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Álgebra Linear
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA UFBA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS FFCH CENTRO DE ESTUDOS AFROORIENTAIS CEAO PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓSGRADUAÇÃO EM ESTUDOS ÉTNICOS E AFRICANOS Estuciando o Barulho do Quilombo no Sertão Cariacá e Lajedo entrelaçares identitários insurgências lutas e resistências Paula Odilon dos Santos Orientadora Profa Dra Maria Rosário Gonçalves de Carvalho Salvador Bahia 2021 PAULA ODILON DOS SANTOS Estuciando o Barulho do Quilombo no Sertão Cariacá e Lajedo entrelaçares identitários insurgências lutas e resistências Tese de Doutorado apresentada ao Programa Multidisciplinar de Pósgraduação em Estudos Étnicos e Africanos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas FFCH Universidade Federal da Bahia UFBA como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Estudos Étnicos e Africanos Orientadora Profa Dra Maria Rosário Gonçalves de Carvalho Salvador Março de 2021 Biblioteca CEAO UFBA S237 Santos Paula Odilon dos Estuciando o barulho do quilombo no Sertão Cariacá e Lajedo entrelaçares identitários insurgências lutas e resistências Paula Odilon dos Santos 2021 355 f Orientadora Profª Drª Maria Rosário Gonçalves de Carvalho Tese doutorado Universidade Federal da Bahia Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Centro de Estudos ÀfroOrientais 2021 1 Comunidades quilombolas 2 Sertão BA 3 Identidade s I Carvalho Maria Rosário Gonçalves de II Universidade Federal da Bahia Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Centro de Estudos Áfro Orientais III Título CDD 3253 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA UFBA PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓSGRADUAÇÃO EM ESTUDOS ÉTNICOS E AFRICANOS TESE DE DOUTORADO Estuciando o Barulho do Quilombo no Sertão Cariacá e Lajedo entrelaçares identitários insurgências lutas e resistências Autora Paula Odilon dos Santos BANCA EXAMINADORA Profa Dra Maria Rosário Gonçalves de Carvalho Orientadora Programa de Pósgraduação em Estudos Étnicos e Africanos PósAfro UFBA Profa Dra América Lúcia Silva Cesar Programa de Pósgraduação em Estudos Étnicos e Africanos PósAfro UFBA Prof Dr Claudio Alves Furtado Programa de Pósgraduação em Estudos Étnicos e Africanos PósAfro UFBA Profa Dra Cristiane Batista da Silva Santos Programa de Pósgraduação em Educação PPGE UESC Profa Dra Paula Cristina da Silva Barreto Programa de Pósgraduação em Ciências Sociais PPGCS UFBA À Espiritualidade que me guia e à Ancestralidade que me ampara AGRADECIMENTOS Agradecer em parte significa contemplar o infinito buscando aquilo que se deseja assim como olhar para trás e observar a extensão dos caminhos percorridos bendizendo aqueles as que seguem contigo e que te veem de perto sendo igualmente grata aos que ficaram em um ponto importante da estrada haja vista que esta é atravessada por um processo de longevidade que jamais termina Na jornada empreendida permitome agradecer ao universo Invisível e visível que me cerca e que se fazem importantes em minha existência pessoal acadêmica profissional e principalmente espiritual já que os considero em parte sementes e pétalas de luz cujo perfume e fruto sinto e colho à medida que caminho sejam a passos lentos e ou apressados contudo sempre alcançados por aqueles as nos quais sinceramente acredito e reverencio Dos recônditos mais profundos da minha alma agradeço A Deus Força suprema e sublime na qual creio e deposito sonhos angústias medos e esperanças Presumo que vem Dele as mãos que senti impulsionando minhas costas todas as vezes que me dirigi à cidade do Salvador com o propósito de estudar Essa é uma experiência que me tranquiliza traz serenidade e ajudou a continuar mesmo quando algumas dificuldades apareceram e me fizeram pensar em trancar ou desistir do curso todavia desistir é para aqueles as que se fragilizam ou quebram no meio com facilidade A presença das Mãos me recordava quem eu sou uma cabocla sertaneja e como tal conforme enunciou o jornalista Euclides da Cunha o sertanejo é antes de tudo um forte acrescento a essa frase uma observação advinda do meu lugar de fala ou seja além de forte assim como a caatinga sobrevivemos e nos renovamos a cada estação movimentando o ciclo que floreia a vida A Jesus de Nazaré cuja transcendência me encanta Em muitos momentos das labutas da vida me deixo guiar por sua suavidade e amor sendo meu irmão e pai de fato o tenho como modelo e guia Colo da minha tristeza confidente dos meus projetos e alegrias Aprendi a sentilo em três representações com as quais dialogo e que significam para mim resistência misericórdia e luz Desse modo agradeço ao Senhor Bom Jesus da Lapa a Jesus Misericordioso e ao Bom Jesus do Bonfim três representações distintas mas que sempre me falam na linguagem que eu posso ouvir À Senhora Iemanjá dona de meu Ori e das subjetividades que emanam do meu ser É ela que sempre toma minha guerra fazendo toda a areia necessária para me proteger das tempestades que por vezes se apresentam no caminho Moça bonita e docemente forte que influencia minha personalidade e direciona atitudes À Maria de Nazaré espírito iluminado em quem confio e a quem me curvo para levantar mais forte À Nossa Senhora da Conceição Aparecida por sua interseção tão presente em minha vida e por me encontrar em todas as demandas À Santa Bárbara e a Santa Luzia por sua força e proteção À Cabocla Jurema das Matas ela que através de sua simplicidade e sabedoria tem me ensinado a enxergar fatores que nem sempre consigo divisar por mim mesma Agradecer a Espiritualidade à qual me consagrei e que me guarda se faz sumamente importante nesse momento por que sei que devo a eles os caminhos abertos para a realização desse estudo assim como para continuar caminhando De igual modo desejo estender os agradecimentos àquelas e àqueles que partilham comigo a existência e que em muitas circunstâncias são apoiadores cúmplices e estimuladores dos desejos que carrego na alma À minha mãe Olindina fonte de amor incondicional Mulher de personalidade forte cuja bravura e caráter sempre foram referências em minha vida sobretudo quando através de suas posturas é capaz de desafiar nosso contexto e os lugares que o sertão elencou para as mulheres As rezas e os benzimentos de minha mãe influenciam em muitos momentos o equilíbrio espiritual que necessito para continuar as travessias que me proponho Ao meu irmão Washington Ninho pelos cuidados em todas as circunstâncias e pelo seu bom humor invejável capaz tanto de me tirar do sério quanto de me fazer sorrir trazendo um pouco mais de graça ao nosso cotidiano À minha avó Laurentina dona Loló in memoriam mulher sertaneja que com suas rezas benzimentos leituras e ensinamentos ajudou a modelar nossa trajetória enquanto família Mesmo ausente fisicamente sintoa perto de nós Aos pequenos Luna e Bóris meus dois grandes amores de patinhas felpudas e olhos brilhantes Ao amigo e compadre Valmir dos Santos da comunidade quilombola de Tijuaçu por seu apoio e esclarecimentos constantes Permaneço imensamente agradecida aos atores sociais das comunidades quilombolas de Cariacá Lajedo e Grota das Oliveiras por terem me recebido na intimidade de suas vidas e de suas residências colaborando ativamente para que esta tese fosse escrita Além das narrativas e informações agradeço principalmente a acolhida que recebi dos mesmos as a troca de saberes e o afeto compartilhado haja vista que esse é o único sentimento que enobrece a alma É sincero o carinho que nutro por todas essas pessoas contudo quero agradecer precisamente à dona Luci detentora de uma alma perfumada À Naide D Maria Seu Fernando e os pequenos Valentina e Vinícius meus afilhados pela acolhida em suas casas pela companhia nas atividades e principalmente por me fazerem sentir tão bem entre os mesmos À D Antônia Joice Milene Ítala Raiane e Geovane à Ninha Milena e o pequeno Luquinhas à Jéssica moça valente e destemida Sou grata também à D Ivone à Tânia e à D Maria Dias à Regina José Nunes Mônica e a Sorriso por sempre me facultarem o encontro entre a pesquisadora e a mulher de fé Aos senhores Menininho e José Preto in memoriam Seu Epifânio Seu Nem D Adelaide D Raquel Seu Bira e a D Elvira que de maneira muito simpática conversaram muito comigo Enfim a toda população da comunidade quilombola de Cariacá pois mesmo aqueles as com quem não dialoguei e ou entrevistei diretamente sem exceção contribuíram para minha estadia ali e geralmente me recebem com uma cortesia que me faz desejar ficar Agradeço particularmente à Rose minha anfitriã e companhia constante em Lajedo à D Dália Seu João Colado e ao Zé que cuidadosamente me ajudava a subir serras e andar por trilhas temendo que eu pudesse deslizar e cair aos senhores Gilberto Joaquim Alberto e Heranga à senhora Mariene dona de uma personalidade amorosa e discreta sempre muito preocupada com meu bem estar à D Maria do Rosário Seu Timóteo à professora Rosa e Seu Armando à Juci Narcisa e Seu Valdevino à D Miúda mulher fascinante e em grande parte responsável pela renovação do fluxo da vida em sua comunidade À D Roxa Valvínia Mili e Alberto meu carinho e terno agradecimento sentimento que estendo a toda a população de Lajedo que além da alegria da convivência me legaram o exemplo de suas lutas e resistências A Joseline Seu Jorge D Nina e Seu Arquimino a Eliane Vânia e Seu João amigos queridos da comunidade quilombola de Grota das Oliveiras Pegando carona nos braços do Rio Itapicuruaçu até os mares de Salvador desejo agradecer àqueles as que conheci na Universidade Federal da Bahia UFBA e que muito contribuíram para meu amadurecimento enquanto pesquisadora itinerante Assim sendo sou grata à Professora Doutora Maria Rosário de Carvalho minha orientadora pela acolhida esclarecimentos e por que juntas escrevemos o texto que apoia esta tese Os comentários e intervenções da professora Rosário desde o mestrado foram norteadores para os caminhos que desejo percorrer Ao Professor Doutor Claudio Furtado a quem admiro sinceramente por sua sensibilidade e respeito na convivência com os acadêmicos as e ainda por seus comentários altamente esclarecedores durante as aulas e após esse período À Professora Doutora América César cuja gentileza e nobreza de alma se fazem referência em minha caminhada Aos professores as Paula Barreto Marcelo Cunha Ângela Figueredo Jeferson Bacelar e Jocélio Teles por suas aulas e atenção que me foram dispensadas À Lindinalva Barbosa pelo carinho de sempre Aos colegas de curso de modo especial a Benedito Bené pelos diálogos e cumplicidade no que se refere as nossas pesquisas A todos aqueles as que me encontraram e que divisei ao longo do caminho enternecida digo obrigada Continuemos a caminhar Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e assim descobrindose com eles sofrem mas sobretudo com eles lutam PAULO FREIRE 1968 p 23 RESUMO Esta tese trata do reaparecimento das comunidades quilombolas de Cariacá e Lajedo na porção norte do sertão baiano procurando demonstrar como as mesmas tecem seu processo de construção identitária a partir do momento em que descobrem sua tradicionalidade fator que lhes permite reorientar trajetórias que passam a ser caracterizadas por ciclos sucessivos de ressemantização no decorrer dos quais a redescoberta da etnicidade assume o lugar de linguagem e agencia o rito simbólico de passagem que possibilita o transmutar itinerante da condição de comunidade negra rural relegada ao preconceito racial e à inferiorização social para a construção do significado de comunidade quilombola A costura identitária é pensada nesta etnografia por meio do diálogo estabelecido com o movimento que acontece como um fluxo e que os interlocutores as denominam de Barulho do Quilombo assim como através do encontro entre a pesquisadora e os jeitos de ser e de se perceber quilombola traduzidos através da criatividade que entrelaça os saberes fazeres e vivências descortinados por intermédio das memórias orais cujas narrativas foram primordiais para auxiliar a composição da história dessas comunidades suas labutas e resistências influenciadas em muitos momentos pela espiritualidade capaz de agregar ora as potências divinas ora entidades invisíveis pelas quais se permitem afetar A etnogênese experimentada por esses grupos tem lugar ao longo de um conjunto de etapas a saber a caminhada política mobilizada por suas associações instituições que são tratadas nessa pesquisa como agentes pedagógicos a ressignificação das atividades culturais e a atualização constante de suas religiosidades Em ambos os grupos prevalece uma atitude de contínua reinvenção e autoria Palavraschave comunidades quilombolas Cariacá Lajedo resistências sertão identidade s ABSTRACT This thesis deals with the appearance of the quilombola communities of Cariacá and Lajedo in the northern portion of the Bahian hinterland trying to demonstrate how they weave their identity construction process from the moment they discover their traditionality factor which allows them to reorient trajectories that are characterized by successive cycles of redismantling in which the rediscovery of ethnicity takes the place of language and the symbolic rite of passage that allows the itinerant transmute of the condition of rural black community relegated to racial prejudice and social inferiorization for the construction of the meaning of quilombola community The identity seam is thought in this ethnography through the dialogue established with the movement that happens as a flow and which the interlocutors call the Quilombo Noise as well as through the encounter between the researcher and the ways of being and being to understand quilombola translated through creativity that interweaves knowledge practices and experiences unveiled through oral memories whose narratives were primordial to help the composition of the history of these communities their toils and resistances influenced in many moments by spirituality capable of to aggregate now the divine powers now invisible entities by which they allow themselves to be affected The ethnogenesis crossed by these populations is also demonstrated from the following elements namely the political walk mobilized by their associations institutions that are conceived in this research as pedagogical agents the resignification of cultural activities and the constant updating of their religiosities characters that allow in both groups an attitude of continuous reinvention and authorship Keywords Maroon communities Cariacá Lajedo resistances backcountry identity s RESUMEN Esta tesis trata sobre la aparición de las comunidades quilombolas de Cariacá y Lajedo en la parte norte del interior de Bahía tratando de demostrar cómo tejen su proceso de construcción de identidad desde el momento en que descubren su tradicionalidad factor que les permite reorientar trayectorias que se caracterizan por ciclos sucesivos de desmantelamiento en el que el redescubrimiento de la etnicidad toma el lugar del lenguaje y el rito simbólico del pasaje que permite la transmutación itinerante de la condición de la comunidad negra rural relegada a prejuicio racial e inferiorización social para la construcción del significado de la comunidad quilombola La costura de la identidad se piensa en esta etnografía a través del diálogo establecido con el movimiento que sucede como un flujo y que los interlocutores llaman el ruido Quilombo así como a través del encuentro entre el investigador y las formas de ser y ser comprender quilombola traducida a través de la creatividad que entrelaza conocimientos prácticas y experiencias revelada a través de recuerdos orales cuyas narraciones fueron primordiales para ayudar a la composición de la historia de estas comunidades sus esfuerzos y resistencias influenciados en muchos momentos por la espiritualidad capaces de para agregar ahora los poderes divinos ahora entidades invisibles por los cuales se dejan afectar La etnogénesis atravesada por estas poblaciones también se demuestra a partir de los siguientes elementos a saber la marcha política movilizada por sus asociaciones instituciones que se conciben en esta investigación como agentes pedagógicos La resignificación de las actividades culturales y la constante actualización de sus religiosidades personajes que permiten en ambos grupos una actitud de continua reinvención y autoría Palabras clave comunidades quilombolas Cariacá Lajedo resistencias sertão identidade s LISTA DE IMAGENS Imagem 1 Encontro promovido em campo reunindo os atores sociais de Cariacá Lajedo e Grota das Oliveiras 35 Imagem 2 Entrada da Comunidade 83 Imagem 3 Casarão que pertenceu a D Trindade Muricy 99 Imagem 4 Estrada rural que até junho de 2017 ligou a comunidade de Cariacá até o município de Senhor do Bonfim 104 Imagem 5 Casas localizadas na Rua Cariacá Central 106 Imagem 6 Escola Municipal de Cariacá 109 Imagem 7 Curso estreito do Rio da Prata em Cariacá de Baixo 122 Imagem 8 Capela de Nossa Senhora Aparecida 124 Imagem 9 Lagoa da comunidade de Teiú 126 Imagem 10 Acesso à localidade de Teiú com pontos de alagamento 127 Imagem 11 Estrada de acesso a comunidade de Cruzeiro 129 Imagem 12 Casa que pertenceu a uma Família Congo 130 Imagem 13 Curso de Formação para Lideranças Quilombolas 132 Imagem 14 Da esquerda para a direita Tânia Ninha e Mônica durante o curso de Formação para Lideranças Quilombolas 148 Imagem 15 Glícia Milena Gomes da Silva 151 Imagem 16 D Maria da Silva Neris 155 Imagem 17 D Luzia Gomes 156 Imagem 18 D Luciana de Freitas Silva 158 Imagem 19 Bandeira da AQCA 163 Imagem 20 I Encontro do Novembro Negro em Cariacá 166 Imagem 21 Caminhos que conduzem ao Lajedo 167 Imagem 22 Olho dágua do Rio Preto 170 Imagem 23 Cachoeira do Gelo 182 Imagem 24 Garimpo de Quartzo Verde desativado 184 Imagem 25 Escola Manuel Dias dos Santos 185 Imagem 26 Casa de família quilombola na região dos Félix 187 Imagem 27 Casa de família quilombola na região dos Aprígio 188 Imagem 28 Cozinha da casa de D Mariene 190 Imagem 29 Casa de farinha na região dos Aprígio 193 Imagem 30 Seu Joaquim D Idália Seu João Colado e Seu Valdevino 194 Imagem 31 Dona Miúda 204 Imagem 32 Dona Miúda arrumando lenha em sua cozinha 205 Imagem 33 Reunião da Associação Quilombola 235 Imagem 34 Encontro entre comadres na comunidade Grota das Oliveiras 237 Imagem 35 Via de acesso a Grota das Oliveiras 246 Imagem 36 Reunião em casa de Seu Jorge dos Santos 248 Imagem 37 Roda de Conversa com os moradores 251 Imagem 38 Crianças da comunidade à espera do transporte escolar 253 Imagem 39 Grupo Samba de Palmas e Versos 261 Imagem 40 Cruzeiro de Nossa Senhora da Conceição Aparecida 266 Imagem 41 Subida ao Cruzeiro 268 Imagem 42 Batalhão para cascalhar a estrada 272 Imagem 43 Apresentação do Quilombart na comunidade quilombola de Tijuaçu 274 Imagem 44 Milena contando a história do grupo 281 Imagem 45 Apresentação do Quilombart durante a primeira etapa do curso de Formação para Lideranças Quilombolas 285 Imagem 46 Bandeira do Grupo Quilombart 288 Imagem 47 Almoço Coletivo 293 Imagem 48 Início das Atividades 294 Imagem 49 Roda de Lajedo 297 Imagem 50 Samba do Lajedo 399 Imagem 51 Primeira festa realizada em Lajedo em homenagem a São Benedito 301 Imagem 52 Altar da missa de Santo Antônio em 2019 313 Imagem 53 Capela de São Sebastião 316 Imagem 54 Altar da celebração do dia de São Sebastião em janeiro de 2018 318 Imagem 55 Velas em intenção às almas 320 Imagem 56 Procissão de São Sebastião em 2018 321 Imagem 57 Altar da celebração do dia de São Sebastião em 2020 323 Imagem 58 Andor de Santa Rita de Cássia em 2017 327 Imagem 59 Novenário de Santa Rita de Cássia em 2018 329 Imagem 60 Saída da procissão de Santa Rita 331 Imagem 61 Andor de Santa Rita de Cássia durante o novenário de 2019 332 Imagem 62 Louvação de Seu Alberto a São Benedito 339 Imagem 63 Oratório de São Benedito ao lado da Associação 341 Imagem 64 Entrada para a Festa de São Benedito 342 Imagem 65 Entronização da imagem de São Benedito no andor 344 Imagem 66 Segunda procissão realizada em homenagem a São Benedito em Lajedo em 2019 348 LISTA DE MAPAS E FIGURAS Figura nº 01 Mapa do Consórcio de Desenvolvimento Sustentável do Piemonte Norte do Itapicuru 95 Figura nº 02 Mapa das Estações Ferroviárias do Brasil 101 Mapa 1 Localização da VilaCentro de Cariacá e das localidades do perímetro 120 Mapa 2 Localização da comunidade de Lajedo na Grota Quilombola 171 Mapa 3 Regiões de Lajedo 173 Mapa 4 Organização das residências dos Anciãos de Lajedo que residem em Saúde 228 Mapa 5 Comunidade de Lajedo Grota das Oliveiras e Água Fria 257 LISTA DE TABELAS Tabela 1 Mesadiretora da Associação 165 Tabela 2 Demonstrativo das Famílias de Lajedo agrupadas por região 179 Tabela 3 Demonstrativo da trajetória percorrida pelos moradores as para comercializar os produtos de suas roças em feiras livres da região 195 Tabela 4 Anciãos de Lajedo que residem atualmente em Saúde 225 LISTA DE SIGLAS AAQTA Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências APEB Arquivo Público do Estado da Bahia APAGO Associação dos Pequenos Agricultores de Grota das Oliveiras AQCA Associação Quilombola de Cariacá e Adjacências AQPAL Associação Quilombola de Pequenos Agricultores do Lajedo COELBA Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia CPT Comissão Pastoral da Terra EBDA Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional PARFOR Programa Nacional de Formação de Professores da Educação Básica PSF Posto de Saúde da Família UFBA Universidade Federal da Bahia UNEB Universidade do Estado da Bahia RTID Relatório Técnico de Identificação e Delimitação VFLB Viação Férrea Federal Leste Brasileira CONVENÇÕES GRÁFICAS Em todo o texto da tese o discurso direto expresso pelos interlocutores as é apresentado com letra do tipo itálico para diferenciálo de outras citações As palavras que se encontram apresentadas em aspas duplas de igual modo fazem referências às expressões nativas cuja transcrição foi feita a partir de gravações assim como de anotações realizadas pela pesquisadora ao longo da participação observante Foram conservados os nomes próprios e os apelidos dos atores sociais que participaram da construção desta etnografia com o cuidado de não lhes ocasionar prejuízos de ordem pessoal política e social SUMÁRIO PRINCÍPIOS DA TESE 23 1 ESTUCIANDO O BARULHO DO QUILOMBO 35 11 Conversando com a Negritude Sertaneja 49 111Traçados e Trançados da Negritude Sertaneja 57 112 Prestando Assunto 59 113 Autoridade para botar bença 64 114 O Respeito pelas Horas Mortas a Obediência e o Zelo da Proteção 67 115 Cumprimento da Palavra se fazendo homem e se botando mulher 77 2 CARIRI CARIACÁ 83 21 Uma Comunidade que tece um fluxo Afroindígena 87 212 Vestígios das Terras da Fazenda Cariacá 94 22 Apresentando a VilaCentro 103 221 Andando pelas ruas de Cariacá de Cima 105 222 Percorrendo o Território 119 2221 Cariacá de Baixo 121 2222 A Comunidade de Limões 123 2223 A Comunidade de Teiú 125 2224 A Comunidade de Cruzeiro 128 3 AQUI É TUDO CONGO QUILOMBOLA 132 31 Mulher Congo é Mulher que tem Bigode 141 311 Armadora de Judas e Articuladora da Luta Quilombola Rosângela Gomes de Oliveira 144 312 Da costura de tecidos à tomada de decisões na Associação Quilombola de Cariacá e Adjacências AQCA Tânia Maria da Silva Dias 148 313 Arte de transformar a dança a serviço do sonho para as meninas e meninos da comunidade Glícia Milena Gomes da Silva 150 314 Guardiã da capela de São Sebastião e estimuladora da espiritualidade das mulheres da Família Congo Maria da Silva Neris 154 315 Do trançado da História aos rearranjos do presente Luciana de Freitas Silva 157 32 O nascimento de uma Associação Quilombola é semelhante ao nascimento de uma criança 161 4 AQUI SE TIVESSE UMA ESTRADA TODO MUNDO CONHECIA O LAJEDO 167 41Conhecendo o Lajedo 172 411 Pelejando 191 42 Artes do Nascimento 200 421 Ritos de Parição 206 43 Artes do Casamento 216 44 Artes da Migração 224 45 Quando os ecos produzidos pelo Barulho do Quilombo chegam ao Lajedo 231 5 QUANDO AS RELAÇÕES DE COMPADRIO EXPANDEM OS LAÇOS DO PARENTESCO 237 51Grota das Oliveiras o movimento itinerante dos outros descendentes de Quitero 244 511 De mamando a caducando aqui todo mundo reza e samba 257 512 A Força que vem da Fé um cruzeiro oferecido a Nossa Senhora da Conceição Aparecida 262 52 Representações sobre Ser Quilombola 270 6 QUILOMBART O DESPERTAR DA CULTURA ATRAVÉS DAS RAMAS NOVAS 274 61 Aqui a gente não tem brincadeira nenhuma não 289 7 FÉ ESPIRITUALIDADE E DEVOÇÃO CONVERSAS COM OS ENTRELAÇARES DA UMBANDA SERTANEJA 301 71Quando São Sebastião proteje o Cariacá da fome da peste e da guerra 312 72 Uma rosa para Santa Rita nos valer das causas impossíveis 324 73 Em Lajedo São Benedito veio do rio 333 731 Celebrando o dia de São Benedito 339 CONSIDERAÇÕES FINAIS OU A DIFÍCIL TAREFA DE COLOCAR UM PONTO SEM INTENÇÃO DE FINALIZAR 350 REFERÊNCIAS 355 ANEXOS 23 PRINCÍPIOS DA TESE Peço licença para abrir esta tese atravessando os caminhos que conduzem aos sertões1 que guardam histórias seculares algumas bastante conhecidas outras sufocadas muitas adormecidas e ainda aquelas que apenas recentemente começaram a ser contadas com maior frequência e profundidade entre as quais situo as histórias concernentes aos quilombos sertanejos Esses grupos ao reaparecerem corrigem a considerada história oficial que durante muito tempo permaneceu omissa à existência dessas populações ao mesmo tempo em que demonstram a intensidade do povoamento assim como das construções simbólicas políticas econômicas sociais e culturais modeladas pelos atores sociais negros as que devido à indústria da escravidão foram levados por motivos diversos a migrar para essa parte do país aí permanecendo durante muito tempo despercebidos Não obstante a partir do ano de 1994 estimulados pelos desdobramentos do Primeiro Encontro Nacional de Comunidades Negras Rurais começaram a protagonizar um processo de ressurgência parecido com aquele que se verificou entre muitas etnias indígenas do Nordeste O citado evento começou a promover entre esses agentes o despertar da consciência no que se refere à sua condição de grupo tradicional até então pouco notabilizada talvez por estar metamorfoseada em uma situação camponesa o que possibilitaria o início de um movimento denominado nesta tese de Barulho do Quilombo2 O convite para comparecer ao referido encontro chegou a essas comunidades3 através do trabalho de divulgação e incentivo realizado pelas igrejas Católicas locais mais precisamente por intermédio de grupos ligados à Comissão Pastoral da Terra CPT e em casos específicos a disseminação dessa informação foi feita por padres que atuavam em paróquias onde sabiam existir comunidades divisadas como eminentemente negras De acordo com as narrativas oferecidas pelas vozes do lugar o primeiro desafio a ser enfrentado em alguns desses grupos que não estavam acostumados a esse tipo de discussão foi conseguir representantes que se dispusessem a participar do evento Muitas 1 O sertão baiano é aqui pensado a partir de sua porção norte como se verá nos capítulos subsequentes 2 Conforme descrito de maneira especial no Capítulo 1 3 A partir do comparecimento nessa atividade teve início o processo de emergência das comunidades quilombolas que se encontram localizadas na região norte 24 dessas pessoas não tinham o hábito de sair de suas comunidades para realizar esse tipo de atividade o que suscitou uma espécie de estranhamento em relação ao que estava sendo proposto Ademais o fato de que muitos as nunca haviam ido à capital do Estado provavelmente causou receio do desconhecido É oportuno observar que a condição de ator social negro naquele contexto até então se encontrava associada sobretudo ao preconceito e a atitudes de discriminação muitas das quais sem qualquer tipo de reparação e ou punição O convite recebido representou assim a possiblidade para esses sujeitos se autoperceberem certamente pela primeira vez como visualizados de forma positiva em função de sua ancestralidade4 Escutar e ou estuciar5 os ecos produzidos pelo Barulho do Quilombo significa em parte compreender as diversas formas como esses grupos agenciaram e permanecem agenciando seus modos de vida transformando os espaços ocupados e estabelecendo com os mesmos diálogos nos quais sobressaem os atributos que elegeram para reescrever suas vivências e amparar suas existências Eles acionam princípios ora ancorados no que herdaram de seus ancestrais ora pautados nas ressignificações que estabeleceram à luz de peculiaridades individuais coletivas e geracionais capazes de imprimir nesses espaços sertanejos pouco divisados como guardadores e multiplicadores de legados africanos as marcas de suas etnicidades que atualmente transparecem e são manejadas como sinais comunicantes de suas insurgências labutas e resistências Traduzir as memórias e histórias dessas populações equivale a entrar em contato com o caminhar de sujeitos que ao atravessarem e participarem desse processo de emergência que se faz contínuo mantêm de igual modo a oportunidade de reorientar suas vidas assim como os percursos trilhados por suas comunidades encontrando em sua Negritude6 em seus saberes e vivências outros contornos para reescrever suas trajetórias migrando de posições subalternas a que foram relegados para a construção de suas identidades e autorias Eles atravessam um rito simbólico de passagem que conforme propõe Bartolomé 2006 propicia que velhos atores passem a exercer novos papéis por meio de um 4 As comunidades de Cariacá e Lajedo não enviaram representantes a esse seminário contudo as informações a ambos os grupos chegaram através do senhor Valmir dos Santos e dos contatos estabelecidos com os quilombolas da comunidade de Tijuaçu 5 No âmbito do Capítulo 1 faço referência a esse termo esclarecendo a forma como o mesmo apareceu e é utilizado pelos interlocutores as 6 O vocábulo é aqui disposto de modo a evocar a forma como o mesmo é pensado e descrito ao longo do Capítulo 1 25 processo de etnogênese constante Essa conversão simbólica é por mim pensada mediante os seguintes critérios a A ressemantização da condição de comunidade negra rural preterida ao silenciamento exposta ao racismo e à exclusão social para a construção do significado de comunidade tradicional fato que possibilitou a esses agentes tecer representações positivas sobre si e estender esses significados ao grupo que integram Esse movimento de ressemantização ocorreu tanto em perspectiva individual quanto coletiva isto é no âmbito do próprio grupo o que implicou no ato de transmutação da condição de consciências ingênuas7 para a construção de uma consciência crítica e interventiva capaz de promover modificações internas passíveis de beneficiar o próprio coletivo e estabelecer negociações com a sociedade inclusiva b A luta pela posse e ou reaquisição de suas terras quase sempre expropriadas no passado sob condições que violentam a dignidade humana É pertinente relatar que além de terem tido suas terras usurpadas os quilombolas ainda são apontados como invasores de terras que em tempos pretéritos foram suas e ou de propriedade de seus parentes circunstância essa que além de se constituir em um desrespeito é vista nesta tese como uma contradição presente na narrativa da memória nacional8 De maneira particular quando a situação de expropriação ocorre no contexto dos sertões região caracterizada desde os tempos antigos até a contemporaneidade pela presença de minefeudos de coronéis classe que mantinha e mantém a seu favor o protecionismo do Estado cujos descendentes têm conseguido reproduzir em tempos presentes talvez com menor intensidade e maior discrição os mecanismos de dominação e impunidade capazes de assegurar o status quo A visibilidade conquistada pelas comunidades quilombolas tem sido assim percebida como ameaçadora incomodando sobremaneira as 7 Faço uso desse conceito de maneira análoga como o mesmo foi pensado pelo professor Paulo Freire 1975 haja vista que se trata de um conceito mencionado em quase todas as obras do autor de forma particular na Pedagogia do Oprimido 8 Denominação utilizada por Benedict Anderson 1989 para mencionar os critérios a partir dos quais se estrutura a narrativa da memória de um Estadonação 26 hierarquias do poder local e subtraído certos privilégios de vigência também secular9 c A participação e as transformações decorrentes do exercício desenvolvido nas atividades políticas até então praticamente inexistentes ou direcionadas para uma orientação diferente tendo em vista que as populações do campo sempre desenvolveram articulações fundamentadas em suas necessidades e labutas diárias A partir do estímulo à tomada de consciência no que tange à ancestralidade quilombola essas lutas passaram a conhecer pautas específicas e favoráveis ao fomento entre esses agentes do desenvolvimento do sentimento de pertença associado à aceitação da categoria social quilombola cujo significado produzido a partir da constituição de 1988 pelo Estado atende e respeita as características observadas em cada grupo que declara sua filiação tradicional Passando a haver a contar daí não apenas a adesão a uma identidade mas a compreensão de fatores que antes desconheciam ou sabiam de forma restrita aos quais os ecos produzidos pelo Barulho do Quilombo foram capazes de lançar luz A construção simbólica em torno do ser quilombola passa a influenciar as vivências desses sujeitos auxiliando os também a encontrar seu lugar es de participação na estrutura social Argumento que esse comportamento adquire importância fundamental quando adotado em contextos caracterizados pela ausência de discussões e distanciamento geográfico do Movimento Negro nacional que se formou no âmbito urbano mas que é crescentemente transformado pelas modificações agora introduzidas pelo Movimento Quilombola e que adquire cada vez mais expressão no âmbito rural e sertanejo O ressurgimento desses grupos tem possibilitado conhecer e articular deliberações específicas compatíveis com os desejos e necessidades nutridos por sujeitos que tecem outras interpretações e transformam o anonimato projetado para sua categoria em instrumento de luta e busca de equidade social 9 Esclareço que não desconheço ter havido algumas mudanças sobretudo no que concerne aos dispositivos legais apenas entendoas como tardias rasas e pouco eficientes em sua concretude 27 Esta é uma etnografia artesanal cuja tessitura foi construída pacientemente considerando os significados das movimentações ocorridas em campo a partir das participações bem como das perspectivas evidenciadas pelos sujeitos e não mediante as determinações impostas pelas instituições haja vista que o olhar lançado pelas mesmas geralmente se apresenta estreito e com o propósito de emoldurálos para que atendam ditames em sua maioria distantes das necessidades e modos de vida nativos todavia para que não seja mal compreendida informo que a perspectiva do Estado não é desconsiderada apenas não é o lócus pelo qual se orientou esse trabalho O texto a seguir fundamenta esta tese e emerge de manuscritos desenhados no silêncio que resguarda as madrugadas sertanejas ora influenciados pelo calor das brasas que queimam a caatinga ora pelos relampejos que antecedem o trovão e quando estrondam lá fora anunciam que estão trazendo novamente a revitalização da vida para o sertão em forma de melhores dias safras colheita abundante e mesa farta fatores que tendem a beneficiar a vida dos grupos aqui estudados Apresento ao leitor a um estudo que se permitiu e permite afetar pelos conceitos sentimentos externados e ações evidenciadas pelos quilombolas A tradução e as concepções aqui desenvolvidas também foram compostas e recompostas no âmbito de um processo dialógico apoiado pelo encontro entre a pesquisadora e os interlocutores as Esclareço que opto por chamar os interlocutores as de quilombolas não necessariamente para estar em consonância com a categoria criada pelo Estado e sim em respeito à maneira como informaram que se percebem e desejam ser identificados O termo quilombola utilizado ao longo desta tese toma em consideração a posição dos sujeitos em relação a esse conceito tendo sido apreendido mediante a criatividade com a qual é modelada em cada grupo pesquisado OS CAMINHOS CONTORNADOS PELA PESQUISA Como tão bem coloca a pesquisadora Nilma Lino Gomes 2017 o conhecimento válido é aquele que se forma nascido em um processo de lutas talvez por que nesse espaço simbólico e físico as realidades sociais as vivências dos sujeitos e o conhecimento elencado como científico se proponham a conversar oportunizando que um confira significado ao outro e legitime sua existência mútua Motivada por essa maneira de pensar 28 e de existenciar10 me aproximei do Movimento Quilombola Rural que se constituiu e constitui de forma dialética na região norte da Bahia isso ainda pelos idos do primeiro semestre do ano de 1999 Essa atitude foi estimulada inicialmente por dois fatores que se relacionam entre si estando o primeiro associado a uma questão de origem sendo eu uma mulher negra de pele clara sertaneja e do campo ao passo que o segundo dizia respeito às minhas inquietações epistemológicas porquanto buscava um diálogo entre a universidade e a diversidade das realidades que se revelam para além dos muros acadêmicos visto que cursava a graduação em Pedagogia e começava a me preparar para a realização do primeiro estudo monográfico Estava portanto nessa oportunidade buscando uma aproximação entre dois campos até então pouco habituados a dialogar11 Contornando esses caminhos e também respaldada pela circunstância de vizinhança cheguei até a comunidade de Tijuaçu que embora não houvesse sido certificada pela Fundação Cultural Palmares FCP e continuasse sendo divisada como mais um distrito pertencente ao município de Senhor do Bonfim já começara a se projetar no cenário regional como comunidade negra rural e que reivindicava o título de comunidade quilombola Desde o ano de 1994 algumas discussões nesse sentido estavam sendo desenvolvidas e timidamente a comunidade estava recebendo em seu território alguns antropólogos e pesquisadores O contato que estabeleci e permaneço estabelecendo entre os atores sociais de Tijuaçu possibilitou que também eu iniciasse meu processo de politização dado que a própria universidade fora pouco eficaz em oferecer esse estímulo comparativamente à conscientização que as atividades experimentadas entre os quilombolas suscitaram As relações mantidas com a Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências AAQTA que estava à época em formação aguçaram na pesquisadora o desenvolvimento de uma melhor compreensão no que se refere às insurgências e a causa quilombola A partir daí passei a frequentar constantemente a comunidade assim como as reuniões que ali sempre tiveram lugar podendo presenciar o crescimento de um grupo que gradativamente migrou de um estado de invisibilidade e marginalização para a construção 10 Utilizo aqui esse conceito conforme o mesmo foi pensado nas obras que compõem o acervo do professor Paulo Freire 11 Nesse período ainda não havia sido sancionada a lei nº 1063903 que modificou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDB 93941996 também conhecida como Lei Darcy Ribeiro e portanto o campus universitário ao qual me encontrava vinculada na qualidade de acadêmica pouco acolhia essas discussões que eram tidas como distantes do campo da Pedagogia 29 da autoria por meio da qual é também cotidianamente produzida a identidade s fazendo assim o seu rito simbólico de passagem e se tornando referência para o surgimento de outros grupos negros sertanejos localizados nesse espaço O envolvimento político inicial alargouse tornandose aos poucos afetivo fiz amigos estabeleci com esses sujeitos vínculos de compadrio e pedi licença para pesquisar a comunidade durante o curso de Mestrado realizado no Centro de Estudos AfroOrientais CEAO da Universidade Federal da Bahia UFBA Assim sendo a relação estabelecida com Tijuaçu de maneira especial com o senhor Valmir dos Santos12 me possibilitou conhecer outras comunidades situadas no entorno e algumas um pouco mais distantes tendo como contributo a guisa de reciprocidade um projeto que desenvolvo em formato de oficina pedagógica intitulado Ser Quilombola no Sertão e que se propõe a oferecer cursos voltados para lideranças quilombolas Mantive os primeiros contatos com as pessoas de Cariacá em Tijuaçu durante algumas atividades realizadas na associação e em eventos promovidos por ocasião das celebrações relativas ao Novembro Negro É oportuno relatar que também ocorreram muitos encontros casuais quando de visitas feitas à casa de parentes e ou em outras atividades que incentivaram a ida dos membros de Cariacá à comunidade vizinha Nessas ocasiões as apresentações sempre ficaram a cargo do senhor Valmir ou da senhora Ilca dos Santos13 Em um dos diálogos mantidos com Valmir fui informada acerca da suposta vontade que as pessoas de Cariacá acalentavam de acordo com as palavras que foram proferidas pelo interlocutor de ter sua história contada a exemplo do que já ocorrera em Tijuaçu14 De posse dessa informação e mediante um convite que recebi por parte do senhor Valmir durante um almoço na casa de Ilca me desloquei uma semana depois até a supracitada comunidade mais precisamente no mês de janeiro de 2014 Nessa ocasião conheci uma parte do território de maneira particular a VilaCentro fui apresentada a algumas pessoas e retornei outras vezes com a finalidade de me aproximar As relações se consolidaram um pouco depois especificamente no ano seguinte quando eu iniciei a pesquisa de campo já 12 Presidente da Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências AAQTA e membro do Conselho Estadual de Comunidades Quilombolas 13 Liderança quilombola participante da mesadiretora da AAQTA e brincante do Samba de Lata 14 A referida comunidade possui o laudo antropológico que foi utilizado como instrumento para auxiliar no processo de certificação Além disso Tijuaçu dispõe do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do Território RTID e se tornou lócus de muitas pesquisas em áreas diversificadas do conhecimento 30 após o ingresso no curso de Doutorado e concomitante ao cumprimento das disciplinas que compõem o conjunto dos créditos teóricos15 Em Lajedo cheguei pela primeira vez em 2013 logo após a conclusão do curso de Mestrado em um momento em que me encontrava desobrigada de atividades acadêmicas dispondo por conseguinte de mais tempo para continuar o trabalho desenvolvido por meio da oficina pedagógica Estive pela primeira vez no território no dia sete de setembro do mesmo ano fiz a visita em companhia de alguns estudantes do curso de Pedagogia e orientei um estudo monográfico desenvolvido por uma equipe de graduandos vinculados ao projeto da Plataforma Freire PARFOR programa oferecido pela Universidade do Estado da Bahia UNEB e que teve a comunidade como lócus de pesquisa Nesse período aconteceu também a minha aproximação com o grupo porquanto mantinha interesses específicos nesse estudo e estive por algumas vezes em campo em companhia dos orientandos Fiquei impressionada com a comunidade assim como com os seus habitantes e como mantinha a intenção de concorrer ao processo seletivo que me levou ao Doutorado decidi já no ato de elaboração do projeto estudar as comunidades de Cariacá e Lajedo No que se refere ao segundo grupo suponho que posso argumentar que esse estudo também pode ser pensado sob a perspectiva da memória futura devido ao processo migratório16 que se verifica no território Após esse contato inicial eu continuei encontrando os interlocutores as em situações específicas sobretudo no âmbito da feira livre da cidade de Saúde pois apenas retornei à comunidade no ano de 2016 para realizar a pesquisa de campo Os caminhos contornados justificam essa etnografia que se propôs dialogar menos com as categorias jurídicoburocráticas e mais voltarse para a tradução da criatividade dos modusvivendi observados em cada grupo talvez por entender que o processo de construção identitária é tecido nesse cotidiano e não diante da autoridade do Estado pois percebi que os interlocutores as não se deixam intimidar pelos ditames de um ente externo que se apresenta como soberano não obstante estabeleçam negociações com o mesmo Os quilombolas de Cariacá e Lajedo constroem trajetórias coletivas a partir 15 Não foi difícil conciliar essa situação considerando que Cariacá dista 50 quilômetros de minha residência e eu não residi em Salvador durante esse período apenas aí permaneci durante os dias correspondentes às aulas Esse comportamento se verificou devido ao fato de eu não haver sido dispensada das minhas funções de trabalho como professora da rede municipal de ensino Motivo pelo qual costumo mencionar que nunca me afastei do meu local de origem que aliás respalda em todo o texto o lugar de fala reivindicado pela pesquisadora 16 Esse fato é explicado no Capítulo 4 31 sobretudo de suas labutas resistências e inclusive confrontando a hierarquia científica de saberes daí porque são as práticas observadas em suas vivências que orientam prioritariamente a escrita desta tese No primeiro capítulo os dois grupos pesquisados são colocados em diálogo para apresentar ao leitor a os saberes produzidos pelos mesmos algumas vezes denominados por esses coletivos de sabedoria do povo do mato ou ainda ciência dos mais véios porquanto são os mais velhos que com as ressignificações produzidas por cada geração amparam as vivências diárias e oferecem sentido à existência desses sujeitos por intermédio de mecanismos nomeados como a arte de prestar assunto O poder que reveste a autoridade consentida e que é desvelada através do ato de botar a bença O respeito declarado pelas horas consideradas mortas e propensas à dominação do invisível descrito mediante a simbologia construída pelo imaginário local de cada comunidade caracterizado ora pela presença dos invisíveis ora pelo aparecimento das visagens do mato bem como a importância concedida ao cumprimento da palavra para a construção da respeitabilidade em perspectiva interna e também externa Esses construtos estão reportados a produções modeladas pela Negritude Sertaneja conceito cunhado nesta tese com a finalidade de pensar o povoamento do ator social negro na porção norte do estado assim como o hibridismo que há em suas produções simbólicas as resistências assinaladas em suas intervenções políticas ações econômicas papéis sociais e atividades culturais Escolhi apresentar os coletivos estudados a partir dessa simbologia de saberes por haver percebido em campo o quanto tais saberes são revestidos de importância e evocados pelos nativos em seu cotidiano ocupando portanto o lugar do conhecimento real e que após a tomada de consciência da ancestralidade quilombola passam a ser pensados como conhecimentos tradicionais migrando do local de conhecimento inferiorizante em que secularmente foram colocados seja pela Ciência hegemônica e eurocentrada seja através das interpretações estreitas advindas da sociedade envolvente para a posição de saberes que dialogam com o universo espiritual e que costumam ser utilizados de maneira oculta ao olhar externo porque os próprios atores sociais que os produzem preferem manipulálos como uma linguagem que deve ser preservada entre os de dentro e utilizada em relação aos de fora A comunidade de Cariacá é apresentada no capítulo dois mediante as narrativas orais oferecidas pelos interlocutores as de modo especial pelos sujeitos mais velhos cujas memórias reveladas auxiliaram sobremaneira o ato de composição da história do 32 grupo Nesse capítulo focalizo a VilaCentro suas formas de organização em tempos pretéritos caracterizada por certa proeminência econômica facultada principalmente pela existência da ferrovia e seus serviços e demonstro de igual modo as articulações tecidas em tempos presentes fazendo um paralelo com as outras localidades que compõem o perímetro Procurei demonstrar como aconteceu a descoberta da tradicionalidade quilombola o processo de certificação da comunidade e o protagonismo exercido pelos membros da Família Congo Outra discussão diz respeito à produção de um fluxo afroindígena que é reivindicado entre algumas pessoas do grupo O capítulo três se propõe a descrever a Família Congo isto é agentes que declaram a pertença quilombola e realizam as articulações políticas ao longo do território de maneira particular à frente da associação Busco demonstrar que em Cariacá as percepções construídas em torno do ser quilombola perpassam o trinômio negrocongoquilombola São narradas ainda as disputas pretéritas assim como as rivalidades atuais que envolvem os membros das famílias Congo e Muricy Entre os atores sociais que fazem parte da Família Congo o presente capítulo procurou dialogar especificamente com as mulheres tendo em vista a liderança por elas exercida Busquei evidenciar algumas trajetórias femininas que percorrem caminhos emancipatórios cujos significados se fazem sentir no interior do grupo tanto em perspectiva individual quanto influenciando as atitudes que orientam a coletividade A comunidade de Lajedo é apresentada no capítulo quatro onde procuro relatar como aconteceu a ocupação ancestral do território as formas de organização secularmente adotadas pelos sujeitos em espaços que são designados regiões e representadas por núcleos familiares que se encontram entrelaçados pela noção que elaboraram e continuam elaborando do conceito de parentagem construto habilidosamente modelado e capaz de possibilitar ao grupo se identificar e ser conhecido no contexto regional sob a denominação de os pretos do Quitero Ao longo do capítulo propusme a traduzir as diversas formas de resistência que esses atores sociais têm desenvolvido com o objetivo de permanecer no território que ora experimenta um processo de desertificação São situações vivenciadas por meio das pelejas na roça nos usos e cuidados com a terra nas atividades comerciais que realizam em feiras livres da região na solidariedade que recebem em situações que envolvem o nascimento das crianças os cuidados com os doentes e o zelo com os mortos Essas formas de resistência são tratadas nesta tese de acordo com a perspectiva da 33 criatividade sendo denominadas de Artes do Nascimento Artes do Casamento e Artes da Migração O capítulo cinco se propõe a demonstrar outro aspecto presente nas vivências da população de Lajedo isto é o comportamento itinerante que deu origem à formação de outra comunidade fundada por pessoas que saíram desse território para tocar roça ou em busca de melhores condições de vida em épocas descritas como tempo ruim e devido à celebração de alguns casamentos Assim apresento a comunidade Grota das Oliveiras com a qual os membros de Lajedo mantêm relações muito próximas e onde são observadas formas de organização semelhantes talvez assim estruturadas devido à parentagem que por ora se apresenta fortalecida em virtude dos laços de compadrio As atividades culturais produzidas em ambos os grupos estudados estão apresentadas no capítulo seis Onde inicialmente é feita uma abordagem sobre o Quilombart encenado em Cariacá desde o ano de 2007 e cuja criação é atribuída aos sujeitos mais jovens como propósito de reativar as tradições culturais que se encontravam adormecidas no território desde o falecimento dos antigos brincantes Busquei retratar como encenar a cultura pode servir de contributo para a recuperação da autoestima construção de uma imagem positiva fortalecimento do sentimento de pertença e para estimular o desenvolvimento de reflexividade no que diz respeito à ancestralidade sobretudo nos encontros com outras comunidades tradicionais e ou quando são convidados para se apresentar em instituições a exemplo de escolas universidades e no circuito oficial do São João bonfinense atuando inclusive como canal de comunicação com a sociedade envolvente Em um segundo momento faço uma narrativa para esclarecer como aconteceu o ressurgimento do samba praticado em Lajedo considerando que essa atividade cultural havia sido interrompida devido a uma situação vexatória experimentada pelo grupo voltando a ser encenada novamente durante uma atividade promovida no decorrer da pesquisa No capítulo sete abordo a espiritualidade que se desenvolve nessas comunidades cuja fé é atualizada em articulação com os elementos do Catolicismo Sertanejo assim como da Umbanda manejados por meio de um universo transcendente que se caracteriza pela prática de rezas benzimentos uso de amuletos através de orações enunciadas para abençoar e para esconjurar porcarias e ainda por meio de visitas realizadas às casas de curadores bem como mediante as representações sociais que são elaboradas em torno dos rezadores e curadores Outro componente significativo são as devoções oferecidas aos santos padroeiros Esse tipo de religiosidade é interpretada neste estudo sobretudo do 34 ponto de vista das articulações que produz visto que é capaz de influenciar as vivências dos sujeitos assumindo em muitos momentos o papel de uma linguagem por intermédio da qual eles pensam contrastam e entrelaçam identidade s Ao longo dos sete capítulos me propus a entender e buscar traduzir como os grupos estudados constroem sua identidade s mediante uma etnografia que se permitiu ser construída estuciando os ecos e as intervenções produzidas pelo Barulho do Quilombo 35 CAPÍTULO 1 ESTUCIANDO O BARULHO DO QUILOMBO Tomada de consciência de uma comunidade de condição histórica de todos aqueles que foram vítimas da inferiorização e negação da humanidade pelo mundo ocidental a negritude deve ser vista também como a afirmação e construção da solidariedade entre as vítimas A negritude tornase uma convocação permanente de todos os herdeiros dessa condição para se engajarem no combate para reabilitar os valores de suas civilizações destruídas e de suas culturas negadas MUNANGA 2009 p 82 Imagem nº 01 Encontro promovido em campo reunindo os atores sociais de Cariacá Lajedo Tijuaçu Grota das Oliveiras Palmeira e Coqueiros Fonte Acervo da pesquisadora 36 Senhor põe teus anjos aqui Senhor põe teus anjos aqui com a espada desembainhada Senhor põe teus anjos aqui Não deixe que o inimigo escarneça e zombe de nós Cobre Senhor com teu manto Senhor põe teus anjos aqui17 E dessa forma segundo a senhora Luciana de Freitas Silva Dona Luci de setenta e cinco anos que além de quilombola reivindica sua ascendência indígena o Cariacá é protegido da fome da peste e da guerra já para o senhor João Aceno Gabriel Pereira Seu João Colado de quarenta e cinco anos o Lajedo aqui moça é uma pedra que se bate mas não se quebra Nas invocações de natureza religiosa ou naquelas voltadas para explicar o sentido de existir quando as vozes quilombolas se fazem ouvir no sertão18 baiano e têm a oportunidade de dizer sua palavra19 fazemno de modo a expressar o significado de suas resistências Suas vivências carregam nas entrelinhas a tessitura desenhada pelos rearranjos das labutas que têm possibilitado a esses grupamentos se reinventarem em especial do ponto de vista histórico e cultural A louvação proferida por Dona Luci professora da comunidade que além das atividades docentes se ocupou durante a juventude das encenações de reisado quadrilhas 17 Informo ao leitor a que opto ao longo do texto por transcrever as falas dos interlocutores as em itálico Utilizo esse recurso como forma de diferenciálo de outras citações e como testemunho do respeito que nutro por eles haja vista que além de interlocutores as alguns se tornaram minhas comadres e compadres 18 Nesta tese procuro chamar a atenção para o fato de que o sertão não é uma região homogênea e estática ao contrário as regiões sertanejas da Bahia atuam como um caleidoscópio produtor de vivências saberes e culturas que se ressignificam geracionalmente A palavra sertão passou a ser utilizada para se referir às regiões norte e nordeste do estado ainda durante a colonização portuguesa As diferenças notadas no relevo fauna flora e clima nessa parte específica da Bahia que começava a ser invadida e usurpada fizeram com que essa região fosse inicialmente chamada de desertão expressão que aos poucos a exemplo do que aconteceu em outros estados do Nordeste foi sendo alterada para sertão Os estudos clássicos a respeito do sertão foram agrupados em três marcos analíticos paradigmáticos a saber o geoclimático o político e o culturalista Abordagens apoiadas nos três séculos de povoamento inicial apresentam sociedades caracterizadas pelo pastoreio do gado pela concentração fundiária oligárquica exagerada dispersão espacial e organização familiar de base patriarcal Proponhome a pensar o sertão a partir do que é dito por Moreira 2018 p 31 A citada autora afirma que na atualidade o sertão nordestino equivale ao semiárido mais populoso do planeta habitado por mais de vinte e quatro milhões de brasileiros as o qual nas últimas décadas se transformou e imergiu nos avanços da globalização Ela contesta assim o que revelam os dicionários que permanecem cristalizados apresentando definições que fixam o sertão como sinônimo de distância ausências vazio ermo e atraso Justifico que não trago uma discussão teórica abrangente a respeito dos conceitos que têm sido cunhados para pensar os sertões por não ser esse o lócus deste estudo 19 Construto presente na Pedagogia do Oprimido Cartas a Guiné Bissau e Cartas à Cristina títulos que compõem o acervo de obras do professor Paulo Freire 37 e rodas e que agora aposentada dedica sua vida às tarefas religiosas através dos trabalhos desenvolvidos na igreja Católica e das benzeções que realiza para aqueles as que a procuram solicitando ajuda Do mesmo modo as afirmações de Seu João Colado quando busca explicar a persistência de sua comunidade mesmo diante das adversidades enfrentadas são utilizadas aqui para expressar faces que circundam o mecanismo presente no ato de resistir A louvação recitada por Dona Luci é associada ao poder divinatório atribuído a Deus aquele que dá a vida e aos Invisíveis aqueles as que regem a vida entidades nas quais acreditam e com as quais se pegam20 para nascer e para morrer mas principalmente para caminhar21 por que existir na perspectiva dos sujeitos sociais que nascem no sertão já é caminhar todavia para caminhar conforme é dito pela interlocutora tem que saber abrir e tem que saber fechar 22 Aprendi na convivência com os atores sociais de Cariacá23 que qualquer caminho não é caminho há de se saber sair e se saber entrar e que essa postura funciona como condição para poder ficar e ser aceito no grupo As escolhas realizadas ao longo da vida desde o nascimento até a morte acarretam influências no destino de cada ser motivo pelo qual a senhora Luci relata que as ações adotadas para a prática do bem são capazes de abrir os caminhos da vida de uma pessoa desde a infância até o último suspiro do ser quando o fôlego da vida volta para Deus ao passo que as atitudes direcionadas para o que é descrito como o mal são capazes de 20 Os interlocutores as emprestam a essa palavra o sentido equivalente a uma atitude de devoção e ou veneração E dizem acreditar que essas entidades que chamam de Invisíveis interferem diretamente no curso de suas vidas e destinos tanto em perspectiva individual como de forma coletiva influenciando o cotidiano da comunidade ora em caráter positivo ora negativo 21 Abordarei especificamente esse assunto presente no universo religioso nativo no Capítulo 7 22 De acordo com a percepção evidenciada pela senhora Luci ao longo de muitas conversas que tivemos e das vivências estabelecidas esse adágio que ela pronuncia constantemente se refere aos caminhos da vida segundo suas explicações os caminhos tendem a permanecer abertos ou fechados a partir das atitudes adotadas na trajetória cotidiana que por vezes ela também denomina de teia da vida Para a interlocutora são as boas atitudes praticadas pelos sujeitos que garantem a abertura de seus caminhos ao passo que a permanência no que denomina de procedimentos maus possibilita que seus caminhos sejam fechados portanto abrir ou fechar os caminhos da vida pode ser entendido como uma faculdade que se encontra relacionada não ao destino e sim a um prognóstico que corresponde às escolhas e atitudes de cada ser haja vista que nas explicações sugeridas pela senhora Luci são essas atitudes que unem ou quebram o ponto da teia da vida 23 A comunidade está situada no município baiano de Senhor do Bonfim região norte do estado e será cuidadosamente descrita no Capítulo 2 38 fechar a sorte e os caminhos de crianças mulheres homens e ainda retirar a perspectiva de crescimento no âmbito da comunidade atrasando24 seu progresso Aqueles as que desde a infância pronunciam palavras consideradas positivas e mantêm o hábito de auxiliar as pessoas sempre manterão os caminhos da vida abertos enquanto aqueles as que fazem uso de xingamentos25 e adotam atitudes depreciativas ou voltadas para a prática do que descrevem como sendo o mal estes as veem muito cedo seus caminhos ficando curtos até fechar já que como argumenta a senhora Luciana aí a pessoa tá quebrando o ponto da teia da vida26 O sinônimo atribuído à atitude que compreende o ficar relacionase às diversas maneiras utilizadas pela comunidade para inscrever seus nomes no curso do tempo e se assentar para o que é imprescindível isto é possuir um pedaço de chão no espaço em que residem garantindo suas vivências com a dignidade que solidifica o ato de existir caracterizado pela proteção espiritual e o sustentáculo econômico Afirmar a existência tornase uma das primeiras necessidades nutridas desde o passado histórico até os dias contemporâneos em termos de cada geração visto que cada tronco quilombola está relacionado a fatos que têm sua importância garantida justamente em função das habilidades demonstradas pelos ancestrais com o propósito de declarar ter a força necessária para legitimar suas lutas e conquistas São vivências que orientam esses atores ressemantizados através dos ensinamentos guardados e transmitidos pelos mais velhos as que ensinam os sentidos do caminhar seja no mato na roça na comunidade e ou na sociedade envolvente Essa condição presente nos ensinamentos guardados e transmitidos pelos mais velhos as abrange também o itinerário dos animais e vegetais assim como de quase tudo o que respira no universo sertanejo Daí porque a cada dia aprendese através das 24 Esses sujeitos acreditam que sua comunidade é sustentada por energias A energia maior aquela que vem de Deus e a intervenção de seres que são designados Invisíveis alguns Invisíveis são apontados como bons outros como maus e ambos serão descritos ao longo desta tese Na concepção nativa são as palavras e atitudes que adotam cotidianamente que os aproximam ou distanciam desses seres permitindo também que sua comunidade seja influenciada pela energia e intervenção dos mesmos 25 Palavra utilizada pelos habitantes de Cariacá para se referir a palavrões Eles diferenciam os que apesar de não serem bons não causam tanto prejuízo e os que são considerados nomes do inferno portanto capazes de fechar os caminhos 26 A interlocutora explicou que à medida que os pontos da teia da vida vão sendo quebrados pelo sujeito ele também vai se perdendo ao longo de sua caminhada 39 circunstâncias práticas que se apresentam na rotina cotidiana o significado de que existir já é caminhar A resistência é também pensada na perspectiva da labuta pois como se diz em Lajedo27 aqui a gente vive de labutar roça Labutar é uma palavra utilizada para se referir ao exercício do trabalho porquanto entre os sujeitos negros rurais do sertão o trançado do trabalho sempre representou uma das principais atitudes norteadoras do curso de suas histórias de vida em caráter individual e também na esfera coletiva Esse é talvez um dos motivos pelo qual a terra se torna sinônimo de espaço sagrado convertendo se em território pisado remexido e lavado pelos suores lágrimas e por vezes pelo sangue dos que com ela labutam Em ambas as comunidades eu ouvi dizer que a terra clama clamor que na compreensão evidenciada pelos quilombolas quase sempre é suscitado por situações de usurpação territorial e por toda sorte de injustiças sociais às quais eles estão expostos Na terra estão registradas as histórias de vida de lutas conquistas e ultrajes experimentados por mulheres homens e herdados pelas crianças que representam as ramas mais novas e que portanto carregam consigo a cada geração a responsabilidade da herança coletiva dos seus geralmente relacionada a mecanismos de reparação por parte dos de fora em relação aos de dentro28 As narrativas se descortinam e se legitimam tomando como referência os espaços da terra em que habitam Assim rios cachoeiras lagoas cacimbas e outras fontes de água perenes ou não árvores e morros constituem marcos específicos a partir dos quais a memória oral se manifesta e reivindica sua veracidade histórica Ao conversar com o senhor Manuel Julião Dias 88 anos conhecido em Cariacá como Seu Menininho e tido como um dos moradores mais velhos do grupo os marcos referenciais por ele acionados para narrar à história de fundação da comunidade e explicitar a anterioridade de Cariacá 27 Comunidade localizada entre as cidades de Saúde e Mirangaba também situadas na região norte do sertão baiano Essa comunidade será enfocada no Capítulo 4 28 Na compreensão revelada pelos grupos que atuaram como interlocutores as nesta tese os de dentro são percebidos como as pessoas da comunidade Àqueles as que ali são nascidos e ainda os que se aproximam e se tornam parentes por afinidade ao passo que os de fora são as pessoas que além de não manterem com o grupo relações de pertença vizinhança e compadrio são inimigas potenciais em decorrência de disputas de terra e preconceitos raciais entre outras situações geradas por uma má convivência 40 em relação à cidade de Senhor do Bonfim foram os limites geográficos das serras da Umburana e do Botequim Nas palavras proferidas pelo senhor Menininho bico da Serra da Umburana bico da Serra do Botequim Essas serras de acordo com Seu Menininho se encontravam inseridas nos limites territoriais da antiga Fazenda Cariacá Atualmente ambas foram inseridas no relevo da cidade de Senhor do Bonfim O território tradicional demarcado de Cariacá está a uma distância de sete quilômetros de Senhor do Bonfim O pé de Cedro constitui outro elemento da paisagem comumente citado pelos