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CAPÍTULO 8 DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos bem como o simples teste da qualidade da obra com o fim exclusivo de compra futura É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda aluguel ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa Você pode encontrar mais obras em nosso site LeLivrossite ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento e não mais lutando por dinheiro e poder então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível Michael J Sandel Sumário Copyright 2009 by Michael Sandel 2009 PROJETO GRÁFICO DA VERSÃO IMPRESSA Evelyn Grumach e João de Souza Leite Título original em inglês Justice CIPBRASIL CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS RJ Sandel Michael J Justiça recurso eletrônico Michael J Sandel tradução de Heloisa Matias e Maria Alice Máximo Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2015 Tradução de Justice Inclui bibliografia Formato ePub Requisitos do sistema Adobe Digital Editions Modo de acesso World Wide Web ISBN 9788520010976 recurso eletrônico 1 Justiça Filosofia 2 Valores 3 Ética 4 Livros eletrônicos I Título CDD 1722 CDU 1722 Todos os direitos reservados Proibida a reprodução armazenamento ou transmissão de partes deste livro através de quaisquer meios sem prévia autorização por escrito Este livro foi revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Direitos exclusivos desta edição reservados pela EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA Um selo da EDITORA RECORD LTDA Rua Argentina 171 Rio de Janeiro RJ 20921380 Tel 25852000 Seja um leitor preferencial Record Cadastrese e receba informações sobre nossos lançamentos e nossas promoções Atendimento e venda direta ao leitor mdiretorecordcombr ou 21 2585 2002 Produzido no Brasil 2015 Callie Smartt aluna do primeiro ano do ensino médio era popular na escola e participava da torcida organizada da Andrews High School no oeste do Texas O fato de ter paralisia cerebral e usar uma cadeira de rodas não diminuía o entusiasmo que inspirava nos jogadores e fãs de futebol americano com sua presença sempre animada à beira do campo nos jogos do time de juniores da escola No final da temporada no entanto Callie foi expulsa da torcida organizada1 Pressionada por outras meninas da torcida e pelos pais dessas jovens a diretoria da escola disse a Callie que se ela quisesse participar no ano seguinte teria de treinar como todas as demais e se submeter à rigorosa rotina de exercícios físicos incluindo splits e acrobacias O pai da líder da torcida comandou o movimento contra a permanência de Callie alegando preocupação com a segurança dela Mas a mãe de Callie achou que tudo era fruto da inveja dos aplausos que Callie sempre recebia A história de Callie levanta duas questões Primeiramente uma questão de equidade Ela deveria ter de fazer ginástica para participar da torcida organizada ou esse requisito seria injusto considerando sua deficiência Uma forma de se responder a essa pergunta seria invocar o princípio da não discriminação desde que desempenhasse bem seu papel Callie não deveria ser excluída da torcida apenas por não ter embora não fosse culpa sua capacidade física para desenvolver os movimentos acrobáticos O princípio da não discriminação no entanto não ajuda muito porque foge da questão no âmago da controvérsia O que é necessário para um bom desempenho em uma torcida organizada Aqueles que são contra a permanência de Callie alegam que para ser uma boa líder de torcida a pessoa deve saber fazer acrobacias e splits Afinal é dessa forma que as meninas costumam levantar a torcida Os defensores de Callie diriam que isso confunde o propósito da torcida organizada com uma das maneiras de desempenhar a função O verdadeiro objetivo da torcida é promover o espírito escolar e animar os fãs E quando Callie grita de um lado para o outro nas laterais do campo em sua cadeira de rodas agitando seus pompons e distribuindo sorrisos está desempenhando muito bem o papel que lhe cabe o papel de levantar o público Então para definir as qualificações necessárias precisamos decidir o que é essencial para uma torcida organizada e o que é meramente incidental A segunda questão levantada pelo caso de Callie é a indignação Que tipo de sentimento pode ter motivado o pai da líder da torcida Por que ele se incomodava tanto com a presença de Callie na equipe Não pode ser por temor de que Callie ocupe o lugar de sua filha porque sua filha já faz parte do grupo Tampouco pode ser simplesmente por temer que Callie possa ofuscar sua filha nas acrobacias o que não é o caso evidentemente Meu palpite é o seguinte talvez sua indignação seja o reflexo da impressão de que Callie possa estar recebendo uma honra que não merece e assim estar desmerecendo o orgulho que ele tem das conquistas da filha Se ser parte de uma torcida organizada é algo que se pode fazer em uma cadeira de rodas o mérito das pessoas que se destacam nas acrobacias e nos splits estaria sendo de certa forma depreciado Se Callie está apta a participar da torcida organizada porque tem apesar da deficiência as qualidades adequadas ao desempenho da função sua permanência realmente significa uma certa ameaça ao mérito das demais participantes Sua aptidão para as acrobacias já não parece tão essencial para a excelência da função parece ser apenas uma das maneiras entre outras de animar a multidão Ainda que tenha sido egoísta o pai da líder da torcida abordou a questão com propriedade Uma prática social que antes tinha um propósito definido e que delegava honras definidas a quem a desempenhava bem era agora graças a Callie redefinida Ela demonstrou que há mais de um requisito para ser uma líder de torcida Notemos a ligação entre a primeira questão a da equidade e a segunda a da glória e do ressentimento Para determinar os critérios para a participação na torcida organizada dentro de um princípio de justiça precisamos determinar sua natureza e seu propósito Do contrário não conseguiremos saber que qualidades lhe são essenciais Entretanto determinar a essência da torcida organizada pode ser controverso porque nos enreda em discussões sobre quais qualidades são merecedoras das honrarias O que deve ser considerado propósito da torcida organizada depende em parte das qualidades que achamos que devem ser reconhecidas e recompensadas Como esse episódio mostra as práticas sociais no caso não têm apenas um propósito instrumental incentivar a equipe mas também um propósito honorífico ou exemplar celebrar determinadas excelências e virtudes Ao escolher seu grupo de animadoras de torcida a escola não apenas promove o espírito escolar mas também determina as qualidades que espera que seus alunos admirem e tentem imitar Isso explica por que a disputa foi tão intensa E explica