minha única minha amada Clara Pode perdoarme querido irmão Lotar Lotar comoveuse com a profunda dor do amigo sob uma torrente de lágrimas os três reconciliados abraçaramse e juraram permanecer unidos em amor e fidelidade eternos Natanael teve a sensação de que um peso que o empurrava para baixo fora retirado de seus ombros sim como se tivesse salvo toda a sua existência resistindo à força sombria que ameaçara destruílo Ainda passou três felizes dias junto a seus entes queridos mas depois voltou a G onde deveria ficar mais um ano depois do qual voltaria definitivamente para sua cidade natal Tudo o que dizia respeito a Coppelius foi omitido à mãe de Natanael todos sabiam que ela não conseguia pensar nele sem horror já que como o filho culpavao pela morte do marido Qual não foi a surpresa de Natanael ao chegar em casa e encontrar tudo queimado não restando nada além de um monte de entulhos do qual se erguiam quatro paredes nuas e empretecidas Embora o fogo tenha surgido no laboratório do farmacêutico que morava no andar inferior e se alastrado de baixo para cima os audazes e corajosos amigos de Natanael conseguiram entrar a tempo em seu quarto no andar superior e salvar seus livros manuscritos e instrumentos Tudo isso fora levado intacto para outra casa onde estava reservado um quarto no qual Natanael se instalou imediatamente Sem estranhar muito observou que o professor Spalanzani morava em frente tampouco deu importância ao fato de que de sua janela podia olhar diretamente para o quarto onde freqüentemente Olímpia sentavase solitária de modo que agora podia nitidamente contemplar sua silhueta ainda que as feições do rosto permanecessem indistintas e confusas Finalmente pôde notar que Olímpia sentavase à pequena mesa muitas vezes horas a fio na mesma posição e sem qualquer ocupação do mesmo jeito que a vira tempos atrás através da porta de vidro que ela fitava aparentemente sem mover o olhar Precisou confessar a si mesmo nunca ter visto corpo mais belo porém com Clara no coração a Olímpia rígida e inerte eralhe totalmente indiferente e só de vez em quando olhava por sobre os seus livros em direção à bela estátua e isso era tudo Estava justamente escrevendo a Clara quando ouviu baterem suavemente à porta a sua permissão esta se abriu e ele viu surgir o repugnante rosto de Coppola Natanael sentiu um frêmito mas levando em conta o lhe disse Spalanzani sobre seu compatriota Coppola e o que fervorosamente prometera a sua bemamada com relação ao Homem da Areia Coppelius envergonhouse de seu ridículo medo de fantasmas esforçouse para se controlar e falou tão suave e despreocupadamente quanto possível Não vou comprar nenhum barômetro meu caro amigo agora vá embora por favor Mas Coppola acabou entrando no quarto e disse num tom rouco contraindo a boca num horrendo sorriso e faiscando penetrantemente os olhinhos sob as pestanas longas e grisalhas Ah não barômetro não barômetro não Mas tenho olhos belli occhi Chocado Natanael gritou Homem louco como pode vender olhos Olhos olhos Mas nesse instante Coppola havia posto de lado os seus barômetros Botou a mão no bolso do sobretudo e tirou de lá lornhões e óculos levandoos à mesa Aqui aqui óculos óculos para o nariz meus olhos belli occhi E sacava cada vez mais óculos e lunetas que entrecruzandose provocavam um brilho ofuscante e estranho Milhares de olhos olhavam e piscavam convulsivamente dardejando Natanael mas este não conseguia desviar o olhar da mesa e Coppola continuava tirando cada vez mais óculos e cada vez com mais voracidade olhares inflamados saltavam uns sobre os outros atirando no peito de Natanael seus raios vermelhos de sangue Dominado por um terror delirante ele gritou Pare pare com isso homem terrível Agarrou então pelo braço Coppola que já enfiara a mão no bolso para pegar ainda mais óculos embora toda a mesa já estivesse coberta deles mas este se livrou delicadamente com um riso rouco e hostil dizendo Ah Nada para o senhor mas aqui soberbas lentes E já havia juntado todos os óculos guardado e tirado do bolso lateral do sobretudo uma grande quantidade de binóculos grandes e pequenos Assim que os óculos foram retirados Natanael se acalmou e pensando em Clara reconheceu que todas aquelas aparições eram fruto de seu cérebro como também que Coppola era um mecânico e óptico extremamente honesto e de forma alguma o maldito sósia ou fantasma de Coppelius Além disso as lentes que Coppola colocara sobre a mesa nada tinham de especial nem eram tão fantasmagóricas como os óculos Para remediar tudo aquilo Natanael decidiu finalmente comprar alguma coisa de Coppola Pegou um pequeno binóculo de bolso delicadamente trabalhado e para experimentálo olhou pela janela Nunca em sua vida vira uma lente que trouxesse aos olhos os objetos de forma tão pura límpida e nítida Sem querer olhou para o quarto de Spalanzani como de costume Olímpia estava sentada diante da mesinha os braços esticados as mãos cruzadas Era a primeira vez que Natanael contem plava o semblante de Olímpia de maravilhosos traços Apenas os olhos pareciamlhe estranhamente hirtos e mortos Mas à medida que a con templava com mais cuidado tinha a sensação de que dos olhos de Olímpia saíam úmidos raios de luar Parecia que só agora o seu poder de visão fora estimulado cada vez mais vivos flamejavam os seus olhares Natanael ficou à janela como que enfeitiçado admirando sem cessar a divina e bela Olímpia Um pigarro despertouo como de um sonho profundo Coppola estava atrás dele Tre zecchini três ducados Natanael es quecera o óptico por completo e rapidamente pagou o exigido Não é uma bela lente Bela lente disse Coppola com sua voz repugnante e rouca e seu sorriso de escárnio Sim sim sim respondeu Natanael abor recido Adeus caro amigo Coppola deixou o quarto não sem antes dirigir muitos e estranhos olhares oblíquos para Natanael que ainda escutou sua gargalhada pela escada Pois é pensou ele ri de mim certamente porque paguei caro demais pelo pequeno binóculo caro demais Enquanto murmurava essas palavras aterrorizado teve a impressão de ouvir espalharse pelo quarto um longo estertor de moribundo Mas havia sido ele mesmo quem suspirara como logo notou Clara tem toda a razão disse consigo em me considerar um visionário idiota no entanto é estranho é es tranho que eu me atormente tanto por ter pago caro demais pelo binó culo de Coppola não vejo razão para isso Sentouse então a fim de terminar a carta para Clara mas um olhar através da janela convenceuo de que Olímpia ainda estava lá como se arrebatado por uma força irre sistível levantouse pegou o binóculo de Coppola e não conseguiu es quivarse da inebriante visão de Olímpia até que seu amigo e camarada Siegmund veio chamálo para a aula com o professor Spalanzani A cortina do quarto fatal dessa vez estava fechada e ele não pôde ver Olímpia nem naquele dia nem nos dois seguintes embora quase não tenha abandonado a janela olhando ininterruptamente através do binóculo de Coppola No terceiro dia até mesmo as cortinas das jane las foram fechadas Totalmente desesperado devorado pela saudade e pelo desejo Natanael foi na direção dos portões da cidade A imagem de Olímpia flutuava a sua frente saía dos arbustos fitavao com seus grandes e faiscantes olhos do espelho do riacho de águas claras A lembrança de Clara estava totalmente apagada de seu espírito só pensava em Olímpia e lamentava em voz alta e chorosa Será que você minha esplêndida e distante estrela de amor será que você só me sur giu para eclipsarse em seguida e deixarme na noite escura e sem esperanças Ao voltar para casa percebeu uma agitação ruidosa na casa de Spalanzani As portas estavam abertas carregavase para dentro toda espécie de aparelhos as janelas do primeiro andar estavam levantadas criadas circulavam ocupadas com grandes vassouras de um lado para outro escutavamse as batidas dos martelos dos marceneiros e dos tapeceiros Natanael ficou plantado na rua estupefato Siegmund apro ximouse sorrindo E então o que me diz do nosso velho Spalanzani Natanael respondeu que nada podia dizer pois nada sabia do professor e que ao contrário percebia com grande surpresa o furioso correcorre e o tremendo burburinho numa casa normalmente calma e sombria Siegmund informoulhe então que Spalanzani daria uma grande festa no dia seguinte com concerto e baile e que metade da universidade estava convidada Também se espalhara que Spalanzani iria deixar aparecer pela primeira vez sua filha Olímpia a qual escondera por tanto tempo de todo e qualquer olhar Natanael encontrou em casa um convite e à hora marcada para lá se dirigiu com o coração palpitante quando já chegavam as carruagens e as luzes cintilavam nos salões decorados A sociedade era numerosa e elegante Olímpia apareceu vestida ricamente e com muito bom gosto Seu rosto e seu corpo de belas formas foram inevitavelmente admirados As costas eram curiosamente recurvadas e a cintura fina semelhante à de uma vespa parecia exageradamente apertada num espartilho Seu andar e sua postura pareciam ter algo de comedido e rígido que a alguns era desagradável o que foi atribuído a sua timidez frente aos convida dos O concerto começou Olímpia tocou piano com muita habilidade e também cantou uma ária com uma voz límpida e quase dilacerante que tinha a sonoridade de um sino de cristal Natanael estava completamen te deslumbrado colocado numa das últimas fileiras à luz das velas não foi capaz de reconhecer imediatamente as feições de Olímpia Sem se fazer notar tirou do bolso o binóculo de Coppola e observou a bela cantora Ah Agora poderia perceber como ela o olhava com languidez e como seu olhar enternecido que penetrava e inflamava todo o seu ser expri mia antecipadamente cada nuance do seu canto Seus trinados pareciam a Natanael o júbilo celestial do espírito transformado pelo amor e quan do finalmente a cadência do longo e último vocalise ressoou pelo salão ele não pôde mais se conter e como se estrangulado por dois braços apaixonados exclamou extasiado Olímpia Todos se voltaram para ele e muitos começaram a rir O organista da catedral porém mostrou um rosto ainda mais sinistro do que o habitual e disse apenas Bem bem O concerto chegara ao fim começou o baile Dançar com ela com ela era este o objetivo de todos os seus sentidos de todos os seus esforços mas como criar coragem para convidála ela a rainha da festa Entretanto sem saber como mal a dança começara já se encontra va junto a Olímpia que ainda não fora tirada e após balbuciar algumas palavras pegou em sua mão A mão de Olímpia estava gelada o que fez com que sentisse um arrepio mortal Fitoua nos olhos que só lhe trans mitiam amor e desejo e naquele momento foi como se as artérias de sua mão começassem a pulsar e o sangue da vida corresse ardente por suas veias glaciais Ardendo de paixão Natanael enlaçou a bela Olímpia pela cintura e deslizou com ela por entre os pares do salão Tinha a ilusão de ser um bom dançarino mas pela segurança rítmica toda parti cular que Olímpia demonstrava fazendo com que diversas vezes se vis se fora do compasso logo percebeu quanto lhe era estranho o verdadei ro sentido do ritmo Mesmo assim renunciou a dançar com qualquer outra mulher teria inclusive desejado matar todo aquele que tentasse se aproximar de Olímpia e a convidasse para dançar Para seu espanto isso ocorreu apenas duas vezes não lhe faltando a oportunidade de voltar a tirála Se Natanael fosse capaz de se ocupar de outra coisa além da bela Olímpia então teria sido inevitável toda sorte de discussão e briga pois aparentemente as risadas discretas e a custo abafadas que se podiam ouvir pelos cantos entre os jovens visavam à bela Olímpia perseguida por olhares curiosos sem que se soubesse por quê Entrementes aquecido pela dança e pelas copiosas libaçôes Natanael deixara de lado sua timidez habitual Sentado ao lado de Olímpia as mãos dela entre as suas falava de seu amor com entusiasmo e vibração em termos inflamados que ninguém poderia compreender nem ele mesmo nem Olímpia Bem talvez ela entendesse pois olhavao fixamente suspirando sem cessar Ah ah ah Ao que Natanael respondia Ah esplêndida mulher exemplo do amor que nos prometem na outra vida espírito profundo no qual se reflete todo o meu ser e outras coisas semelhantes enquanto Olímpia apenas suspirava repetidamente Ah ah O professor Spalanzani passou algumas vezes pelos felizardos e sorriulhes singularmente satisfeito Embora estivesse num mundo diferente Natanael pôde observar que a casa do professor de repente havia escurecido olhou em seu redor e com enorme espanto percebeu que as duas últimas velas do salão vazio ameaçavam se apagar Fazia tempo que a música e a dança haviam terminado Separação separação exclamou ele em completo desespero e beijou a mão de Olímpia que inclinandose sobre sua boca tocouo com seus lábios frios como gelo Assim como quando tocara as mãos frias de Olímpia viuse penetrado por um profundo terror repentinamente lembrarase