anciãos referido como testemunha de vista das disputas envolvendo as famílias Congo e Muricy29 Como resultado dessa hostilidade pregressa permanece um antagonismo velado que se manifesta sempre que interesses divergentes são discutidos Em Lajedo um pequeno olho dágua afluente do rio Preto30 é o ponto de referência que os moradores utilizam para especificar no território as famílias cujas casas se encontram situadas nos municípios de Mirangaba e Saúde31 Os núcleos familiares que habitam na comunidade estão organizados espacialmente considerando a proximidade dos citados rios e da cachoeira do Gelo As três famílias que constituem o núcleo dos Félix32 externam orgulho pela presença da cachoeira do Mandigueiro situada praticamente nos quintais de suas residências e utilizada para a prática da irrigação por gravidade nos cultivos agrícolas assim informaram o senhor João Colado e sua esposa a senhora Idália Quando fui pela primeira vez à cachoeira do Gelo acompanhada por Roseane Azevedo Pereira de 24 anos eu estava empolgada e mantinha expectativas em relação à beleza do local fiquei frustrada porém quando percebi que os interlocutores as não costumam visitála com frequência Rose como prefere ser chamada é a única moradora que já concluiu o Ensino Médio estudando na cidade de Mirangaba A perspectiva de continuar os estudos e o trabalho nas feiras livres da região comercializando os produtos cultivados na roça da família a impedem de permanecer cotidianamente na comunidade além disso como o seu esposo Moisés é oriundo da comunidade quilombola de Palmeira Rose possui residência nas duas comunidades Em um domingo frio após o café da manhã 29 No terceiro capítulo deste estudo serão mencionadas as tensões envolvendo membros das famílias Congo e Muricy 30 Os rios que atravessam o território de Lajedo e que os quilombolas denominam de Preto e Gelo são afluentes dos rios Paiaiá Itapicuru e das Pedras 31 Esse fato será relatado minuciosamente no quarto capítulo 32 Os núcleos familiares dos moradores de Lajedo serão destacados no Capítulo 4 41 mesmo com a chuva de trovoada33 que caia de maneira entrecortada Rose atendeu o meu pedido para conhecer a cachoeira do Gelo Durante o percurso ela se divertia ao indagar pra que a senhora quer ir lá se tem uma cachoeira no quintal 34 Essa relação dialógica cultivada entre as pessoas e os elementos da natureza pode por vezes ser utilizada para compreender diversas situações da vida cotidiana e constitui parte integrante do código moral presente no modus vivendi dessas populações Uma cacimba que não mais jorra ou um tanque que racha e não mais conserva a água são atribuídos a um mecanismo de maldição desencadeado por ambições relacionadas a este recurso hídrico tido como sagrado uma vez que água não gosta de ambição35 e ainda por que quem sabe louvar sabe também espraguejar36 e amaldiçoar Nos diálogos estabelecidos com os anciãos de Cariacá quando enfocamos os longos períodos de estiagem atravessados pela comunidade a senhora Maria José do Nascimento de 65 anos relatou o processo de esgotamento da água da cacimba dos Morrinhos Esse episódio se verificou após a existência de desentendimentos envolvendo as famílias de Cariacá de Cima e Morrinhos que divergiam frequentemente por compartilhar a mesma fonte hídrica Na visão de Dona Maria as brigas e os xingamentos pronunciados diante da cacimba ocasionaram o exaurimento da água devido ao egoísmo e à avareza que as mulheres principalmente demonstravam nas constantes discussões verbais e eventualmente agressões físicas para decidir sobre o direito de pegar água na cacimba 33 Os interlocutores as denominam chuva de trovoada a chuva forte porém passageira seguida do aparecimento do sol 34 O pronome senhora utilizado por Rose não é uma forma de tratamento exclusiva fornecida a mim Tratase de uma expressão respeitosa que os sujeitos mais jovens da comunidade utilizam para se referir aqueles as que possuem uma idade cronológica maior que a sua o mesmo tratamento se direciona a padrinhos e madrinhas mesmo quando estes as não possuem uma idade tão superior à idade do afilhado a Externar respeito por intermédio de palavras ou atitudes significa demonstrar o grau de consideração que se possui em relação a outrem razão pela qual nunca percebi como sinônimo de distanciamento o pronome de tratamento senhora que Rose outros jovens e as crianças do grupo geralmente utilizavam para se comunicar comigo considerando que o mesmo pronome costuma ser empregado em situações de diálogo com os mais velhos as 35 Na perspectiva externada em ambos os grupos a água é apontada como um recurso divino potencialmente concentradora de bênçãos e avessa a disputas ou divergências portanto sempre que uma fonte hídrica se torna motivo de desentendimento esse recurso que é tido como sagrado adota a tendência de desaparecer ou tornarse escasso 36 Nas histórias que escutei dentro do universo místico tecido pelos quilombolas cujas explicações são utilizadas para salientar os acontecimentos felizes e trágicos da vida diária o espraguejamento figura como uma imprecação lançada contra outrem que feriu profundamente e em caráter particular o praguejador ou ocasionou um agravo social 42 Essa ambição segundo Dona Maria precisaria ter sido corrigida com pedidos de perdão a Deus e orações Contudo como prevaleceram as intrigas a água que deveria ter sido partilhada desapareceu se recusou a permanecer ali A louvação e a maldição interferem no fôlego da vida no nascimento das crianças na constituição de uma nova família na germinação ou fenecimento das plantações na multiplicação dos rebanhos de gado das cabras e até mesmo na criação de galinhas e porcos Interferem sobretudo na sustentação da terra Quando lavrada e pisada por pessoas de espíritos bons a terra agradece e prospera quando acontece de modo contrário a terra se torna solo ingrato pois o chão tem necessidade de se identificar com o seu dono Na concepção nativa a seiva da terra precisa combinar com o sangue de quem com ela labuta Conforme Dona Maria do Rosário de 70 anos não é toda mão que consegue plantar nem toda mão que sabe colher Quando a questionei sobre o significado dessa expressão ela explicou que uma pessoa de coração perverso não tem capacidade para labutar com a terra pois o sangue da pessoa não vai combinar com o sangue da terra Quando essa combinação não acontece a colheita não prospera e a pessoa se torna objeto de menosprezo dos demais que a divisam como alguém de mau coração ou mau espírito cuja mão é pesada não lhe permitindo obter abundância naquilo que realiza A memória das populações quilombolas construída pelos mais velhos e ressignificada pelos mais jovens perpassa a dimensão territorial assim cada espaço da terra costuma ser utilizado para demarcar a vida do grupo e evidenciar os feitos realizados por seus ancestrais de modo especial àqueles que foram capazes de garantir segurança à posteridade Se as atitudes de um ancestral são consideradas dignas de orgulho essa memória é acionada com facilidade em contraposição às situações consideradas vexatórias quando a memória tende a permanecer sufocada e parece desejar ser esquecida No tocante à história coletiva do grupo em especial aos fatos que envolvem constrangimento de pessoas e apropriação indevida do território por indivíduos externos à comunidade a situação não é diferente Os acontecimentos que suscitam dor e desonra aparecem com dificuldade representando o segredo o ethos do silêncio que é quebrado aos poucos e com cuidado visto que recontar essas histórias consiste em reviver não mais a coação física e sim a violência simbólica aquela que permanece ora atormentando ora aprisionando as memórias orais Essa constituiu durante muito tempo a principal característica presente na 43 invisibilidade de pessoas que antes de estuciar37 o Barulho do Quilombo38 estavam submetidas ao barulho ocasionado pelo desrespeito em forma de preconceitos raciais usurpação do território e negação de suas humanidades Elas eram apontadas apenas como sujeitos negros e pobres no contexto pesquisado Escutei ambas as expressões estuciar e Barulho do Quilombo em circunstâncias específicas em cada um dos grupamentos estudados No entanto o significado a elas atribuído encontra um sentido similar relacionado à compreensão do ser quilombola assim como aos caminhos percorridos para se chegar a esse entendimento Fato que advirto aconteceu em cada uma dessas comunidades de maneira específica e em um momento particular que serão cuidadosamente descritos ao longo desta tese O termo estuciar aparece com facilidade no vocabulário adotado pelas pessoas de Lajedo de modo especial entre os mais velhos O sentido atribuído a estuciar abrange as diversas formas de perceber e buscar explicações para os acontecimentos diários vivenciados por cada indivíduo em particular e pelos membros da família Referencia também as situações que envolvem toda a comunidade A prática de estuciar algo encontra correspondência na atitude de se chegar a uma compreensão apurada dos fatos que determinam a sua existência e ou acontecimentos estuciar adquire também o sentido de uma faculdade utilizada para se relacionar com o contexto interagir com pessoas interpretar fatos e adquirir a habilidade necessária para dialogar com os episódios que regem a vida Em relação à compreensão da ancestralidade quilombola nos diálogos 37 Essa é uma prática linguística frequentemente utilizada pelos habitantes de Lajedo empregada para enfatizar situações relacionadas à compreensão dos fatos cotidianos da vida e do universo social que os circundam No que concerne à descoberta da ancestralidade quilombola os interlocutores as da pesquisa que apoia esta tese enfatizaram nos diversos diálogos estabelecidos a expressão recorrente estuciei e vi que aqui era quilombola Os vocábulos estuciando estuciar e estucio compreendem variações que aparecem com facilidade nos dialetos adotados entre as populações rurais sejam elas quilombolas ou não assim como das pequenas cidades da porção norte da Bahia Em algumas circunstâncias a palavra estuciar é substituída por astuciar 38 Comecei a escutar esse artefato linguístico durante as atividades de campo quando as pessoas de Cariacá em algumas ocasiões da pesquisa fizeram uso dessa colocação para se referir ao momento em que as informações sobre a identidade quilombola começaram a ser difundidas na comunidade Eu me aproprio desse artefato do vocabulário nativo como uma ferramenta para pensar esse movimento de descoberta da tradicionalidade que ocorre como um fluxo nos contextos pesquisados haja vista que a comunicação e o intercâmbio estabelecido entre esses grupos tem se mostrado fundamental para o crescimento do número de comunidades que se autodeclara quilombola Esses aspectos serão mais explorados no Capítulo 2 44 informais mantidos com os membros da comunidade a palavra estuciar foi empregada para explicar os caminhos que o grupo percorreu com o objetivo de entender sua ancestralidade afirmar o pertencimento39 e iniciar suas atividades políticas estabelecendo relações mais diretas com outras comunidades O senhor Gilberto Inocêncio dos Santos de 47 anos que durante dois mandatos exerceu o cargo de presidente da associação e que atualmente dela participa como sóciofundador destacou reiteradamente aqui a gente foi estuciando estuciando até entender como era o quilombola Na segunda etapa da pesquisa quando a proximidade construída me assegurou um lugar mais confortável de observar e escutar sem ser tão notada percebi que a palavra estuciar assume em muitos contextos o significado de resumir uma verdade descrita como absoluta como para justificar um enunciado através da seguinte proposição eu sei por que estuciei ou ainda com a intenção de encerrar qualquer possibilidade de contestação em um discurso Estuciar talvez possa também ser definida como uma postura assumida pelos atores sociais de Lajedo para desmistificar desde os fatos corriqueiros até as situações tidas como mais complexas a exemplo do lugar ocupado nas atividades concernentes ao ativismo político quando ocorrem as reuniões promovidas pela associação normalmente durante o último domingo de cada mês exceção do mês de junho quando em vista dos festejos populares de São João e São Pedro a reunião costuma ser antecipada Antes de saírem de casa os moradores repetem com certa frequência a seguinte expressão deixa eu ir ali estuciar na associação Também nas plenárias durante as reuniões aparece com certa facilidade a colocação estuciando vocês tudo aí Nesse contexto eles emprestam à expressão o sentido de afirmar consentimento em relação ao que está sendo debatido É possível que a habilidade de estuciar e os ecos produzidos pelo Barulho do Quilombo ainda que através de circunstâncias e situações específicas a cada grupo pesquisado possam ser compreendidos como agenciamentos estimuladores de intercâmbio político e de mecanismos produtores de reflexões Ou como gostam de falar em Lajedo estuciações que até então não faziam parte da dinâmica de suas vidas 39 Esse fato será abordado de forma cuidadosa no Capítulo 4 45 O Barulho do Quilombo é uma expressão que se manifestou entre as lideranças mais jovens de Cariacá quando se referiram às informações sobre Tijuaçu40 e ao acompanhamento sobre as atividades desenvolvidas nessa comunidade vizinha Devido ao fato de ter sido uma das primeiras comunidades certificadas na região de Senhor do Bonfim e de ter precedido uma trajetória de lutas em busca de autonomia e de afirmação o quilombo contemporâneo de Tijuaçu permanece como referência para as demais comunidades do entorno que desejam compreender a sua ancestralidade quilombola e iniciar a sua própria caminhada É muito comum que outros grupos que desejam a certificação quilombola contatem as lideranças de Tijuaçu e participem de reuniões na sede da Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências AAQTA41 antes de fundarem uma associação em sua comunidade de origem Para os moradores de Cariacá escutar o Barulho do Quilombo é prestar atenção e interagir com os fatos que se apresentam e precisam ser resolvidos na luta quilombola Esse ativismo embora desenvolva características particulares inerentes a cada grupo específico é agenciado através das comunicações estabelecidas por esses sujeitos de direito que têm emergido em localidades diversas O Barulho do Quilombo é um processo interno de natureza dialética que mantém os membros de Cariacá em constante interação com os de Tijuaçu desde as primeiras movimentações para aprender os caminhos que precisariam atravessar até serem certificados pela Fundação Cultural Palmares FCP No presente essas relações foram intensificadas e articulações foram estabelecidas também com outras comunidades do norte baiano em especial por ocasião das celebrações e problematizações relativas ao Novembro Negro quando as associações quilombolas da região organizam comitivas para prestigiar o evento onde quer que ele esteja sendo realizado Além do apoio moral e representativo que esse intercâmbio viabiliza desde novembro de 2016 tem havido um interesse crescente de se promover interações mais focadas nas atividades culturais Esses eventos 40 Grupo tradicional no qual teve início as discussões e movimentações a respeito da compreensão e reivindicação da ancestralidade quilombola entre as comunidades que se encontram na região de Senhor do Bonfim e no qual desenvolvi pesquisa de Mestrado SANTOS Paula Odilon Ser Quilombola no Sertão Tijuaçu lutas e resistências no processo de construção identitária 2013 208 f Dissertação Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos Programa de Pós graduação Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos Universidade Federal da Bahia UFBA Salvador 2013 41 A Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências AAQTA foi fundada em 02 de abril de 2000 46 têm se estabelecido como um espaço privilegiado não apenas para confraternizar mas também para estimular reflexões sobre a autoafirmação e as percepções em torno do ser quilombola Há inclusive uma comunicação prévia entre as associações para organizar um calendário para que os eventos que celebram o Novembro Negro ocorram em datas alternadas nas diversas comunidades divulgadas com antecedência por intermédio de convites impressos possibilitando uma confraternização e o fomento à conscientização até então ausentes em muitos espaços da porção norte do sertão baiano Portanto a ausência de interação tem dado lugar à construção de um sentimento de irmandade ao estabelecimento de relações entre as comunidades quilombolas e a sua visibilização pela sociedade envolvente que passa a ter o seu cenário alterado pela emergência dessas populações Daí por que presumo ser possível compreender o Barulho do Quilombo como um movimento de abrangência política e educativa que produz transformações no interior dessas comunidades assim como no contexto social mais amplo nos quais elas se encontram inseridas Para a comunidade de Cariacá a relação constituída com Tijuaçu permanece uma referência importante e norteadora para a tomada de algumas decisões Nas locuções estuciar pronunciada com frequência em Lajedo e Barulho do Quilombo utilizada em Cariacá percebo construções empregadas como formas de oferecer sentido à existência e aos fatos que assinalam o cotidiano individual e coletivo no caso do primeiro grupo e iniciar um processo de ativismo político no caso do segundo Suponho que em ambas as comunidades se notabilizam a presença dos mecanismos da resistência s e da insurgência s que vêm orientando as suas caminhadas para compreender quem são a assunção do protagonismo de atores sociais que possuem um itinerário de individuação são capazes de interagir com histórias coletivas como povos tradicionais relacionados aos lugares que hoje ocupam e que desejam vir a ocupar na sociedade que se coloca como inclusiva As histórias das comunidades quilombolas podem ser narradas a partir de diversos olhares Portanto esclareço ao leitor a que a minha percepção talvez se encontre relacionada ao fato de não ser uma moça urbana que se desloca para um campo considerado distante de seu universo social e em busca de algo que possa funcionar como aquilo que foi designado por Clifford 2014 como uma experiência autêntica Pelo contrário mantenho relações intrínsecas com o lugar de que falo por uma questão de origem sendo eu uma mulher sertaneja filha neta e bisneta de mulheres ribeirinhas que 47 tem participado do ativismo na causa quilombola em contexto regional desde 1999 e acompanhado de perto as modificações ocasionadas nesse espaço em função das transformações suscitadas pelo Barulho do Quilombo assim como percebido as alterações que a presença das comunidades quilombolas tem ocasionado nesse contexto Me assumo como herdeira de muitos aspectos que caracterizam a Negritude42 Sertaneja Tenho tentado traduzilos à luz do encontro entre a pesquisadora e o agenciamento etnográfico Escolhi narrar a trajetória das comunidades estudadas pela perspectiva baseada no princípio da resistência s presumindo que conforme menciona Clifford 2014 p 09 a compreensão da diversidade e o processo de construção dos textos etnográficos funcionam como uma composição de elementos textuais situados em circunstâncias históricas e culturais específicas que acontecem em um complexo sistema de relações envolvendo pesquisador pesquisados e outros personagens situados no contexto De acordo com João de Pina Cabral 2003 p 109111 a interpretação de qualquer mensagem ou fato social se realiza tomandose como ponto de partida o contexto no qual esse fato ocorre assim sendo o argumento é que o pesquisador no desenvolvimento de seu trabalho atua como um observador situado e consequentemente a narrativa que resulta da atividade de pesquisa está inextricavelmente associada à sua postura e relacionamento estabelecidos em campo Como mantenho certa interação entre os grupos quilombolas do contexto social e político no qual me situo conjecturo que essas vivências certamente direcionam a escrita deste trabalho originando possivelmente o que Sardam 2008 denomina de pacto etnográfico Estou cônscia de precisar atender às exigências da academia ao mesmo tempo em que me comprometo a manter engajamento pessoal e político com aqueles que abrem as portas das suas casas e a intimidade das suas histórias pessoais e coletivas de suas famílias e em um segundo momento do grupo que integram Essa é uma das razões pelas quais 42 De acordo com o pensamento de autores como Munanga 1988 e Bernd 1988 a Negritude enquanto movimento se constitui em uma reação de legítima defesa funcionando como uma resposta negra a uma agressão histórica branca de mesmo teor A Negritude permite ao sujeito negro intelectualizado ou não perceber que uma possível solução para desconstruir sua situação de opressão reside na retomada de si próprio na negação do embranquecimento e na aceitação de sua herança sociocultural que deixa de ser concebida como sendo inferior 48 não desejo e não posso percebêlos somente como sujeitos de pesquisa no que se refere aos dois grupos focalizados neste estudo em especial os quilombolas de Cariacá tratase de pessoas com as quais interajo não apenas quando estou no campo Muitos deles frequentam a minha casa e participam da minha vida pessoal Esse tipo de relacionamento não pode ser reduzido a uma situação que coloque de um lado a etnógrafa e do outro os etnografados Não existe esse distanciamento Em Cariacá minha presença antecede a pesquisa de campo durante o curso de Doutorado e certamente não permanecerá restrita a esse período O trabalho etnográfico que conforme esclarece Geertz 1989 busque compreender os fenômenos a partir da perspectiva e compreensão por parte dos que dele participam pode funcionar como um instrumento de desconstrução da visão essencialista que a sociedade vigente possui em relação às comunidades tradicionais Presumo que aprendi a melhor estuciar à realidade dos quilombos contemporâneos discutindo abertamente ideias solicitando sugestões ao senhor Valmir dos Santos que reside entre Tijuaçu e Cariacá e estreitando com os atores sociais das comunidades relações de parentesco compadrio e vizinhança Além de líder quilombola Valmir é estudante de pósgraduação latusenso na área de Educação e as suas considerações a respeito da minha pesquisa contribuíram significativamente tanto para a minha performance em campo quanto para a narrativa construída sobre o grupo Nas concepções trazidas pela pesquisadora América César 2001 as comunidades tradicionais por vezes passam a ser conhecidas pelo que é dito sobre elas partindo dessa premissa compete ao pesquisador manter não apenas uma atitude de vigilância epistemológica em relação ao campo mas também de respeito no processo de utilização de seus dados No tocante ao Lajedo embora eu já tivesse visitado esse grupo algumas vezes desde 2013 as relações apenas se estreitaram durante a pesquisa de campo Antes desse período eu mantinha um contato mais acentuado com algumas pessoas da comunidade apenas quando as encontrava em feiras livres da região 49 11 CONVERSANDO COM A NEGRITUDE SERTANEJA43 A partir do aparecimento de diversas comunidades quilombolas rurais pesquisadores como Clóvis Moura 1972 Flávio dos Santos Gomes 1994199620052015 José Maurício Arrutí 199620002006 Steil 1996 Schwart 1996 Glória Moura 20002012 Maria de Fátima Novaes Pires 200320102018 Nivaldo Osvaldo Dutra 2015 Paulo Henrique Duque Santos 2018 Napoliana Pereira Santana 2018 Gabriela Amorim Nogueira Silva 2018 entre outros começam a contribuir com a desconstrução do estereótipo da não existência ou da pouca influência do ator social negro no sertão baiano Os estudos desenvolvidos por esses pesquisadores têm colaborado para desconstruir a premissa de que apenas as regiões litorâneas concentraram africanos as escravizados as deles recebendo contribuições para a sua formação política econômica social e cultural Nesta tese não pretendo afirmar que a existência numérica e a influência cultural africana se fizeram sentir no sertão da Bahia com a mesma intensidade como ocorreu no litoral e no recôncavo No entanto me proponho a contribuir para a revisão crítica da suposta afirmação da não ocupação africana nas regiões interioranas do estado e consequentemente da sua não participação ativa para a formação dessas regiões De modo especial concentro essa discussão na região norte onde se encontram localizadas as comunidades estudadas Segundo Reis e Gomes 1996 p 20 grupamentos quilombolas teriam se instalado há centenas de quilômetros na região norte da Bahia e também em Pernambuco ocupando centros urbanos ou deslocandose para outras áreas de povoamento Entre essas zonas de povoamento chamo a atenção para a posição ocupada pelo sertão principalmente devido à atividade de criação de gado vacum e cavalar que se proliferou nessa região do país afirmandose durante muito tempo como a principal atividade econômica desenvolvida Muitos exescravizados as tornaramse após a abolição da escravatura agregados as de seus antigos senhores Esse sistema predomina até os dias atuais inclusive em 43 O termo Negritude Sertaneja designa grupos negros do sertão invisibilizados pela história oficial marginalizados pela sociedade envolvente e que afirmam uma tradicionalidade quilombola Diviso como atributos inerentes à Negritude Sertaneja os saberes ancestrais vivências e interações que esses grupos estabelecem em suas atividades políticas qualificadas pela emergência não exatamente de uma categoria criada pelo Estado o quilombola e sim de um conceito que constroem com criatividade particular e com base no qual negociam as suas identidades 50 comunidades que se descobrem quilombolas A esse respeito se pode parafrasear Capistrano de Abreu 2000 quando ele relata que os primeiros ocupantes do sertão não eram os donos das sesmarias e sim os escravos ou prepostos afirmando que esses últimos devem ter experienciado uma vida bem apertada devido ao absenteísmo de seus senhores Nessa mesma linha de raciocínio a pesquisadora Gabriela Amorim Nogueira Silva 2018 p18 em seu estudo sobre o povoamento das fazendas setecentistas do Certam de Cima enuncia que nas vivências pregressas de escravos verificadas em fazendas do interior do alto sertão é possível revelar suas estratégias de sobrevivências relativas autonomias conquistadas nas labutas cotidianas reelaboradas na condição de viver por si característica peculiar dos sujeitos escravizados as que imprimiram novas mediações sociais e especificidades da escravidão nos sertões baianos setecentistas Um fator que pode ser considerado como atrativo para o povoamento de várias regiões sertanejas é a presença de grandes rios a exemplo do rio São Francisco Donald Pierson 1972 como é sabido realizou um importante estudo sobre a presença e influência do homem no Vale do São Francisco região onde é oportuno lembrar concentra um grande número de comunidades remanescentes44 de quilombo a exemplo de Rio das Rãs situado no município de Bom Jesus da Lapa banhado pelas águas do rio São Francisco e localizado na região oeste do estado da Bahia Vale notar que tanto a comunidade de Cariacá quanto a comunidade de Lajedo estão estabelecidas próximas a rios perenes A primeira desenvolveuse próxima à bacia do Rio Itapicuruaçu ao passo que a segunda se encontra situada de forma privilegiada próxima aos rios Paiaiá Pedras e Itapicuru Algumas quedas dágua entre as quais a cachoeira do Gelo e do Mandingueiro conforme já foi relatado se encontram também nos limites do território tradicional de Lajedo O silenciamento no que se refere à presença das diversas comunidades negras rurais que de forma secular estão estabelecidas nessa região do estado emergindo crescentemente de uma situação de invisibilidade histórica passa a dar espaço a 44 A palavra remanescente não é utilizada aqui como sinônimo de resquício e ou vestígio referente a tempos passados visto que neste estudo as comunidades quilombolas são percebidas levandose em consideração tanto sua ancestralidade africana quanto as ressignificações estabelecidas por esses grupos ao longo da história Fato que lhes permite a possibilidade de figurar no momento presente como quilombos contemporâneos 51 discussões sobre o povoamento de grupos negros nos sertões e a historiografia produzida por esses atores sociais que é aqui analisada sobretudo da perspectiva das diferenças que utilizam para construir as suas identidades e não apoiada em uma ótica homogênea Embora possuam traços comuns construídos ao longo de suas trajetórias coletivas esses grupos tradicionais redirecionaram suas vivências mediante particularidades ressemantizadas por mais de uma geração atendendo às necessidades requeridas em cada contexto O movimento de transmutação das comunidades negras rurais em comunidades quilombolas tem se tornado uma realidade cada vez mais frequente na atualidade e confirma a presença de africanos as em diversos espaços sertanejos As antigas comunidades negras rurais antes disseminadas entre a população camponesa local têm se insurgido contra uma situação de ocultação e marginalização para se colocar diante do Estadonação45 como grupos diferenciados e que reivindicam sua cidadania com esteio em uma condição étnica e cultural da qual se declaram herdeiros A ancestralidade africana que os atores sociais quilombolas reclamam tem encontrado na atualidade um terreno propício para se manifestar no passado em função de uma situação histórica de opressão essa reivindicação permaneceu oculta em estado latente É cabível relatar que os sertões da Bahia se notabilizam como palco de diversos silenciamentos alicerçados na impunidade que sempre favoreceu a prepotência e a arbitrariedade das ações dos segmentos da população detentores de títulos considerados poderosos Os sujeitos negros cujo fenótipo era geralmente associado a uma inferioridade econômica eram discriminados pelas elites dirigentes que contra eles exerciam coerções diversas lhes negando o acesso a empregos à educação escolar saúde e outros serviços sociais A desconsideração da humanidade e do exercício da cidadania das comunidades negras do norte baiano antes das movimentações ensejadas pelo Barulho do Quilombo era um fato naturalizado Relato inclusive que piadas ancoradas em estigmas racistas a 45 O Brasil sendo um país constituído por povos diversos e possuidor de uma variação étnica demográfica e cultural que atua como um fluxo renovandose e promovendo um intenso hibridismo pode ser percebido como várias nações sob a égide de um Estado centralizador 52 exemplo de branco é filho de Deus mulato enteado caboclo não tem parente e negro é filho do diabo ou ainda nega preta do sovaco fedorento rala a bunda no cimento pra ganhar mil e quinhentos46 continuam sendo empregados como ditos espirituosos Por mais de uma vez escutei essas quadras vulgares sendo recitadas em diversos locais como escolas repartições públicas lojas de comércio ônibus e feiras livres direcionadas a pessoas negras quilombolas ou não e acolhidas pelos presentes como um comportamento desprovido de perversão e portanto não necessitado de punição Argumento que uma extensão da escravidão do corpo negro permaneceu durante muito tempo entre as populações do sertão tratase da servidão simbólica aquela que fere e maltrata de maneira meticulosa compelindo o sujeito à qual se destina a um estado frequente de subalternidade Esse tipo de silenciamento adotado em um contexto constituído historicamente por povos misturados mas que por uma questão de manipulação das classes dirigentes sempre se perceberam e desejaram ser brancos é divisado nesta tese como um dos contributos para a continuada invisibilização da Negritude Sertaneja Entendida nesse estudo como uma região de refúgio para escravizados amocambados e indígenas que fugiam do litoral em decorrência de perseguições dos colonizadores a fronteira sertaneja inaugurou um novo espaço no país ocupado por grupos socialmente minoritários tais como quilombolas indígenas ribeirinhos comunidades de fundo e fecho de pasto e não negros empobrecidos que por necessidade de sobrevivência e aceitação social se tornaram invisíveis Em sua pesquisa sobre o quilombo contemporâneo de Mocambo localizado na região sertaneja de Porto da Folha em Sergipe Arruti 2006 fornece alguns aportes teóricos para se repensar a situação de desconhecimento projetada para os grupos negros sertanejos Na concepção de Arruti 2006 p 172 são as regiões interiores os chamados sertões espaços onde não são encontrados com a mesma facilidade registros de existência 46 Quadras vulgares pronunciadas a voz corrente por indivíduos que se percebem como não negros com o objetivo de inferir e discriminar os atores sociais negros Essas ditas brincadeiras durante muito tempo sobretudo antes da conscientização suscitada pela emergência das comunidades quilombolas ficaram sem qualquer tipo de punição Presumo que a compreensão do significado da existência dos grupos quilombolas espalhados nos diversos sertões acarretou para a sociedade envolvente o traço diferencial de saber que a reivindicação de atitudes caracterizadas pelo viés do respeito deve acontecer como algo que é inerente a todos os povos e grupos sociais independente de etnia credo e ou opção sexual Em um contexto no qual o desconhecimento atua como fomentador de muitas invenções negativas e discriminações a presença dos grupos tradicionais tem provocado mudanças significativas 53 de grupos fugidos ou forros as localidades que melhores condições ofereciam para a instalação de grupos sociais marginalizados e para a sua organização em unidades territoriais dotadas de alguma estabilidade Quando esses grupos se afastavam da zona canavieira ou se reproduziam mediante outras formas de subsistência distintamente dos assaltos às estradas e engenhos saíam do raio de atenção das autoridades e passavam a ser confundidos com a população camponesa local Arruti 2006 problematiza uma discussão realizada anteriormente por Clóvis Moura 1972 que argumentou em prol da presença e colaboração dos atores sociais negros na produção econômica e cultural da região do São Francisco no oeste e no norte baiano mesma mesorregião onde se encontram localizadas as comunidades aqui trabalhadas Moura 1972 enfatiza que esses sujeitos teriam sido conduzidos a esse espaço e distribuídos por fazendas na condição de escravizados ou ainda adentrado às matas morros e caatingas como fugitivos na condição de quilombolas De acordo com o supracitado autor Quando o legendário monge que fundou o santuário do Bom Jesus da Lapa chegou ao local onde ele hoje se encontra divisou em Itaberaba currais de vastas proporções que eram ainda cuidados por alguns portugueses e escravos da África Ainda na região do Bom Jesus da Lapa informa o mesmo autor existiam distantes da gruta uns quinhentos metros umas quantas choças de índios e a uma légua uns currais de gado do Conde da Ponte aos cuidados de portugueses e africanos MOURA 1972 p 217 Em sua análise sobre o quilombo do Oitizeiro tido como um dos maiores produtores de farinha do interior do estado e situado mais precisamente nas imediações de Barra do Rio de Contas o historiador João José Reis 1996 p 333 faz referência às inúmeras propriedades do Conde da Ponte O autor afirma que nelas se encontravam milhares de cabeças de gado centenas de escravizados engenhos distribuídos no Recôncavo dezenas de fazendas e sítios arrendados que cobriam imensos territórios nos sertões da Bahia A existência dos quilombos sertanejos entre os séculos XVIII e XIX foram também relatadas por Stwart 1996 p 382 em seus estudos sobre a rebelião dos Haussás em 1814 Ele menciona a diversidade de quilombos que se espalhavam pelo sertão da Bahia 54 localizandoos entre as Águas Verdes e Côncavo na bacia do Jacuípe Orobó e Andaraí localizados na Chapada Diamantina Em um mapeamento realizado pela Prefeitura Municipal de Salvador Pedro Tomás Pedreira 1973 registrou a presença de populações negras no sertão e de escravizados as nas longínquas vilas de Nossa Senhora do Livramento no Rio de Contas e nos sertões da Jacobina Ainda sobre essa presença africana no sertão de Jacobina e de Rio de Contas o pesquisador Flávio dos Santos Gomes 2015 relata que havia denúncias sobre mocambos de negros que se comunicavam com grupos indígenas considerados arredios enfatizando que para fugir das expedições que tentavam escravizálos os índios Mongoiós se aliaram aos quilombolas de Jeremoabo As comunidades de Cariacá e Lajedo estão localizadas em territórios que no passado pertenceram à Vila de Santo Antônio da Jacobina As dependências da Vila compreendiam originalmente cerca de 300 léguas abrangendo terras de propriedade da Casa da Ponte da família Guedes de Brito estendendose desde o Rio de Contas até os limites correspondentes ao atual estado de Sergipe incluindo a cachoeira de Paulo Afonso A discussão sobre a contribuição dos atores sociais negros durante o povoamento dos sertões foi também revisitada pelo pesquisador Valdélio Silva 201047 em sua tese de Doutorado sobre a comunidade quilombola de Rio das Rãs O autor faz referência à grande quantidade de africanos as e afrodescendentes que por ocasião da abolição da escravatura acorreram ao Santuário do Bom Jesus da Lapa para comemorar a alforria Em seu estudo Silva 2010 ressalta os obstáculos superados pelos africanos as e afrodescendentes para participar da manifestação pública diante da Gruta que se prolongou por oito dias Os exescravizados as celebraram em uma grande festa pública cantando tocando pandeiros e maracaxás dando vivas ao Senhor Bom Jesus da Lapa que saudavam e conheciam pela denominação de Lenimbé Furáme Esses registros sobre a presença dos negros no Santuário do Bom Jesus da Lapa após a abolição poderiam ser tomados como importantes pistas para uma pesquisa específica sobre esse assunto pelas seguintes razões a os negros estavam presentes no Vale do São Francisco ao que parece de forma significativa e isso mostra ser evidente não somente pela referência à imensa multidão mas também por que a festa durou oito 47 SILVA Valdélio Santos Rio das Rãs e Mangal Feitiçaria e Poder em Territórios Quilombolas do Médio São Francisco 2010 354 f Tese Doutorado em Estudos Étnicos e Africanos Programa de Pósgraduação Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos Universidade Federal da Bahia UFBA Salvador 2010 55 dias b os negros acompanhavam os acontecimentos nacionais mesmo estando confinados em uma região distante e a maior parte residindo no meio rural sem falar das imensas dificuldades de comunicação c estavam bem articulados na região pois não deve ter sido fácil organizar uma manifestação nas proximidades da Gruta do Bom Jesus que teria durado uma semana e envolvido uma imensa multidão sem que se tivesse uma preparação prévia e convicções formadas sem o significado daquela decisão SILVA 2010 p 60 Essa celebração interpretada como um ato político demonstra que desde o período escravocrata existiu entre os negros rurais uma capacidade de articulação que passou despercebida por seus senhores talvez por desconsiderarem suas habilidades de organizar mobilizações devido ao fato de não estarem em um ambiente urbano A concentração de grande número de exescravizados as no Templo do Bom Jesus da Lapa pode também ser percebida como mais um exemplo para desautorizar o mito do isolamento atribuído às comunidades negras rurais Gomes 2015 e estendido às comunidades quilombolas sobretudo por parte de setores da sociedade pouco envolvidos com essa temática Ao conjecturar sobre o destino dos quilombos brasileiros após 1888 Gomes Ib p 120 afirma que esses núcleos continuaram a existir e se multiplicar como micro comunidades camponesas constituídas em sua maioria por sujeitos negros e afrodescendentes Não foram extintos As categorias de escravizados e fugitivos é que foram substituídas por outras classificações como a de sertanejo Essas micro comunidades camponesas se perpetuaram em seus lugares de origem Na concepção de Gomes Ib esses agentes permaneceram migrando desaparecendo e se reproduzindo em meio ao emaranhado das diversas comunidades camponesas espalhadas de norte a sul do país Os grupamentos negros rurais resistiram porque sempre souberam administrar ao seu favor a identidade que precisaram constituir para preservar a sua existência e reprodução sociocultural Conforme afirma Schwartz 1996 p 376 os quilombos que se espalhavam pela zona rural serviam de farol e refúgio para os escravizados as dos engenhos sendo portanto de suma importância tanto para os que lá se encontravam quanto para aqueles as que percebiam nesse ato de fuga e migração a possibilidade de assegurar a sua liberdade migrando de sua região de origem e adotando uma nova identidade Eles se integraram à população sertaneja possivelmente se adequando a designações comuns atribuídas aos agentes sociais residentes nessa parte do país se 56 tornaram portanto camponês caiçara da roça caipira do mato e no máximo caboclo identidades que melhor se aproximam dos ideais de branqueamento nutridos nessas regiões em especial por parte das camadas governantes e socialmente abastadas Estimulados a perder o vínculo com sua negritude epidérmica principalmente com os valores africanos que foram ressignificados na diáspora e procurando se incorporar à chamada população rural brasileira os grupamentos negros rurais sejam aqueles constituídos na época da escravidão ou no chamado período do pósabolição têm uma história apoiada não apenas na luta como também na capacidade demonstrada para reinventar vivências e estilos de vida ancorados nos valores que professam assim como no território que ocupam os sertões e interiores concebidos neste estudo como repositório de vivências ancestrais Os amocambados ao se afastarem do debrum litorâneo buscaram constituir suas vidas nos novos espaços buscados de modo a evitarem qualquer possibilidade que pudesse ameaçar essa suposta liberdade adquirida Menciono que entre os fatores divisados como ameaçadores se sobressaía a sua condição quilombola que necessitava ser esquecida ou apagada para assegurar a sua existência na sociedade formalmente pós escravocrata Essa capacidade histórica de se metamorfosear possibilitou que esses grupos aparecessem na atualidade substituindo o ethos do silêncio pelos ecos de suas vozes Demonstrando habilidade de se articular para reivindicar do Estadonação direitos que lhes foram suprimidos e cuja usurpação serviu para mantêlos em uma situação de inferioridade perante outras categorias sociais A necessidade de preservar suas vidas suas liberdades individuais e coletivas certamente estimulou os inúmeros homens e mulheres negras que buscaram o sertão a abdicar cada vez mais de suas identidades africanas e afrodescendentes bem como de qualquer outro vínculo que remetesse à situação servil a qual foram confinados aderindo a uma sertanidade48 que passou a orientar as suas formas de vida Nesses espaços agenciados a etnicidade funcionou como o sinal diacrítico que permaneceu submerso no interior dos grupamentos negros por ser considerada um 48 Compreendo sertanidade como os estilos de vida e formas de organização verificados nos âmbitos político econômico social e cultural adotados pelos agentes que residem em diversos interiores baianos designados sertão 57 elemento denunciador de sua origem A Negritude Sertaneja passou então a se reconfigurar camuflada nessas comunidades de modo a assegurar seu convívio na sociedade regional daí por que memórias foram sufocadas atividades culturais reprimidas e religiosidades reinventadas por esses povos que ali se encontravam e que reescreveram outras narrativas históricas Comungo com os historiadores Reis e Gomes 1996 p 12 quanto à necessidade de se atentar para esse processo de construção e reconstrução de novas instituições culturas e relações sociais inclusive com o propósito de compreender por que os quilombolas e escravizados as em geral optaram por manter certos aspectos de suas origens africanas e não outros Ao fazêlo ao tempo em que africanizavam o seu novo mundo renovavam o que da velha África conseguiam carregar consigo Pretendo enfocar alguns caracteres observados nos saberes práticas e vivências dos habitantes de Cariacá e de Lajedo que se estruturam no universo de signos do que denomino Negritude Sertaneja 111 TRAÇADOS E TRANÇADOS DA NEGRITUDE SERTANEJA A trajetória histórica empreendida pelos ancestrais africanos as quase sempre permanece desconhecida nos quilombos contemporâneos em especial a chamada história oficial O que é sabido ainda que em forma de fragmentos considerando que em algumas comunidades a memória oral aparece com certa dificuldade é a história de seu grupo específico As ações realizadas pelo ancestral fundador a ou ainda os feitos praticados pelas primeiras famílias que iniciaram o povoamento da comunidade estes constituem legados que atravessam gerações sendo repetidas pelos netos e bisnetos as que por vezes fazem questão de narrálas de modo a especificar sua legitimidade Além da legitimidade atestada entre outros fatores pelo mito fundador há os traçados e trançados internos que podem ser observados nos estilos de vida adotados pelos membros das comunidades em foco capazes de amparar as suas existências Eles constituem um estatuto interno que não chega a ser explicitado oralmente mas é apresentado às crianças e performado pelos atores sociais mais jovens modelam suas 58 ações e comportamentos Os sinais que os diferenciam e compõem o trançado da vida como relatou o senhor Francisco João dos Santos 81 anos conhecido em Lajedo como Seu Sariabo Contador de piadas e narrador de muitas histórias ele é muito apreciado na comunidade Meu primeiro contato com Seu Sariabo ocorreu na cidade de Saúde Na ocasião ele afirmou que pra saber o trançado da vida do Lajedo a menina vai ter que ir lá pra entender por que o povo não quer sair dali O trançado descrito por Seu Sariabo se refere à organização do modusvivendi em sua comunidade caracterizado pelas histórias ancestrais e por um imaginário povoado de saberes denominados sabedoria do povo do mato49 O trançado da vida também opera em Cariacá Descrevo algumas características culturais observadas em ambos os grupos estudados considerando as suas especificidades mas também os aspectos similares Elejo os elementos que compõem as construções presentes nos traçados e trançados da Negritude Sertaneja os conhecimentos ancestrais que permanecem referendando a vivência cotidiana desses grupos e as habilidades que podem ser também pensados como modos de ser e de se perceber quilombola A literatura produzida sobre as populações quilombolas geralmente prioriza a memória histórica e as lutas políticas empreendidas Ambas constituem aspectos relevantes para orientar a caminhada dessas comunidades assim como a reivindicação por políticas públicas específicas No entanto há uma rica produção interna de saberes tradicionais que possui uma função social cotidiana na vida dos seus membros e que não pode por mim ser descartada haja vista que pude observar a importância desses saberes na construção do processo educacional informal que concede significado sustenta as lutas insurgências e resistências modelando concepções de vida traçadas isto é os conhecimentos que herdaram e permanecem herdando dos mais velhos as e trançadas sobre o olhar que cada geração lança sobre esses ensinamentos e a credibilidade que a eles conferem Motivo pelo qual os designo também nesta tese de saberes da resistência Advirto que não pretendo cristalizar conceitos tampouco essencializar comportamentos observados Presumo que uma pesquisadora que se propõe a desenvolver um trabalho ético e comprometido politicamente com os as interlocutores as deve 49 Expressão utilizada por esses grupos quilombolas sertanejos para expressar o conhecimento de manipulação das ervas simpatias e orações consideradas imprescindíveis para entrar e sair da mata fechar o corpo dos adultos e proteger as crianças de mauolhado e visagens 59 produzir uma narrativa respeitosa sobre as construções simbólicas que norteiam os modos de vida dos membros de Cariacá e Lajedo evidenciando a relevância dessas cosmovisões no cotidiano dessas comunidades 112 PRESTANDO ASSUNTO Assuntar50 é uma postura altamente prestigiada em Cariacá uma arte aprendida pelos mais velhos as e um legado para os mais jovens Segundo Seu Manuel Julião Dias quem não assunta é assuntado Ele provavelmente iniciou seus filhos as e netos as nessa tarefa divisada como condição necessária para experimentar e estabelecer posicionamentos diante da vida Seu Manuel ou Mané Congo como gostava de ser identificado justificando que pertencia ao tronco velho dos Congo faleceu no segundo semestre de 2015 após ter concedido duas entrevistas que contribuíram significativamente para a escrita desta tese Além dessas entrevistas destaco os diálogos igualmente proveitosos mantidos com o ancião e sua importante contribuição na rememoração da história de fundação da comunidade51 A atitude de assuntar se relaciona ao ato de observar pessoas objetos ambientes e situações de forma a não ser ludibriado e permanecer no prejuízo seja no plano econômico afetivo e ou espiritual se colocando em uma posição de desvantagem capaz de acarretar problemas não apenas para aquele a que experimentou tais situações como também para a sua parentela e assim comprometendo moralmente a família perante o grupamento Quem mantém o hábito de assuntar se isenta de adquirir indisposições por isso desde muito cedo os membros de Cariacá são engajados na arte de assuntar aprendendo a prestar assunto às diversas situações que se apresentem no cotidiano pois é prestando assunto que se adquire experiência e conhecimento valores muito apreciados e capazes de suscitar a consideração coletiva Percebi a arte de assuntar contemplando os membros das comunidades as suas formas de se relacionar com a vida em uma cosmovisão que respeita o espaço e as horas consideradas sagradas Atitudes que puderam ser observadas quando eles realizavam as 50 Em Cariacá os quilombolas emprestam a essa palavra o sentido de observar ou ainda de prestar atenção 51 No Capítulo 2 farei referência direta a esse assunto 60 tarefas cotidianas e se resguardavam de pronunciar palavras que por motivos diversos não devem ser ditas nem escutadas Dona Luci de Cariacá advertiu aos seus muitos afilhados as residentes na comunidade e nas outras localidades do perímetro sobre a força da palavra pois existe palavra de levantar e de derrubar a pessoa Segundo Dona Luci algumas pessoas derrubam com o olho outras com a boca que não é abençoada é boca de derrubar pois a palavra antes de ser direcionada a outrem já existe e arregimenta em seu entorno um significado portanto antes de ser lançada a força da palavra já existe dentro ela e é essa circunstância que concentra a energia que derruba ou levanta a pessoa à qual a palavra foi dirigida É fato comum em Cariacá alguém dizer está contrariado por ter começado o dia falando ou olhando para uma pessoa que tem olho ou palavra ruim encontrar pessoas assim ainda no início da manhã é tido como um aviso ou prenúncio que esse dia não terminará bem e ou ainda que acontecerá alguma circunstância adversa Um encontro tão evitado quanto aquele que acontece envolvendo pessoas que possuem olho e boca ruim é o contato com os intrigados já que essa energia também compromete a teia da vida As pessoas que se acredita terem olho e boca ruim não costumam ser hostilizadas apenas evitadas especialmente em algumas circunstâncias Elas não devem visitar os recémnascidos ou presenciar a realização de algumas tarefas de preparação de alimentos costura de roupas e até mesmo durante atividades que envolvam o uso de dinheiro porquanto sua presença pode atrasar ou gorar52 essas atividades De acordo com Dona Luci é preciso revelar à pessoa que ela possui olho goro como forma de ajudála a reverter essa sina Porém essa é uma atitude complicada pois expõe ambas as pessoas a uma situação vexatória que pode se converter em um melindre e potencial intriga Em Lajedo também existe a preocupação de resguardar as crianças de colo do mau olhado esse cuidado é todavia observado com relação às pessoas de fora O sentimento de pertença observado no grupo o sentimento de que formam uma única família um tronco de várias ramas permite cultivar a crença de que a energia emanada pelas pessoas da própria comunidade não é capaz de ofender as crianças 52 Os interlocutores as utilizam essa palavra para indicar uma atividade que não se realizou devido a um empecilho externo 61 Não se faz queimada ao meiodia53 nem mesmo nos quintais das casas Antes de iniciar esse procedimento tão comum entre os rurais negros é preciso rezar54 e pedir a permissão para controlar o fogo Essa atividade de coivarar terra55 comum entre os grupos tradicionais é uma habilidade que passa de pai para filho tratase de uma técnica aprendida através da observação das tarefas realizadas pelos mais velhos as cuja experiência se faz respeitar principalmente quando da ateação do fogo pois isso exige ciência56 há que se verificar o posicionamento do sol e a direção do vento Por isso as pessoas que não demonstram experiência não são admitidas nesse trabalho é preciso aprender prestar assunto escutar ao que é dito pelos mais velhos as A faculdade de ter ciência é descrita como um acúmulo de saberes que se aplicam às circunstâncias práticas da vida Coube aos mais velhos as a oportunidade de ser iniciados as nesse tipo de práxis e por isso a eles as compete cuidar da sua transmissão àqueles as que se encontrem aptos para herdála aptidão que se verifica por meio de inclinação pessoal ou ainda quando escolhido pelo paimãe avôavó ou outro ancestral A autoridade aqui evidenciada deve ser cultivada pois esse princípio quando delegado a outrem fundamentase em um comportamento construído tomando como base as experiências que se acumulam ao longo da vida Ela não se encontra alicerçada em qualquer tipo de imposição As gerações mais jovens quando não demonstram respeito pelos preceitos de seus ancestrais e pelas diversas dimensões da vida sociocultural da comunidade não são bem vistas pelo grupo passando a ser apontadas como pessoas que não merecem confiança não servem para casar pois não saberiam conduzir a família Elas incorrem frequentemente em erros que poderiam ser evitados se mantivessem uma atitude de escuta e de obediência 53 Esse horário é considerado sagrado em Cariacá É um horário de preceito pois ao meiodia não nasce ninguém nem morre ninguém sendo um horário de silêncio quando o tempo para 54 Essa crença é comum entre os atores sociais de Cariacá e Lajedo 55 Procedimento comum entre populações quilombolas e camponesas Realizada para possibilitar o plantio da agricultura de subsistência o processo tem início com a derrubada da mata nativa seguida da queimada do solo Apesar das polêmicas que envolvem esse procedimento ainda é uma atividade usual em localidades rurais onde as comunidades descritas nesta tese se encontram localizadas 56 Palavra difusa principalmente entre os mais velhos as que se refere à habilidade de demonstrar conhecimento sobre determinado fato ou manipulação de tarefa 62 A habilidade de ter ciência expandese a outras situações da vida cotidiana a exemplo do reconhecimento das horas verificando o tempo de Deus57 isto é sem a necessidade de recorrer a ajuda de um relógio ou aparelho celular O tempo de Deus é uma expressão acionada para indicar os fatos ocorridos no passado Em Cariacá Seu José Pedro dos Santos conhecido como Zé Preto orgulhavase de conhecer essa ciência que lhe foi transmitida por seu pai tropeiro descrito como alguém que andou bastante na vida e aprendeu em todo canto que andou58 A vida para os grupos quilombolas focalizados neste estudo é apreendida na rotina diária como um atributo divino e uma experiência que confere aprendizado Os atos de assuntar e aprender ensejam na compreensão dos sujeitos das comunidades estudadas a sabedoria socialmente validada Alguém que não acumulou sabedoria é desconsiderado referido apenas nos exemplos aos mais jovens de condutas que devem ser evitadas Nas ocasiões em que encontrei Seu José Pedro adotei o hábito de indagar sobre as horas em tom de brincadeira Sem se perturbar observando o céu e a sua sombra em relação ao sol ele me respondia em tom audacioso tá certo pra mais ou pra menos Ele faleceu em setembro de 2017 Eu o entrevistei três vezes a primeira entrevista foi realizada em janeiro de 2014 antes do meu ingresso no curso de Doutorado Seu José Pedro morreu com 104 anos vividos em Cariacá exceto por alguns períodos de ausência migrações temporárias para o sul da Bahia quando das grandes secas que acometeram o sertão em especial a de 1932 Sua idade e conhecimentos lhe conferiram os títulos de membro mais velho do grupo e depositário de sabedoria Encontrei Seu Pedro diversas vezes embaixo de um pé de umbuzeiro ou em sua residência sentado em um sofá situado próximo a uma mesa de madeira com bancos que ele próprio havia construído Ele costumava manipular uma enxada ou um facão entre as mãos ferramentas das quais dizia não se apartar pois as usava para cavoucar a terra considerada o maior benefício de minha vida 57 Essa expressão é muito utilizada por esses sujeitos ressemantizados em especial durante o horário de verão Em Cariacá os quilombolas acreditam que modificar o tempo através do adiantar das horas contraria o que chamam do tempo de Deus Outra expressão recorrente nesse grupo para se referir aos fatos positivos que ocorreram no passado é isso é coisa do tempo em que Deus andava no mundo 58 Andar nesse contexto significa acumular conhecimentos e experiências É comum afirmarem que alguém é bem corrido quando desejam enfatizar vivências capazes de assegurar o que denominam de sabedoria de vida 63 Quando eu chegava Seu Zé Preto que ainda fabricava tijolos pausava o trabalho e me concedia a possibilidade de melhor compreender a trajetória de sua comunidade informando aqui no Cariacá quem quiser saber das coisa tem que perguntar ao Zé Preto Por isso não se acanhe não e quando quiser saber venha cá Pode vim Essas palavras pronunciadas em tom de satisfação eram escutadas por sua esposa e netos as que também apareciam durante as entrevistas para aprender as histórias narradas com lucidez capazes de revelar a postura cônscia do ancião no que se refere à condição que ocupava no interior do grupo Em uma das conversas informais que tivemos que se realizavam preferencialmente antes do meiodia quando Seu Zé Pedro demonstrava mais disposição para prosar indaguei sobre os procedimentos que ele utilizava para saber as horas através do sol Ele retorquiu provocativamente isso é ciência que gente nova não tem Esse episódio me tornou motivo de risos durante algum tempo entre os as presentes Compreendi que essa ciência representa um lugar de segredo Possuir essa ciência concede certo enaltecimento portanto esse conhecimento é preservado e pouco partilhado com os demais Durante a noite a averiguação das horas é feita com menor probabilidade de acerto considerando a posição da constelação do Cruzeiro do Sul Segundo Seu José Pedro quando o cruzeiro se levanta no céu e forma uma cruz aí nesse momento dá meia noite Aí atingiu a hora sagrada Suponho ser oportuno estabelecer um comparativo entre a intimidade demonstrada pelos anciões de Cariacá com os movimentos dos astros e o comportamento atribuído ao universo místico presente no animismo indígena É uma herança registrada na memória coletiva do grupo59 Além de conviver de modo respeitoso com os elementos da natureza ou com o mato a expressão da Negritude Sertaneja também se manifesta em alguns comportamentos da vida cotidiana que são traçados e permanecem sendo descritos neste estudo 59 No Capítulo 2 abordo com mais propriedade a ascendência afroindígena de Cariacá 64 113 AUTORIDADE PARA BOTAR BENÇA A bênção é percebida pelos membros das comunidades estudadas como uma invocação que fornece ajuda e proteção Pedir a benção é um costume das crianças adolescentes e até de alguns adultos em momentos específicos do dia como ao acordar ao se preparar para dormir e às seis horas da tarde Em Cariacá às seis horas da tarde todas as luzes das residências estão acesas pois se acredita que Nossa Senhora vai passar e abençoar a casa manter as luzes apagadas nesse horário é uma atitude de desrespeito à santa cuja bênção é tida como especial O poder da bênção costuma também ser requerido em situações que demandam a realização de tarefas importantes como antes de uma viagem de um casamento e principalmente quando da migração para os grandes centros urbanos em busca de oportunidades de trabalho Nessas ocasiões o ato de botar bença conforme é dito em Lajedo quase sempre é sucedido pelo traçar do sinal da cruz na testa do abençoado a Esse gesto considerado sagrado funciona como uma confirmação da benção Botar bença transfere poder e força do a que abençoa àquele a que é abençoado Para ser eficaz a benção só pode ser conferida por pessoas eleitas para a função como para os seus parentes diretos pois existe a crença de que o poder da bença pega isto é o abençoado a adquire traços característicos da personalidade do a abençoador a Em novembro de 2017 presenciei o caráter afetivo e místico do qual se reveste a benção quando D Idália Santana de Azevedo 45 anos botou a bença em sua filha Rose que estava viajando para Minas Gerais onde passaria três meses auxiliando uma tia em período de resguardo Rose foi abençoada pela mãe e por um tio materno Seu Alberto Santana de Azevedo O pai de Rose Seu João Colado também a abençoou Mesmo sendo atualmente evangélica Dona Idália reconhece o valor da bênção para alcançar um estado de bemestar na vida de todos os seres e por isso nunca deixou de praticar o costume de pedir a bênção à mãe D Roxa uma vez que o seu pai já é falecido Quando D Idália está na cidade de Saúde na casa de sua mãe as crianças costumam confundila com Dona Roxa e solicitam a bênção quando a encontram para não desapontálas D Idália responde Deus te abençoe60 Certa ocasião indaguei a D Idália se ela não havia 60 O motivo dessa solicitação encontrase associado ao fato que a Senhora Eulina Carmelina de Santana Dona Roxa é rezadeira e costuma ser procurada constantemente para rezar nas crianças 65 enfrentado problemas com a sua nova religião por permanecer dando a benção Ela respondeu tem coisa na vida da gente Paula que ninguém tem nada a ver não Compreendi então que a crença depositada no poder desse rito transcende o credo religioso e encontra sua força no universo espiritual construído na comunidade No casamento de Rose realizado em dezembro de 2018 observei o quanto o poder atribuído à bênção é forte entre as pessoas de Lajedo haja vista que antes de sair de casa para a realização da cerimônia a noiva se ajoelhou e solicitou a bênção da mãe e da avó materna Embora com menor frequência as crianças antes de ir para a escola61 situada na comunidade de Palmeira ou na cidade de Mirangaba conservam o hábito de tomar bença aos pais Quando não o fazem espontaneamente são com frequência repreendidos sob a alegação de falta de consideração ou de responsabilidade para com os mais velhos as A bênção é normalmente solicitada aos que possuem atribuições para abençoar no caso os pais avós tios irmãos mais velhos e padrinhos A autoridade para botar bença se verifica em função do grau de parentesco da idade das experiências de vida e do respeito que a pessoa suscita entre os membros da comunidade Entre os as mais velhos as e alguns as adultos as a bênção pedida aos padrinhos é antecedida de uma louvação Louvado Seja Nosso Senhor Jesus Cristo Bença minha madrinhapadrinho Ela é especialmente recitada nos dias de Sexta Feira da Paixão quando usualmente as famílias têm convidados para o almoço geralmente afilhados as e filhos as que já constituíram suas próprias famílias que comparecem com seus cônjuges e filhos A louvação pronunciada por afilhados as de batismo crisma e ou representação62 se relaciona ao afeto desenvolvido pela o madrinhapadrinho Ainda quando não ficam para o almoço os afilhados as são aguardados pelos padrinhos e madrinhas para lhes pedir a bênção Após a benção seguese a troca de presentes ou das iguarias que serão servidas durante a refeição do dia santo No caso dos mais jovens a louvação é menos observada pois se sentem constrangidos e por isso se restringem a pedir a bênção e ser abençoados Em ambas as comunidades enfocadas os quilombolas utilizam a expressão tomar bença acreditando que ela se reveste de proteção espiritual uma vez que segundo D 61 No Capítulo 4 abordarei os motivos que levaram ao fechamento da escola na comunidade 62 No Capítulo 5 discutirei a relevância dos laços de compadrio estabelecidos 66 Roxa a bença serve pra quem pede e pra quem dá Em suas palavras tanto aquele a que invoca a bênção quanto quem é investido a do poder para abençoar se beneficiam durante o processo pois esse rito concentra força que se multiplica através dos atos de abençoar e de ser abençoado É por muitos tido como vantajoso tomar bença várias vezes ao dia e a pessoas diferentes As crianças e adolescentes de Lajedo são orientados a pedir bença quando encontram ou se dirigem às casas dos as mais velhos as Alguns adultos possuem o hábito de pedir a bênção a D Rosália Matias dos Santos de 65 anos D Rosália se distingue na comunidade pelo fato de durante muito tempo ter sido professora na escola local Ela se aposentou em 2010 mas ainda é considerada como mãe dos seus exalunos Ela começou a ensinar quando se casou com Seu Armando João dos Santos de 68 anos e mudouse para o Lajedo O respeito devido à D Rosália ou Rosa como é comumente tratada por seus vizinhos e conhecidos se estende à D Domingas Rosalina de Santana ou D Miúda de 78 anos também conhecida pelos moradores da comunidade como a mãe de todos D Miúda foi parteira nas comunidades de Lajedo Grota das Oliveiras e Água Fria até o ano de 201263 Os grupos quilombolas descritos nesta tese acreditam que as pessoas rebeldes que não tomam bença se tornam sofredoras devido à falta de humildade e respeito à autoridade dos mais velhos as Parentes que não tomam bença costumam despertar sentimentos de compaixão e ou de desprezo tornandose alvo de críticas constantes Mesmo entre as crianças que ainda não foram batizadas notase o hábito de pedir a bênção sempre que encontram