também por outro lado algo intrigante como as meninas que já faziam parte da equipe e seus pais podiam achar que tinham um interesse pessoal no debate sobre o caso de Callie Esses pais queriam que a torcida organizada prestigiasse as virtudes tradicionais de uma líder de torcida que suas filhas possuíam JUSTIÇA TÉLOS E HONRA Vista dessa forma a discussão sobre as líderes de torcida no oeste do Texas leva nos diretamente à teoria de justiça de Aristóteles As duas concepções centrais da filosofia política de Aristóteles estão presentes no caso de Callie 1 A justiça é teleológica Para definir os direitos é preciso saber qual é o télos palavra grega que significa propósito finalidade ou objetivo da prática social em questão 2 A justiça é honorífica Compreender o télos de uma prática ou discutir sobre ele significa pelo menos em parte compreender ou discutir as virtudes que ela deve honrar e recompensar A chave para compreender a ética e a política de Aristóteles é a definição da força dessas duas considerações e a relação existente entre elas Teorias modernas de justiça tentam separar as questões de equidade e direitos das discussões sobre honra virtude e mérito moral Elas buscam princípios de justiça que sejam neutros para que as pessoas possam escolher e buscar seus objetivos por conta própria Aristóteles 384322 aC não acha que a justiça possa ser neutra dessa maneira Ele acredita que as discussões sobre justiça sejam inevitavelmente debates sobre a honra a virtude e a natureza de uma vida boa Entender por que Aristóteles acredita que justiça e vida boa devem estar ligadas nos ajudará a entender o que está em jogo no esforço para dissociálas Para Aristóteles justiça significa dar às pessoas o que elas merecem dando a cada um o que lhe é devido Mas o que uma pessoa merece Quais são as justificativas relevantes para o mérito Isso depende do que está sendo distribuído A justiça envolve dois fatores as coisas e as pessoas a quem elas são destinadas E geralmente dizemos que pessoas iguais devem receber coisas também iguais2 No entanto surge aí uma questão difícil Iguais em que sentido Isso depende do que está sendo distribuído e das virtudes relevantes em cada caso Imaginemos que estamos distribuindo flautas Quem deve ficar com as melhores A resposta de Aristóteles os melhores flautistas A justiça discrimina de acordo com o mérito de acordo com a excelência relevante E no caso das flautas o mérito relevante é a aptidão para tocar bem Seria injusto basear a discriminação em qualquer outro fator como riqueza berço beleza física ou sorte como na loteria Berço e beleza podem ser bens mais valiosos do que a habilidade de tocar flauta e aqueles que os possuem podem postos na balança pesar mais do que o flautista nessas qualidades do que o peso que teria a capacidade dele de tocar mas o fato é que ele é quem deve receber as melhores flautas3 Há um aspecto interessante na comparação das excelências de naturezas muito diferentes Pode até mesmo parecer um disparate perguntar Eu sou mais bonito do que ela é uma boa jogadora de hóquei Ou Babe Ruth era um jogador de beisebol melhor do que Shakespeare era escritor Perguntas como essas só devem ter sentido em jogos de salão O que Aristóteles quer dizer é que ao distribuir flautas não devemos buscar os mais ricos ou mais bonitos nem mesmo a melhor pessoa de todas Devemos procurar o melhor flautista Essa ideia é totalmente rotineira Muitas orquestras testam os músicos que vão contratar fazendo com que toquem atrás de uma cortina para que a qualidade da música possa ser avaliada sem distorções ou perturbações A razão de Aristóteles já não é tão familiar O motivo mais óbvio para que se deem as melhores flautas aos melhores flautistas é que isso produzirá a melhor música proporcionando a nós ouvintes maior prazer Mas essa não é a razão de Aristóteles Ele acha que as melhores flautas devem ser dadas aos melhores flautistas porque é para isso que elas existem ser bem tocadas O objetivo das flautas é produzir excelente música Aqueles capazes de melhor cumprir esse propósito devem receber os melhores instrumentos Mas também é verdade que dar os melhores instrumentos aos melhores músicos terá o efeito agradável de produzir a melhor música o que todos apreciarão produzindo a maior felicidade para o maior número de pessoas No entanto é importante notar que a razão de Aristóteles ultrapassa essa consideração utilitarista Seu modo de raciocinar a partir do propósito de um bem para a devida alocação desse bem é um exemplo do raciocínio teleológico Teleológico vem da palavra grega telos que significa propósito fim ou objetivo Aristóteles argumenta que para determinar a justa distribuição de um bem temos que procurar o télos ou propósito do bem que está sendo distribuído O PENSAMENTO TELEOLÓGICO QUADRAS DE TÊNIS E O URSINHO POOH O raciocínio teleológico pode parecer uma forma estranha de pensar sobre justiça mas é de certa forma plausível Suponhamos que você seja o responsável por destinar as melhores quadras de tênis em um campus universitário Talvez você dê prioridade às pessoas que possam pagar mais por elas Ou pode priorizar as autoridades o presidente da universidade digamos ou cientistas vencedores do prêmio Nobel No entanto suponhamos que dois renomados cientistas estejam jogando uma partida de tênis com certa indiferença mal lançando a bola sobre a rede e a equipe da universidade apareça e queira usar a quadra Você não diria que os cientistas deveriam ir para uma quadra inferior para que os jogadores universitários pudessem usar a melhor quadra E seu argumento não seria que os melhores atletas podem fazer melhor uso das melhores quadras em vez de desperdiçálas com jogadores medíocres Ou suponhamos que um violino Stradivarius esteja sendo leiloado e que um rico colecionador faça uma oferta mais alta do que a de Itzhak Perlman O colecionador pretende expor o violino em sua sala de visitas Não consideraríamos isso um desperdício ou mesmo uma injustiça não por considerarmos o leilão injusto mas porque o resultado não é o mais adequado Por trás dessa reação pode estar o raciocínio teleológico de que um Stradivarius merece ser tocado não exposto para ser admirado No mundo antigo o raciocínio teleológico era mais comum do que nos dias atuais Platão e Aristóteles acreditavam que o fogo aumentava porque estava tentando alcançar o céu seu lar natural e que as pedras caíam porque queriam ficar mais perto da terra onde era seu lugar Achavase que a natureza mantinha uma ordem natural significativa Para compreender a natureza e o lugar que ocupamos nela era preciso entender seu propósito e seu significado essencial Com o advento da ciência moderna a natureza deixou de ser vista como uma ordem significativa Ao contrário passou a ser compreendida mecanicamente pelas leis da física