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Nós chorámos pelo Cão Tinhoso Foi no tempo da oitava classe na aula de português Eu já tinha lido esse texto dois anos antes mas daquela vez a estória me parecia mais bem contada com detalhes que atrapalhavam uma pessoa só de ler ainda em leitura silenciosa como a camarada professora de português tinha mandado Era um texto muito conhecido em Luanda Nós matámos o Cão Tinhoso Eu lembravame de tudo do Ginho da pressãodear da Isaura e das feridas penduradas do Cão Tinhoso Nunca me esqueci disso um cão com feridas penduradas Os olhos do cão Os olhos da Isaura E agora de repente me aparecia tudo ali de novo Fiquei atrapalhado A camarada professora seleccionou uns tantos para a leitura integral do texto Assim queria dizer que íamos ler o texto todo de rajada Para não demorar muito ela escolheu os que liam melhor Nós os da minha turma da oitava éramos cinquenta e dois Eu era o número cinquenta e um Embora noutras turmas tentassem arranjar alcunhas para os colegas aquela era a minha primeira turma onde ninguém tinha escapado de ser alcunhado E alguns eram nomes de estiga violenta Muitos eram nomes de animais havia o Serpente o Cabrito o Pacaça a BaratadaSibéria a Joana VoaVoa a Gazela e o Jacó que era eu Deve ser porque eu mesmo falava muito nessa altura Havia o Étê o AgostinhoNeto a Scubidú e mesmo alguns professores também não escapavam da nossa lista Por acaso a camarada professora de português era bem porreira e nunca chegámos a lhe alcunhar Os outros começaram a ler a parte deles No início o texto ainda tá naquela parte que na prova perguntam qual é e uma pessoa diz que é só introdução Os nomes dos personagens a situação assim no geral e a maka do cão Mas depois o texto ficava duro tinham dado ordem num grupo de miúdos para bondar o Cão Tinhoso Os miúdos tinham ficado contentes com essa ordem assim muito adulta só uma menina chamada Isaura afinal queria dar protecção ao cão O cão se chamava Cão Tinhoso e tinha feridas penduradas eu sei que já falei isto mas eu gosto muito do Cão Tinhoso Na sexta classe eu também tinha gostado bué dele e eu sabia que aquele texto era duro de ler Mas nunca pensei que umas lágrimas pudessem ficar tão pesadas dentro duma pessoa Se calhar é porque uma pessoa na oitava classe já cresceu um bocadinho mais a voz já está mais grossa já ficamos toda hora a olhar as cuecas das meninas entaladas na gaveta queremos beijos na boca mais demorados e na dança de slow ficámos todos agarrados até os pais e os primos das moças virem perguntar se estamos com frio mesmo assim em Luanda a fazer tanto calor Se calhar é isso eu estava mais crescido na maneira de ler o texto porque comecei a pensar que aquele grupo que lhes mandaram matar o Cão Tinhoso com tiros de pressãodear era como o grupo que tinha sido escolhido para ler o texto Não quero dar essa responsabilidade na camarada professora de português mas foi isso que eu pensei na minha cabeça cheia de pensamentos tristes se essa professora nos manda ler este texto outra vez a Isaura vai chorar bué o Cão Tinhoso vai sofrer mais outra vez e vão rebolar no chão a rir do Ginho que tem medo de disparar por causa dos olhos do Cão Tinhoso O meu pensamento afinal não estava muito longe do que foi acontecendo na minha sala de aulas no tempo da oitava classe turma dois na escola MutuYaKevela no ano de mil novecentos e noventa quando a Scubidú leu a segunda parte do texto os que tinham começado a rir só para estigar os outros começaram a sentir o peso do texto As palavras já não eram lidas com rapidez de dizer quem era o mais rápido da turma a despachar um parágrafo Não Uma pessoa afinal e de repente tinha medo do próximo parágrafo escolhia bem a voz de falar a voz dos personagens olhava para a porta da sala como se alguém fosse disparar uma pressãodear a qualquer momento Era assim na oitava classe ninguém lia o texto do Cão Tinhoso sem ter medo de chegar ao fim Ninguém admitia isso eu sei ninguém nunca disse mas bastava estar atento à voz de quem lia e aos olhos de quem escutava O céu ficou carregado de nuvens escurecidas Olhei lá para fora à espera de uma trovoada que trouxesse uma chuva de meiahora Mas nada Na terceira parte até a camarada professora começou a engolir cuspe seco na garganta bonita que ela tinha os rapazes mexeram os pés com nervoso miudinho algumas meninas começaram a ficar de olhos molhados O Olavo avisou quem chorar é maricas então e os rapazes todos ficaram