da lenda da Noiva Morta mas Olímpia o abraçara com ternura e o ardor de seu beijo fazia com que seus lábios ganhassem vida O professor Spalanzani avançou com lentidão pelo salão seus passos soaram abafados e sua silhueta rodeada por sombras vacilantes revelava uma aparência assustadora fantasmagórica Você me ama você me ama Olímpia Só uma palavra Você me ama era assim que sussurrava Natanael Olímpia levantandose apenas suspirou Ah ah Sim minha encantadora esplêndida estrela do amor prosseguiu Natanael você surgiu em meu céu e iluminará para sempre o meu coração Ah ah replicou Olímpia afastandose Natanael seguiua e logo se encontraram diante do professo O senhor conversou animadamente com minha filha disse este sorrindo Pois então caro senhor Natanael se tem gosto em conversar com essa tímida rapariga venha visitála com freqüência Com todo um céu radioso no peito Natanael se foi A festa de Spalanzani foi o assunto das conversas nos dias seguinte Não obstante o professor tivesse feito tudo para receber a todos com magnificência as pessoas mais atentas puseramse a contar toda espécie de fatos estranhos e singulares falando principalmente da inerte e muda Olímpia a quem se atribuía a despeito da formosura uma total estupidez Viam nisso a razão pela qual Spalanzani a mantinha isolada por tanto tempo Natanael ouvia tudo aquilo cultivando um furor secreto mas se calava Pois pensava de que serviria provar a esses rapazes que é a sua própria estupidez que os impede de reconhecer o espírito profundo e magnífico de Olímpia Irmão disse um dia Siegmund por favor digame como você um rapaz razoável pôde perder a cabeça por aquele rosto de cera aquela boneca de madeira Natanael fez menção de explodir mas logo se recompôs e retrucou Digame você Siegmund como a seu olhar normalmente tão perspicaz pôde escapar o celestial encanto de Olímpia De resto dou graças ao destino pois de outra forma teria um rival e nesse caso um de nós haveria de verter sangue Siegmund logo percebeu o estado de seu amigo esquivouse habilmente e acrescentou depois de dizer que o objeto do amor nunca deve ser julgado Mas é estranho que muitos de nós tenhamos mais ou menos o mesmo julgamento sobre Olímpia Não me leve a mal irmão mas ela nos pareceu de uma maneira muito estranha rígida e sem alma Seu corpo é bemproporcionado assim como seu rosto é bem verdade Poderia ser considerada bonita se o seu olhar não fosse desprovido de brilho eu diria quase de faculdade visual Seu andar é particularmente meticuloso cada movimento parece condicionado por um mecanismo em que se deu corda Seu jeito de tocar de cantar tem o compasso de sagradavelmente correto e sem espírito dos realejos e assim também é quando dança Enfim essa Olímpia causounos uma impressão sinistra e nada queremos com ela é como se apesar de agir como um ser vivo houvesse nela algo de singular e de equívoco Natanael absolutamente não se abandonou à sensação amarga que as palavras de Siegmund lhe provocaram Dominou sua raiva e apenas disse muito sério Talvez a vocês pessoas friamente prosaicas Olímpia possa parecer sinistra Apenas ao espírito poético revelamse tais perso nalidades Só a mim ela dirigiu seu olhar apaixonado irradiando meus pensamentos e só no amor de Olímpia posso reencontrar o meu ser Talvez não lhes agrade que ela não se prenda a conversas ligeiras como outros espíritos superficiais Ela fala pouco é verdade mas essas poucas palavras tais verdadeiros hieróglifos da linguagem íntima da alma reve lam o amor e um elevado conhecimento da vida espiritual na contempla ção do eterno e misterioso além Mas isso está fora do alcance de vocês tudo são palavras vãs Deus o proteja caro irmão disse Siegmund com doçura quase melancólico mas me parece que você está no mau caminho Você pode contar comigo quando tudo Não não vou dizer mais nada Para Natanael foi como se repentinamente o prosaico e frio Siegmund estivesse querendo o seu bem por isso apertou com sinceri dade a mão estendida Natanael esquecera por completo que existia uma Clara no mundo a quem ele um dia amara a mãe Lotar todos haviam desaparecido de sua memória e ele só vivia para Olímpia na casa de quem ficava diariamente horas a fio devaneando sobre seu amor sobre o despertar de uma simpatia ardente sobre as afinidades de suas almas e Olimpia ouvia tudo com a maior atenção Das profundezas de sua escrivaninha Natanael tirava tudo o que já escrevera Poemas fantasias visões romances histórias tudo diariamente acrescido de toda sorte de sonetos estâncias cantigas que ele lia para Olímpia durante horas a fio incansavelmente Nunca tivera uma ouvinte tão encantadora pois não bordava nem trico tava não olhava pela janela não dava comida aos pássaros e não brinca va com cãezinhos ou gatinhos graciosos Não amassava papeizinhos ou se distraía com qualquer coisa nas mãos nem precisava conter um bo cejo ou um leve pigarro Em suma fitava o amado durante horas sem se mexer ou se ajeitar e esse olhar tornavase cada vez mais ardente e mais vivo Apenas quando Natanael se levantava no fim e lhe beijava a mão e até mesmo a boca ela dizia Ah ah boa noite meu querido Oh alma esplêndida e profunda exclamava Natanael em seu quarto somente você me compreende Estremecia de alegria ao pensar na maravilhosa relação que se manifestava cada dia mais entre o seu espírito e o de Olímpia pois para ele era como se Olímpia exprimisse seus pensa mentos sobre suas obras sobre seu talento poético exatamente como ele teria feito como se a voz dela soasse de seu próprio ser Não poderia ser diferente pois além das palavras mencionadas Olímpia não pro nunciava mais nada Mas quando Natanael em momentos claros e sóbrios como por exemplo pela manhã ao acordar lembravase da passividade total de Olímpia e de seu laconismo então dizia O que são palavras palavras A visão de seus olhos celestiais diz mais do que todas as linguagens Como poderia uma criação dos céus nivelarse ao estreito círculo traçado por nossa necessidade ínfima e terrena O professor Spalanzani parecia muito feliz com a relação de sua filha com Natanael cumulava este com toda sorte de nítidos sinais de simpatia e quando Natanael fielmente ousou aludir a um possível casamento com Olímpia estampou um largo sorriso dizendo que daria à filha a liberdade de escolha Encorajado por essas palavras com um ardente desejo no coração Natanael decidiu já no dia seguinte suplicar a Olímpia que lhe expressasse com clareza o que há muito o seu olhar encanta dor lhe dissera que seria sua para sempre Procurou pelo anel que sua mãe lhe presenteara na despedida a fim de ofertálo a Olímpia como símbolo de sua dedicação e de sua iniciação a uma vida que desabrocha va e que ela fazia florescer Naquele momento as cartas de Clara e de Lotar lhe caíram às mãos e ele com indiferença repeliuas encontrou o anel guardouo e correu à casa de Olímpia Já na escada no corredor percebeu uma singular agitação que parecia soar do gabinete de trabalho de Spalanzani Arrastar de pés um estranho ruído batidas golpes contra a porta em meio a maldições e imprecações Larguea larguea Infame celerado Foi para isso que me dediquei de corpo e alma Ha ha ha ha Não foi assim que combinamos Eu eu fiz os olhos E eu o mecanismo Aos diabos com o seu mecanismo Cão maldito relojoeiro simplório Vá embo ra Demônio Pare Besta diabólica Pare Vá charlatão Eram as vozes de Spalanzani e do terrível Coppola que vociferavam e bramiam confusamente Natanael precipitouse presa de uma angústia indefinível O professor segurava uma figura feminina pelos ombros o italiano pelos pés e esta era puxada e arrastada de um lado para outro os dois brigando furiosamente por sua posse Horrorizado Natanael re cuou ao reconhecer a figura de Olímpia Transportado por uma ira feroz ia defender sua amada contra aqueles possessos quando Coppola virou se com uma força gigantesca e arrancando o corpo de Olímpia das mãos do professor aplicoulhe com a própria mulher um terrível golpe na cabeça de forma que este cambaleou e caiu de costas sobre uma mesa cheia de retretas tubos de ensaio garrafas e cilindros de vidro tudo aquilo se partiu em mil cacos Coppola lançou então a figura nos ombros e correu pela escada gargalhando horrível e estridentemente fazendo com que os pés daquela miserável figura humana dependurados desor denadamente fossem quicando pelos degraus estalando como madeira Natanael estava atônito com muita clareza pôde ver que o rosto de cera mortalmente pálido de Olímpia era desprovido de olhos cavidades negras ocupavam seu lugar era uma boneca inanimada Spalanzani debatiase no chão os cacos de vidro haviam cortado sua cabeça e dilacerado seu peito e seu braço o sangue jorrava como de um chafariz Mas ele ainda encontrou forças Atrás dele atrás dele o que está espe rando Coppelius Coppelius você me roubou o meu melhor autô mato trabalhei nele durante vinte anos dediqueime de corpo e alma o mecanismo fala anda são meus os olhos os olhos roubei de você maldito condenado atrás dele tragame Olímpia aqui estão os olhos Natanael então percebeu no chão um par de olhos ensangüentados fitandoo fixamente Spalanzani agarrouos com a mão que não fora ferida e atrivouos em sua direção atingindoo no peito Foi então que a loucura arrebatou Natanael com garras ardentes e penetrou em sua alma dilacerando o que restava de seu juízo e pensamento Roda de Fogo Roda de Fogo Gire roda de fogo alegremente alegremente Bonequinha de madeira zum bela bonequinha de madeira gire e com isso se lançou sobre o professor apertando sua garganta Têloia estrangulado se a agitação não houvesse atraído muitas pessoas ao local que entraram e arrancaram dali o furioso Natanael salvando assim c professor que foi imediatamente medicado Siegmund por mais forte que fosse não conseguia acalmar o enfurecido que continuava a gritar com uma voz aterrorizante Bonequinha de madeira gire dando golpes a seu redor com os punhos cerrados Finalmente a força reunida de várias pessoas conseguiu domálo e foi jogado ao chão e amarrado Suas palavras perderamse pouco a pouco numa espécie de rugido animalesco Debatendose assim em terríveis convulsões foi levado ao manicômio Antes caro leitor que eu continue a lhe contar o que sucedeu ao infeliz Natanael posso assegurarlhe caso se interesse pelo habilidoso mecânico e fabricante de autômatos Spalanzani que este ficou totalmente curado de suas feridas Entretanto foi obrigado a abandonar a universidade porque a história de Natanael causara sensação e todos consideraram uma burla inadmissível introduzir em respeitáveis rodas da cidade Olímpia as freqüentara com sucesso uma boneca de madei ra no lugar de uma pessoa viva Juristas consideraramna uma fraude refinada e passível de forte punição já que praticada contra o público de forma astuciosa Ninguém com exceção dos estudantes muito espertos percebera o golpe embora agora todos se quisessem passar por inteligentes e apontassem fatos que lhes teriam parecido suspeitos Estes últimos porém na verdade nada conseguiam relatar que fizesse sentido A alguns por exemplo parecia suspeito o fato de Olímpia segundo um freqüentador das rodas de chá ter espirrado mais vezes que boceja do o que contrariava os costumes Em primeiro lugar dizia esse elegan te os espirros seriam os ruídos da engrenagem oculta que rangia niti damente etc O professor de poesia e retórica aspirou uma pitada de rapé fechou a tabaqueira pigarreou de leve e falou cerimoniosamente Mui honrados senhoras e senhores Não notam onde está o fio da mea da Tudo isto é uma alegoria uma metáfora ampliada Os senhores me entendem Sapíentí sat Mas os mui honrados senhores não se tran qüilizaram com aquilo a história do autômato havia causado uma profun da impressão na alma deles e de fato cresceu sorrateiramente uma abominável desconfiança com relação a figuras humanas A fim de se convencerem por completo de que não estariam amando uma boneca de madeira vários amantes exigiram que as amadas cantassem e danças sem um pouco fora do ritmo que ao ouvirem uma leitura bordassem tricotassem e brincassem com o cãozinho etc mas sobretudo que não apenas ouvissem e falassem às vezes de uma maneira que as palavras demonstrassem o que realmente pensavam e sentiam As uniões amorosas de muitos tornaramse mais sólidas e gentis outras ao contrário acabavamse aos poucos Nunca se pode saber com certeza dizia um ou outro Nas rodas de chá bocejavase incrivelmente mas nunca se espirrava para evitar qualquer suspeita Como dissemos Spalanzani desapareceu para escapar da investigação criminal relativa à introdução fraudulenta de autômatos na sociedade Coppola também desaparecera Natanael despertou como de um sonho pesado e terrível abriu os olhos e percebeu que uma indescritível sensação de prazer o percorria com um calor suave e celestial Estava na casa de seus pais Clara se havia inclinado sobre ele e não muito longe estavam a mãe e Lotar Finalmente finalmente meu amado Natanael