os seus futuros padrinhos é um gesto de respeito aos que foram escolhidos por seus pais ou pelo a próprio a afilhado a e que se espera também se responsabilizarão por sua educação acompanhando mais de perto o seu crescimento O costume de tomar bença muito apreciado em Lajedo é transmitido às crianças desde a mais tenra idade para que com o tempo não se perca entre pessoas que se estimam 63 Esclareço ao leitor a que muitas famílias que antes viviam em Lajedo migraram para a comunidade de Grota das Oliveiras Essa comunidade será abordada no capítulo cinco 67 114 O RESPEITO PELAS HORAS MORTAS A OBEDIÊNCIA E O ZELO DA PROTEÇÃO Não se sai de casa à meianoite pois se acredita que este é o momento de dominação do invisível64 ou o tempo das horas mortas Os espíritos dos que dormem estão a passear e é preciso ter preparo para caminhar nesses horários que não pertencem aos vivos Seu Fernando do Monte 75 anos narrou que em certa ocasião em Cariacá ao sair para tirar leite das vacas por volta das 03h30min da madrugada avistou um homem vestido de branco à sua frente Como ele estava distante não o reconheceu e decidiu aumentar o passo disposto a alcançálo e assim ter companhia Quanto mais apressava o passo mais o desconhecido se distanciava passando a aparecer e desaparecer simultaneamente Seu Fernando constatou então que o vulto vestido de branco não se tratava de gente desse mundo mas de uma visagem Para evitar esses avistamentos e outras circunstâncias adversas as pessoas da comunidade evitam sair durante as horas mortas Elas compreendem o período que vai da meianoite às 04 horas da madrugada são horas consideradas longas e misteriosas portanto regidas pelo universo invisível que atua no silêncio do mundo dos vivos para exercer a vontade do mundo daqueles que dormem isto é daqueles que não se encontram mais nesse mundo O meiodia por outro lado é considerado como um tempo suspenso como relatou D Maria José o horário do silêncio quando o tempo para os bichos se deita e o tempo silencia Os mais velho dizia que meiodia é horário de preceito por que não nasce ninguém nem morre ninguém Ao indagar sobre os invisíveis e as suas representações no imaginário da comunidade me foi explicado com reservas que os invisíveis ou são bons ou aparecem com o propósito de assombrar e ou atormentar suas vítimas Nem todos as conseguem enxergálos apenas aqueles as que como afirmou D Luci receberam de Deus a permissão para vêlos A visão está condicionada ao comportamento ou seja uma pessoa que pratica bons atos não será punida com o aparecimento dos invisíveis maus pois a presença deles revela a necessidade de punição e ou advertência na teia da vida Em Cariacá os invisíveis maus são a caipora65 o zumbi a cachorra Lindaura e o 64 Expressão pronunciada com frequência em Cariacá 65 Conforme o dicionário Aurélio 1986 do tupi Kaa porá morador do mato Espírito que costuma habitar as matas pouco povoadas e encantar os seus invasores 68 lobisomem embora os dois últimos já tenham sido avistados por muitos moradores as da comunidade são classificados como invisíveis Os invisíveis bons são parentes já falecidos que permanecem próximos e se preocupam com o destino dos seus entes queridos Alguns moradores as de Lajedo mencionaram a existência da caipora mas não se sentiram à vontade para falar sobre essas visagens do mato Todavia observei que quando os membros da comunidade vão para as roças ou para o mato com o propósito de caçar ou extrair o coco babaçu geralmente levam fumo de corda ou cigarros comuns e os depositam nos tocos de pau para agradar à caipora e evitar as suas brincadeiras Não reuni muitos elementos em campo sobre essa visagem do mato pois os as moradores as de Lajedo se esquivavam sempre que eu abordava o tema Me limitei portanto a observar como se precaviam contra as artes da temida e respeitada caipora As conversas sobre a caipora se desenvolvem com naturalidade em Cariacá Presumo que isso esteja associado à ascendência afroindígena da comunidade e ao fato de que em Cariacá o mato fechado morada desse invisível foi substituído pelas casas dos moradores Eles também demonstram tranquilidade para falar sobre locais antes tidos como mal assombrados a exemplo da linha do trem e o antigo lajedo ocupado atualmente por uma empresa extratora de britas e produtora de material de construção Grupo Irmãos Pelegrini Esses espaços transformados já não provocam tantos receios na população Contudo notei a existência de um preceito que é acionado sobretudo nas horas descritas como sagradas ou mortas propensas ao domínio dos invisíveis isto é se necessitam sair nesses horários traçam o sinal da cruz e fazem uso de amuletos A influência das forças caracterizadas como invisíveis é tão forte em Cariacá que as circunstâncias adversas não explicadas são consideradas malefícios dos invisíveis e é habitual os interlocutores as repetirem isso é perseguição invisível D Antônia de Freitas Silva 76 anos refuta a existência desse universo invisível tão enfatizado por seus parentes Ela não acredita na existência da caipora todavia reconhece já ter sido encantada por esse invisível quando quebrava lenha no mato do lado oposto ao rio Na ocasião D Antônia estava em companhia de uma amiga Claudia e de seu No universo dos saberes nativos a caipora é o guardador do mato responsável pela sua proteção motivo pelo qual se compraz em encantar o invasor a arrogante que não a respeita e desafia sua existência ultrapassando sem pedir licença os seus domínios 69 cachorro Brinquedo quando percebeu que ela e sua amiga estavam ariadas66 Compreendendo o que havia ocorrido D Antônia chamou pelo cachorro que as conduziu para casa pondo fim ao encanto67 Ela sentiu como se estivesse em transe e o mesmo ocorreu com a sua amiga Seguiram o cachorro sem ter noção exata do caminho percorrido Ela só conseguiu entender o que houve quando avistou a sua casa percebeu o adiantado da hora e a preocupação da família D Luci assegura que a caipora tanto encanta no mato quanto na cidade Certa feita ela ficou ariada em Senhor do Bonfim durante uma viagem para comprar mistura68 e permaneceu o dia inteiro perambulando pelas ruas Apenas quando se sentiu cansada o suficiente para continuar caminhando se recordou de um ensinamento do pai que a advertia várias vezes durante a infância sobre as artes da caipora Meu pai dizia o seguinte que quando a gente fosse tirar licuri no mato tinha que levar uma capa de fumo colocar a capa de fumo em um oco de pau que isso era para a caipora Aí se você já tivesse ariado tinha que trocar o chinelo Luciana de Freitas Silva 75 anos em 290917 A expressão trocar o chinelo utilizada por Dona Luci se refere ao ato de trocar o pé esquerdo da sandália pelo pé direito como forma de anular o efeito do encanto e recobrar a lucidez dos sentidos Nesse dia vivenciado em Senhor do Bonfim ela só conseguiu chegar a casa à noite O seu esposo estava angustiado e já de saída para procurá la O episódio deixou D Luci equivocada por alguns dias pois ela não conseguia compreender o fato cuja lembrança ainda é capaz de suscitar certo entristecimento Para D Luci a caipora é uma entidade que pega a gente e a gente fica sem saber como é que faz 66 De acordo com os interlocutores as se encontra ariada a pessoa que passa horas andando em círculos sem conseguir se dar conta desse fato Esse estado de espírito é atribuído às artes da caipora que costuma encantar aqueles as que não tem bom coração entrem no mato sem respeito sem pedir licença ou ainda que façam pouco caso de sua existência O encanto da caipora sempre tem a função de legar um ensinamento ao sujeito 67 Os interlocutores as explicaram que o encantamento produzido pela caipora apenas finaliza quando aparece uma outra pessoa a sua frente despertando aquele a que antes se encontrava ariado para a realidade ou ainda através da presença de um animal como o cachorro ou o cavalo capazes de conduzir em segurança para casa o indivíduo que se encontre nesse estado de transe momentâneo 68 Os quilombolas emprestam a essa palavra o sentido de aquisição do alimento especialmente a carne 70 Para as comunidades em foco o encanto ou brincadeira da caipora e de qualquer outra entidade que habite o plano invisível não ocorre desprovido de um ou mais motivos Cabe à vítima entender o que motivou o ataque Quando isso não ocorre e a pessoa permanece se comportando de modo repreensível o encanto pode se repetir com intensidade ainda maior Geralmente o temor de um novo ataque da caipora estimula as pessoas a se comportarem de modo conveniente Outra entidade muito temida em Cariacá é o zumbi que costuma surpreender aos desavisados com o seu assovio Os pescadores e caçadores voltam para casa assombrados sempre que se deparam com esse ser que afirmam não ver apenas escutam o seu assovio agudo e ensurdecedor Quando isso ocorre eles permanecem entorpecidos por alguns instantes Escutar o assovio do zumbi é interpretado como um aviso para que retornem às suas casas e não cacem ou pesquem nesse dia ou noite Nunca se sabe se esse aviso vem para o bem ou para o mal Muitas mulheres da comunidade evitam sair durante as horas mortas porque temem a reprimenda do zumbi As crianças são informadas e prevenidas sobre a existência dessa visagem que perturba suas vítimas ao meiodia e a partir da meia noite Dona Maria José relatou que já foi surpreendida pelo assovio do zumbi quando estava com algumas amigas catando lenha no mato Elas também escutaram gemidos o que as levou a cogitar que se tratava de alguém que pudesse estar ferido e necessitando de ajuda Contudo não encontraram ninguém a quem pudessem atribuir os gemidos e então concluíram não se tratar de gente do mundo dos vivos Segundo D Maria José quando isso ocorre é necessário insultar a visagem para que ela fique amedrontada e vá embora Os insultos devem ser simples e diretos mandar a visagem pra merda e para a baixa da égua Não é recomendável pronunciar os nomes ditos do inferno para não comprometer a sua própria alma uma vez que a caipora e o zumbi não são considerados coisas de Deus Enquanto os as mais velhos as teciam narrativas sobre as peripécias do zumbi observei que os as mais jovens permaneciam incomodados as Para esses as últimos as a palavra Zumbi se reveste de outro significado é o herói que representa o povo negro e afrodescendente Um dos netos de D Maria externou o seu incômodo ante a apropriação 71 negativa do termo atravessando69 a conversa e retirando a palavra da avó para esclarecer que o Zumbi é um valente guerreiro e que ela não deveria se referir a ele dessa forma O incidente foi motivo de contrariedade pois interromper os mais velhos as é sinônimo de desrespeito e atitude passível de correção Entre os moradores de Lajedo o zumbi é identificado pela denominação de os assobeios do mato não sendo utilizada a palavra zumbi ou qualquer nomenclatura específica Quando escutam esses assobeios os quilombolas não interrompem suas atividades tampouco retornam para casa porém se benzem70 para espantar o que não é da parte de Deus Associam os assobeios a coisa ruim e se resguardam de falar a respeito dizem apenas que ficam arrepiados e com os cabelos levantados do casco da cabeça Por isso se protegem antes de sair advertindo que no mato tem muita coisa que pega gente mal ouvido71 Em um estudo realizado na comunidade de Itá situada na região do Baixo Amazonas Eduardo Galvão catalogou diversas entidades que permeiam o universo místicoreligioso daquela comunidade como os bichos visagentos Os bichos visagentos não recebem qualquer culto ou devoção A atitude do caboclo é de evitálos tanto quanto possível ou de recorrer a técnicas de imunização ou de neutralização de seus poderes malignos Os santos ao contrário recebem culto e deles o caboclo se aproxima através de orações de promessas e de atos festivos Acreditase que protejam a comunidade e o indivíduo Galvão 1955 p 06 Os membros de Cariacá afirmam que caso haja necessidade de sair durante as horas mortas é imperativo adotar certos cuidados como se benzer nas encruzilhadas habitat de invisíveis ruins e ao passar nas cercas72 Esses atos se praticados de maneira 69 Para os idosos atravessar a conversa alheia é participar dela e isso não deve ser feito pelos mais jovens exceto quando convidados 70 Gesto de traçar o sinal da cruz 71 Essa expressão é utilizada no sentido de desobediência 72 Cuidado mantido em função da crença que possuem de que tudo o que é ruim para nas cercas e nas porteiras de curral espreitando alguém desprevenido para ser prejudicado 72 distraída podem acarretar problemas para quem possui corpo aberto73 No conjunto de regras que compõe a chamada sabedoria do povo do mato não é prudente sair de casa de corpo aberto além do costume da persignação é preciso tomar um gole de café do dia A prática desses dois ritos é considerada potencialmente capaz de evitar problemas descritos como simples a exemplo de inveja mal desejo e olho ruim no entanto para as consequências mais sérias é preciso recorrer a alguém de experiência para fechar o corpo74 Tanto em Cariacá quanto em Lajedo me habituei a escutar as mães advertirem às crianças e adolescentes que por qualquer motivo esqueciam de fazer sua obrigação deixando de fechar o corpo e zelar por sua defesa são cuidados que devem ser adotados antes de sair de casa e conviver com o mundo lá de fora descrito como suscetível de aborrecimentos e dificuldades que podem ser atenuados com a adoção de alguns cuidados Fazer a obrigação nesse caso é rezar antes de se levantar ou apenas fazer o sinal da cruz É igualmente relevante o preceito75 de não permitir que o sol passe por cima76 das crianças e jovens Saber reverenciar as horas sagradas assim como as horas mortas e realizar com respeito as suas obrigações constituem condições para ter os caminhos abertos e encontrar a boa sorte na vida As pessoas que cortam os seus caminhos se tornam desprezadas e não servem de exemplo para as demais Além disso quase sempre são punidas por suas más ações Em Lajedo próximo ao local aonde funcionou o antigo garimpo77 existem duas pedras que chamam a atenção por suas dimensões São conhecidas como duas comadres Seu Gilberto Inocêncio dos Santos 47 anos explicou que as duas comadres foram mulheres que contrariando a guarda dos dias sagrados iniciaram uma briga na Sexta feira da Paixão e como castigo se transformaram em pedras permanecendo naquele local 73 Estado de espírito atribuído a pessoas tidas como fracas e fáceis de serem prejudicadas por atitudes próprias ou por fatos atribuídos a outrem Os grupos quilombolas pesquisados acreditam que a fraqueza de espírito é facilmente associada ao hábito de não rezar pronunciar palavras tidas como ruins e ainda devido ao fato de não zelar por sua proteção 74 As pessoas consideradas fracas costumam procurar ou serem levadas até a presença de um rezador a ou curador a que realizará os ritos necessários para fechar o corpo 75 Os quilombolas de Cariacá e Lajedo costumam emprestar a essa palavra o significado de cuidado 76 Essa é uma expressão recorrente tanto em Cariacá quanto em Lajedo Nessas comunidades é sinônimo de imprudência levantarse quando o sol já se encontra alto no céu Quem assim procede é reputado como preguiçoso ou de má índole 77 Trago essa narrativa no Capítulo 4 73 Escutei por mais de uma vez as mulheres da comunidade chamarem à atenção das crianças quando se conduziam mal78 e advertilas que poderiam ter o mesmo destino das duas comadres Os dias sagrados são reverenciados como a Semana Santa e os dias em louvor aos santos padroeiros Nesses dias os preceitos são redobrados pelos mais velhos as que combatem com maior rigor as atitudes de invigilância dos mais jovens Durante a Semana Santa são evitados xingamentos desobediências e permanências longas no mato principalmente a partir do meiodia da quartafeira maior79 pois os as moradores as de Lajedo temem encontrar o ajapau Esse castigo da natureza na forma de um pássaro grande que possui uma cabeça humana aparece apenas nos dias sagrados seu canto é estridente e assustador Ele é denominado ajapau porque quando aparece repete infinitamente essas duas palavras O ajapau era originalmente um filho desobediente que a mãe amaldiçoou em um dia de Sextafeira da Paixão razão pela qual aparece nesse período Não se trata de um invisível ele é descrito como uma visagem e ou visão que aparece para quem precisa ver pois ainda que duas pessoas estejam juntas pode ocorrer de apenas uma delas enxergar o ajapau e escutar o seu lamento triste Avistar o ajapau é percebido como sinal de punição e de necessidade de promover mudanças Por outro lado o ajapau também aparece para pessoas que possuem uma natureza piedosa e rezam por ele A Semana Santa é um período caracterizado por muitas prescrições nas comunidades quilombolas estudadas Os habitantes de Cariacá referiram à existência da cachorra Lindaura Tratase segundo relataram D Ivone Gonçalves de Souza Maria José Antônia Elvira e Luci80 de Lindaura Lourenço já falecida que durante os dias sagrados embora conservasse a forma humana andava de quatro pés e agia como um cachorro A cachorra Lindaura que residia na localidade de Cariacá de Baixo81 era uma filha muito 78 As crianças que demonstram propensão para a desobediência são tidas como má criadas e não são bem vistas na comunidade 79 Como é denominada localmente a quartafeira da Semana Santa 80 A entrevista sobre as prescrições foi realizada em um final de manhã quando muitas senhoras da comunidade estavam reunidas esperando a visita do médico que ocorre geralmente uma vez por mês ou a cada quinze dias Após a consulta geralmente as mulheres se reúnem na casa de D Luci para almoçar ou para conversar sobre as novidades 81 Sobre essa parte específica da comunidade será narrado no Capítulo 2 74 ruim maltratava a mãe deficiente visual lhe negando comida e outros cuidados Todos estavam cientes mas evitavam se envolver pois consideravam Lindaura uma pessoa maldita Quando a viram pela primeira vez agindo como um cachorro durante uma Semana Santa poucos se apiedaram pois entenderam tratarse de um castigo merecido Durante a Semana Santa as mães e avós protegem as crianças recémnascidas ainda pagãs tanto da aparição da cachorra Lindaura quanto do lobisomem As mulheres de Cariacá argumentam que o lobisomem além de investir contra as crianças e as mulheres paridas ataca as criações novas Uma forma de proteção frequentemente utilizada é pendurar uma réstia de alho do lado de fora da porta da cozinha nas casas onde residem mulheres paridas e crianças recémnascidas Outro exemplo82 utilizado na educação das crianças com o objetivo de implantar a obediência e infundir o bom caráter nos pequenos é a estória do corpo seco83 Há um medo generalizado circundando o universo infantil que vai ao encontro de um pavor consciente esboçado pelos adultos no que se refere a esse castigo da natureza embora em Cariacá nunca tenha aparecido um corpo seco esses sujeitos acreditam em sua existência Essas narrativas que talvez se apresentem de forma ingênua à compreensão do olhar externo no interior desse grupo costumam ser realizadas em uma atmosfera de respeito e temor Em Lajedo um cuidado realizado de maneira sutil e cautelosa é o zelo da proteção Durante a segunda etapa da pesquisa de campo em outubro de 2017 conversei com Cristina dos Santos de 17 anos sobre a educação de seus dois filhos um menino de um ano e quatro meses e uma recémnascida de apenas um mês de vida O diálogo fluía animado na cozinha da casa dos sogros de Cristina que chegou recentemente à comunidade originária do povoado de Genipapo84 De repente o sogro de Cristina Seu Gilberto que terminava de arrumar as cadeiras que seriam levadas para a sede da associação começou a participar da conversa afirmando que ia levar sua neta a pequena 82 Ao relatar essas estórias muitos sujeitos mais velhos costumam afirmar que esses fatos constituem exemplos e que devem ser tomados como advertência 83 Em Cariacá se acredita que o corpo seco é um cadáver rejeitado pela terra e que ao invés de entrar em processo de decomposição começa a secar Afirmam que esse tipo de corpo pertenceu a um filho mau tido como desobediente e que manteve uma relação de rebeldia junto aos pais Por possuir corpo gênio e espírito ruim até a terra se recusa a recebêlo 84 A moça estava vivendo com os sogros porque o seu esposo estava em Minas Gerais trabalhando 75 Ana Júlia para ser benzida em Coqueiros porque é preciso zelar a proteção da menina Após um suspiro saudoso Seu Gilberto lamentou não mais existir curador a na comunidade e relembrou o trabalho do antigo curador o seu falecido avô Inocêncio Jesus dos Santos afirmando era um curador bom que tinha Santo Antônio no corpo um homem sábio e muito respeitado na comunidade porque sabia rezar e dar remédio Inocêncio foi um dos primeiros moradores do lugar Seu Gilberto relatou que Inocêncio comprou a mesma área de terra duas vezes pois da primeira não obteve um documento escrito O comprovante da operação realizada foram fios de cabelo da barba do comprador e do vendedor Segundo Seu Gilberto seus avós paternos eram rezadores tinham ciência e sabiam das coisa Seu Inocêncio na perspectiva do neto se comportava de maneira diferente por que desde criança fora protegido por Santo Antônio e por isso era um homem entendido Rapaz Ele tinha o Santo Antônio no corpo Diz ele que quando era pequeno colocaram nele que era para ele ficar sabido Se parasse um carro aí fora só saia quando ele quisesse Uma vez um rapaz que vendia carne teve um desentendimento mais ele aí meu avô disse esse é o último pedaço de carne que você vai vender Aí o negócio dele desandou e o rapaz não foi mais pra lugar nenhum Ele tinha o Santo Antônio quem botou ele não sabe mas avisaram a ele pequenininho Era na barriga no lado da barriga Eu cheguei a ver o cálculo via mas ele não dizia o que era Quando os povo perguntava ele dizia aqui é espinho de erva benta que me pegou na caatinga É mas não era não Era esse santinho dele Aí no dia que foi embora estourou Fez foi estourar para fora Aí foi à força dele que ele disse que tinha ido embora O santinho foi embora Aí a sabedoria dele acabou Fazia mas não era a mesma coisa Ele tinha os dia de ter relação com mulher os dias de tomar banho e pai também era assim Pai cansava de me dizer assim No mês de agosto nem um dos dois nem ele nem pai moiava a cabeça não por que dizia que morria doidava ou enricava Era essas três palavra Eles era assim cheio de ciência Gilberto Inocêncio dos Santos 47 anos em 29102017 Quando indaguei a Seu Gilberto se ele também tinha essa ciência ele desconversou pai mais mãe não ensinava nada a ninguém Sua avó paterna foi quem lhe 76 ensinou a reza de mulher quando vai despachar Mas isso eu não posso lhe falar não D Mariene que estava coando o café aproveitou a pausa na conversa para esclarecer que quem fala dessas coisa perde sua força e enfatizou que por essa razão o avô de seu esposo perdeu o zelo da proteção Compreendi a importância que eles atribuem ao silêncio sobre os fatos que regem a vida pessoal e espiritual Eles não se sentiam à vontade quando eu indagava sobre o tema e só o retomavam algum tempo depois Certa vez D Mariene confidenciou que o tio de seu esposo residente na comunidade de Coqueiros herdou as coisa do avô mais da avó mas ele mantinha reservas sobre o assunto essas coisa minha fia não se pode descobrir não quem descobre fica sem Outra referência muito citada na comunidade como curador é João Geraldo Alves da Silva já falecido Sua filha D Maria Rosa dos Santos 57 anos herdou as coisas do pai embora mantenha o hábito de rezar quem lhe procura D Maria de Chico como é conhecida desconversou quando abordei o assunto Observei que quando solicitada ela reza porém não assume abertamente a missão que pertenceu ao seu pai D Maria de Chico se mudou para a cidade de Saúde após ter enviuvado mas mantém casa e terras em Lajedo e está sempre na comunidade com o seu filho cultivando roças de banana e de mandioca Em Cariacá nunca ouvi qualquer indicativo feito ao zelo da proteção o que costuma ser dito de modo especial por D Luci que é a única rezadeira viva na comunidade é que todo mundo tem que zelar pelos seus guias explicando que é preciso agradecer a Deus a proteção recebida A interlocutora faz a diferença entre santos e guias os primeiros são referidos como as imagens católicas e os segundos a mesma define como São Cosme e São Damião aos quais esclarece que se deve agradar com algumas práticas específicas a saber oferecendo comida fato que faz semanalmente e acendendo velas que também são chamadas de luzes Em uma manhã enquanto fomos comprar um anel de madeira que havia me interessado devido ao design D Luci segredou que quando se esquece de fazer a obrigação para São Cosme o guia fica chateado e que já a castigou lhe derrubando na rua no momento que caiu sem haver tropeçado em qualquer obstáculo então se recordou da falta cometida e procurou se corrigir D Luci não oferece caruru apenas dá a comida do santo e reza a qualquer pessoa que lhe procure tive ocasião de presenciar em muitas circunstâncias pessoas da comunidade solicitando a mesma que lhes rezasse ao que ela atendia sem qualquer ritualística que estivesse visível aos olhos fazendo 77 apenas a recomendação que afastasse as crianças do lugar e que quem tivesse corpo aberto85 saísse de perto A proteção e os guias são concebidos como seres sagrados sejam santos católicos ou não São bons não fazem brincadeiras ou encantos apenas cuidam sempre de seus protegidos especialmente nas situações adversas A proximidade com esses seres sagrados constitui um tipo de fé que dialoga com o diadia desses sujeitos sem os fundamentalismos das instituições externas Tudo ocorre de modo intuitivo entre protegido e protetor guia e guiado 115 CUMPRIMENTO DA PALAVRA SE FAZENDO HOMEM E SE BOTANDO MULHER No cotidiano das comunidades compreendi como são tecidos os fundamentos da habilidade de cumprir a palavra empenhada O cumprimento da palavra está associado ao caráter da pessoa e à sua credibilidade Em Cariacá é grande a relevância atribuída ao cumprimento da palavra É um princípio preponderante da vida de mulheres homens e crianças pois pelo cumprimento da palavra o menino se faz homem e a menina se bota mulher D Luci relatou episódios de pessoas que por não cumprirem suas palavras e saldar as dívidas assumidas em vida o fizeram após a morte Conforme D Luci isso ocorria com maior frequência no passado quando vizinhos ou parentes habitualmente tomavam gêneros alimentícios ou dinheiro emprestados e não conseguiam devolvêlos Exemplos desse tipo foram relatados por quase todos os membros mais velhos da comunidade Quando o a endividado a falece sem resgatar a dívida costuma aparecer em sonho a um parente ou afilhado a quem muito estimava relatando que gostaria de devolver tal objeto o valor penhorado Segundo os quilombolas no dia seguinte ao sonho a pessoa deve procurar o cobrador mencionado no recado e narrar o sonho caso a dívida de fato exista precisa ser paga pelo sonhador pois essa é a vontade do morto e condição para que descanse em paz Além das estórias envolvendo resgate de dívidas os anciãos de Cariacá relataram situações de entes queridos que por avareza enterraram 85 Mediante os esclarecimentos de D Luci nesse sentido ter ou estar com o corpo aberto pode referirse também a situação da mulher quando esta se encontra menstruada 78 dinheiro ou ouro e precisaram aparecer depois de mortos a parentes solicitando que desenterrassem os objetos aliviando a consciência da alma Descrevo um episódio relatado em momentos distintos por D Maria José D Elvira e D Luci Nos tempos em que D Luci era jovem e ainda não havia se casado Cariacá era mais movimentada Muitas pessoas passavam no Cariacá algumas moravam e outras apareciam de vez em quando D Luci destacou a presença de um senhor que embora se assemelhasse a um retirante é retratado como bemapessoado de pele clara e cabelos brancos com cerca de cinquenta anos Ele se chamava José aparecia e ia ficando fazia as refeições em casas diferentes e pernoitava nas calçadas ou em algum quarto desocupado na casa de algum a morador a Já havia se tornado conhecido em Cariacá as pessoas confiavam e gostavam dele apesar de não saberem nada sobre o seu passado Em uma ocasião José declarou para os moradores as aqui está se passando um fato que ninguém está acreditando mas é verdade Segundo D Luci José relatou que havia uma casa na comunidade que estava sendo assombrada A dona da casa já falecida confirmou que há algum tempo estava sendo vítima de uma visagem Os moradores de Cariacá não atribuíram muita importância ao relato Todavia quando da última visita realizada por José a Cariacá ele destacou olhe eu vim aqui em uma diligência não sei se volto mais Ele informou que não podia fornecer mais detalhes sobre a diligência Três dias depois José realizou um trabalho para limpar a casa da assombração Aí aconteceu O pessoal tava tudo no quintal assim lavando roupa e ele tava hospedado assim arranchado em um quartinho que tava abandonado Aí ele entrou cavou o buraco dentro do quarto Aí tinha o pessoal da casa que disse que via luz clarear via criança chorar via pisada dentro de casa olhava e não via nada Olhava e não via nada Aí ele foi Ele entrou e cavou Ficou ali aquele buraco enorme que ele cavou ele era um senhor mas era um homem forte Aí daí para cá esse homem não apareceu mais nunca e a assombração que tinha dentro da casa acabou Tinha ouro aí ficou o lugar Todo mundo disse que era ouro Aí ele cavou e carregou Aí os donos da casa foram pagar um pedreiro para entupir o buraco Luciana de Freitas Silva 75 anos em 29092017 79 A casa foi reformada e o filho da antiga moradora Seu Eduardo declarou aos vizinhos as que não mais tiveram problemas com almas ou espírito de morto D Luci e D Maria José se encontravam no quintal da residência quando José retirou o caldeirão de ouro e não presenciaram as atividades realizadas por ele Desde então José não retornou a Cariacá pois é sabido que nessas circunstâncias não se deve retornar ao local sob pena de pagar a desobediência com a própria vida O ouro ou o dinheiro desenterrado caso ainda possua valor monetário só pode ser utilizado após dois anos Se for movimentado antes desse prazo a pessoa que o desenterrou ao invés de usufruílo é castigada com a morte prematura As causas do falecimento de alguém nessas circunstâncias geralmente não são divulgadas na comunidade o seu conhecimento permanece restrito aos parentes do da morto a D Luci esclareceu que a família do da morto a deve ser informada para que se conscientizem da necessidade de respeitar o prazo Quando indaguei sobre como o prazo foi estabelecido D Luci afirmou porque tem que ser assim desde que o mundo é mundo Quem recebe e retira o ouro ou o dinheiro deixado pela visagem deve adquirir uma réstia de fumo de corda e atirar no mato deve também mandar celebrar uma missa para a alma desventurada cumpridos esses ritos resta apenas esperar o final do prazo para usufruir da suposta recompensa Seu Epifânio Ferreira Damasceno 69 anos afirmou já haver recebido a aparição de uma visagem que queria lhe dar ouro A visagem aparecia todas as noites à porta de seu quarto Como ele não demonstrou interesse a visagem foi embora A alma ou visagem não costuma aparecer para todas as pessoas apenas para aquelas potencialmente capazes de ajudála Se não houver a cooperação esperada consoante informou S Epifânio ela não fica não vai embora Boa parte dos espaços de Cariacá são encantados pela presença do ouro Uma estória recorrente é a da aparição do cordão de ouro Quase todos os anciãos afirmam já ter se deparado com essa aparição que descrevem como uma visagem porque ao mesmo tempo em que aparece desaparece Essa visão mais frequente no passado ainda aparece nas dependências da pedreira do Grupo Irmãos Pelegrini Embora muitos tenham avistado essa visagem ninguém conseguiu desvendar o significado da aparição Seu Fernando acredita que esse cordão encantado um dia será encontrado 80 Isso é ouro O cordão saia dos Morrinhos e ia pra a Missão Missão do Sahy Quando eu era menino os americano vieram fizeram um estudo e afirmaram que em Cariacá existia ouro Já vi ali pros lado das lajes onde hoje tá a pedreira um homem rodando na minha frente feito currupio e entrando no chão Isso é o quê Isso é coisa de ouro Fernando do Monte 75 anos em 10122017 O ouro é considerado encantado e maldito devido às ambições que concentra razão pela qual quem o encontra pode até ficar rico todavia não desfruta de felicidade já que existem muitas energias ruins provenientes de sentimentos acumulados por pessoas que vieram a óbito para dar prosseguimento à ambição do ouro Em Lajedo existia um garimpo e os as moradores as asseguraram que ainda há ouro na região Os seus ancestrais encontraram pequenas pepitas preciosas no leito dos rios Todavia estórias desse tipo não foram mencionadas durante os trabalhos em campo Além do compromisso com a palavra empenhada há outros comportamentos em ambas as comunidades estudadas cultivados como importantes para que o menino se faça homem e a menina se bote mulher O aparecimento da barba no rosto dos meninos é um indicativo de que eles estão virando homens Seu Agripino Pedro dos Santos 87 anos morador de Cariacá conhecido na comunidade como Nino explicou que um rapaz de respeito que vai se tornar um homem de verdade quando aparecem os primeiros fios no queixo deixa a barba crescer encher até fechar Com a barba fechada pode pedir a bênção ao pai e na ausência desse ao avô paterno e ou ainda ao avô ou tio materno mais velho essa atitude representa uma espécie de licença para que o meninorapaz possa tirar a primeira barba É um momento de transição quando o sujeito se faz homem afirmou S Nino Os anciãos da comunidade acreditam que caso o filho não cumpra o rito o pai pode vir a falecer Em Lajedo o rito da primeira barba ocorre com menor frequência pois existem poucos adolescentes no grupo86 Nessa comunidade os homens costumam afirmar que aqui o boi se conhece pela ponta e o homem pelo bigode A manutenção da barba e do 86 Darei especial ênfase a esse aspecto no Capítulo 4 81 bigode ao longo dos períodos seguintes é opcional contudo conservar a primeira barba e bigode é imprescindível para um ingresso respeitoso na vida adulta Em relação às meninas quando aparece à primeira menarca é anunciado na família que ela ficou moça Em Cariacá a condição de ficar moça é cercada por alguns cuidados como aparar três gotas de água em uma bica e dar a menina para ingerir pois assim se acredita que a sua primeira regra e todas as seguintes terão a duração de apenas três dias evitando dessa forma prejuízos à saúde Em Lajedo as meninas que se tornam moças observam algumas restrições alimentares Não podem ingerir frutas ácidas como abacaxi laranja tangerina e limão nem frutas frias como mamão e melancia e outros alimentos carregados como ovo bacalhau e buchada Tanto em Cariacá quanto em Lajedo as meninas quando se tornam adultas se abstêm por toda a vida de ingerir durante uma mesma refeição carne vermelha e carne de peixe Se associados esses alimentos podem provocar filhos com deformidades físicas Em ambas as comunidades as meninas e mulheres são aconselhadas a não lavarem o cabelo durante os três primeiros dias da menarca Esse hábito é adotado sobretudo em Lajedo onde não há banheiros na maioria das residências e as pessoas tomam banho no rio As mães preparam chás para que as filhas mantenham o útero limpo e não desenvolvam problemas ao engravidar Na educação informal87 não apenas o nascimento mas sobretudo a imersão nos valores do grupo legitima o sujeito como membro da comunidade A pesquisadora Glória Moura 2000 em seus estudos sobre narrativas quilombolas denominou esse processo de educação fundamentado na oralidade e no ato de biografarse88 de currículo invisível isto é o caminho que os membros das comunidades percorrem construindo significados para as suas vivências e resistências Neste primeiro capítulo apresentei o universo de signos operantes nas comunidades quilombolas de Cariacá e Lajedo Esses signos constituem o traçado que herdaram dos seus antepassados e o trançado reconstruído da Negritude Sertaneja viés identitário 87 Utilizo uma denominação produzida pela Pedagogia para descrever os processos educativos que acontecem com base nas atividades do cotidiano assim como dos conhecimentos mediados por intermédio da oralidade e da observação 88 Conceito desenvolvido por Paulo Freire presente em quase todas as suas obras 82 e comunicante dessas comunidades com o contexto envolvente Suponho que esses saberes identificados como jeitos de ser e de se perceber quilombola não são menos relevantes nesses grupamentos que a descoberta de sua tradicionalidade Busquei abordá los nesta tese em sintonia com a sua relevância no cotidiano dos atores sociais de Cariacá e Lajedo 83 CAPÍTULO 2 CARIRI CARIACÁ Pela memória o passado não só vem à tona das águas presentes misturandose com as percepções imediatas como também empurra descola estas últimas ocupando o espaço todo da consciência Bosi 2003 p41 Imagem nº 02 Entrada da comunidade Fonte Acervo da pesquisadora 84 Ficate aí Cariacá de areia por que de areia você não passará89 Essas palavras pouco gentis segundo D Maria José do Nascimento são o espraguejamento o modo como alguns padres e monges católicos se referiram à comunidade em um passado distante Esse espraguejamento ficou conservado na memória do grupo sendo relembrado com certo temor em períodos de adversidade A crença de que viviam em uma comunidade que havia sido amaldiçoada e que por isso não prosperava incomodou sobremaneira os moradores de Cariacá até 2004 Essa percepção foi alterada durante um encontro promovido pela Secretaria de Cultura do município de Senhor do Bonfim quando foram confrontados com os brincantes de Tijuaçu cujas atividades culturais também seriam encenadas durante o evento Muitos membros de Cariacá já estavam cientes da certificação de Tijuaçu90 através do que fora dito por seus parentes e tentavam se aproximar da associação dessa comunidade vizinha pois acreditavam ser também quilombolas Eles relataram que nesse período entendiam pouco sobre o quilombo e desejavam alargar a sua compreensão conquanto também se percebessem como negros as afrodescendentes pobres economicamente e discriminados pelo contexto social Antes dos diálogos estabelecidos no referido encontro cultural Seu Ubirajara de Jesus 51 anos conhecido como Bira Ele encerrou o mandato de vicepresidente da Associação Quilombola de Cariacá e Adjacências AQCA91 em 2017 Natural de Salvador Bira foi criado em Cariacá e é funcionário municipal vinculado ao setor de limpeza da Prefeitura de Senhor do Bonfim O interlocutor informou que quando soube da 89 Segundo D Maria José certa feita houve um desentendimento entre religiosos que estavam desenvolvendo um trabalho de evangelização e algumas pessoas da comunidade Em decorrência os clérigos foram embora e antes de se retirarem espraguejaram o local 90 Tijuaçu foi certificada como comunidade remanescente de quilombo em 28 de fevereiro de 2000 Entretanto a comunidade já era muito conhecida na região por sua luta histórica e ativismo político Nos anos 2000 muitas comunidades negras rurais localizadas no município de Senhor do Bonfim e no seu entorno contataram a Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências AAQTA O movimento social Barulho do Quilombo fomentou a interação entre esses agentes Tijuaçu se tornou uma referência na região e os membros da AAQTA passaram a ser continuamente solicitados a auxiliar no processo de reconhecimento de outras comunidades que passavam a se perceber como quilombolas Os agentes de Cariacá relataram que muitos moradores as já haviam tentado contatar o senhor Valmir dos Santos para solicitar esclarecimentos sobre o processo de autorreconhecimento das comunidades quilombolas 91 A Associação Quilombola de Cariacá e Adjacências AQCA foi fundada em 03 de junho de 2007 85 certificação de Tijuaçu escreveu uma carta para Valmir dos Santos mas não obteve resposta92 A aproximação entre Cariacá e Tijuaçu se estreitou quando da visita do senhor Valmir dos Santos93 Valmir foi a Cariacá para relatar a história e a ancestralidade de Tijuaçu A visita foi realizada após Valmir assistir à apresentação de uma quadrilha do povoado de Cariacá durante um festival de quadrilha junina promovido pela Secretaria de Cultura de Senhor do Bonfim Valmir mencionou que o detalhe capaz de lhe chamar a atenção na apresentação dos brincantes foi o fato de serem todos as negros as e afrodescendentes Ele contatou um professor que lecionava em Cariacá já falecido para obter mais informações sobre a comunidade Conjecturo que o Barulho do Quilombo agenciou essa comunicação e a presença de Valmir na comunidade despertou as memórias da população de Cariacá até então espalhadas em suas ruas areentas e esquecidas pelo poder público Assim quando o entendimento dos moradores as mais jovens começou a se manifestar auxiliado pelos relatos dos mais velhos as uma comunidade adormecida reorientou os rumos da sua história94 Na primeira visita de Valmir dos Santos95 os as moradores as de Cariacá estavam desprevenidos Valmir foi à comunidade sem aviso prévio Ele conversou inicialmente com D Elvira Gomes Damasceno96 80 anos Indagada sobre a história da comunidade a anciã relatou o que sabia e apresentou o visitante há muito tempo esperado 92 Muito tempo depois S Bira soube que a carta endereçada nunca chegou até o destinatário Além de S Ubirajara outras pessoas de Cariacá procuraram se comunicar com o senhor Valmir dos Santos por intermédio de cartas e bilhetes 93 Os interlocutores as não conseguiram identificar o dia assim como o mês em que aconteceu a primeira visita da liderança quilombola de Tijuaçu em sua comunidade porém afirmaram que o ano foi 2004 94 Os interlocutores as reiteraram durante a pesquisa de campo que Cariacá foi esquecida em Senhor do Bonfim Mesmo durante as campanhas de vacinação os lotes destinados à comunidade traziam os nomes dos povoados vizinhos Costuma ser dito a voz corrente que somente quando souberam que o Cariacá é quilombola foi que passaram a receber um tratamento respeitoso mas ainda insatisfatório por parte do poder público da cidade de Senhor do Bonfim 95 Na região norte da Bahia o processo de certificação de diversas comunidades guarda semelhanças O contato com líderes de comunidades próximas tem auxiliado os processos de mobilização interna nesses grupos e o seu reconhecimento como quilombolas Na mesorregião de Senhor do Bonfim o processo de reconhecimento de diversas comunidades teve como marco inicial uma visita de Valmir dos Santos 96 Esse encontro não foi programado mesmo a senhora Elvira tendo entre seus parentes pessoas que pertencem ao núcleo familiar dos Damasceno na comunidade de Tijuaçu A razão da conversa com a interlocutora está relacionado ao fato que a mesma era a única pessoa que na oportunidade se encontrava em frente à sua residência visto não ser um hábito da população de Cariacá permanecer fora de suas casas sobretudo no período diurno 86 a outros membros idosos do grupo Eles resgataram episódios significativos de suas memórias ancestrais O próximo passo foi convocar uma reunião realizada na sede da antiga Associação dos Moradores de Cariacá para discutir a tradicionalidade do grupo Nas reuniões subsequentes predominava uma atmosfera de expectativa e de curiosidade a parcela da população negra de maneira especial aqueles as que se declaram Congos97 nutriam o desejo de se autodeclarar quilombola ao passo que os demais moradores descendentes das famílias Muricy Tobodi e aqueles as que se percebem como não negros compareceram para compreender o que estava se passando no território As primeiras rupturas internas eclodiram quando a mesadiretora da Associação dos Moradores passou a se sentir ameaçada ante a possiblidade de se constituir uma nova associação e a provável dissolução da entidade que há anos administravam monopolizando a representação política tanto no âmbito da Associação dos Moradores quanto na direção da única escola da comunidade Os ânimos ficaram exaltados no grupo e os dirigentes da antiga associação afirmaram abertamente que não dariam poder a preto e ainda que não dariam poder a Congo Todavia os atores sociais que se percebiam e se percebem como membros da Família Congo negros as e afrodescendentes98 em especial as senhoras Anaíde Anária Nascimento do Monte e Rosângela Gomes de Oliveira afirmaram a ascendência quilombola e se mobilizaram em prol da certificação quilombola da comunidade Apesar das tensões internas geradas pelo protagonismo dos as moradores as antes oprimidos na comunidade os Congos assumiram a liderança da luta pela certificação ocorrida em 20 de outubro de 200599 Uma das primeiras atitudes posta em prática pela AQCA foi preocuparse com a estimulação da consciência coletiva em relação à mudança na forma de se referir à comunidade substituindo a denominação até aquele momento dominante povoado de 97 Esse fato será analisado no Capítulo 3 98 Informo que a palavra afrodescendente foi utilizada pelos interlocutores as em alguns discursos 99 A primeira certidão foi emitida em nome da Associação dos Moradores de Cariacá pois a princípio esses atores sociais tentaram evitar que as divergências locais já existentes se agravassem no entanto como os Congos continuaram sofrendo discriminações específicas sendo chamados pejorativamente de pretos que não valem nada e escutando que nunca teriam oportunidade dentro da comunidade Eles resolveram fundar a Associação Quilombola de Cariacá e Adjacências AQCA e contestar a certidão anterior que fora espedida motivo pelo qual a atual carta de certificação veio com retificação Segundo os interlocutores as não apenas o documento oficial foi retificado mas também o direcionamento de sua história que passou a conhecer outros contornos sobretudo o da busca pela valorização de sua ancestralidade negra e quilombola 87 Cariacá por comunidade quilombola de Cariacá Quando questionei aos interlocutores as a respeito dos fatores que exortaram essa mudança na forma de qualificação de seu território Foi explicado que não se tratava apenas de uma mudança na forma de expressão a ser empregada mas uma tentativa de migração da condição subalterna a que estavam compelidos tanto no que se refere aos agentes internos a exemplo dos moradores as que não se consideram negros na comunidade isso desde a parte referida como VilaCentro quanto nos Morrinhos e principalmente declararam que objetivavam e objetivam uma transformação em relação à maneira pouco valorizada como eram vistos e tratados em Senhor do Bonfim Talvez essa modificação na designação represente no interior do grupo mais um ciclo presente no rito simbólico de passagem Van Gennep 2011 que desejaram atravessar em busca de reconhecimento melhoramento da autoestima e construção de outras formas de representação capazes de influenciar positivamente a identidade s que desejam construir em perspectiva interna e também externa Existem duas associações em Cariacá a dos moradores e a quilombola Os membros de cada entidade deslegitimam a outra principalmente em função da disputa pela representação política interna e dos interesses que a circundam A Associação dos Moradores congrega os interesses dos sujeitos que não se percebem como negros as e a segunda representa os interesses dos quilombolas É oportuno destacar que a Associação dos Moradores possui relações intrínsecas com o poder público de Senhor do Bonfim ao passo que a segunda articulada em prol dos direitos quilombolas se esquiva das ingerências políticas municipais 21 UMA COMUNIDADE QUE TECE UM FLUXO AFROINDÍGENA100 100 Esclareço ao leitor a que opto pela escrita da conjunção Afroindígena sem o uso do hífen como forma de procurar traduzir a maneira como essa expressão emerge em alguns discursos escutados em Cariacá Quando os interlocutores as declararam parte de mim é de afro e a outra parte é indígena ou ainda parte de mim é de quilombo e a outra parte é de índio fazendo dessa maneira uma referência ao encontro dos termos para pensar sua identidade s Para interpretar o entrelaçamento afroindígena tecido em Cariacá me apoiei largamente no pensamento teórico de Marcio Goldman 201420152017 88 Durante os trabalhos de campo realizados em Tijuaçu101 escutei sobre a existência de um parentesco dos moradores com os indígenas que habitaram na comunidade Muitas famílias declararam que alguns parentes possuem sangue de índio principalmente os idosos Eles relataram que no passado havia uma pequena aldeia indígena constituída por casas de palha cujos habitantes eram muito restritos em suas comunicações Quando visitei Cariacá pela primeira vez em 06 de janeiro de 2014 ainda não havia ingressado no curso de Doutorado Esperava encontrar mais informações sobre as etnias indígenas pois havia escutado histórias sobre a possível origem indígena dessa comunidade À medida que a minha presença se tornou mais constante em Cariacá indaguei sobre a questão visto que no passado na região classificada como sertão de caatinga alta que abrange tanto Cariacá quanto o distrito de Missão do Sahy102 há registros de povoamentos de indígenas da família Kariri e ou Karirizeiros Nos diálogos com os as mais jovens e de modo especial com os as anciãos observei a existência de uma memória indígena que não transparece com facilidade são fragmentos transmitidos pelos ancestrais e que a geração atual conserva não como um segredo mas como um legado aqui nossa aldeia é de índio e também de negro Em Cariacá há uma localidade denominada Aldeia uma referência ao fato de se perceberem parecidos com os índios que já viveram na comunidade Segundo os seus habitantes Cariacá já foi povoada por indígenas da etnia Kariri também conhecidos como Karirizeiros Eles habitavam em ranchos de palha ou debaixo de pés de pau localizados rio abaixo103 ou na localidade de Morrinhos Os Kariri costumavam se deslocar para a Passagem Velha104 seguindo o curso do rio da Prata 101 Cito Tijuaçu com frequência por se tratar de uma comunidade com a qual os atores sociais de Cariacá mantêm um intercâmbio direto e constante 102 A Missão do Sahy constitui um dos distritos do município de Senhor do Bonfim Referido sobretudo após o Barulho do Quilombo como uma região de influência indígena Tratase de um antigo aldeamento indígena fundado pelos frades capuchinhos em 1697 Cf SANTANA Carlos Eduardo Carvalho de Processos Educativos na formação de uma identidade em comunidades remanescentes de quilombos Um estudo sobre as comunidades de Barra Bananal e Riacho das Pedras no município de Rio de ContasBA Dissertação de Mestrado Programa de PósGraduação em Educação e Contemporaneidade Universidade do Estado da Bahia 2005 180p P 79 103 O rio Cariacá é conhecido mais amplamente como rio da Prata 104 Comunidade quilombola também situada nas dependências do município de Senhor do Bonfim 89 O entorno social e mais especificamente a cidade de Senhor do Bonfim reverbera essa memória ancestral e reconhece uma ascendência indígena em Cariacá Segundo D Luci quando do reconhecimento oficial da comunidade ela recebeu a visita do educador e exprefeito do município o Prof Dr Paulo Batista Machado Ele indagou se em Cariacá as pessoas se percebiam como indígenas ou como quilombolas D Luci respondeu parte de mim é indígena a outra parte é de quilombola Segundo relatos coletados entre anciãos de Cariacá os indígenas amansaram e migraram para Salvador e para a Amazônia Seu José Preto narrou ter escutado de seus pais e avós que os indígenas se dedicavam ao plantio de verduras e trabalhavam em um engenho situado na localidade de Cariacá de Baixo Isso aqui essa beira de rio aqui por aqui as casas de onde era aqui desses índio de engenho de plantarem cana aqui na beira desse rio Foi a terra dos índio Agora eu não sei pra onde eles foram mas tem aí o terror das casa deles deixaram aí tanta coisa na beira do rio tanta verdura tanta fruta Eles aqui muitos me pergunta eu digo eu não conheci mas a moradia deles ainda vi muitos aí José Pedro dos Santos 104 anos em 28082015 D Luci também destacou a passagem dos indígenas por Cariacá Aqui quando eu me entendi já tinha esse nome Eu ouvi falar que é por que aqui era uma descendência de índio Então aqui os índios era do Kariri Aí devido esse nome de Kariri botaram o nome de Cariacá por que meu pai e minha mãe eram descendentes de índio Os avós deles foram tudo pegados a dente de cachorro no mato por que eu nasci e me criei aqui mas minha aldeia é de índio por que meus pais vieram do Kariri Ali nos Morrinhos disseram que tinha uma aldeia de índio As ocas deles que dizem que eles moravam lá mas esses índios morreram outros foram embora não existe mais Só a gente as pontas de rama risos Eu me considero as duas partes indígena e quilombola Porque o quilombola tem assim uma tendência de negros índio e branco também né Então como minhas raízes é indígena minha entidade é os dois indígena e quilombola Luciana de Freitas Silva 75 anos em 23102015 90 O relato de D Luci aciona dois elementos constitutivos da sua identidade minha entidade é os dois indígena e quilombola Há uma interseção entre os termos indígena e quilombola Nesse sentido afro e indígena são identidades que dialogam e se complementam Quando realizei trabalho de campo nas localidades do perímetro de Cariacá essa memória ancestral indígena começou a aparecer com maior intensidade especialmente entre os moradores as que também se identificam como descendentes dos Kariri D Ivone relatou que os moradores as da localidade de Limões cogitaram afirmarse como indígenas No entanto não conseguiram resgatar os elementos históricos concebidos como necessários para realizar essa passagem É interessante essa busca de um background histórico Em Alcântara no Maranhão os moradores dos povoados rurais se veem e se pensam como muito misturados embora em muitos desses locais os pesquisadores tenham identificado uma narrativa histórica própria das origens Algumas narrativas apoiamse sobre referências explícitas à ascendência indígena outras remetem ao tempo da escravidão e a seus descendentes Emília Piatrefesa de Godoi desenvolveu pesquisa em três povoados ou seja Vila de São João de Cortes e Itauaú pensados e percebidos como povoados de caboclos e Itapuauá pensado e percebido como povoado de negros São João de Cortes está efetivamente em terras de um antigo aldeamento jesuíta e as narrativas orais de seus moradores relatam que as terras eram moradia dos índios e que não se sabe em que era época os índios teriam ido embora deixando ali um santo São João Batista a quem teriam doado as terras Outros ainda dizem que quando os jesuítas foram embora doaram as terras para os índios e os índios doaram para os caboclos da terra para o pessoal daqui os antepassados As narrativas orais de Itauaú evocam os antepassados como a geração dos caboclos do mato dos índios Em Itapuauá por outro lado é ao tempo da escravidão que os moradores se referem quando falam da história do lugar do tempo do cativeiro GODOI 2014 p 144 Godoi se surpreende quando em uma nova etapa de campo em 2010 encontrou no vocabulário cotidiano dos povoados a palavra quilombo Vários moradores dos povoados começaram a participar de um projeto de formação das comunidades para a gestão do território étnico quilombola de Alcântara e foi nesse novo contexto que caboclos e negros passaram a se perceber e a serem percebidos como quilombola GODOI 2014 p 156 91 Mas a autora assinala uma diferença significativa no novo contexto ie a criação do sujeito político através da adoção e uso da categoria quilombola implicando para aqueles que a assumem a possibilidade de ocupar um novo lugar na relação com seus vizinhos na política local diante dos órgãos e políticas governamentais no imaginário nacional e finalmente no seu próprio imaginário ARRUTI 1997 p 22 Em Cariacá as pessoas costumam falar em voz baixa ou permanecer em silêncio por longos períodos Essa característica segundo os mais velhos as é coisa de índio ou coisa de Congo Tanto os indígenas quanto os Congos são percebidos como povos introspectivos e observadores qualidades que simbolizam a virtude Como explicou D Ivone Aí em cima antes era uma mata e era aí que antes tinha umas casa de índio E minha avó que também o nome dela era cabocla que o pai dela foi pego a dente de cachorro Eu tenho parente índio A casa deles ficava aí em cima Nós vinha da escola que aí era mata Aí nós passava que a gente passava olhando Eu vi depois de abandonada não vi os índio que nós vinha da escola Eu tinha oito anos Ivone Gonçalves de Souza 68 anos em 10022016 Na localidade de Teiú em Cariacá a memória indígena surge em relatos vagos porém ditos com seriedade Eles fortalecem a hipótese da herança afroindígena de Cariacá Assim relatou Seu Eurides Já ouvi falar nesses índio Até ali perto da casa de meu avô ali onde hoje é a casa do Durval tinha umas loca que era dos índio Lá nos Limões perto da Ivone Aí quando a gente foi crescendo meu avô me falava que aqui era umas locas dos índio que morava aqui Por que ali era uma mata fechada Os mais veios ali nos Limões era meu avô e meu pai E meu pai também morou ali no Cariacá de Baixo Da vez que o Lampião veio aqui em Bonfim aí perguntou quem era os melhorzinho aqui da área Aí falou que era meu avô o finado Caboco o finado Pedro Vítor e o finado João de Brito Aí o Lampião mandou um recado que vinha visitar essas casa risos 92 Mãe passou mais pai três dias dormindo no mato bem onde perto de onde os índio fizeram as bionguinha deles com medo do Lampião Só que ele não veio veio só até Bonfim Eurides Pereira Brito 75 anos em 09022016 O Relatório Anual da Diretoria Geral dos Índios de 07 de fevereiro de 1875 disponível no Arquivo Público do Estado da Bahia registrou as dificuldades encontradas pelos missionários para manter o trabalho de catequese e civilização dos índios e o controle das aldeias Sugeriu a extinção de alguns aldeamentos indígenas com população escassa dentre eles o da Missão de Nossa Senhora das Neves do Sahy Dos Aldeamentos existentes ou que trazem este nome nenhum ha que resista á desorganização que o attaca e em breve todos elles tenderão a desaparecer Prevalecendome da opportunidade julgo conve niente propôr á VExa a suppressão destes aldeiamentos visto como alem de ser mui diminuto ou antes pequeno o numero de Indios as rendas dos terrenos são usufruidas com raras exepções pelos respectivos Directores Cota Salvador APEB CP AgriculturaDiretoria Geral dos Índios maç 4613No FUNDOCIN APEBCP Identificador Numérico 00899 Aldeia da Pedra Branca no Termo da Tapera de Mirandella de Pombal de Cachimbos na Villa da Victoria do Sacco dos Tapuios na Comarca de Inhambupe de Nossa Senhôra da Saúde do Soure de Massacarás de Rodella do Bom Jesus da Gloria de Nossa Senhôra do Sahy de Aricobé no Rio de S Francisco de Santarem Cota Salvador APEBCP AgriculturaDiretoria Geral dos Índios maç 4613NoFUNDOCIN APEBCP Identificador Numérico 00899 Em outro documento datado de 18 de dezembro de 1887 o Diretor Geral dos Índios respondendo a um ofício expedido pelo Presidente da Província se comprometeu a coletar informações sobre o Aldeamento de Sahy não obstante se compromete em verificar tal informação Ainda no mesmo ano esclarece que em Nossa Senhora das Neves do Sahy existem poucos índios não mais necessitando de diretor motivo pelo qual recomenda a extinção desse aldeamento e de outros que se encontrem em situação semelhante Cota Salvador APEB CP agricultura maço 4614 93 É possível cotejar a memória oral com a documentação escrita Meus interlocutores as em Cariacá mencionaram a existência da estrada dos indígenas105 que ligava Cariacá a Tijuaçu e era utilizada pelos antepassados Essa estrada evidencia que as interações entre Cariacá e Tijuaçu foram estabelecidas em um tempo pretérito Outro marco territorial segundo informaram anciãos de ambas as comunidades tratase de uma vereda106 aberta por moradores de Cariacá e de Tijuaçu para transportar dormentes de trem Essa atividade agregou durante algum tempo uma renda adicional às famílias dessas comunidades Suponho que a vereda aberta coletivamente representa portanto um indicador do estreitamento dos laços de parentesco consolidados por intermédio de casamentos relações de compadrio e de vizinhança De acordo com os quilombolas de Tijuaçu a matriarca fundadora da comunidade a senhora Mariinha Rodrigues se casou com um congo de Cariacá o senhor Austaciano Rodrigues e com ele teve dez filhos107 O enlace transformou Cariacá e Tijuaçu em comunidades irmãs Seu José Preto informou que não alcançou os escravizados não viu a escravidão Todavia seu pai lhe relatou que muitos escravo de Tijuaçu vieram também se esconder no Cariacá Talvez essa união tenha estimulado as migrações constantes de famílias originadas sobretudo das localidades de Laginha e de Curral Derrubado108 para Cariacá que ocorrem até os dias atuais A origem do nome Cariacá se relaciona à história indígena do povoado Na perspectiva dos moradores as foram os índios que batizaram a localidade com a denominação de Cariri Cariacá De acordo com o educador Paulo Batista Machado 1993109 Cariacá é um vocábulo de origem Tupi e significa cabeça de homem jovem e valente mato de homem jovem valente 105 A estrada dos indígenas também foi mencionada pela população de Tijuaçu durante a pesquisa realizada no curso de Mestrado Ela foi retratada como um local relevante tanto para o deslocamento das pessoas quanto para a prática do Samba de Lata atividade cultural secularmente praticada em Tijuaçu 106 Indica um caminho estreito aberto na mata para o trânsito de pessoas e de animais 107 Conforme relato de D Anísia Rodrigues 103 anos bisneta da senhora Mariinha e do senhor Austaciano Rodrigues 108 Constituem localidades de Tijuaçu 109 MACHADO Paulo Batista Cartilha Histórica sobre as Origens de Senhor do Bonfim Salvador Eduneb 1993 94 212 VESTÍGIOS DAS TERRAS DA FAZENDA CARIACÁ Segundo a história oral o surgimento da comunidade de Cariacá antecede à fundação da cidade de Senhor do Bonfim Como afirmou Seu Menininho o Cariacá vem primeiro Bonfim chega depois A origem do município de Senhor do Bonfim está relacionada às rotas das bandeiras nas margens do rio São Francisco e das minas de ouro da cidade de Jacobina desbravadas no século XVII por bandeirantes tropeiros e aventureiros É provável que os indígenas que habitavam no local onde se estabeleceu Cariacá assim como em outros distritos de Senhor do Bonfim a exemplo de Missão do Sahy tenham sido subjugados dispersados nesse período e se integrado à população sertaneja local Como destacou Machado 1993 Senhor do Bonfim foi povoado inicialmente por indígenas do aldeamento da Missão de Nossa Senhora das Neves do Sahy110 Na Enciclopédia dos Municípios Brasileiros 1958 p 354 consta que a Vila de Jacobina foi instituída por Carta Régia em 5 de agosto de 1720 tendo por sede o então Arraial de Nossa Senhora das Neves do Sahy Após a criação da Vila de Jacobina novas habitações dispersas se instalaram ao longo da estrada das boiadas atualmente denominada Estrada Real Bonfim Essa estrada liga a cidade de Senhor do Bonfim ao município de Juazeiro Ainda segundo Machado Op Cit a povoação que se desenvolveu as margens da estrada das boiadas foi designada em 1750 como Arraial de Senhor do Bonfim da Tapera Em 1795 o arraial foi elevado à categoria de julgado por intermédio do ouvidorgeral Florêncio de Morais que atendeu às solicitações encaminhadas pela população local Uma carta régia de 1º de julho de 1799 autorizou a adoção do topônimo Vila Nova da Rainha incorporado em 1º de outubro de 1799 Enciclopédia dos Municípios Brasileiros 1958 p 354 No século XIX a então Vila Nova da Rainha foi elevada à categoria de cidade conforme a lei provincial nº 2499 de 28 de maio de 1885 Em seguida o seu topônimo foi alterado para Bonfim O decretolei nº 141 de 30 de dezembro de 1943 alterou o nome do município para Senhor do Bonfim A cidade ocupa atualmente uma posição econômica e politicamente relevante na região de referência para municípios menos expressivos situados em seu entorno como Campo Formoso Ponto Novo Filadélfia Itiúba Antônio Gonçalves Andorinha Pindobaçu e Jaguarari 110 O arraial foi administrado pela Ordem dos Frades Franciscanos também denominada Ordem dos Frades Menores Os franciscanos construíram uma igreja em homenagem a Nossa Senhora das Neves do Sahy e um convento 95 Apresento ao leitor a o Mapa do Consórcio de Desenvolvimento Sustentável do Piemonte Norte do Itapicuru com destaque para o município de Senhor do Bonfim Figura nº 01 Mapa do Consórcio de Desenvolvimento Sustentável do Piemonte Norte do Itapicuru Fonte httpcdsitapicuruwixsitecomitapicuruoconsorcio acesso em 28012019 No município de Senhor do Bonfim estão situadas às comunidades quilombolas rurais de Cariacá Tijuaçu Passagem Velha Cazumba Cruzeiro Umburanas111 e também o quilombo urbano Alto da Maravilha Dentre as narrativas locais destaco os relatos do senhor Manuel Julião Dias Mané Congo ou ainda Seu Menininho como é lembrado por seus netos as e bisnetos as O 111 Essas comunidades citadas possuem outras localidades que compõe seu perímetro quilombola 96 falecimento do ancião no segundo semestre de 2015 consternou a comunidade de Cariacá Seu Menininho era conhecido como o pai dos Congos por ter sido o representante mais velho da Família Congo Da ultima vez que o entrevistei em sua residência ele relatou a origem de Cariacá Então tinha uma fazenda que era interado antigamente até chegar no Bonfim aqui em Cariacá ela é dessa época do D Pedro I112 Seu Menininho também mencionou a demarcação das terras da antiga Fazenda Cariacá Por ter essa terra muito grande aqui pros Congo ficava repare bem como era a demarcação bico da Serra da Umburana bico da Serra do Botequim que é o Cazumba hoje Voltando por uma área chamada Priquito cortando voltando pela Passagem Velha e morrendo na Serra da Umburana no bico da serra Cortando na banda do Enxú e aqui pé do Morro Jabuticaba Aí fechava a Fazenda Cariacá Era a Fazenda Cariacá Quem comprou foi meu pai Pai dos Congo que os Congos são quilombola e vieram do Cariri Novo vieram por causa da seca que lá não tinha nada pra comer Não foi ele só não vários Agora pra viver aqui se habituaram nesse lugar No passado foi cheio de casa da minha família A escritura ela existe ela