com essa responsabilidade de fazer uma cara como se nada daquilo estivesse a ser lido Um silêncio muito estranho invadiu a sala quando o Cabrito se sentou A camarada professora não disse nada Ficou a olhar para mim Respirei fundo Levanteime e toda a turma estava também com os olhos pendurados em mim Uns tinhamse virado para trás para ver bem a minha cara outros fungavam do nariz tipo constipação de Cacimbo A Aina e a Rafaela que eram muito branquinhas estavam com as bochechas todas vermelhas e os olhos também o Olavo ameaçoume devagar com o dedo dele a apontar para mim Engoli também um cuspe seco porque eu já tinha aprendido há muito tempo a ler um parágrafo depressa antes de o ler em voz alta era aquela parte do texto em que os miúdos já não têm pena do Cão Tinhoso e querem lhe matar a qualquer momento Mas o Ginho não queria A Isaura não queria A camarada professora levantouse veio devagar para perto de mim ficou quietinha Como se quisesse me dizer alguma coisa com o corpo dela ali tão perto Aliás ela já tinha dito ao me escolher para ser o último a fechar o texto e eu estava vaidoso dessa escolha o último normalmente era o que lia já mesmo bem Mas naquele dia com aquele texto ela não sabia que em vez de me estar a premiar estava a me castigar nessa responsabilidade de falar do Cão Tinhoso sem chorar Camarada professora interrompi numa dificuldade de falar Não tocou para a saída Ela mandoume continuar Voltei ao texto Um peso me atrapalhava a voz e eu nem podia só fazer uma pausa de olhar as nuvens porque tinha que estar atento ao texto e às lágrimas Só depois o sino tocou Os olhos do Ginho Os olhos da Isaura A mira da pressãodear nos olhos do Cão Tinhoso com as feridas dele penduradas Os olhos do Olavo Os olhos da camarada professora nos meus olhos Os meus olhos nos olhos da Isaura nos olhos do Cão Tinhoso Houve um silêncio como se tivessem disparado bué de tiros dentro da sala de aulas Fechei o livro Olhei as nuvens Na oitava classe era proibido chorar à frente dos outros rapazes ANÁLISE COMPARATIVA DE CONTOS No conto intitulado nós matamos o cãotinhoso obra criada por Luís Bernardo Honwana contempla aspectos relacionados ao desenvolvimento literário O texto publicado em 1964 a 1975 marca um contexto político Em um contexto geral a obra aborda uma dura realidade enfrentada por trabalhadores e crianças moçambicanas durante o período de colonização portuguesa assim transmitindo ao leitor a realista experiência do oprimido por meio de sua narrativa Nesse contexto a leitura africana de língua portuguesa tem se aprofundarão em campos férteis da literatura explorando o dinamismo dentro das reclines sociais e políticas assim o cãotinhoso se mostra uma metáfora emblemática e analítica sobre as diversas camadas de opressão e injustiças enfrentadas pelo povo de Moçambique O conto narrado em primeira pessoa traz elementos recentes para a construção de uma perspectiva baseada na visão de uma criança sobre o mundo possuindo um tempo linear a história o livro representa uma diversidade de expressões e características profundas No início de seu conto o autor apresenta uma relação entre os limites do real e é demonstrada aspectos como a agonia do animal descrito e do misto de emoções retratados pelos personagens No conto de Luís Honwana constantemente são observadas a vergonha relativamente atribuída a capacidade masculina Lee 1960 assim atos associados a tentativas de matar o cão são atribuídos a injustiças sociais isso porque o jovem narrador não considerado uma ação apropriada maltratar e animal assim sendo ridicularizado por seus colegas pois quem não tem essa coragem não é macho de verdade Honwana2000 Essas demonstrações representam as constantes atribuições a paradigmas associados a masculinidade coragem e liderança Com base na leitura da obra é visto que o autor apresenta em sua construção literária representações de injustiças sociais e repressões Podendo ser associado ao entendimento de que exclusão política e cultural abuso cultural violência legal violência de rua discriminação econômica ou boicotes a título individual Connell 1995 O CãoTinhoso tinha uns olhos azuis que não tinham brilho nenhum mas eram enormes e estavam sempre cheios de lágrimas que lhe escorriam pelo focinho Metiam medo aqueles olhos assim tão grandes a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem querer dizer Honwana 2000 A citação do livro nós matamos o cãotinhoso desperta uma curiosidade do leitor