agora você está curado da grave doença agora você é meu novamente dizia Clara do fundo de sua alma tomando Natanael pelos braços Lágrimas de alegria e de emoção saíam de seus olhos e ele disse depois de um profundo suspiro Minha minha Clara Siegmund que fielmente permanecera ao lado do amigo durante a agonia aproximouse Natanael estendeulhe a mão Meu fiel irmão você não me abandonou Todo e qualquer sinal de loucura desaparecera e logo Natanael recuperou suas forças graças aos cuidados da mãe da noiva e dos dois amigos A felicidade voltara à casa um velho tio ranzinza do qual ninguém nada esperara morreu e deixou à mãe além de uma quantia não desprezível uma pequena propriedade numa agradável região não muito distante da cidade Para lá queriam mudarse a mãe Natanael e sua Clara a qual agora queria desposar e Lotar Natanael tornarase mais carinhoso e mais amável do que nunca e só então reconheceu o espírito puro divino e esplêndido de Clara Ninguém fazia a menor alusão ao passado Quando Siegmund se despediu dele Natanael disselhe apenas Por Deus irmão Eu estava no mau caminho mas na hora exata um anjo me conduziu pela trilha iluminada E esse anjo foi Clara Mas Siegmund não permitiu que continuasse temendo que recordações amargas e placáveis pudessem renascer com brutalidade em seu espírito Chegara a época em que os quatro amigos iriam mudarse para a propriedade campestre Ao meiodia cammhavam pelas ruas da cidade Haviam comprado algumas coisas e a alta torre da prefeitura jogava sombras gigantescas sobre a praça do mercadoAh disse Clara vamos subir lá mais uma vez e olhar para as montanhas ao longe Dito e feito Ambos Natanael e Clara subiram a mãe foi com a criada para casa e Lotar sem vontade de galgar os numerosos degraus preferiu esperar embaixo E lá estavam os dois namorados de braços dados na mais alta galeria da torre olhando para as profundezas dos bosques perfumados atrás dos quais os picos das montanhas azuis erguiamse como uma cidade de gigantes Veja aquele estranho arbusto cinzento parece estar vindo em nossa direção disse Clara Automaticamente Natanael pôs a mão no bolso achou o binóculo de Coppola Dirigiuo para a planície Clara estava diante das lentes Um estremecimento convulsivo percorreu suas veias e seu pulso Pálido como a morte fitoua fixamente De repente os olhos dela girando em suas órbitas expeliram raios de fogo ele começou a uivar terrivelmente como um animal acuado começou então a saltar no ar e entre gargalhadas aterradoras gritou estridentemente Bonequinha de madeira gire bonequinha de madeira gire e com uma violência formidável pegou Clara para precipitála lá de cima mas ela com um medo desesperado da morte agarrouse com firmeza à balaustrada Lotar ouviu o alarido que fazia o furioso distinguiu os gritos angustiados de Clara e um terrível pressentimento apoderouse de seu espírito Correu para o alto da torre a porta da segunda escada estava trancada os gritos de Clara tornaramse ainda mais dilacerantes Louco de fúria e terror lançouse contra a porta que finalmente se abriu Os gritos de Clara soa vam cada vez mais fracos Socorro ajudemme ajudemme e a voz desapareceu no ar Ela morreu assassinada pelo louco exclamou Lotar A porta do terraço também estava trancada O desespero incutiulhe uma força sobrehumana e ele se jogou contra a porta arrombandoa finalmente Clara erguida pelo furibundo Natanael pairava no ar do lado de fora da balaustrada apenas com uma das mãos ainda se agarrava às gra des de ferro Rápido como um raio Lotar pegou a irmã atiroua sobre a plataforma e no mesmo instante deu um soco no alucinado com os pu nhos cerrados de forma que este cambaleou soltando sua presa de morte Lotar desceu correndo com a irmã desfalecida nos braços Ela estava salva Natanael corria pelo terraço saltava no ar e gritava Roda de fogo gire roda de fogo gire Com essa gritaria selvagem as pessoas acor reram dentre elas o advogado Coppelius que acabava de chegar à cida de estando a caminho do mercado As pessoas queriam subir e dominar o louco furioso Coppelius pôsse a rir dizendo Esperem que logo ele vai descer sozinho e como os outros olhou para cima Subitamente Natanael parou como que petrificado então se debruçou percebeu a presença de Coppelius e com um grito Ah bonitos olhos belli occhi saltou por sobre a balaustrada Enquanto Natanael com a cabeça estraçalhada jazia no chão Coppelius havia desaparecido na multidão Muitos anos depois Clara foi vista numa região remota de mãos da das com um simpático homem e diante de uma bonita casa de campo com duas saudáveis crianças brincando a seu lado Daí podese concluir que Clara finalmente encontrou a tranqüila felicidade doméstica ade quada a seu espírito sereno e alegre Felicidade que o exaltado e impetuoso Natanael nunca lhe teria oferecido fim

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ETA Hoffmann 17761822 O homem da areia Tradução de Cláudia Cavalcanti NATANAEL A LOTAR Sem dúvida estão todos preocupados por não lhes ter escrito durante tanto tempo Mamãe deve estar zangada e Clara pode estar pensando que aqui levo uma boa vida esquecendo por completo sua querida imagem angelical tão profundamente gravada em meu coração e em minha mente Mas não é assim todos os dias e a toda hora penso em vocês todos e em doces devaneios aparece a minha querida Clarinha sorrindome com seus olhos tão graciosos como de costume quando estava junto a vocês Ah mas como poderia escreverlhes com o estado de espírito tão dilacerado que vem me confundindo todos os pensamentos Algo de terrível aconteceu em minha vida Sombrios pressentimentos de um cruel e ameaçador destino estendemse sobre mim quais sombras de nuvens negras impenetráveis a qualquer benevolente raio de sol Agora devo dizerlhe o que me aconteceu Reconheço que é necessário fazelo mas só em pensar nisso escapame um riso de louco Ah meu caríssimo Lotar como farei para que de alguma forma você sinta que o que me sucedeu há alguns dias perturbou minha vida de maneira tão terrível Se ao menos você estivesse aqui poderia ver com seus próprios olhos mas tenho certeza certamente vai me considerar um supersticioso visionário Em suma o terrível acontecimento em questão de cuja fatal influência em vão esforçome por evitar consiste simplesmente em que há alguns dias exatamente no dia 30 de outubro ao meiodia um vendedor de barômetros entrou em meu quarto e me ofereceu seus instrumentos Não comprei nada e ameacei jogálo escada abaixo mas ele então saiu voluntariamente Você pode imaginar que somente circunstâncias bem particulares e marcantes de minha existência são capazes de explicar o significado desse incidente e que a pessoa desse funesto caixeiroviajante possa ter um efeito pernicioso sobre mim De fato todo sanguefrio me é necessário para com calma e paciência contarlhe detalhes de minha infância que permitirão a sua mente vivaz compreender tudo de maneira límpida e transparente Agora quando começo tenho a impressão de ouvir o seu riso e as palavras de Clara Tudo isso não passa de criancice Riam por favor riam muito de mim Peçolhes encarecidamente Mas Deus do céu Meus cabelos arrepiamse e é como se eu lhes implorasse loucamente desesperado para que riam de mim como Franz Moor fez a Daniel Vamos aos fatos A exceção da hora do almoço eu e meu irmão pouco víamos nosso pai durante o dia Ele talvez estivesse muito ocupado com os seus negócios Depois do jantar que segundo o velho costume era servido às sete horas íamos todos mamãe conosco ao gabinete de papai e nos sentávamos em tomo de uma mesa redonda Papai fumava seu tabaco e bebia um grande copo de cerveja Muitas vezes narravanos histórias maravilhosas e aquelas narrativas entusiasmavamno tanto que o seu cachimbo sempre se apagava Cabia a mim segurando um papel em chamas acendêlo novamente o que consistia no meu principal divertimento Freqüentemente também ele nos dava livros ilustrados sentavase mudo e inerte em sua poltrona e expelia espessas nuvens de fumaça de forma que todos nós ficávamos como que envoltos na névoa Em noites como essas mamãe ficava muito triste e mal soavam as nove horas falavanos E agora crianças para a cama para a cama O Homem da Areia está chegando já posso ouvir seus passos De fato todas as vezes eu ouvia passadas pesadas e lentas subindo a escada devia ser o Homem da Areia Certa vez aquele andar abafado causoume uma impressão particularmente aterradora Perguntei a mamãe enquanto ela nos levava Mamãe Quem é mesmo o malvado Homem da Areia que sempre nos separa de papai Como é ele Não existe nenhum Homem da Areia meu filho respondeu minha mãe Quando digo que o Homem da Areia está chegando isso quer dizer apenas que vocês estão com sono e não conseguem manter os olhos abertos como se alguém tivesse jogado areia neles A resposta de mamãe não me satisfez em meu espírito infantil desenvolveuse claramente a idéia de que mamãe só negava a existência do Homem da Areia para que não ficássemos amedrontados pois eu ouvia quando ele subia pela escada Curioso em saber mais sobre aquele Homem da Areia e sua relação com crianças como nós finalmente perguntei à velha criada que cuidava de minha irmã sobre que tipo de homem era aquele o Homem da Areia Natanaelzinho respondeu ela você então não sabe É um homem malvado que aparece para as crianças quando elas não querem ir dormir e jogalhes punhados de areia nos olhos de forma que estes saltam do rosto sangrando depois ele os mergulha num saco e carregaos para a Lua para alimentar os seus rebentos Eles ficam lá empoleirados em seu ninho e com o bico recurvado como o das corujas bicam os olhos das criancinhas travessas Aterrorizado a partir de então considerei o Homem da Areia sob um aspecto noturno À noite bastava ouvir o ruído de passos na escada para tremer de medo e horror Mamãe só conseguia arrancar de mim o grito entre lágrimas O Homem da Areia O Homem da Areia depois eu corria para o quarto e durante a noite toda atormentavame a temível imagem do Homem da Areia Eu já estava crescido o suficiente para compreender que aquela história contada pela amaseca sobre o Homem da Areia e o seu ninho com crianças na Lua realmente não podia estar lá muito correta todavia o Homem da Areia continuava sendo para mim um terrível fantasma e o terror me arrebatava quando o ouvia não apenas subir as escadas como também abrir e entrar violentamente no gabinete de meu pai As vezes passava muito tempo sem aparecer depois vinha muitas vezes consecutivas Isso durou anos e não pude me acostumar à sinistra assombração a figura aterrorizante do Homem da Areia não saía da minha cabeça Suas relações com meu pai passaram a ocupar cada vez mais a minha imaginação e um medo insuperável impediame de interrogálo sobre o assunto mas com os anos sedimentouse e germinou em mim a vontade de investigar o mistério de ver o fabuloso Homem da Areia Ele me conduzira para o caminho do maravilhoso do romanesco que com muita facilidade instalase na alma infantil Nada me agradava mais do que ouvir ou ler aterrorizantes histórias de duendes bruxas e anões Mas em primeiro lugar estava sempre o Homem da Areia que eu desenhava com giz ou carvão da forma mais estranha e abominável em mesas armários e paredes Quando fiz dez anos minha mãe mudoume do quarto de crianças para um pequeno aposento que dava para um corredor não muito distante do gabinete de papai Mal batiam as nove horas e ouvíamos o desconhecido entrar éramos obrigados a nos retirar rapidamente Em meu quartinho percebia quando ele entrava no gabinete de papai e logo em seguida tinha a impressão de que se espalhava pela casa um vapor suave e de raro odor Com minha curiosidade cada vez mais ardia o desejo de com coragem e determinação travar conhecimento com o Homem da Areia Muitas vezes quando mamãe já havia passado eu saía rapidamente do quartinho para o corredor mas nada podia escutar pois o Homem da Areia sempre havia ultrapassado a porta quando eu chegava ao local de onde ele poderia ser visto Levado por um irresistível impulso decidi esconderme no gabinete de papai e esperar o Homem da Areia Certa noite pelo silêncio de papai pela tristeza de mamãe percebi ver que o Homem da Areia viria Dei como pretexto um grande cansaço deixei a sala antes das nove e me escondi bem junto à porta do gabinete num cantinho A porta da casa rangeu e passos lentos pesados e ruidosos atravessaram o corredor em direção à escada Mamãe passou por mim apressadamente com meus irmãos Suavemente bem suavemente abri a porta do aposento de meu pai Como de costume ele estava sentado com as costas voltadas para a porta calado e imóvel não percebeu minha presença e rapidamente entrei e me escondi atrás da cortina que cobria um armário aberto ao lado da porta onde estavam penduradas roupas de meu pai Os passos aproximaramse mais e mais Do lado de fora ouviamse estranhas tosses pigarros e um enigmático murmúrio Meu coração pulsava forte de medo e ansiedade Perto