Explicar os fenômenos naturais em termos de seus propósitos seus significados e suas finalidades passou a ser considerado algo ingênuo e antropomórfico Apesar dessas mudanças ainda somos tentados a ver o mundo como algo dotado de uma ordem teleológica como um todo com um determinado propósito Essa noção ainda subsiste especialmente nas crianças que devem ser ensinadas a não ver o mundo dessa maneira Percebi isso quando meus filhos ainda eram muito pequenos e li para eles o livro O ursinho Pooh de A A Milne A história mostra uma visão infantil da natureza encantada e animada pelo significado e pelo propósito das coisas No início da história o ursinho Pooh está andando pela floresta e se depara com um grande carvalho Do alto da árvore vem um zumbido alto O ursinho Pooh sentase ao pé da árvore coloca a cabeça entre as patas e começa a pensar Primeiro pensa Esse zumbido significa alguma coisa Não existiria um zumbido assim tão insistente sem um significado qualquer Se há um zumbido alguém está zumbindo e a única razão pela qual alguém zumbe que eu saiba é porque é uma abelha Ele pensa por mais um bom tempo e diz A única razão para ser uma abelha que eu saiba é fazer mel E então ele se levanta e diz E a única razão para fazer mel é para que eu possa comêlo Então começa a subir na árvore4 O raciocínio infantil de Pooh sobre as abelhas é um bom exemplo do raciocínio teleológico Quando nos tornamos adultos a maioria de nós deixa de lado essa maneira de ver o mundo natural considerandoa encantadora porém ultrapassada E ao rejeitarmos o raciocínio teleológico na ciência também somos levados a rejeitálo na política e na moral Mas não é fácil abandonar o raciocínio teleológico em relação às instituições sociais e às práticas políticas Atualmente nenhum cientista lê os trabalhos de Aristóteles sobre biologia ou física e os leva a sério Mas quem estuda ética e política continua a ler e a ponderar sobre a filosofia moral e política de Aristóteles QUAL É O TÉLOS DE UMA UNIVERSIDADE A discussão sobre a ação afirmativa pode ser repensada a partir do exemplo das flautas de Aristóteles Começamos por procurar os critérios justos de distribuição Quem tem o direito a ser admitido em uma universidade Ao abordar essa questão perguntamonos pelo menos implicitamente Qual é o propósito ou o télos de uma universidade Como acontece com frequência o télos não é óbvio mas contestável Alguns dizem que as universidades existem para promover a excelência acadêmica e que a promessa acadêmica deveria ser o único critério de admissão Outros dizem que elas também existem para atender a determinados propósitos cívicos e que a capacidade de ser um líder em uma sociedade diversificada por exemplo deveria fazer parte dos critérios de admissão Definir o télos de uma universidade parece essencial para que se determinem os critérios de admissão adequados Isso traz à tona o aspecto teleológico da justiça nas admissões às universidades Intimamente relacionada à discussão sobre o propósito de uma universidade há uma questão de mérito moral Que virtudes ou excelências as universidades efetivamente valorizam e recompensam Aqueles que acham que as universidades existem para celebrar e recompensar apenas a excelência acadêmica provavelmente rejeitarão a ação afirmativa por outro lado os que acreditam que as universidades também existem para promover determinados ideais cívicos talvez abracem essa ideia O fato de os debates sobre universidades e torcidas organizadas e flautas procederem naturalmente dessa forma confirma a concepção de Aristóteles as discussões sobre justiça e direitos com frequência são discussões sobre o propósito ou télos de uma instituição social o que por sua vez reflete noções conflitantes a respeito das virtudes que a instituição deveria valorizar e recompensar O que podemos fazer quando as pessoas discordam do télos ou propósito da atividade em questão É possível discutir o télos de uma instituição social ou o propósito de uma universidade é simplesmente digamos aquilo que foi determinado pela autoridade competente ou pelo conselho acadêmico Aristóteles acredita que o propósito das instituições sociais possa ser discutido Sua natureza essencial não é estabelecida definitivamente tampouco é apenas uma questão de opinião Se o propósito da Universidade de Harvard fosse simplesmente determinado pela intenção de seus fundadores sua função fundamental ainda seria o treinamento de ministros congregacionalistas Como podemos então discutir o propósito de uma prática social diante de uma divergência E como as noções de honra e virtude colocamse nessa questão Aristóteles dá sua resposta mais categórica para essas perguntas em sua análise da política QUAL É O PROPÓSITO DA POLÍTICA Quando analisamos a justiça distributiva atualmente preocupamonos principalmente com a distribuição de renda riqueza e oportunidades Para Aristóteles a justiça distributiva não se referia essencialmente a dinheiro mas a cargos e honrarias Quem deveria ter o direito de governar Como a autoridade política deveria ser distribuída À primeira vista a resposta parece óbvia equanimemente claro Um indivíduo um voto Qualquer outra alternativa seria discriminatória Mas Aristóteles adverte que todas as teorias de justiça distributiva discriminam A questão é Quais discriminações são justas E a resposta depende do propósito da atividade em questão Assim antes que possamos definir a distribuição dos direitos e da autoridade política devemos questionar o propósito ou télos da política Precisamos perguntar Para que serve a associação política Pode parecer impossível responder a essa pergunta Comunidades políticas distintas preocupamse com questões também distintas Uma coisa é discutir o propósito de uma flauta ou de uma universidade Não obstante haver margem para discussão os propósitos são mais ou menos circunscritos O propósito de uma flauta tem a ver com a música que ela produz o propósito de uma universidade tem a ver com a educação Mas será que podemos realmente determinar o propósito ou o objetivo de uma atividade política seguindo o mesmo critério Atualmente não pensamos na política como algo que tenha uma finalidade particular e independente mas como algo aberto às diversas finalidades que os cidadãos venham a adotar Não é por esse motivo que realizamos eleições para que as pessoas possam escolher em um determinado momento os propósitos e as finalidades que queiram atingir coletivamente Atribuir por antecipação qualquer propósito ou finalidade à comunidade política seria privar o cidadão do direito de decidir por si mesmo Haveria também o risco de impor valores que nem todos compartilham Nossa relutância em atribuir à política um determinado télos ou finalidade mostra uma preocupação com a liberdade individual Vemos a política como um procedimento que permite