foi feita no cartório como que vai pro Campo do Gado O cartório antigo velho era ali Manuel Julião Dias 88 anos em 23072015 Chamo a atenção para o fato de que a memória oral complementa as lacunas da história oficial A memória dos mais velhos é o principal elemento utilizado para a recomposição da história nas comunidades tradicionais De igual modo é essa memória que ora dialoga ora confronta e ou corrige os documentos oficiais A existência de uma escritura de terras relatada por Seu Menininho permaneceu desconhecida pela comunidade até 16 de janeiro de 2016 quando durante um curso de formação de lideranças quilombolas113 do qual participei como mediadora alguém mencionou a 112 Entrevista concedida em 23072015 113 O curso me foi solicitado pela direção da Associação Quilombola de Cariacá e Adjacências AQCA O primeiro dia da atividade foi tumultuado devido à ocorrência de um evento promovido por parte da Secretaria de Assistência Social do município segundo os participantes essa atividade foi desenvolvida concomitantemente com o propósito de desestruturar e reduzir o número de pessoas que compareceriam a sede da AQCA dispostas a participar do curso Ainda foi cogitado pelos presentes que essa pudesse ter 97 existência desse documento Na tarde do segundo dia do curso quando havia um número maior de participantes D Tânia Maria da Silva Dias 54 anos declarou estar de posse do documento114 desde o falecimento de seu pai Ela ocultou a informação dos demais por temer represálias dos fazendeiros tive medo de mexer nessas histórias e ter problema com os fazendeiros Na semana seguinte ao curso fui à residência de Tânia e visualizei a escritura de compra da Fazenda Cariacá O documento confirmou o relato de Seu Menininho A propriedade foi adquirida em 04 de janeiro de 1929 de Adélia Amália de Carvalho Leite pelo valor correspondente a trinta mil réis Os compradores foram os irmãos João Julião Dias Joviniano Julião Dias e Manuel Julião Dias esse último pai de Seu Menininho e pelo cunhado Manuel Pedro da Silva De acordo com Seu Menininho antes de efetivar a compra a sua família já ocupava as terras A sua antiga proprietária Adélia Leite passava a maior parte do tempo na cidade de Tucano onde residiam seus pais Foi uma tarefa difícil reconstituir a história de Cariacá sobretudo porque os relatos eram escassos Os as moradores as muitas vezes estranhavam as minhas indagações principalmente os as mais velhos as e não viam sentido em falar sobre o passado115 Os fatos que trago a seguir não foram vistos em campo mas são contados a partir do que foi dito pelos interlocutores as sendo portanto narrados levandose em consideração a importância que os agentes da pesquisa demonstraram atribuir aos mesmos No passado as terras da Fazenda Cariacá constituíam uma rota de passagem de boiadeiros e tropeiros que costumavam pousar na fazenda Durante as travessias eles guardavam os animais em currais ou pastos de moradores as como José Gomes Antônio Totonho e a senhora Dilina116 O relato da formação da comunidade de Cariacá encontra sido uma estratégia utilizada por parte da mesadiretora da Associação dos Moradores de Cariacá que em parceria com algumas secretarias do município costuma dificultar o êxito das tarefas mediatizadas pela AQCA 114 A declaração de Tânia gerou uma grande comoção entre os participantes houve choros por parte de alguns as e questionamentos diversos por parte de outros as O episódio desencadeou algumas divergências entre os presentes e foi atenuado por um intervalo As conversas e o lanche descontraíram o ambiente 115 Essa circunstância me incomodou profundamente pois antes da pesquisa eu já mantinha contato com muitas pessoas de Cariacá e frequentava a comunidade desde janeiro de 2014 Quando partilhei essa dificuldade com D Maria José do Nascimento ela afirmou que a quietude e o hábito de não gostar de falar de sua história eram caraterísticas do grupo os Congo Paula são tudo assim não gostam de falar de seu sofrimento mas eu conto mesmo Todavia eu já havia sido prevenida por Valmir dos Santos que os Congos são um grupo mais fechado 116 Os interlocutores as não recordaram os sobrenomes de Antônio e Dilina já falecidos e cujas famílias não mais residem em Cariacá 98 correspondência na história de fundação do município de Senhor do Bonfim pois como enunciado pela pesquisadora Carmélia Aparecida Miranda 2006 durante o século XVIII as terras que atualmente constituem o município de Senhor do Bonfim eram ocupadas pelas rancharias de tropeiros e exploradas pela Casa da Torre de propriedade da família Garcia DÁvila Seu José Preto foi o único morador de Cariacá que auxiliou o pai na atividade de tocar tropa de burro serviço que prestava à família de D Trindade Muricy A família Muricy aparece em todos os relatos dos anciões de Cariacá em especial D Trindade seu esposo Joaquim Muricy e o seu sogro capitão Joaquim Belizário de Freitas Essa família possui ainda hoje muitas propriedades na VilaCentro em Cariacá administradas por D Euzarir Muricy neta de D Trindade Os membros da família Muricy são foco de sentimentos que variam do bem querer ao temor e hostilidade declarada Tais sentimentos alternam conforme a relação que os mais velhos as e os seus ancestrais construíram principalmente com D Trindade Muricy quase sempre caracterizada como uma pessoa de bom coração Essa virtude lhe é atribuída por ter facultado em suas terras a atividade de plantio do arroz em sistema de meação e também por partilhar gêneros alimentícios e roupas com a população de Cariacá D Trindade assume a forma de uma figura mitológica O seu esposo aparece com menos assiduidade nas narrativas locais117 O antigo casarão de propriedade da família Muricy ainda que reformado constitui para os moradores de Cariacá um marco territorial que acionam frequentemente nos relatos históricos e de resistência No casarão apenas o pé de cedro permanece a estrutura do prédio sofreu diversas alterações118 117 Foi ressaltado que o senhor Joaquim permanecia pouco tempo em Cariacá afastado em função de suas atividades como comprador de madeira e de dormentes de trem 118 Após reformada a casa permanece fechada 99 Imagem nº 03 Casarão que pertenceu a D Trindade Muricy Fonte Acervo da pesquisadora Nas entrevistas realizadas durante a primeira etapa da pesquisa de campo os interlocutores as destacaram que no casarão da Trindade havia um porão onde ficavam sujeitos negros as escravizados as trazidos do Recôncavo e de Tijuaçu Relataram a existência de correntes e troncos que teriam sido retirados após a reforma da propriedade encomendada por D Euzarir Muricy também conhecida como a juíza Zazá Muricy Assim informou D Luci Era uma moradeira antiga a senhora Trindade Muricy era a mulher mais rica que tinha no Cariacá da família dos Muricy Ela já é falecida Inda hoje existe o casarão dela que é a casa mais antiga de nossa comunidade que é a casa que disse que ficava os prisioneiros o pessoal dos cangaceiros dizem que ficavam tudo aí Vi falar que aí ficavam os escravos e não é mentira não Que tem essa juíza aí que comprava as casas tudo que tem as casas abandonadas que ela nem derruba nem concerta nem dá pra ninguém morar 100 Teve um dos herdeiros que disseram que vendia a parte do casarão a ela mas outros disse que não vendia e aí a casa tá aí abandonada Desses escravos que ficava preso na casa disse que muitos vinha do Tijuaçu Eu não conheci que não foi do meu tempo mas eu ouvia falar Luciana de Freitas Silva 75 anos em 23102015 Atualmente D Euzarir Muricy é proprietária de seis casas na VilaCentro Uma dessas casas um sobrado que é uma das construções mais imponentes do lugar Há também uma chácara que visita a cada dois anos Durante as visitas a juíza Zazá adquire informações sobre pessoas que desejem vender suas casas em Cariacá e se propõe a comprálas para conserválas fechadas Os moradores as acreditam ser essa uma estratégia para transformar a VilaCentro em uma comunidade fantasma As lembranças do passado foram verbalizadas pelos mais velhos as envolvidas em uma atmosfera de orgulho e saudosismo Esses sentimentos talvez se encontrem amparados em uma reverência aos tempos de ouro da comunidade caracterizados por um desenvolvimento econômico e social relevantes Cariacá dispunha de serviços de telegrafia e sediava uma das seis estações ferroviárias do município de Senhor do Bonfim A ferrovia foi inaugurada em 31 de agosto de 1887119 Em conversas informais os as moradores as mencionaram a passagem de trens de carga e de passageiros inclusive do transporte conhecido à época como Estrela do Norte Quando o trem passava os pais temendo acidentes orientavam as crianças a não se aproximar da linha férrea A estação de Cariacá integrava o sistema ferroviário que conectava o sertão à cidade do Salvador O último trem de passageiros o Marta Rocha que ligava Senhor do Bonfim à cidade de Alagoinhas foi desativado em 1989120 em virtude da forte concorrência rodoviária e da precariedade dos serviços prestados aos passageiros Atualmente apenas os trens de carga atravessam Cariacá Da antiga ferroviária não resta mais nada Todos os 119 Informação disponível no Guia Geral das Estradas de Ferro do Brasil 120 PESSOA Ciro Deocleciano Estudo Descritivo das Estradas de Ferro do Brasil 1986 101 objetos de valor foram retirados pela Leste121 e a linha do trem permanece para os as moradores as apenas como mais uma referência do passado Figura nº 02 Mapa das Estações Ferroviárias do Brasil em destaque a linha que ligava o sertão ao litoral onde aparece a cidade de Senhor do Bonfim e da qual fazia parte a estação ferroviária de Cariacá Fonte httpwwwestacoesferroviariascombrbapaulistanasenhorhtm acesso em 290119 Havia em Cariacá um animado comércio de produtos como mamona ouricuri milho e feijão A mamona e o ouricuri eram transportados para a SAMBRA122 em Salvador Esses produtos segundo os quilombolas ficavam armazenados em um depósito de propriedade de Ermelino Mendes de Oliveira ou Mestre Ermelino como era conhecido Ele é mencionado com respeito um homem de autoridade antigo delegado que exercia as 121 Viação Férrea Federal Leste Brasileiro VFFLB criada em 1935 durante o governo do presidente Getúlio Vargas 122 Atualmente conhecida como Bom Brasil Óleo de Mamona 102 funções de agente dos correios e de mestre de obras Os as moradores as de Cariacá destacaram um curtume de couro que pertenceu a Joaquim Belizário de Freitas123 um açougue de propriedade de José Gomes da Silva cujo abate de bovinos e caprinos se verificava às quintasfeiras As carnes eram comercializadas em Senhor do Bonfim Tijuaçu Quicé e Antônio Gonçalves Nesse período a rua do Cariacá contava com menos de vinte casas algumas eram ranchos de palha Segundo os moradores as os seus ascendentes residiam embaixo de pés de pau e em pequenos ranchos erigidos coletivamente A solidariedade entre os membros da comunidade se verificava tanto na construção de moradias quanto de caixões Eles eram produzidos debaixo de um pé de cajarana124 A fabricação de caixões era uma atividade que se estendia por toda a madrugada A madeira utilizada provinha da umburana ou das tábuas da cama do a morto a O passado promissor de Cariacá foi interrompido após a construção da Rodovia Federal Lomanto Júnior BR 407125 em 1960 que desencadeou impactos negativos sobretudo econômicos Em pesquisa anteriormente realizada na comunidade quilombola de Tijuaçu constatei que a construção da citada rodovia impulsionou parcialmente o progresso econômico da referida comunidade126 Todavia em Cariacá a rodovia acarretou a desvalorização da ferrovia e a isso se seguiu um longo período de esquecimento e abandono que prevalece até os dias atuais inclusive por parte da cidade de Senhor do Bonfim Segundo as narrativas orais apenas quando ocorreu a afirmação da ancestralidade quilombola é que o pequeno povoado passou a receber da cidade polo algum tipo de atenção 123 Do curtume restam alguns tanques desativados 124 A cajarana e o cedro foram classificados como árvores ancestrais 125 A BR 407 ou Rodovia Federal Lomanto Júnior foi construída durante a década de 1960 na gestão do governador Lomanto Júnior 126 A construção desta rodovia desencadeia impactos positivos e negativos para a comunidade quilombola de Tijuaçu principalmente no setor econômico visto que facilitou o acesso à cidade de Senhor do Bonfim e favoreceu a instalação de comerciantes na VilaCentro É oportuno esclarecer que esses comerciantes em sua maioria são sujeitos não negros as e ou ainda descendentes dos fazendeiros que em tempos pretéritos invadiram as terras dos quilombolas 103 22 APRESENTANDO A VILACENTRO A referência para se chegar à comunidade de Cariacá é o posto de combustível Transvale A partir daí é necessário abandonar a Rodovia Federal Lomanto Júnior e adentrar por um pequeno entroncamento cuja pavimentação foi inaugurada em 03 de julho de 2017 Na época mais intensa da minha pesquisa era uma estrada vicinal de chão batido caracterizada pela presença de costelas de vaca127 O percurso de sete quilômetros até Cariacá revela ao visitante elementos significativos como a poeira e um lixão a céu aberto um problema antigo a ser solucionado pelo poder público Em 2016 o lixão foi cercado com arame e em suas dependências foi construída uma guarita Contudo durante a noite o espaço funciona como ponto de consumo e venda de drogas comprometendo a segurança das famílias de Cariacá No trajeto para a comunidade nos deparamos com frequência com caçambas do Grupo Irmãos Pelegrini128 Também os ônibus transitam pelo local movimentando o trecho estreito e castigado pelo sol do sertão Os ônibus viabilizam os deslocamentos dos moradores de Cariacá para a cidade de Senhor do Bonfim Diariamente nos horários de 6 7 e 12 horas os ônibus saem da VilaCentro para a cidade de Senhor do Bonfim retornando ao meio dia O último ônibus regressa a Cariacá por volta das 17 horas Além do transporte coletivo para Senhor do Bonfim há os ônibus escolares restritos ao uso de estudantes e professores as Motos e veículos particulares de moradores as circulam constantemente no percurso povoado por algumas chácaras que não são de propriedade dos quilombolas Também fazem parte do trajeto CariacáBonfim a Fazenda Laminha de Carlos Farias129 e uma lagoa que costuma secar nos períodos de estiagem Esse pequeno fluxo cotidiano de veículos levanta a poeira das ruas areentas e pouco organizadas que se distribuem pela VilaCentro 127 As costelas de vaca são ondulações provocadas pela ação dos transportes que trafegam cotidianamente nas estradas rurais 128 Uma empresa voltada para a produção de materiais préfabricados e derivados de pedra que se instalou na comunidade em 1984 É popularmente chamada pelos as moradores as de pedreira 129 A família Farias instalada em Cariacá é constituída por parentes de Paulo César Farias político que ficou conhecido nacionalmente durante o governo do expresidente da República Fernando Collor de Melo O fazendeiro Carlos Farias não reside na propriedade aparecendo uma vez por ano para verificar a sua situação 104 Imagem nº 04 Estrada rural que até junho de 2017 ligou a comunidade de Cariacá até o município de Senhor do Bonfim Fonte Acervo da pesquisadora A comunidade de Cariacá possui poucos acessos viários e apenas a Rua Cariacá Central é pavimentada Seu calçamento foi concluído em 2007 As demais ruas são denominadas Quilombola e da Linha Somente o loteamento Altamirando Pelegrini130 não foi designado pelos as moradores as Há uma divisão interna na comunidade que foi instituída por seus ascendentes em decorrência de rivalidades entre as famílias Congo e Muricy Cariacá de Cima Vila Centro Cariacá de Baixo e Morrinhos respectivamente Essas localidades constituem o território de Cariacá O marco divisório entre a VilaCentro e os Morrinhos é a estrada 130 A denominação do loteamento foi uma homenagem ao pai do senhor Aparício Pelegrini 105 férrea e uma mercearia O Cariacá de Baixo compreende as terras que se distanciam da VilaCentro em direção às localidades rurais Para melhor situar o leitor a informo que o território de Cariacá cuja população é estimada em 2109131 habitantes encontrase assim constituído Cariacá de Cima Vila Centro Morrinhos e Cariacá de Baixo as outras localidades que formam o perímetro são Limões Teiú e Cruzeiro É identificada no território a presença das seguintes fazendas Laminha Umburanas Três Morros Pedro Souza Lagoa do Boi e Picada Em tempos pretéritos essas terras pertenciam aos ancestrais do grupo e atualmente a exceção de parte das fazendas Pedro Souza e Lagoa do Boi as demais propriedades estão em posse de pessoas que até o presente momento não se identificam nem são identificadas como quilombolas 221 ANDANDO PELAS RUAS DE CARIACÁ DE CIMA Cariacá de Cima é também referida como Cariacá Central pois tratase do núcleo do povoado Organizado como uma vila é mais urbana que as demais localidades É possível ter acesso às ruas de Cariacá de Cima pela localidade de Morrinhos que é quase totalmente pavimentada A rua Central é organizada em duas avenidas com casas até o início da estrada para Cariacá de Baixo Nessas avenidas estão as construções mais antigas Chama a atenção o sobrado imponente de D Euzarir Muricy Na parte final da rua Central a mais antiga segundo os moradores as encontrase o casarão que pertenceu a D Trindade Muricy e o pé de cedro Há nas vizinhanças seis casas antigas constituídas em adobe de propriedade de D Euzarir Muricy A maioria dos as moradores as que residem nessa parte da localidade se identificam como membros da Família Congo 131 Dados fornecidos por parte da Secretaria de Saúde do município de Senhor do Bonfim 106 Imagem nº 05 Casas localizadas na Rua Cariacá Central Fonte Acervo da pesquisadora Há um cruzeiro assentado em uma base de cimento a linha férrea e um orelhão desativado situados no começo da rua Central Existe um ponto de ônibus ao lado do cruzeiro Outras ruas se projetam desordenadamente formando pequenas vielas em aclives e declives Nelas estão as construções mais recentes de Cariacá De maneira geral as casas situadas na Vila apresentam alguns contrastes Há construções erigidas em bloco e cimento Algumas são caiadas outras azulejadas com cerâmicas simples e portão de ferro ou pequenas grades singelas na parte frontal Os tetos dessas residências geralmente não são forrados e o piso é confeccionado por um tipo de cimento queimado de coloração vermelha amarela ou branca Algumas casas possuem piso de cerâmica em forma de mosaico Essas casas se diferenciam das antigas habitações de adobe danificadas oferecendo ao espectador um pequeno registro do passado As residências são divididas internamente em sala cozinha dois ou três quartos O banheiro se localiza com frequência 107 na área externa132 Não há portas dividindo os cômodos são utilizadas cortinas coloridas para separar os quartos e salas Não há rede de esgotamento sanitário em todo o território quilombola Predominam as fossas sépticas cavadas em regime de mutirão também designado batalhão A escavação das fossas sépticas mobiliza todos os homens da família ampliada É um trabalho solidário de grande relevância Durante o trabalho as mulheres da casa se ocupam da preparação do almoço133 que costuma ser especial em função da força empregada na atividade No mutirão observase a alegria da confraternização entre parentes e alguns compadres que eventualmente colaboram A decoração das casas observa um padrão regular com destaque para o televisor que ocupa lugar privilegiado em todas as salas de Cariacá de Cima O aparelho permanece ligado durante todo o dia pois os as moradores as acompanham assiduamente as notícias e assistem às novelas Notase também a presença de pequenos sofás de dois lugares cobertos com capas lisas ou coloridas e de uma estante contendo imagens sacras quando os as moradores as são católicos as e a Bíblia Sagrada quando se trata de uma família evangélica Em algumas casas há aparelhos de som e de dvd Os adolescentes e as crianças se distraem com celulares tabletes e computadores As comunidades quilombolas não constituem espaços isolados e seus membros estão na medida do possível integrados à sociedade pósmoderna Em algumas cozinhas há fogões a lenha que permanecem acessos durante todo o dia em outras os fogões a lenha dividem espaço com o fogão a gás um armário de pé ou de parede e uma mesa de madeira cujo tamanho é proporcional à quantidade de pessoas que residem na casa Alguns quintais das residências não são divididos por muros ou cercas de arame134 e por vezes interligam algumas ruas Assim é possível atravessar de uma rua para a outra atravessando apenas um quintal Alguns membros da comunidade criam porcos em chiqueiros outros criam galinhas A presença de aves em gaiolas de gatos e de cachorros é frequente em quase todos os quintais É comum em Cariacá encontrar cavalos e jumentos 132 Poucas casas possuem banheiro em seu interior Ele é geralmente um cômodo recente construído com recursos da aposentadoria do a morador a 133 O almoço tradicionalmente preparado é constituído por uma fatada ou buchada arroz branco e cachaça com limão Os quilombolas acreditam que essa alimentação produz força e fogo suficientes aos homens da família que conseguirão terminar com sucesso a atividade iniciada geralmente por volta das 500 ou 600 h da manhã podendo se estender até o final do dia 134 Cercas e muros só são colocados quando os as vizinhos as não são parentes de primeiro grau 108 circulando sem restrições pelas ruas Quando lecionei em uma turma de Pedagogia135 em Cariacá os cavalos invadiram a escola diversas vezes Em algumas residências da VilaCentro habitam mais de uma família nuclear devido aos problemas econômicos enfrentados tanto para a aquisição do terreno quanto para a construção do imóvel Em 2015 os territórios quilombolas de Cariacá e Cazumba136 foram contemplados com quarenta e duas casas do Programa Nacional de Habitação Rural PNHR A VilaCentro é constituída por oito mercados de pequeno porte que se assemelham a mercearias Muitos estão instalados nas salas das residências dos proprietários ou em um cômodo lateral137 Há seis bares que aos domingos proporcionam diversão e encontros entre as famílias Os homens da comunidade geralmente frequentam os bares ao passo que as mulheres se reúnem em frente às casas mandando buscar a bebida e alguns petiscos em especial o acarajé138 A única escola da comunidade a Escola Municipal de Cariacá está situada em Cariacá de Cima Nela estudam alunos de todas as localidades do território quilombola No turno matutino há classes do Ensino Fundamental II ministradas por professoras es da cidade de Senhor do Bonfim139 No turno vespertino funcionam classes de Educação Infantil e de Ensino Fundamental I No período noturno foi implantado o Ensino Médio na modalidade de Educação a Distância Uma professora da comunidade realiza as atividades de tutoria Atualmente boa parte dos das adolescentes em especial os as que cursam o Ensino Médio estudam na cidade de Senhor do Bonfim onde há escolas mais organizadas que a da comunidade Alguns desses alunos relataram serem vítimas de discriminação por 135 Há um projeto em Cariacá e em diversas outras comunidades tradicionais como Fumaça Acaru São Pedro Tamanduá e Alto do Capim cuja proposta é levar a universidade para o quilombo formando turmas de licenciatura em Pedagogia O curso é oferecido pelo Instituto Brasil Quilombola IBRAQ e vinculado ao Instituto Superior de Educação ISEPRO Tenho lecionado nessas comunidades desde 2016 136 Cazumba é uma comunidade quilombola situada no município de Senhor do Bonfim 137 Quatro desses estabelecimentos pertencem a moradores as que não se percebem como quilombolas 138 O acarajé não é produzido pelas mulheres de Cariacá Entretanto aos domingos uma moradora da comunidade quilombola de Tijuaçu D Ilca dos Santos vende o produto em Cariacá 139 Apenas duas professoras da comunidade trabalham na escola 109 parte de colegas e educadores nas escolas públicas de Senhor do Bonfim por residirem em áreas rurais140 Imagem nº 06 Escola Municipal de Cariacá Fonte Acervo da pesquisadora Em Cariacá há um posto de saúde Um médico atende no local a cada quinze dias Não há medicamentos ou outros serviços no posto Uma zeladora que é moradora da comunidade D Raquel Gomes da Silva e membro da Família Congo se encarrega da limpeza local e o mantém aberto durante a semana Ela também atua como recepcionista durante as visitas médicas A AQCA enviou dois ofícios à Secretaria de Saúde do 140 A discriminação é atenuada quando eles as se identificam como quilombolas Os órgãos públicos de Senhor do Bonfim têm desenvolvido políticas públicas de valorização e respeito à diversidade cultural 110 município reivindicando a instalação de um Posto de Saúde da Família PSF141 em Cariacá A comunidade também reivindica medicamentos e serviços técnicos no posto de saúde Em Cariacá há técnicas de enfermagem que poderiam trabalhar no posto Em Cariacá de Cima há um posto dos correios desativado duas capelas três igrejas evangélicas um cemitério um campo de futebol construído pelos próprios moradores as e a sede da AQCA o grande orgulho dos quilombolas Entre as capelas a mais antiga foi erigida em homenagem a São Sebastião e a mais recente construída para reverenciar Santa Rita de Cássia Ambos os padroeiros são invocados em um universo de fé e de respeito pelas famílias católicas de Cariacá que rezam contra a fome a peste e a guerra Os evangélicos frequentam as igrejas Assembleia de Deus Adventista do Sétimo Dia e Batista com sedes na comunidade Os quilombolas afirmaram que no passado havia curadores as e benzedores as no território Alguns deles já falecidos foram mencionados durante a pesquisa Alfredo e Josefa essa última apontada como curadeira forte do Cariacá de Baixo D Nair era uma reputada rezadorabenzedora que residia na localidade de Morrinhos Seu Venâncio e D Marieta foram também destacados Atualmente D Luci é a única rezadora de Cariacá Em quase toda a VilaCentro há energia elétrica Ela foi instalada na comunidade em 1981 Todavia em algumas casas mais humildes há gatos de energia A água encanada começou a ser instalada em 1988 mas muitas localidades do território ainda não dispõem do serviço e dependem de cisternas A internet foi instalada pela Associação Quilombola em 2015 Alguns membros da comunidade também adquiriram o sistema via cabo para as suas residências O uso da internet é um recurso muito apreciado Em quase todas as residências de Cariacá de Cima os moradores as possuem diversos celulares de operadoras distintas142 Eles facilitam a comunicação entre parentes que migram para as regiões sudeste e sul do país em busca de trabalho para assegurar as necessidades da sua família em Cariacá A tecnologia apazigua a saudade dos entes queridos distantes 141 Todavia a Secretaria de Saúde alegou que não há moradores em número suficiente em Cariacá que justifiquem a instalação de um PSF A Secretaria disponibilizou o veículo de um morador da comunidade para transportar os pacientes até o hospital de Senhor do Bonfim 142 A disseminação de aparelhos como celulares e tabletes entre os as moradores as tem contribuído para a circulação de informações e para o acesso a políticas públicas 111 A agricultura quase não é mais praticada no perímetro à exceção das localidades de Cariacá de Baixo e Teiú Essa atividade constituiu outrora uma das principais características do passado de Cariacá quando o plantio de gêneros como o arroz e a mamona eram responsáveis pela subsistência das famílias Os quilombolas não plantam atualmente devido à escassez de terras Muitas áreas foram expropriadas ou vendidas durante os longos períodos de estiagem por um valor inferior ao estimado Eles relataram que venderam as terras para assegurar a sobrevivência de suas famílias Alguns alegaram que perderam suas terras durante a seca de 1932143 quando muitas famílias migraram para a região sul da Bahia em busca de melhores condições de vida Quando retornaram encontraram parte de suas terras invadidas por estranhos e pela família Muricy Por esse motivo os interlocutores as afirmam que os Congo não têm terra apenas os quintais das casa Os quilombolas que ainda possuem alguma terra no máximo duas tarefas desenvolvem uma pequena atividade agrícola durante os anos chuvosos plantando feijão e milho na beira da linha Eles as relataram que nunca foram advertidos pela LESTE todavia são admoestados por D Euzarir Muricy que apenas a contragosto permite plantações ao lado da cerca de sua propriedade Uma atividade econômica desenvolvida por apenas duas famílias em Cariacá é a pecuária leiteira A criação de gado bovino é concentrada nas fazendas de não quilombolas situadas na antiga rota de passagem de boiada e tropa de burro A existência das fazendas evidencia a subjugação imposta no processo de apropriação do território quilombola por indivíduos de fora Alguns membros de Cariacá trabalham nas feiras em Senhor do Bonfim realizadas aos sábados Antigamente havia uma pequena feira na comunidade aos domingos mas atualmente os únicos estabelecimentos abertos em Cariacá nesse dia da semana são os bares A principal fonte de renda em Cariacá provém do trabalho assalariado realizado na pedreira cuja construção imponente pode ser visualizada a partir da BR 407 O Irmãos Pelegrini é o maior empreendimento do ramo da construção civil da região e tem uma boa reputação no território quilombola pois prioriza a mão de obra local A pedreira como é 143 O ano de 1932 é rememorado em muitas localidades sertanejas quilombolas ou não como o período de estiagem que quase matou o sertão 112 popularmente designada está localizada próxima aos Morrinhos em um local que funcionou como ponto de encontro para as lavadeiras do grupo144 Os as moradores as de Cariacá declararam que mantém boas relações com o seu proprietário Aparício Pelegrini a exceção das famílias de Morrinhos impactadas pelos tiros disparados pela pedreira e pela perfuração realizada através das máquinas que ocasionavam e por vezes ainda ocasionam alguns abalos e prejuízos Há dez anos muitas casas de Morrinhos tiveram parte das paredes rachadas e toda a estrutura comprometida As atividades da pedreira e as chuvas acarretaram a destruição da capela de Santo Antônio145 Segundo os as interlocutores as quando essas atividades geram prejuízos o empresário Aparício Pelegrini ressarce as pessoas recuperando as suas residências e porventura algum móvel que tenha sido danificado O proprietário da pedreira é considerado como um benfeitor em Cariacá As pessoas do lugar recorrem ao empresário para solicitar ajuda no momento de construir casas para a ampliação da sede da associação e para custear o pagamento de parte da mensalidade dos estudantes da comunidade que cursam o Ensino Superior Além de constituir a principal fonte de renda dos moradores as a pedreira em Cariacá é motivo de orgulho pois de acordo com os interlocutores as o proprietário Aparício Pelegrini os valoriza e busca atender às suas necessidades Alguns membros da comunidade de Cariacá são funcionários públicos municipais geralmente alocados no setor de limpeza Há jovens contratados como monitores do Projeto Mais Educação nas escolas de outros povoados do município Algumas mulheres trabalham como empregadas domésticas na cidade de Senhor do Bonfim Aquelas que são casadas retornam para casa no final do dia enquanto as solteiras regressam apenas nos finais de semana Boa parte dos as moradores as são beneficiários de programas sociais do governo federal ou recebem auxílio de pais aposentados Em muitas famílias a aposentadoria dos idosos as representa o sustentáculo econômico para filhos netos e bisnetos A produção das atividades culturais é outro aspecto relevante observado no módus vivendi desses quilombolas sertanejos em especial entre aqueles as que residem em Cariacá de Cima são práticas que traduzem sua fé e atuam como formas de se comunicar com a sociedade inclusiva As principais atividades culturais encenadas nessa parte da 144 Muitas mulheres preferiam lavar roupas no lajedo espaço atualmente invadido e deteriorado 145 A imagem do santo está na capela de Santa Rita 113 comunidade são a Lapinha Cantada a Roda do Povoado de Cariacá o Terno de Reis e na atualidade o grupo de dança Quilombart146 as três primeiras atividades constituem construções presentes desde os ancestrais ao passo que a existência do Quilombart é algo recente por ser uma produção da juventude Entre as atividades encenadas pelas antigas gerações apenas a Lapinha Cantada permanece na atualidade a Roda e o Terno de Reis encontramse desativados porém considerando a importância que a existência dessas manifestações em tempos pretéritos possuiu e ainda possui para o grupo estimulando o orgulho dos mais velhos e a admiração por parte das gerações mais jovens faço a seguir uma descrição das mesmas Na primeira semana do mês de dezembro de 2016 encontrei D Luci em sua residência montando a lapinha em homenagem ao Menino Jesus Essa devoção é muito difundida entre as mulheres de Cariacá e foi iniciada por D Evanice Lopes Guimarães Montar a Lapinha é um rito feminino que passa de mãe para filha atravessando gerações de uma mesma família É um trabalho que envolve habilidade preocupação com os detalhes e principalmente a prática das orações As guardadoras acreditam que a prática traz saúde proteção e harmonia para toda a família e também boa sorte nas atividades que serão realizadas no ano seguinte Antes de começar a montagem da Lapinha é necessário pedir licença ao Menino Jesus através de orações A primeira delas é o PaiNosso em seguida a mulher considerada a dona da lapinha faz uma oração particular Durante a realização dessa atividade as mulheres são assistidas por suas filhas e ou netas que darão continuidade ao rito quando chegar no seu tempo Algumas lapinhas são montadas no chão da sala com os personagens da Sagrada Família do catolicismo cristão outras são improvisadas nas estantes e algumas são confeccionadas em pequenas caixas de papelão Há pois várias alternativas para a construção da estrutura que depois de concluída revela a subjetividade de quem a produziu Enquanto a lapinha é montada cânticos são entoados para saudar a chegada do Menino Jesus que na concepção das guardiãs da devoção entra em suas residências permanecendo até o dia 06 de janeiro quando a lapinha é desmontada Esse cântico é o mais recorrente 146 Abordarei essa atividade cultural que constitui uma construção das gerações mais jovens do grupo no Capítulo 6 114 Os olhos de Deus Menino São dois navios de guerra De dia clareia o mundo De noite clareia a terra Lá vem o carro cantando Cheio de botão de rosa Deus Menino vem no meio Escolhendo a mais formosa Nós vamos todos cantando Com prazer e alegria Adorando a Jesus Filho da Virgem Maria Cântico entoado por D Luciana de Freitas Silva 75 anos No período em que a lapinha permanece montada a família ora diariamente às seis horas da tarde A oração pode ser realizada pela dona da devoção ou compartilhada com todos as os as moradores as da casa Quem inicia a devoção da Lapinha do Menino Jesus deve se encarregar dela por sete anos ininterruptos O mesmo ocorre na confecção das árvores de Natal Completado o ciclo é possível abrir mão dessas atividades interpretadas como preceitos Todavia abdicar das tarefas antes do tempo previsto significa se expor e à sua família a acontecimentos negativos No momento de desmanchar a lapinha geralmente em sete de janeiro a família se reúne para rezar o terço finalizando o rito A Roda do Povoado de Cariacá e o Terno de Reis constituíam sinais diacríticos dos brincantes na cidade de Senhor do Bonfim Embora não sejam mais realizadas desde o final da década de 1990 essas atividades são percebidas como uma herança cultural dos troncoso Antes de se tornarem conhecidas na sede do município já alegravam a vida da 115 comunidade Foram iniciadas com a Família Congo mas durante as apresentações não havia distinção entre Congos Muricys ou descendentes de índia147 Elas deixaram de ser realizadas após o falecimento de seus organizadores e em vista das dificuldades econômicas que se acentuaram na comunidade Entre os antigos brincantes D Luci é a única que ainda vive e reside na comunidade Outros as moradores as relataram lembranças das noites de reisado dos ensaios e das apresentações da roda Eles as apontaram D Luci como guardiã das fotografias e principal organizadora desses festejos Quando indaguei a D Luci sobre essas atividades ela me puxou pela mão e me conduziu para a residência afirmando que necessitava da minha ajuda para pegar uma caixa com álbuns de fotografias antigas e assim ilustrar o seu relato148 As fotografias são em sua maioria em preto e branco Elas constituem ao lado da memória oral uma herança dos troncos velhos com os quais se aprendeu e durante muito tempo manteve o compromisso de multiplicar para que a brincadeira não se perdesse A Roda do Povoado de Cariacá como era conhecida passou a ser organizada por D Luci em março de 1962 período em que atuava como professora na comunidade condição que lhe facultava um contato direto com o poder executivo municipal que patrocinava a atividade colaborando com os figurinos e o transporte As apresentações eram realizadas na Praça Nova do Congresso e os ensaios ocorriam no prédio escolar Eles eram iniciados em abril para estarem aptos a participar do circuito oficial do São João bonfinense A roda era constituída por sessenta pessoas entre moças rapazes mulheres casadas e algumas senhoras idosas O destaque ia para os participantes que demonstravam habilidade para dançar roda e dizer verso Os versos quase sempre rimados pertenciam ao cancioneiro popular ou eram criações de D Luci que ainda os recita e canta com facilidade 147 Como já referido embora a memória indígena tenha se perdido entre os as moradores as algumas lembranças aparecem quando os sujeitos mais velhos do grupo relatam antigas histórias A expressão descendente de índia costuma ser utilizada por D Luci 148 Durante essa visita D Luci me apresentou à sua mesa de Santo um espaço que permanece oculto para algumas pessoas da comunidade Me senti honrada com o convite Nas pequenas comunidades rurais do sertão as pessoas que não exercem a atividade religiosa de curador a mas constituem mesa de Santo devido ao fato de serem rezadoresbenzedores as ainda que de maneira reservada não costumam permitir a presença de visitantes nesses espaços D Luci mostrou as suas bonecas presentes de parentes e amigos as e depois apresentou o nicho dedicado aos santos afirmando que reza em adultos e crianças e que se sente feliz por ter recebido de Deus essa missão Em seguida ela separou as fotos do acervo testemunho da riqueza cultural da comunidade 116 Apresento alguns versos que foram cantados pela interlocutora durante os diálogos que mantivemos na sala de sua residência Chora bananeira Bananeira chora Chora bananeira Amanhã eu vou embora Meu anel caiu do dedo Dentro de um belo jardim Viva o povo da cidade E o prefeito de Bonfim Chora bananeira Bananeira chora Chora bananeira Amanhã eu vou embora Já te disse que não quero Já te dei o desengano Não me importo que tu morra No sereno cochilano Chora bananeira Bananeira chora Chora bananeira Amanhã eu vou embora 117 Eu subi na serra negra Com a sandália de algodão Minha sandália pegou fogo Na noite de São João Luciana de Freitas Silva 75 anos em 28122015 Os versos eram recitados por três cantoras os homens não cantavam no microfone estes conforme salientou D Luci apenas acompanhavam o coro de vozes puxado pelas mulheres Os brincantes se apresentavam com roupas coloridas sendo que os homens vestiam calças jeans camisas brancas e chapéus enquanto as mulheres trajavam blusas brancas saias coloridas sandálias enfeitadas com o mesmo tecido utilizado na confecção das saias pulseiras e usavam uma fita branca no cabelo Oito mulheres se apresentavam vestidas com roupas de ciganas Além dos brincantes havia a presença de um sanfoneiro O Terno de Reis é a atividade cultural que obteve maior destaque em Cariacá Segundo D Luci o Reisado foi iniciado pela senhora Maria Lopes descendente de indígenas da família linguística Kariri e falecida aos 116 anos Ela foi descrita como uma pessoa religiosa que se preocupava com o bemestar de todos as O Terno de Reis unia o grupo pois havia mais de um brincante em quase todas as casas da comunidade Os participantes se apresentavam caracterizados como Estrela Dalva lua rei rainha princesas casais de sertanejos e os tocadores de sanfona triângulo e por vezes zabumba As cores predominantes no vestuário dos brincantes eram o branco e o verde associadas ao universo sertanejo A cor verde faz referência à mata e o branco simboliza um pedido de paz no mundo Durante a sua existência o Terno de Reis de Cariacá era aguardado tanto na comunidade quanto na cidade de Senhor do Bonfim O terno percorria as localidades do território quilombola de Tijuaçu e muitos povoados da região atendendo aos convites e reverenciando a chegada de Jesus Menino D Luci última organizadora do evento rememorou os versos cantados e o modo como o Reis chegava saudando aos que o assistiam A lua guiando a estrela E o romper do lindo sol 118 Vem mostrar sua beleza E a harmonia do arrebol Cada qual com seus afetos Vem mostrar sua beleza E a todos Vos imploram Oh Autor da natureza Luciana de Freitas Silva 75 anos em 27122016 Segundo D Elvira muitas pessoas da comunidade não acreditavam na concretização do Terno de Reis em Cariacá em face das dificuldades enfrentadas na organização Assim cantavam os versos Todo mundo aqui dizia Que esse terno não saía Esse terno anda na rua Com prazer e alegria Meu Senhor Meu Deus Menino Saia fora e venha ver Venha ver suas pastorinhas Como vem Lhe obedecer Boanoite meus senhores Minhas senhoras também Nós somos as pastorinhas Da lapinha de Belém Elvira Gomes Damasceno 80 anos em 10092015 119 D Luci narrou com orgulho a respeito do período em que na companhia do senhor Olívio José de Freitas apresentou por três anos consecutivos o Terno de Reis de Cariacá ficando em primeiro lugar nas competições promovidas pela paróquia de São José Esposo a qual a comunidade permanece vinculada em Senhor do Bonfim Descritos os principais aspectos produzidos nas vivências que se verificaram em Cariacá de Cima procedo a seguir a uma descrição das demais localidades que integram o perímetro e que mantém com a Vilacentro relações políticas econômicas sociais e culturais Essas localidades se encontram articuladas a AQCA 222 PERCORRENDO O TERRITÓRIO Antes do início da pesquisa de campo eu estava acostumada a encontrar os atores sociais que residem nas outras comunidades do território nas reuniões da Associação Quilombola em casas de parentes na Vilacentro ou ainda em Senhor do Bonfim Conhecia algumas pessoas apontadas como lideranças porém um contato restrito que passou a se aprofundar a partir do dia 09 de fevereiro de 2016 quando pela primeira vez comecei a aparecer nas demais comunidades do perímetro Iniciei as atividades de campo de maneira didática considerando a ordem indicada no roteiro que D Maria José traçou em uma das muitas tardes em que estive em sua residência local que representou meu ponto de apoio e referência circunstância que se verificou e verifica em função da interlocutora ser sogra de Valmir dos Santos A amizade e o laço de compadrio construídos previamente com o senhor Valmir possibilitaram minha estadia praticamente fixa até então na residência da família Nascimento Embora o roteiro tenha sido traçado por D Maria fui conduzida inicialmente nas localidades através de Valmir esse intercâmbio aconteceu na semana do carnaval Utilizei esse período por dois motivos específicos o semestre acadêmico já havia começado no mês anterior e ainda possuía créditos teóricos para serem cumpridos segundo não existe carnaval na região em que me situo portanto desejava utilizar o período disponível para não me afastar do campo A partir daí continuei retornando aos finais de semana até que finalmente o semestre acadêmico terminasse para exercer as atividades de pesquisa com 120 maior liberdade e respeito àqueles as que sempre se mostraram receptivos a minha presença e necessidades etnográficas O auxílio direto prestado pelo senhor Valmir dos Santos constitui um comportamento que se tornou habitual acontecendo desde a época do trabalho monográfico escrito durante o curso de graduação em Pedagogia desde então em quase todas as ocasiões em que tenho mantido a oportunidade de estar nos quilombos contemporâneos que despertam na região norte do sertão baiano Valmir tem atuado como meu principal colaborador mediatizando os diálogos iniciais estabelecendose a posteriori o efeito bola de neve Encontravame entusiasmada para essa segunda etapa no roteiro de pesquisa atividade que foi realizada a pé e de carro pouco se trafega de moto no interior do território de Cariacá Esse tipo de veículo costuma ser utilizado com maior frequência para percorrer a distância que separa a comunidade do município No mapa abaixo demonstro ao leitor a a relativa proximidade espacial existente entre a VilaCentro as outras localidades do território e a comunidade quilombola de Tijuaçu Fonte Adobe Photoshop CC 2019 Ilustração da Pesquisadora 121 Ofereço ao leitor a a descrição dos principais aspectos percebidos nessas localidades e que caracterizam as vivências estabelecidas pelos interlocutores as 2221 CARIACÁ DE BAIXO Chegamos ao Cariacá de Baixo em um dia chuvoso Após percorrer um quilômetro e meio na rua principal que atravessa a VilaCentro avistei uma sucessão de casas separadas por pequenas cercas de arame Segundo os quilombolas o Cariacá de Baixo e o Cariacá de Cima foram povoados concomitantemente pelos ascendentes da Família Congo Durante certo período o Cariacá de Baixo possuía mais habitantes que a VilaCentro O processo de desertificação teve início quando os as primeiros as moradores as migraram para São Paulo em busca de melhores possibilidades de vida e como relatou D Isabel Vítor de Souza 65 anos aos poucos foram puxando os parentes que ficaram As famílias remanescentes se mudaram para o Cariacá de Cima restando apenas dez famílias em Cariacá de Baixo Em algumas residências habitam mais de uma família nuclear As casas são exíguas construídas em adobe e caiadas os pisos são de cimento queimado branco ou vermelho Em algumas casas o piso é de cimento grosso com algumas crateras em função do desgaste provocado pelo tempo Os telhados em madeira estão comprometidos Os as moradores as aguardam ansiosamente a construção de oito residências contempladas pelo projeto Minha Casa Minha Vida As casas possuem sala cozinha e dois quartos Os banheiros se localizam nas áreas externas Os cômodos são divididos por cortinas havendo apenas duas portas em cada residência a de entrada e a de saída da cozinha para o terreiro149 As portas são de madeira e tramela Não há escolas na localidade Os alunos estudam em Cariacá de Cima A energia elétrica foi instalada em 2004 A água não é encanada Há cisternas nos terreiros das residências Elas foram construídas em 2007 A água armazenada na cisterna é utilizada para o consumo humano para o banho e para as atividades de limpeza doméstica 149 Porção do quintal mais próxima à moradia O varandado da frente também é denominado terreiro 122 Imagem nº 07 Curso estreito do Rio da Prata que em períodos muito chuvosos reaparece em Cariacá de Baixo Fonte Acervo da pesquisadora Os as moradores as de Cariacá de Baixo são católicos e frequentam as missas quinzenais da localidade de Limões ou da VilaCentro de Cariacá Durante a Semana Santa rezam e cantam benditos em todas as casas e são convidados para entoar os benditos antigos na Vila com a qual mantêm relações muito próximas pois constituem uma só família Segundo D Isabel moradora mais idosa da localidade os habitantes de Cariacá de Cima são as ramas nova dos Congo véio Ela afirmou com certa melancolia que não sabe até quando o Cariacá de Baixo vai existir mas enquanto tiver Congo no mundo vai ter história pra contar complementou sorridente Atualmente nenhuma atividade cultural é praticada na localidade Os mais velhos evocam o período em que era encenada a brincadeira de reis150 para alegrar as noites do povoado 150 O Reisado aqui referido constituiu uma atividade praticada pelos residentes de Cariacá de Baixo Alguns brincantes do Reisado também integravam o tradicional Terno de Reis do Povoado de Cariacá 123 2222 A COMUNIDADE DE LIMÕES Durante o trajeto de três quilômetros da VilaCentro até a localidade de Limões não encontrei nenhum limoeiro que justificasse o topônimo do lugar Não obstante nas conversas realizadas com membros das vinte famílias residentes em Limões foi relatado que no passado havia muitos limoeiros em especial o pé de limão galego As casas de Limões foram construídas em um período recente pelos as filhos as dos habitantes mais antigos que constituíram famílias e permaneceram no local A grande maioria foi reformada pelos as moradores as Algumas casas pertencem aos retornados indivíduos que migraram para São Paulo e depois regressaram Eles dispõem de maior poder aquisitivo para investir nas residências e por vezes montar um bar ou uma pequena mercearia ao lado da casa Quase todas as construções se encontravam em fase de acabamento e apresentavam uma arquitetura praticamente uniforme alpendre sala ampla dois ou três quartos cozinha banheiro e uma pequena varanda com acesso ao terreiro Há um campo de futebol improvisado pelos as moradores as uma escola desativada e uma capela construída em homenagem a Nossa Senhora da Conceição Aparecida padroeira do grupo A capela é motivo de orgulho para os quilombolas Ela foi construída através do sistema de adjutório151 Os habitantes de Limões são católicos Segundo D Célia Marli Menezes Araújo 58 anos cujos pais nasceram e se criaram na localidade o maior sonho dos das moradores as era ver a capela edificada Eles relataram que embora todos as tenham participado da construção da capela a habilidade e persistência de D Ivone Gonçalves de Souza e o auxílio financeiro do padre Ramon foram fundamentais para a finalização da obra D Ivone relatou que durante uma das visitas mensais à localidade para celebrar a missa no antigo prédio escolar o padre Ramon indagou se eles haviam desistido de construir a igreja Os moradores destacaram a falta de recursos e o padre se propôs a ajudar financeiramente Ele também aconselhou D Ivone a pedir patrocínio do comércio bonfinense para a construção da capela Os homens constituíram a mão de obra e as mulheres forneceram a alimentação durante os trabalhos 151 Prática comum nas comunidades quilombolas e camponesas Consiste na união de todos as os as moradores as com o objetivo de arrecadar fundos para empreendimentos coletivos ou para auxiliar alguém que esteja enfrentando dificuldades 124 Imagem nº 08 Capela de Nossa Senhora Aparecida Fonte Acervo da pesquisadora A inauguração da capela de Nossa Senhora da Conceição Aparecida foi um dos dias mais importantes na história de Limões Além da população local compareceram ao evento parentes e amigos de todo o território quilombola A capela estava inicialmente destinada à invocação de Santo Antônio em respeito à devoção de Seu Galdino Pereira Brito fundador da localidade Todavia uma exmoradora argumentou que havia feito uma promessa de enviar para a localidade tão logo fosse construída uma igreja uma imagem de Nossa Senhora Aparecida trazida da cidade de Aparecida do Norte152 Assim Nossa Senhora da Conceição Aparecida foi consagrada padroeira celebrada em 12 de outubro e reverenciada durante o novenário tanto pelas famílias da localidade quanto pelos demais quilombolas de Cariacá As atividades culturais praticadas outrora foram sendo abandonadas à medida que os moradores responsáveis pela sua realização faleciam Os as habitantes mais velhos as 152 Nas comunidades rurais do sertão um compromisso feito em caráter de promessa constitui algo a ser respeitado sem questionamentos 125 relataram o reisado153 as brincadeiras do bumbameuboi e as tradicionais quadrilhas juninas Os brincantes de Limões costumavam alegrar as famílias de outras localidades do território quilombola Estreitar o contato com os quilombolas de Limões foi importante sobretudo para me auxiliar a compreender os elementos de pertença familiar e étnica que conformam a comunidade de Cariacá Quando eu percorria o território em companhia dos das interlocutores as ou sozinha visitando as casas os habitantes já sabiam que eu apareceria para conversar Em algumas localidades como Limões e Teiú os diálogos e entrevistas gravadas durante os trabalhos em campo eram assistidos por pessoas que queriam entender melhor a história de sua comunidade Em uma dessas reuniões D Ivone entoou uma das trovas utilizadas durante as encenações do bumbameuboi de Limões Alguns dos moradores as mais velhos não se recordavam da trova e os mais jovens não a conheciam transcrevo a seguir o pequeno fragmento cantado pela interlocutora que emocionou os presentes O boi dos Limões É feito de chitão Pega esse boi vaqueiro Oi oi oi Ivone Gonçalves de Souza 68 anos em 10022016 2223 A COMUNIDADE DE TEIÚ A localidade de Teiú se situa a dois quilômetros da VilaCentro e foi constituída por famílias oriundas dos Limões A família de Seu Eurides Pereira Brito 75 anos se mudou para a localidade quando o seu pai resolveu tocar roça no Teiú Seu Nem como é conhecido na localidade e D Ermínia Gonçalves de Souza 91 anos são os moradores mais antigos de Teiú 153 O Reisado era encenado em todo o território quilombola 126 Imagem nº 09 Lagoa da comunidade de Teiú Fonte Acervo da pesquisadora O meu primeiro acesso a essa localidade foi dificultado pelas fortes chuvas que caíam na região pois a lagoa que em épocas de estiagem seca havia transbordado impedindo os deslocamentos pela estrada rural alagada em diversos trechos Visitei o Teiú com D Ivone Fizemos o trajeto a pé atravessando roças e cercas de arame farpado D Ivone tem parentesco com quase todas as famílias do local e facilitou a minha entrada na área A localidade é assim denominada em função da existência de grande quantidade de um pequeno réptil conhecido no sertão como teiú ou tju A comunidade de Teiú ainda hoje é conhecida como um local propício à caça Durante a grande seca de 1932 a caça se tornou a principal fonte alimentar e de renda para os habitantes do lugar 127 Imagem nº 10 Acesso à localidade do Teiú com pontos de alagamento Fonte Acervo da pesquisadora O Teiú é constituído por uma vila de casas agrupadas em círculo onde residem quinze famílias Em quatro delas residem os filhos do Seu Nem Os as moradores as cultivam plantas conformando um jardim comunitário Além das casas de moradia dos quilombolas há cinco pequenas chácaras cuja extensão não excede dois hectares Seus proprietários não nasceram em Teiú adquiriram os lotes de terra dos das moradores as antigos ou de membros da localidade que migraram para a região sudeste do país Os donos das chácaras não residem na comunidade nem são agricultores São profissionais liberais que utilizam as chácaras nos finais de semana Até o momento em que estive em campo observei que eles mantêm relações amistosas com os quilombolas 128 Algumas casas das famílias quilombolas foram reformadas recentemente outras se encontram em fase de acabamento ou de construção São residências amplas com varandas algumas gradeadas sala dois ou três quartos cozinha e banheiro154 A infraestrutura da comunidade é constituída apenas pelas habitações e pelas roças dos as moradores as Eles cultivam feijão mandioca e verduras como tomate pimentão e mais esporadicamente maxixe e quiabo Os produtos agrícolas são em sua maioria consumidos pelas famílias do Teiú O excedente é comercializado em Cariacá de Cima e ou na feira livre da cidade de Senhor do Bonfim Não há escolas nem capelas Os as moradores as frequentam as missas em Limões e em Cariacá de Cima Após a missa visitam parentes e compadres nessas localidades Os moradores de Teiú são católicos e devotos de Nossa Senhora da Conceição a quem invocam como padroeira do lugar Em todas as casas que visitei as estantes das salas constituíam altares para os santos As imagens sacras de Nossa Senhora da Conceição Santa Luzia São Jorge e a Sagrada Família geralmente são colocadas sobre pequenas toalhas de tecido Essa é uma forma de expressar reverência Em Teiú eram realizados o reisado e a brincadeira denominada Careteiros D Ermínia Gonçalves de Souza 91 anos relatou que embora nunca se tenha comemorado o carnaval na comunidade durante o período os as moradores as costumavam se fantasiar de careteiros e percorrer as localidades do território quilombola divertindo os seus habitantes 2224 A COMUNIDADE DE CRUZEIRO Para acessar o Cruzeiro é necessário retornar à BR 407 e atravessar a comunidade de Passagem Velha Algumas crianças e adolescentes de Cruzeiro estudam na escola da Passagem Velha em virtude da maior proximidade de suas residências Fui ao Cruzeiro pela primeira vez com Valmir dos Santos e sua família Fizemos a maior parte do percurso de carro Após atravessar a Rodovia Federal Lomanto Júnior adentramos em uma estrada rural de chão batido e percorremos cerca de dois quilômetros 154 Em Teiú todas as residências possuem banheiros 129 Imagem nº 11 Estrada de acesso à comunidade de Cruzeiro Fonte Acervo da pesquisadora O Cruzeiro inicia ao longo de uma pequena ladeira de terra onde se localizam três habitações antigas constituídas em adobe e que no passado foram ocupadas por membros da Família Congo Como acreditei que as casas estivessem desabitadas comecei a fotografálas espontaneamente mas fui surpreendida pela indagação do morador de uma das casas como não é ignorado perguntar a moça tá tirando foto por que Me aproximei e percebi também a presença de uma mulher sentada Sorri acanhadamente pedi um pouco de água e enquanto esperava sentei na soleira da porta Eu estava sozinha pois Valmir e sua família se encontravam a alguns metros de distância entretidos com os frutos de um pé de umbuzeiro155 155 Não se tratava de uma família quilombola mas de pessoas que por não possuírem moradia haviam se instalado na casa Posteriormente fui informada que os quilombolas não sabiam que a casa havia sido ocupada 130 Imagem nº 12 Casa que pertenceu a uma Família Congo Fonte Acervo da pesquisadora Alguns metros após as casas dos Congos há uma placa com a inscrição Recanto da Paz Tratase de um cemitério constituído por pequenas carneiras Segundo Valmir o Recanto da Paz é um dos locais mais antigos da comunidade Aí estão sepultados as os as recémnascidos as que faleceram antes de completar dois anos156 Os adultos que falecem em Cruzeiro são sepultados na Passagem Velha ou na comunidade de Cazumba Há um imenso cruzeiro de madeira na localidade as casas são dispersas e seguem o curso da estrada formando um pequeno povoado que se expande em direção ao interior Existem algumas construções antigas de adobe e outras mais recentes em fase de acabamento Ao contrário do que se observa nas outras localidades do território quilombola em Cruzeiro as casas são em sua maioria divididas por cercas de arame ou por pequenos muros Os quilombolas de Cruzeiro organizaram a sua própria associação e 156 Os anciãos relataram que esse costume antigo em relação às crianças constitui uma atitude de respeito pois a maioria desses seres inocentes ou anjos faleceu pagã isto é sem receber o sacramento do batismo cristão 131 se desfiliaram da AQCA157 Constituída por trinta famílias Cruzeiro é a maior localidade do território quilombola Algumas famílias são oriundas da VilaCentro e outras naturais do lugar Há diversidade de credos religiosos em Cruzeiro pois existem moradores católicos adventistas do sétimo dia e cristãos do Brasil Não obstante na localidade há apenas a sede da igreja Cristã do Brasil Os fiéis das demais denominações se reúnem para celebrar as suas práticas na sede da associação nas casas dos religiosos na localidade de Passagem Velha e na cidade de Senhor do Bonfim Em relação aos aspectos culturais os interlocutores as declararam que no passado seus ancestrais encenavam o reisado Após haver procurado descrever alguns entre os principais caracteres políticos econômicos sociais e culturais observados e narrados pelos interlocutores as desta tese ao longo do território de Cariacá Mantendo o cuidado de demonstrar como essas comunidades interagem desde o passado histórico até as relações que cultivam nos dias contemporâneos No capítulo subsequente me proponho a apresentar ao leitor a a Família Congo suas estratégias e resistências para permanecer e se movimentar no território em que habitam esclarecendo por que se declaram um grupo quilombola e as ressignificações que estabeleceram e permanecem estabelecendo em seu processo de construção identitária 157 A desfiliação da AQCA não foi resultante de conflitos internos mas atendeu segundo os moradores as do Cruzeiro à busca por autonomia 132 CAPÍTULO 3 AQUI É TUDO CONGO QUILOMBOLA A proliferação das alianças parentais conduz de modo geral à formação de uma identidade mais abrangente a comunidade O transcorrer das gerações em convívio produz um efeito gregário o que fornece a amálgama é a existência de antepassados comuns e de símbolos e crenças frequentemente aprendidos desses antepassados que também são partilhados pela maioria dos membros da comunidade ENGEMANN 2005 p 182 Imagem nº 13 Curso de Formação para Lideranças Quilombolas Fonte Acervo da pesquisadora 133 À medida que estreitei contato com os moradores as de Cariacá observei uma característica singular no grupo sobre a autoafirmação bem como sobre as formas de ser e de se pensar como quilombola A autoafirmação não se fundamentava apenas na epiderme negra ou em um mito fundador de um ancestral em fuga do contexto escravocrata Ao invés disso estava associada à convicção de serem Congos quilombolas isto é membros da Família Congo158 Desde a primeira fase da pesquisa de campo e por todo o período subsequente busquei entender o que significava a expressão frequentemente enunciada pelos interlocutores as quando argumentavam aqui é tudo Congo quilombola Os membros da Família Congo eram tradicionalmente percebidos como pessoas distintas nas localidades que atualmente constituem o território quilombola Essa distinção se ancora no fato de se afirmarem como as ramas provenientes de um mesmo tronco velho159 São atores sociais negros e afrodescendentes muito ciosos da sua unidade parental Para ser classificado a como Congo é necessário compartilhar o sangue ou em caso de matrimônios com sujeitos da Família Congo passar por um rito de aceitação interna capaz de legitimar o pertencimento Não há um código escrito que regulamente esse princípio mas um conjunto de regras e atitudes que deverão ser observados por parte dos as que buscam se integrar à família A primeira regra é aceitar e defender em qualquer circunstância a família assimilando os fatores positivos e estigmas que constituem a identidade Congo A segunda regra é ser solidário e enfrentar as adversidades O terceiro princípio desse código moral invisível é preservar os assuntos que concernem apenas à família Esse conjunto de valores ou codificação simbólica é o mecanismo que assegura a preservação da identidade da Família Congo até os dias atuais De acordo com as memórias orais seus ancestrais vieram do Recongo de Santo Amaro160 Entre os sujeitos mais velhos as unicamente D Elvira e Seu Agripino 158 A compreensão de ser Congo se manifestou em perspectiva individual e também coletiva A expressão Família Congo se refere a uma designação reivindicada por todos os atores sociais que se declaram quilombolas Informo ao leitor a que opto pela escrita maiúscula da expressão Família Congo por haver observado que se trata de um conceito para os membros do grupo 159 Congo não é sobrenome mas a autodesignação de um grupo familiar ampliado 160 As pessoas mais velhas do grupo utilizaram o vocábulo Recongo ao invés de Recôncavo Essa informação apareceu ainda durante a primeira etapa da pesquisa e ficou melhor compreendida após o curso de Formação para Lideranças Quilombolas até então as gerações mais jovens desconheciam esse fator e os mais velhos as quando perguntados as restringiamse a falar que seus pais tinham vindo do Cariri A revelação a respeito da origem dos ancestrais da Família Congo apareceu com certa dificuldade a 134 aceitaram narrar essa informação durante a entrevista gravada Transcrevo portanto o que foi dito pela interlocutora considerando a minuciosidade de detalhes relatados Eu vejo falar desse negócio de Congo aí eu perguntava mamãe esse negócio de Congo de onde veio Ela dizia assim minha avó falava que a gente veio do Recongo de Santo Amaro Aí dizia que não tinha casa aqui que era uns pé de pau aí dizia que cortava a palha aí cortava os pau fazia aquele ranchinho fazia e aí ficava Minha mãe criou a gente dentro de uma casa de palha Ela dizia que era Congo Então eu sou não é Que tô na famia Então eu esmiunçava mais e de onde veio esses Congo Ela respondia Ah Você quer saber demais vá cuidar de sua esteira Isso era de noite Aí ela dizia eu nasci aqui mas minha avó e meu avô veio de lá do Recongo de Santo Amaro aí eu dizia vixeMaria Que nome feio Eu que falava Aí ela dizia é dos Congo Congo Por isso é que eu digo que é Congo né Sou Congo com orgulho O Valmir quando veio aqui eu tava sentada no prédio e aí à associação era ali Aí ele apareceu lá e perguntou venha cá minha tia me diga onde é a associação Aí eu não sabia quem era mas eu fiquei observando Aí ele ficou perguntando e eu falando Perguntou quem era parente aí eu falando aí então ele falou então eu tô no meio da minha famia dos Congo Aí muitos misturaram com os de Tijuaçu misturou o sobrenome Eu não tinha pra onde esconder que eu tenho parente em Tijuaçu na Lajinha no Derrubado Se eu sou Congo eu vou dizer que não é Minha mãe era dos Congo né Elvira Gomes Damasceno 80 anos em 10092015 princípio cogitei a possiblidade do desconhecimento porém quando o ethos do silêncio foi quebrado por D Elvira em uma situação em que o gravador já se encontrava desligado outros sujeitos mais velhos confirmaram essa afirmação Através dessa experiência compreendi melhor o significado da expressão coisa de Congo pois constatei que os anciãos sabiam dessa informação apenas a preservavam entre si Comentei esse episódio com o senhor Valmir solicitando que ele emitisse uma