sobre as características do cão visto que a linguagem reflete a narrativa dentro da cultura moçambicana e também a denúncias sociais fundadas em experiências realísticas do povo moçambicano O conto simboliza assim a injustiça que se permeia na vida dos personagens Simbolizando não apenas um cão doente abandonado como também uma metáfora relacionada ao sol imenso e tensões sociais que perpetuam dentro de uma sociedade constantemente abandonada e que sofre principalmente com a desigualdade social e racismo estrutural Conforme ressaltado por Cortês e Santos 2017 o cãotinhoso também representa clube e o matadouro onde executam o cão este entendido como a própria colonização pois assim como o cachorro estava em degeneração o império português estava em declínio em meados do ano de publicação da obra Cortês Santos 2017 O cãotinhoso também pode ser colocado como uma metonímia uma vez que a própria sociedade descrita jugo colonial A maneira como os adultos e crianças durante o enredo maltaram o animal pode ser associado de forma significativa a maneira como a sociedade sofreu com a hierarquia de classes onde constantemente é visto que aqueles colocados em uma posição de vulnerabilidade social são constantemente marginalizados assim como esquecidos e desrespeitados pelo Estado Outro ponto perceptível que cãotinhoso também faz alusão seria a imposição e impotência tendo em vista que na obra a opressão sofrida pelo personagem principal de matar o animal é associada ao controle sobre a autonomia de vontade desses vulneráveis como ressalta Farra 2011 muitas vezes as ações dos colegas demonstram como a sociedade está enraizada na autoridade de terceiros como os indivíduos são colocados como fantoches nas mãos dos mais ricos Assim podese associar essas imposições a maneira como os vulneráveis são constantemente abusados suas vontades violadas e sua construção feita por meio de injustiças Farra ainda ressalta É no conto de Honwana que a problemática espalhada pelas outras narrativas a injustiça a impotência a miséria a impossibilidade de expressão o ditame de subserviência a perseguição o interdito e enfim todo o patético que se infiltra nessa situação deprimente do colonizado africano vai explodir E o que é pior vai atingir o leitor situandoo de propósito num limite quase insuportável reação que o conto de Ondjaki há de recolher e constatar e explorar ficcionalmente para nós leitores nos mesmos termos narrativos utilizados por Honwana FARRA 2011 Assim a construção do autor demonstra não apenas fatores relacionados a aspectos estruturais dentro das relações identitárias mas também questões relacionadas ao racismo Visto que a história desses atos deve ser contada de forma que apresente a real problemática em volta dos exemplos e fatos expostos Consoante a este fato importante compreender que o montanhoso e as violências que esse sofre ao longo da narrativa podem ser associadas atribuições de racismos dentro da sociedade visto que é importante repassar que o racismo procede dentro da violência assim é visto que o racismo pode ser compreendido como um processo sistemático ideológico histórico e econômico Bennett 1992 Fazendo uma análise comparativa entre o texto de Ondjaki escritor contemporâneo que escreve nós choramos pelo cãotinhoso quarenta anos após a escrita de Honwana trouxe a narrativa atribuída a um contexto onde os países africanos permitem que os leitores possam criar concepções que caminham entre o conto de Honwana Nesse conto o autor também apresentou questões relacionadas a desigualdade social e opressão mas de maneira diferente onde passa a formação de sua obra por meio de um olhar mais profundo e introspectivo Enquanto que a obra de Honwana traz a imagem do cão como uma conjuntura de memórias e experiências pessoais formadas por elementos vistos dentro da vida cotidiana e da infância dentro da narrativa da obra Assim nas duas obras os leitores são conduzidos a refletir sobre essas questões através de surgimento de narrativas inesperadas ao longo da escrita Onde são apresentados machismo preconceitos violências e questões sociais ao longo do texto e como elas interferem no bemestar social Assim o primeiro conto implica diretamente no verbo matar onde é apresentado diretamente o conceito de violência ao longo da formação narrativa onde a imposição dessas ideias vem do sistema ao povo remetendo assim ao sofrimento passado por seus personagens que podem ser associados aos fatos vivenciados