às pessoas escolher suas finalidades por conta própria Aristóteles pensa de maneira diferente Para ele o propósito da política não é criar uma estrutura de direitos neutra em relação às finalidades É formar bons cidadãos e cultivar o bom caráter Qualquer pólis que mereça ser assim chamada deve dedicarse ao propósito de promover a bondade Caso contrário uma associação política reduzirse á a uma mera aliança Caso contrário também a lei será transformada em um mero pacto uma garantia dos direitos dos homens contra seus semelhantes em vez de ser como deveria uma regra da vida para tornar seus membros bons e justos5 Aristóteles critica aqueles que considera os dois principais postulantes da autoridade política os oligarcas e os democratas Cada um tem sua reivindicação porém uma reivindicação apenas parcial Os oligarcas alegam que eles os abastados deveriam comandar Os democratas argumentam que o nascimento livre deve ser o único critério da cidadania e da autoridade política Mas ambos os grupos exageram em suas reivindicações porque em ambos os casos o propósito da comunidade política é mal interpretado Os oligarcas estão errados porque a comunidade política não envolve apenas proteção da propriedade ou promoção da prosperidade econômica Se fosse esse o caso quem tivesse propriedades teria direito à maior parte da autoridade política Por sua vez os democratas estão errados porque a comunidade política não serve apenas para dar à maioria o direito de decidir Por democratas Aristóteles compreende o que denominamos majoritários Ele repudia a noção de que o propósito da política seja satisfazer as preferências da maioria Ambos negligenciam a maior finalidade da associação política que para Aristóteles é cultivar a virtude dos cidadãos O objetivo do Estado não é proporcionar uma aliança para a defesa mútua ou facilitar o intercâmbio econômico e promover as relações econômicas6 Para Aristóteles política tem um significado mais elevado É aprender a viver uma vida boa O propósito da política é nada menos do que permitir que as pessoas desenvolvam suas capacidades e virtudes humanas peculiares para deliberar sobre o bem comum desenvolver um julgamento prático participar da autodeterminação do grupo cuidar do destino da comunidade como um todo Aristóteles reconhece a utilidade de outras formas menos elevadas de associação como pactos de defesa e acordos de livre comércio Mas insiste em afirmar que associações desse tipo não levam às verdadeiras comunidades políticas Por que não Porque suas finalidades são limitadas Organizações como a Otan o Nafta e a OMC só se preocupam com a segurança ou o intercâmbio econômico não pressupõem um modo de vida em comum que molde o caráter dos participantes E podese dizer o mesmo de uma cidade ou estado que só se preocupe com a segurança e com o comércio mostrandose indiferente à moral e à educação cívica de seus membros Se as partes mantiverem depois de se associar o mesmo espírito que demonstravam quando separadas escreve Aristóteles essa associação não pode ser realmente considerada uma pólis ou uma comunidade política7 Uma pólis não é uma associação visando à permanência em um local comum ou algo que tenha como objetivo evitar a injustiça mútua ou facilitar o intercâmbio Ainda que tais condições sejam necessárias para que exista uma pólis elas não são suficientes A finalidade e o propósito de uma pólis é uma vida boa e as instituições da vida social são meios de atingir essa finalidade8 Se a comunidade política existe para promover uma vida boa quais são as implicações para a distribuição de cargos e honrarias Tal como acontece com as flautas acontece na política Aristóteles parte do princípio do bem para determinar a maneira adequada de distribuílo Aqueles que mais contribuem para uma associação desse gênero são os que se destacam na virtude cívica os que melhor deliberam sobre o bem comum Aqueles que demonstram a maior excelência cívica não os mais abastados ou os mais numerosos ou os mais bonitos são os que merecem a maior parte do reconhecimento e da influência política9 Já que a finalidade da política é a vida boa os cargos e as honrarias mais importantes deveriam ser dados a pessoas que como Péricles se destacam na virtude cívica e na capacidade de identificar o bem comum Aqueles que têm bens devem ter voz ativa As considerações da maioria devem ser levadas em conta Mas a a maior influência deve ser daqueles com as qualidades de caráter e julgamento para decidir se quando e como se deve ir para a guerra contra Esparta O motivo pelo qual pessoas como Péricles e Abraham Lincoln devem ocupar os mais altos cargos e receber as maiores honrarias não é simplesmente porque implantarão políticas sábias tornando melhor a vida de todos Tratase também do fato de que a comunidade política existe pelo menos em parte para honrar e recompensar a virtude cívica Reconhecer publicamente o mérito daqueles que demonstram excelência cívica serve ao papel educativo de uma boa cidade Mais uma vez vemos como os aspectos teleológico e honorífico da justiça caminham juntos VOCÊ PODE SER UMA BOA PESSOA SEM PARTICIPAR DA POLÍTICA Se Aristóteles estiver certo ao considerar que o objetivo da política é a vida boa será fácil concluir que aqueles que demonstram maior virtude cívica serão merecedores dos mais altos cargos e honrarias Mas ele está certo em dizer que a política existe para promover a vida boa Na melhor das hipóteses essa é uma alegação controversa Nos dias atuais geralmente vemos a política como um mal necessário e não como uma característica essencial da vida boa Quando pensamos em política pensamos em concessões mútuas fingimento interesses corrupção Até mesmo os usos idealísticos da política como um instrumento de justiça social como uma forma de transformar o mundo em um lugar melhor a caracterizam como um meio de atingir uma finalidade uma profissão como qualquer outra e não um aspecto essencial do bem humano Por que então Aristóteles crê que participar da política é de certa forma essencial para alcançar uma vida boa Por que não podemos viver perfeitamente bem e deforma virtuosa sem política A resposta está em nossa natureza Só realizaremos plenamente nossa natureza como seres humanos se vivermos em uma pólis e participarmos da política Aristóteles nos considera seres criados para participar da associação política em grau mais alto do que as abelhas ou outros animais gregários A razão que ele dá é a seguinte a natureza não faz nada em vão e os seres humanos diferentemente dos outros animais possuem a faculdade da linguagem Outros animais podem produzir sons e sons podem indicar prazer ou dor Mas a linguagem capacidade essencialmente humana não registra apenas prazer e dor Ela também expressa o que é justo ou injusto distingue o certo do errado Não captamos tais coisas