opinião a respeito o colaborador sorriu e arrematou eu lhe disse que eles eram assim fechados por causa do sofrimento mas se tiver paciência vai descobrir mais coisas Permaneci em atitude de vigilância epistemológica a procura de mais coisas Comecei a perceber que os membros da Família Congo quando resolvem falar não o fazem em única vez mas vão se pronunciando aos poucos sobre o mesmo assunto Os Congos mantiveram o hábito de conversar melhor quando a entrevista terminava e o gravador era colocado na bolsa observei que não gostavam do aparelho e que conseguiria melhores dados em sua ausência Desse modo a participação observante e a conversa informal foram instrumentos mais significativos entre os quilombolas de Cariacá que a entrevista gravada Informo ao leitor a que nunca estabeleci qualquer diálogo com o gravador ligado dentro da bolsa e sem o consentimento prévio dos interlocutores as além de considerar essa uma atitude desprovida de ética adotei esse comportamento em respeito à confiança demonstrada pelos mesmos as 135 Outro elemento significativo no relato de D Elvira é o parentesco estabelecido no passado com os quilombolas de Tijuaçu Além dos laços firmados pelos casamentos existe uma ligação que remonta ao tempo da escravidão e que foi enfatizada pelos anciãos quando disseram muitos escravos fugiram do Tijuaçu para Cariacá Essa fuga talvez tenha sido realizada pela estrada dos indígenas ou estrada velha Como já observado muitos moradores as de Tijuaçu ainda a utilizam para ir até Cariacá161 Os membros da Família Congo se distribuem do seguinte modo no território quilombola de Cariacá os Dias162 apontados como o núcleo fundador do qual descendem os primeiros Congos que chegaram em Cariacá reivindicam o povoamento da comunidade os Gomes cujas famílias residem na VilaCentro e nas localidades os Nascimento cujas famílias se concentram na VilaCentro e os Damasceno e Santos constituídos por famílias que migraram de Tijuaçu para Cariacá163 No cotidiano cada família de Cariacá se dedica às suas próprias atividades Mas a comunicação entre os núcleos familiares é constante e se manifesta em diversas situações como por exemplo na divisão de gêneros alimentícios principalmente carnes de peixes e bode164 comercializadas no território e compartilhadas pela família ampliada Os laços de solidariedade que perpassam Cariacá possibilitam que os quilombolas que não possuem geladeira levem a mistura para ser armazenada na casa de outrem A solidariedade também predomina quando é necessário servir o parente Em caso de doenças prolongadas um parente solteiro se hospeda na casa do paciente para lhe prestar cuidados A criação das crianças é compartilhada pelas mulheres da família Entre os Congos as famílias nucleares não são numerosas Os casais idosos possuem no máximo dez filhos165 e os mais jovens não costumam ter mais de quatro Os as filhos 161Daí por que argumento nesta tese a respeito do povoamento pretérito dos chamados sertões de caatinga alta por sujeitos quilombolas e etnias indígenas Assim como de sua capacidade para se metamorfosear integrandose à população sertaneja pois em toda região de Senhor do Bonfim há limites territoriais como a Estrada dos Indígenas em Tijuaçu o túnel e a serra da Pedra da Baleia em Missão do Sahy que podem ser pensados como raios culturais percorridos por esses povos 162 Com o menor número de famílias 163 Na comunidade remanescente de quilombo de Tijuaçu também se verifica a presença dos Damasceno e dos Santos entre os núcleos familiares existentes 164 Uma parcela significativa dos membros do sexo masculino da família Congo sobrevive da pesca realizada no rio que atravessa a comunidade Os bodes são abatidos em Cariacá o que facilita o seu consumo pelos moradores locais 165 Exceto quando há mais de um casamento geralmente motivado pelo falecimento de um dos cônjuges 136 as mesmo quando possuem residências próprias costumam passar o dia na casa dos pais onde realizam as refeições Essa permanência cotidiana nas casas dos das genitores as segundo D Maria José é um sinal de respeito aos pais a continuação da semente da gente é o nosso sangue né E não dá pra deixar à toa Seu Eurídes se refere aos netos como os Conguinho que vão manobrar a famía daqui pra frente já que os Congo véio tão ficando cansado Notase assim o cuidado de estimular entre as gerações mais jovens a convivência com a família ampliada As ações das crianças passíveis de elogio ou repreensão são interpretadas como sinais de pertença esse a é dos Congo mesmo Em Cariacá as primeiras gerações ocuparam inicialmente o local conhecido como Morro dos Congos166 e aos poucos foram se espalhando livremente pelo território Após a chegada da família Muricy que reivindicou a propriedade das terras da fazenda Cariacá se iniciou um período conturbado de conflitos e disputas motivadas por questões étnicas e territoriais Os membros da família Muricy são considerados pelos quilombolas como antagonistas Durante as pesquisas de campo as disputas sobre as terras estavam arrefecidas em Cariacá167 O território quilombola permanecia invadido por fazendeiros e proprietários das pequenas chácaras mencionadas anteriormente mas todos podiam circular livremente Os quilombolas aguardavam o processo de regularização fundiária do território No passado os membros das famílias Congo e Muricy não partilhavam os espaços Assim foi estabelecida uma divisão do território A delimitação foi realizada pelo sogro de D Trindade capitão Belizário Se valendo da patente militar ele elegeu a linha férrea como marco da divisão territorial À época os Muricy contratavam jagunços armados para monitorar os seus espaços Esses quilombolas sertanejos relataram que mesmo nos dias de feira não podiam ultrapassar os limites da estrada de ferro A situação era mais confortável para os Muricy pois os seus espaços dispunham de iluminação pública168 e a família tinha 166 O Morro dos Congos foi apropriado pela fazenda Picada 167 Como já destacado a migração de membros da Família Congo durante a seca de 1932 ensejou a invasão do território Quando retornaram a Cariacá suas terras estavam ocupadas e registradas em cartório por membros da família Muricy e de outras famílias Um desses invasores foi o senhor Antônio Félix que também se apropriou de terras pertencentes aos quilombolas de Tijuaçu Seu José Preto enfatizou que Antônio Félix e a senhora Trindade Muricy eram considerados o reis e a rainha de terra desse lugar 168 Os três lampiões instalados em pontos específicos da comunidade beneficiavam apenas a família Muricy e o Sr Ermelino ou mestre autor do projeto de iluminação da comunidade De acordo com Seu José Preto os lampiões eram ligados por Antônio Figura às 19h00 e desligados às 21h00 137 acesso à feira livre169 Em muitas situações a divisão de limites imposta pelos Muricy não era respeitada pelos membros da Família Congo constrangidos por não poderem se deslocar livremente em seu próprio território usurpado por invasores O pai de Seu José Preto era casado com uma mulher da Família Congo e trabalhou durante quase toda a sua vida para a família Muricy Quando adulto Seu José Preto se casou com uma sobrinha de D Trindade Muricy mas por ser um homem negro e pobre não foi incorporado à família Embora ele tenha sucedido o pai nos serviços prestados à família Muricy nutria um sentimento de revolta por não ter sido aceito como parente José Preto relatou que certa feita Antônio Julião Dias conhecido na comunidade como Antônio Congo pai dos irmãos que adquiriram a Fazenda Cariacá entrou no espaço onde era realizada a feira livre A morada deles Congo era tudo do lado de lá da linha Dentro do Cariacá eles não podia entrar não Foi quando esse capitão Belizário deu pra cá a feirona aí o pai desses Congo véio chamava Antonio Congo um dia ele entrou pra lá Aí ele tá aí dentro da feira e o Belizário aí cismou e aí a madeira deitou lá E aí deitaram o pau aí o pai e o fio que chamava Mané Coxo Ele botou o Mané Coxo e aí atravessou a linha pro lado de cá quando ele atravessou a linha ele disse pula pro lado de cá Belizário sem vergonho Esses Congo eles não era mole não e aí se acabaram era tio com sobrinho era irmão com irmão que esses Congo era tudo perigoso viu Agora eu não sei por que eles brigavam tanto José Pedro dos Santos 104 anos em 23092015 A ida de Antônio Congo à feira incitou à ira do capitão Belizário e é relatado frequentemente com orgulho pelos Congos como um ato de resistência de seus ancestrais o dia da derrota do capitão Belizário o primeiro passo para recuperar o direito de se movimentar livremente no território O segundo ato que contribuiu para a desonra do capitão Belizário foi articulado por duas irmãs Congo Maria Cajuí e Maria Bertulina que 169 As feiras livres realizadas nas comunidades e pequenas cidades do interior constituem um importante espaço de socialização e de realização de atividades comerciais O dia da feira é o mais importante da semana Portanto privar os membros da Família Congo de participar das feiras é uma violência física e simbólica que ademais acarreta prejuízos econômicos 138 entraram em luta corporal com Belizário para assegurar o direito de circular em todo o território Assim narrou Seu José Preto O capitão Belizário com esses Congo aí era um bacafum do diabo Tinha uma loja um armazém eu conheci No dia de domingo tinha uma feira aqui no Cariacá Era a coisa mais linda do mundo Ele capitão Belizário mais os Congo não se dava bem Dia de domingo era uma briga um tiroteio que nessa época da linha pra saltar a linha pra entrar ali dentro esses Congo não entrava não Era daí por aqui Era um tiroteio O pau quebrava deles aí Teve um tiroteio deles aí e quem tirou a valentia do capitão Belizário aqui chamava Maria ela era tia dessas menina o interlocutor se refere à senhora Anáide que estava me acompanhando chamava Maria Cajuí Ele topou Ela deitou o pau e caiu pra cima dele debaixo de um pé de juazeiro Duas muié ela e a irmã Maria Bertulina Elas não mataram ele por causa de um jagunço que chamava Didal que socou o pau nelas E o Belizário Foi disso que ele se acabou não foi mais homem pra nada E o Belizário era sogro da finada Trindade Belizário José Pedro dos Santos 104 anos em 20082015 A memória dos mais velhos constitui o principal recurso utilizado para construir a narrativa sobre o passado da comunidade de Cariacá Como destacou Dante170 1992 o entrevistado relata as suas experiências subjetivas sobre fatos vivenciados ou escutados razão pela qual muitos fenômenos históricos são produzidos com base na oralidade Na perspectiva de Ecléia Bosi 1994 no caso do ancião a função da memória é o conhecimento do passado que se organiza ordenando o tempo situando cronologicamente os fatos O passado revelado funciona não exatamente como antecedente do presente mas representa a sua própria fonte O ancião quando rememora não sonha desempenha uma função para a qual está maduro de ligar o começo ao fim tranquilizando as águas revoltas do presente e alargando as suas margens 170 DANTE M Claramonte Gallian Pedaços da Guerra experiências com História Oral de Vidas de Tobarrenhos 1992 Dissertação Mestrado Departamento de História Universidade de São Paulo São Paulo 1992 139 Se os conflitos territoriais relatados pelos mais velhos estão adormecidos o mesmo não ocorre com os conflitos étnicos que permanecem velados até que alguma situação discriminatória os reativa cimentando o racismo e cristalizando as hostilidades declaradas Os membros da Família Congo ainda são apontados como negros cachaceiros negros que não valem nada Esse estigma inicialmente difundido pela família Muricy é atualmente velado O não dito é traduzido em atitudes de preconceito que embora com menor intensidade persistem nas instituições religiosas na escola nos casamentos interraciais e principalmente em diversas situações cotidianas Embora a participação das famílias que residem na VilaCentro nos festejos religiosos dedicados à Santa Rita de Cássia171 tenha se ampliado poucos membros da Família Congo comparecem ocupando cargos e ou posições de destaque Segundo D Elvira essa relativa ausência é um resquício do passado quando Congos e Muricys se recusavam a compartilhar o novenário e demais celebrações O pároco de Cariacá instituíra uma noite para que os membros da Família Congo pudessem prestar homenagem à padroeira da comunidade Era a noite dos leites afirmou D Luci A pirraça racista aqui evidenciada converteuse em necessidade de superação Segundo os relatos de mulheres da Família Congo a celebração na noite dos leites era realizada com primor a família se esforçava para demonstrar a sua maestria na organização dos festejos As meninas da Família Congo que integram o Quilombart e estudavam na escola de Cariacá declararam que devido ao preconceito intensificado pelo corpo docente e pela direção após fundarem um grupo cultural se transferiram para escolas públicas de Senhor do Bonfim Os casamentos que ocorrem à margem da pertença familiar sobretudo com cônjuges que se identificam como não negros ou são tidos como forasteiros geralmente provocam desavenças que tendem a perdurar por mais de uma geração principalmente quando envolvem membros das famílias Congo e Muricy Já os casamentos entre Congos e Tobodi são menos hostilizados Entre os mais jovens há mais receptividade para acolher as escolhas dos cônjuges Os anciãos contudo não avalizam certas escolhas que reputam como insensatas realizadas pelos mais jovens Seu Epifânio Ferreira Damasceno relatou as desavenças que resultam dessas uniões exemplificando com o seu próprio casamento 171 A religiosidade exercida pelo grupo será abordada com mais propriedade no Capítulo sete 140 Bom o que eu penso é realmente o que tá escrito por que aqui não existe branco só existe negro E esses negro vieram de um quilombo agora de que quilombo eu não sei informar Porque se for olhar desses Congo da parte de meu avô e de minha avó todo mundo é quilombola Porque meu sangue é de negro é de preto mesmo por que meu pai era negão só minha mãe que era clara mas ela veio de lá do Lagarto Tijuaçu também Eu tenho orgulho de ser quilombola porque acabou mais esse preconceito e melhorou muito né Que preconceito até hoje ainda tem de uma famia não querer que os branco case com os negro com uns mais claro que aqui não tem branco só tem uns misturado com os outros mas branco mesmo aqui não tem Eu vi falar que aqui antigamente quem mandava era os Muricy e o povo do coronel Antonio Félix então até o chapéu deles não podia ninguém comprar igual o deles então só era pra ter aqueles chapéu eles mesmo Realmente essa famia da véia Trindade era dos Muricy a famia dos Muricy toda Antonio Félix nem se fala que não mora mais aqui já foram embora A famia maior daqui são a famia dos nego e tinha essas também aqui que eram grande Aqui acolá tem um preconceito diz nego cachaceiro famia de negro não dá certo Eu mesmo a famia da minha muié é famia de gente fraco igualmente a mim mas até hoje tem o preconceito Eu fui na casa do meu sogro duas vezes por que não tinha como não tinha apoio Duas vezes durante quarenta anos de casado só porque a famia inteira é uma famia de gente mais claro tal e coisa Então tinha esse preconceito né Namorei cinco anos com ela nunca pisei na porta que ele não deixava Pra me casar foi obrigado carregar pra depois casar Preconceito então Começa por aí Ele é da famia dos Tobodi eu conheço eles aí Agora de onde chegaram eu não sei Epifânio Ferreira Damasceno 69 anos em 10092015 A família Tobodi chegou em Cariacá após a família Muricy Os seus membros residem principalmente nas localidades de Morrinhos e VilaCentro Alguns se definem como descendentes de alemães Muitos dizem que possuem olhos azuis Antigamente se notabilizaram como sapateiros A superioridade que ainda reivindicam está fundamentada na cor da epiderme pois se afirmam como brancos e estabelecem relações mais próximas com os Muricy Do ponto de vista econômico são pobres e talvez por isso alguns Tobodi tenham se casado com membros da Família Congo As uniões ocorrem preferencialmente entre homens da família Tobodi e mulheres da Família Congo 141 Os membros da Família Congo além de tradicionalmente identificados como de ancestralidade africana172 eram alvos de estereótipos racistas considerados inferiores e excluídos Atualmente os Congos reivindicam a identidade quilombola Ser Congo é ser negro e membro de um grupo familiar específico Para os habitantes de Cariacá ser Congo condensa as noções de parentesco negritude e identidade Os Congos se fortaleceram na luta quilombola Os seus membros ressignificaram a condição marginal à qual haviam sido relegados passando de uma condição subalterna a líderes Congo negro a e quilombola 31 MULHER CONGO É MULHER QUE TEM BIGODE Aqui a gente era assim uns analfabetos sabia ler mas era ao mesmo tempo uns analfabetos porque não sabia da existência dessa lei Não sabia como usar Rosângela Gomes de Oliveira 48 anos em 25112015 Conversei pela primeira vez com as mulheres de Cariacá em janeiro de 2014 Durante um final de tarde sentada na varanda da casa de D Anaide Anária Nascimento então minha anfitriã quando escutei um comentário seguido de um prolongado silêncio interrompido quando Vinícius filho de D Anaide caiu de um cavalo de pau atraindo a atenção das mulheres que acorreram para verificar se o garoto havia se machucado As mulheres estavam curiosas sobre mim mas eu agi de modo cauteloso Sabia que estava sendo atentamente observada embora me sentisse confortável por ser comadre de Valmir dos Santos Em meio aos risos que permearam esses diálogos femininos despertando a atenção de alguns homens que retornavam de suas atividades de trabalho D Luci mencionou de modo descontraído que as mulheres Congo não gostam de casar Esse comentário inesperado desconcertou as mulheres que participavam da conversa 172 Vivaldo da Costa Lima afirma que uma das etimologias sugeridas para candomblé é precisamente dança de negros E certamente de negros de Angola ou do Congo dada à morfologia da palavra p 67 Luis Nicolau Parés por seu turno afirma que a nação angola também inclui a congo p 182 142 Retornei a Cariacá mais duas vezes em 2014 e iniciei os trabalhos de campo logo após a aprovação no processo seletivo do Doutorado antes de cumprir os créditos teóricos Já possuía amigos em Cariacá e em Tijuaçu e os visitava com frequência D Anaide e sua mãe D Maria José foram as minhas principais interlocutoras em Cariacá Durante as duas primeiras semanas da pesquisa elas se revezaram em me acompanhar nas andanças pela comunidade e me auxiliaram a explicar os objetivos da pesquisa em Cariacá em especial aos mais idosos173 Além disso intermediaram as aproximações com as mulheres Recebi esse cuidado com muito afeto e agradecimento Durante as visitas Dona Maria adiantava ela é comadre do Valmir e veio estudar a gente igual lá no Tijuaçu Essa apresentação quebrava as barreiras do distanciamento e encurtava o acesso à comunicação174 O comentário enigmático de D Luci durante o meu primeiro encontro informal com as mulheres de Cariacá me inquietara No entanto como mulher sertaneja residente no mesmo contexto regional não me são desconhecidas certas características das mulheres congos que demonstram pouca aptidão para o casamento Avaliei não ser prudente abordar o assunto de modo direto pois poderia suscitar constrangimentos Valmir já me advertira sobre a natureza fechada das mulheres da Família Congo elas são muito fechadas tenha cuidado com tudo que for perguntar Em uma tarde eu estava com D Rosângela Gomes de Oliveira conhecida como Ninha Ela relatava episódios de sua infância de trabalho na lavoura ao lado dos pais quando declarou Ah Paula mulher congo é mulher que tem bigode Após essa afirmação enérgica indaguei se era por isso que algumas mulheres decidiam permanecer solteiras Ninha175 sorriu e retrucou que ela e muitas outras mulheres da comunidade priorizam a independência financeira pois não pretendem ser dominadas a vida toda176 Nesse contexto ter bigode não remete a um traço fisionômico de boa parte das mulheres da 173 Em 2014 os anciãos vivenciaram pela primeira vez a experiência de ser entrevistados Essa situação causava estranheza em alguns e fomentava a autoestima em outros 174 Quando os adultos não podiam me acompanhar recomendavam a crianças e adolescentes que andassem comigo Interpretei esse gesto como sinônimo de amizade e de cuidado pois apenas se cuida de quem se estima 175 Ninha é uma das muitas mulheres da Família Congo que não optou pelo casamento Mora sozinha e investiu em autonomia incentivando as suas quatro sobrinhas a fazerem o mesmo A presença no contexto investigado de mulheres fortes e economicamente independentes parece afigurarse tão inusual que aquelas que se sabem fortes e querem sêlo lançam mão de um estereótipo mulher congo é mulher que tem bigode e radicalizam o comportamento através do celibato 176 Essa expressão é utilizada para caracterizar as mulheres consideradas passivas 143 Família Congo que de fato cultivam um bigode ralo na face mas à recusa de assumir uma postura apática ocupando apenas os espaços delegados por outrem Além de contestar o casamento naturalizado nas comunidades rurais sertanejas como único futuro possível as mulheres da Família Congo são protagonistas enfrentando as labutas diárias e desempenhando tarefas diversas em casa na roça no comércio informal ou em pequenos estabelecimentos comerciais instalados nas salas de suas residências São agricultoras artesãs lavadeiras costureiras professoras técnicas em enfermagem trabalham como empregadas domésticas e cuidadoras de idosos em Senhor do Bonfim São essas mulheres que com suas atividades movimentam em grande parte a economia do grupo As mulheres solteiras são geralmente arrimos de família177 Quando se casam e têm filhos associam as tarefas domésticas a um trabalho que lhes assegure autonomia financeira A grande maioria se insere no comércio informal vendendo roupas sandálias artigos para cama mesa banho ou se tornam representantes de cosméticos Elas se definem como sacoleiras De fato algumas delas vão de porta em porta oferecendo as suas mercadorias outras também disponibilizam as suas mercadorias em uma prateleira na sala ou em outro cômodo da casa Adquirem geralmente os produtos em Tobias Barreto e Caruaru para onde se deslocam a cada dois ou três meses para repor os estoques e diversificar as mercadorias Às vezes aos sábados e nos períodos festivos principalmente no mês de junho e no final de ano as mulheres montam barracas na feira livre de Senhor do Bonfim São auxiliadas por filhos as e netos as Furtado apud Miranda 2009 p 82 destacou a relevância das atividades comerciais das mulheres negras desde o final do período escravocrata O comércio exercido pelas mulheres negras livres e libertas dava uma certa autonomia Muitas vezes com o dinheiro adquirido com a venda de seus quitutes compravam a alforria de seus filhos ou de algum parente Algumas negras transformaramse em exímias comerciantes inseriramse em associações de brancos e ocupavam cargos administrativos nas mesas diretoras das confrarias Tal posição demonstrava importância social e mesmo quando entre iguais demonstrava ascendência no seio da comunidade 177 Ao progredir economicamente elas atendem às necessidades da família de modo especial das crianças e adolescentes já que os idosos recebem a aposentadoria 144 A busca pela independência econômica propicia a essas mulheres uma ascensão e valorização interna tanto no âmbito doméstico quanto no da família ampliada e da comunidade Acompanhando o cotidiano das mulheres da Família Congo percebi que ter bigode não se refere apenas ao estado civil se relaciona também à forma como organizam as suas vidas Elas protagonizam histórias que transparecem nas narrativas nos silêncios e nas pausas que intercalam as falas A ênfase na força da palavra178 se ancora na determinação para se colocar diante da vida construindo caminhos que se contrapõem à patrilinearidade local e regional A sua palavra é criadora de vida e revestida de significados trabalhados nas posturas assumidas nas diversas circunstâncias que permeiam as suas labutas Nas narrativas elas evocam a vida Na próxima seção descrevo as trajetórias de algumas mulheres da Família Congo os diversos papéis assumidos como mãe e provedora do lar e os caminhos percorridos no concorrido mercado de trabalho A intenção é evidenciar porque mulher congo é mulher que tem bigode Selecionei mulheres empenhadas em contribuir para o crescimento coletivo que demonstram um compromisso com o seu contexto e exercem de maneira prática o que o educador Paulo Freire 1967 no estudo Educação como Prática da Liberdade179 denominou de ação das consciências críticas para a transformação de suas realidades considerando que a consciência se constitui com o mundo e não separadamente 311 ARMADORA DE JUDAS E ARTICULADORA DA LUTA QUILOMBOLA ROSÂNGELA GOMES DE OLIVEIRA Retratada por D Luci como uma Congo legítima Rosângela Gomes de Oliveira poucas vezes se afastou da comunidade e quando o fez foi para cuidar da saúde minha vida tá nesse Cariacá eu não sei ficar muito tempo longe daqui parece que longe da terra da gente o coração se entristece Filha de Rosa Gomes de Oliveira e de Januário Batista de Oliveira Ninha relatou ter herdado dos pais o gosto pelo trabalho com a terra e os cuidados com a família pois seu pai lhe dizia que os filhos são como sementes das quais se precisa 178 Conforme destacado no Capítulo 1 179 FREIRE Paulo Educação como Prática da Liberdade Rio de Janeiro Paz e Terra 1967 145 cuidar para ver germinar Como não teve filhos Ninha canalizou todo o zelo para a educação das sobrinhas e do sobrinhoneto Desde que se aposentou por motivo de doença180 ela deixou de ser agricultora embora tenha saudades do tempo em que trabalhava na lavoura ao lado dos pais Essa foi uma das etapas mais significativas de sua vida relatou Era uma vida sofrida pela época que eu vejo agora né Mas era feliz Era uma família assim tudo carente assim se podia ter alguma coisa alguém grande não deixava ter né Porque era preto e preto tinha que ser assim pobre sempre Era uma família assim que trabalhava Eu sempre trabalhei na roça trabalhei em roça que era de parente Então a gente ia pra lá plantar mamona e colher milho Rosângela Gomes de Oliveira 48 anos em 25112015 Ninha trabalhou com os pais em terras de outros parentes e desse período recordase com alegria Também trabalhou em roças de terceiros de gente de fora e nessa época se sentia explorada e em desamparo Eu trabalhava assim Paula me sentindo tipo uns escravo porque eu tava dando meu suor aos outros pra receber uma merrequinha suspiro e pausa Meu valor acabava com o trabalho que ia embora Pra os parente da gente é diferente Trabalhar pros outro é abrir o terreno da gente pro outro e quando o outro chega é porque os da gente vai embora Rosângela Gomes de Oliveira 48 anos em 16012018 Impossibilitada de trabalhar na agricultura Ninha relatou o processo de expropriação do território enquanto cuidava de algumas plantas cultivadas em seu vasto quintal que se estende de uma extremidade à outra da rua Ela descreveu a chegada das famílias de fora denominados pelos quilombolas de chegantes ou gente de fora Para os chegantes 180 Em decorrência de uma enfermidade adquirida na infância uma fratura na perna cuidada tardiamente aos 33 anos por intermédio de uma freira que se encontrava em Cariacá realizando um trabalho missionário 146 a terra e as pessoas possuem apenas um valor utilitário A preocupação com o coletivo ganhou contornos mais profundos na vida de Ninha após a criação do Barulho do quilombo181 Ela começou a organizar atividades políticas internas estimulando a conscientização da comunidade Ninha é atualmente uma das pessoas mais respeitadas em Cariacá Ela organizava os festejos de queimar o Judas durante o Sábado de Aleluia confeccionava o boneco e colocava as bombas nos pontos estratégicos Essa habilidade lhe rendeu fama tanto em Cariacá quanto em outros povoados da região e ela se tornou muito procurada para armar o judas em diversas localidades A composição do Judas envolvia a participação de crianças e adolescentes que auxiliavam colhendo o capim que seria utilizado para preencher a roupa do personagem O professor Olívio membro muito querido da Família Congo já falecido elaborava o testamento que antecedia a queima do boneco As deixas do Judas escritas por Olívio eram aguardadas com expectativa pela comunidade uma vez que quase todos as os as moradores as da VilaCentro eram mencionados no testamento Essa atividade cultural encenada até os anos 2000 costumava atrair a atenção de membros de toda a comunidade e também de habitantes de povoados vizinhos que se deslocavam até a VilaCentro de Cariacá para assistir o Judas queimar Ninha narrou entre sorrisos e intervalos de tempo quando parecia que o seu pensamento se reportava a uma atmosfera de encanto que nos dias que antecediam o espetáculo muitas pessoas iam à sua residência para tentar descobrir o rosto escolhido para o Judas confeccionado naquele ano Mas essa novidade era o brilho da festa e não era revelada destacou Ninha Ela desenvolvia múltiplas estratégias para aplacar a curiosidade das pessoas Em uma manhã um pouco abafada com sol escaldante aceitei o convite de Ninha para almoçar Dividindo a atenção com Luquinhas seu sobrinho neto Ninha relatou que antes de obterem o conhecimento da ancestralidade quilombola boa parte dos membros da Família Congo quando eram chamados de negros vagabundos e negros preguiçosos por algum a empregador a não costumavam revidar permaneciam cabisbaixos Se sentiam impotentes pois sabiam que qualquer atitude ou exigência de retratação poderia colocálos em uma situação de vulnerabilidade no escasso mercado de trabalho local Ninha mencionou que essas situações vexatórias a que eram submetidos esporadicamente se acentuaram após perderem a possibilidade de cultivar as suas próprias 181 Como referido no Capítulo 1 147 terras e se engajaram como trabalhadores diaristas Negros vagabundos negros preguiçosos e Congo não vale nada eram expressões pejorativas alusivas à suposição de terem vendido as suas terras por preguiça de cultiválas passando da condição de proprietários as para a de empregados as A necessidade de se engajarem nas frentes de serviço ofertadas sobretudo nos períodos chuvosos contribuiu para a redução da autoestima da comunidade O conhecimento e a luta pelo reconhecimento como remanescente de comunidade quilombola reanimou a Família Congo Que a gente não tem oportunidade de mostrar muitas coisa assim sobre o direito que o nego tem e que a gente não sabia pausa Antes as pessoas xingava maltratava a gente e a gente ficava assim naquela que é a gente dizia é a gente é isso mesmo A gente é preto Aí ficava quieto mas agora não A gente já tem o conhecimento Ele fez a gente entender que a lei aqui é pra nós Foi o Valmir ele fez a gente entender quem somos que a gente não pode andar de cabeça baixa É cabeça erguida E ensinou um bucado de coisas Ele foi um professor Porque tinha uma famia aqui que dizia uh Uh Essa raça de Congo Essa raça de nego E a gente ficava quieto agora tinha uns que não ficava quieto não sempre xingava brigava mas a gente não tinha o conhecimento que a gente tem agora Essa família era a família Muricy ainda tem muito deles aqui mas tem mais do Congo Eles foram pra Senhor do Bonfim Serrinha Alagoinhas uns moram pros lados da Picada Aqui sempre prevaleceu mais a Família dos Congo mas ainda tem deles aqui só que a gente aprendeu a se defender É falar e a gente botar pra calar Rosângela Gomes de Oliveira 48 anos em 25112015 O educador Paulo Freire 1975182 argumentou que a verdade imposta pelo opressor encontra terreno propício para se desenvolver no âmbito da consciência ingênua do próprio sujeito oprimido É necessário estimular a transição para a construção de uma consciência crítica No caso dos membros da Família Congo o movimento em prol da conscientização e da autonomia constitui um ideal surgido no passado e ressignificado no presente com a inserção na causa quilombola Portanto quando indagados se são quilombolas eles respondem sou Congo quilombola evidenciando que a consciência de sua ancestralidade se encontra assentada em ambas as dimensões 182 FREIRE Paulo Pedagogia do Oprimido Rio de Janeiro Paz e Terra 1975 148 Imagem nº 14 Da esquerda para a direita Tânia Ninha e Mônica durante o Curso de Formação para Lideranças Quilombolas Fonte Acervo da pesquisadora 312 DA COSTURA DE TECIDOS À TOMADA DE DECISÕES NA ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA DE CARIACÁ E ADJACÊNCIAS AQCA TÂNIA MARIA DA SILVA DIAS Tânia Maria da Silva Dias 54 anos é uma liderança cujo trabalho de articulação política na AQCA foi constituído ainda no ambiente doméstico a partir dos exemplos de ativismo comunitário legados por seu pai Tânia é filha de Pedro Julião Dias e de Maria da Silva Dias e é identificada em Cariacá como Conga da gema isto é descendente dos primeiros Congos que chegaram ao local Tânia encerrou o mandato como presidente da Associação Quilombola no biênio 20152017 Ela foi a primeira presidente da entidade fundada em 2007 149 Essa veia de luta é de meu pai foi ele quem conseguiu junto com outros Congo essa energia luz elétrica pra aqui Ele sempre lutou pela comunidade ele e os parentes tudo da gente E quando a luta pelo quilombo chegou quando o entendimento do quilombo começou a vim pra nós aí eu não podia decepcionar a memória dele Tânia Maria da Silva Dias 54 anos em 19122015 Algumas casas de Cariacá ainda não dispõem de energia elétrica e Tânia tem se empenhado para sanar a situação Quando a visitei pela primeira vez em sua residência no início de 2015 ela me mostrou a sua máquina de costura e observou que alinhavando as peças de roupa aprendeu a alinhavar os fatos da vida como uma mulher destemida Além de costurar para a comunidade183 e para famílias de povoados vizinhos Tânia é uma das poucas mulheres de sua geração que concluiu o ensino médio um curso técnico de enfermagem184 e cursava faculdade de Pedagogia à época da pesquisa Ela trabalha como diarista fazendo faxinas em residências de Senhor do Bonfim e ocasionalmente cuida de idosos as Como presidente da AQCA Tânia desempenhava diversas tarefas administrativas de limpeza da sede de supervisão dos computadores das máquinas de costura e do galpão para lapidação de pedras185 Ela iniciou as atividades sociais na igreja católica de Cariacá Foi catequista e organizava as visitas periódicas do padre na Vila Centro Após alguns desentendimentos internos passou a se dedicar apenas à causa quilombola Tânia afirmou que a descoberta da ancestralidade negra acarretou mudanças significativas para o cotidiano de toda a comunidade Mudou muita coisa que eu fui descobrindo principalmente a origem da gente Aí eu fui entendendo sobre o que é ser quilombola Como funcionam os quilombola em uma comunidade A gente fundou a associação e através dessa associação a gente teve mais informações No começo foi um pouquinho difícil porque ninguém queria assumir inclusive a primeira presidente dessa associação fui eu Aí foi em 2007 que foi fundada essa associação Aí o Valmir foi informando a gente como era ser quilombola o desenvolvimento o 183 Tânia é a costureira oficial do grupo Quilombart 184 Tânia presta serviços voluntários na área de saúde pois não há enfermeiras ou técnicas de enfermagem no posto de saúde de Cariacá 185 A lapidação de pedras era um sonho antigo da comunidade que iniciado em novembro de 2017 foi interrompido em 2018 e retomado em 2019 Atualmente o artesanato produzido em Cariacá é comercializado em feiras culturais da região norte da Bahia e na sede do Instituto de Educação Brasil Quilombola IBRAQ 150 desempenho que os quilombola mantêm nas comunidades e os outros conhecimentos de ser quilombola Tânia Maria da Silva Dias 54 anos em 28122015 As mudanças pontuadas por Tânia pelas mulheres quilombolas e por toda a comunidade decorreram da visibilidade étnica alcançada pelo grupo o que ensejou a sua valorização social A vida dessas mulheres os compromissos que estabelecem e as suas intervenções no contexto social se definem como sinalizou Becácia Versiane 2002 em um estudo sobre mulheres integrantes de minorias étnicas por abalar uma concepção de vida fundamentada em uma individualidade exemplar para associarse a uma existência coletiva p 62 313 ARTE DE TRANSFORMAR A DANÇA A SERVIÇO DO SONHO PARA AS MENINAS E MENINOS DA COMUNIDADE GLÍCIA MILENA GOMES DA SILVA Glícia Milena Gomes da Silva 32 anos é filha de Raquel Gomes da Silva da Família Congo e de um não quilombola que não reside em Cariacá Milena é uma das mulheres mais conhecidas e procuradas em Cariacá Ela organizou um grupo de dança com crianças e jovens da comunidade em 2004 o Quilombart Eu a conheci em Tijuaçu em 2012 durante as celebrações do Novembro Negro que contou com a participação do grupo Quilombart A primeira vez em que estive em Cariacá Milena que se encontrava no oitavo mês de uma gestação de risco estava organizando uma apresentação do Quilombart que seria realizada no dia seguinte Ela nasceu e passou a maior parte do tempo em Cariacá Após o nascimento do filho migrou para São Paulo onde permaneceu por um ano e quatro meses Segundo relatou esse foi o período mais difícil de sua vida O compromisso com a dança ensejou o seu retorno para Cariacá Segundo Milena o Quilombart foi criado para oferecer às crianças e adolescentes da comunidade a possibilidade de utilizar o seu tempo livre fazendo algo criativo Ela cresceu escutando histórias sobre as antigas apresentações de reisado e das rodas de Cariacá e se propôs a reativar o gosto pela arte e pela cultura que outrora notabilizaram a comunidade em toda a região A necessidade de cuidar do bem 151 estar coletivo que transparece nos seus relatos e ações foi cultivada no âmbito doméstico pois como primogênita ajudou a criar as três irmãs O filho de Milena que à época da pesquisa estava com 4 anos já participava do Quilombart e fazia aulas de capoeira com a mãe e as tias em Senhor do Bonfim Imagem nº 15 Glícia Milena Gomes da Silva Fonte Acervo do Quilombart Milena é considerada uma mulher Congo cujas ações foram modeladas na interação com os membros de sua comunidade Em uma entrevista concedida na sede da AQCA durante o intervalo de um ensaio ela compartilhou as suas expectativas Era que os jovens aprendessem mais e tivessem mais oportunidade de trabalho Como agora o Valmir quer trazer a faculdade para cá e antes à gente nem pensava em fazer faculdade e fazer a faculdade aqui então 152 isso é muito importante pra gente Porque a gente que é daqui a gente tem obrigação de fazer a comunidade crescer É por isso que houve uma divergência com o pessoal da escola porque eu queria o nome da comunidade e a escola daqui queria que fosse o nome da escola e eu não queria Queria que fosse o nome da comunidade Glícia Milena Gomes da Silva 32 anos em 26082015 A faculdade mencionada por Milena é um projeto comunitário compartilhado com outras comunidades quilombolas que oferta o curso de Pedagogia Esse curso foi escolhido em virtude da importância da educação escolar na formação dos membros das comunidades e da necessidade de se construir um currículo em consonância com os parâmetros dispostos na Lei nº 1063903 e nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola Os habitantes de Cariacá reconhecem a relevância da educação formal na constituição dos indivíduos e para a sua ascensão na hierarquia social Milena é professora de dança mas não atua na escola de Cariacá pois teve a sua candidatura recusada para trabalhar no projeto Mais Educação A direção da escola priorizou a contratação da filha de uma professora Ela encerrou o trabalho voluntário desenvolvido na Escola Municipal de Cariacá motivada pela divergência sobre a divulgação do grupo durante as apresentações de dança Milena se sentiu explorada pela direção da escola pois apesar de organizar a coreografia o figurino e a maquiagem para as apresentações o seu nome não constava nos créditos o grupo era anunciado como grupo de Dança da Escola Municipal de Cariacá Ela também se sentiu desvalorizada por não ter sido contratada para exercer uma atividade remunerada na escola como monitora do projeto Mais Educação Aí quando veio o projeto Mais Educação a Nara ela é filha de uma professora que já tem mais de 27 anos que ela trabalha na escola Tem muito tempo mesmo O vice muito tempo que trabalha aqui também Eu não era nem nascida e eles são amicíssimos Aí quando veio o projeto eles fizeram uma reunião com nós duas porque como ela dançava muito comigo eu passava o que eu aprendia pra ela claro que ela ia aprender Só que quando veio o projeto só podia colocar uma pessoa só E eles disseram que iam colocar a pessoa mais próxima da escola Aí colocaram ela como a pessoa mais próxima da escola 153 Então eu fiquei pensando Aí eu ainda fiquei por lá uns dois meses só que aí eu não consegui levar não Eu fiquei pensando e eu era o quê Se eu sempre fiz tudo aqui na escola Se eu sempre ensinei Se a escola hoje é reconhecida pela dança Porque antes a escola só participava de desfile cívico Só levava assim aqueles jeguinhos três jeguinhos e hoje a escola é reconhecida pela dança não tem mais esse desfile Quem ensinou a dança Eu fiquei pensando fui eu Então por que eu não tive esse reconhecimento Eu merecia Então hoje eu ensino em Bonfim mas eu sou filha daqui Então eu acho que peca muito por que não tinha necessidade disso de eu ter que tá fazendo isso lá fora Aí quando alguém quer fazer parte do grupo o Quilombart a escola chega e diz que vai cortar o Bolsa Família se sair do projeto Mais Educação Aí o ano passado ela a professora do projeto Mais Educação e mais outra pessoa teve de casa em casa chamando os meninos pra participar do projeto Mais Educação Falando que se não fosse não ia ganhar ponto e que o Bolsa Família ia ser cortado querendo atrapalhar a gente Porque não tem necessidade disso aqui Paula Por isso eu não quero que o Quilombart morra porque ele é tudo o que eu tenho pra levar Eu posso tá trabalhando fora mas meu compromisso tá aqui Glícia Milena Gomes da Silva 32 anos em 26082015 O rompimento de Milena com a escola de Cariacá não ocorreu apenas por ela ter se sentido descartada pela escola quando apareceu a oportunidade de exercer uma atividade remunerada no Mais Educação Ela continuou desenvolvendo trabalhos voluntários na escola até 2013 quando durante uma apresentação no Centro Cultural Dr Ceciliano de Carvalho em Senhor do Bonfim no âmbito do Seminário de Formação do Programa de Educação Inclusiva Direito à Diversidade186 ocorreu o fato que provocou a ruptura Quando o grupo de dança foi anunciado para realizar a apresentação todos os componentes se recusaram a entrar no palco Até que uma das professoras da escola solicitou ao mestre de cerimônias que anunciasse a atração como grupo da comunidade de Cariacá e finalmente o grupo se apresentou Esse protesto coletivo previamente articulado pelos membros do grupo evidenciou a preponderância da pertença à comunidade quilombola e contribuiu para o seu fortalecimento 186 Um evento pedagógico que reuniu profissionais da área de educação de toda a mesorregião do Piemonte Norte do Itapicuru O Quilombart realizou a abertura do evento 154 A partir de 14 de outubro de 2013 o grupo de dança passou a se apresentar como Quilombart Durante uma apresentação realizada em novembro desse mesmo ano no Centro Cultural o grupo enfrentou atitudes hostis e olhares de censura O Quilombart se blindou para enfrentar as retaliações advindas da instituição escolar que tentou forçar as crianças e adolescentes de Cariacá a optar entre o Quilombart e o projeto Mais Educação desenvolvido na escola Como coreógrafa e professora do Quilombart Milena promove vivências em prol da inclusão e da diversidade e que buscam neutralizar a influência de pessoas que usurparam da Família Congo além do território a produção simbólica Ao longo de sua trajetória pessoal e profissional Milena tem colaborado para a desconstrução das hegemonias e para o fortalecimento dos quilombolas Através da dança ela auxilia no crescimento cognitivo das crianças e jovens de Cariacá que optaram pela autonomia tornandose referência para a construção de outras subjetividades que se constroem em movimento 314 GUARDIÃ DA CAPELA DE SÃO SEBASTIÃO E ESTIMULADORA DA ESPIRITUALIDADE DAS MULHERES DA FAMÍLIA CONGO MARIA DA SILVA NERIS Sou Congo com muito orgulho Maria da Silva Neris 80 anos em 18112018 As mulheres Congos se identificam como católicas187 mas algumas além de desenvolverem atividades nas capelas de Santa Rita e de São Sebastião188 possuem outras devoções particulares recônditas Uma equipe de mulheres se revezam nos trabalhos da Capela de Santa Rita ao passo que na capela de São Sebastião cuja devoção é menos proeminente os cuidados de manutenção a limpeza do ambiente e as práticas religiosas foram executados durante quatro décadas por Maria da Silva Neris 80 anos filha de Juviniano Julião Dias e de Anazira Amorim da Silva A devoção a São Sebastião é uma prática religiosa das mulheres da comunidade Embora não tenha sido a fundadora da capela de São Sebastião D Maria Neris como é 187 Também as mulheres que desenvolvem práticas umbandistas ou frequentam as Casas de Curador a se afirmam publicamente como católicas 188 A história de fundação de ambas as capelas será relatada no Capítulo sete 155 conhecida foi a responsável pela sua reconstrução quando ela desmoronou há 43 anos À época a capela era constituída de adobe e cuidada por Maria Ferreira de Freitas retratada como uma índia já bastante idosa Assim D Maria Neris e o seu esposo Manuel Neris que era pedreiro e trabalhava no bairro do Derba em Senhor do Bonfim preocupados com a situação do templo e temerosos que as enfermidades189 voltassem a castigar a comunidade reergueram a capela com bloco e cimento D Maria mobilizou os moradores de Cariacá e pediu patrocínio no comércio bonfinense delegando ao esposo a tarefa de levantar a capela no que foi auxiliado pelos homens da comunidade Segundo D Maria os trabalhos foram realizados em regime de mutirão e toda a população católica colaborou Imagem nº 16 D Maria da Silva Neris Fotografia cedida por Eliane da Silva Neris Carlos 189 Esse aspecto será desenvolvido no Capítulo sete 156 Consoante o relato de Maria Eliane da Silva Neris Carlos filha de D Maria os seis bancos de madeira e o piso da capela foram doados por Seu Eduardo Dias membro da Família Congo e parente de D Maria Após a reinauguração da capela D Maria Neris incrementou a devoção ao santo padroeiro e não mediu esforços para que o padre celebrasse as missas e batismos quinzenalmente no local Ela cuidava do novenário190 dedicado a São Sebastião dos leilões e da procissão que costumavam atrair fiéis de todo o território quilombola Atualmente por questão de doença D Maria reside a maior parte do tempo em Senhor do Bonfim retornando a Cariacá mensalmente para cuidar da casa e rever os parentes Ela transmitiu a função de guardiã da capela a D Luzia Gomes que se sentiu honrada em dar continuidade à devoção Imagem nº 17 D Luzia Gomes Fonte Acervo da pesquisadora 190 O novenário foi interrompido há seis anos quando D Maria Neris teve um acidente vascular cerebral Após a sua doença e afastamento a devoção a São Sebastião só se expressa em Cariacá na procissão de 20 de janeiro 157 Dona Luzia Gomes conhecida na comunidade como Lúcia é filha de José Gomes de Souza e de Maria Calista de Souza Ela mora na VilaCentro há cerca de quarenta anos embora a maior parte de seus parentes resida na localidade de Limões Ela tem desempenhado o papel de guardiã da capela de São Sebastião desde 2013 Luzia mantém a capela aberta durante três dias toda semana e no dia de finados quando os devotos costumam acender velas para agradecer ao santo e ou pedir orações por entes queridos falecidos Segundo D Luzia Essa foi uma tarefa que a Maria me confiou e eu vou cumprir enquanto viver ou enquanto eu puder Vou zelar daqui 315 DO TRANÇADO DA HISTÓRIA AOS REARRANJOS DO PRESENTE LUCIANA DE FREITAS SILVA Os versos rimas acordes e orações estiveram sempre presentes na vida de D Luciana de Freitas Silva 75 anos conhecida como D Luci Ela relatou que desde criança possuía habilidade para recitar cantar e dizer verso Posteriormente já adulta passou a rezar nas pessoas aplicando o seu dom mítico religioso Esse dom classificado como uma missão de Deus é uma herança materna que agora lhe compete exercer com gratidão e generosidade pois não pode faltar a quem lhe pedir ou necessitar D Luci reza geralmente quando solicitada mas se por acaso notar que alguém precisa de proteção reza em segredo pois acredita que a bondade fortalece o dom Embora não se identifique como curandeira ela assume abertamente possuir o dom de rezar fato que não é desconhecido pela comunidade nem censurado pelo pároco que celebra as missas nas capelas dedicadas a Santa Rita e a São Sebastião o padre sabe disso e ele diz que é bom rezar E rezar minha filha você sabe que protege a gente de tudo Entre as atividades desenvolvidas por D Luci191 rezar é a mais importante Ela reza em sua residência e durante as visitas a pessoas enfermas192 Nessas ocasiões o único preparo consiste em procurar um ramo verde para ser utilizado durante o rito D Luci organiza a reza do terço da Libertação193 entre as mulheres da comunidade Além 191 Ela desempenha os papéis de mãe avó professora aposentada poetisa repentista comerciante e líder da capela católica local 192 Dona Luci só não reza nas pessoas durante a noite 193 A cada semana o terço é rezado em uma casa diferente mediante solicitação 158 disso é uma das poucas moradoras da VilaCentro que canta benditos durante a Semana Santa Em uma quartafeira maior194 de 2016 pouco antes do meiodia eu a visitei e ela me presenteou com orações e folhetos religiosos entoando em seguida um bendito Na quintafeira Jesus com seus discípulos Vem de Oliveira para Jerusalém Na paz de Cristo Jesus com seus discípulos Que padeceu ao favor de nosso bem Luciana de Freitas Silva 75 anos em 23032016 Imagem nº 18 D Luciana de Freitas Silva Fonte Acervo da pesquisadora 194 Denominação do calendário católico 159 Nas celebrações que ajuda a realizar na capela e nos cuidados com sua mesa de santo D Luci tece as fibras que compõem a sua existência com uma alegria contagiante Com a mesma fé que entoa benditos e arruma altares elas desenvolve suas labutas de mulher afroindígena195 e sertaneja Se veste diariamente de forma caprichosa adornada com brincos colares pulseiras e anéis Gostar de se enfeitar é uma herança de sua descendência de índio D Luci comercializa bijuterias sapatos e cosméticos por todo o território quilombola Essa atividade é desempenhada com habilidade sua simpatia e carisma lhe facultam transitar facilmente entre os membros das famílias Congo Muricy e Tobodi aqui minha filha eu me dou com todo mundo porque a vida é uma teia que a gente tem que saber ligar D Luci é a única pessoa em Cariacá relacionada à causa quilombola que cultiva relações com a Escola Municipal sendo frequentemente convidada para declamar poesias ou cantar repentes nas festas promovidas pela instituição D Luci se casou aos 19 anos com um rapaz da família Tobodi Eles tiveram dois filhos Atualmente ela é avó de dois adolescentes e de um bebê Ela não teve mais filhos devido às atividades docentes realizadas durante trinta anos na VilaCentro em Terreirinho e Quicé196 O magistério não apenas lhe assegurou a subsistência econômica mas proporcionou a satisfação de exercer uma função até então inacessível para as mulheres de Cariacá D Luci seguiu uma trajetória diferente da de sua mãe D Santa que trabalhou como lavadeira para famílias tradicionais de Senhor do Bonfim Através dos conhecimentos de D Santa D Luci e sua irmã Antônia conseguiram uma bolsa197 para cursar um ano letivo na Escola Parque em Salvador Quando retornou à comunidade D Luci que apoiava politicamente o prefeito passou a lecionar como professora não titulada198 nos turnos matutino e vespertino Ela complementou a sua formação participando de cursos em Senhor do Bonfim O empreendedorismo de D Luci constitui uma referência para os as adolescentes de sua comunidade Ela aceitou o desafio de residir um ano na capital para obter uma formação que lhe permitisse ter uma vida diferente da maioria das mulheres de sua faixa etária e contexto social Um dos fatores que a motivou a perseguir esse ideal foi à vida difícil e de grande labuta da mãe como 195 Autodescrição 196 Comunidades vizinhas a Cariacá 197 As bolsas de estudo foram oferecidas por Margarida Catalar então diretora do Colégio Isabel de Queiroz Margarida era uma das freguesas de roupa de D Santa 198 Forma de tratamento para as professoras leigas que lecionavam naquela época 160 lavadeira D Luci observava a rotina das lavadeiras de Cariacá que dedicavam todos os dias da semana para a lavagem da roupa Às segundasfeiras as lavadeiras iam a pé ou montadas em jumentos buscar as roupas dos fregueses em Senhor do Bonfim Na terça lavavam e passavam as peças em Cariacá na quartafeira entregavam as roupas limpas e engomadas e levavam mais roupas sujas para lavar devolvendoas na sextafeira ou no sábado Embora admirasse a bravura de sua mãe não desejava ser lavadeira e divisou no magistério a oportunidade de construir uma vida melhor Dona Luci começou a lecionar em 10 de março de 1962 Ela se diz realizada sempre rodeada por crianças de modo especial por meninas que gostam de brincar com a sua coleção de bonecas D Luci promoveu uma interação entre as atividades pedagógicas e as encenações culturais da comunidade199 Nasci aqui no Cariacá estudei aqui dei aula aqui Trabalhei no Terreirinho no Quicé e aqui Estudei aqui e em Bonfim Trabalhei trinta anos na prefeitura Dei aula Levei muita roda pra Senhor do Bonfim Por dez anos minhas rodas tirava em primeiro e em segundo lugar Fiz terno de reis pra igreja de São José Esposo em Senhor do Bonfim O meu reis sempre chamou muita atenção Deixei porque é muito cansativo Minhas rodas era 60 componentes que eu levava O prefeito dava o carro dava todas as despesas levava e trazia Graças a Deus Luciana de Freitas Silva 75 anos em 23102015 Assim como Milena D Luci é uma pessoa muito querida em Cariacá É interessante perceber os impactos do comprometimento com as práticas culturais na vida de ambas as mulheres de gerações distintas reconhecidas por sua dedicação à comunidade Dona Luci tem admiração e respeito pelas apresentações do Quilombart essas meninas agora é quem tão representando o quilombola e que elas tem tudo pra crescer e levar a comunidade junto A família e a comunidade são nucleares na vida de D Luci Ela visita anualmente filhos e netos no Rio de Janeiro Nessas ocasiões a sua ausência é sentida por muitas pessoas em Cariacá principalmente quando da realização das atividades religiosas a Luci é quem é animada e sabe ajeitar bem as coisas Como já 199 Destacado no Capítulo 2 161 mencionado D Luci se identifica como descendente de indígenas da família Kariri a minha descendência é de índio A sua avó materna era índia legítima a mãe era índia e o pai caboclo Meu pai era caboclo mesmo A orelha bem grande cabelo lisinho meu pai morreu com 90 anos não tinha um dente cariado e ele não escovava o dente com pasta escovava com uma folha de zabelê porque disse que quem escovava o dente com aquela folha o dente não ficava cariado E meu pai veio no médico com 90 anos Luciana de Freitas Silva 75 anos em 06012014 A memória lúcida e ativa torna D Luciana de Freitas Silva uma das anciãs mais solicitadas para tecer as narrativas sobre as histórias da comunidade o que lhe suscita um sentimento de responsabilidade coletiva pois se trata de alinhavar as tessituras que ordenadas com clareza conformam a identidade dos quilombolas de Cariacá Como destacado por Pollak 1992 p 204 a memória é constituinte do sentimento de identidade tanto individual quanto coletivamente A memória é vital para a continuidade e a coerência de uma pessoa ou de um grupo As mulheres quilombolas retratadas nesta tese reconstroem a história de sua comunidade revertendo uma condição historicamente subalterna imposta pelos colonizadores Nos diferentes papeis protagonizados elas consolidam as suas vivências no trabalho cotidiano nas atividades lúdicas na devoção e na solidariedade familiar Suas lutas e labutas em prol do desenvolvimento da comunidade quilombola constituem escrevivências no sentido conferido ao termo por Conceição Evaristo 2016 32 O NASCIMENTO DE UMA ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA É SEMELHANTE AO NASCIMENTO DE UMA CRIANÇA Em Cariacá as transformações ocasionadas pelo Barulho do Quilombo têm sido apoiadas pela Associação Quilombola de Cariacá e Adjacências AQCA Essa entidade tem valorizado o pequeno povoado antes abandonado e marginalizado política e socialmente A identidade quilombola de Cariacá vem sendo tecida de modo intercambiável e em diálogo permanente com os quereres e fazeres da comunidade 162 As reuniões frequentadas pelos 200 associados da AQCA intensificam a conscientização do coletivo étnico agregando valores que orientam os caminhos trilhados pelos atores sociais já enquadrados na categoria dos povos tradicionais pelo Estado nação As reuniões são geralmente realizadas nos finais de tarde do último sábado ou domingo de cada mês quando os as sócios as já encerraram as atividades cotidianas Além dos residentes na VilaCentro participam quilombolas de outras localidades do perímetro As reuniões da AQCA fortalecem os laços de parentesco compadrio e vizinhança Na plenária muitos sujeitos abdicam do silêncio destinado a aqueles que não sabem falar condição que integra o fosso do mutismo que foi produzido para as populações do sertão e integram o grupo dos que sabem conversar200 Atribuem novos significados a fatores antes tidos como pouco relevantes como a história da comunidade e os atos de resistência protagonizados pelos seus ascendentes em defesa do direito de viver e de circular livremente pelo território tradicional Essas reuniões reafirmam sobretudo a pertença à Família Congo Esses quilombolas sertanejos relataram que antes da associação não se reuniam para conversar com os parentes mas apenas para escutar pessoas de fora geralmente políticos ou representantes da prefeitura que os procuravam para pedir votos A criação da AQCA enfatizou o valor de cada membro da comunidade Jéssica Saldanha que à época da pesquisa era vicepresidente da associação afirmou que uma liderança tem um valor maior que um político por que ela luta pela gente ela sabe a nossa voz já o político não Saber a nossa voz significa compreender os anseios do grupo e reivindicálos Ninha comentou que quando escolheram o símbolo da associação cuidaram para que cada elemento fosse posicionado de modo a retratar a trajetória do grupo pois entendiam que precisavam de uma bandeira de luta capaz de expressar as suas expectativas Esse entendimento adveio em grande medida do período em que frequentaram as reuniões da Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências AAQTA que havia constituído uma bandeira para expressar a sua luta A bandeira da AQCA é constituída pela imagem do casarão mais antigo da comunidade onde outrora eram acorrentados as os as escravizados as e pelos 200 Saber conversar é estar informado e transmitir o seu conhecimento a outrem 163 trilhos da estrada férrea que simbolizam a luta da comunidade A criança rabiscando a palavra Congo simboliza a identidade quilombola e afroindígena em construção Como pano de fundo temse as cores de países africanos A composição da bandeira evidencia a auto percepção da comunidade e demarca a sua especificidade étnica Imagem nº 19 Bandeira da AQCA Fonte Acervo da pesquisadora Na segunda etapa do curso de Formação para Lideranças Quilombolas realizado no final de janeiro de 2016 foram constituídas quatro equipes para elaborar cartazes com as principais conquistas logradas com o suporte da associação pontuando as transformações ensejadas em suas vidas pessoais e da comunidade Dentre os elementos mais relevantes para a reorientação do grupo foram destacadas a distribuição das cestas básicas principalmente para as famílias cuja principal fonte de renda era o Bolsa Família e para os idosos que subsistem da aposentadoria a construção de casas no âmbito do projeto 164 Minha Casa Minha Vida por intermédio do programa Brasil Quilombola a instalação de energia elétrica e de água encanada para algumas famílias da VilaCentro a aquisição de máquinas de costura industrial e de máquinas de lapidação de pedras201 a construção de um telecentro com dez computadores que facilitaram a rotina dos estudantes da comunidade e finalmente a implantação de uma cozinha comunitária A sede da AQCA constitui motivo de orgulho para os seus membros pois é considerada uma das construções mais bem estruturadas de Cariacá e das demais comunidades da região norte da Bahia Como relatou D Tânia Uma das primeiras conquistas que a gente alcançou foi o terreno pra sede Aí depois junto do governo federal a gente conseguiu a verba para construir essa sede que foi uma luta grande vitória pra nós porque em todo esse território que tem a cobertura quilombola a nossa associação é um dos melhores núcleos em espaço e tudo Só existem dois e aqui tá em primeiro lugar Aí essa foi uma das conquistas maior que a gente teve Depois a gente conseguiu quatro computadores com a verba adquirida pelo fundo de arrecadação da associação Nós compramos as mesinhas passado o tempo o Valmir conseguiu mais dez computadores desse modelo novo que você já viu lá né Consegui doze máquinas de costura a cozinha comunitária e cada vez mais a gente tá tentando conseguir mais coisas pra trazer pra comunidade Tem também a sede da lapidação de pedra que a gente já conseguiu as máquinas só tá faltando às instalações pra desenvolver o trabalho é bijuteria esses enfeitinhos de pedra brinco colar essas coisas assim pulseiras e os artesanato que é como bisqui É isso que a gente vai construir lá Tânia Maria da Silva Dias 54 anos em 28122016 As conquistas supracitadas objetivaram assegurar a autonomia da comunidade e incentivar tanto o respeito interno quanto o do contexto envolvente São indicativos palpáveis de que esses sujeitos se tornaram protagonistas de suas existências Percebi nas vivências de campo que o reconhecimento antes dedicado aos de fora foi redirecionado 201 Em novembro de 2017 a comunidade realizou um curso de artesanato mineral com vinte participantes dezenove mulheres e um homem O curso foi realizado em um galpão de Valmir dos Santos situado ao lado da sua residência 165 para os líderes locais cujo trabalho tem merecido a credibilidade de todos os quilombolas de Cariacá A AQCA foi indubitavelmente a entidade que mais contribuiu para a constituição identitária da comunidade Durante o período em que se deu a atividade de pesquisa a associação teve a mesa diretora composta pelas seguintes pessoas conforme indica a tabela demonstrativa abaixo Biênio Presidente Vice presidente Secretário a Tesoureiro a 2015 2017 Tânia Maria da Silva Dias Ubirajara de Jesus Jéssica Saldanha dos Santos Anaíde Anária Nascimento 2017 2019 Anaíde Anária Nascimento Jéssica Saldanha dos Santos Jonilson de Araújo Santos José Nunes Tabela nº 01 Mesadiretora da Associação Fonte Dados de Campo Após 2016 a direção da AQCA incrementou a interação com os membros das mesasdiretoras de outras associações quilombolas regionais principalmente durante as celebrações do Novembro Negro202 Nesse período as comunidades quilombolas do entorno se encontraram para discutir demandas gerais e específicas e para compartilhar histórias e labutas consolidando um sentimento de solidariedade étnica que ultrapassa as fronteiras de cada comunidade O Novembro Negro foi portanto ressignificado As celebrações passaram a ser pontuadas por atos de protesto e caracterizadas pela socialização dos problemas enfrentados pelas comunidades quilombolas de todo o país 202 Participaram desses eventos mediados pela Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências AAQTA as comunidades de Tijuaçu Cariacá Fumaça Jiboia Nova Represa Lajedo Coqueiro Palmeira São Pedro Acaru Tamanduá e Alto Capim 166 Imagem nº 20 I Encontro do Novembro Negro em Cariacá em 2015 com a participação das mulheres do Samba de Lata de Tijuaçu Fonte Acervo da pesquisadora A alegria de cada encontro tem sido reforçada pelo comprometimento com a luta iniciada pelos ancestrais fundadores que constituem a herança coletiva das comunidades quilombolas Dentre os eventos do calendário do Novembro Negro que participei durante a pesquisa etnográfica destaco o I Encontro do Novembro Negro em Cariacá efetuado em 2015 o Fórum Rediscutindo a EJA nas Comunidades Quilombolas realizado em 2016 em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de Senhor do Bonfim a Noite da Consciência Negra na comunidade Alto Bonito em 2017 Quilombola é Cidadania realizado em novembro de 2018 na sede da AQCA e o I Encontro de Comunidades Quilombolas em Nova Represa desenvolvido em 2019 na segunda Festa da Consciência Negra promovida por esta comunidade 167 CAPÍTULO 4 AQUI SE TIVESSE UMA ESTRADA TODO MUNDO CONHECIA O LAJEDO No século XX os quilombos ficaram em parte invisíveis e em parte estigmatizados O processo de produção da invisibilidade data desde a escravidão quando os quilombos se articularam com as roças dos escravos transformandose em camponeses sendo difícil definir quem era fugido diante de roceiros negros além daqueles que tinham nascido nos quilombos e nunca foram escravos GOMES 2015 p 120 Imagem nº 21 Caminhos que conduzem ao Lajedo Fonte Acervo da pesquisadora 168 Na madrugada relativamente fresca de 14 de junho de 2016 me desloquei para o Buraco do Lajedo203 Eu havia estado nessa localidade algumas vezes entre os anos de 2013 e 2014 mas não conseguia lembrar com exatidão o caminho a ser percorrido Ao contrário do que acontece em Cariacá e em outras comunidades do norte baiano onde tenho estado com maior frequência seja por ocasião do Novembro Negro ou a convite de alguma associação para realizar palestras ou pequenos cursos Lajedo permanecia no plano do desconhecido ocupando o lugar de uma comunidade emblemática e ainda pouco visitada por pesquisadores as204 Antes de me encaminhar para lá permaneci um período de dez dias na cidade