socialmente em Moçambique Enquanto que o conto de Ondjaki possui como verbo principal chorar que é demonstrado como a ilustração ao sofrimento relacionado aos processos de colonização dos europeus dentro do seu continente assim o choro surge como uma espécie de redenção sobre os males impostos a eles nesse período Para GamaKhallil 2011 o texto de Ondjaki representa a o efeito da leitura e da realidade póscolonial às quais aqueles sujeitos estavam fadados subjugados ainda às fraturas da cultura de colonizados Nesse sentido podese afirmar que a narrativa de Ondjaki é uma construção para a continuidade à proposta de Howana desde seu título até os demais elementos como fatores históricos e culturais O texto de Howana buscou metaforizar as características vindas de fatores hierárquicos presentes no sistema colonial enquanto que o segundo autor apresenta as marcas evidentes desses processos apresentando ainda questões que envolvem a formação de uma construção reflexiva dentro de seu conto Ambas as obras apresentam narrativas que permitem encruzar implicações ao leitor Assim os dois contos possuem narrativas essenciais para a formação de uma linguagem construída com base em reflexões sobre aspectos sociais e econômicos fracionados dentro da agonia dos personagens que enquanto em uma das obras é visto a tentativa de Gino de fugir da opressão do sistema em confronto com seus valores éticos e morais também apresenta o personagem do livro de Ondjaki representando a opressão a esses confrontos Ademais é perceptível que as obras literárias representam um diálogo que aponta aspectos estruturais que necessitam serem revistos na sociedade Os textos de maneira clara ampliam a percepção dos leitores sobre a função da literatura dentro da sociedade e como ela permite a associação da realidade através da escrita REFERÊNCIAS BENNETT Tony Putting Policy into Cultural Studies In C Nelson L Grossberg P Treichler eds Cultural Studies London New York Routledge 1992 P CONNELL R W Bob Masculinities Cambridge Polity Press 1995 CORTÊS D L A SANTOS J C N Memória e identidade em Honwana e Ondjaki uma análise intertextual 69ª Reunião Anual da SBPC 16 a 22 de julho de 2017 FARRA Ana Maria Dal Em torno da atual literatura africana de expressão portuguesa In Nau Literária crítica e teoria de literaturas PPGLETUFRS Vol 07 Janjun 2011 GAMAKHALIL Marisa Martins Memória e espacialidades reais e ficcionais em Nós choramos pelo cão tinhoso de Ondjaki 2011 HONWANA Luís Bernardo Nós matámos o CãoTinhoso 5a ed Lisboa Afrontamento 2000 LEE Harper To Kill a Mockingbird Vintage classics London Vintage 2000 ONDJAKI Nós choramos pelo cão tinhoso In Os da minha rua Rio de Janeiro Língua Geral 2007 p131136
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Nós chorámos pelo Cão Tinhoso Foi no tempo da oitava classe na aula de português Eu já tinha lido esse texto dois anos antes mas daquela vez a estória me parecia mais bem contada com detalhes que atrapalhavam uma pessoa só de ler ainda em leitura silenciosa como a camarada professora de português tinha mandado Era um texto muito conhecido em Luanda Nós matámos o Cão Tinhoso Eu lembravame de tudo do Ginho da pressãodear da Isaura e das feridas penduradas do Cão Tinhoso Nunca me esqueci disso um cão com feridas penduradas Os olhos do cão Os olhos da Isaura E agora de repente me aparecia tudo ali de novo Fiquei atrapalhado A camarada professora seleccionou uns tantos para a leitura integral do texto Assim queria dizer que íamos ler o texto todo de rajada Para não demorar muito ela escolheu os que liam melhor Nós os da minha turma da oitava éramos cinquenta e dois Eu era o número cinquenta e um Embora noutras turmas tentassem arranjar alcunhas para os colegas aquela era a minha primeira turma onde ninguém tinha escapado de ser alcunhado E alguns eram nomes de estiga violenta Muitos eram nomes de animais havia o Serpente o Cabrito o Pacaça a BaratadaSibéria a Joana VoaVoa a Gazela e o Jacó que era eu Deve ser porque eu mesmo falava muito nessa altura Havia o Étê o AgostinhoNeto a Scubidú e mesmo alguns professores também não escapavam da nossa lista Por acaso a camarada professora de português era bem porreira e nunca chegámos a lhe alcunhar Os outros começaram a ler a parte deles No início o texto ainda tá naquela parte que na prova perguntam qual é e uma pessoa diz que é só introdução Os nomes dos personagens a situação assim no geral e a maka do cão Mas depois o texto ficava