bem perto da porta um passo mais nítido um golpe violento no trinco e a porta se abre com violência Forçandome a tomar coragem ponho cuidadosamente a cabeça para fora O Homem da Areia está no meio do gabinete e diante de meu pai o brilho claro das velas ilumina o seu rosto O Homem da Areia o terrível Homem da Areia é o velho advogado Coppelius que às vezes almoça em nossa casa Porém a mais aterrorizante figura não me teria provocado tanto horror quanto aquele Coppelius Imagine um homem grande de ombros largos com uma cabeça disforme e grande rosto amarelecido sobrancelhas fartas e grisalhas sob as quais faiscava um par de olhos de gato esverdeados e penetrantes e um nariz gigantesco sobre o lábio superior A bocarra retorciase com freqüência num riso malicioso tomando visíveis manchas vermelhas nas bochechas Um chiado estranho atravessava seus dentes cerrados Coppelius sempre aparecia num sobretudo cinzento de corte antigo com o colete e a calça semelhantes mas de meias pretas e sapatos com pequenas fivelas enfeitadas com pedraria A pequena peruca mal lhe cobria o cocuruto dois cachos postiços estavam colados acima das grandes e vermelhas orelhas e um grande coque afastavase da nuca de forma que se via a fivela prateada que fechava o colarinho pregueado A figura no conjunto era medonha e abjeta mas para nós crianças o que nos chocava mais eram suas grandes mãos ossudas e peludas tanto que evitávamos pegar no que tocavam Ele notara essa repugnância e então se divertia em bolinar com as mãos sob esse ou aquele pretexto um pedaço de bolo ou uma fruta que a boa mamãe deixara furtivamente em nosso prato Nós com lágrimas nos olhos não conseguíamos mais desfrutar por nojo e aversão as gulodices antes destinadas ao nosso prazer A mesma coisa ele fazia em dias de festa quando papai nos servia um pequeno cálice de vinho doce Rapidamente ele passava a mão em sua borda ou levava o cálice aos lábios azulados rindo diabolicamente quando percebia que nos era permitido manifestar nossa irritação baixinho aos soluços Tinha por hábito nos chamar de pequenas bestas Não podíamos abrir a boca em sua presença e amaldiçoávamos aquele homem feio e hostil que conseguia estragar propositadamente a menor de nossas alegrias Mamãe como nós parecia odiar o repugnante Coppelius pois quando ele aparecia sua jovialidade seu jeito de ser alegre e despreocupado transformavase numa gravidade triste e sombria Papai comportava se como se fosse ele um ser superior com cujos maus costumes deviase ter paciência e conservar bom humor Bastava uma sutil sugestão sua e preparavamse seus pratos prediletos que eram acompanhados de vinhos raros abertos em sua homenagem Quando vi o tal Coppelius a verdade se me revelou terrível e ameaçadora ninguém senão ele poderia ser o Homem da Areia Mas o Homem da Areia não era mais para mim aquele espantalho das histórias da carochinha que vai arrancar os olhos das criancinhas para servir de alimento a sua ninhada de corujas na Lua Não Era um monstro fantasmagórico que carregava consigo aonde fosse aflição miséria e ruína eternas Eu estava enfeitiçado Frente ao perigo de ser descoberto e como eu pensava duramente castigado continuei ali ouvindo tudo com a cabeça para fora da cortina Meu pai recebeu Coppelius cerimoniosamente Ao trabalho exclamou este com uma voz rouca e rascante desembaraçandose do sobretudo Calma e sombriamente papai tirou seu roupão e ambos vestiram longas túnicas negras Não percebi de onde as haviam tirado Meu pai abriu as portas de um armário e então constatei que aquilo que eu sempre pensara ser um armário era na verdade um nicho profundo onde estava um pequeno fogão Coppelius aproximouse e uma chama azul ardeu Havia ali todo tipo de aparelhos estranhos Ah Deus Ao inclinarse em direção ao fogo meu pai parecia outro Uma dor cruel e convulsiva parecia metamorfosear seus traços na mais horrenda e repugnante imagem diabólica Ele se assemelhava a Coppelius Este brandia tenazes incandescentes e com elas retirava da fumaça densa massas claras e cintilantes que depois martelava com violência Tive a sensação de que rostos humanos tomaramse visíveis a sua volta mas não tinham olhos ao invés deles profundas e horrendas cavidades negras Que venham os olhos que venham os olhos gritou Coppelius com uma voz surda e ameaçadora Completamente aterrado soltei um berro e saindo de meu esconderijo caí no chão Pequena besta Pequena besta rosnou ele rangendo os dentes Subitamente me ergueu e jogoume sobre o fogão de maneira que as chamas começaram a chamuscar meu cabelo Agora temos olhos olhos um lindo par de olhos infantis Foi o que murmurou Coppelius pegando com as mãos um punhado de brasas incandescentes para atirar em meus olhos enquanto meu pai implorava erguendo as mãos e gritando Mestre Mestre Deixe os olhos de meu Natanael deixeos com ele Coppelius gargalhou estridentemente Que o rapazinho conserve os seus olhos para choramingar sua sina pelo mundo Mas agora vamos observar atentamente o mecanismo das mãos e dos pés Com isso pegoume com tanta violência que minhas articulações estalaram girando minhas mãos e meus pés e recolocando os ora aqui ora acolá Não ficam bem em lugar nenhum É melhor deixar como estavam O velho lá de cima entendia bem do riscado Assim Coppelius silvava e ciciava mas tudo a minha volta tomouse negro escuro uma súbita convulsão percorreu meus nervos e ossos eu não sentia mais nada Um sopro suave e morno passou pelo meu rosto e despertei como de um sono de morte Mamãe estava inclinada sobre mim O Homem da Areia ainda está aí balbuciei Não filhinho já foi há muito muito tempo e não lhe fará mal Assim falou mamãe beijando e acariciando o filho predileto já restabelecido Por que fatigarlhe tanto meu caro Lotar contandolhe todos esses detalhes se tanta coisa importante ainda tenho a dizer Em suma fui descoberto enquanto espiava e cruelmente maltratado por Coppelius Medo e susto causaramme uma febre escaldante e fiquei doente por várias semanas O Homem da Areia ainda está aí Estas foram as minhas primeiras palavras concatenadas e o sinal de minha recuperação de minha salvação Devo contarlhe ainda o mais terrível momento de meus anos de infância então ficará convencido de que não é culpa de meus olhos se agora tudo me parece descolorido mas que realmente uma fatalidade cobriu minha vida com um denso véu de nuvens que só com minha morte talvez se dissipará Coppelius não apareceu mais Diziase que deixara a cidade Mais ou menos um ano depois estávamos sentados à noite em torno da mesa redonda segundo o velho e imutável costume Papai estava muito alegre e contava histórias divertidas das viagens que fizera na juventude Foi quando de repente ouvimos às nove horas os gonzos da porta soar e passos lentos e pesados como ferro avançaram em direção à escada É Coppelius disse minha mãe empalidecendo Sim é Coppelius repetiu meu pai com voz frágil e hesitante Lágrimas rolaram dos olhos de minha mãe Meu amigo meu amigo exclamou ela precisa ser assim Pela última vez ele respondeu pela última vez ele virá aqui eu juro Agora vá vá com as crianças Vão para a cama Boa noite Eu estava como que petrificado minha respiração vacilava Vendome imóvel mamãe pegoume pelo braço Venha Natanael venha Deixeime levar e entrei no meu quarto Acalmese acalmese vou pôlo na cama Durma durma pediu minha mãe Porém torturado pela angústia e presa de profunda inquietação não consegui fechar os olhos O odioso e repugnante Coppelius surgia a minha frente com olhos faiscantes e sorria hipocritamente Em vão tentei livrarme de sua imagem Já deveria ser meianoite quando se ouviu um terrível barulho como se uma artilharia houvesse começado a disparar Toda a casa estremeceu perto da porta de meu quarto passaram ruídos e rumores e então a porta da frente bateu ruidosamente É Coppelius gritei assustado e saltei da cama Então ouvi um lamento dilacerante e inconsolável e precipiteime para o gabinete de meu pai a porta estava aberta um vapor sufocante se fez sentir enquanto a criada gritava Ah patrão ah patrão Diante do fogão fumegante no chão encontravase meu pai morto com o rosto terrivelmente desfigurado e queimado e ao seu redor choravam e gemiam minhas irmãs mamãe a seu lado desmaiada Coppelius maldito Satã você matou meu pai foi assim que gritei perdendo os sentidos Dois dias depois quando foi colocado no caixão seus traços voltaram a ser suaves e tranqüilos como em vida O que foi um consolo pois imaginara em meu espírito que o seu pacto com o diabólico Coppelius poderia condenálo à danação eterna A explosão havia acordado os vizinhos O acontecimento tornouse público e chegou às autoridades que queriam intimar Coppelius como responsável pelo fato Este porém havia desaparecido sem deixar pistas Se lhe disser caro amigo que aquele vendedor de barômetros era justamente o maldito Coppelius você compreenderá por que interpreto sua hostil aparição como presságio de uma terrível desgraça Usava outras roupas mas a figura de Coppelius e os traços do rosto estão de tal modo impregnados em minha memória que não pude deixar de reconhecêlo Além disso ele nem ao menos trocou de nome Fazse passar agora como ouvi dizer por um mecânico piemontês e se denomina Giuseppe Coppola Estou decidido a enfrentálo e vingar a morte de meu pai aconteça o que acontecer Não conte nada a mamãe sobre a aparição desse monstro cruel Dê lembranças a minha encantadora Clara escreverei a ela com mais calma Saudações etc etc CLARA A NATANAEL É verdade que você não me escreve há muito tempo mas mesmo assim acredito que me carrega no coração e no espírito Pois com certeza você estava pensando em mim quando pretendendo destinar sua última carta a meu irmão Lotar endereçoua a mim Com muita alegria abri o envelope e só então percebi o equívoco às primeiras palavras Ah meu caríssimo Lotar Não deveria ter continuado a ler entregando a carta a meu irmão Às vezes você brincava comigo acusandome de possuir um temperamento tão calmo e ponderadamente feminino que se a casa desabasse eu agiria como aquela mulher que antes da fuga rápida ainda arrumou as cortinas da janela Entretanto posso assegurarlhe que o início de sua carta me abalou profundamente Mal pude respirar meus olhos turvaramse Ah meu querido Natanael o que de mais cruel poderia ter acontecido em sua vida Separarme de você nunca mais voltar a vêlo a idéia atravessou minha cabeça como um golpe de punhal em brasa Li reli Sua descrição do repugnante Coppelius é aterradora Só agora soube como o seu bom e velho pai teve uma morte tão terrível e violenta Meu irmão Lotar a quem entreguei o que lhe era de direito procurou acalmarme mas quase nada conseguiu O fatal vendedor de barômetros Giuseppe Coppola me perseguia sem cessar e tenho até vergonha em confessar conseguiu perturbar até meu sono normalmente profundo com toda espécie de sonhos estranhos Mas logo no dia seguinte vi as coisas sob um aspecto mais natural Não me leve a mal portanto meu querido se Lotar lhe disser que eu apesar de seu estranho pressentimento de que Coppelius irá prejudicálo estou tão serena e despreocupada como sempre Com toda a franqueza quero confessarlhe que a meu ver tudo de terrível e assustador de que você fala aconteceu apenas na sua imaginação e que o mundo exterior real teve pouca participação nisso tudo O velho Coppelius era sem dúvida pouco atraente mas o fato de odiar crianças é que despertou em vocês essa profunda aversão por sua pessoa Naturalmente em sua alma infantil o terrível Homem da Areia dos contos da carochinha associouse ao velho Coppelius que permaneceu para você acredite ou não no Homem da Areia um monstro fantasmagórico perigoso principalmente para crianças As práticas sinistras com o seu pai à noite não eram nada senão experiências alquímicas secre tas com as quais sua mãe se afligia já que certamente muito dinheiro era desperdiçado além disso como parece acontecer com quem pratica tais experiências de laboratório o espírito de seu pai desviavase da família já que se concentrava por inteiro na busca ilusória de um saber supremo Seu pai com certeza por um descuido qualquer causou a própria morte e Coppelius não poderia ser acusado Você acreditará em mim se eu disser que ontem perguntei a um farmacêutico experiente meu vizinho se era possível tal explosão repentina e fatal Ele disse Sim claro e descreveume a sua maneira detalhada e morosa como isso poderia ocorrer citando nomes que de tão estranhos não fui capaz de guardar Agora você certamente está irritado com sua Clara e dirá Nesse espírito frio não penetra sequer um raio do Misterioso que muitas vezes envolve os homens com braços invisíveis ela contempla apenas a superfície colorida do mundo e alegrase como uma ingênua criancinha com a fruta de brilho dourado em cujo interior escondese veneno mortal Ah meu bemamado Natanael pois você não acredita que também os espíritos tranqüilos despreocupados e serenos podem abrigar o pressentimento