de Saúde onde procurei conversar com os anciãos205 da comunidade que migraram para esse município e cujos filhos e netos as ainda se encontram morando em Lajedo Esse intervalo que fiz em Saúde206 foi importante para compreender como a cidade percebe e trata a comunidade Não fiquei espantada com as impressões iniciais mas talvez desalentada Estive em alguns órgãos públicos como na prefeitura nas secretarias de saúde e educação e na secretaria da igreja católica em busca de alguns registros de batismo e em todas essas instituições escutei comentários depreciativos em relação a Lajedo e seus moradores as entre os quais eles ainda estão lá São um povo muito difícil não tem controle de nada As mulheres parem de mais hoje nem tanto Você sabe das doenças que pode pegar se ficar por lá Tome cuidado É bom se vacinar Sem maiores dificuldades percebi que o grupo não é bem visto pelo poder municipal e recordeime que em 2013 quando os visitei pela primeira vez eles pareciam abandonados sem acesso à saúde e saneamento básico e chateados porque a unidade escolar207 havia sido fechada nesse mesmo ano deixando as crianças impossibilitadas de estudar 203Alguns anciãos se referem à comunidade como Buraco do Lajedo As casas dos das moradores as são cercadas por serras ocasionando a impressão de que se está em um caldeirão 204 Durante todo o período em que estive em campo apenas em outubro de 2017 tive ocasião de encontrar uma equipe de acadêmicos as da Universidade do Vale do São Francisco UNIVASF que esteve na comunidade por duas vezes com o propósito de estudar a cachoeira do Gelo Foi um encontro muito significativo aliás como costumam ser todos os intercâmbios promovidos pelo campo de pesquisa 205 Em 2013 já havia conhecido e conversado com alguns destes moradores as inclusive alguns que já faleceram 206 Já conhecia o município porquanto lecionei algumas vezes em instituições de ensino superior que existem na cidade estreitando alguns laços em função da profissão entretanto essa estadia foi particularmente diferente visto que buscava outra rede de relações os antigos moradores de Lajedo 207 Em 2013 após algumas reuniões onde foi discutida a importância da existência da escola na comunidade o grupo formou uma comissão e decidiu procurar a Secretaria Municipal de Educação assim 169 Já se aproximava das 10h00min da manhã e eu ainda não havia chegado à comunidade por isso me lembrei do comentário feito por Seu João Colado por ocasião de minha última visita em 2014 quando o interlocutor mencionou aqui se tivesse uma estrada todo mundo conhecia o Lajedo208 Eu estava apreensiva porque chovia bastante sabia que não estava sendo esperada e já havia decorrido certo tempo desde o último contato e não tinha certeza se todos as eles as se lembrariam de mim vez por outra encontrava com alguns na feira livre de Saúde porém não era a mesma coisa de estar em contato na comunidade sobretudo porque havia notado o quanto se sentiam valorizados quando eram visitados e como gostavam de receber e sabiam fazer isso muito bem Embora já existisse a estrada tão reivindicada por João Colado não havia referências de como se chegar lá nem possibilidade de perguntar em muitos trechos do caminho já que não há casas e se chove o que é habitual parece que tudo se transforma em uma mata fechada Apesar do horário estava escuro devido ao tempo e excessivamente frio209 A presença de um pequeno olho dágua que os quilombolas chamam de rio Preto me oportunizou perceber que estava nas proximidades Permanecia ansiosa pois o rio estava cheio dificultando a passagem do carro Um pouco adiante o encontro com duas crianças que esperavam o transporte escolar para se deslocarem até a cidade de Mirangaba onde a população discente estuda encorajoume a continuar haja vista que elas informaram o restante do caminho e forneceram o indicativo de que a rota estava certa Mais tarde fiquei sabendo que o rio Preto é utilizado como marco para especificar as famílias que residem em áreas que são consideradas pertencentes aos municípios de Saúde e Mirangaba porquanto desde o ano de 2010 com a abertura da estrada boa parte dos moradores as transferiram seus títulos de eleitor para o segundo município como forma de agradecer a como realizou a denúncia em uma emissora de rádio local Após esses acontecimentos a escola foi reaberta e funcionou até o ano letivo de 2014 fechando novamente e assim permanecendo até os dias atuais 208 Embora ainda fosse muito acidentada em 2014 já havia uma estrada rural capaz de permitir chegar ao Lajedo de carro ou de moto Essa mobilidade de acesso melhorou a partir de 2010 quando o poder público do município de Mirangaba realizando um sonho antigo dos moradores as como eles mesmos gostam de enfatizar abriu as estradas Até então o acesso era mais difícil contornando as serras da cidade de Saúde seguindo por uma trilha realizando parte do trajeto de animal ou moto e uma pequena parte a pé Nos períodos de chuva intensa essa trilha se torna praticamente inacessível Na atualidade esse caminho é percorrido basicamente pela população do lugar nos dias de sextafeira e sábado em função das atividades que desenvolvem na feira livre de Saúde 209 Faz muito frio na comunidade sendo comum nos meses de maio junho e julho os moradores as passarem o dia com agasalho touca e meia 170 atitude adotada pelo então prefeito que conforme os interlocutores as se interessou pelo lugar Imagem nº 22 Olho dágua do Rio Preto no mês de setembro quando as águas estão relativamente rasas Fonte Acervo da pesquisadora Quando finalmente avistei a primeira casa compreendi que havia chegado No entanto não havia ninguém e tampouco em nenhuma das residências alcançadas Como o trovão e o relâmpago me paralisassem de vez em quando deduzi que talvez estivessem em suas roças e como não sabia o que fazer para chegar até lá resolvi esperar não sem alguma preocupação visto que nem os animais se encontravam por perto Como não mais conseguisse ficar no mesmo local voltei à primeira casa ainda não conseguia me orientar espacialmente no território e para a minha tranquilidade a porta estava aberta saí do carro já ensopada mas me protegendo da chuva quando escutei uma voz de mulher mencionar entre pra cá Pode vim Não esperei por um segundo convite pois reconheci a voz de Dona Mariene que já estava em casa coando o café A solidariedade 171 nas comunidades quilombolas sertanejas é algo extraordinário são pessoas que nas labutas da vida aprendem a ler no olhar a necessidade do outro a Além do café e de uma toalha para me secar Dona Mariene me ofereceu hospitalidade Estava estabelecido o primeiro contato210 No mapa abaixo apresento ao leitor a a localização de Lajedo assinalando a sua proximidade de outras comunidades do contínuo étnico que vem sendo denominado pelas pessoas do lugar de Grota Quilombola Fonte Base da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia SEI adaptado no Adobe Photoshop CC 2019 Ilustração da Pesquisadora 210 Trechos retirados do Diário de Campo p 1519 172 41 CONHECENDO O LAJEDO Em 2013 saí de Lajedo com uma indagação que apenas algumas visitas não permitiram responder o que justificava que alguns permanecessem naquele espaço uma vez que muitos as já haviam ido embora A região apesar de muito bonita parecia esquecida e totalmente desassistida À medida que melhor conhecia a comunidade notei que havia diminuído o número de famílias211 e fui então buscando compreender a razão dessas migrações e os fatores capazes de amparar a permanência daqueles as que ao contrário de seus parentes declararam preferir ficar se não por toda a vida pelo menos até quando fosse possível ou conforme é dito até a idade permitir por que quando a gente chega pra idade é preciso sair As quarenta e uma famílias que atualmente moram no local declaramse parentes consanguíneos ou por afinidade212 pois todos as se estimam não existindo pessoas no grupo que não interajam A pertença ao grupo é reavivada pelas atitudes diárias de auxílio mútuo tanto nas ocasiões de celebração da vida de modo especial durante as festas de casamento quanto nos momentos de solidariedade com a dor como em casos de doenças partos difíceis ou ainda diante da morte Não se definem por núcleos familiares Seu Joaquim Santana de Azevedo 42 anos teve o cuidado de esclarecer que aqui se assina quatro sobrenomes Santana de Jesus Silva e Inocêncio Identificamse por região ou por grota que conservam em sua maioria os nomes de antigos moradores formando as nove regiões que compõem o grotão do Lajedo213 encontrandose assim distribuídas Félix Firmina Aprígio Capão Fojo também referido como Mariquita Lajedo Inocêncio Várzea Comprida de Cima e Várzea Comprida de Baixo Em algumas dessas regiões reside apenas uma família e é comum encontrarse mais de uma família habitando uma mesma casa 211 Em 2013 havia 48 famílias no território 212 A afinidade que legitima o parentesco é pensada a partir do estreitamento das relações familiares por intermédio de casamentos e relações de compadrio As relações locais não são apenas de vizinhança mas de parentesco Costumase afirmar que a parentagem aqui é grande 213 Os moradores costumam referir à comunidade por três designações Lajedo Buraco do Lajedo e Grotão do Lajedo Nas relações estabelecidas com a sociedade regional utilizam apenas Lajedo e ficam muito chateados as quando ocorre de alguém não identificar a comunidade Comentam por vários dias seguidos quando nos dias de feira livre seja na cidade de Saúde seja no município de Mirangaba encontram pessoas que dizem não saber a localização de Lajedo ora se ressentem ora acreditam que estão sendo afrontados as nesse tipo de situação 173 Apresento a seguir uma representação da organização espacial das famílias distribuídas nas regiões povoadas bem como das cidades com as quais estabelecem contato direto principalmente de caráter comercial Fonte Base da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia SEI adaptado no Adobe Photoshop CC 2019 Ilustração da Pesquisadora Todos os moradores as se percebem como descendentes dos Quiteros embora afirmem que os parentes diretos do ancestral fundador já faleceram O último parente consanguíneo de Quitero que residiu na comunidade é lembrado como tendo sido a senhora Firmina Quitero referida como contadora de muitas histórias do tempo do cativeiro As famílias que residem na região dos Inocêncio são apontadas como pessoas 174 que têm sangue dos Quitero e bisnetos as do fundador consoante afirmação de Seu Gilberto Inocêncio dos Santos 47 anos e neto da senhora Firmina Quitero Rapaz Os primeiros aqui era avô avó da minha avó Era os chamado Quitero Era a família dos Quitero a gente Eu sou uma raiz dele mais longe mas sou Eu ouvi minha avó contar muitas histórias dele Quitero Dizia que tinha ele Mas não sei o que significa essa palavra Rapaz Esse Quitero nossa família antes não queria se identificar por que era uma família meio malina esse povo essas coisa Aí não queria se identificar ficava prendendo Depois que a gente cresceu pra cá que soube de onde veio aí teve que apoiar né Por que não é todo mundo que é igual Entrevista com Gilberto Inocêncio dos Santos 47 anos em 170616 A reserva do interlocutor em se declarar parente de Quitero talvez se encontre relacionada às impressões negativas sobre esses descendentes disseminadas tanto em Lajedo quanto externamente O sentido que Gilberto empresta à palavra malino está associado a opiniões que apontam Quitero e seus parentes como praticantes de pequenos furtos motivo pelo qual mesmo em Lajedo seus descendentes ainda se sentem pouco à vontade para confirmar o parentesco Ao conversar com a senhora Eulina Carmelina de Santana Dona Roxa 75 anos em sua residência no município de Saúde ela permaneceu silenciosa durante alguns minutos ao ser indagada sobre Quitero Diante do seu mutismo passei às perguntas seguintes e depois voltei a indagar se ela tinha ouvido falar de Quitero Um pouco tímida D Roxa afirmou a gente ouvia falar que esses Quitero era meio esperto risos e pausa Que gostava de pegar as coisa dos outro Esse Quitero véio Mas eu não alcancei não214 Durante as primeiras conversas e mesmo no decorrer das entrevistas215 muitos as desconversavam chegando até mesmo a afirmar que não sabiam o que significava a palavra Quitero embora admitissem ter escutado referências a esse nome por parte de seus pais e avós Outros as chegaram a informar que apenas os mais velhos as sabiam descrever quem fora Quitero alguns preferiram apontar nomes de parentes específicos que poderiam falar a respeito e por fim revelaram que o constrangimento em falar sobre 214 Entrevista realizada na residência da anciã em 080616 215 Algumas entrevistas foram realizadas mais de uma vez pois em algumas situações muitos as dos interlocutores as falam simultaneamente dificultando a compreensão Outra situação inusitada se verificou nas entrevistas realizadas com as mulheres casadas cujas falas foram escutadas e corrigidas pelos maridos 175 Quitero se devia a informações depreciativas imputadas ao mesmo e por não desejarem ser confundidos com qualquer pessoa que não fosse digna de consideração De acordo com as memórias orais o Grotão do Lajedo foi fundado pelo senhor Paulo Quitero escravizado do coronel Joaquim Malta Quitero chegou ao local acompanhado de uma irmã e uma sobrinha fugindo da ira do citado coronel Além dos relatos orais216 o historiador saudense217 Raimundo Moraes Pereira 2004 relata com certa profundidade essa história que se encontra descrita no livro de sua autoria intitulado Memórias na Varanda origens história e estórias do município de Saúde218 Segundo Pereira 2004 o coronel Joaquim Malta e sua esposa referida como à senhora Nanília eram ricos proprietários de terras gado engenhos e escravizados entre os quais Paulo Quitero sua irmã Joana e sua sobrinha citada como Mariazinha Ela teria despertado a afeição de Rosalvo Miranda Malta filho do coronel o que levou Joaquim Malta a conceder alforria a Quitero sob o imperativo de que ele levasse consigo sua sobrinha e a irmã para algum lugar distante de suas terras e portanto do seu filho A estratégia contudo não deu certo pois Rosalvo localizou o esconderijo de Mariazinha e levoua para o município de Sento Sé onde foi formalizado o temido matrimônio do qual nasceu Joaquim Malta Neto O nascimento da criança suscitou o perdão do avô coronel e o regresso de Joana do novo casal e filho para as terras das fazendas Malta e Campo Verde de propriedade do coronel Apenas Quitero permaneceu em Lajedo Vejamos o trecho em que o historiador descreve esse fato A Fazenda Grande administrada por Rosalvo voltou a produzir melaço e rapadura os rebanhos cresceram e se desenvolveram Mariazinha muito feliz mandou buscar sua mãe Joana e deu uma casa para ela morar A nova casa de Joana tinha sido uma loja para vender tecidos A velha ficou conhecida como Joana da loja O velho Quitero continuou morando na fazenda Buraco onde formou um pequeno quilombo Até hoje existem remanescentes dos Quiteros vivendo no mesmo local PEREIRA 2004 p 103 216 Esclareço que não são todas as pessoas da comunidade que narram essa história No entanto todos as contam que o Lajedo foi fundado por Quitero 217 Adjetivo utilizado para qualificar aqueles as que nascem na cidade de Saúde 218 No período em que estive na cidade de Saúde busquei entrar em contato com o referido historiador porém fui informada que ele já havia falecido 176 No supracitado livro constam as cartas trocadas por Rosalvo Malta e Mariazinha219 e ainda a carta que o primeiro escreveu ao seu pai dando notícias sobre o nascimento do filho A existência dessas cartas era desconhecida da população de Lajedo que ficou bastante sensibilizada ao ouvir a leitura da correspondência220 Após esse episódio algumas crianças passaram a comentar agora eu sei quem é o Quitero e as conversas a respeito do ancestral fundador passaram a ser cercadas por uma atmosfera de respeito já que passamos a desmistificar em campo as molduras pejorativas que foram construídas para cristalizar uma imagem negativa de Paulo Quitero tanto entre seus descendentes quanto no contexto regional e problematizamos como esse fato foi utilizado para a marginalização do grupo Por intermédio de um curso foram feitas algumas provocações no intuito de desconstruir a representação depreciativa e elevar a autoestima desses quilombolas sertanejos tais como a quem interessava apresentar Quitero como praticante de ações ilícitas A usurpação da liberdade de Quitero circunstância que coloca o usurpador em uma posição pouco respeitosa a personalidade de Paulo Quitero seu empenho em proteger sua família da perseguição do fazendeiro e ainda sua bravura para iniciar o povoamento da comunidade Transcrevo algumas representações que os interlocutores as apresentaram a essa pesquisa a respeito do senhor Paulo Quitero Essa Fermina fazia parte dos Quitero Eu conheci como os Quitero A gente ouvia assim que os Quitero parte dos Quitero era muito sofrido Que era uns escravos umas parte de umas pessoa bem pobrezinha sofredor Joaquim Santana de Azevedo 42 anos em 170616 Os primeiros moradores foi um pessoal que chamava Quitero Essas pessoas morreram só tem os netos agora 219 As cartas estão datadas de 11 de agosto de 1886 A correspondência de Rosalvo é oriunda da Fazenda Campo Verde ao passo que a de Mariazinha foi endereçada da Fazenda Buraco No período em que estive no município de Saúde não obtive maiores informações acerca das cartas tampouco como estas foram coletadas pelo historiador 220 Eu fiz a leitura das cartas após o final de uma reunião em que o grupo me solicitou a realização de um curso que os auxiliasse a entender melhor sua condição de povos tradicionais A leitura estimulou o enternecimento dos adultos e o riso de algumas crianças que acompanhavam seus pais 177 Beto mesmo é neto É da família dos Quitero mas eu não sei se é dos Quitero dos quilombolas ou se é nome que chamava Quitero O pai de Beto era e ele é da família dos Quitero Conheci muita gente da família Os Quitero foi aquele povo que vieram da África né Aí vieram pra o Brasil e foi rendendo aquelas pessoas Rosália Matias dos Santos 65 anos em 030716 É o seguinte eu não cheguei a conhecer ele não mas é o finado Paulo Quitero que morava aqui perto Eu não cheguei a conhecer ele não Quem conheceu ele foi o meu pai e minha mãe Eles conheceram Paulo Quitero Meu pai falava muito nele Meu pai dizia que ele era gente boa e trabalhava aqui naquele sistema antigo Ele era parente daquele rapaz lá da associação o Gilberto mas eu não sou parente dele não Armando João dos Santos 68 anos em 160616 Do Quitero Ele não morava aqui Ele morava numa grota que tem aqui a quatro quilômetros Aí chamava Quitero Ah Ele é muito véio que um senhor que morreu aqui com 95 anos não chegou a conhecer ele não Alberto Santana de Azevedo 48 anos em 180616 As impressões externadas a respeito de Paulo Quitero se encontram associadas ao sofrimento condição considerada como compartilhada por todos os habitantes do lugar e que surge tanto nas entrevistas quanto nas conversações informais que foram estabelecidas Sofrimento e resistência são palavras acionadas frequentemente em Lajedo relacionadas ao conceito que vige sobre os quilombos Em ambas as circunstâncias as memórias relacionadas à Quitero são utilizadas para aludir ao povoamento ancestral da comunidade e à tradicionalidade da qual se declaram herdeiros A tabela a seguir distribui as famílias pelas respectivas regiões 178 Região Número de Famílias Nomes dos Moradores as que foram apontados como representantes de cada família Félix 03 João Colado Alberto Joaquim Firmina 01 Alberto Alves Aprígio 07 Armando Manuel Timóteo Maria do Rosário Arnaldo Ilda Zé Capão 02 Heranga Zé Mariquita Fojo 02 Zilô Sérgio Lajedo 04 Anália Sena Naide Edmilson Várzea Comprida de Cima 04 Antônio Pedro Clodoaldo Márcio 179 Várzea Comprida de Baixo 14 Miúda Ninha Neide Luciano Vanusa Mirene Joana Nóia Daniel Márcio Manuel Valdianor Claúdio Peta Inocêncio 04 Gilberto Narcisa Valdevino Zé do Corte Tabela nº 02 Demonstrativo das Famílias de Lajedo agrupadas por região Fonte Dados catalogados em campo Não há pessoas desconhecidas residindo no território e há preocupação para que essa situação não se modifique Em uma das conversas com Seu João Colado ele relatou que em certa ocasião quase vendeu um terreno de sua propriedade a um médico residente na cidade de Jacobina que costumava visitar a comunidade e se hospedar em sua casa todavia mudou de atitude e desistiu do negócio por considerar que essa poderia ser a primeira iniciativa para pestear o lugar João Colado justificou sua opinião mediante uma apreciação dos impactos negativos que a permanência de pessoas de fora ocasiona na rotina do modo de vida local Aqui você não vê um som alto uma bebida uma bagunça uma confusão Por quê Por que não tem atrapaio de fora Aqui a gente sai larga tudo aí e não acontece nada Pode sair um mês certinho e não acontece nada A gente cansa de sair no São João e no Ano Novo acha tudo igual 180 Eu não quero uma mercearia aqui eu não quero um campo de bola aqui Eu sei como é que começa essas coisa É por isso que eu tenho raiva da infuca dessa cachoeira Eu tirei a placa que ficava aqui perto de casa e o Beto botou lá perto da casa dele por que eu às vezes de madrugada era acordado por gente bêbado e sem estilo pra amostrar a cachoeira Não vou negar que de primeiro eu até gostava mas depois vi que aquilo não ia dar certo É por que agora tá no frio mas depois você vai ver a presepada de todo tipo de gente que quer vim aqui Vem aqui e deixa o lixo aí e aparece com falta de respeito no terreiro da casa da gente por que pensa assim que a gente é uns coitados por que sabe que não tem nenhuma polícia aqui Eu não quero gente de fora aqui Uma vez veio um ônibus de gente de Salvador pra ficar aí na cachoeira e vieram pedir se eu não queria cozinhar galinha caipira e pirão pra eles Era por três dias eles ia me dar cem reais Eu olhei assim e disse que não queria não eu não quis dizer nada Eles pensaram assim que eu era um besta Oferecer cem reais que não paga nem as galinhas mas eu não disse nada não João Aceno Gabriel Pereira 45 anos em 151017 João Aceno Gabriel Pereira conhecido por todos as como João Colado tornouse uma liderança em reconhecimento à sua presteza em socorrer os parentes compadres e vizinhos nos momentos de necessidade ie por ocasião de doenças concessão de empréstimos e favores diversos assim como por sua disposição e espírito crítico para dialogar com políticos e outros agentes sociais do contexto regional Já fez parte por mais de uma vez da mesadiretora da Associação Quilombola da qual atualmente é apenas sócio Ele se ressente por algumas discordâncias entre as associações de Lajedo Palmeira e Coqueiros nas quais supõe que sua comunidade saiu prejudicada221 Esses desencontros levaramno a se distanciar do ativismo na causa quilombola não se opondo contudo que sua esposa e filha permaneçam ajudando na associação 221 Em um encontro de associações quilombolas promovido na sede da associação de Lajedo no dia 220117 para a surpresa de todos as o interlocutor se fez presente e externou toda a sua mágoa aos três vereadores que participaram do evento Dois deles são oriundos das comunidades quilombolas de Coqueiros e Palmeira e a terceira uma vereadora de Jacobina que ao tomar conhecimento dessa atividade apareceu no local pretextando desejar entender melhor as questões quilombolas João Colado que há bastante tempo deixou de frequentar as reuniões da associação falou por trinta e oito minutos durante os quais relembrou o desrespeito dos vereadores e argumentou que os mesmos nada fazem para melhorar a vida das pessoas da comunidade motivo pelo qual nem deveriam ter aparecido ali Todos as os presentes permaneceram calados À exceção dos vereadores que se mostraram constrangidos as pessoas estavam felizes e aplaudiram a intervenção de João No final do encontro após um almoço coletivo no terreiro da casa de Seu Gilberto foi formada uma pequena comissão de mulheres para solicitar da vereadora de Coqueiro que obteve muitos votos em Lajedo a reabertura da escola no período noturno o que todavia não foi por ela atendido 181 A preocupação externada pelo interlocutor revela conscientização em preservar suas terras em termos ecológicos e de permanente vigilância para que futuramente não tenham o território expropriado por fazendeiros ou outros indivíduos invasores Alguns moradores as à época da pesquisa mostraramse revoltados porque o espaço onde está localizada a cachoeira do Gelo fora comprado pelo irrisório valor de R 150000 Um mil e quinhentos reais pelo Grupo Amigos da Natureza GAM a pretexto de cuidarem de uma área de preservação ambiental A princípio segundo os quilombolas a equipe do GAM manteve o compromisso de promover a limpeza do local e colocar uma placa indicando a existência da queda dágua o que foi na sequência negligenciado Atualmente a cachoeira é frequentada por pessoas da região e outros turistas especialmente durante o verão o que tem ocasionado constrangimento às famílias quilombolas devido às desordens e à uma morte por afogamento Após a presença do GAM a cachoeira do Gelo tornouse divulgada sobretudo no contexto regional e os quilombolas passaram a visitála com menor frequência já que não se sentem satisfeitos diante dos visitantes de finais de semana que além de promoverem a poluição do local agredindo o meioambiente adotam comportamentos222 desrespeitosos Esse turismo inoportuno tem exposto as residências causado prejuízos às roças e à tranquilidade dos moradores nos finais de semana As duas vezes em que visitei a cachoeira do Gelo ao lado de Rose não encontramos nenhum banhista talvez por se tratar de um período frio e frequentemente chuvoso quando a queda dágua permanece mais volumosa despertando certo receio em função da profundidade do local Havia no entanto sacos plásticos litros de vidro e garrafas pet denunciando o comportamento inadequado dos últimos visitantes e a falta de zelo e acompanhamento por parte do GAM223 222 São comportamentos diversos e que variam desde brigas uso de bebidas alcóolicas e consumo de drogas 223 No período concernente às atividades de campo nunca tive ocasião de encontrar com qualquer membro do GAM Depareime casualmente com dois deles em Senhor do Bonfim e eles tiveram a indelicadeza de tecer considerações discriminatórias sobre as pessoas de Lajedo inclusive afirmando que elas não preservam aquela região Argumentei que o desrespeito à natureza e o vandalismo têm sido promovidos pelos turistas ocasionais que acampam por dois ou três dias produzem lixo e vão embora sem qualquer compromisso 182 Imagem nº 23 Cachoeira do Gelo Fonte Acervo da pesquisadora A comunidade está localizada a uma distância de 19 km da cidade de Mirangaba e a10 km do município de Saúde sendo possível chegar pelas duas rotas224 O acesso foi facilitado a partir de 2010 quando a prefeitura municipal de Mirangaba informada a respeito da existência do grupo e de sua condição de população tradicional se interessou por manter contato com os mesmos Foram realizadas algumas reuniões no decorrer das quais houve a proposta da abertura da estrada que era totalmente inacessível após a 224 O percurso por Mirangaba possibilita fazer todo o trajeto de carro mesmo durante os períodos mais chuvosos por uma estrada rural que vem sendo designada Grota Quilombola uma vez que concentra no mesmo raio os territórios de Carrasco Coqueiros Palmeira Lajedo e Santa Cruz do Coqueiro Já o percurso através da cidade de Saúde requer contornar as serras de moto animal ou a pé pois não há exatamente um caminho ou algo que possa ser chamado de vereda e sim uma pequena trilha cuja manutenção é feita a cada três meses pelos próprios quilombolas uma vez que muitos utilizam esse caminho semanalmente para alcançar a feira da cidade mediante um percurso de aproximadamente três a quatro horas Houve época em que foram remunerados pela prefeitura municipal de Saúde para roçar a trilha porém após a transferência de quase todos os eleitores locais para a cidade de Mirangaba só os votantes em Saúde são tratados como munícipes 183 comunidade de Palmeira e a negociação da transferência dos respectivos títulos de eleitor a A aproximação foi acolhida pela comunidade até então completamente abandonada pelo poder político de Saúde situação que ainda prevalece contemporaneamente Segundo os interlocutores as desde a época dos seus avós havia reivindicação de ajuda ao poder público para a abertura da estrada que em muito facilitaria o acesso de pessoas e mercadorias porquanto em diversas situações perderam parte de suas cargas devido ao deslizamento dos animais ao longo do trajeto sem que houvesse qualquer atitude de condescendência225 Apesar dos acordos firmados nos chamados anos políticos quando os candidatos pediam para reunir as famílias na residência de Seu João Colado e se comprometiam com a tão sonhada e necessária estrada A população de Lajedo afirma que no dia específico da eleição os potenciais eleitores as costumam ser tratados com deferência até as 17h00min quando é finalizado o fluxo de votação Em muitos de nossos diálogos eles comentaram sobre a ocorrência de humilhações nos ônibus no regresso até suas casas pois os motoristas percorrem o trajeto pronunciando palavrões e inferiorizando seu lugar de origem226 o que tem contribuído para a sua estigmatização e dos seus modos de vida A infraestrutura do Lajedo é basicamente constituída pelas casas dos moradores as e suas roças Algumas regiões ficam próximas umas das outras a exemplo da Várzea Comprida de Cima e Várzea Comprida de Baixo ao passo que outras variam de uma distância entre dois e quatro km entre si As únicas instituições são a escola227 e a Associação Comunitária dos Pequenos Produtores Rurais da Comunidade Quilombola de Lajedo228ACPPRCQL Outros marcos territoriais relevantes são cachoeiras rios pedras 225 Exceto nos anos eleitorais quando era costumeira a organização de uma frente de serviço constituída pelos próprios moradores para realizar a limpeza da estrada Nesse período geralmente eram remunerados por quinzena quando não eram ludibriados 226 Consoante às vozes locais no dia da votação os candidatos por vezes disponibilizavam e disponibilizam um ônibus para leválos até Saúde Nessas ocasiões o percurso é realizado pela cidade de Jacobina 227 Segundo já referido esta unidade se encontra desativada havendo apenas a permanência do imóvel 228 De acordo com os moradores as inicialmente ficaram vinculados à Associação Quilombola de Coqueiros haja vista que essa comunidade preconizou as movimentações em torno da causa quilombola na região Fundaram sua própria associação em 04 de maio de 2005 mas só obtiveram o registro em 04 de outubro de 2007 184 que chamam atenção por seu grande tamanho229 e o local onde funcionou uma extração de quartzo verde Imagem nº 24 Garimpo de Quartzo Verde desativado Fonte Acervo da Pesquisadora A escola Municipal Manuel Dias dos Santos230 é considerada o único benefício que a prefeitura de Saúde fez A construção da unidade foi uma promessa de campanha que ocorreu em um período muito tenso quando os moradores as não desejaram participar de reuniões com nenhum dos candidatos231 postulantes ao cargo de prefeito Embora seja constituída basicamente pela sala de aula a escola levou seis meses para ficar pronta 229 As quedas dagua rios e pedras já foram nominalmente citadas nesta tese 230 A unidade escolar recebeu esse nome em homenagem ao morador que doou o terreno para a construção 231 Mediante o que foi relatado pelos quilombolas mesmo diante da relutância demonstrada por eles o então candidato o senhor Antônio Fernando apareceu para uma visita que reuniu uma pequena assembleia diante da qual Antônio Fernando se comprometeu se vitorioso no pleito a construir a escola 185 devido à dificuldade encontrada para transportar o material assim como de conseguir mão de obra que se dispusesse a trabalhar no local Inicialmente os materiais começaram a ser transportados em uma caçamba através da cidade de Jacobina porém como o veículo tivesse quebrado por três vezes durante o trajeto o motorista paralisou as atividades A partir daí foi necessário mobilizar a solidariedade de todos os moradores para que auxiliassem no transporte do material restante que foi transportado em cargas de jumentos e mulas Muitos homens trabalharam como pedreiros e serventes uma vez que os trabalhadores de Saúde também se recusavam a continuar trabalhando na comunidade Segundo Seu Armando João dos Santos que participou ativamente da construção e cuja residência se localiza em frente à escola na região dos Aprígio a unidade foi inaugurada em 07 de abril de 1987 com a presença do prefeito Antônio Fernando Ferreira Rocha que chegou com uma comitiva da qual fazia parte o cantor Zelito Miranda232 transformando o evento em uma grande festa que permanece lembrada com euforia pela população adulta do lugar que além de desfrutar da festa aproveitou o momento para montar barracas de comidas e bebidas ganhando assim um dinheiro extra Imagem nº 25 Escola Manuel Dias dos Santos Fonte Acervo da pesquisadora 232 Artista ainda muito famoso e querido na região 186 Dona Rosália Matias dos Santos233 atuou como professora na comunidade por vinte e cinco anos após o que se aposentou Ela relatou que a primeira turma foi composta por quarenta e oito alunos e a última por apenas doze educandos Com a aposentadoria da docente a educação formal das crianças e adolescentes começou a ser negligenciada pois a Secretaria Municipal de Educação alegava não encontrar professoras es que desejassem residir no local Esse foi um período em que os moradores de Lajedo ficaram muito descontentes pois eles reconhecem a importância da educação escolar para melhorar a qualidade de vida de seus filhos as Estimulados por essa percepção positiva pressionaram coletivamente a Secretaria de Educação A mobilização surtiu efeito e duas educadoras lecionaram na comunidade as professoras Jeane dos Santos que é oriunda do próprio território embora resida na atualidade em Saúde234 e Euzenir da Silva procedente da comunidade quilombola de Palmeira Após o segundo fechamento da instituição educativa a situação foi contornada quando a prefeitura municipal de Mirangaba atendeu em parte os pedidos da comunidade ao assegurar transporte escolar para os estudantes que cursam a Educação Básica na sede do município e para as crianças em idade de Educação Infantil serem conduzidas à creche na comunidade de Palmeira O prédio escolar só é utilizado eventualmente nas ocasiões em que é organizada alguma brincadeira geralmente durante os festejos juninos Ainda no tocante à infraestrutura da comunidade as casas são em sua maioria construídas de adobe235 embora haja em menor quantidade algumas de taipa236 Essas residências são organizadas em pequenos cômodos tais como sala dois quartos e cozinha O fogão a lenha permanece aceso como utensílio de destaque não apenas para o cozimento de alimentos mas como o lugar mais concorrido durante os dias frios e chuvosos Em algumas residências há uma pequena varanda na parte frontal com um banco de madeira 233 A senhora Rosália é esposa de Seu Armando Iniciou suas atividades docentes como professora leiga tendo participado nos anos 2000 do curso oferecido pelo Programa de Formação para Professores em Exercício PROFORMAÇÃO através do qual concluiu o Magistério Ela recebeu o diploma em 20 de janeiro de 2003 234 A saída de Jeane da comunidade aconteceu após o seu casamento com um rapaz de Saúde Este veio a se tornar agente de saúde na comunidade 235 Residências modificadas por eventuais reformas apresentam parte de sua estrutura de bloco e cimento A maioria contudo são de adobe com exceção de algumas construções mais recentes localizadas na região de Várzea Comprida 236 Na atualidade essas residências geralmente são utilizadas para armazenar os produtos que serão comercializados nas feiras livres da região 187 e na maioria não existe banheiro237 São casas pequenas exceção feita à casa de Seu João Colado e de D Idália que é a maior da comunidade Em nenhuma delas há mais que duas portas de entrada e de saída da residência portas antigas que costumam fechar com a ajuda de tramelas Alguns dos quartos são divididos por cortinas de cores estampadas ou lisas Imagem nº 26 Casa de família quilombola na região dos Félix Fonte Acervo da pesquisadora Nas laterais ou ao fundo de algumas casas costuma haver um giral238 onde os moradores as guardam bicicletas motos ou carros239 Há também ao lado de quase todas 237 Apenas nas casas de João Colado e Armando há banheiro Na casa do segundo esse cômodo é recente tendo sido construído em 2017 238 Tratase de um cercado pequeno em forma de círculo ou retângulo feito à base de estacas e amarrado com arame liso 239 A moto se tornou um veículo acessível nas comunidades quilombolas sertanejas Em quase todas as regiões de Lajedo há esse transporte O automóvel porém ainda é uma aquisição de difícil acesso sendo privilégio de apenas três famílias 188 as habitações uma cisterna240 cuja presença melhorou significativamente o manejo da água Todas as casas foram edificadas sob o sistema de adjutório capaz de envolver não apenas as famílias de cada região específica mas os outros membros da comunidade e compreendendo desde o transporte dos materiais a maioria em lombo de animal até a doação do dia de serviço Imagem nº 27 Casa de família quilombola na região dos Aprígio Fonte Acervo da pesquisadora O tipo de piso varia entre o cimento grosso ou cimento queimado nas cores branca e vermelha Em duas casas nas regiões dos Félix e dos Aprígio uma parte considerável do piso é de cerâmica O telhado das residências praticamente não apresenta emadeiramento sendo construído com caibros comuns extraídos das roças dos próprios quilombolas e cobertos com telhas simples fabricadas nas cerâmicas ou olarias da região 240 Construídas a partir de 2015 mas há ainda residências em que elas inexistem 189 O formato singelo dessas construções bem como a precariedade de assistência médica e hospitalar favorece a exposição dos moradores as a uma proliferação de doenças que poderiam ser facilmente evitadas Observei que todas as crianças com as quais mantive contato são propensas ao desenvolvimento de micoses de pele que se transformam em pequenas úlceras sobretudo nas pernas e nos braços tratadas com remédios caseiros banhos de ervas e pomadas que são trazidas pelos agentes de saúde241 muitas crianças também são acometidas pela leishmaniose242 Entre a população adulta são constatados casos de doença de chagas esquistossomose e verminoses243 O mobiliário das residências observa um padrão uniforme isto é salas com sofás de dois e três lugares cobertos com capas uma pequena estante de madeira ou cristaleira e espelho de parede Em algumas cozinhas além do fogão a lenha há um fogão a gás pouco utilizado baterias ou peças de madeira que servem para guardar as panelas de alumínio potes filtros e uma pequena mesa com quatro a seis cadeiras A energia elétrica244 é uma conquista recente que ainda não contempla todas as regiões motivo pelo qual alguns moradores as conservam as placas de energia solar anteriormente instaladas Há porém algumas residências ainda não alcançadas pela energia elétrica e que os moradores não tiveram a possibilidade de instalar a energia solar nestas casas são utilizados apenas lampiões e candeeiros Essa situação os priva da aquisição de eletrodomésticos essenciais a exemplo de geladeira o que é motivo de contrariedade por parte das mulheres Embora quase todas as famílias possuam televisor nas casas sem eletrificação onde é usada a placa solar o aparelho permanece desligado durante o dia sendo utilizado somente à noite de modo especial nos dias muito chuvosos devido à precariedade da fonte 241 Dois agentes de saúde fazem acompanhamento na comunidade a serviço respectivamente das secretarias de saúde de Mirangaba e de Saúde As visitas acontecem semanalmente ou quinzenal A partir de 2015 a prefeitura municipal de Mirangaba atendeu a um pedido dos moradores as e passou a manter um médico a cada quinze ou trinta dias No dia de consulta o médico quase sempre se hospeda na região de Várzea Comprida onde se encontra o maior número de famílias 242 Segundo informações coletadas na Diretoria Regional de Saúde de Jacobina DIRES no final da década de 1990 a comunidade foi acometida por um surto de leishmaniose 243 Dados fornecidos pelos respectivos agentes de saúde 244 No mês de setembro de 2017 os primeiros postes de eletrificação começaram a chegar abrangendo inicialmente uma parte da região dos Inocêncio e de Várzea Comprida Os moradores que já dispunham de energia solar continuam a esperar a instalação de energia elétrica em suas regiões 190 de energia disponibilizada Poucas famílias possuem aparelho de som ou dvd sendo o rádio o eletrodoméstico mais popular A partir de 2019 o sinal de celular245 e a rede de internet246 passaram a ser disponibilizados ainda que limitadamente o que permanece dificultando em parte o trabalho desenvolvido pela associação quilombola inclusive as mobilizações para o recebimento das cestas básicas Não há também água encanada embora o perímetro ocupado seja totalmente banhado por rios247 e a solução encontrada por algumas famílias foi realizar o encanamento da própria cisterna e em alguns casos da água procedente diretamente do rio Assim é que em algumas casas há água na pia da cozinha em outras um cano jorra água continuamente no terreiro o que facilita o desenvolvimento das atividades domésticas Imagem nº 28 Cozinha da casa de D Mariene Fonte Acervo da pesquisadora 245 Exceção feita à região dos Félix onde o senhor João Colado e a senhora Idália adquiriram há algum tempo uma antena 246 Rose e José filhos do senhor João Colado utilizam a internet através dos dados móveis do aparelho celular desde o ano de 2016 247 Conforme foi referido no Capítulo 1 191 Causoume impressão a capacidade que esse grupo possui para desenvolver estratégias que tornem possível melhorar sua qualidade de vida assim como a sua permanência na comunidade Após certo período em campo comecei a entender melhor os fatores que concorrem para isso ou seja o sentimento que nutrem pela terra na qual dizem que se criaram e que também foi de seus pais as histórias de vida que construíram e constróem as labutas nos dias chuvosos248 e períodos de seca para permanecer naquelas propriedades constituir famílias erguer casas fazer roças e tecer identidades O preconceito a que é submetido no contexto regional não arrefece o seu sentimento de pertinência aos pretos do Quitero o povo dos Quitero ou ainda os parentes do Quitero véio Permanecer naquele território representa vivenciar a cada dia uma atitude de pirraça249 e resistência s 411 PELEJANDO O dia já estava terminando quando eu cheguei à casa de Seu Timóteo Joaquim Santos 40 anos morador da região dos Aprígio Era mais ou menos 16h30min e eu presumi que todos as estivessem em casa contudo a família ele sua esposa mãe e filhos estavam retornando das atividades desenvolvidas na roça todos encharcados devido à forte chuva que caíra desde o início da manhã Fiquei um pouco tímida porque considerando o horário não julguei ser a visita inoportuna Aparentemente Timóteo percebeu o meu desconserto e foi adiantando de maneira gentil Paula entre aí não se acanhe não É por que aqui a gente só vive pelejando250 na labuta mesmo Para as famílias quilombolas a peleja tem início por volta das 05h00min da manhã horário em que costumam levantar para preparar o café e a mistura251 que levarão no embornal de trabalho juntamente por vezes da água rapadura e farinha Todas 248 Em Lajedo ao contrário do que ocorre em muitas comunidades quilombolas do sertão baiano a intensidade das chuvas sobretudo antes da abertura da estrada os impossibilita de realizar a travessia das serras para a cidade de Saúde 249 Em muitas situações de diálogo no decorrer da pesquisa de campo ficou claro haver consciência de que o entorno representado pelos poderes políticos locais pouco se importa com sua existência 250 O sentido que as pessoas de Lajedo emprestam à palavra pelejar se encontra relacionado às atividades agrícolas que desenvolvem e com as quais ocupam praticamente todo o tempo 251 Palavra que utilizam para se referir ao almoço já que nem sempre costumam realizar essa refeição em casa 192 as pessoas da casa se envolvem nessa atividade que para as crianças e jovens é uma jornada reduzida devido à escola252 A labuta diária de segunda a quintafeira ocupa o tempo de homens mulheres e crianças que trabalham assiduamente em suas roças cultivando uma diversidade de produtos entre os quais feijão andu mandioca laranja tangerina e banana Essa é cultivada em tipos variados prata maçã café e a banana dágua Antes de iniciar o plantio é observado o preceito de rezar pedindo a Deus que abençoe e faça vingar a colheita Quando acontece o primeiro plantio do ano é comum as famílias que acreditam no preceito disporem de uma pequena garrafa contendo a água dos milagres253 encomendada ao último parente ou conhecido que tenha realizado romaria para Bom Jesus da Lapa porquanto consideram que esse rito proporcionará o sucesso de suas plantações bem como da venda de seus produtos Embora cada família trabalhe em sua própria terra sempre que se faz necessário montam um batalhão com o propósito de ajudar os vizinhos Todos são produtores de farinha254 chegando a produzir em algumas regiões cinco toneladas desse produto Além das dificuldades enfrentadas para a realização dessa atividade ocupação que envolve todos as os membros da família sem maiores distinções de tarefas o maior obstáculo é transportar os sacos de farinha até a feira livre da cidade de Saúde dando continuidade à tradição que foi iniciada por seus ancestrais cujas habilidades fizeram com que a farinha do Lajedo fosse apontada pelos consumidores como a melhor da região Conforme foi explicado por Seu João Colado em sua narrativa No meu tempo de menino e até hoje o que eu mais gosto é de trabalhar Vender minha farinha Aí eu faço dez sacos de farinha Não tenho como levar pra feira por que o animal não pode levar nem tem estrada 252 As crianças de até seis anos de idade estudam na comunidade quilombola de Palmeira os que cursam a Educação Básica e o Ensino Médio costumam se dirigir até a cidade de Mirangaba e há uma pequena quantidade de alunos as que estudam na cidade de Saúde e ali permanecem de segunda a sextafeira em uma casa mantida pela prefeitura retornando aos sábados para casa 253 Tratase de uma água retirada de uma fonte específica na Gruta do Bom Jesus da Lapa e que os quilombolas acreditam ser capaz de curar doenças ajudar nos partos das mulheres fazer prosperar plantações e protegêlos dos maus espíritos e visagens Geralmente o vasilhame contendo a água é trazido por seus parentes e compadrescomadres das comunidades de Coqueiros e Grota das Oliveiras 254 A feitura desse produto acontece de forma totalmente artesanal principalmente na região dos Aprígio onde a casa de farinha permanece levantada durante todo o ano De acordo com os moradores as em tempos pretéritos a produção de farinha ocupou o lugar de maior fonte de renda na comunidade 193 Se eu puder levar três quatro sacos pra rua chegar lá não tem onde deixar Aí o lugar fica muito desvalorizado João Aceno Gabriel Pereira 45 anos em 030716 Imagem nº 29 Casa de Farinha na região dos Aprígio Fonte Acervo da pesquisadora Praticam o extrativismo do coco babaçu255 e do leite da mangaba256 que é tirado no mato nas proximidades da cachoeira do Gelo cuja comercialização é feita a famílias específicas nas cidades de Saúde e Mirangaba através de encomenda prévia Há também na comunidade uma pequena pecuária de corte e leiteira que é mantida por um número diminuto de famílias cujo gado é criado solto 255 O coco é vendido nas cerâmicas da região para ser utilizado na fabricação de telhas Cada caixa do produto é comercializado pelo valor de R 300 reais Segundo as memórias orais em tempos pretéritos a atividade de quebrar coco babaçu ou a transformação deste em óleo representou a única fonte de renda de algumas famílias 256 O litro do produto é vendido por R 1000 reais para clientes diretos e atravessadores que o transportam para revender em cidades da região 194 Imagem nº 30 Sentado à esquerda Seu Joaquim D Idália Seu João Colado e Seu Valdevino de pé chegando do trabalho na roça Fonte Acervo da pesquisadora Os produtores possuem cavalos e jumentos utilizados sobretudo como animais de carga para transportar os produtos cultivados tanto nas roças como para as feiras livres da região Criam chiqueiros de porcos257 e em todas as casas há galinheiros que abrigam uma diversidade de aves tais como galinhas galos patos gansos e pavões Segundo D Idália fui eu a única pessoa diferente a frequentar sua casa que não sofreu a perseguição de seu ganso258 mais velho 257 A criação desses animais constitui uma importante fonte de renda em geral utilizada como uma espécie de depósito providencial em situações específicas como em casos de doenças ou realização de viagens repentinas Geralmente os padrinhosmadrinhas presenteiam seus afilhados as após a realização da cerimônia de batismo com suínos fazendo a recomendação isso aqui é para você fazer um futuro 258 Os quilombolas acreditam que essas aves enrrabam caso não simpatizem com o a visitante Quando isso acontece supõem que a visita possa estar investida de um propósito ruim em relação ao dono a da casa 195 Quando termina a peleja da roça tem início a peleja da feira pois as famílias observam semanalmente uma rotina itinerante para comercializar seus produtos percorrendo as feiras livres das cidades abaixo referidas Famílias de Lajedo identificadas por Região Dia da feira livre Cidade A família do senhor João Colado da região dos Félix Segundafeira Caldeirão Grande A família do senhor João Colado da região dos Félix Quintafeira Quixabeira Famílias das regiões dos Félix Aprígio e Inocêncio Sextafeira Mirangaba As famílias residentes em todas as regiões da comunidade todos os moradores de Lajedo participam dessa feira independente de comercializarem seus produtos ou não Sábado Saúde A senhora Idália esposa do senhor João Colado da região dos Félix Sábado Jacobina Tabela nº 03 Demonstrativo da trajetória percorrida pelos moradores para a comercialização dos produtos de suas roças em feiras livres da região Fonte Elaboração da Pesquisadora 196 A oferta dos produtos cultivados em feiras livres da região ao lado dos obstáculos enfrentados para fazer chegar com qualidade sua mercadoria representa para esses quilombolas sertanejos os meios através dos quais constroem autonomia e demonstram para a sociedade envolvente a capacidade de manejar a seu favor os recursos de que dispõem para permanecer em seu lugar de origem Em Lajedo o dia de sextafeira tem uma rotina particular pois em todas as casas os membros estão envolvidos em se preparar para a feira de Saúde haja vista que todos as têm o que levar desde as cargas maiores que saem nos caçoás dos jumentos até as pequenas encomendas que vão ser entregues a pessoas específicas Somente Seu João Colado possui uma caminhonete onde transporta os produtos de suas roças assim como outros artigos que compra para revender quando a mercadoria está pouca Por vezes os vizinhos preferem pagar a passagem e ir no carro do João o que acontece quando eles têm pouco para levar e vão primordialmente comprar gêneros alimentícios bem como querosene para os candeeiros ou ainda a gasolina que driblando as proibições permanece comercializada em pequenos vasilhames Aqueles as que realizam o trajeto a pé trazendo os animais com cargas costumam deixar a comunidade por volta das 02h00min da madrugada uma vez que o trajeto além de longo é incerto e se o animal deslizar e cair vão precisar levantálo e tentar salvar o que for possível de sua mercadoria Os interlocutores as afirmam que especialmente durante o período de maio a julho esse percurso é sempre mais dificultoso devido a fatores como chuvas serração e frio contribuindo para que principalmente as bananas cheguem ao destino machucadas o que implica na diminuição do preço do produto Esse é um dos principais motivos do ressentimento da comunidade para com o poder público da cidade de Saúde porquanto segundo os mesmos as o executivo municipal poderia sem maiores dificuldades resolver essa situação Geralmente eles chegam à praça e ao galpão onde se organiza a feira livre por volta das 05h30min e 06h00min da manhã ocupando seus respectivos lugares e montando suas bancas Costumam ser encontrados desenvolvendo suas atividades em espaços como os galpões das bananas e da farinha onde são muito procurados graças à tradicional oferta de produtos orgânicos o que fazem questão de enfatizar durante a transação comercial quando legitimam a qualidade de seus produtos por intermédio da expressão que se tornou recorrente pode confiar que aqui não tem remédio não Algumas mulheres e crianças 197 se deslocam para participar da missa dos feirantes celebrada aos sábados às 06h00min da manhã com o objetivo de contemplar as famílias de diversas áreas rurais do município que não costumam receber a visita de padres em seus territórios Por volta das 13h00min da tarde à exceção dos senhores João Colado Antônio José Clementino e Timóteo que permanecem comercializando feijão e farinha os outros as moradores as já se desocuparam da venda de suas mercadorias e dão prosseguimento à segunda etapa do seu dia na feira ie as compras domésticas que compreendem carnes gêneros de supermercado e pães Em algumas circunstâncias festivas a exemplo das datas correspondentes ao São João São Pedro e Natal de maneira especial as mulheres se dirigem às barracas de roupa e sapato e quando conseguem dispor de tempo procuram os serviços de uma manicure Além dessa rotina que assume aspecto quase regular a feira livre de Saúde representa ocasião para estabelecimento de socialização259 com os parentes e compadres das comunidades de Grota das Oliveiras e Água Fria260 Nessas oportunidades tomam conhecimento sobre o crescimento dos sobrinhos as afilhados as a saúde dos mais velhos agendam possíveis encontros comunitários e procuram agradar com pasteis refrigerantes balas pirulitos e outros doces tanto os afilhados as que conseguem encontrar nos dias de sábado quanto aqueles as que ficaram em casa e que receberão a encomenda que lhes foi enviada com gosto Em meio a essas chamadas obrigações a volta para casa acontece após às dezesseis horas para alguns uma vez que outros as preferem ficar na casa dos pais261 e passar a noite em sua companhia O domingo é muito esperado de maneira particular pelas mulheres para cuidar da casa encerar o cimento liso e arear as panelas de alumínio que são arrumadas caprichosamente nas baterias e prateleiras de suas cozinhas É também o momento de lavar as roupas sendo frequente mães e filhos as se dirigirem juntos ao rio onde passam boa parte da manhã transformando esses cuidados domésticos em pequenas diversões semanais tendo em vista que é no rio que as vizinhas se encontram e atualizam as conversas nessas ocasiões os sorrisos das mulheres vão ao encontro da algazarra 259 A comunicação é facilmente oportunizada já que no circuito da feira todos a ficam localizados próximos uns aos outros as em função dos produtos comuns que são oferecidos 260 Comunidades já citadas nesta tese 261 Quase todos os idosos de Lajedo que foram residir em Saúde são viúvos Razão pela qual a obrigação dos filhos as em dormir ao menos uma vez por mês ou ainda quinzenalmente fazendo companhia aos pais 198 promovida pelas crianças Os cuidados com os filhos são redobrados nesse dia quando as mães reparam em suas unhas por vezes os cabelos262 e cuidam da farda da escola As mulheres utilizam ainda o domingo para abastecer o estoque da lenha lavar filtros e potes Para os homens é o dia de cuidar dos animais sobretudo dos jumentos e cavalos visto que estes precisam estar saudáveis para enfrentar a rotina da semana Em alguns momentos é também durante o domingo que organizam os churrascos na cachoeira do Mandigueiro263 recebem parentes das comunidades de Coqueiros e Palmeira para um jogo de bola visitam uns aos outros recebem parentes que já deixaram a comunidade e estão morando em Saúde essas visitas são muito festejadas pelas pessoas do lugar pois elas sabem das dificuldades que precisam ser enfrentadas pelos parentes e amigos para alcançar suas casas264 e algumas mulheres vão à missa ou ao culto265 nas comunidades de Palmeira e Coqueiros A itinerância desses agentes não acontece apenas para as atividades de trabalho que ocupam a maior parte da sua rotina diária mas também nos momentos de festejos Eles se deslocam de suas residências ao longo de quase todo o mês de junho para participar das comemorações de São João nas cidades de Saúde e Mirangaba assim como das festividades de São Pedro no município de Caém Ficam ausentes de casa por até três semanas consecutivas Tratase de um período em que poucas famílias permanecem em Lajedo e organizam em 24 de junho um forró nas dependências do antigo prédio escolar ocasião em que acendem fogueira ficando a música sob a responsabilidade de Armando João dos Santos 68 anos que é o sanfoneiro da comunidade Armando aprendeu o ofício de tocador com seu pai o senhor João Joaquim dos Santos saudosamente lembrado 262 As meninas de Lajedo costumam recorrer a um profissional para cuidar dos cabelos a partir da adolescência Até então esses cuidados são realizados pelas próprias mães tias e ou madrinhas 263 Conforme já foi relatado essa cachoeira se localiza na região dos Félix 264 Quando essas visitas acontecem em outros dias da semana é comportamento comum os parentes levarem pão como forma de agradar as crianças O pão é um alimento muito apreciado em Lajedo e os estudantes ao deixarem a escola por vezes costumam comprar sacolas de pão que será consumido no café da noite 265 As celebrações religiosas costumam acontecer no período vespertino Entre as mulheres do grupo apenas a senhora Idália Santana de Azevedo costuma frequentar os cultos uma vez que é a única pessoa evangélica na comunidade 199 Os moradores de Lajedo aprenderam que autossuficiência é pressuposto para a permanência em seu lugar de origem Manifestam orgulho ao afirmar que não dependem do poder público e que em sua comunidade não querem político pelo meio Conforme já assinalado ressentemse profundamente da inexistência de uma estrada que lhes possibilite alcançar com tranquilidade a cidade de Saúde mas nem por isso deixam de tecer relações com a sociedade regional indo e vindo semanalmente oferecendo os produtos habilidosamente cultivados em suas roças As famílias que atualmente permanecem na comunidade não se colocam na posição de pessoas oprimidas e ou excluídas ao contrário em todos os caracteres que permeiam seus modos de vida elas pelejam para combater esses conceitos que talvez possam alicerçar os interesses da sociedade envolvente em relação a sua considerada teimosia266 em decidir ficar no território povoado secularmente por seus ancestrais e zelosamente cuidado pelos mesmos as Segundo as memórias orais em tempos pretéritos identificados entre os anos de 1920 e 1930 Lajedo já foi povoado por cerca de setenta famílias que devido às dificuldades já mencionadas em relação à moradia acesso à educação escolar assistência médica hospitalar e saneamento básico migraram para grandes centros urbanos tais como Minas Gerais São Paulo Rio de Janeiro e também para a cidade de Saúde No ano de 2010 a comunidade recebeu a visita de uma missionária católica a senhora Maria Rita267 que durante sua estadia escreveu com o auxílio dos moradores um texto sobre o território inclusive informando a quantidade de famílias residentes no local estimada à época em quarenta e quatro Ainda de acordo com os dados catalogados pela missionária cerca de trinta famílias haviam deixado o território 266 Em muitas ocasiões da pesquisa observando suas labutas diárias eu os questionei sobre os motivos que os levava a permanecer no local Eles me olhavam surpresos alguns até magoados por vezes silenciavam e depois esclareciam com altivez invejável que ali estavam por amor e teimosia Sentimentos que não foram apresentados pelos interlocutores as de forma ambivalente mas ao contrário foram manipulados de maneira complementar O amor por suas roças animais e parentes completase com a pirraça em desafiar um contexto político e social cujas atitudes denotam desrespeito e menosprezo por suas capacidades de enfrentar e contornar dificuldades históricas Consoante argumentou Domingas Rosalina dos Santos Dona Miúda 78 anos a única parteira viva da comunidade aqui minha irmã a gente vive por que é um povo ateimoso 267 Os quilombolas não se recordaram do sobrenome da missionária 200 A itinerância da população é um aspecto sociocultural produzido tradicionalmente por levas de moradores que em diferentes períodos ali se estabeleceram Outros permanecem tenazmente graças ao que denomino Artes da Resistência ou seja as Artes do Nascimento as Artes do Casamento e as Artes da Migração ao longo das interações e mobilizações que são estabelecidas 42 ARTES DO NASCIMENTO O nascimento de uma criança é cercado de muitas expectativas pois como esclareceu D Eulina Carmelina de Santana D Roxa durante uma conversa informal na residência de sua filha Idália A criança que nasce pode vim ser a valença dos pai Você não tem como saber quem vai lhe aproveitar268 na vida Então tem que fazer hoje pelo fio e depois ele faz amanhã por você Se Deus já deixou nascer nós tem que aceitar que é pro bem de todo mundo Aquele bem não é só do lado da criança Eulina Carmelina de Santana 75 anos em 30092018 Outros cuidados que segundo D Roxa devem ter os futuros pais que aguardam o nascimento dos filhos as é a observação e o acompanhamento do estado da natureza da criança haja vista que esta é uma situação que não pode ser prevista antes do rebento vir ao mundo Vai sendo revelada ao longo do crescimento da criança por atitudes que permitem antever suas subjetividades Dona Roxa é muito procurada pelos pais principalmente antes das crianças serem batizadas269 na igreja para que tenham o ramo passado na cabeça As crianças consideradas choronas ou medrosas são levadas semanalmente à presença da anciã 268 Nessa colocação o sentido que a interlocutora empresta a palavra aproveitar se encontra relacionado ao cuidado posterior que o filho adulto dispensa aos pais no momento da velhice 269 Para esses quilombolas sertanejos a criança que ainda não recebeu o batismo católico é considerada pagã Como não tem defesa a criança precisa ser cuidada isto é ser levada periodicamente até uma rezadeira que possa cuidar da defesa de seu corpo e espírito A rezadeira pode batizar a criança todavia costuma recomendar que ela receba o batismo prescrito pela igreja 201 para que por meio de rezas sejam curadas e não cheguem à adolescência com a natureza fraca A interlocutora relatou que durante as rezas ela costuma acender a luz270 para identificar a natureza do menino Após as rezas D Roxa orienta os pais sobre como dar providência na proteção271 do filho a A natureza boa deve ser incentivada A natureza ruim tem de ser combatida com benzimentos e às vezes com obrigações como acender uma vela para o anjo da guarda da criança Isso pode ser feito tanto pela mãe quando pela avó materna ou paterna até quebrantar a natureza má a família tem de cuidar Caso esses zelos sejam negligenciados na primeira infância até os sete anos de idadeessa natureza toma conta da pessoa e aí quem vai rebater As crianças de zero a dez anos de idade nasceram em hospitais públicos das cidades de Mirangaba e Jacobina272 Os demais habitantes da comunidade nasceram em casa pela mão de parteira Por esse motivo todas as mulheres do grupo possuem experiência de pegar menino visto que conhecer essa ciência era um requisito para assegurar a vida da mãe e da criança Assim destacou Dona Mariene enquanto dava banho em sua neta nascida na maternidade do hospital Regional Dr Antônio Teixeira Sobrinho em Jacobina Aqui Paula quase toda mulher tem obrigação com os filho das outra mas aquela que cortou o cordão do imbigo essa é mãe também Igual àquela que deu leite ao filho da outra essa também é mãe É por isso que você vê tanta bença aqui Quem não dá bença pedir a bênção todo dia mas no dia de Sextafeira da Paixão tem que vim e dá a bença a mãe de imbigo Tem de considerar o irmãozinho de leite Mariene Isautina dos Santos 47 anos em 08042018 270 Tratase de uma simpatia realizada pela anciã que não desejou fornecer maiores detalhes a respeito 271 A proteção está relacionada tanto ao dia do nascimento quanto ao anjo da guarda da criança Caso ela tenha nascido em um dia considerado santo ou seja em um dia atribuído a um santo venerado pelo catolicismo a criança deverá zelar pelo santo visto que este é seu protetor Inclusive deve ser batizada com o nome da entidade Porém se o nascimento da criança tiver acontecido em um dia tipificado como comum a dedicação deve se voltar em rezar pelo anjo da guarda No capítulo 1 fiz referência à maneira como acontece o que a população de Lajedo denomina o zelo da proteção 272 A abertura da estrada possibilitou esse comportamento 202 As crianças crescem sabendo quem é sua mãe de imbigo273 e ou sua mãe de leite274 Desenvolvese entre elas um vínculo norteado pelo agradecimento respeito e cuidado que dura toda a vida Para as mulheres quilombolas é preciso honrar esses laços275 que são parte do destino da pessoa como enfatizou D Narcisa Inocêncio ninguém foge do destino O destino é uma coisa que acompanha Que pega a pessoa Já vem no nascimento não tem como cortar Os mais velho sempre diz isso A palavra dita e a experiência das gerações mais velhas ocupam o lugar do conhecimento e são adotadas pelos adultos jovens e crianças tanto para nascer quanto para se criar Enquanto cortava madeira para lenha D Idália se divertiu ao lembrar que durante a sua primeira gestação276 não fazia ideia de como era o nascimento de uma criança Mas ela precisou parir sozinha o seu filho mais velho pois não houve tempo para o seu esposo chamar a parteira que se encontrava na cidade de Saúde Seu João Colado saiu de a pé277 em busca da sogra para pegar o menino Porém quando ambos retornaram ao Lajedo a criança já havia nascido e