duro tinham dado ordem num grupo de miúdos para bondar o Cão Tinhoso Os miúdos tinham ficado contentes com essa ordem assim muito adulta só uma menina chamada Isaura afinal queria dar protecção ao cão O cão se chamava Cão Tinhoso e tinha feridas penduradas eu sei que já falei isto mas eu gosto muito do Cão Tinhoso Na sexta classe eu também tinha gostado bué dele e eu sabia que aquele texto era duro de ler Mas nunca pensei que umas lágrimas pudessem ficar tão pesadas dentro duma pessoa Se calhar é porque uma pessoa na oitava classe já cresceu um bocadinho mais a voz já está mais grossa já ficamos toda hora a olhar as cuecas das meninas entaladas na gaveta queremos beijos na boca mais demorados e na dança de slow ficámos todos agarrados até os pais e os primos das moças virem perguntar se estamos com frio mesmo assim em Luanda a fazer tanto calor Se calhar é isso eu estava mais crescido na maneira de ler o texto porque comecei a pensar que aquele grupo que lhes mandaram matar o Cão Tinhoso com tiros de pressãodear era como o grupo que tinha sido escolhido para ler o texto Não quero dar essa responsabilidade na camarada professora de português mas foi isso que eu pensei na minha cabeça cheia de pensamentos tristes se essa professora nos manda ler este texto outra vez a Isaura vai chorar bué o Cão Tinhoso vai sofrer mais outra vez e vão rebolar no chão a rir do Ginho que tem medo de disparar por causa dos olhos do Cão Tinhoso O meu pensamento afinal não estava muito longe do que foi acontecendo na minha sala de aulas no tempo da oitava classe turma dois na escola MutuYaKevela no ano de mil novecentos e noventa quando a Scubidú leu a segunda parte do texto os que tinham começado a rir só para estigar os outros começaram a sentir o peso do texto As palavras já não eram lidas com rapidez de dizer quem era o mais rápido da turma a despachar um parágrafo Não Uma pessoa afinal e de repente tinha medo do próximo parágrafo escolhia bem a voz de falar a voz dos personagens olhava para a porta da sala como se alguém fosse disparar uma pressãodear a qualquer momento Era assim na oitava classe ninguém lia o texto do Cão Tinhoso sem ter medo de chegar ao fim Ninguém admitia isso eu sei ninguém nunca disse mas bastava estar atento à voz de quem lia e aos olhos de quem 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também um cuspe seco porque eu já tinha aprendido há muito tempo a ler um parágrafo depressa antes de o ler em voz alta era aquela parte do texto em que os miúdos já não têm pena do Cão Tinhoso e querem lhe matar a qualquer momento Mas o Ginho não queria A Isaura não queria A camarada professora levantouse veio devagar para perto de mim ficou quietinha Como se quisesse me dizer alguma coisa com o corpo dela ali tão perto Aliás ela já tinha dito ao me escolher para ser o último a fechar o texto e eu estava vaidoso dessa escolha o último normalmente era o que lia já mesmo bem Mas naquele dia com aquele texto ela não sabia que em vez de me estar a premiar estava a me castigar nessa responsabilidade de falar do Cão Tinhoso sem chorar Camarada professora interrompi numa dificuldade de falar Não tocou para a saída Ela mandoume continuar Voltei ao texto Um peso me atrapalhava a voz e eu nem podia só fazer uma pausa de olhar as nuvens porque tinha que estar atento ao texto e às lágrimas Só depois o sino tocou Os olhos do Ginho Os olhos da Isaura A mira da pressãodear nos olhos do Cão Tinhoso com as feridas dele penduradas Os olhos do Olavo Os olhos da camarada professora nos meus olhos Os meus olhos nos olhos da Isaura nos olhos do Cão Tinhoso Houve um silêncio como se tivessem disparado bué de tiros dentro da sala de aulas Fechei o livro Olhei as nuvens Na oitava classe era proibido chorar à frente dos outros rapazes ANÁLISE COMPARATIVA DE CONTOS No conto intitulado nós matamos o cãotinhoso obra criada por Luís Bernardo Honwana contempla aspectos relacionados ao desenvolvimento literário O texto publicado em 1964 a 1975 marca um contexto político Em um contexto geral a obra aborda uma dura realidade enfrentada por trabalhadores e crianças moçambicanas durante o período de colonização portuguesa assim transmitindo ao leitor a realista experiência do oprimido por meio de sua narrativa Nesse contexto a leitura africana de língua portuguesa tem se aprofundarão em campos férteis da literatura explorando o dinamismo dentro das reclines sociais e políticas assim o cãotinhoso se mostra uma metáfora