de uma força obscura que almeja apoderarse de nossa consciência Mas perdoeme se eu simplória moça que sou atrevome a insinuar de alguma maneira o que na verdade penso sobre essa espécie de combate interior Afinal quase não encontro as palavras certas e talvez você zombe de mim não porque pense algo de muito tolo mas porque o expresso de maneira tão desajeitada Se existe uma força obscura que hostil e traiçoeira tece em torno de nós um fio com o qual nos agarra e arrasta através de um caminho pérfido e destruidor por onde normalmente não passamos se existe tal força ela então deve assimilarse a nós mesmos tornandose por assim dizer parte de nossa essência pois só assim acreditaríamos nela e lhe daríamos lugar em nosso coração para realizar sua obra secreta Se tivermos a mente suficientemente fortalecida por uma vida serena para reconhecermos sempre enquanto tais as influências estranhas e hostis e seguirmos com passos tranqüilos o caminho ao qual nossa inclinação ou vocação nos apontou então essa força sinistra sucumbirá em seus vãos esforços para nos iludir É também certo acrescenta Lotar que se nos entregarmos a essas forças obscuras nós mesmos produziremos o princípio devorador que nos consome Assim seríamos nós mesmos que atiçamos o espírito que parece falar através dessas formas exatamente como nossa loucura as faz imaginar É o fantasma de nosso próprio ser cuja estreita ligação e profunda influência sobre o nosso espírito mergulhamnos no inferno ou arrebatamnos ao céu Você pode observar meu querido Natanael que nós eu e meu irmão Lotar conversamos longamente a respeito de forças e poderes obscuros assunto que agora depois de ter escrito o essencial e não sem dificuldades pareceme bastante profundo Não entendo muito bem as últimas palavras de Lotar mas presumo o que ele pretendia dizer e sinto que está certo Peçolhe que esqueça o horroroso advogado Coppelius e o vendedor de barômetros Giuseppe Coppola Convençase de que essas figuras estranhas não têm poder sobre você apenas a crença na força hostil delas pode de fato fazêla hostil a você Se cada linha de sua carta não expressasse a mais profunda agitação do espírito se o seu estado não me afligisse no fundo dalma eu poderia afinal zombar do seu Homem da Areia e do vendedor de barômetros Tranqüilizese por favor Decidi que serei para você uma espécie de espírito protetor e espantarei com uma gargalhada o hediondo Coppelius se ele se atrever a introduzirse em seus sonhos Não tenho medo algum dele e de suas mãos feias advogado ou Homem da Areia ele não irá estragar minhas iguarias tampouco lançar areia em meus olhos Eternamente meu bemamado Natanael etc etc etc NATANAEL A LOTAR Foi muito desagradável para mim que em função de minha própria negligência e distração Clara recentemente tenha aberto e lido minha carta dirigida a você Ela me escreveu uma carta bastante grave e filosófica na qual demonstra pormenorizadamente que Coppelius e Coppola só existem em minha mente e são fantasmas de meu eu que se pulveri zarão no momento em que reconhecêlos como tais Aliás é difícil acreditar que esse espírito que muitas vezes brilha como um sonho bom naqueles olhos claros de criança encantadores e sorridentes possa fazer distinções teóricas dignas de mestre Ela se refere a você Vocês falaram sobre mim Talvez você lhe tenha ministrado aulas de lógica para que ela aprendesse a ordenar e distinguir tudo muito bem Renuncie a isso De resto é praticamente certo que o vendedor de barômetros Coppola não seja o velho advogado Coppelius Tenho aulas com um professor de física recémchegado à cidade que tem o mesmo nome do célebre naturalista Spalanzani e é também de origem italiana Ele conhece o Coppola há muitos anos e além disso vêse por sua pronúncia que se trata realmente de um piemontês Coppelius era alemão mas não me parece que fosse legítimo Não estou inteiramente tranqüilizado Você e Clara podem me considerar um sombrio visionário mas não consigo me livrar da impressão que o maldito rosto de Coppelius produziu em mim Fico feliz que ele tenha deixado a cidade como me informou Spalanzani Esse professor é um tipo esquisito Um homenzinho arredondado o rosto de salientes bochechas nariz afilado lábios carnudos olhos pequenos e penetrantes Melhor que qualquer descrição porém é vêlo num retrato de Cagliostro feito por Chodowiecki Daniel Nikolaus Chodowieck 17261801 pintor e gravador alemão num almanaque berlinense qualquer Spalanzani parecese com ele Recentemente subindo as escadas percebi que uma cortina que normalmente permanece bem fechada sobre uma porta de vidro estava um pouco aberta Eu mesmo não sei o que me levou à curiosidade de espiar através dela Uma mulher alta e muito magra esplendidamente vestida estava sentada no quarto diante de uma mesinha sobre a qual pousara os braços com as mãos cruzadas Estava sentada diante da porta de forma que pude ver com clareza o seu belo rosto angelical Ela pareceu não me notar e seu olhar tinha algo de fixo diria até que não via nada como se ela dormisse de olhos abertos Aquilo me pareceu muito desagradável e precipiteime silenciosamente em direção ao anfiteatro que fica ao lado Mais tarde soube que a figura que eu vira era a filha de Spalanzani Olímpia que ele mantém reclusa por motivos singulares e suspeitos de maneira que a ninguém é permitido aproximarse dela Talvez realmente haja algo de estranho com ela talvez seja demente ou coisa parecida Por que lhe escrevo tudo isto Teria sido melhor narrarlhe tudo pessoalmente e com detalhes Saiba que em duas semanas estarei com vocês Preciso rever meu doce anjo minha querida Clara Então se dissipará essa sensação que devo confessar quis apoderarse de mim depois daquela judiciosa carta que me escreveu É por isso que hoje não lhe escreverei Muitas lembranças etc etc etc Não se poderia inventar nada de mais estranho e singular do que o ocorrido com o meu pobre amigo o jovem estudante Natanael e que agora decido contarlhe caro leitor Alguma vez benevolente leitor você já vivenciou algo que houvesse ocupado todo o seu peito mente e pensamentos deixando de lado o resto Quem nunca experimentou a sensação de uma fervura interna que incandescente percorre o sangue nas veias colorindo o rosto de um encarnado sombrio Seu olhar então tornase estranho como se você quisesse apreender no espaço vazio formas invisíveis a seus olhos e as palavras se diluem em sombrios soluços Em vão os amigos lhe perguntam O que está acontecendo meu caro O que tem honrado amigo E então você descreveria sua sensação íntima em todas as suas cores ardentes sombras e luzes lutando inutilmente para encontrar as palavras que pudessem refletir seu pensamento Mas era como se você precisasse resumir logo na primeira palavra tudo o que de maravilhoso esplêndido terrível divertido e cruel lhe aconteceu causando a todos a sensação de um choque elétrico Mas cada palavra cada sílaba tudo lhe pareceria sem cor frio e morto Você procuraria e procuraria gaguejaria e balbuciaria e as tímidas perguntas dos amigos arrefeceriam como um sopro de vento gelado o seu ardor interior até que este se apagasse Mas se como um pintor destemido esboçasse você com poucos e ousados traços o contorno de sua pintura interior então facilmente você passaria a colorila gradualmente e o vivo tumulto de figuras multiformes arrebataria seus amigos e eles como você se veriam nesse quadro criado por sua imaginação Devo confessar caro leitor que ninguém me pediu que contasse a história do jovem Natanael mas você bem sabe que pertenço à particular espécie de autores que carregando consigo algo como o que acabei de descrever tem a sensação de que todos que se aproximam e ainda o mundo inteiro perguntam O que aconteceu Conte meu caro Foi essa força que me arrastou a contar o fatal destino que assaltou a vida de Natanael O maravilhoso e estranho dessa aventura arrebatou minha alma e eis por que caro leitor eu precisava despertar em você a inclinação para o fantástico o que não é nada fácil e me esforçar para começar a história de Natanael de forma significativa original surpreendente Era uma vez o mais belo começo para qualquer história mas muito tímido Na pequena cidade do interior S morava um pouco melhor pelo menos prepara para o clímax Ou logo medias in res Vá para o diabo exclamou o estudante Natanael lançando olhares ferozes quando o vendedor de barômetros Giuseppe Coppola na verdade eu começara assim quando acreditei sentir nos olhares ferozes do estudante Natanael algo de burlesco mas a história porém nada tem de divertido Não me ocorreu nenhum discurso que pudesse pelo menos refletir o brilho colorido do quadro que eu elaborara no espírito Decidi então simplesmente não começar Aceite portanto caro leitor três cartas que o amigo Lotar gentilmente me cedeu como o esboço da imagem à qual a partir de agora me esforçarei para dar mais e mais cor Talvez eu consiga rabiscar algumas figuras como um bom pintor de retratos fazendo com que você ache parecido sem conhecer o original sim como se você tivesse a sensação de ter visto a pessoa muitas vezes com os próprios olhos Talvez então o leitor acredite que nada é mais fantástico e louco do que a vida real e que o escritor só poderia apreender tudo isso como um reflexo confuso de um espelho mal polido Para que fique mais claro o que é preciso saber logo de início convém acrescentar às cartas precedentes que logo em seguida à morte do pai de Natanael Clara e Lotar filhos de um parente afastado também falecido foram acolhidos pela mãe de Natanael Clara e Natanael cultivaram uma grande afeição um pelo outro contra a qual ninguém apresentou qualquer objeção assim estavam noivos quando Natanael deixou a cidade para continuar seus estudos em G É lá que se encontra ao escrever a última carta e é lá que assiste às aulas do famoso professor de física Spalanzani Agora eu poderia continuar a narração tranqüilamente mas neste momento a imagem de Clara está tão viva diante de mim que não consigo desviar os olhos o que sempre acontecia quando ela me fitava com um sorriso tão encantador Clara não poderia ser considerada bonita era o que diziam todos que entendiam de beleza por ofício Mas os arquitetos elogiavam as proporções delicadas de seu corpo os pintores viam algo de casto na forma de sua nuca ombros e colo mas apaixonavamse era pelos maravilhosos cabelos que lembravam a Madalena de Correggio e falavam muito das tonalidades de sua tez digna de um Battoni Referência a um quadro do pintor barroco Pompeo Battoni 17081787 Um deles de muita imaginação estranhamente comparou os olhos de Clara a um lago de Ruisdaël Jacob van Tuisdaeël 16281682 onde se refletem o céu claro de raro azul bosques e campos floridos a rica paisagem de uma vida colorida e serena Poetas e artistas porém iam mais longe e falavam Que lago que nada que espelho que nada Será que podemos olhar para a moça sem que seus olhos irradiem maravilhosos e divinos cantos e sons que penetram em nossa alma de forma que tudo se toma vivo e animado Se não cantamos nada de autêntico então nada de autêntico existe em nós e isto lemos nitidamente no fino sorriso em torno dos lábios de Clara quando nos atrevemos a tartamudearlhe algo que tem a pretensão de ser música ou poesia embora apenas alguns sons estejam sendo embaralhados De fato era assim Clara tinha a vigorosa fantasia de uma criança alegre e despreocupada um coração profundamente feminino e doce uma inteligência penetrante e lúcida Os espíritos levianos e presunçosos tinham nela uma difícil adversária pois sem falar muito o que aliás condizia com sua natureza silenciosa aquele olhar nítido aquele sorriso refinado e irônico diziamlhes Queridos amigos Como podem imaginar que eu considere essas sombras difusas como figuras reais com vida e calor Por esse motivo Clara era vista por muitos como fria insensível e prosaica Mas outros que conseguem captar a vida com sua transparente profundidade gostavam muito da moça cheia de vida sensata e com espírito infantil No entanto ninguém a amava mais que Natanael que se dedicava então com força e entusiasmo ao mundo da ciência e da arte Clara amavao de todo o coração as primeiras sombras surgiram no momento que a deixou Qual não foi sua alegria ao voar em seus braços quando ele conforme dizia na última carta a Lotar realmente chegou à cidade natal e entrou na sala da casa de sua mãe Tudo aconteceu como Natanael esperava pois no momento em que reviu Clara não pensou nem no advogado Coppelius nem na racional carta de Clara Desaparecera qualquer irritação Entretanto Natanael tinha razão ao escrever a seu amigo Lotar que a repugnante figura do vendedor de barômetros Coppola de fato entrara de forma hostil em sua vida Todos sentiram isso já que logo nos primeiros dias Natanael mostrarase diferente do que habitualmente era Mergulhou em divagações sombrias e logo começou a agir de modo estra nho como ninguém vira antes Tudo toda a vida