silenciosamente para depois lhes atribuir palavras a linguagem é o meio pelo qual discernimos e deliberamos sobre o bem10 Apenas por meio da associação política diz Aristóteles podemos exercitar a faculdade humana essencial da linguagem porque somente em uma pólis deliberamos com os demais sobre justiça e injustiça e sobre a natureza da vida boa Vemos assim que a pólis existe por natureza e antecede o indivíduo escreve ele no Livro 1 de A política11 Antecede nesse caso referese à função ou ao objetivo e não a algo cronologicamente anterior Os indivíduos as famílias e os clãs já existiam antes das cidades mas somente na pólis podemos realizar nossa natureza Não somos autossuficientes quando estamos isolados porque não podemos desenvolver nossa capacidade de linguagem e de deliberação moral O homem isolado incapaz de compartilhar os benefícios da associação política ou que não precisa compartilhálos por já ser autossuficiente não é parte da pólis e deve portanto ser uma besta ou um deus12 Portanto só realizamos nossa natureza quando usamos nossa faculdade da linguagem o que requer por sua vez que deliberemos com nossos semelhantes sobre o certo e o errado o bem e o mal a justiça e a injustiça Então por que podese perguntar só podemos exercitar essa capacidade de linguagem e deliberação na política Por que não podemos fazêlo em família nos clãs ou nas agremiações Para responder a essa pergunta precisamos analisar o conceito de virtude e vida boa que Aristóteles apresenta em Ética a Nicômaco Embora essa obra seja primordialmente um estudo da filosofia moral ela mostra a ligação entre virtude e cidadania A vida moral tem a felicidade como objetivo mas Aristóteles não concebe a felicidade como o fazem os utilitaristas maximizando o peso do prazer sobre a dor O indivíduo virtuoso é aquele que sente prazer e dor com as coisas certas Se alguém sente prazer em assistir a lutas de cães por exemplo consideramos isso um vício a ser superado e não uma verdadeira fonte de felicidade A excelência moral não consiste em agregar prazeres e sofrimentos mas em alinhálos para que possamos usufruir das coisas nobres e sofrer com as coisas reles A felicidade não é um estado de espírito mas uma maneira de ser uma atividade da alma em sintonia com a virtude13 Mas por que é preciso viver em uma pólis para que a vida seja virtuosa Por que não podemos aprender sólidos princípios morais em casa ou em uma aula de filosofia ou lendo um livro sobre ética para então aplicálos quando necessário Aristóteles diz que não nos tornamos virtuosos dessa maneira A virtude moral resulta do hábito É o tipo de coisa que aprendemos com a prática As virtudes que alcançamos ao exercitálas tal como acontece em relação às artes14 APRENDENDO COM A PRÁTICA Nesse sentido tornarse virtuoso é como aprender a tocar flauta Ninguém aprende a tocar um instrumento lendo um livro ou assistindo a aulas É preciso praticar Também ajuda ouvir músicos competentes e observar como eles tocam Ninguém se torna um violinista sem tocar violino O mesmo acontece com relação à virtude moral Tornamonos justos ao praticar ações justas comedidos ao praticar ações comedidas corajosos ao praticar ações corajosas15 Algo similar acontece com outras práticas e habilidades como cozinhar Publicamse muitos livros de culinária mas ninguém se torna um grande chef apenas por meio da leitura É preciso cozinhar muito Contar piadas é outro exemplo Ninguém se torna um comediante lendo livros de humor e colecionando historinhas engraçadas Tampouco pura e simplesmente aprendendo os princípios da comédia É preciso praticar o ritmo o tempo os gestos e o tom e assistir a Jack Benny Johnny Carson Eddie Murphy ou Robin Williams Se a virtude moral é algo que aprendemos com a prática devemos de alguma forma desenvolver primeiramente os hábitos corretos Para Aristóteles este é o princípio primordial da lei cultivar hábitos que façam de nós indivíduos de bom caráter Os legisladores tornam os cidadãos bons ao incutirlhes bons hábitos e é isso que todo legislador deseja aqueles que não o fazem não atingem seu objetivo e é aí que uma boa Constituição difere de uma ruim A educação moral está menos relacionada com a promulgação de leis do que com a formação de hábitos e a construção do caráter Não faz pouca diferença se cultivarmos hábitos de um tipo ou de outro desde muito jovens faz muita diferença ou melhor faz toda a diferença16 O fato de valorizar a importância do hábito não significa que Aristóteles considere a virtude moral uma forma de comportamento padronizado O hábito é o primeiro passo na educação moral Mas se tudo correr bem o hábito por fim é incorporado e passamos a entender o que ele significa A especialista em etiqueta Judith Martin conhecida como Miss Manners srta Boas Maneiras lamentou certa vez a perda do hábito de escrever cartas de agradecimento Atualmente tendemos a acreditar que os sentimentos substituem as boas maneiras observou ela desde que você se sinta grato não precisa preocuparse com essas formalidades Miss Manners discorda Eu acho muito pelo contrário que é mais seguro esperar que o bom comportamento encoraje os sentimentos virtuosos que se você escrever muitas cartas de agradecimento tenderá a sentir um pouco mais de gratidão17 É dessa forma que Aristóteles concebe a virtude moral Ao praticar o comportamento virtuoso estamos propensos a agir dentro dos preceitos de virtude É comum acreditar que agir de acordo com a moral significa agir de acordo com um preceito ou uma regra Mas Aristóteles acha que falta aí uma característica importante da virtude moral Você pode conhecer a regra correta e ainda assim não saber como ou quando deve aplicála A educação moral nos ensina a discernir as características específicas das situações que requerem essa ou aquela regra As questões relativas à conduta e às dúvidas sobre o que seja bom para nós não têm regras fixas não mais do que as questões de saúde Os próprios agentes devem considerar em cada caso o que é apropriado na ocasião tal como acontece na prática da medicina ou na arte da navegação18 A única afirmação genérica que pode ser feita em relação à virtude moral diz Aristóteles é que ela é um meio entre os extremos No entanto ele se apressa em admitir que tal generalização não nos leva muito longe porque não é fácil distinguir o meio em qualquer situação A questão é fazer a coisa certa para a pessoa certa na dimensão certa no momento certo pelo motivo certo e da maneira certa19 Isso quer dizer que o hábito ainda que seja essencial não pode ser tudo na virtude moral Novas situações sempre surgem e precisamos saber qual é o hábito adequado a cada circunstância A virtude moral portanto requer julgamento um tipo de conhecimento que Aristóteles denomina sabedoria prática Diferentemente do conhecimento científico que trata das coisas