emblemática e analítica sobre as diversas camadas de opressão e injustiças enfrentadas pelo povo de Moçambique O conto narrado em primeira pessoa traz elementos recentes para a construção de uma perspectiva baseada na visão de uma criança sobre o mundo possuindo um tempo linear a história o livro representa uma diversidade de expressões e características profundas No início de seu conto o autor apresenta uma relação entre os limites do real e é demonstrada aspectos como a agonia do animal descrito e do misto de emoções retratados pelos personagens No conto de Luís Honwana constantemente são observadas a vergonha relativamente atribuída a capacidade masculina Lee 1960 assim atos associados a tentativas de matar o cão são atribuídos a injustiças sociais isso porque o jovem narrador não considerado uma ação apropriada maltratar e animal assim sendo ridicularizado por seus colegas pois quem não tem essa coragem não é macho de verdade Honwana2000 Essas demonstrações representam as constantes atribuições a paradigmas associados a masculinidade coragem e liderança Com base na leitura da obra é visto que o autor apresenta em sua construção literária representações de injustiças sociais e repressões Podendo ser associado ao entendimento de que exclusão política e cultural abuso cultural violência legal violência de rua discriminação econômica ou boicotes a título individual Connell 1995 O CãoTinhoso tinha uns olhos azuis que não tinham brilho nenhum mas eram enormes e estavam sempre cheios de lágrimas que lhe escorriam pelo focinho Metiam medo aqueles olhos assim tão grandes a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem querer dizer Honwana 2000 A citação do livro nós matamos o cãotinhoso desperta uma curiosidade do leitor sobre as características do cão visto que a linguagem reflete a narrativa dentro da cultura moçambicana e também a denúncias sociais fundadas em experiências realísticas do povo moçambicano O conto simboliza assim a injustiça que se permeia na vida dos personagens Simbolizando não apenas um cão doente abandonado como também uma metáfora relacionada ao sol imenso e tensões sociais que perpetuam dentro de uma sociedade constantemente abandonada e que sofre principalmente com a desigualdade social e racismo estrutural Conforme ressaltado por Cortês e Santos 2017 o cãotinhoso também representa clube e o matadouro onde executam o cão este entendido como a própria colonização pois assim como o cachorro estava em degeneração o império português estava em declínio em meados do ano de publicação da obra Cortês Santos 2017 O cãotinhoso também pode ser colocado como uma metonímia uma vez que a própria sociedade descrita jugo colonial A maneira como os adultos e crianças durante o enredo maltaram o animal pode ser associado de forma significativa a maneira como a sociedade sofreu com a hierarquia de classes onde constantemente é visto que aqueles colocados em uma posição de vulnerabilidade social são constantemente marginalizados assim como esquecidos e desrespeitados pelo Estado Outro ponto perceptível que cãotinhoso também faz alusão seria a imposição e impotência tendo em vista que na obra a opressão sofrida pelo personagem principal de matar o animal é associada ao controle sobre a autonomia de vontade desses vulneráveis como ressalta Farra 2011 muitas vezes as ações dos colegas demonstram como a sociedade está enraizada na autoridade de terceiros como os indivíduos são colocados como fantoches nas mãos dos mais ricos Assim podese associar essas imposições a maneira como os vulneráveis são constantemente abusados suas vontades violadas e sua construção feita por meio de injustiças Farra ainda ressalta É no conto de Honwana que a problemática espalhada pelas outras narrativas a injustiça a impotência a miséria a impossibilidade de expressão o ditame de subserviência a perseguição o interdito e enfim todo o patético que se infiltra nessa situação deprimente do colonizado africano vai explodir E o que é pior vai atingir o leitor situandoo de propósito num limite quase insuportável reação que o conto de Ondjaki há de recolher e constatar e explorar ficcionalmente para nós leitores nos mesmos termos narrativos utilizados por Honwana FARRA 2011 Assim a construção do autor demonstra não apenas fatores relacionados a aspectos estruturais dentro das relações identitárias mas também questões relacionadas ao racismo Visto que a história desses atos deve ser contada de forma que