sua mãe D Roxa teve apenas o trabalho de cortar o cordão umbilical se tornando assim avó e mãe de imbigo de seu neto Embora as mulheres tenham afirmado que precisaram obter experiência nos casos de parição apenas algumas são apontadas como parteiras e tratadas com enlevo por terem pegado quase todas as crianças da localidade São lembradas como parteiras do grupo as senhoras Firmina Inocêncio Antônia Francisca Dita do Inocêncio e Miúda Dentre elas Miúda é a única ainda viva e residente na comunidade Todas são chamadas de mãe e recordadas com afeto 273 Condição atribuída à mulher que corta o cordão umbilical no momento do parto Essa função de acordo com as interlocutoras é sempre desenvolvida pela parteira Razão pela qual as crianças são incentivadas a chamála de mãe forma de tratamento que manterão ao longo da convivência A parteira ou mãe de imbigo passa também a ser responsável em parte pela educação da criança podendo interferir em sua natureza principalmente no momento de abençoála conforme já foi explicado no Capítulo 1 274 É chamada mãe de leite a mulher que amamenta o filho a de outra quando a mãe biológica não possui leite suficiente para isso ou ainda quando a criança se recusa a mamar na mãe 275 As crianças são estimuladas desde cedo a identificarem seus irmãos de leite para que posteriormente não venham estabelecer união matrimonial entre si 276 As mulheres da comunidade começaram a fazer acompanhamento prénatal a partir do ano de 2014 Até então todas as orientações a respeito da gestação eram ministradas pelas parteiras e mulheres mais velhas 277 Com o propósito de situar o leitor a em relação ao tempo decorrido para ir e voltar da comunidade para a cidade de Saúde Informo que o senhor João Colado gastou cerca de quatro horas para realizar o trajeto 203 Dona Miúda é tratada com estima por todos os moradores as Os quilombolas mantêm o hábito de tomar bênção à anciã e presenteála com artigos comprados nas feiras livres ou adquiridos durante viagens São agradecimentos pelos cuidados e dedicação de D Miúda às mulheres de Lajedo e às suas parentas que migraram para as comunidades de Grota das Oliveiras e Água Fria Atualmente em virtude da idade sua avançada e da facilidade que as parturientes possuem para se deslocar da comunidade de Lajedo para a maternidade D Miúda não é mais requisitada para realizar partos Todavia em Grota das Oliveiras seus trabalhos ainda são solicitados Domingas Rosalina dos Santos é também conhecida pelos residentes de Lajedo como Mãe Miúda Quando indaguei à interlocutora sobre a origem do apelido obtive como resposta uma justificativa simpática é promode a altura você não tá vendo que é quase do meu tamanho Essa observação que arrancou sorrisos dos presentes foi complementada pelo comentário de Seu Alberto Mãe Miúda é pequena no tamanho mas grande no coração Nós nos conhecemos em sua residência na região de Várzea Comprida considerada uma das mais longínquas do território Fui alertada pelas mulheres de Lajedo de que talvez D Miúda não quisesse conversar comigo pois a parteira estava sendo atormentada por algumas visagens Alberto que à época ocupava o cargo de presidente da associação me acompanhou na primeira visita a D Miúda Os pais de D Miúda foram os primeiros moradores da região de Várzea Comprida e ela é a residente mais velha do local Eu a encontrei trabalhando em sua roça de mandioca e andu Ela me pareceu uma senhora alegre e bastante lúcida embora preocupada com a doença da filha que à época estava internada no hospital da cidade de Jacobina Assim que me viu D Miúda disparou é você que vive por aí procurando saber da vida do povo do Lajedo Veio me perguntar também Pensei que não vinha me ver porque dos morador véio agora aqui só tem eu mesmo A espontaneidade da acolhida me deixou bastante à vontade e surpreendeu Seu Alberto pois todos as haviam alertado que D Miúda se encontrava meio adoentada e que por isso eu não deveria visitála 204 Imagem nº 31 Dona Miúda Fonte Acervo da pesquisadora Dona Miúda é uma mulher de personalidade forte mora sozinha e reformou recentemente a sua casa Guarda devoção a São Sebastião Ela afirmou não se recordar quando começou a atuar como parteira Após conversarmos por algum tempo D Miúda indagou a moça veio saber como os menino nasce no Lajedo Pode perguntar Nascer aqui é difícil mas com a graça de Jesus e Nossa Senhora nasce Eu fiquei encantada com aquela mulher que parecia antecipar os meus questionamentos Ela relatou como realizava as atividades que a celebrizaram como Mãe Miúda na comunidade do Lajedo Eu não tenho maltratação com mulher que eu sou mulher também Eu só pego o menino na força de Deus e de Nossa Senhora Nunca morreu uma mulher em minha mão nem teve um menino que não vingasse De minha vida toda sá menina só precisei acompanhar duas mulher pra Saúde 205 Uma foi comade Dália mas nasceu no caminho mas o resto nasceu tudo aqui Aqui nessa Várzea Comprida peguei esses menino tudo Peguei Beto aí que você tá vendo Tem que ter fé Por que às vezes a mulher não despacha Aí é preciso oração278 Isso é coisa que não pode dizer Arruda e caatinga de bode arruda e caatinga de bode dentro de uma cabaça e às vezes amarrar a dona do corpo279 Às vezes a dona do corpo tem que ser amarrada Isso é coisa que não pode dizerChama por Deus pra dar força à mãe e o menino nasce Domingas Rosalina dos Santos 78 anos em 22082016 Imagem nº 32 Dona Miúda arrumando lenha em sua cozinha Fonte Acervo da pesquisadora 278 Dona Miúda não desejou falar sobre a oração Ela se absteve em informar isso é coisa que não pode dizer 279 Mediante sucessivas indagações de minha parte a interlocutora explicou que a dona do corpo consiste em uma horta lateral que a mulher possui Essa horta se movimenta e por vezes é preciso rezar para acalmar e amarrar Para a senhora Miúda a dona do corpo é equivalente à força e ou a saúde da mulher Ainda segundo suas concepções é por isso que existe o período de resguardo isto é com a finalidade de reestabelecer a saúde da dona do corpo 206 421 RITOS DE PARIÇÃO Do período de gestação ao nascimento da criança as mulheres cumprem ciclos de um mesmo rito280 iniciados de acordo com D Miúda quando a gestação é anunciada Nesse momento cabe às mães ou às sogras deitar uma galinha281 para de sua ninhada retirar alguns frangos e castrálos no terceiro ou quarto mês de gravidez Esses frangos serão utilizados para preparar o pirão da parida282 Durante o período de gestação devese evitar fazer bramuras283 pois as mulheres precisam estar saudáveis e ter força suficiente para colaborar com a atividade da parteira contribuindo para que o seu filho a venha ao mundo a esse mundo por que no mundo o menino já tá A gente é que num sabe afirmou D Miúda As dores do parto ocorrem no segundo ciclo e para esse momento as mulheres mantêm em casa uma garrafa de azeite doce que será oportunamente utilizado pela parteira Quando as dores se intensificam a irmã ou a cunhada284 e na ausência dessas a vizinha mais próxima são chamadas pelo marido da parturiente que se desloca para buscar a parteira Enquanto se espera a parteira se ferve um buião285 com ervas como folha de arruda algodão maravilha mamona e caatinga de bode folhas combinadas para o banho de assento da mulher Além de proporcionar o asseio essas ervas estimulam o aumento das contrações A parteira confecciona o unguento macerando as ervas no azeite doce sempre pisado em um caco de barro para ser passado nas partes fina da mulher para amolecer as parte 280 Cunho nesta tese o conceito Ritos de Parição para descrever as fases atravessadas pelas mulheres quilombolas de Lajedo desde a gestação formas de nascimento e resguardo dos filhos as Embora os partos domiciliares não mais aconteçam na comunidade suponho que não seja descabido relatar a riqueza dessas experiências haja vista que mantive a oportunidade de conhecer e conversar com a mulher apontada como a única parteira viva do grupo 281 Mediante o que foi explicado pelas interlocutoras corresponde ao ato de colocar a ave sobre os ovos para que assim possa incubálos 282 De acordo com D Miúda e D Maria do Rosário as mulheres paridas devem preferencialmente comer capãos isto é frangos castrados visto que estes são separados em um puleiro evitando assim que comam toda sorte de comidas e portanto se tornem alimentos adequados a dieta que deve ser seguida por parte da parida 283 Na compreensão externada por D Miúda e outras mulheres do grupo evitar fazer bramuras equivale à abstenção de alguns alimentos considerados carregados conforme foi relatado no Capítulo 1 e abdicar dos trabalhos da roça que são divisados como serviços pesados 284 Essas parentas são trazidas para a casa da gestante ainda no oitavo mês da gravidez com o propósito de passar o período de resguardo Rose na condição de cunhada foi a segunda pessoa a segurar no colo sua sobrinha a pequena Ana Mirela que nasceu em dezembro de 2019 A menina é a primogênita de Zé o filho mais novo de Seu João Colado 285 Como são chamadas as panelas de barro que permanecem rotineiramente no fogo 207 para que elas fiquem bem abertas para facilitar a passagem do bebê Geralmente o trabalho da parteira é auxiliado pela mãe e pela sogra da parturiente Por isso as mulheres do Lajedo se tornam experientes noscasos de parição Com base nos relatos de D Miúda identificamos cinco diferentes tipos de parto286 mediados pela anciã que proporcionaram a continuidade e a renovação da vida entre os atores sociais de Lajedo Para auxiliar a expulsão do feto do útero materno nos partos que se apresentavam como mais fáceis D Miúda oferece alguns goles de cachaça com arruda à parturiente para ajudála a ter mais força para expelir o bebê Caso a parturiente peça é colocada uma rodilha de pano em sua boca para evitar que ela grite e comprometa o processo Nas palavras da anciã Quando eu chegava que olhava a mulher aí eu já sabia se ela tinha condição ou se ia demorar Quando tinha condição eu chamava por Deus e Nossa Senhora Botava mais duas mulher de coragem pra ajudar a segurar uma nos braço e a outra me ajudava no que fosse preciso Aí era só apertar a mãe que a danada paria Com pouco tempo eu já via era a cabeça do menino Graças a Deus Domingas Rosalina dos Santos 78 anos em 15102017 O segundo tipo de parto ocorre quando asituação se complica ou seja quando a criança passa do tempo de nascer causando angústia à família Nessas situações a parteira sugere um método que por vezes assusta os presentes todavia costuma ser eficiente Nesses casos D Miúda solicita às pessoas da casa que amarrem uma corda no caibro do telhado do quarto dandoa à parturiente para puxar O esforço pressiona a saída do bebê ajudandoo a nascer Quando esse método não surte efeito D Miúda aciona dois elementos intercambiáveis coragem e fé em Deus e faz uso de outras técnicas para evitar que a mulher ficasse estrupiada Esse é o terceiro tipo de parto quando a criatividade associada à fé e a sabedoria ancestral são utilizados não apenas pela parteira mas por todas as pessoas que estão na residência O marido é convidado a entrar no quarto e auxiliar na tarefa de desprenhar a mulher 286 Informo ao leitor a que as experiências narradas por D Miúda abrangem toda sua trajetória de parteira Não são relatos circunscritos a comunidade de Lajedo 208 Segundo D Miúda sendo o marido um homem de força compete a ele dar início aos atos de suspender e sacudir cuidadosamente a mulher enquanto a parteira se prepara paraaparar o menino Se isso não surtir efeito as mulheres de coragem e que soubesse entrava no quarto e começava a rezar o Ofício de Nossa Senhora287 À essa altura a parteira solicitava uma gamela288 sobre a qual a parturiente deveria sentar assim tendo início o quarto tipo de parto A parturiente é sustentada por outra mulher enquanto a parteira macerava as folhas nas partes fina em uma labuta insistente pela sobrevivência da mãe e do filho a É um momento crucial Não era toda parteira que enfrentava não pausa Moça eu lhe digo que essa é uma hora que se você não tiver fé em Deus você abandona Porque é muito sofrimento Mas eu chamo por Nossa Senhora que é mãe e aí eu abaixo de Deus faço Que eu nunca deixei mulher na mão Eles aqui sabe disso e as duas que não nasceu por minhas mão eu levei mais os homem pro hospital e os médico tiraram a criança Domingas Rosalina dos Santos 78 anos em 15102017 A anciã se refere ao quinto tipo de parto considerado o mais doloroso consiste em sem anestesia apenas com a ingestão de alguns goles de cachaça para entorpecer e reduzir as dores a parteira corta a puérpera com um ferracho melado na cinza289 É também a parteira quem costura de modo artesanal dando dois ou três pontos nas parte da mulher Quando essas complicações ocorriam o parto podia durar até três dias Findo esse período se não houvesse êxito a parturiente era transportada por parentes e vizinhos e pela 287 As mulheres que rezam o Ofício não podem mais ajudar na operação pois o Ofício de Nossa Senhora é uma oração que não pode ser interrompida Atualmente poucas pessoas na comunidade conhecem essa oração que permanece sabida pelas mulheres de Grota das Oliveiras porquanto muitas delas continuaram e por vezes continuam parindo seus filhos em casa e com a ajuda de parteira 288 Também chamada de aribé Tratase de uma vasilha grande e de madeira que os quilombolas usam para lavar louça pés e quando é necessário fazer o asseio do corpo As mulheres costumam manter várias vasilhas desse tipo em casa cada uma para uma finalidade específica 289 Uma faca quente passada em brasas 209 parteira preferencialmente em uma rede290 para a maternidade do hospital Nossa Senhora da Saúde Mulheres e homens que presenciaram e se envolveram nessas situações adversas destacaram o sentimento de fraternidade que os define como uma parentagem só Transcrevo a seguir algumas narrativas Que eu mesmo já levei muita gente no braço na rede pra Saúde seja mulher pra ganhar menino seja gente doente Ajunta os homens tudo da comunidade e leva Rosa mesmo quando adoeceu botando sangue que não teve vasilha que chegasse teve de ir amuntada passou trinta dias internada pra poder fazer uma cirurgia Depois foi que Deus abençoou que melhorou Quando foi ter as crianças precisou sair daqui em rede e se chega em Saúde e não tem médico tem que levar pra Jacobina Armando João dos Santos 68 anos em 16062016 Segundo os moradores do Lajedo era preciso reunir um batalhão de homens para retirar à parturiente Semelhante estratégia é às vezes empregada para retirar pessoas doentes com destino ao hospital O batalhão que variava entre quinze e vinte homens que se revezavam para alumiar o caminho e carregar a mulher na rede Essa era uma atividade que requeria não apenas habilidade mas também paciência conforme enunciou Seu Joaquim dos Santos Moça podia ser de noite mas tinha que levar Uma mulher tava doida pra parir A gente pegava essa mulher botava na rede e levava pra Saúde Quando a mulher dava aquela dor pior a gente parava e botava a rede no chão E isso era uma vergonha porque não tinha estrada como até hoje não tem Agora mesmo nós vai roçar o caminho de novo Você tá vendo esse prédio de escola aí Tá parado que a maior parte dos pai e mães de família aqui mudou pra Mirangaba por causa da ingratidão dos prefeito de Saúde aqui Joaquim dos Santos 78 anos em 15062016 290 A partir da abertura da estrada e mesmo em dias atuais a rede se constitui um utensílio adquirido por todas as famílias da comunidade A especificidade desse objeto se faz sentir sobretudo na descrita hora da precisão 210 A falta de políticas públicas estimulou o desenvolvimento de práticas que aprimoraram e aprimoram uma autossuficiência uma vez que se encontram praticamente abandonados pela sociedade envolvente Esse abandono político e social que provoca um sentimento de indignação coletiva contribuiu também para ressignificar os laços de parentesco de compadrio e de coesão comunitária Como destacou Seu João Colado A gente fazia assim quando era mulher que ia parir ou assim quando adoecia um chamava a comunidade toda Se tivesse uma rede que cada morador aqui tinha que ter uma rede se a pessoa não tivesse arrumava Aí ajeitava num pau e levava nas costa pra Saúde Eu mesmo cansei de levar Teve uma mulher mesmo aqui na Várzea Comprida o filho dela botou um espeto no fogo Ela sentou de mau jeito aí furou as partes fina Eu tava até rancano mandioca nesse dia aí vieram me chamar Aí nós ajuntou um bucado de homem e levemo nas costa pra Saúde Teve um cunhado meu também que nós ajeitou na rede aí levemo até seu Caboco Aí vem um carro pra pegar ele aí também nós disse que não bota no carro não Nós já trouxe até aqui agora leva até no hospital véio Aí se o dono do doente tivesse condições dava umas cachaça umas bolacha à gente Aí a gente comia deixava lá e ia embora Se não tivesse condição cada um comprava sua bolacha seu líquido era a cachaça a cachaça não faltava João Aceno Gabriel Pereira 45 anos em 03072016 As mulheres principalmente as que precisaram ser retiradas em redes também expressaram seus sentimentos que variaram do riso à revolta pois a caminhada era dolorosa e perigosa e às vezes agravava a situação na qual se encontravam A duração do trajeto era determinada em parte pelo estado da parturiente uma vez que em alguns momentos era preciso parar quando as contrações aumentavam e a parteira informava que a criança ia nascer ali mesmo sob a luz de candeeiro e no meio do mato O trajeto era realizado tanto durante o dia quanto à noite às vezes debaixo de chuva com o rio cheio Após uma reunião da associação de Lajedo D Maria do Rosário relatou que sua penúltima filha nasceu no hospital da cidade de Saúde e que ela foi transportada em uma 211 cama por quinze homens e duas mulheres uma delas solteira291 A criança para a surpresa de todos as acabou nascendo durante o trajeto Como nenhuma das mulheres presentes conhecia os procedimentos pós parto mãe e filha foram conduzidas até o hospital Esse episódio gerou revolta entre os moradores as de Lajedo pois como assinalou D Rosália minha irmã era moça e teve que fazer o parto Então o que é isso Devido às circunstâncias do seu nascimento a filha de D Maria do Rosário foi apelidada pelos parentes de a menina da estrada Outra situação difícil foi a enfrentada por D Idália Parturiente aguardou três dias em sofrimento e sem sucesso o nascimento do seu terceiro filho Zé D Idália foi transportada para a maternidade no lombo de um jumento acompanhada por seu esposo a parteira e por mais dez homens da comunidade Ela foi submetida a uma cesariana O episódio me foi relatado por seu irmão AlbertoVisivelmente chateado ele descreveu uma situação semelhante vivenciada por sua exesposa Era na comunidade Agora é nascido as criança na cidade mas antigamente era tudo aqui Uma vez mesmo minha esposa aqui foi abaixo de Deus a parteira Que a criança nasceu morta nasceu já morta a criancinha Minha irmã mesmo que ela tá aí pra contar passou três dias em cima de uma cama pra parir o menino Aí a gente mesmo que foi conversando conversando Aí montaram ela em um jegue daqui pra Saúde ela sentindo dor e a parteira atrás e os homens atrás Aí ela foi chegou lá no hospital doutor Sérgio foi e tirou a criança dela Tá aí pra contar o caso se tivesse morrido era por quê Porque não tinha socorro Que a gente não tinha uma estrada Agora hoje em dia pra gente umas coisas tem outras não O médico vem aqui uma vez por mês fica num ponto Numa casa e todo mundo vai lá Alberto Santana de Azevedo 48 anos em 16062016 Em meio a sorrisos e protestos os quilombolas sertanejos do Lajedo relataram as suas idas ao hospital Nessas ocasiões atraíam a atenção de populares pois saiam de casa sem se ajeitar para prestar o socorro e quase sempre chegavam ao hospital com a roupa e o 291 Nessa ocasião a parteira se encontrava ausente da comunidade 212 corpo sujos de lama Não poupavam esforços para assegurar o bemestar do paciente As mulheres além de ser retiradas de suas casas sem os recursos apropriados por vezes necessitavam permanecer afastadas de seus outros filhos as e regressavam a pé ou montadas em um jumento Como descreveu D Rosa Eu mesmo minhas meninas quando eu ganhei eu tive que sair de rede daqui A primeira e a segunda porque não tinha carro não tinha transporte né E aí tinha que esperar ficar boa a criança ficar durinha pra voltar pra casa de pé Rosália Matias dos Santos 65 anos em 03072016 Todavia o nascimento da criança coroava os esforços principalmente se ocorria na casa dos pais pois então era possível celebrar com os parentes da região os compadrescomadres e vizinhos Assim ponderou Seu Antônio José Clementino conhecido como Heranga sobrinho de D Miúda Que até filho meu já nasceu aqui Nasceu dois No caso mesmo de minha esposa no dia só tava eu e minha mãe e minha mãe não era parteira mas era experiente véia no ramo Aí foi ela que ajudou e com a graça de Deus deu certo Antônio José Clementino 40 anos em 02072016 Os quilombolas do Lajedo comunicam o nascimento de seus filhos as à família expandida pronunciando a louvação Viva a Nosso Senhor Jesus Cristo soltando fogos ou disparando tiros para o alto Para anunciar tanto o nascimento292 quanto a chegada do novo habitante do lugar os pais mantêm por hábito disparar três foguetes ou tiros quando se trata de um menino e dois para anunciar que é uma menina Além disso abrem uma garrafa de cachaça guardada para a comemoração O primeiro gole é do pai o segundo é oferecido ao padrinho da criança Em seguida a garrafa é compartilhada entre os presentes 292 De acordo com as mulheres do grupo caso não haja tempo a criança ainda nasce em casa visto que todas elas possuem experiência nesse tipo de atividade O que houve é que após a abertura da estrada os sofrimentos demasiadamente enfrentados durante o parto passaram a ser evitados pois não há motivo para colocar em risco a vida da mãe e do infante 213 Como explicou D Miúda aqui tem que comemorar minha fia que aqui nós se alegra com tudo É mais um valente chegando no mundo Após o nascimento da criança se estabelecia um novo vínculo entre D Miúda e a parturiente Elas se tornavam comadres Para a mãe da criança se iniciava uma nova fase caracterizada pelos cuidados do resguardo o último ciclo dos Ritos de Parição As prescrições relativas ao resguardo quando seguidas fielmente regulam a saúde feminina são cuidados prescritos não apenas pela parteira mas por todas as mulheres mais velhas especialmente mães e sogras Elas são depositárias de conhecimentos de saberes da resistência pois caucionam a saúde e atestam a continuidade da vida por meio de banhos de ervas chás infusões benzimentos e orações manuseados com fé e respeito As mulheres de Lajedo não se sentem à vontade para comentar sobre a dieta do resguardo na frente de seus maridos pois eles não são receptivos a todas as etapas que a caracterizam principalmente a abstinência sexual Por esse motivo durante a dieta do resguardo é comum à mãe da parturiente deslocarse para a residência do casal com o fim de assegurar à mulher a abstinencia sexual pois quando ela não é observada pode ocorrer uma gravidez sucessiva desencadeando problemas que afetam a saúde da mulher Tratase de uma relação de opressão entre agentes estruturalmente oprimidos em termos de classe e raça e no âmbito da qual o homem o cônjuge masculino oprime adicionalmente a mulher em uma clara intersecção de gênero O contexto forças econômicas culturais e sociais colabora para colocar as mulheres em uma posição onde acabam sendo afetadas por outros sistemas de subordinação CRESHAW 2002 p 176 É oportuno também referir à alternativa que no caso referido é acionada para contornar o constrangimento de caráter sexual passível de ser causado pelo cônjuge masculino sobre o feminino ie a presença da sogramãe que ali está principalmente como pessoa moral MAUSS 1974 em decorrência da relação de parentesco e senioridade um claro sinal de que falta à cônjuge feminina o que parece exceder no homem ou seja condições objetivas para exercer a sua vontade autônoma Na sociologia Weberiana como é sabido a dominação constitui um caso especial de poder caracterizado pela possibilidade de impor ao comportamento de terceiros a vontade própria WEBER 1991 p 187 214 Nesse período os banhos de assento costumam ser executados mormente o banho de arruda e da pedra una293 Porém o corpo apenas deve ser lavado após transcorridos três dias do parto e o cabelo após um intervalo de trinta dias Todavia segundo D Mariene tem mulher que só lava a cabeça com noventa dias As mais véia que era assim Eu lavo com menos que isso depende é da pessoa Nos primeiros trinta dias do resguardo a mulher permanece em casa evitando contato com o terreiro e a malhada Ela deve se esquivar de escutar barulhos fortes passar sustos e ter quaisquer contrariedades para não quebrar o resguardo294 Os três primeiros dias que sucedem o parto são considerados fundamentais tanto para as mulheres que parem em casa quanto para as que regressam do hospital Elas devem ficar reclusas no quarto com os ouvidos tapados um lenço amarrado na cabeça e calçadas com meias preferencialmente do marido Concluído esse breve período de recolhimento nas palavras de D Maria do Rosárioa mulher vem e senta na porta do quarto em riba de uma esteira pra comer o pirão da parida O período do puerpério é vigiado sempre pelas mulheres da casa as mães e as sogras são guardiãs dessa observância ao passo que as mulheres solteiras só observam pois não é recomendado que opinem No entanto todas elas aprendem esses saberes que cada uma possivelmente desenvolverá a seu turno Os primeiros dias que sucedem o parto também seguem em estado de vigilância para o bebê pois a circunspeção do umbigo precisa ser assistida pela parteira ou pelas avós materna e ou paterna As mães temem que seus filhos venham a padecer do que descreveram e descrevem como o mal de sete dias295 que é uma doença que ataca o imbigo da criança Para evitála realizam um procedimento conhecido como a cura do imbigo através do uso do pó de couro296 No sétimo dia de vida do recémnascido não o retiram do quarto evitam banhálo e o vestem com uma roupa vermelha esses cuidados iniciados pela manhã são estendidos até o período noturno quando os pais se furtam de 293 Cientificamente conhecida como Pedra Hume 294 As mulheres de Lajedo acreditam que o período referente ao puerpério precisa ser respeitado pois quando acontece de forma contrária não apenas a saúde física da mulher fica abalada como também a saúde psicológica podendo resultar até mesmo em loucura Foi colocado pelas mesmas que caso o resguardo seja quebrado o sangue pode subir pra cabeça e a mulher enlouquece 295 A medicina tradicional denomina de tétano neonatal 296 As interlocutoras explicaram que o coto umbilical do recémnascido é realizado a partir do uso de um pedaço de sola torrado ao fogo que após esse processo é transformado em polvilho e utilizado como cicatrizante 215 deixar o quarto no escuro Os primeiros sete dias da vida da criança são temidos e seu término é sinônimo de alívio para a família Para os membros da comunidade de Lajedo os cuidados com o umbigo também são necessários pois conforme os ensinamentos de D Miúda o umbigo influencia a natureza da pessoa equivale à semente da pessoa Portanto negligenciar os cuidados com o umbigo pode cortar ou influenciar negativamente a sorte de outrem Motivo pelo qual enfatizaram e enfatizam que é preciso guardar o umbigo em uma tirinha de pano cada filho de uma cor pra não misturar como detalhado por D Roxa para depois de grandinho o menino enterrar na porteira do curral para ajudar ele ser rico ou na biqueira da casa debaixo de um pé de tangerina pra ajudar a criança ter sorte boa É preciso evitar que o umbigo seja roído por um rato uma vez que se acredita que isso influenciaria negativamente a natureza da pessoa comprometendo o seu caráter Como destacou D Roxa você conheceu meus fio meus neto sabe que é tudo fraco mas é gente de bem Eu enterrei os imbigo tudo Chamei eles tudo e enterrei Deu tudo trabalhador Você enterra o imbigo do menino fora da vista dele Manda ele passar por riba aí pergunta menino tu passou por riba de quê Se ele responder assim de meu imbigo Aí os mais véio dizia que era um adivinhão que tinha sabedoria Já teve gente assim Lá no Lajedo mesmo já teve O avô do Beto que era um sabido Eulina Carmelina de Santana 75 anos em 10112017 Sobre as artes do nascimento as famílias de Lajedo informaram que é preciso assuntá o nascer da pessoa haja vista que essa circunstância não representa apenas o princípio da vida ao contrário disso Afirmaram que as situações que envolvem o ato de vir ao mundo são potencialmente capazes de interferir na personalidade dos sujeitos Como ressaltou Seu Gilberto Pai mais meu avô dizia assim se nasce de madrugada é trabalhador é ligeiro Se nasce de dia é agitado é valente Se nasce de noite é do tipo sossegado assim desse povo que fica bem com tudo Tudo pra eles é bom 216 Mãe mais pai dizia que eu nasci assim de manhã Então deve ser por isso que eu sou assim agitado disposto É aqui a gente conta assim Gilberto Inocêncio dos Santos 47 anos em 15042018 Presumo que para seguir estuciando e ajudando a natureza as pessoas que nascem na comunidade de Lajedo devem ser assistidas ao longo de suas existências contando com a orientação de suas mães297 biológica de imbigo e por vezes de leite Esses laços afetuosos são quase sempre entrelaçados pelos laços da parentagem pois como argumentaram em variadas situações da pesquisa aqui a parentagem nossa é grande 43 ARTES DO CASAMENTO A pila do arroz do casamento é um fato muito esperado pelas famílias Quando um jovem anuncia seu matrimônio seja com uma moça da comunidade ou de comunidades vizinhas a notícia é recebida com contentamento tendo em vista que é o ciclo da vida em fluxo com a construção de uma nova moradia298 e a perpetuação do nome dos antepassados299 Quando é a moça que vai se casar com um rapaz de outra comunidade ou das cidades de Saúde ou Mirangaba predomina uma atitude de aceitação pois ela poderá ter oportunidade de ascender socialmente vivendo no meio urbano Além disso mais tarde sua casa na cidade poderá servir de amparo aos pais idosos pois embora eles não desejem abandonar o território quilombola encaram positivamente que as filhas após o casamento passem a residir na cidade pois isso não representa uma ruptura com os laços de parentesco com os que ficaram Muito pelo contrário se observa um estreitamento das comunicações entre a comunidade e o meio urbano pois os seus pais e os parentes mais 297 A autoridade da mãe de imbigo e da mãe de leite não acontece na mesma proporção que a autoridade da mãe biológica ao contrário costuma antes ser permitida por ela 298 A moça sempre vai residir na região de origem do rapaz mesmo que ela seja moradora de comunidades vizinhas Há uma preocupação generalizada por parte das famílias no que se refere a uniões de seus filhos com moças da cidade pois acreditam que o casamento raramente dará certo uma vez que a moça pode não se acostumar com a vida sofrida do lugar As mulheres da comunidade relataram alguns casos em que a união se desfez por esse motivo 299 Conforme já foi explicado cada região de Lajedo possui até os dias atuais o nome do ancestral fundador 217 próximos utilizarão a sua casa como ponto de apoio durante as idas ao médico e principalmente durante os dias de feira livre A ideia de casamento passou a ser a principal temática das conversações na casa de D Idália e de Seu João Colado Desde o final de 2017 o casal tem dividido o tempo entre as ocupações na roça nas feiras e supervisionando a construção da casa de seu filho mais velho O rapaz trabalha há alguns anos em Minas Gerais e visitou a família em dezembro de 2016 ocasião em que anunciou a sua união com uma moça da comunidade de Coqueiros300 D Idália e Seu João Colado também externaram satisfação com a notícia do casamento de sua filha Rose com um rapaz da comunidade de Palmeira Entre novembro de 2017 e fevereiro de 2018 Rose residiu na cidade de Prata em Minas Gerais servindo uma tia durante o ciclo do resguardo Moisés o noivo esperou o seu regresso que ocorreu em fevereiro A atitude respeitosa do rapaz fortaleceu a simpatia dos futuros sogros Atualmente há poucos jovens em Lajedo Quando indaguei sobre isso a D Mariene ela afirmou que as moças haviam se casado e ido embora posteriormente ela revelou o motivo da redução de indivíduos jovens no povoado Durante algum tempo os casais passaram a evitar o nascimento de novos filhos pois a comunidade fora acometida por um surto de leishmaniose e muitas crianças pereceram Esse é um tema evitado pelos moradores as porque além de todo sofrimento emocional que suscita estigmatizou a comunidade quilombola na região Segundo D Mariene muitos moradores do município de Saúde evitam ir a Lajedo temendo se contaminar através do contato com a água e o solo da comunidade Em 2016 D Mariene e Seu Gilberto permaneceram por quase seis meses em Salvador acompanhando o tratamento de um dos filhos que fora infectado por essa doença Assim com uma população jovem em declínio a pila do arroz do casamento reduziu a intensidade e atualmente a comunidade de Lajedo é constituída basicamente por adultos e crianças No período em que estive em campo havia apenas doze jovens na comunidade entre catorze e dezesseis anos de idade Uma preocupação por parte das mães ante às possíveis uniões matrimoniais é se o sangue vai combinar pois quando o sangue não combina um dos cônjuges adoece e a 300 Geralmente os rapazes solteiros quando saem para trabalhar em outros estados são incentivados pelos pais a apenas retornarem ao lar quando tiverem construído sua própria casa e comprado uma moto Essas duas atitudes são interpretadas pelo grupo como sinônimo de independência financeira 218 união pode ficar comprometida Quando após o casamento o casal não engorda e ambos passam a aparentar uma magreza que antes não exibiam os comentários começam a surgir e a mãe da moça se aflige profundamente passando a orientar melhor a filha sobre os cuidados de uma dona de casa Para a mulher essa é uma situação constrangedora pois o retorno à casa dos pais desperta a inquietação e traz a desonra à família Os interlocutores as acreditam que as mulheres vivem melhor quando estão casadas por isso evitam que as moças fiquem solteiras e que as mulheres permaneçam viúvas não há viúvas na comunidade301 Embora haja um incentivo coletivo para o casamento as uniões entre os primos de primeiro grau são combatidas e evitadas Na concepção de D Narcisa primo irmão não pode casar que a criança nasce com defeito É preciso respeitar Já as uniões matrimoniais entre primos de segundo grau costumam ser incentivadas e consentidas O casamento informal é uma contrariedade e algumas mulheres que se encontram nessa situação se ressentem desse fato viver junto sem oficializar a união não é algo bem visto pelos pais parentes e vizinhos Em 2010 foram realizados casamentos e batizados coletivos no terreiro da casa de Seu João Colado302 Atualmente os casais que vivem juntos atribuem essa situação a dificuldades econômicas para realizar a festa que representa um acontecimento na comunidade de Lajedo e pode durar dias A cerimônia de casamento tanto em tempos passados quanto no presente ocorre na cidade de Saúde em Santa Cruz do Coqueiro e por vezes em Mirangaba Já as festas são realizadas em Lajedo e duram entre dois e três dias As comemorações têm início na véspera quando os familiares e amigos saudam a pila do arroz Segundo D Nóia essa expressão tem origem no costume dos antigo quando o arroz era apisado no pilão Embora ainda existam muitos pilões nas cozinhas das casas esses utensílios já não são usados com a mesma finalidade de outrora A comemoração da véspera simboliza a despedida da noiva da casa dos pais Participam prioritariamente da festividade os parentes da região que passam o dia em preparação para a grande festa do 301 Entre as pessoas idosas que migraram para Saúde há três mulheres viúvas e o motivo apresentado para a saída das mesmas da comunidade foi prioritariamente o falecimento dos esposos 302 O padre que se dirigiu até a comunidade era proveniente da cidade de Mirangaba O religioso se deslocou montado a cavalo para atender um pedido feito pela direção da Associação Quilombola 219 dia seguinte quando receberão a família expandida das outras regiões do território bem como de comunidades vizinhas303 A pila do arroz conta com a participação das mulheres que querem ou podem ajudar a matar e temperar as galinhas que serão consumidas no dia seguinte Buscar a bebida e abater os porcos são tarefas delegadas aos homens Segundo as narrativas orais os pais e avós dos interlocutores de Lajedo iam a pé arrumados para a realização da cerimônia do casamento religioso em Saúde Atualmente quando há um casamento em Saúde os noivos e seus familiares se arrumam para a cerimônia nas casas dos parentes mais velhos residentes na cidade Em função das dificuldades enfrentadas para se deslocar até a cidade de Saúde os moradores do Lajedo têm preferido se casar em Mirangaba ou em Santa Cruz do Coqueiro Em Mirangaba eles podem realizar tanto o casamento religioso quanto o civil Os casais com mais de trinta anos de idade oficializaram a sua união matrimonial em Saúde As noivas faziam o trajeto montadas em um jumento enquanto o noivo e os demais parentes caminhavam de três a quatro horas para chegar à cidade Retornavam para Lajedo invariavelmente no final do dia ou à noite quando a chegada do novo casal era festejada com fogos e três mesas encarreadas304 eram preparadas para felicitar os noivos os padrinhos e os convidados classificados como especiais305 D Idália relatou que a festa de seu casamento durou quatro dias foi a confraternização que mais se prolongou entre os casais de sua geração A comemoração só terminou após a intervenção de sua mãe que advertiu os presentes sobre a necessidade de retomarem as suas rotinas diárias No dia de meu casamento a gente saiu daqui duas horas da manhã pra casar oito horas Saiu de casa de a pé um monte de gente só que a gente 303 Durante o período em que estive em campo mantive ocasião de presenciar apenas uma festa de casamento portanto boa parte da narrativa desenvolvida a esse respeito foi construída levandose em consideração o que foi dito pelos membros de Lajedo 304 O sentido emprestado a essa expressão correspondia e corresponde à atitude de colocar três mesas postas uma ao lado da outra contendo comidas e bebidas A primeira mesa costuma ser maior que as demais visto que é reservada aos noivos e seus padrinhos 305 A condição especial atribuída ao convidado a quase sempre remete ao vínculo de amizade que o liga aos noivos ou ainda essa circunstância pode estar relacionada ao fato do mesmo a residir na cidade Esse tipo de comportamento não suscita qualquer desarmonia interna ao contrário faz parte do critério adotado pelas pessoas do grupo para oferecerem um tratamento diferenciado e positivo aqueles as que vem de fora 220 se trocava lá na Saúde Aí saiu um monte de gente de a pé madrugada adentro com candeeiro lumiando Teve festa antes e a noite toda A noite toda teve festa Meus sogros meus cunhado um monte de gente ficaram aí dançando a noite toda e a gente saiu duas horas da manhã pra oito horas tá em Saúde Foi pra casa de um conhecido de seu Nocêncio tomou banho que era um povo amigo de Seu Nocêncio Depois pra vim de lá de novo segurando essa roupa uma pegava de um lado outra de outro Cheguemo aqui tudo escurecendo e a festa era três dias de festa O tocador era um que chamava Mael esse homem era afamado em festa Pagou esse homem aí depois de três dias no outro dia meiodia foi obrigado minha mãe se zangar por que os povo era pra parar Minha mãe dizia já deu meu povo E o povo dançando Meu Deus Mais de três dias de festa Depois era pertinho Eu vim pra minha casa Idália Santana de Azevedo 45 anos em 15102017 Segundo Seu Joaquim já houve casamento em que a festa se estendeu por oito dias O prosseguimento ou a interrupção da festa estão condicionados à situação econômica do pai da noiva assim como ao gosto que tem com a união da filha Aqui casa em Mirangaba ou na Saúde e vem pra aqui As festa aqui é de sanfona é O casamento aqui dura dois dias ou mais Assim hoje é a véspera Comemora a véspera Aí vai e casa vem pra aqui e comemora o dia Quem puder comemora mais Que já teve casamento aqui de comemorar até oito dias Joaquim Santana de Azevedo 42 anos em 17062016 Seu Timóteo que participava da conversa acrescentou mas por ser fraco aqui quando casa não deixa de ter alguma coisa Se os pai de tudo não pode os parente ajeita Que aqui a parentagem é tudo de um tipo só Os quilombolas relataram que após a abertura da estrada os noivos e seus parentes saem da comunidade em caminhões e se encontram defronte à igreja retornando após a realização da cerimônia 221 O casamento em Lajedo é um agenciamento cujo valor remete à longevidade e à honra do nome da família Portanto é preciso celebrar As festas são rituais de reafirmação da resistência no território e a renovação de suas tradições Como destacou Lília Shuwarcz 2012 o ritual não expressa simplesmente a realidade social mas também a produz conferindo significado e reconhecendo as articulações que viabilizam a manutenção dessa realidade No caso da população de Lajedo o simbolismo da realização e do prolongamento das festas de casamento remete à força dos membros da comunidade e à sua especificidade étnica Com as celebrações eles contrariam as expectativas da sociedade envolvente fazem uma pausa no som de seus instrumentos de trabalho substituindoos pela alegria produzida no som do dedilhar da sanfona tal como nos ecos estridentes das vozes das mulheres que felizes cantam e cumprimentam mais uma moça que contribuiu para a permanência de seus parentes naquele território reforçando a presença secular dos pretos do Quitero no espaço que elegeram para viver A realização das festas estimula os habitantes de Lajedo a refletir sobre quem verdadeiramente são e a demonstrar isso para as crianças que mais tarde poderão seguir essa mesma trajetória A esperança se expressa na alegria da dança no estourar dos fogos que anunciam o nascimento de mais uma família e na representação de papéis que marcam suas escolhas de vida consoante o enunciado por Mauss 1974 a festa é o fato social total do qual se faz a leitura das vidas e lidas de um povo Em pesquisa realizada sobre a diversidade das festas quilombolas Glória Moura 2012 p 110 comparou esses eventos a uma lente microscópica através da qual se pode entrever múltiplas relações microssociais e valores que vão do parentesco ao meio ambiente do calendário agrícola ao respeito pelos mais velhos da produção artesanal à história dos ancestrais da liderança feminina ao conhecimento das plantas das relações de afetividade a valores humanos fundamentais Para os quilombolas de Lajedo as festas de casamento constituem um ritual que atualiza a pertença consentida desses homens mulheres e crianças que se definem como uma única família e que ao aumentar sua parentagem permanecem comungando e ressignificando os estilos de vida que os distinguem como os descendentes do Quitero O casamento de Rose foi um dos fatos mais comentados na região dos Félix haja vista que há bastante tempo os membros haviam celebrado essa cerimônia com a tradicionalidade observada em tempos pretéritos isto é com a realização dos trâmites religioso e civil na cidade seguidos da comemoração na comunidade Embora a festa tenha 222 sido realizada em Palmeira local onde os noivos passaram a residir após o enlace matrimonial os moradores de Lajedo compareceram e havia certa emoção no olhar das pessoas que pareciam reviver suas experiências individuais e coletivas Rose e Moisés escolheram a data de 01 de dezembro de 2018 para oficializar a união consentida tanto pela família do noivo quanto da noiva As comemorações foram iniciadas em 30 de novembro quando começaram a chegar os convidados as oriundos das comunidades mais distantes e que desejavam celebrar esse momento tão significativo na vida de parentes que se estimam São pessoas que além de terem ido com o propósito de festejar anteciparam a sua chegada para auxiliar no que se fizesse necessário e não sobrecarregar os pais dos noivos Tratase de coletivos que se encontram e renovam seus sentimentos de solidariedade familiar e étnica A Grota Quilombola se mobilizou para assistir o casamento da filha de João Colado Embora os pais da noiva tivessem contratado os serviços de um bufê realizando uma inovação na tradição do lugar durante a sextafeira o sábado no período diurno e o domingo as mulheres e homens de Lajedo e Palmeira se desdobraram em esforços para colaborar com a festa acomodando convidados em suas casas lhes providenciando o banho e as refeições Além disso contribuíram para que a cerimônia ocorresse conforme a vontade dos noivos Seu João Colado entrou no salão às 19h30 conduzindo Rose ao altar especialmente montado e ornamentado para a ocasião Poucas vezes Seu João Colado expressou tamanha serenidade e visível satisfação Além de ser sua única filha Rose desperta um sentimento de bem querer nas pessoas em função de sua delicadeza e presteza para com todos as que a procuram O casamento para a população de Lajedo é mais que uma mera formalidade de cunho social Ele é concebido como um parâmetro culturalmente tecido pelos ancestrais que assegura a continuidade da existência do grupo O novo casal também assume responsabilidades coletivas como os demais membros da comunidade Quando Rose mencionou que iria morar em Palmeira destacou mas a senhora não pense que eu vou sair daqui não Vou ficar o tempo todo aqui mais tempo aqui na casa de mãe do que lá Assim reforçou o seu pertencimento à comunidade de Lajedo participando ativamente das lutas e labutas políticas econômicas306 e sociais Rose incorporou uma rotina que lhe permite 306 Após o casamento Rose continuou desenvolvendo suas atividades agrícolas e comerciais agora ao lado dos pais do irmão e do esposo 223 participar dos modos de vida de ambas as comunidades sucedendo outras mulheres em condição análoga A festa realizada após a cerimônia de casamento de Rose promoveu a interação com a parentagem do lugar com os as que por motivos diversos migraram e com os parentes e compadres das comunidades vizinhas Nas festas de casamento esses atores sociais se reencontram e reafirmam os laços que os aproximam e os mantém interligados por gerações Afirmam e redefinem papéis no grupo de lideranças femininas e masculinas de agentes fomentadores de práticas culturais de orientadores as religiosos rezadores as e de coordenadores as de atividades ligadas ao catolicismo rural A ritualística que envolve as festas de casamento é percebida nesta tese como um dos vieses pelos quais os moradores de Lajedo constroem a sua identidade s Segundo Seu Armando pai de duas mulheres um genro é mais um filho e portanto um braço forte para as labutas da roça e da feira ao passo que uma nora simboliza para a sogra tanto uma ampliação do exercício da sua autoridade307 quanto um apoio para as necessidades cotidianas em um contexto marcado por relações próximas no qual a solidariedade feminina é muito valorizada observada desde a colaboração na criação dos filhos nos conselhos que fomentam a estabilidade do casamento bem como nos favores recíprocos que uma mulher presta e recebe da outra Em um ambiente caracterizado por um total abandono do poder público a população local atua como agenciadora de mecanismos capazes de criar e recriar as condições necessárias para assegurar a sua perpetuação enquanto grupo etnicamente diferenciado As boas noras na definição de D Mariene são tratadas como filhas e não costumam despertar ciúmes entre as cunhadas No entanto quando as noras não são receptivas às orientações e não se integram à família do marido308 acabam ocasionando um distanciamento entre mãe e filho Quando isso ocorre segundo as mulheres de Lajedo o fluxo da vida é perturbado pois nesse triângulo regido pela animosidade um entre os três costuma adoecer e nesse momento cabe ao sogro pai do marido interferir para contornar a 307 As moças quando constituem matrimônio mesmo quando vão morar em suas próprias residências sabem que devem respeito e obediência às sogras devendo inclusive lhes pedir a bênção assim como fazem com suas mães A inimizade entre sogra e nora é vista como sinônimo de muito desgosto na comunidade e segundo explicaram pode atrasar a sorte do casal 308 Notei que mesmo quando os interlocutores as afirmaram que constituem uma só parentagem reivindicam dos sujeitos mais novos uma atitude de solicitude e respeito à hierarquia familiar 224 situação O nascimento do primeiro neto é uma boa ocasião para dissolver as tensões entre noras e sogras e restaurar a harmonia familiar Quando a intriga persiste levando a uma ruptura nas relações as mães podem retirar a bênção do filho e dos netos As mulheres de Lajedo relataram alguns episódios309 que tiveram esse desfecho que segundo D Maria do Rosário atrasa a sorte do casal porque minha fia triste do fio que a mãe olhar com maus olhos Quando indaguei à interlocutora sobre o significado desse atraso ela explicou que é um bloqueio que afeta diretamente as condições da vida do casal porquanto a vivência fica conturbada as finanças não prosperam porque a produção agrícola pouco vinga o buxo da mulher também fica fechado310 e ela pode demorar um tempo maior que o esperado para gerar uma criança fato que suscita comentários entre os parentes e vizinhos Além disso a convivência entre os cônjuges fica atropelada Essas afecções produzidas na vida do casal são geralmente atribuídas à paixão da sogra que se sente desfeiteada pelas atitudes da nora Para restabelecer a harmonia na família e cessar os efeitos que os sentimentos de pesar nutridos pela sogra lançam sobre o casal é necessário que os envolvidos na contenda façam as pazes 44 ARTES DA MIGRAÇÃO Os pais da geração adulta da comunidade de Lajedo migram para outros espaços quando chegam à terceira idade Deixam suas terras e a antiga casa aos cuidados de filhos as e netos as Esses atores sociais que dedicaram uma parte significativa de suas vidas às atividades agrícolas um legado de seus ancestrais quando se aposentam adquirem uma casa na cidade de Saúde e lá fixam residência Em Saúde quando da escrita desta tese havia sete anciãos residindo em ruas periféricas nas imediações do bairro da rodoviária Residem próximos uns aos outros e interagem com frequência São conhecidos como os Quitero do Lajedo 309 Por se tratar de circunstâncias que envolvem as subjetividades dos interlocutores as bem como a privacidade de suas famílias opto por não as citar nominalmente 310 O significado que as mulheres de Lajedo emprestam a expressão buxo fechado está relacionado ao retardo da maternidade pois de acordo com o que foi explicado pelas interlocutoras uma mulher má não pode parir um filho 225 NOME IDADE REGIÃO DE ORIGEM TEMPO QUE SE ENCONTRA MORANDO EM SAÚDE Dejanira Maria de Jesus Dona Deja 98 anos Região dos Aprígio 20 anos Eulina Carmelina de Santana Dona Roxa 75 anos Região dos Félix 13 anos Euvira Passos de Sena Dona Nega 77 anos Região dos Inocêncio 12 anos Francisco João dos Santos Seu Sariabo 81 anos Região dos Aprígio 10 anos Giseli Juraci Santos de Jesus Dona Roxa 73 anos Região dos Inocêncio 10 anos Judite Lauzira de Jesus 75 anos Região dos Inocêncio 08 anos Maria Rosa dos Santos Dona Maria de Chico 57 anos Região dos Felix 05 anos Tabela nº 04 Anciãos de Lajedo que residem em Saúde Fonte Elaboração da pesquisadora A primeira idosa a deixar a comunidade foi a senhora Dejanira Maria de Jesus Além de se dedicar à agricultura no Lajedo ela costurava e confeccionava vestidos de noiva atividade que manteve por alguns anos quando passou a residir em Saúde Ela relatou que precisou deixar a comunidade em um momento muito difícil de sua existência quando ficou viúva As casas em Lajedo são muito distantes umas das outras e quando o seu marido faleceu os filhos do casal Armando e Arnaldo estavam em Minas Gerais e em São Paulo trabalhando Dona Deja relembrou as dificuldades enfrentadas quando se 226 mudou para Saúde Ela foi a primeira anciã de Lajedo a tomar essa difícil decisão Atualmente já se adaptou aos rearranjos impostos pela nova vida que precisou construir Dona Deja vai a Lajedo duas vezes por ano visitar os filhos parentes e amigos Apesar da idade avançada ela faz o trajeto de Saúde a Lajedo a pé contornando as serras A segunda anciã que realizou o Rito da Migração311 foi a senhora Eulina Carmelina de Santana D Roxa Ela reside com uma filha em Saúde e semanalmente recebe a visita de sua neta Rose que vende bananas na feira livre da cidade nos dias de sábado D Roxa auxilia Rose na feira tomando conta da banca para que a sua neta possa passear na feira A feira livre de Saúde é um local de reencontro um canal de comunicação entre a população que saiu de Lajedo e os residentes na localidade Eles aproveitam a ocasião para indagar sobre os parentes enviar e receber lembranças e encomendas Os habitantes de Saúde provenientes de Lajedo frequentam a barraca de Seu João Colado onde recebem e enviam recados e presentes variados para seus filhos e netos Entre os mais velhos as D Roxa é a única que visita mensalmente a comunidade de Lajedo em companhia do genro312 e de Rose uma vez que a maior parte de seus filhos313 reside na região dos Félix A senhora Euvira Passos de Sena D Nega a terceira idosa que se mudou do Lajedo informou que passou a residir na cidade por ter perdido a saúde Ela não retornou mais ao Lajedo pois seus filhos também abandonaram a comunidade Alguns residem em Saúde ao lado da mãe outros estão na comunidade negra de Água Fria314 A necessidade de cuidados médicos constantes também ocasionou a transferência do senhor Francisco João dos Santos Seu Sariabo para Saúde Entre piadas e sorrisos Seu Sariabo revelou que não deixou o Lajedo mas foi puxado por suas filhas quando adoeceu Por um período ele continuou visitando as suas roças até sofrer um acidente eu caí do 311 Nomeio de Rito da Migração por entender esse comportamento adotado pelos anciãos do grupo como parte das Artes da Resistência Costume que a população de Lajedo aciona com o propósito de talvez evitar a desertificação do território 312 Conforme já foi relatado o senhor João Colado é pai de Rose e genro de D Roxa No entanto o que torna o interlocutor muito procurado pelos mais velhos é o fato de lhes facultar carona em seu caminhão até a comunidade Além disso João Colado não demonstra qualquer enfado pela realização dos favores que presta entre os idosos e seus parentes que permanecem em Lajedo 313 A anciã possui três filhos nora genro e netos residindo na região dos Félix Os demais se encontravam à época da pesquisa morando e trabalhando no estado de Minas Gerais e na cidade de Saúde 314 A população de Lajedo que migrou e migra para as comunidades de Água Fria e Grota das Oliveiras geralmente preferem esses territórios pela facilidade encontrada para continuar a atividade de tocar suas roças 227 burro informou Adoeceu gravemente e vendeu o animal se conformando com o fato de que doravante não poderia mais fazer o caminho das serras Uma situação semelhante ocorreu com a senhora Giseli Juraci Santos de Jesus D Roxa cuja enfermidade nas pernas motivou a migração forçada da comunidade Dentre todos as os anciãos com os quais conversei e entrevistei a única que declarou estar satisfeita com a transferência para a cidade foi a senhora Judite Lauzira de Jesus Sua mudança para a cidade de Saúde ocorreu após o falecimento do marido Ela adquiriu uma casa na cidade convive atualmente com um homem do local e recebe com frequência a visita do filho o senhor Gilberto que reside na região dos Inocêncio A senhora Maria Rosa dos Santos foi à última anciã de Lajedo a comprar uma casa em Saúde embora visite com frequência a comunidade para cuidar da sua roça Dona Maria de Chico como é conhecida decidiu adquirir uma casa em Saúde quando em um dia de feira após o término de suas atividades ao retornar para a sua residência em Lajedo soube que o filho havia se acidentado e quebrado uma perna A sua condição de viúva associada ao acidente do seu filho influenciaram a sua decisão A facilidade de locomoção facultada pela pouca idade permite que semanalmente D Maria transite entre Lajedo e Saúde uma vez que na comunidade permanece cultivando seus produtos e na cidade os comercializa Os anciãos que se mudaram de Lajedo afirmaram estar conformados com a necessidade de fixar residência na cidade não obstante seis deles tenham externado profunda tristeza ao relatar o processo de adaptação ao estilo de vida urbano Eles sentem saudades de suas terras das criações e se ressentem até mesmo das dificuldades encontradas para acomodar as plantas em casa pois os quintais de suas residências são exíguos Nenhum deles as mora sozinho aos poucos vão puxando os netos e depois os filhos Além disso as suas casas na cidade constituem pontos de apoio para os que ficaram na comunidade Na figura abaixo mapeei as residências dos anciãos do Lajedo na cidade de Saúde 228 Fonte Google Earth Pro Ilustração da Pesquisadora Uma das transformações que a retirada dos mais velhos ocasionou na comunidade de Lajedo foi o relacionamento com a morte e o agenciamento dos ritos fúnebres Em suas narrativas eles as mencionaram a existência de um pequeno cemitério em Lajedo que não conseguiram manter em seu território por se tratar de um local clandestino Como precisavam tratar seus parentes falecidos com o respeito adequado decidiram enterrálos em Santa Cruz do Coqueiro ou na cidade de Saúde onde eles haviam sido registrados315 Antigamente os caixões eram fabricados na própria comunidade pelos senhores Tarcísio e Ricardo Enquanto eles confeccionavam a urna mortuária as mulheres se ocupavam do banho do defunto da costura da mortalha e velavam o corpo morto recitando orações e ofícios À meianoite a população reunida rezava o Ofício de Nossa Senhora Todo o ato 315 Toda a população com mais de dez anos de idade teve seu registro de nascimento expedido em Saúde Observei que esse vínculo pretérito com o município de Saúde é importante para os quilombolas 229 litúrgico de natureza religiosa ficava a cargo das mulheres316 Caso fosse possível a família do falecido a abatia um boi ou um porco cuja carne seria consumida durante o velório e no dia seguinte quando os homens da comunidade levavam nas costas o defunto Para o trajeto fúnebre eram utilizados três jumentos que transportavam a comida e a bebida Os homens seguiam na frente conduzindo o caixão enquanto as mulheres seguiam ao lado incumbidas das orações De acordo com D Deja alguns mortos eram conduzidos em redes para Saúde onde eram enterrados Ochente Trazia pra cá na rede Muita gente já veio Trazia pra cá nas costa nessa serrona aí Por que não passava carro né Às vezes morria trazia pra enterrar aqui Trazia na rede Os homens tudo que trazia e as mulher rezava Era assim Dejanira Maria de Jesus 98 anos em 23062016 Com a adesão dos idosos aos planos funerários que se popularizaram na região e após a abertura da estrada quando falece algum morador do Lajedo a família aciona o plano O caixão é transportado no carro funerário e os parentes seguem de ônibus para o cemitério Caso o falecido a não possua qualquer tipo de plano o caixão é conduzido na caminhonete do senhor João Colado acompanhado pelos parentes A migração para a cidade de Saúde opera uma mudança definitiva nas vidas dos antigos moradores de Lajedo Eles não mais retornarão ao território como moradores alguns não conseguem retornar nem mesmo para uma curta visita Não obstante permanecem cônscios das labutas enfrentadas para assegurar a permanência dos seus no território quilombola por isso declararam que ficam enquanto podem Seu Joaquim relatou que já começou a cogitar a possibilidade de se mudar da comunidade O que eu mais gosto na região é que eu moro na minha sede Aqui é um lugar aberto um lugar solto Eu vou pra rua lá tem diversão mas diversão pra mim é meu criatório Meus bichinhos meu cavalo Uma galinha aqui que na rua não tem criatório Então se eu vou pra rua eu perco tudo Que na rua a gente não tem nada Joaquim dos Santos 75 anos em 15062016 316 O que acontece até os dias atuais 230 Perder tudo na concepção externada por Seu Joaquim não se refere apenas às aquisições de ordem econômica mas à identidade construída da qual abdicam em parte quando migram para Saúde Entretanto esses novos rearranjos nem sempre correspondem às suas subjetividades haja vista a idade cronológica na qual se encontram e também a disparidade entre os modos de vida no meio negro rural e na cidade Portanto essa mudança que por ora se apresenta como obrigatória na vida das pessoas do grupo embora seja percebida como um fato dado e com o qual aprendem a se relacionar é também interpretada nesta tese como um ato de violência velada estimulado pela negligência e abandono da sociedade envolvente já que o poder público não oportuniza a esses agentes melhores condições de vida de sorte que possam optar na velhice entre ficar no território ou migrar para um centro urbano Quase toda a população adulta que reside atualmente em Lajedo já adquiriu uma casa na cidade de Saúde e ou de Mirangaba317 Para D Mariene a mudança para um centro urbano será menos dolorosa caso ela e Seu Gilberto consigam comprar uma casa em Mirangaba318 pois poderão visitar Lajedo com mais frequência em virtude da maior facilidade de acesso em comparação à cidade de Saúde Entre preocupada e triste com a decisão de seu esposo de economizar dinheiro para comprar uma residência na cidade D Mariene desabafou nós só vai embora daqui Paula por motivo de doença e por questão de idade porque nós não tem influência de cidade Ela cogitou essa possibilidade no final de 2015 quando um de seus filhos necessitou de cuidados médicos especializados Quando meu menino adoeceu nós quase pula fora daqui Porque adoeceu desse problema de calasar Aí o povo fica dizendo que é da água do lugar Aí nós quase foi embora daqui Tanta coisa Beto ainda falou de vender Aí Deus abençoou e nós ficou de novo Mariene Isautina dos Santos 47 anos em 16062016 317 A dificuldade pontuada em se adquirir um imóvel nessa cidade é que as casas ou terrenos possuem um valor comercial maior que em Saúde 318 Em meados de 2017 o casal começou a cogitar a possibilidade de comprar uma casa nessa cidade Porém desistiram dessa ideia e em 2019 construíram uma nova residência ao lado da antiga casa de morada em sua região de origem em Lajedo 231 Há entre os quilombolas de Lajedo uma preocupação quando pensam em vender as suas propriedades pois os parentes podem não ter recursos financeiros para adquirilas Nesses casos optase geralmente por permanecer um pouco mais no território para não permitir a entrada de pessoas estranhas que possam perturbar as formas de vida tecidas pelos moradores do lugar Esses sujeitos mantêm portanto a preocupação de cuidar do território no qual residem as memórias de suas resistências e de deixálo como um dos legados de sua ancestralidade de modo que nunca se perca a história inscrita pelos Pretos do Quitero 45 QUANDO OS ECOS PRODUZIDOS PELO BARULHO DO QUILOMBO CHEGAM AO LAJEDO O movimento denominado nesta tese de Barulho do Quilombo se caracteriza de modo especial pelas comunicações estabelecidas entre as comunidades quilombolas que ressurgem e se ressemantizam na região norte da Bahia Embora as comunidades sejam próximas as interações entre elas nem sempre eram frequentes e foram intensificadas pari passo à construção de uma identidade diferenciada etnicamente a partir da descoberta da ancestralidade quilombola O rito de passagem que marca a etnogênese de comunidade negra rural para a construção do significado social de comunidade quilombola é influenciado pelas compreensões do que é dito e vivenciado nas comunidades vizinhas que além de possuirem como atributo principal a negritude partilham laços de parentesco expandidos por relações de compadrio As comunidades negras rurais situadas nas proximidades do Lajedo são grupos que compartilham uma invisibilidade imputada pelo contexto social mais amplo e a marginalização sustentada por estereótipos negativos e racistas que historicamente também são modelados pelo entorno através do embranquecimento epistemológico político e cultural A descoberta e tomada de consciência do ser quilombola reorientam o curso das histórias dessas comunidades A assunção da identidade quilombola não representa a aquisição de status quo mas anuncia interna e externamente que aquele grupo antes estigmatizado por uma trajetória de inferiorização negação de oportunidades e rebaixamento de suas humanidades acorda de um período de dormência e silenciamentos 232 para a construção de sua autoria porque as mudanças coletivas observadas são influenciadas pelas transformações de subjetividades individuais que passam a dialogar entre si sobre temáticas que antes pouco problematizavam As vozes do Lajedo afirmaram que a descoberta de sua tradicionalidade quilombola ocorreu a partir dos diálogos estabelecidos entre o senhor Valmir dos Santos e outros líderes das comunidades de Palmeira e Coqueiros a exemplo de Francisco Durval e da senhora Socorro que começaram em suas respectivas comunidades a desenvolver reflexões e a rememorar as suas histórias Posteriormente outras comunidades negras rurais daquele contínuo étnico também se integraram a esse movimento de compreensão e de reivindicação da pertença quilombola Nesse sentido além de ser divisado como um ato político o Barulho do Quilombo também pode ser compreendido de uma ótica pedagógica tecida nas lutas e labutas desses sujeitos históricos Os interlocutores de Lajedo destacaram tanto nas entrevistas quanto nas conversas informais a relevância do processo do despertar da ancestralidade quilombola em seu território Rapaz Foi um amigo da gente de Tijuaçu Foi ele quem explicou toda procedência nossa Timóteo Joaquim Santos 40 anos em 15062017 Aí devido esse sofrimento essa associação tentou O Mácio Fioquinha acho que ele trabalha hoje em Caldeirão Caldeirão Grande Ele explicou pra nós aceitemos Aí ó escolheram logo eu Disse você é quem vai se debater pra correr pra nós Bem verdade aceitei Agora eu disse que eu não quero política no meio Só que depois veio perturbar um vereador Claudiano Jatobá pegou uns papel