universais e necessárias 20 a sabedoria prática trata da maneira como se deve agir Ela deve reconhecer as particularidades porque é prática e prática tem a ver com as particularidades21 Aristóteles define a sabedoria prática como um estado racional e verdadeiro de capacidade de agir em relação ao bem humano22 A sabedoria prática é uma virtude moral com implicações políticas Os indivíduos com sabedoria prática são capazes de deliberar corretamente sobre o que é bom não apenas para si mesmos mas também para seus concidadãos e para os seres humanos em geral Deliberar não significa filosofar porque lida com as coisas mutáveis e particulares É algo orientado para a ação aqui e agora Mas é mais do que um cálculo Procura identificar o mais alto bem humano atingível em cada circunstância23 POLÍTICA E VIDA BOA Podemos ver agora com mais clareza por que para Aristóteles a política não é mais um ofício entre outros mas uma atividade essencial para a vida boa Primeiramente as leis da pólis incutem bons hábitos formam o bom caráter e nos colocam no caminho da virtude cívica Em segundo lugar a vida do cidadão nos permite exercitar capacidades de deliberação e sabedoria prática que de outra forma ficariam adormecidas Isso não é o tipo de coisa que podemos fazer em casa Podemos nos sentar em um canto e meditar sobre que tipo de diretriz adotaríamos se tivéssemos de decidir Mas isso não é o mesmo que participar de uma ação significativa e assumir a responsabilidade pelo destino da comunidade como um todo Só nos tornamos eficientes para deliberar quando entramos em campo avaliando as alternativas discutindo nosso argumento governando e sendo governados em suma praticando a cidadania A ideia de cidadania de Aristóteles é mais abrangente e exigente do que a nossa Para ele a política não é a economia praticada por outros meios Ela tem um propósito mais elevado do que a maximização da utilidade ou o estabelecimento de regras justas para que se alcancem os interesses individuais Ela é uma expressão de nossa natureza uma oportunidade para expandirmos nossas faculdades humanas um aspecto essencial da vida boa A defesa da escravidão por Aristóteles Nem todos estavam incluídos no conceito de cidadania adotado por Aristóteles As mulheres eram inelegíveis assim como os escravos De acordo com Aristóteles suas naturezas não os faziam adequados à cidadania Atualmente consideramos essa exclusão uma injustiça óbvia Vale lembrar que essas injustiças vigoraram por mais de 2 mil anos depois de Aristóteles Nos Estados Unidos a escravidão só foi abolida em 1865 e as mulheres só conquistaram o direito ao voto em 1920 Ainda assim a persistência histórica dessas injustiças não redime Aristóteles do fato de as aceitar No caso da escravidão Aristóteles não apenas a aceitava como também a justificava filosoficamente Vale a pena examinar sua defesa da escravidão para ver como ela esclarece sua teoria política como um todo Algumas pessoas veem na defesa de Aristóteles da escravidão uma falha no pensamento teleológico como tal outras a veem como uma aplicação equivocada de tal pensamento anuviada pelos preconceitos de sua época Não acho que a defesa de Aristóteles da escravidão contenha uma falha que condene sua teoria política como um todo Mas é importante vermos a força desse argumento tão extremo Para Aristóteles a justiça é uma questão de adequação Atribuir direitos é buscar o télos de instituições sociais e ajustar as pessoas aos papéis que lhes cabem aos papéis que lhes permitem realizar sua natureza Dar aos indivíduos seus direitos significa darlhes os ofícios e as honrarias que merecem e os papéis na sociedade que se adequem a sua natureza As teorias políticas modernas não aceitam muito bem a noção de adequação Teorias liberais de justiça de Kant a Rawls temem que as concepções teleológicas entrem em conflito com a noção de justiça Para elas a justiça não é questão de adequação mas de escolha Atribuir direitos não é ajustar as pessoas a papéis adequados à sua natureza é deixar que elas escolham sozinhas os próprios papéis Desse ponto de vista as noções de télos e adequação são suspeitas até mesmo perigosas Quem poderá estabelecer o papel que me é adequado ou apropriado à minha natureza Se eu não for livre para escolher meu papel social por conta própria poderei ser forçado a aceitar um papel contra minha vontade Portanto a noção de adequação pode facilmente transformarse em escravidão se aqueles que detêm o poder concluírem que um determinado grupo seja de alguma forma adequado a um papel subalterno Temendo que isso aconteça a teoria política liberal argumenta que os papéis sociais devem ser frutos de escolha e não de adequação Em vez de designar às pessoas os papéis que imaginamos adequados à sua natureza deveríamos permitir que elas escolhessem por conta própria seus papéis A escravidão é errada desse ponto de vista porque coage os indivíduos a desempenhar papéis que eles não escolheram A solução é rejeitar a ética do télos e da adequação em favor da ética da escolha e do consentimento No entanto essa é uma conclusão precipitada A defesa de Aristóteles da escravidão não vai de encontro ao pensamento teleológico Ao contrário a própria teoria de justiça de Aristóteles dá margem a críticas à sua concepção de escravidão Na realidade sua noção de justiça como adequação é moralmente mais exigente e tem uma postura potencialmente mais crítica quanto à distribuição do trabalho do que as teorias fundamentadas na escolha e no consentimento Para ver como examinemos o argumento de Aristóteles Para que a escravidão seja justa segundo Aristóteles é preciso preencher dois requisitos ela deve ser necessária e natural A escravidão é necessária diz Aristóteles porque alguém precisa cuidar das tarefas domésticas enquanto os cidadãos dedicam seu tempo a reuniões para deliberar sobre o bem comum A pólis requer uma divisão de tarefas A não ser que inventemos máquinas que possam fazer o trabalho braçal algumas pessoas deverão atender às necessidades da vida para que outras possam dedicarse à participação na política Assim Aristóteles conclui que a escravidão é necessária Mas a necessidade não basta Para que a escravidão seja justa é preciso que determinadas pessoas se adequem por sua natureza a desempenhar esse papel24 Aristóteles pergunta então se existem pessoas para as quais a escravidão é a melhor e mais justa condição ou se acontece justamente o oposto e toda escravidão é contrária à natureza25 A menos que existam pessoas assim a necessidade política e econômica de escravos não basta para justificar a escravidão Aristóteles conclui que existem pessoas assim Algumas pessoas nascem para ser escravas Elas diferem das demais tal como o corpo difere da alma Tais pessoas são escravas por natureza e é melhor para elas que sejam comandadas por um