era para ele sonho e pressentimento falava sempre que toda pessoa julgandose livre só fazia servir a poderes obscuros num jogo cruel contra os quais é inútil revoltarse deviase submeter humildemente àquilo que designara o destino Chegou a afirmar que achava tolice considerar a criação na arte e na ciência um ato de vontade pois o entusiasmo imprescindível para criar não parte da alma sendo o efeito de um princípio superior exterior a nós Para a sensata Clara aquelas exaltações místicas eram altamente desagradáveis mas parecia inútil tentar contradizêlas Só quando Natanael demonstrava que Coppelius era o princípio do Mal que momentaneamente se apoderara dele ao espreitar atrás da cortina e que esse demônio repugnante iria perturbar terrivelmente a sua felicidade amorosa é que Clara ficava muito séria e dizialhe Sim Natanael você tem razão Coppelius é um princípio maligno e hostil ele pode provocar coisas terríveis como uma força diabólica que penetrou em sua vida mas isso apenas se você não o banir de seu espírito Enquanto acreditar nele ele exitirá e agirá a sua credulidade é a força dele Natanael um dia irritado por Clara insistir em atribuir a existência do demônio apenas a seu espírito fraco pôsse então a discursar sobre todos os ensinamentos místicos a respeito de demônios e forças cruéis Desgostosa Clara pôs fim à conversa passando a falar de coisas sem maior importância para despeito de Natanael Ele acreditava que espíritos frios e pouco receptivos não estão aptos a compreender mistérios tão profundos sem se dar conta de que com isso considerava Clara uma dessas naturezas inferiores embora não desistisse de tentar iniciála naqueles mistérios De manhã cedo quando ela o ajudava a preparar o café ele vinha para o seu lado e começava a ler diversas passagens de seus livros místicos Mas querido Natanael comentou Clara depois de uns instantes de atenção se eu dissesse que você é o princípio do Mal que tem efeitos hostis sobre o meu café Pois se eu como você quer deixasse tudo de lado e durante sua conferência o olhasse nos olhos o café acabaria por derramar no fogo e então ninguém teria café da manhã Natanael fechou o livro com violência e furioso foi para o seu quarto Outrora ele alimentara um talento especial para a composição de histórias encantadoras e graciosas as quais Clara ouvia com o maior prazer agora seus textos eram sombrios incompreensíveis disformes de modo que mesmo quando Clara não o dizia ele mesmo sentia que eles pouco lhe haviam interessado Nada era para Clara pior do que o tédio em seu olhar e em suas palavras expressavase uma invencível sonolência mental Ora as composições de Natanael eram de fato entediantes Seu desgosto para com o espírito frio e prosaico de Clara aumentou e esta não podia superar a sua irritação com o sombrio obscuro e entediante misticismo de Natanael e sem perceber o fato ambos se distanciavam cada vez mais um do outro A figura do hediondo Coppelius como confessava o próprio Natanael empalidecera em sua imaginação e às vezes muito lhe custava revestilo de cores vivas em seus poemas onde aparecia como um terrível espantalho Um dia para completar ocorreulhe que aquele sombrio pressentimento de que Coppelius iria perturbar a sua felicidade amorosa poderia ser matéria de um poema Representou então a si e a Clara ligados por um amor fiel Mas de tempos em tempos era como se uma mão negra interviesse em suas vidas subtraindolhes qualquer espécie de alegria Finalmente quando se encontravam diante do altar aparecia o terrível Coppelius e tocava os encantadores olhos de Clara que saltavam no peito de Natanael como faíscas sangrentas chamuscando e ardendo Coppelius apoderavase dele e jogavao num círculo de fogo em chamas que girava com a rapidez de uma tempestade e o levava para longe zunindo e bramindo Era o rugido de um furacão que chicoteava irado as espumantes ondas do mar que se erguiam como gigantes negros de cabeças brancas numa luta furiosa Mas através desse rugido selvagem ele ouvia a voz de Clara Será que você pode me ver Coppelius o enganou não foram os meus olhos que queimaram em seu peito mas gotas ardentes do sangue de seu próprio coração tenho os meus olhos olhe para mim Natanael pensava É Clara e serei dela eternamente Esse pensamento entrava então de forma tão violenta no círculo de fogo que ele se detinha e no abismo negro o estrondo perdiase num som abafado Natanael olhou nos olhos da noiva mas era a morte que o contemplava calmamente nos olhos de Clara Enquanto Natanael escrevia esse poema estava muito calmo e circunspecto burilando e melhorando cada verso e como se submetera ao incômodo da métrica não descansou até que tudo soasse agradável e perfeito Quando porém finalmente terminou e leu o poema em voz alta um horror e terror selvagem o assaltaram fazendo com que excla masse De quem é essa voz medonha Mas logo em seguida aquilo lhe pareceu um poema muito bemsucedido e acreditou que conseguiria inflamar o frio espírito de Clara embora não percebesse com nitidez por que deveria inflamála e por que afinal amedrontála com imagens aterradoras que profetizavam um destino cruel destruidor de seu amor Estavam os dois sentados no pequeno jardim da casa Clara estava muito alegre pois Natanael já há três dias durante os quais escrevera seu poema não a torturava com seus sonhos e pressentimentos Como antes voltara a conversar com animação e entusiasmo sobre coisas divertidas fazendo Clara comentar Agora o tenho de volta por inteiro Viu como expulsamos o horroroso Coppelius Nesse instante Natanael se lembrou de que trazia o poema no bolso e disse que gostaria de declamálo De imediato puxou as folhas e começou a ler Clara supondo como de costume algo entediante resignouse e começou a tricotar tranqüilamente Mas à medida que as sombrias nuvens tornavamse cada vez mais negras ela abaixou a meia que tricotava e fitou imóvel os olhos de Natanael Este continuou o seu poema sem interrupções seu rosto avermelharase com o fogo interior lágrimas rolaram de seus olhos Finalmente ao terminar gemeu de profundo cansaço pegou a mão de Clara e suspirou como se sucumbido a uma dor inconsolável Ah Clara Clara Clara apertouo docemente contra o seio e disselhe em voz baixa mas lenta e seriamente Natanael meu amado Natanael Jogue ao fogo essa história louca absurda delirante Indignado Natanael levantouse abruptamente e gritou repelindo Clara Maldito autômato sem vida Saiu correndo enquanto Clara profundamente ferida chorava com amargura Ah ele nunca me amou pois não consegue me entender dizia em voz alta aos soluços Lotar entrou no caramanchão Clara teve de narrarlhe o ocorrido ele amava sua irmã de todo o coração e cada palavra de sua queixa caíalhe como uma brasa no coração de maneira que a predisposição que há muito nutria contra Natanael e seus devaneios ardeu numa fúria selvagem Correu até ele e acusouo com pesadas palavras pelo comportamento absurdo com a amada irmã às quais Natanael revidou com a mesma fúria Um janota louco e delirante foi revidado por um sujeito miserável e vulgar O duelo era inevitável Decidiram confrontarse na manhã seguinte atrás do jardim com floretes bem afiados segundo um costume acadêmico Calados e circunspectos rondavam o local Clara escutara a violenta discussão e percebera quando ao alvorecer o mestre de esgrima trouxera os floretes Ela pressentia o que deveria acontecer Ao chegarem ao local da luta Lotar e Natanael sombriamente silenciosos tiraram os sobretudos Com os olhos faiscantes e sedentos de luta já iam lançarse um sobre o outro quando Clara precipitouse pela porta do jardim Soluçando gritava Vocês são homens selvagens e terríveis Matemme logo antes de se lançarem um sobre o outro pois como poderei viver neste mundo se o amado matou o irmão ou o irmão o amado Lotar abaixou a arma e olhou calado para o chão mas no coração de Natanael renasceu melancolicamente todo o amor que sentira pela encantadora Clara nos mais belos dias de sua feliz juventude A arma assassina caiu de suas mãos e ele aos pés de Clara Será que um dia poderá perdoarme minha única minha amada Clara Pode perdoarme querido irmão Lotar Lotar comoveuse com a profunda dor do amigo sob uma torrente de lágrimas os três reconciliados abraçaramse e juraram permanecer unidos em amor e fidelidade eternos Natanael teve a sensação de que um peso que o empurrava para baixo fora retirado de seus ombros sim como se tivesse salvo toda a sua existência resistindo à força sombria que ameaçara destruílo Ainda passou três felizes dias junto a seus entes queridos mas depois voltou a G onde deveria ficar mais um ano depois do qual voltaria definitivamente para sua cidade natal Tudo o que dizia respeito a Coppelius foi omitido à mãe de Natanael todos sabiam que ela não conseguia pensar nele sem horror já que como o filho culpavao pela morte do marido Qual não foi a surpresa de Natanael ao chegar em casa e encontrar tudo queimado não restando nada além de um monte de entulhos do qual se erguiam quatro paredes nuas e empretecidas Embora o fogo tenha surgido no laboratório do farmacêutico que morava no andar inferior e se alastrado de baixo para cima os audazes e corajosos amigos de Natanael conseguiram entrar a tempo em seu quarto no andar superior e salvar seus livros manuscritos e instrumentos Tudo isso fora levado intacto para outra casa onde estava reservado um quarto no qual Natanael se instalou imediatamente Sem estranhar muito observou que o professor Spalanzani morava em frente tampouco deu importância ao fato de que de sua janela podia olhar diretamente para o quarto onde freqüentemente Olímpia sentavase solitária de modo que agora podia nitidamente contemplar sua silhueta ainda que as feições do rosto permanecessem indistintas e confusas Finalmente pôde notar que Olímpia sentavase à pequena mesa muitas vezes horas a fio na mesma posição e sem qualquer ocupação do mesmo jeito que a vira tempos atrás através da porta de vidro que ela fitava aparentemente sem mover o olhar Precisou confessar a si mesmo nunca ter visto corpo mais belo porém com Clara no coração a Olímpia rígida e inerte eralhe totalmente indiferente e só de vez em quando olhava por sobre os seus livros em direção à bela estátua e isso era tudo Estava justamente escrevendo a Clara quando ouviu baterem suavemente à porta a sua permissão esta se abriu e ele viu surgir o repugnante rosto de Coppola Natanael sentiu um frêmito mas levando em conta o lhe disse Spalanzani sobre seu compatriota Coppola e o que fervorosamente prometera a sua bemamada com relação ao Homem da Areia Coppelius envergonhouse de seu ridículo medo de fantasmas esforçouse para se controlar e falou tão suave e despreocupadamente quanto possível Não vou comprar nenhum barômetro meu caro amigo agora vá embora por favor Mas Coppola acabou entrando no quarto e disse num tom rouco contraindo a boca num horrendo sorriso e faiscando penetrantemente os olhinhos sob as pestanas longas e grisalhas Ah não barômetro não barômetro não Mas tenho olhos belli occhi Chocado Natanael gritou Homem louco como pode vender olhos Olhos olhos Mas nesse instante Coppola havia posto de lado os seus barômetros Botou a mão no bolso do sobretudo e tirou de lá lornhões e óculos levandoos à mesa Aqui aqui óculos óculos para o nariz meus olhos belli occhi E sacava cada vez mais óculos e lunetas que entrecruzandose provocavam um brilho ofuscante e estranho Milhares de olhos olhavam e piscavam convulsivamente dardejando Natanael mas este não conseguia desviar o olhar da mesa e Coppola continuava tirando cada vez mais óculos e cada vez com mais voracidade olhares inflamados saltavam uns sobre os outros atirando no peito de Natanael seus raios vermelhos de sangue Dominado por um terror delirante ele gritou Pare pare com isso homem terrível Agarrou então pelo braço Coppola que já enfiara a mão no bolso para pegar ainda mais óculos embora toda a mesa já estivesse coberta deles mas este se livrou delicadamente com um riso rouco e hostil dizendo Ah Nada para o senhor mas aqui soberbas lentes E já havia juntado todos os óculos guardado e tirado do bolso lateral do sobretudo uma grande quantidade de binóculos grandes e pequenos Assim que os óculos foram retirados Natanael se acalmou e pensando em Clara reconheceu que todas aquelas aparições eram fruto de seu cérebro como também que Coppola era um mecânico e óptico extremamente honesto e de forma alguma o maldito sósia ou fantasma de Coppelius Além disso as lentes que Coppola colocara sobre a mesa nada tinham de especial nem eram tão fantasmagóricas como os óculos Para remediar tudo aquilo Natanael decidiu finalmente comprar alguma coisa de Coppola Pegou um pequeno binóculo de bolso delicadamente trabalhado e para experimentálo olhou pela janela Nunca em sua vida vira uma lente que trouxesse aos olhos os objetos de forma tão pura límpida e nítida Sem querer olhou para o quarto de Spalanzani como de