apresente a real problemática em volta dos exemplos e fatos expostos Consoante a este fato importante compreender que o montanhoso e as violências que esse sofre ao longo da narrativa podem ser associadas atribuições de racismos dentro da sociedade visto que é importante repassar que o racismo procede dentro da violência assim é visto que o racismo pode ser compreendido como um processo sistemático ideológico histórico e econômico Bennett 1992 Fazendo uma análise comparativa entre o texto de Ondjaki escritor contemporâneo que escreve nós choramos pelo cãotinhoso quarenta anos após a escrita de Honwana trouxe a narrativa atribuída a um contexto onde os países africanos permitem que os leitores possam criar concepções que caminham entre o conto de Honwana Nesse conto o autor também apresentou questões relacionadas a desigualdade social e opressão mas de maneira diferente onde passa a formação de sua obra por meio de um olhar mais profundo e introspectivo Enquanto que a obra de Honwana traz a imagem do cão como uma conjuntura de memórias e experiências pessoais formadas por elementos vistos dentro da vida cotidiana e da infância dentro da narrativa da obra Assim nas duas obras os leitores são conduzidos a refletir sobre essas questões através de surgimento de narrativas inesperadas ao longo da escrita Onde são apresentados machismo preconceitos violências e questões sociais ao longo do texto e como elas interferem no bemestar social Assim o primeiro conto implica diretamente no verbo matar onde é apresentado diretamente o conceito de violência ao longo da formação narrativa onde a imposição dessas ideias vem do sistema ao povo remetendo assim ao sofrimento passado por seus personagens que podem ser associados aos fatos vivenciados socialmente em Moçambique Enquanto que o conto de Ondjaki possui como verbo principal chorar que é demonstrado como a ilustração ao sofrimento relacionado aos processos de colonização dos europeus dentro do seu continente assim o choro surge como uma espécie de redenção sobre os males impostos a eles nesse período Para GamaKhallil 2011 o texto de Ondjaki representa a o efeito da leitura e da realidade póscolonial às quais aqueles sujeitos estavam fadados subjugados ainda às fraturas da cultura de colonizados Nesse sentido podese afirmar que a narrativa de Ondjaki é uma construção para a continuidade à proposta de Howana desde seu título até os demais elementos como fatores históricos e culturais O texto de Howana buscou metaforizar as características vindas de fatores hierárquicos presentes no sistema colonial enquanto que o segundo autor apresenta as marcas evidentes desses processos apresentando ainda questões que envolvem a formação de uma construção reflexiva dentro de seu conto Ambas as obras apresentam narrativas que permitem encruzar implicações ao leitor Assim os dois contos possuem narrativas essenciais para a formação de uma linguagem construída com base em reflexões sobre aspectos sociais e econômicos fracionados dentro da agonia dos personagens que enquanto em uma das obras é visto a tentativa de Gino de fugir da opressão do sistema em confronto com seus valores éticos e morais também apresenta o personagem do livro de Ondjaki representando a opressão a esses confrontos Ademais é perceptível que as obras literárias representam um diálogo que aponta aspectos estruturais que necessitam serem revistos na sociedade Os textos de maneira clara ampliam a percepção dos leitores sobre a função da literatura dentro da sociedade e como ela permite a associação da realidade através da escrita REFERÊNCIAS BENNETT Tony Putting Policy into Cultural Studies In C Nelson L Grossberg P Treichler eds Cultural Studies London New York Routledge 1992 P CONNELL R W Bob Masculinities Cambridge Polity Press 1995 CORTÊS D L A SANTOS J C N Memória e identidade em Honwana e Ondjaki uma análise intertextual 69ª Reunião Anual da SBPC 16 a 22 de julho de 2017 FARRA Ana Maria Dal Em torno da atual literatura africana de expressão portuguesa In Nau Literária crítica e teoria de literaturas PPGLETUFRS Vol 07 Janjun 2011 GAMAKHALIL Marisa Martins Memória e espacialidades reais e ficcionais em Nós choramos pelo cão tinhoso de Ondjaki 2011 HONWANA Luís Bernardo Nós matámos o CãoTinhoso 5a ed Lisboa Afrontamento 2000 LEE Harper To Kill a Mockingbird Vintage classics London Vintage 2000 ONDJAKI Nós choramos pelo cão tinhoso In Os da minha rua Rio de Janeiro Língua Geral 2007 p131136