mestre26 Um homem é então um escravo por natureza se ele for capaz de se tornar e essa é a razão pela qual ele de fato se torna propriedade de outro e se ele conseguir identificar o raciocínio de outra pessoa embora ele próprio seja destituído de raciocínio27 Da mesma forma que alguns homens são livres por natureza outros são escravos por natureza e para estes o estado de escravidão é benéfico e justo28 Aristóteles parece perceber que há algo questionável nessa argumentação porque ele se apressa em explicála Mas é fácil entender que aqueles que têm opinião oposta também estão de alguma forma certos29 Analisando a escravidão como ela se apresentava na Atenas de sua época Aristóteles teve de admitir que os críticos tinham razão Muitos escravos encontravamse em tais condições por uma razão puramente contingente eram pessoas livres que haviam sido feitas prisioneiras de guerra O fato de serem escravos nada tinha a ver com sua adequação para desempenhar esse papel Para eles a escravidão não era natural mas resultado do azar Pelos próprios critérios de Aristóteles sua escravidão era injusta Nem todos os que são realmente escravos ou homens realmente livres são escravos naturais ou homens livres naturais30 Como saber quem se adequa à condição de escravo Aristóteles pergunta A princípio devese ver quem se é que existe alguém prospera como escravo e quem é forçado a isso e tenta fugir A necessidade do uso da força é um bom indício de que o escravo em questão não é adequado ao papel31 Para Aristóteles a coerção é um sinal de injustiça não porque o consentimento legitime todos os papéis mas porque a necessidade do uso da força sugere uma inadequação natural Aqueles que assumem papéis consistentes com sua natureza não precisam ser forçados a isso Para a teoria política liberal a escravidão é injusta porque é coercitiva Para as teorias teleológicas a escravidão é injusta porque contraria nossa natureza a coerção é uma característica da injustiça não sua origem É perfeitamente possível explicar dentro da ética do télos e da adequação a injustiça da escravidão e Aristóteles de certa forma embora não de todo segue esse caminho A ética do télos e da adequação na verdade estabelece um padrão moral mais exigente para a justiça do trabalho do que a ética liberal da escolha e do consentimento32 Consideremos uma função repetitiva e perigosa como trabalhar por várias horas na linha de montagem de uma fábrica de processamento de aves Esse tipo de trabalho é justo ou injusto Para os libertários a resposta dependeria da livre escolha dos trabalhadores em troca do salário se houver livre escolha o trabalho será justo Para Rawls a negociação só seria justa se a livre troca se desse em condições justas Para Aristóteles nem mesmo o consentimento sob condições justas é suficiente Para que o trabalho seja justo deve estar em conformidade com a natureza dos trabalhadores que o desempenham Alguns trabalhos não passam nesse teste São perigosos repetitivos e arriscados demais para se adequar à natureza dos trabalhadores que os executam Em casos assim a justiça requer que o trabalho seja reorganizado para adequarse à nossa natureza Caso contrário será um trabalho tão injusto quanto a escravidão O CARRINHO DE GOLFE DE CASEY MARTIN Casey Martin era um jogador de golfe profissional que tinha um problema na perna Devido a problemas circulatórios andar nos campos era muito doloroso para Martin e representava um sério risco de hemorragia e fratura Apesar da deficiência Martin sempre se destacou no esporte Ele jogou na equipe de Stanford na época da faculdade depois tornouse profissional Martin pediu permissão à PGA Associação Profissional de Golfe para usar um carrinho durante os campeonatos A PGA negoulhe o pedido citando o regulamento que proibia carrinhos em campeonatos profissionais Martin levou o caso à justiça Ele argumentou que a Lei dos Americanos com Deficiências 1990 exigia acomodações razoáveis para pessoas com deficiências desde que a mudança não alterasse fundamentalmente a natureza da atividade33 Alguns dos maiores nomes do golfe depuseram no caso Arnold Palmer Jack Nicklaus e Ken Venturi apoiaram a proibição aos carrinhos Eles argumentaram que a fadiga é um fator importante em um campeonato de golfe e que usar o carrinho em vez de andar daria uma vantagem injusta a Martin O caso foi levado à Suprema Corte dos Estados Unidos cujos juízes se viram diante de uma questão que parecia ter pouca importância e que se situava ao mesmo tempo aquém de sua dignidade e além de sua perícia Uma pessoa que se desloca em um carrinho de golfe de buraco em buraco é realmente um jogador de golfe34 Na verdade o caso levantou uma questão de justiça nos moldes aristotélicos clássicos para decidir se Martin tinha direito a usar o carrinho a corte precisou determinar a natureza essencial da atividade em questão Andar pelo campo é essencial à prática do golfe ou meramente incidental Se segundo a alegação da PGA andar era um aspecto essencial do esporte deixar Martin usar um carrinho seria alterar fundamentalmente a natureza do jogo Para resolver a questão dos direitos a corte precisou determinar o télos ou a natureza essencial do esporte A corte decidiu por 7 votos a 2 que Martin tinha direito a usar um carrinho de golfe O juiz John Paul Stevens em nome da maioria analisou a história do golfe e concluiu que o uso de carrinhos não interferia no caráter fundamental do jogo Desde o início a essência do esporte é o arremesso da bola usar os tacos para levar a bola a partir da marcação até um buraco a uma determinada distância com o mínimo possível de tacadas35 Quanto à alegação de que andar testa a resistência física dos jogadores Stevens citou depoimentos de um professor de fisiologia que calculou que apenas cerca de quinhentas calorias eram queimadas na caminhada pelos 18 buracos nutricionalmente menos do que um Big Mac36 Como o golfe é um esporte de baixa intensidade a fadiga do jogo é primordialmente um fenômeno psicológico em que o estresse e a motivação são os ingredienteschave37 A corte concluiu que permitir que Martin usasse um carrinho para compensar sua deficiência não alteraria os fundamentos do jogo ou o colocaria em uma posição injusta de vantagem O juiz Antonin Scalia discordou Em uma divergência inflamada ele repudiou a ideia de que a corte pudesse determinar a natureza essencial do golfe Seu argumento não foi apenas que juízes não têm autoridade ou competência para decidir a questão Ele desafiou a premissa aristotélica enfatizando a opinião da corte de que é possível raciocinar sobre o télos ou a natureza essencial de um jogo Dizer que alguma coisa é essencial é dizer de forma geral que ela é necessária para atingir determinado objetivo Mas uma vez que a própria natureza do jogo não tem outro objetivo além de divertir isso é o que