costume Olímpia estava sentada diante da mesinha os braços esticados as mãos cruzadas Era a primeira vez que Natanael contem plava o semblante de Olímpia de maravilhosos traços Apenas os olhos pareciamlhe estranhamente hirtos e mortos Mas à medida que a con templava com mais cuidado tinha a sensação de que dos olhos de Olímpia saíam úmidos raios de luar Parecia que só agora o seu poder de visão fora estimulado cada vez mais vivos flamejavam os seus olhares Natanael ficou à janela como que enfeitiçado admirando sem cessar a divina e bela Olímpia Um pigarro despertouo como de um sonho profundo Coppola estava atrás dele Tre zecchini três ducados Natanael es quecera o óptico por completo e rapidamente pagou o exigido Não é uma bela lente Bela lente disse Coppola com sua voz repugnante e rouca e seu sorriso de escárnio Sim sim sim respondeu Natanael abor recido Adeus caro amigo Coppola deixou o quarto não sem antes dirigir muitos e estranhos olhares oblíquos para Natanael que ainda escutou sua gargalhada pela escada Pois é pensou ele ri de mim certamente porque paguei caro demais pelo pequeno binóculo caro demais Enquanto murmurava essas palavras aterrorizado teve a impressão de ouvir espalharse pelo quarto um longo estertor de moribundo Mas havia sido ele mesmo quem suspirara como logo notou Clara tem toda a razão disse consigo em me considerar um visionário idiota no entanto é estranho é es tranho que eu me atormente tanto por ter pago caro demais pelo binó culo de Coppola não vejo razão para isso Sentouse então a fim de terminar a carta para Clara mas um olhar através da janela convenceuo de que Olímpia ainda estava lá como se arrebatado por uma força irre sistível levantouse pegou o binóculo de Coppola e não conseguiu es quivarse da inebriante visão de Olímpia até que seu amigo e camarada Siegmund veio chamálo para a aula com o professor Spalanzani A cortina do quarto fatal dessa vez estava fechada e ele não pôde ver Olímpia nem naquele dia nem nos dois seguintes embora quase não tenha abandonado a janela olhando ininterruptamente através do binóculo de Coppola No terceiro dia até mesmo as cortinas das jane las foram fechadas Totalmente desesperado devorado pela saudade e pelo desejo Natanael foi na direção dos portões da cidade A imagem de Olímpia flutuava a sua frente saía dos arbustos fitavao com seus grandes e faiscantes olhos do espelho do riacho de águas claras A lembrança de Clara estava totalmente apagada de seu espírito só pensava em Olímpia e lamentava em voz alta e chorosa Será que você minha esplêndida e distante estrela de amor será que você só me sur giu para eclipsarse em seguida e deixarme na noite escura e sem esperanças Ao voltar para casa percebeu uma agitação ruidosa na casa de Spalanzani As portas estavam abertas carregavase para dentro toda espécie de aparelhos as janelas do primeiro andar estavam levantadas criadas circulavam ocupadas com grandes vassouras de um lado para outro escutavamse as batidas dos martelos dos marceneiros e dos tapeceiros Natanael ficou plantado na rua estupefato Siegmund apro ximouse sorrindo E então o que me diz do nosso velho Spalanzani Natanael respondeu que nada podia dizer pois nada sabia do professor e que ao contrário percebia com grande surpresa o furioso correcorre e o tremendo burburinho numa casa normalmente calma e sombria Siegmund informoulhe então que Spalanzani daria uma grande festa no dia seguinte com concerto e baile e que metade da universidade estava convidada Também se espalhara que Spalanzani iria deixar aparecer pela primeira vez sua filha Olímpia a qual escondera por tanto tempo de todo e qualquer olhar Natanael encontrou em casa um convite e à hora marcada para lá se dirigiu com o coração palpitante quando já chegavam as carruagens e as luzes cintilavam nos salões decorados A sociedade era numerosa e elegante Olímpia apareceu vestida ricamente e com muito bom gosto Seu rosto e seu corpo de belas formas foram inevitavelmente admirados As costas eram curiosamente recurvadas e a cintura fina semelhante à de uma vespa parecia exageradamente apertada num espartilho Seu andar e sua postura pareciam ter algo de comedido e rígido que a alguns era desagradável o que foi atribuído a sua timidez frente aos convida dos O concerto começou Olímpia tocou piano com muita habilidade e também cantou uma ária com uma voz límpida e quase dilacerante que tinha a sonoridade de um sino de cristal Natanael estava completamen te deslumbrado colocado numa das últimas fileiras à luz das velas não foi capaz de reconhecer imediatamente as feições de Olímpia Sem se fazer notar tirou do bolso o binóculo de Coppola e observou a bela cantora Ah Agora poderia perceber como ela o olhava com languidez e como seu olhar enternecido que penetrava e inflamava todo o seu ser expri mia antecipadamente cada nuance do seu canto Seus trinados pareciam a Natanael o júbilo celestial do espírito transformado pelo amor e quan do finalmente a cadência do longo e último vocalise ressoou pelo salão ele não pôde mais se conter e como se estrangulado por dois braços apaixonados exclamou extasiado Olímpia Todos se voltaram para ele e muitos começaram a rir O organista da catedral porém mostrou um rosto ainda mais sinistro do que o habitual e disse apenas Bem bem O concerto chegara ao fim começou o baile Dançar com ela com ela era este o objetivo de todos os seus sentidos de todos os seus esforços mas como criar coragem para convidála ela a rainha da festa Entretanto sem saber como mal a dança começara já se encontra va junto a Olímpia que ainda não fora tirada e após balbuciar algumas palavras pegou em sua mão A mão de Olímpia estava gelada o que fez com que sentisse um arrepio mortal Fitoua nos olhos que só lhe trans mitiam amor e desejo e naquele momento foi como se as artérias de sua mão começassem a pulsar e o sangue da vida corresse ardente por suas veias glaciais Ardendo de paixão Natanael enlaçou a bela Olímpia pela cintura e deslizou com ela por entre os pares do salão Tinha a ilusão de ser um bom dançarino mas pela segurança rítmica toda parti cular que Olímpia demonstrava fazendo com que diversas vezes se vis se fora do compasso logo percebeu quanto lhe era estranho o verdadei ro sentido do ritmo Mesmo assim renunciou a dançar com qualquer outra mulher teria inclusive desejado matar todo aquele que tentasse se aproximar de Olímpia e a convidasse para dançar Para seu espanto isso ocorreu apenas duas vezes não lhe faltando a oportunidade de voltar a tirála Se Natanael fosse capaz de se ocupar de outra coisa além da bela Olímpia então teria sido inevitável toda sorte de discussão e briga pois aparentemente as risadas discretas e a custo abafadas que se podiam ouvir pelos cantos entre os jovens visavam à bela Olímpia perseguida por olhares curiosos sem que se soubesse por quê Entrementes aquecido pela dança e pelas copiosas libaçôes Natanael deixara de lado sua timidez habitual Sentado ao lado de Olímpia as mãos dela entre as suas falava de seu amor com entusiasmo e vibração em termos inflamados que ninguém poderia compreender nem ele mesmo nem Olímpia Bem talvez ela entendesse pois olhavao fixamente suspirando sem cessar Ah ah ah Ao que Natanael respondia Ah esplêndida mulher exemplo do amor que nos prometem na outra vida espírito profundo no qual se reflete todo o meu ser e outras coisas semelhantes enquanto Olímpia apenas suspirava repetidamente Ah ah O professor Spalanzani passou algumas vezes pelos felizardos e sorriulhes singularmente satisfeito Embora estivesse num mundo diferente Natanael pôde observar que a casa do professor de repente havia escurecido olhou em seu redor e com enorme espanto percebeu que as duas últimas velas do salão vazio ameaçavam se apagar Fazia tempo que a música e a dança haviam terminado Separação separação exclamou ele em completo desespero e beijou a mão de Olímpia que inclinandose sobre sua boca tocouo com seus lábios frios como gelo Assim como quando tocara as mãos frias de Olímpia viuse penetrado por um profundo terror repentinamente lembrarase da lenda da Noiva Morta mas Olímpia o abraçara com ternura e o ardor de seu beijo fazia com que seus lábios ganhassem vida O professor Spalanzani avançou com lentidão pelo salão seus passos soaram abafados e sua silhueta rodeada por sombras vacilantes revelava uma aparência assustadora fantasmagórica Você me ama você me ama Olímpia Só uma palavra Você me ama era assim que sussurrava Natanael Olímpia levantandose apenas suspirou Ah ah Sim minha encantadora esplêndida estrela do amor prosseguiu Natanael você surgiu em meu céu e iluminará para sempre o meu coração Ah ah replicou Olímpia afastandose Natanael seguiua e logo se encontraram diante do professo O senhor conversou animadamente com minha filha disse este sorrindo Pois então caro senhor Natanael se tem gosto em conversar com essa tímida rapariga venha visitála com freqüência Com todo um céu radioso no peito Natanael se foi A festa de Spalanzani foi o assunto das conversas nos dias seguinte Não obstante o professor tivesse feito tudo para receber a todos com magnificência as pessoas mais atentas puseramse a contar toda espécie de fatos estranhos e singulares falando principalmente da inerte e muda Olímpia a quem se atribuía a despeito da formosura uma total estupidez Viam nisso a razão pela qual Spalanzani a mantinha isolada por tanto tempo Natanael ouvia tudo aquilo cultivando um furor secreto mas se calava Pois pensava de que serviria provar a esses rapazes que é a sua própria estupidez que os impede de reconhecer o espírito profundo e magnífico de Olímpia Irmão disse um dia Siegmund por favor digame como você um rapaz razoável pôde perder a cabeça por aquele rosto de cera aquela boneca de madeira Natanael fez menção de explodir mas logo se recompôs e retrucou Digame você Siegmund como a seu olhar normalmente tão perspicaz pôde escapar o celestial encanto de Olímpia De resto dou graças ao destino pois de outra forma teria um rival e nesse caso um de nós haveria de verter sangue Siegmund logo percebeu o estado de seu amigo esquivouse habilmente e acrescentou depois de dizer que o objeto do amor nunca deve ser julgado Mas é estranho que muitos de nós tenhamos mais ou menos o mesmo julgamento sobre Olímpia Não me leve a mal irmão mas ela nos pareceu de uma maneira muito estranha rígida e sem alma Seu corpo é bemproporcionado assim como seu rosto é bem verdade Poderia ser considerada bonita se o seu olhar não fosse desprovido de brilho eu diria quase de faculdade visual Seu andar é particularmente meticuloso cada movimento parece condicionado por um mecanismo em que se deu corda Seu jeito de tocar de cantar tem o compasso de sagradavelmente correto e sem espírito dos realejos e assim também é quando dança Enfim essa Olímpia causounos uma impressão sinistra e nada queremos com ela é como se apesar de agir como um ser vivo houvesse nela algo de singular e de equívoco Natanael absolutamente não se abandonou à sensação amarga que as palavras de Siegmund lhe provocaram Dominou sua raiva e apenas disse muito sério Talvez a vocês pessoas friamente prosaicas Olímpia possa parecer sinistra Apenas ao espírito poético revelamse tais perso nalidades Só a mim ela dirigiu seu olhar apaixonado irradiando meus pensamentos e só no amor de Olímpia posso reencontrar o meu ser Talvez não lhes agrade que ela não se prenda a conversas ligeiras como outros espíritos superficiais Ela fala pouco é verdade mas essas poucas palavras tais verdadeiros hieróglifos da linguagem íntima da alma reve lam o amor e um elevado conhecimento da vida espiritual na contempla ção do eterno e misterioso além Mas isso está fora do alcance de vocês tudo são palavras vãs Deus o proteja caro irmão disse Siegmund com doçura quase melancólico mas me parece que você está no mau caminho Você pode contar comigo quando tudo Não não vou dizer mais nada Para Natanael foi como se repentinamente o prosaico e frio Siegmund estivesse querendo o seu bem por isso apertou com sinceri dade a mão estendida Natanael esquecera por completo que existia uma Clara no mundo a quem ele um dia amara a mãe Lotar todos haviam desaparecido de sua memória e ele só vivia para Olímpia na casa de quem ficava diariamente horas a fio devaneando sobre seu amor sobre o despertar de uma simpatia ardente sobre as afinidades de suas almas e Olimpia ouvia tudo com a maior atenção Das profundezas de sua escrivaninha Natanael tirava tudo o que já escrevera Poemas fantasias visões romances histórias tudo diariamente acrescido de toda sorte de sonetos estâncias cantigas que ele lia para Olímpia durante horas a fio incansavelmente Nunca tivera uma ouvinte tão encantadora pois não bordava nem trico tava não olhava pela janela não dava comida aos pássaros e não brinca va com cãezinhos ou gatinhos graciosos Não amassava papeizinhos ou se distraía com qualquer coisa nas mãos nem precisava conter