distingue os jogos das atividades produtivas é praticamente impossível afirmar que qualquer regra arbitrária de um jogo seja essencial38 Já que as regras do golfe são como em todos os esportes totalmente arbitrárias escreveu Scalia não há fundamento para fazer uma avaliação crítica das regras estabelecidas pela PGA Se os torcedores não gostarem podem retirar seu apoio Mas ninguém pode dizer que essa ou aquela regra seja irrelevante para as aptidões que o golfe pretende testar O argumento de Scalia é questionável em vários pontos Primeiramente ele deprecia os esportes Nenhum torcedor de verdade falaria de esportes dessa forma como se fossem governados por regras inteiramente arbitrárias sem um objetivo real Se as pessoas realmente acreditassem que as regras de seu esporte favorito fossem arbitrárias em vez de elaboradas para incentivar e celebrar determinadas aptidões e talentos dignos de admiração dificilmente elas se importariam com o desfecho do jogo O esporte passaria a ser um espetáculo ou uma fonte de divertimento em vez de um objeto de admiração Em segundo lugar é perfeitamente possível discutir os méritos das diferentes regras avaliando se elas melhoram ou pioram o jogo Essas discussões ocorrem o tempo todo em programas de rádio ou entre as autoridades que regulamentam os jogos Consideremos o debate sobre a escolha do rebatedor em um jogo de beisebol Algumas pessoas acham que melhora o jogo pois permite que os melhores rebatedores batam evitando os lances ruins dos arremessadores mais fracos Outros dizem que o jogo é prejudicado pois se dá mais ênfase ao ato de rebater em detrimento de elementos de estratégia complexos Cada posição baseiase em uma determinada concepção do que há de melhor no beisebol Quais aptidões são testadas quais talentos e virtudes ele valoriza e recompensa A discussão sobre a regra do rebatedor é enfim um debate sobre o télos do beisebol da mesma forma que o debate sobre a ação afirmativa é um debate sobre o propósito da universidade Por fim ao negar que o golfe tem um télos Scalia ignora o aspecto honorífico da disputa Qual era afinal o real sentido da saga do carrinho de golfe que se estendeu por quatro anos Aparentemente era uma discussão sobre equidade A PGA e figuras importantes do golfe argumentaram que permitir que Martin usasse o carrinho seria darlhe uma vantagem injusta Martin contra argumentou que em vista de sua deficiência o carrinho não lhe proporcionaria nada além do nivelamento com os demais jogadores em campo Se a equidade fosse a única coisa em questão porém haveria uma solução fácil e óbvia permitir que todos os jogadores de golfe se deslocassem em carrinhos nos campeonatos Se todos pudessem fazer isso a objeção à equidade não existiria mais as essa solução seria um anátema para o golfe profissional ainda menos plausível do que abrir uma exceção para Casey Martin Por quê Porque a discussão tratava menos de equidade do que de honra e reconhecimento especificamente o desejo da PGA e dos melhores jogadores de que seu esporte fosse reconhecido e respeitado em um evento esportivo Permitamme abordar a questão da forma mais delicada possível golfistas são um pouco sensíveis quanto às condições de seu esporte Ele não envolve corridas nem saltos e a bola fica parada Ninguém tem dúvidas quanto à habilidade exigida pelo golfe Mas a honraria e o reconhecimento dados aos grandes golfistas dependem do fato de seu esporte ser visto como uma competição que demanda preparo atlético Se o jogo no qual eles se sobressaem puder ser desempenhado dirigindo um carrinho seu reconhecimento como atletas será questionado ou minimizado Isso pode explicar a veemência com a qual alguns profissionais do golfe recusaram o pedido de Casey Martin Tom Kite veterano havia 25 anos da PGA Tour declarou em um texto publicado no New York Times Pareceme que aqueles que apoiam o direito de Casey Martin de usar um carrinho ignoram o fato de que estamos falando de um esporte competitivo Estamos falando de um evento atlético E quem quer que seja que não considera o golfe um esporte atlético simplesmente nunca assistiu a um jogo ou participou de um39 A despeito de quem tenha razão sobre a natureza essencial do golfe o caso de Casey Martin levado à justiça federal ilustra claramente a teoria de justiça de Aristóteles Discussões sobre justiça e direitos são muitas vezes inevitavelmente discussões sobre o propósito das instituições sociais sobre os bens por elas destinados e sobre as virtudes que elas valorizam e recompensam Apesar das nossas tentativas de manter a neutralidade da lei em tais questões talvez não seja possível determinar o que é justo sem discutir a natureza da vida boa Notas Organização do Tratado do Atlântico Norte Acordo NorteAmericano de Livre Comércio e Organização Mundial do Comércio respectivamente N da E 1 A história de Callie Smartt foi relatada em Sue Anne Pressley A Safety Blitz Washington Post 12 de novembro de 1996 pp A1 A8 A análise que apresento aqui se remete a Michael J Sandel Honor and Resentment The New Republic 23 de dezembro de 1996 p 27 republicada em Michael J Sandel Public Philosophy Essays on Morality in Politics Cambridge Harvard University Press 2005 pp 97 100 2 Aristóteles The Politics A política edição e tradução para o inglês de Ernest Barker Nova York Oxford University Press 1946 livro III cap xii 1282b 3 Ibidem 4 A A Milne WinniethePooh 1926 Nova York Dutton Childrens Books 1988 pp 56 5 Aristóteles The Politics livro III cap ix 1280b 6 Ibidem 1280a 7 Ibidem 1280b 8 Ibidem 9 Ibidem 1281a livro III cap xii 1282b 10 Ibidem livro I cap ii 1253a 11 Ibidem 12 Ibidem 13 Aristóteles Nicomachean Ethics Ética a Nicômaco tradução para o inglês de David Ross Nova York Oxford University Press 1925 livro II cap 3 1104b 14 Ibidem livro II cap 1 1103a 15 Ibidem 1103a1103b 16 Ibidem 1003b 17 Judith Martin The Pursuit of Politeness The New Republic 6 de agosto de 1984 p 29 18 Aristóteles Nicomachean Ethics livro II cap 2 1104a 19 Ibidem livro II cap 9 1109a 20 Ibidem livro VI cap 6 1140b 21 Ibidem livro VI cap 7 1141b 22 Ibidem livro VI cap 5 1140b 23 Ibidem livro VI cap 7 1141b 24 Agradeço aqui à esclarecedora discussão em Bernard Williams Shame and Necessity Berkeley University of California Press 1993 pp 10329 25 Aristóteles The Politics livro I cap v 1254a 26 Ibidem 1254b 27 Ibidem 1254b 28 Ibidem 1255a 29 Ibidem livro I cap vi 1254b 30 Ibidem 1255b 31 Ibidem livro I cap iii 1253b 32 Para uma esclarecedora discussão sobre esse assunto ver Russell Muirhead Just Work Cambridge Harvard University Press 2004 33 PGA Tour v Martin 532 US 661 2001 34 Ibidem protesto do juiz Scalia em 700 35 Ibidem opinião do juiz Stevens em 682 36 Ibidem em 687 37 Ibidem 38 Ibidem protesto do juiz Scalia em 701 39 Tom Kite Keep the PGA on Foot New York Times 2 de fevereiro de 1998