um bo cejo ou um leve pigarro Em suma fitava o amado durante horas sem se mexer ou se ajeitar e esse olhar tornavase cada vez mais ardente e mais vivo Apenas quando Natanael se levantava no fim e lhe beijava a mão e até mesmo a boca ela dizia Ah ah boa noite meu querido Oh alma esplêndida e profunda exclamava Natanael em seu quarto somente você me compreende Estremecia de alegria ao pensar na maravilhosa relação que se manifestava cada dia mais entre o seu espírito e o de Olímpia pois para ele era como se Olímpia exprimisse seus pensa mentos sobre suas obras sobre seu talento poético exatamente como ele teria feito como se a voz dela soasse de seu próprio ser Não poderia ser diferente pois além das palavras mencionadas Olímpia não pro nunciava mais nada Mas quando Natanael em momentos claros e sóbrios como por exemplo pela manhã ao acordar lembravase da passividade total de Olímpia e de seu laconismo então dizia O que são palavras palavras A visão de seus olhos celestiais diz mais do que todas as linguagens Como poderia uma criação dos céus nivelarse ao estreito círculo traçado por nossa necessidade ínfima e terrena O professor Spalanzani parecia muito feliz com a relação de sua filha com Natanael cumulava este com toda sorte de nítidos sinais de simpatia e quando Natanael fielmente ousou aludir a um possível casamento com Olímpia estampou um largo sorriso dizendo que daria à filha a liberdade de escolha Encorajado por essas palavras com um ardente desejo no coração Natanael decidiu já no dia seguinte suplicar a Olímpia que lhe expressasse com clareza o que há muito o seu olhar encanta dor lhe dissera que seria sua para sempre Procurou pelo anel que sua mãe lhe presenteara na despedida a fim de ofertálo a Olímpia como símbolo de sua dedicação e de sua iniciação a uma vida que desabrocha va e que ela fazia florescer Naquele momento as cartas de Clara e de Lotar lhe caíram às mãos e ele com indiferença repeliuas encontrou o anel guardouo e correu à casa de Olímpia Já na escada no corredor percebeu uma singular agitação que parecia soar do gabinete de trabalho de Spalanzani Arrastar de pés um estranho ruído batidas golpes contra a porta em meio a maldições e imprecações Larguea larguea Infame celerado Foi para isso que me dediquei de corpo e alma Ha ha ha ha Não foi assim que combinamos Eu eu fiz os olhos E eu o mecanismo Aos diabos com o seu mecanismo Cão maldito relojoeiro simplório Vá embo ra Demônio Pare Besta diabólica Pare Vá charlatão Eram as vozes de Spalanzani e do terrível Coppola que vociferavam e bramiam confusamente Natanael precipitouse presa de uma angústia indefinível O professor segurava uma figura feminina pelos ombros o italiano pelos pés e esta era puxada e arrastada de um lado para outro os dois brigando furiosamente por sua posse Horrorizado Natanael re cuou ao reconhecer a figura de Olímpia Transportado por uma ira feroz ia defender sua amada contra aqueles possessos quando Coppola virou se com uma força gigantesca e arrancando o corpo de Olímpia das mãos do professor aplicoulhe com a própria mulher um terrível golpe na cabeça de forma que este cambaleou e caiu de costas sobre uma mesa cheia de retretas tubos de ensaio garrafas e cilindros de vidro tudo aquilo se partiu em mil cacos Coppola lançou então a figura nos ombros e correu pela escada gargalhando horrível e estridentemente fazendo com que os pés daquela miserável figura humana dependurados desor denadamente fossem quicando pelos degraus estalando como madeira Natanael estava atônito com muita clareza pôde ver que o rosto de cera mortalmente pálido de Olímpia era desprovido de olhos cavidades negras ocupavam seu lugar era uma boneca inanimada Spalanzani debatiase no chão os cacos de vidro haviam cortado sua cabeça e dilacerado seu peito e seu braço o sangue jorrava como de um chafariz Mas ele ainda encontrou forças Atrás dele atrás dele o que está espe rando Coppelius Coppelius você me roubou o meu melhor autô mato trabalhei nele durante vinte anos dediqueime de corpo e alma o mecanismo fala anda são meus os olhos os olhos roubei de você maldito condenado atrás dele tragame Olímpia aqui estão os olhos Natanael então percebeu no chão um par de olhos ensangüentados fitandoo fixamente Spalanzani agarrouos com a mão que não fora ferida e atrivouos em sua direção atingindoo no peito Foi então que a loucura arrebatou Natanael com garras ardentes e penetrou em sua alma dilacerando o que restava de seu juízo e pensamento Roda de Fogo Roda de Fogo Gire roda de fogo alegremente alegremente Bonequinha de madeira zum bela bonequinha de madeira gire e com isso se lançou sobre o professor apertando sua garganta Têloia estrangulado se a agitação não houvesse atraído muitas pessoas ao local que entraram e arrancaram dali o furioso Natanael salvando assim c professor que foi imediatamente medicado Siegmund por mais forte que fosse não conseguia acalmar o enfurecido que continuava a gritar com uma voz aterrorizante Bonequinha de madeira gire dando golpes a seu redor com os punhos cerrados Finalmente a força reunida de várias pessoas conseguiu domálo e foi jogado ao chão e amarrado Suas palavras perderamse pouco a pouco numa espécie de rugido animalesco Debatendose assim em terríveis convulsões foi levado ao manicômio Antes caro leitor que eu continue a lhe contar o que sucedeu ao infeliz Natanael posso assegurarlhe caso se interesse pelo habilidoso mecânico e fabricante de autômatos Spalanzani que este ficou totalmente curado de suas feridas Entretanto foi obrigado a abandonar a universidade porque a história de Natanael causara sensação e todos consideraram uma burla inadmissível introduzir em respeitáveis rodas da cidade Olímpia as freqüentara com sucesso uma boneca de madei ra no lugar de uma pessoa viva Juristas consideraramna uma fraude refinada e passível de forte punição já que praticada contra o público de forma astuciosa Ninguém com exceção dos estudantes muito espertos percebera o golpe embora agora todos se quisessem passar por inteligentes e apontassem fatos que lhes teriam parecido suspeitos Estes últimos porém na verdade nada conseguiam relatar que fizesse sentido A alguns por exemplo parecia suspeito o fato de Olímpia segundo um freqüentador das rodas de chá ter espirrado mais vezes que boceja do o que contrariava os costumes Em primeiro lugar dizia esse elegan te os espirros seriam os ruídos da engrenagem oculta que rangia niti damente etc O professor de poesia e retórica aspirou uma pitada de rapé fechou a tabaqueira pigarreou de leve e falou cerimoniosamente Mui honrados senhoras e senhores Não notam onde está o fio da mea da Tudo isto é uma alegoria uma metáfora ampliada Os senhores me entendem Sapíentí sat Mas os mui honrados senhores não se tran qüilizaram com aquilo a história do autômato havia causado uma profun da impressão na alma deles e de fato cresceu sorrateiramente uma abominável desconfiança com relação a figuras humanas A fim de se convencerem por completo de que não estariam amando uma boneca de madeira vários amantes exigiram que as amadas cantassem e danças sem um pouco fora do ritmo que ao ouvirem uma leitura bordassem tricotassem e brincassem com o cãozinho etc mas sobretudo que não apenas ouvissem e falassem às vezes de uma maneira que as palavras demonstrassem o que realmente pensavam e sentiam As uniões amorosas de muitos tornaramse mais sólidas e gentis outras ao contrário acabavamse aos poucos Nunca se pode saber com certeza dizia um ou outro Nas rodas de chá bocejavase incrivelmente mas nunca se espirrava para evitar qualquer suspeita Como dissemos Spalanzani desapareceu para escapar da investigação criminal relativa à introdução fraudulenta de autômatos na sociedade Coppola também desaparecera Natanael despertou como de um sonho pesado e terrível abriu os olhos e percebeu que uma indescritível sensação de prazer o percorria com um calor suave e celestial Estava na casa de seus pais Clara se havia inclinado sobre ele e não muito longe estavam a mãe e Lotar Finalmente finalmente meu amado Natanael agora você está curado da grave doença agora você é meu novamente dizia Clara do fundo de sua alma tomando Natanael pelos braços Lágrimas de alegria e de emoção saíam de seus olhos e ele disse depois de um profundo suspiro Minha minha Clara Siegmund que fielmente permanecera ao lado do amigo durante a agonia aproximouse Natanael estendeulhe a mão Meu fiel irmão você não me abandonou Todo e qualquer sinal de loucura desaparecera e logo Natanael recuperou suas forças graças aos cuidados da mãe da noiva e dos dois amigos A felicidade voltara à casa um velho tio ranzinza do qual ninguém nada esperara morreu e deixou à mãe além de uma quantia não desprezível uma pequena propriedade numa agradável região não muito distante da cidade Para lá queriam mudarse a mãe Natanael e sua Clara a qual agora queria desposar e Lotar Natanael tornarase mais carinhoso e mais amável do que nunca e só então reconheceu o espírito puro divino e esplêndido de Clara Ninguém fazia a menor alusão ao passado Quando Siegmund se despediu dele Natanael disselhe apenas Por Deus irmão Eu estava no mau caminho mas na hora exata um anjo me conduziu pela trilha iluminada E esse anjo foi Clara Mas Siegmund não permitiu que continuasse temendo que recordações amargas e placáveis pudessem renascer com brutalidade em seu espírito Chegara a época em que os quatro amigos iriam mudarse para a propriedade campestre Ao meiodia cammhavam pelas ruas da cidade Haviam comprado algumas coisas e a alta torre da prefeitura jogava sombras gigantescas sobre a praça do mercadoAh disse Clara vamos subir lá mais uma vez e olhar para as montanhas ao longe Dito e feito Ambos Natanael e Clara subiram a mãe foi com a criada para casa e Lotar sem vontade de galgar os numerosos degraus preferiu esperar embaixo E lá estavam os dois namorados de braços dados na mais alta galeria da torre olhando para as profundezas dos bosques perfumados atrás dos quais os picos das montanhas azuis erguiamse como uma cidade de gigantes Veja aquele estranho arbusto cinzento parece estar vindo em nossa direção disse Clara Automaticamente Natanael pôs a mão no bolso achou o binóculo de Coppola Dirigiuo para a planície Clara estava diante das lentes Um estremecimento convulsivo percorreu suas veias e seu pulso Pálido como a morte fitoua fixamente De repente os olhos dela girando em suas órbitas expeliram raios de fogo ele começou a uivar terrivelmente como um animal acuado começou então a saltar no ar e entre gargalhadas aterradoras gritou estridentemente Bonequinha de madeira gire bonequinha de madeira gire e com uma violência formidável pegou Clara para precipitála lá de cima mas ela com um medo desesperado da morte agarrouse com firmeza à balaustrada Lotar ouviu o alarido que fazia o furioso distinguiu os gritos angustiados de Clara e um terrível pressentimento apoderouse de seu espírito Correu para o alto da torre a porta da segunda escada estava trancada os gritos de Clara tornaramse ainda mais dilacerantes Louco de fúria e terror lançouse contra a porta que finalmente se abriu Os gritos de Clara soa vam cada vez mais fracos Socorro ajudemme ajudemme e a voz desapareceu no ar Ela morreu assassinada pelo louco exclamou Lotar A porta do terraço também estava trancada O desespero incutiulhe uma força sobrehumana e ele se jogou contra a porta arrombandoa finalmente Clara erguida pelo furibundo Natanael pairava no ar do lado de fora da balaustrada apenas com uma das mãos ainda se agarrava às gra des de ferro Rápido como um raio Lotar pegou a irmã atiroua sobre a plataforma e no mesmo instante deu um soco no alucinado com os pu nhos cerrados de forma que este cambaleou soltando sua presa de morte Lotar desceu correndo com a irmã desfalecida nos braços Ela estava salva Natanael corria pelo terraço saltava no ar e gritava Roda de fogo gire roda de fogo gire Com essa gritaria selvagem as pessoas acor reram dentre elas o advogado Coppelius que acabava de chegar à cida de estando a caminho do mercado As pessoas queriam subir e dominar o louco furioso Coppelius pôsse a rir dizendo Esperem que logo ele vai descer sozinho e como os outros olhou para cima Subitamente Natanael parou como que petrificado então se debruçou percebeu a presença de Coppelius e com um grito Ah bonitos olhos belli occhi saltou por sobre a balaustrada Enquanto Natanael com a cabeça estraçalhada jazia no chão Coppelius havia desaparecido na multidão Muitos anos depois Clara foi vista numa região remota de mãos da das com um simpático homem e diante de uma bonita casa de campo com duas saudáveis crianças brincando a seu lado Daí podese concluir que Clara finalmente encontrou a tranqüila felicidade doméstica ade quada a seu espírito sereno e alegre Felicidade que o exaltado e impetuoso Natanael nunca lhe teria oferecido fim

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