ficou seis meses com ele Todo dia eu perguntava rapaz cadê os papel Me fazendo dá viagem ir pra Jacobina de pé Aí eu me chateei fui na ADAB conversei com Eva e contei Ela disse se ele não lhe entregar eu lhe ajudo mas aí nesse dia fui lá e ele disse rapaz à tarde eu lhe entrego Aí me entregou só que não tinha nada feito Aí conversando com o pessoal lá de Saúde disse que tinha uma mulher chamada Maria Rita de São Paulo que disse que tinha vontade de vim aqui que queria ajudar Eu disse pode ir se quiser vim ajudar e quem quiser vim conhecer pode vim ajudar que nós aceita Aí foi ela quem terminou de ajudar e um advogado Paulo Rodrigues ajudou muito Até comprou um terreninho perto de nós depois foi embora 233 Aí passei quatro anos arrumando ela a Associação Quilombola mais dois anos e não quiseram me tirar mas agora já entreguei ela Gilberto Inocêncio dos Santos 47 anos em 17062016 Rapaz Quando foi fundar essa associação aí a gente sempre falou desse povo os Quitero A gente via falar na televisão de comunidade essas coisa Teve um conhecido do Tijuaçu que veio aqui conversando com o povo da Palmeira também A gente via falar de comunidade quilombola Aí a gente viu que era quilombola também por causa da origem das pessoa Antônio José Clementino dos Santos 40 anos em 02072017 Isso aí é por que quando a gente foi registrar a associação a gente ficou sabendo aí em voz altura que a gente aqui é negro Então nós somos todos quilombolas E as nação quilombolas aqui no Brasil aqui é muito bom que isso aqui tá no Brasil inteiro Nós somos quilombolas mesmo Armando João dos Santos 68 anos em 16062016 Em seus discursos os interlocutores as apontaram o fator da comunicação como preponderante para agenciar o entendimento assim como a conversão simbólica que lhes permitiu declarar o reconhecimento e a construção do ser quilombola inclusive conforme enfatizado por Seu Armando ressignificando os usos e sentidos319 em torno do ser negro no contexto do sertão baiano As representações acerca do sentido de ser quilombola de acordo com esses sujeitos estão associadas a dois fatores específicos à negritude e ao sofrimento cotidiano O povo diz e eu não sei se é porque no lugar tem muita gente moreno que trabalha muito risos 319 Para pensar sobre a ressignificação dos usos e sentidos atribuídos a palavra negro assim como sobre a construção social do ser negro me apoio no pensamento do pesquisador Kabengelê Munanga de modo especial nas seguintes obras MUNANGA Kabengelê Negritude usos e sentidos 2ª ed São Paulo Ática 1988 e MUNANGA Kabengelê Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil São Paulo Autêntica 2004 234 Eles fala que o quilombola é mais no lugar que tem muita gente moreno Mas não sei se é verdade né Mariene Isautina dos Santos 47 anos em 14062016 Quilombola é as pessoas de uma comunidade quilombola Ajuda uns os outros Pessoas negras pessoas quilombolas Quando eu comecei dar aula porque a gente estudando sabe o que é o quilombola Por que eu me considero quilombola E eu sou feliz por que eu sou desse jeito quilombola Negra Minha pele Rosália Matias dos Santos 65 anos em 03072016 Quilombola aqui é a descendência dos mais velho Que eu me considero aqui como a raiz dos mais antigo Por que começou aí essa associação E aí gerou que é quilombola todo mundo Quem trouxe a informação aqui foi o Valmir Maria do Rosário de Jesus 70 anos em 010716 Eu me considero porque o quilombola é assim o quilombola é uma pessoa que foi sofrido e unido E a gente além de ser sofrido a gente aqui é unido Nós somos unido na associação Em roça aqui se for botar um batalhão todo mundo vai Aqui nós somo umas pessoa que ainda é unido Não é que nem o povo da capital Que eu já tive em capital e sei o que é um povo que só dá um bom dia uns os outro a pulso E aqui não Aqui a gente somos unido Aqui você chega na casa de um ele dá um cafezinho Se você conta a sua situação divide até a feira Isso é um povo unido Você chega bate o feijão Bate Aí leva um prato leva dois Fez farinha oxe Leva aí dois três prato de farinha A gente somos um povo unido e na cidade não é unido João Aceno Gabriel Pereira 45 anos em 03072016 Além da epiderme negra e do sofrimento mencionados em quase todas as narrativas Seu João Colado ressaltou a união Essa coesão comunitária foi constatada nas vivências 235 de campo nas relações cotidianas estabelecidas com a família domiciliar os parentes compadres e vizinhos da própria região e das demais que constituem o Grotão do Lajedo até as lides nas roças e a atividade comercial nas feiras livres Parece não haver desavenças ou concorrências severas entre esses agentes existindo antes uma solidariedade que os agrega A comunidade de Lajedo foi certificada em 19 de novembro de 2009 Desde então a associação de pequenos agricultores local passou a atuar sob a designação de Associação Comunitária dos Pequenos Produtores Rurais da Comunidade Quilombola de Lajedo ACPPRCQL Imagem nº 33 Reunião da Associação Quilombola Fonte Acervo da pesquisadora 236 Eles iniciaram o ativismo político em torno da causa quilombola se recusam a manter relações com a política partidária e fazem questão de esclarecer esse posicionamento em todas as suas colocações talvez por refutarem algumas posturas assumidas por líderes de comunidades vizinhas que ingressaram na carreira política tornandose vereadores Há uma hostilidade declarada entre os membros de Lajedo contra a interferência negativa de políticos sejam eles prefeitos as vereadores as e ou secretários do executivo municipal As ações desses indivíduos são quase sempre desacreditadas pelas pessoas da comunidade que se percebem desassistidos pelo poder público e se recusam a lhes permitir qualquer interferência sem que haja antes uma discussão prévia um consentimento coletivo Durante as eleições municipais de 2016 a comunidade de Lajedo se recusou a receber candidatos a prefeito Alguns permitiram que seus simpatizantes que foram pedir votos entrassem em suas residências mas não na sede da associação A sede da associação está localizada na região dos Inocêncio e durante a realização da pesquisa estava em construção A ACPPRCQL funciona para esses agentes como um dos símbolos de suas insurgências lutas e resistências visto que tudo tem sido edificado com recursos próprios advindos das mensalidades pagas pelos sócios e de doações auxílios financeiros e mutirões Nas reuniões eles discutem os problemas que afligem o grupo Elas são um palco de diálogo sobre suas vivências cotidianas quando reforçam a fraternidade consolidada pelos laços de família ou como gostam de enfatizar de parentagem 237 CAPÍTULO 5 QUANDO AS RELAÇÕES DE COMPADRIO EXPANDEM OS LAÇOS DO PARENTESCO Depreendese das fontes estudadas que os escravos e forros dessas fazendas sertanejas estiveram envolvidos por relações familiares intensas que ocasionaram a formação de uma comunidade na qual todos estiveram ligados por laços de parentesco fossem consanguíneos ou pelas práticas de compadrio Sendo assim compartilhavam de uma nova identidade gestada em meio às influencias locais bem como do antepassado comum a ascendência africana SILVA 2018 p 26 Imagem nº 34 Encontro entre comadres na comunidade Grota das Oliveiras Fonte Acervo da pesquisadora 238 A professora Rosa mencionou ter saudades de suas duas filhas que residem em São Paulo Entre o descortinar de uma lembrança e outra ela arrematou a dor da saudade é grande Paula Porque parente é que nem conta no rosário de Deus e filho é cordão de ouro do coração da gente Os parentes consanguíneos de modo especial os as filhos as e irmãos as recebem um tratamento diferente dos demais entram e saem das casas uns dos outros sem precisar anunciar a sua chegada compartilham gêneros alimentícios e utensílios diversos sem se preocupar em devolvêlos e realizam favores sem aborrecimentos As tias são quase sempre consideradas madrinhas nem sempre em decorrência do batismo católico As irmãs mais velhas cuja idade em relação aos mais novos excede a diferença de dez anos também são madrinhas entrelaçando as fibras entre os laços de parentesco e as relações de compadrio Durante a minha convivência com as famílias de Lajedo observei que além dos laços do parentesco as relações são consolidadas pelo compadrio O padrinho não é tão prestigiado nomeado apenas por exigência da cerimônia do batismo cristão A madrinha ocupa posição de destaque entre as mulheres e meninas do grupo A primeira madrinha que a criança conhece é a responsável pelo corte do seu cordão umbilical320 as parteiras ou suas avós A segunda madrinha é apontada entre as tias maternas a terceira pode ser escolhida pela própria criança quando toma a bênção a uma mulher por quem sinta afeição durante a SextaFeira Santa A quarta madrinha é frequentemente escolhida pela mãe por critérios de amizade gratidão e ou expectativa de que ela possa auxiliar o a afilhado a no futuro A quarta madrinha é a oficial a do batismo católico Os cursos preparatórios de batismo são realizados em Santa Cruz do Coqueiro ou em Mirangaba As madrinhas irmãs participam ativamente da educação do a afilhado a com a mesma autoridade da mãe Elas são encarregadas da criação dos irmãos mais novos As madrinhas tias são socialmente incumbidas de atenuar as punições maternas acolhendo os as afilhados as em suas casas como filhos as Todavia não reclamam com eles ou lhes dão tarefas Especialmente na região dos Félix onde as residências são muito próximas umas às outras é comum que as crianças façam refeições na casa de suas madrinhas ou permaneçam sob a sua tutela até o final do dia retornando para casa quando seus pais mandar buscar Mesmo após ter se convertido à igreja Cristã do Brasil D 320 Como relatado no Capítulo 4 as parteiras são tomadas como comadre chamadas de mãe e ou de madrinha 239 Idália não se incomoda de ser chamada de madrinha pelos a sobrinhos as eu tenho o conhecimento da palavra mas o amor é o mesmo Isso não tem nada não tô no lugar de madrinha e de tia que aqui a gente é desse jeito As madrinhas de Sextafeira da Paixão são aquelas com as quais as afilhadas321 mantêm maior proximidade Voluntariamente na SextaFeira Santa antes do meiodia elas se dirigem às casas das mulheres que escolheram por madrinha levando algum presente algo colhido em suas roças ou um objeto de decoração Em uma atitude de respeito lhes tomam a bênção pela primeira vez Esse gesto será repetido por toda a vida De acordo com as mulheres da comunidade nesses casos há um compromisso afetivo maior da madrinha com a afilhada já que a escolha foi referendada pela existência de um carisma pessoal Essas madrinhas são adotadas como modelo a ser seguido por suas afilhadas pois possuem características que despertam estima e confiança incentivando uma amizade alicerçada no devotamento recíproco A madrinha de Sextafeira da Paixão não pode rejeitar a afeição da afilhada322 deve recebêla como uma segunda filha Ter afilhadas de SextaFeira é sinônimo de respeitabilidade entre as mulheres um alargamento de sua autoridade e uma afirmação de seu valor pessoal As madrinhas de batismo embora estimadas pelos pais dos das afilhados as às vezes não residem no território quilombola Podem ser parentes próximas ou de terceiro grau São pessoas com as quais não se deseja perder os vínculos que moram em comunidades vizinhas em Saúde ou Mirangaba As famílias de Lajedo possuem comadrescompadres residentes nas comunidades de Água Fria Palmeira Coqueiro Santa Cruz do Coqueiro e principalmente em Grota das Oliveiras para onde se transferiram muitos de seus parentes de primeiro grau Ao aceitarem o compromisso as madrinhas devem se dispor a acompanhar a criação do a afilhado a e substituir as mães quando necessário em caso de viagens ou falecimento A interação é um aspecto fundamental das relações de compadrio Há uma expectativa de que comadres e afilhados as se visitem com certa frequência Como relatou D Miúda 321 Não há na comunidade afilhados homens de Sextafeira da Paixão Apenas as meninas do grupo escolhem as suas madrinhas por afinidade admiração e respeito Com elas aprenderão tarefas domésticas como costurar fazer crochê e bordar atividades agrícolas e lhes confidenciarão problemas pessoais 322 As mulheres de Lajedo afirmaram que uma madrinha não pode renegar o a afilhado a sob pena de transgredir um vínculo sagrado 240 As mulher daqui tá sempre em conversa com as mulher da Grota Umas por que é parente é comade e as comade tem que levar os menino pra dá bença A madrinha tem que botar a bença no afilhado pelo menos uma vez no ano Aí as mães vai levando que os homens você sabe que homem não entende essas coisa Aí quando o menino vai ficando grandinho ele vai só Faz o caminho só Aí os parente não se perde uns dos outro Eu tô sempre lá Tenho meus fios e as mulher que pare Aí os povo de lá vem me chamar Tem que ir Domingas Rosalina dos Santos 78 anos em 22042018 No dia do batizado há uma grande comemoração e os parentes se reencontram em clima de festa Ao saírem da igreja todos retornam para a casa dos compadres onde serão servidos o almoço e o bolo do afilhado A confraternização se estende por todo o dia As cerimônias de batismo ocorrem sempre aos domingos Além dos compadres e filhos as comparecem outros parentes estimados A presença das crianças é importante nessas celebrações pois provavelmente se tornarão compadres de afilhados as de seus pais ou de seus tios Rose por exemplo possui dezoito afilhados residentes nas localidades de Lajedo Palmeira Santa Cruz do Coqueiro e Grota das Oliveiras As crianças tratam os pais e seus padrinhos com a mesma deferência323 Em conversas informais algumas mulheres destacaram preferir dar seus filhos para batizar às amigas casadas porque assim não precisam procurar o padrinho Participei de dois batizados realizados por Rose em Santa Cruz do Coqueiro O primeiro no final de 2017 e o segundo em abril de 2018 A chegada dos compadres afilhado a e convidados as foi saudada pelos que não compareceram à cerimônia pois se encarregaram dos preparativos da festa subsequente ao batismo da igreja A recepção oferecida aos padrinhos deve ser impecável A mesa onde sentarão os novos compadres e o a afilhado a é bem arrumada Os demais convidados se espalham pela casa e pelo terreiro Cumprida a formalidade da refeição as pessoas ficam à vontade para conversar e circular pelo local até o final do dia Elas costumam aproveitar a ocasião para visitar parentes outros compadres e conhecidos O almoço servido tradicionalmente é constituído por arroz vatapá saladas e frango assado e acompanhado por bebidas diversas Após o 323 As crianças também denominam de compadre ou comadre as pessoas que já possuem esse vínculo com os seus pais e não são seus padrinhos 241 almoço são servidos bolo e refrigerantes Em ambas as ocasiões findo o almoço Rose presenteou os afilhados com um envelope contendo dinheiro para comprar um porco ou começar a fazer um futuro Como os afilhados eram crianças o presente da madrinha foi recepcionado pelos pais responsáveis por adquirir o animal ou multiplicar a dádiva Boa parte dos compadres da população adulta de Lajedo residem na comunidade de Grota das Oliveiras e são visitados anualmente na QuartaFeira Maior da Semana Santa quando levam os filhos as para tomar bença à madrinha de batismo e se reúnem com outros parentes da localidade para rezar o terço O compadrio se entrelaça à parentagem reforçando laços que desejam perpetuar Muitos habitantes de Grota das Oliveiras são referidos como uns parentes da gente que foram pra lá botar roça e dos quais não desejam abdicar Embora residam em Grotas das Oliveiras essas famílias constituem parte dos que permaneceram no território de origem A rede de conexão assegurada pelas relações de compadrio conecta parentes e atualiza os vínculos entre esses atores sociais A evocação de uma parentagem ampliada que abrange pais mães irmãos cônjuges cunhados sobrinhos sogros sogras comadres compadres e afilhados as constitui um aspecto peculiar da organização da comunidade tratase de uma tessitura em movimento que considera além do fator consanguíneo as alianças caracterizadas por sintonia e afinidades entre os de dentro e os de fora O vínculo do compadrio instituído pelo rito do batismo é via de regra horizontal e suas características principais são a cumplicidade e o respeito ao valor atribuído à categoria comadrecompadre São também consideradas as brincadeiras de tirar entre si324 as tarefas de trabalho e as rezas que dizem juntos Os homens ao se referirem aos compadres afirmam a gente somos compadres irmãos Nesse contexto irmão não se reporta a um parentesco consanguíneo antes expressa o afeto que os une aqui nós é compadre de fé Os compadres desfrutam de um sentimento de solidariedade que se manifesta quando das vicissitudes enfrentadas ao longo da vida Sobre a amizade entre compadres Seu Gilberto colocou 324 Expressão utilizada para indicar brincadeiras ou provocações que expressam afeto e respeito Apenas se tira brincadeira de quem se estima e sabe que pode brincar 242 Tipo assim a gente tem os compades aqui que é um tipo de refrigério pra gente Se você precisa assim de uma força de um apoio se você faz assim uma brincadeira eles tão tudo pelo meio se bem que tem uns que é parente mas tem outros que é mais que irmão Meus irmão não é todos não agravando a eles mas não é todos que eu tenho amizade como com uns compade aqui Gilberto Inocêncio dos Santos 47 anos em 23042018 Aos domingos a rotina é alterada pelo recebimento de visitas dos afilhados que aparecem para acompanhar ou participar de partidas de futebol com times de moradores de Lajedo Palmeira e Coqueiros Os afilhados chegam ao início da manhã e quase sempre trazem consigo pão ou algum produto da roça enviado por suas mães para as madrinhas Os rapazes passam a maior parte do tempo com os padrinhos retornando à casa das madrinhas ao meiodia ou no final da tarde quando tomam a bênção para retornar às suas casas Presenciei em alguns domingos as recomendações e presentes enviados às comadres distantes O presente possui valor simbólico Os compadres normalmente se estimam e não poupam esforços para estar juntos Geralmente se encontram no dia da feira livre de Saúde por vezes em espaços previamente combinados como no galpão da farinha nas bancas de banana nas barracas de comida ou casualmente O compadrio ora é utilizado para reforçar a fraternidade ora para fortalecer o parentesco de sangue as visitas a troca de presentes e a solidariedade recíproca As relações de compadrio em Lajedo evocam tanto em termos da sua centralidade quanto de suas especificidades que demarcam diferenças aquelas entre os autóctones Embera e os afrocolombianos do Alto Chocó Colômbia uma região coberta por uma floresta tropical fluvial densa que faz parte do ocidente colombiano e se abre sobre a costa do Pacífico Entre eles as alianças matrimoniais são terminantemente proibidas mas em compensação o compadrio é à base de um sistema de parentesco ritual desencadeada por meio de um recémnascido Embera do sexo masculino Cabe ao pai da criança escolher na comunidade camponesa negra mais próxima o homem que batizará seu filho e lhe dará o seu prenome adquirindo em troca o status de compadre do genitor do que advêm relações privilegiadas de assistência recíproca e intensificação de trocas de bens e serviços O compadrio envolve também as esposas LOSONCZY 2011 p 427 243 A conclusão de Anne Marie Losonczy é que o compadrio ao criar um laço de consanguinidade ritual entre dois homens substituindo simbolicamentre a troca de mulheres estrutura ritualmente as relações interétnicas em torno do recémnascido LOSONCZY 2011 p 428 o que ocorre também em nosso contexto de investigação Como vimos o compadrio complementa o parentesco consanguíneo e o ressignifica Desse modo as famílias de Lajedo e as residentes em Grota das Oliveiras permanecem ligadas por uma rede difusa Como a maior parte das famílias de Grota das Oliveiras são originárias de Lajedo e descendentes do senhor Paulo Quitero visitei aquela comunidade para compreender como reorganizaram as suas vidas Vislumbrei a possibilidade de visitar a comunidade Grota das Oliveiras após um encontro na sede da Associação Quilombola de Lajedo realizado em 22 de janeiro de 2017 Participaram quilombolas de nove comunidades da região325 dentre eles o presidente da associação de Grota das Oliveiras o senhor Jorge dos Santos Seu Jorge desejava obter informações sobre os procedimentos a serem adotados para certificar a sua comunidade como quilombola soube que meus parente de Lajedo agora são certificado como quilombola E nós somo igualmente uns irmão Somos tudo igual e parente Outros representantes compareceram ao evento com a mesma finalidade As movimentações ensejadas pelo Barulho do Quilombo326 fortalecem a luta quilombola no sertão baiano No evento supracitado membros de diversas comunidades negras rurais tiveram a oportunidade de escutar e trocar ideias sobre a ancestralidade a pertença negra e quilombola Seu Jorge convidou a mim e a Valmir dos Santos para visitar a sua comunidade No momento em que Seu Jorge fez a solicitação houve certo silêncio no ambiente atitude que um pouco mais tarde foi esclarecida por Dona Mariene De acordo com a interlocutora as pessoas que estavam presentes nutriam o receio que não aceitássemos o chamado do Jorge e isso soaria como uma desfeita fato que desagradaria a muitos e talvez pudesse comprometer minhas relações com alguns 325 Como relatado no capítulo anterior 326 Como referido no Capítulo 1 244 Realizo a seguir uma narrativa do contato estabelecido com os moradores as de Grota das Oliveiras327 51 GROTA DAS OLIVEIRAS O MOVIMENTO ITINERANTE DOS OUTROS DESCENDENTES DE QUITERO Em 14 de março de 2017 eu e Valmir dos Santos328 visitamos a comunidade Grota das Oliveiras O dia estava úmido e ameaçando chover329 comecei a pensar sobre a semelhança do episódio da chuva que assinalou minha primeira ida ao Lajedo Fui despertada dessas comparações quando Valmir mencionou olhe o Jorge já está ali Ele veio mesmo E agora comadre vai Eu não sei pra onde estou indo e começou a sorrir como faz habitualmente diante de alguma preocupação Notei que Valmir se encontrava dividido entre seguir o caminho ou conversar com Seu Jorge ali mesmo no Paiaiá Suponho que o fato que o incomodava era o mesmo que também me causava certo desconforto isto é seguir pessoas pouco conhecidas para um lugar de onde não poderíamos entrar ou sair sozinhos No entanto antes que tomássemos qualquer decisão contrária Seu Jorge assim que nos reconheceu se adiantou dizendo é vosmicês veio mesmo Bem que João Colado disse que vosmicês tinha palavra Agora é ver se tem coragem também pra mode subir a serra Diante daquela colocação entendi que caso não cumpríssemos o combinado eu poderia contrair uma situação adversa com os moradores de Lajedo pois ficara visível que eles também mantinham expectativas em relação a nossa visita conversa e prestação de auxílio para o 327 Informo ao leitor a que restringi esse contato à comunidade de Grota das Oliveiras não tendo estendido essa experiência à comunidade de Água Fria porquanto verifiquei que na atualidade há apenas duas famílias descendentes dos quilombolas de Lajedo residindo nesse segundo território Dessa forma não considero pertinente descrever a comunidade de Água Fria nesta tese 328 Agradeço imensamente a Valmir dos Santos por ser meu amigo compadre e sempre me auxiliar com sua companhia esclarecimentos e orientações sobre as atividades desenvolvidas nas comunidades quilombolas do norte baiano No dia relativo à primeira visita realizada em Grota das Oliveiras saímos de minha residência na cidade de Ponto Novo às seis horas da manhã inicialmente com destino ao município de Saúde que dista 47 quilômetros Após atravessarmos a referida cidade nos deslocamos para o povoado de Paiaiá onde Seu Jorge e um irmão nos aguardavam para nos conduzir até a comunidade 329 A partir desse segundo parágrafo e nos quatro subsequentes são transcritos trechos do Diário de Campo com algumas adaptações 245 ato de certificação de seus parentes como povos remanescentes de quilombo De igual modo não pude deixar de analisar que mais uma vez de forma prática os acontecimentos desencadeados em campo me possibilitavam uma compreensão a respeito da importância do cumprimento da palavra330 no universo simbólico que é tecido por parte dos atores sociais que povoam as comunidades negras sertanejas e como a riqueza desses signos modelados pelas perspectivas evidenciadas em cada geração influenciam seus modos de vida e as relações que estabelecem Terminados os cumprimentos iniciais caracterizados por apertos de mão mediante a intimação pronunciada pelo Seu Jorge nós voltamos ao carro traçamos o sinal da cruz331 e seguimos o caminho que ele e seu irmão nos indicavam Em alguns momentos os perdemos de vista porém como não houvesse qualquer desvio ou entrada mantivemos o curso que durou cerca de 40 minutos Eu e Valmir quase não conversávamos possivelmente por estarmos impressionados com as paisagens que se descortinavam a nossa frente e sobretudo por que à medida que avançávamos parecia que a vegetação se tornava mais densa Chegamos a parar uma vez porquanto além de ter perdido de vista os nossos mediadores nós não conseguimos encontrar os rastros feitos pelas motos332 e apenas retomamos a rota quando Jorge percebendo nossa demora retornou para nos buscar Observei que assim como eu Valmir estava reticente pois ficava claro que não conseguiríamos voltar sem a ajuda de nossos anfitriões considerando que nenhum de nós já havia estado ali 330 Mediante o que já foi tratado no Capítulo 1 331 Hábito comum entre a população sertaneja quando se vai viajar e ou realizar qualquer tarefa considerada importante 332 É comportamento comum nas comunidades sertanejas rurais quando se está perdido ou em dúvida em relação ao caminho que deve ser tomado seguir o rastro mais visível deixado por pneus de motos ou carros 246 Imagem nº 35 Via de acesso a Grota das Oliveiras Fonte Acervo da pesquisadora Após uma curva que se mostrou a mais sinuosa do caminho imitando a atitude dos nossos condutores nós paramos o carro e pela primeira vez eu avistei uma casa Fomos então informados que já estávamos no território da Grota mais especificamente na entrada da comunidade aonde precisaríamos deixar o automóvel e seguir de moto com eles Quando desci eu percebi que havia três casas Duas muito próximas por se tratarem de famílias constituídas por pais e filhos e a terceira um pouco mais além Foi realizada uma pequena apresentação em relação às pessoas que ali nos encontraram e nessa primeira parada pudemos sorver um aromático copo de café em seguida nos certificamos que os donos dessas casas também seguiriam conosco Compreendi que além da visita ao território Seu Jorge como presidente da Associação dos Pequenos Agricultores de Grota das Oliveiras APAGO havia organizado uma reunião e todos os moradores as estavam a nossa espera visto que desejavam melhor entender sobre a questão do quilombo Com 247 um pouco mais de companhia e o estômago forrado de café o trajeto foi percorrido de forma mais tranquila Continuamos o trajeto de moto já que segundo os interlocutores começaríamos a subida da serra À medida que nos distanciávamos a paisagem voltou a ficar deserta aumentando o frio e a velocidade do vento Decorridos vinte e três minutos as motos precisaram ser desligadas para evitar o risco de deslizamentos e o próximo trecho foi realizado a pé Depois de catorze minutos de caminhada nós voltamos a fazer uso das motos e dezessete minutos depois eu finalmente divisei o núcleo da comunidade Paramos em frente a um bar chamado Ponto da Amizade que fica ao lado da casa de Jorge Nesse local adultos e crianças se encontravam a nossa espera Embora eu não tenha demonstrado aliás como é típico das mulheres do meu contexto intimamente estava com o espírito transbordando em emoções por perceber a expectativa que aquelas pessoas mantinham em relação ao reconhecimento de sua ancestralidade enquanto grupo tradicional333 Presumo que esse seja um dos grandes legados do Barulho do Quilombo isto é converter a identidade acionada em diretriz norteadora da construção de novos significados para a Negritude Sertaneja A nossa chegada foi recepcionada por Seu João José da Silva 88 anos que representando os anciãos do grupo fez questão de enfatizar que almejava que a nossa presença fosse capaz de trazer alegria para a comunidade a pequena assembleia que nos aguardava se organizou de maneira circular se espalhando pelas dependências do terreiro da casa do Seu Jorge Ele muito solícito pediu a atenção de todos fez os agradecimentos costumazes e esclareceu os motivos daquela reunião passando em seguida a palavra para Valmir cuja palestra foi ouvida com uma atenção particular por parte dos presentes já que todos as que se encontravam naquele espaço tinham informações a respeito da trajetória do mesmo sua dedicação e solidariedade à causa quilombola Valmir fez um relato de todo o processo que culmina na certificação de uma comunidade negra como tradicional as lutas existentes assim como as transformações positivas ocasionadas nas vivências empreendidas pelos atores sociais que passam a ser percebidos como sujeitos 333 Aqui finalizam os trechos do Diário de Campo 248 políticos e de direito constituído Fiquei um pouco preocupada por que a empolgação foi geral e as pessoas aplaudiram efusivamente na sequência a palavra foi passada para mim Imagem nº 36 Reunião em casa de Seu Jorge dos Santos Fonte Acervo da pesquisadora Nas associações quilombolas do norte baiano cada membro aprende a praticar a oralidade Como destacou Paulo Freire no livro Pedagogia do Oprimido 1975 todos as possuem o direito de dizer a sua palavra crítica e criadora revestida de significados emprestados de suas biografias A minha explanação foi breve pois a intenção era escutálos Durante a reunião os moradores de Grota das Oliveiras relataram diversas histórias quase sempre associadas ao território no qual labutam diariamente para assegurar o sustento de suas famílias pois a chuva é o sangue da terra que também corre 249 em suas veias Finalizada a reunião a ata foi assinada e em seguida foi servido um almoço preparado pelas mulheres da comunidade 334 Durante a tarde percorremos a comunidade visitando casas e roças dos as moradores as Observei que a organização espacial das roças e as distâncias entre as casas é semelhante à de Lajedo As residências são esparsas algumas estão situadas em pontos muito elevados outras em baixios designados localmente como tabuleiros A população constituída por trinta e duas famílias migrou para a Grota das Oliveiras em decorrência da fertilidade de suas terras335 e se instalou nas localidades do território denominadas Riachão Morro Dantas Mocambo Alto Bonito e Boa Vista Dona Marilene Sena dos Santos conhecida como Nina de Arquimino afirmou Aqui nas Oliveira é igualmente a uma mãe de muitos filho que tem muito nome pra botar E aí nós vai batizando esses filho de acordo com cada pai Cada qual tem um nome mas quando se ajunta é tudo filho de uma mãe só A terra aqui é uma mãe só Marilene Sena dos Santos 51 anos em 140317 Da fala da interlocutora depreendese a relação que as populações quilombolas desenvolvem com a terra e um sentimento de fraternidade provavelmente fundamentado em vínculos constituídos quando ainda se encontravam em Lajedo e que se fortaleceram no novo território durante as lides e labutas da vida cotidiana As famílias fundadoras chegaram a Grota das Oliveiras na década de 1950 e começaram a botar suas roças em terrenos caracterizados pela abundância de água pois todo o perímetro é banhado por um afluente do rio Paiaiá denominado localmente de Riachão Os primeiros moradores foram João José da Silva e Judite Francisca de Jesus sucedidos por João da Grota Chicão Preto Adão José do Instantino e D Maria Joana Quase todos eles já faleceram Segundo relataram eles chegaram sozinhos e depois 334 A comunidade foi certificada como remanescente de quilombo em 18 de agosto de 2017 335 Eles migraram porque o solo de Lajedo parecia não agradecer isto é não prosperava dificultando as atividades agrícolas As terras férteis em Lajedo já não eram suficientes para assegurar a subsistência de todas as famílias Alguns moradores de Lajedo informaram que cerca de setenta famílias migraram para as comunidades de Coqueiro Palmeira Água Fria Grota das Oliveiras e para a cidade de Saúde 250 constituíram famílias com outros moradores de Lajedo a oitava moradora a migrar para a comunidade foi Marilene Silva dos Santos que se casou com Arquimino dos Santos Ambos eram viúvos Arquimino é originário de Itiúba Ele era vaqueiro no povoado de Santo Antônio336 e residia com os seus pais Se mudou com a família para Grota das Oliveiras em decorrência do tempo ruim isto é os longos períodos de seca especialmente a de 1932 notabilizada em todo o sertão baiano Adquiriu duas tarefas de terra em Grota das Oliveiras de Doutor Pinheiro337 mas permaneceu trabalhando como vaqueiro em uma fazenda de Santo Antônio Durante as noites trabalhava nas terras recém adquiridas abrindo covas que eram cultivadas durante o dia por sua primeira esposa já falecida Os moradores de Grota das Oliveiras relataram que os fundadores foram aos poucos puxando os parentes de Lajedo e povoando a localidade constituída pelas famílias Santos e Silva O topônimo de Grota das Oliveiras remete a um antigo garimpo desativado que foi instalado na serra das Oliveiras Quase toda a região que circunda a cidade de Saúde em tempos pretéritos foi caracterizada pela presença de garimpos muitos dos quais acabaram originando algumas povoações338 Percorri a comunidade em companhia de Maria de Lurdes dos Santos Roseni Sena dos Santos e Nina de Arquimino D Nina me puxou pelo braço e afirmou olhe você não perguntou mas eu vou logo lhe dizer aqui ninguém tem desafio uns aos outro e a amizade é 336 Localizado na região de Jacobina 337 Médico e político muito conhecido na região 338 É pertinente informar que o município de Saúde está localizado a uma distância que corresponde a 353 quilômetros da cidade do Salvador fazendo divisa entre as cidades de Caldeirão Grande Mirangaba Caém e Pindobaçu Saúde possui o formato semelhante a um planalto triangular abriga serras que no passado foram exploradas por mineradores e garimpeiros que chegaram à região desde a data de 1586 muitos dos quais atraídos pela possibilidade de explorar com total isenção de impostos locais como o Vale do Papagaio as serras da Jaqueira e da Maravilha O Arraial de Nossa Senhora da Saúde primeira denominação recebida pelo município ainda nos últimos anos do século XVI começou a receber mineradores ávidos pela saga do ouro sobretudo do ouro de aluvião Segundo o historiador local Pereira 2004 no período de 17551772 as minas encontradas nas serras de Saúde foram ocupadas por centenas de mineradores e garimpeiros entre os quais o bandeirante João Romão Garamacho Falcão vindo de Oliveira dos Brejinhos A quantidade de ouro retirada pelo garimpeiro foi tamanha capaz de atrair as atenções da fiscalização da Coroa que exigiu o quinto de toda produção extraída nas serras bem como nos rios locais Entre os anos de 19371943 outros exploradores tiveram suas atividades facilitadas devido ao apoio concedido por parte do executivo municipal representado à época pelo senhor Edgar Agnelo Pereira Informo que as terras habitadas por esse grupo encontramse situadas abaixo do local onde funcionou o antigo garimpo das Oliveiras 251 sempre continuano destacando a prevalência da união e de afeto entre os membros na comunidade Imagem nº 37 Roda de Conversa com os as moradores as Fonte Acervo da pesquisadora A maior parte das famílias de Grota das Oliveiras é proveniente de Lajedo Duas são originárias das localidades de Canabrava e Angelim339 Entre a população adulta apenas Seu Guilherme João da Silva 58 anos nasceu em Grota das Oliveiras Dentre os jovens até dezessete anos e crianças alguns nasceram na comunidade com o auxílio da parteira D Miúda340 e outros na maternidade dos hospitais de Saúde e Jacobina 339 Povoações situadas na região de Saúde 340 D Miúda também realizou os partos de seus netos que nasceram e residem na comunidade 252 À medida que eu caminhava com minhas anfitriãs escutei muitas narrativas de suas histórias de vida algumas semelhantes às de suas comadres em Lajedo Enquanto Lajedo é uma comunidade caracterizada pela desertificação Grota das Oliveiras está em processo de formação Quando indaguei às mulheres de Grota das Oliveiras sobre o cotidiano na comunidade D Nina respondeu Ah Moça Que aqui eu vou lhe dizer que eu só comparo minha sorte Com a sorte do PassoPreto Voando o sertão de luto E alegre sastisfeito Marilene Sena dos Santos 51 anos em 14032017 D Nina comparou a trajetória de Grota das Oliveiras com a da iraúnagrande Molothrus oryzivorus conhecida em todo o sertão nordestino como Passopreto341 É um dos pássaros mais apreciados da fauna silvestre devido à pelugem negra e canto mavioso que se distingue do canto dos outros pássaros seja em cativeiro ou no meio do mato O Passopreto é uma ave diferente com algumas habilidades específicas identifica quem é o seu sua dono a entre os membros da família e canta apenas quando o seu sua dono a está em casa É uma ave majestosa A infraestrutura342 da comunidade é constituída pelas casas e roças dos moradores e por uma casa de farinha Há também um prédio escolar desativado que funcionou em regime de classe multisseriada até 2016 com classes de Educação Infantil e Ensino Fundamental I As aulas eram ministradas por um professor do povoado próximo de Riacho Os moradores de Grotas das Oliveiras relataram que no final do ano letivo de 341 Segundo informações contidas no dicionário Aurélio 1986 a iraúnagrande é uma ave passeriforme da família Icterida e campestre Possui seu habitat do México à Bolívia Argentina e em grande parte do Brasil especialmente no Nordeste onde é conhecida popularmente por graúna 342 Mantenhome sabedora de que o tempo em que estive na comunidade foi insuficiente para uma descrição que se proponha ser mais densa 253 2016 receberam a visita inesperada do prefeito de Saúde Ele se reuniu com os pais dos estudantes e explicou que o prédio escolar seria desativado e os seus alunos transferidos para escolas da sede do município Justificou o fechamento da escola pela necessidade de aprimorar a aprendizagem das crianças e viabilizar o deslocamento dos adolescentes que já estudavam fora da comunidade disponibilizando um transporte escolar Imagem nº 38 Crianças da comunidade à espera do transporte escolar Fonte Acervo da pesquisadora As mulheres não se opuseram à medida pois até então a locomoção dos estudantes para as escolas do município era muito trabalhosa Eles saiam às quatro da manhã montados em jumentos ou cavalos para o povoado de Paiaiá onde esperavam o transporte escolar que passava para pegálos por volta das seis horas A reunião com o prefeito de Saúde foi realizada embaixo de um pé de manga árvore à qual é atribuída certa relevância Segundo Seu Pedro Sena dos Santos a mangueira foi à primeira árvore plantada pelos moradores em Grota das Oliveiras O local sombreado é 254 um dos mais importantes da comunidade e ali realizavam reuniões celebrações religiosas e pequenos festejos como aniversários e encontros de amigos343 As casas originalmente erigidas com taipa são atualmente de adobe com um alicerce de cerca de meio metro de altura para evitar alagamentos Com exceção da casa de farinha as habitações de taipa remanescentes são conservadas e utilizadas para armazenar a produção semanal das roças levada às feiras livres da região principalmente de Saúde Jacobina e Pindobaçu Em Grota das Oliveiras as casas são constituídas por sala dois quartos e cozinha Não existem portas internas apenas as portas de entrada e de saída Em algumas casas as divisões entre os cômodos são feitas por cortinas Não há banheiros nem água encanada Os moradores utilizam fogão a lenha e energia solar A principal fonte de renda dos quilombolas é a agricultura Os produtos cultivados são feijão andu banana344 e jaca A farinha é fabricada artesanalmente A sua qualidade é apreciada pelos consumidores na feira livre de Saúde Os moradores de Lajedo e Grota das Oliveiras são considerados os melhores fornecedores de farinha da região Muitos membros de famílias abastadas só adquirem a farinha dessas comunidades A farinha é um produto cultivado tradicionalmente nas comunidades negras rurais e quilombolas Em uma análise sobre a economia do campesinato negro no Brasil o historiador Flávio dos Santos Gomes destacou Um elemento típico da economia quilombola foi à farinha de mandioca Plantavam e colhiam mandioca transformandoa através da moagem peneiras em forno em farinha e outros derivados No Nordeste colonial se falava que viviam em numerosas choças construídas por ramos de capim e rodeadas de hortas A produção econômica podia ser complexa como foi nos grandes quilombos coloniais de Pernambuco Minas Gerais Mato Grosso e Goiás Além do feijão arroz e mandioca com fartas plantações aproveitavam do peixe em abundância e da carne de animais silvestres pois passavam o dia caçando Plantavam colhiam e realizavam festas para homenagear suas colheitas GOMES 2015 p 21 343 Entrevistei alguns moradores embaixo dessa mangueira D Nina mencionou que eu havia escolhido bem o local 344 Assim como em Lajedo a banana é o principal produto cultivado nas seguintes variações prata dágua maçã e café Em Grota das Oliveiras não se utiliza agrotóxicos nas plantações 255 A rede tecida pelas conexões econômicas assume um aspecto significativo na vida dessas comunidades à qual dedicam tempo e atenção Tratase de uma economia relativamente articulada que além de proporcionar coesão entre as famílias valoriza as comunidades no contexto regional mais amplo Não se pode analisar os modos de vida das populações quilombolas sertanejas negligenciando as relações que estabelecem no mundo do trabalho Cada membro desempenha tarefas específicas que contribuem para a melhoria de suas comunidades Os anciãos de Grota das Oliveiras embora ainda trabalhem em suas roças são aposentados e complementam a renda com a Bolsa Família Os moradores de Grota das Oliveiras relataram que a estrada aberta em 2014 pela Prefeitura de Saúde facilitou os deslocamentos para cuidar da educação escolar e tratar da saúde Anteriormente os doentes e as parturientes que não conseguiam parir com o auxílio de parteiras eram retirados da comunidade em redes e conduzidos ao hospital Atualmente as mulheres da comunidade declararam que as que não conseguem parir em casa são levadas de moto até a maternidade345 e permanecem na cidade de Saúde geralmente em casa de parentes até o recémnascido completar quinze dias O trajeto de volta para a comunidade é realizado de carro até o povoado de Paiaiá De lá seguem de moto até o pé da ladeira da comunidade onde uma tia da criança montada em um cavalo já está à espera para receber o bebê e leválo para casa em segurança346 A chegada da família é anunciada com fogos de artifício e parentes compadres e vizinhos aparecem para visitar a família e o seu bebê Segundo Seu Arquimino dos Santos a comunidade estimula os casamentos com gente de roça Tem que casar com gente de roça porque gente de rua é meio preguiçoso O povo da rua quando vem para cá é desfazeno diz que aqui é lugar de carrapato só tem carrapato só tem carrapato pausa E a gente pisa 345 O acompanhamento prénatal é uma prática recente entre as mulheres da comunidade Começou a ser realizado em 2016 346 A subida da ladeira é caracterizada por imprevistos como tombos e quedas da moto Portanto as mães preferem que o a recémnascido a seja conduzido por uma tia em lombo de cavalo já que o cavalo ao contrário do jumento não é considerado um animal imprevidente Quando chegam ao pé da ladeira os pais seguem de moto e aguardam em casa a chegada do neném Segundo as mulheres essa tia costuma passar os primeiros trintas dias do período de resguardo servindo à parida e cuidando diretamente da criança Essa rede de solidariedade feminina também percebida em Lajedo solidifica os laços de parentesco e de compadrio 256 em cima de carrapato e não vê nada disso Eles gostam de mangar de nós aqui dizendo que a gente é uns coitado Arquimino dos Santos 89 anos em 15032017 Quando entrevistei seu Aquimino sua esposa D Nina indagou eu posso ir junto também D Nina participou ativamente da entrevista realizada debaixo do pé de manga e depois revelou É assim eu tô ajudando Arquimino porque ele já tá assim meio de idade e ele é meio gago eu não sei se você notou E aí eu não quero que depois você fique pensando que ele não sabe falar direito Aí eu tô ajudando e eu penso que isso não é ignorado não Marilene Sena dos Santos 51 anos em 15032017 O casal possui oito filhos menores e uma filha casada Joseline Santos Gomes residente na cidade de Saúde Conversei algumas vezes com Joseline e ela mencionou que a sua casa é utilizada como referência para os parentes da comunidade em especial durante as sextasfeiras347 e sábados quando se realiza a feira livre A feira tanto para a população residente em Grota das Oliveiras quanto para seus parentes e compadres de Lajedo é também um ambiente de socialização O historiador Flávio dos Santos Gomes 2015 p 3233 apontou a relevância das feiras livres para a vida econômica e sociocultural das comunidades negras camponesas argumentando que esses espaços onde eram constituídos pontos de interação atraíam escravos e libertos de diversas plantações Muitos deles atravessavam longas distâncias a pé para alcançálos Nas feiras circulavam informações e culturas entre escravizados de áreas urbanas e rurais Tanto para os quilombos do período colonial quanto para as comunidades negras e quilombolas atuais a feira livre constitui um dos canais utilizados para estabelecer relações com a sociedade envolvente e um espaço no qual administram as suas identidades nas relações de troca de compra e venda no modo como são percebidos ao oferecerem os produtos de suas roças e nos papéis assumidos nas negociações comerciais 347 Algumas famílias pernoitam em Saúde para participar também da feira aos sábados Segundo D Nina a gente fica assim tudo numa casa imalado que nem rapadura 257 No mapa a seguir ofereço uma demonstração da organização espacial e proximidade existente entre as comunidades de Lajedo Grota das Oliveiras Água Fria e a cidade de Saúde circunstância que favorece as movimentações realizadas pelos quilombolas de modo especial por ocasião da feira livre Fonte Adobe Photoshop CC 2019 Ilustração da Pesquisadora 511 DE MAMANDO A CADUCANDO AQUI TODO MUNDO REZA E SAMBA Para além do aspecto econômico a autossuficiência das comunidades quilombolas sertanejas sobressai em muitos caracteres socioculturais O cotidiano da labuta diária das roças da produção da farinha da extração do coco babaçu e das feiras cede espaço às atividades lúdicas e encenações como o Samba de Palmas e Versos que praticam desde 258 quando habitavam em Lajedo subsistindo com algumas modificações e adaptações aos modos específicos de se relacionar com a arte e com a vida produzindo novos significados São realizados nas pausas durante o trabalho e após as reuniões da associação Cantando sambando e dizendo verso os habitantes de Grota das Oliveiras tecem um processo dinâmico de criação e de recriação de seus cotidianos demonstrando que não estão isolados nem são atrasados como acredita a sociedade envolvente que por vezes lhes imputa esse estigma como algo decorrente da pobreza econômica predominante nas comunidades rurais As mulheres são as guardiãs e principais responsáveis pela continuidade do Samba de Palmas e Versos Segundo relataram foram às mulheres que reinventaram essa brincadeira pois aqui as mulher reza mas também gosta de samba Quando indaguei se havia algum critério para participar do samba Eliane dos Santos nora de D Miúda respondeu Ah Minha filha De mamando a caducando aqui todo mundo reza e samba Nessa afirmativa está implícito o princípio da unidade interna que buscam enfatizar durante o trabalho nos festejos e rezas As mulheres de Grota das Oliveiras notabilizadas no contexto regional como rezadeiras são frequentemente convidadas por outras comunidades negras e quilombolas para participar das celebrações religiosas do Catolicismo Sertanejo348 Quando o Samba de Palmas e Versos é realizado na comunidade todos podem participar Todavia quando se apresenta em outras comunidades definese previamente o número de participantes se atribuem papéis e padronizam as vestimentas São geralmente dezesseis componentes dez mulheres quatro homens e duas crianças quase sempre uma menina e um menino continuadores dessa brincadeira Os participantes usam uma camisa amarela padronizada com o nome do grupo As mulheres vestem saias coloridas e os homens calças jeans As mulheres cantam os versos durante a roda e entoam os cânticos no samba competindo aos homens promover a harmonia dos instrumentos o toque do pandeiro e do triângulo As apresentações são iniciadas com a encenação da roda 348 Essas celebrações são realizadas em homenagem aos santos padroeiros e raramente contam com a presença de padres ou missionários As mulheres da comunidade convidam parentes e comadres das comunidades vizinhas para participar e auxiliar nos ritos preparatórios As celebrações ocorrem em pequenas capelas dedicadas aos santos ou na casa de moradores as específicos geralmente aquele que é designado ou que se reivindica o a cuidador a do santo São cerimônias cujos elementos guardam relações intrínsecas com a Umbanda Sertaneja No Capítulo 7 abordarei este tema mais detidamente 259 Namora moça Que não é defeito O rapaz malandro Se conhece pelo jeito As Oliveiras tá chovendo Saúde tá chuviscando Menino me dá teu lenço Que a chuva tá me molhando Namora moça Que não é defeito O rapaz malandro Se conhece pelo jeito Adeus casa de farinha Roda de puxar mandioca Não há dinheiro que pague Um beiju de tapioca Versos cantados pelas mulheres de Grota das Oliveiras Cada componente da roda canta um verso finalizando com a décima integrante Então se inicia o samba com o sapateado dos homens e as palmas das mulheres que asseguram a alegria entre os brincantes e os que observam o cadenciar dos corpos que rodopiam e saúdam o próximo a ser convidado a entrar na roda A transição entre o movimento da roda e o início do samba é caracterizada por versos cantados pelas mulheres e acompanhados pelos tocadores de pandeiro e triângulo Arriba a saia mulher Não deixa a saia molhar 260 A saia custou dinheiro Dinheiro custou ganhar Ô bemtevi Bemtevi não tem coroa Eu vim sambar Em casa de gente boa Ô bemtevi Bemtevi não tem coroa Eu vim sambar Em casa de gente boa Canto de Entrada do Samba entoado pelas mulheres de Grota das Oliveiras Os versos cantados durante a roda e o samba abordam o cotidiano desses agentes seus trabalhos e conquistas Os últimos brincantes são as crianças pois segundo D Joseline os meninos é a continuação do nosso povo aqui por isso é eles que termina a apresentação Ela costuma acompanhar as apresentações do grupo Ao abordar o universo religioso e lúdico das festividades organizadas pelas populações quilombolas a pesquisadora Glória Moura 2012 p 79 destaca que os referenciais que devem ser utilizados para se descrever uma sociedade são o contexto as mentalidades e as relações de poder que a caracterizam Segundo a autora nessas festividades se apreende as concepções de mundo das comunidades e como elas são utilizadas para afirmar as identidades Quando os quilombos contemporâneos reinventam manifestações culturais com elementos da cultura ancestral eles selecionam os sinais diacríticos que os identificam Moura 2012 ressalta também ser possível comparar as festividades organizadas pelos quilombolas ao trabalho campesino ou urbano interpretando os signos veiculados por melodias rituais e pelo modus vivendi comunitário pois nas comunidades negras as festividades são também reencontros liberdade dos corpos e expressão ancestral 261 Imagem nº 39 Grupo Samba de Palmas e Versos Fonte Foto cedida por Joseline Santos Gomes Após o samba quando fizemos um círculo de cultura349 D Maria de Lurdes afirmou Esse samba aqui a gente trouxe do Lajedo Mudamo muita coisa porque assim nós considera que a vida da gente é assim tem o trabalho mas tem a diversão e também tem nossas rezas As reza que a gente faz e aí todo mundo conhece a gente aqui Pra viver não é somente o trabalho é também nossos divertimento Se chamar pra qualquer lugar nós vai mas a brincadeira é aqui dentro mesmo Maria de Lurdes 59 anos em 28042017 349 Conceito utilizado por Paulo Freire na Pedagogia do Oprimido 262 Quando a apresentação ocorre em outras comunidades para atender a convites de pessoas ou órgãos públicos eles preparam novos versos para homenageálos Esses convites suscitam um sentimento de orgulho contentamento e de representação comunitária entre os participantes do Grupo Samba de Palmas e Versos como ressaltou D Nina de Arquimino Nós já é meio discriminado da parte de alguns porque não é também por todos Então na hora que o povo de fora convida principalmente se vier assim por parte do povo do prefeito a gente quer dar o nosso melhor Porque na vida a pessoa é que tem que fazer o seu melhor Se a pessoa não se valorizar então não é o outro que vai dar aquele valor Você tá entendendo Marilene Sena dos Santos 51 anos em 28042017 O primeiro convite que receberam de um órgão público foi o da Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola EBDA Foram convidados para se apresentar em um encontro de pequenos agricultores da região de Jacobina Durante esse evento observando os outros grupos eles perceberam a necessidade de se organizar e de padronizar as vestimentas que atualmente utilizam Além do caráter lúdico o Grupo Samba de Palmas e Versos utiliza uma linguagem na qual imprimem as marcas próprias de sua performance tendo o cuidado de preservar entre os versos cantados aqueles que definem como o seu canto de entrada e que os distingue de outros grupos 512 A FORÇA QUE VEM DA FÉ UM CRUZEIRO OFERECIDO À NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO APARECIDA A dimensão religiosa é um dos aspectos mais significativos no cotidiano dos membros da comunidade de Grota das Oliveiras As práticas religiosas350 permeiam o seu cotidiano realizam a persignação católica antes de iniciar qualquer trabalho os mais novos tomam a benção aos mais velhos antes de sair de casa Eles acreditam no poder protetivo 350 No Capítulo 1 destaquei muitos aspectos do universo mítico religioso das comunidades estudadas 263 dos banhos de folha Seu João José da Silva 88 anos é muito procurado especialmente pelas mães da comunidade que levam os as filhos as para ser rezados do quebranto que botaram na rua vento e mal no corpo351 Os adultos solicitam os trabalhos de Seu João para benzer preparar beberagens e receitar remédios Guilherme filho de Seu João enfatizou que o seu pai possui um dom de Deus Isso aí é um dom que Deus botou nele Então ele tem que ajudar as pessoa pai é muito querido aqui E você pensa que é só gente da Grota que procura ele Às vezes assim a gente tá por aqui e chega gente de outras comunidade Aí ele tem que ajudar Se você procurar assim ele não diz mas essas coisa você com pouco tempo vê Que essas coisa é assim não pode ficar de alardeio Tem gente aqui que consulta o médico mas consulta pai também Guilherme João da Silva 58 anos em 27042017 Durante a minha estadia em campo presenciei Seu João preparar remédios do mato352 para dois membros adultos da comunidade acometidos de mal de saúde Além de rezar nas pessoas Seu João costuma benzer os animais e as plantações sobretudo quando elas são atacadas por pragas Muitos indivíduos de outras comunidades vão procurálo quando há pragas nas plantações Ele ora em sua própria casa para combater a praga Segundo os moradores de Grota das Oliveiras nunca ocorreu de o senhor João rezar e não aplacar as enfermidades nas pessoas animais ou lavouras Conversei com Seu João em sua residência Ele já não se ausenta de casa É lúcido de personalidade serena e muito bem humorado Relatou o seu trabalho como vaqueiro e nas terras de fazendeiros ricos Por ter sido uma das primeiras pessoas a chegar à comunidade no início se alimentava de caça que era abundante na mata fechada Ele afirmou ser muito feliz por ter constituído família em Grota das Oliveiras A sabedoria e mansuetude do senhor João me encantaram 351 Utilizam essa expressão para designar a condição das crianças medrosas choronas e agitadas A população de Grota das Oliveiras pouco consulta psicólogos pois creem que o rezador pode combater esses males 352 Um lambedor e uma beberagem 264 Os habitantes de Grota das Oliveiras são católicos Apenas uma moradora D Quinininha se converteu a uma igreja evangélica Os padres freiras ou missionários não visitam a comunidade Os quilombolas frequentam ocasionalmente a igreja de Nossa Senhora da Saúde por ocasião de batizados casamentos e para reverenciar o dia da santa São devotos do Bom Jesus da Lapa e anualmente organizam uma romaria ao santuário para cumprir promessas diversas Alguns vão para a romaria para adquirir objetos de devoção encomendados pelos parentes como água dos milagres imagens sacras terços óleos pomadas e ervas Em uma dessas romarias D Nina realizou um sonho muito acalentado por todos as na comunidade Em 2016 ela visitou a Gruta do Bom Jesus da Lapa para iniciar o cumprimento de uma promessa As famílias de Grota das Oliveiras se reúnem semanalmente na casa de moradores para a reza do terço Eles se ressentiam por não haver capelas ou imagens sacras na comunidade D Nina relatou que em um período particular de sua vida fez um voto ao Senhor Bom Jesus da Lapa Prometeu que caso obtivesse a graça desejada além de ir ao santuário agradecer traria para casa uma imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida contribuindo para iniciar na comunidade a devoção à santa O voto foi mantido em segredo até a véspera de sua viagem Durante a nossa conversa eu me esforçava para ver o cruzeiro com a imagem de Nossa Senhora Aparecida situada na serra mais alta que circunda o território Ela então esclareceu O cruzeiro vai inteirar um ano que foi construído A associação já tava aí E aí Jorge sempre falava e aí chegou na Semana Santa e a gente tava assim reunido Aí Jorge falou quando for em agosto eu vou botar um cruzeiro em riba da serra Vai Vai Que dia ia ser Nós conversemos assim pra botar dia 05 de agosto que é dia de Nossa Senhora das Neves Aí não deu certo que era um dia de sextafeira era um dia do povo sair daqui com as carga Aí disse que era no dia de sábado dia seis Aí eu disse não Que eu fui pra Lapa que eu tenho uma promessa de rezar meu terço dia 06 de agosto e vai ser este ano Aí então vamo botar no dia 07 de agosto Ele Jorge pegou a cruz daqui botou nesse dito ônibus que saiu daqui com os menino Botou o pau igualmente tá nesse pé de manga aqui botou na serraria fez a cruz Tornou a botar o mesmo pau dentro do ônibus chegou ali naquele pé de caju botou em pé O menino lá furou chegou aqui parafusou Parece que foi em um dia de quartafeira 265 Quando foi no domingo juntou todo mundo e foi levar a cruz Aí quando chegou lá todo mundo de amigo parente quem não era parente Graças a Deus Compade e tudo O povo do prefeito nessa época também deu muito amor à gente E no dia que a gente botou o cruzeiro foi só alegria Marilene Sena dos Santos 51 anos em 27042017 O cruzeiro expressa a espiritualidade e também o orgulho coletivo bem como a satisfação íntima de cada morador Para erguêlo foram combinados a fé disposição e trabalho de equipe Os as moradores as formaram um mutirão para transportar os materiais necessários blocos cimento areia cerâmica água e a cruz de madeira A altitude da serra onde o cruzeiro foi assentado é impressionante Da comunidade não é possível visualizálo nitidamente Durante um dia e meio os moradores se dedicaram integralmente ao trabalho de erguer o pequeno oratório de bloco e cerâmica onde foi colocada a imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida Membros da comunidade que residem na cidade de Saúde também participaram da construção O esposo de Joseline que à época estava grávida ajudou a erguer o cruzeiro para pedir a proteção de Nossa Senhora para a criança Segundo Seu Jorge o cruzeiro foi à concretização de um dos maiores sonhos de sua vida Nossa Santa é assim negra como nós E todo lugar tem uma capela tem um lugar pra rezar Agora aqui nós também tem Isso é um orgulho muito grande pra nós que até o padre veio aqui abençoar Veio o pessoal do prefeito homenagear nós aqui O povo que sobe a serra fica assim pensando como é que vocês conseguiu fazer esse cruzeiro Era o maior sonho da minha vida Todo mundo aqui ajudou que nós é assim igualmente uns irmão Mas a Nina e o genro dela que foi quem construiu foi quem mais ajudou E agora nós aqui tem a nossa proteção Jorge dos Santos 56 anos em 27042017 266 Imagem nº 40 Cruzeiro de Nossa Senhora da Conceição Aparecida Fonte Foto cedida por Joseline dos Santos Terminada a construção esperaram o local secar e providenciaram a limpeza não apenas do oratório mas das suas imediações para que todo o terreno ficasse limpo e pudesse então receber a imagem da santa As mulheres da comunidade prepararam um altar debaixo do pé de manga e realizaram uma celebração com benditos e orações Finalizada a pequena cerimônia organizaram uma procissão e subiram a serra para conduzir a padroeira à sua nova casa A chegada ao cruzeiro foi celebrada com fogos e exclamações de Viva Nossa Senhora Aparecida O último rito antes de entronizála no oratório foi a reza do terço Cada morador a fez sua prece finalizando o cumprimento da promessa de D Nina Quando indaguei a D Nina por que escolheram Nossa Senhora Aparecida ela retorquiu 267 Porque toda luta nossa que a gente faz aqui a gente diz assim Ô Nossa Senhora Aparecida Ajude Ela só pode socorrer nós aqui mesmo Todo santo pode socorrer a gente aqui mas nós escolhemos ela E aí nós vamos ficar zelando ela mesmo Porque eu fui pra Lapa trouxe a santa E aí eu mesma fui de umas que peguei a cerâmica aqui pra fazer Aí veio o marido da minha filha essa que tá aí que é casada Ele é pedreiro e levantou Foi quem levantou Quem levantou foi o marido da minha filha graças a Deus E aí botemo a santa lá e nós tamo muito feliz E aí a gente já veio já rezou no dia doze O padre já veio já celebrou a missa só que ele não foi no cruzeiro mas ela Nossa Senhora Aparecida desceu do mesmo jeitinho Ficou aqui debaixo do pé de manga Aí terminou a missa e nós levamos ela de volta Tem gente que anda em riba da serra quando chega lá que descobre fica parado Já procurou pra Jorge como é que aconteceu Como é que foi nós fazer ali Por que eu não tô desfazendo do cruzeiro dos outro mas é muito bonito o nosso Marilene Sena dos Santos 51 anos em 27042017 Em um domingo de cada mês os moradores se reúnem na associação para subir a serra cuidar do cruzeiro e rezar o terço nos pés da santa exercendo a singeleza de uma fé que os cânones religiosos ortodoxos não alcançam Participam da subida a serra parentes compadres e amigos de outras comunidades Na imagem a seguir cumprindo uma devoção em frente à cruz vestida com uma blusa laranja está D Nina recitando as orações que tão bem conhece Um pouco mais atrás está Seu Alberto que veio de Lajedo para participar da devoção Conforme Moura 2012 nas comunidades quilombolas uma fé profunda marca indelevelmente a vida das pessoas que administram e reinventam tradições constituindo um universo no qual os padrões culturais e signos utilizados para traduzilos constituem informações essenciais nos grupos em que circulam e que de certa forma influenciam Por isso o desejo de Seu Jorge de erigir o cruzeiro acolhido por outros membros da comunidade demarcou um sinal diacrítico de fé singularizando a religiosidade praticada em Grota das Oliveiras de outras expressões religiosas desenvolvidas no contínuo étnico no qual se encontram inseridos 268 Imagem nº 41 Subida ao cruzeiro Fonte Foto cedida por Joseline dos Santos Para celebrar um ano da edificação do cruzeiro em seis de agosto de 2017353 os moradores promoveram um evento festivo iniciado às 09h00 da manhã com a subida da serra Os quilombolas realizaram o trajeto recitando orações como o PaiNosso e a Ave Maria intercaladas com benditos 353 Segundo os interlocutores as a escolha da data foi uma homenagem ao Bom Jesus da Lapa em louvor ao seu dia 269 Mandei varrer a estrada Com uma vassoura de prata Valeime Nossa Senhora Senhor Bom Jesus da Lapa Santa Tereza foi freira Menina de doze anos Escreveu pra Santo Inácio Que esse mundo era de engano Os anjos cantam no céu No mar responde a sereia Valeime padrinho Ciço E a mãe de Deus das Candeias Oh Mãe de Deus das Candeias Senhora da Romaria Somos romeiros de longe Não posso vir todo dia Benditos do Catolicismo Sertanejo Os benditos foram cantados com devoção e respeito iniciados pelas mulheres e complementados pelos homens e crianças Terminada a celebração religiosa com a oração do terço foi servido um almoço coletivo realizado um bingo e encenado o Samba de Palmas e Versos Participaram do evento além dos das membros as de Grota das Oliveiras moradores de comunidades vizinhas como Lajedo e ainda algumas pessoas vindas da cidade de Saúde As atividades religiosas são práticas constantes na comunidade de Grota das Oliveiras Seus moradores também participam dos festejos em homenagem a Nossa Senhora da Saúde Em outubro de 2017 eles promoveram mais um intercâmbio entre a 270 paróquia de Saúde e a sua comunidade organizando a segunda missa durante os festejos de Nossa Senhora Aparecida Nessa oportunidade coube às mulheres ornamentar o espaço e preparar o almoço coletivo Os homens viabilizaram o deslocamento do padre que não apenas celebrou a missa mas subiu à serra acompanhando a procissão cujo ápice foi a bênção ao cruzeiro 52 REPRESENTAÇÕES SOBRE SER QUILOMBOLA As primeiras informações obtidas em Grota das Oliveiras sobre a identidade quilombola provieram de diálogos informais com parentes e compadres de Lajedo quando relataram que algumas reuniões e movimentações estavam ocorrendo no contínuo étnico em que habitam e transitam Essas reuniões foram mediadas por Valmir dos Santos e algumas outras lideranças locais Uma reunião organizada posteriormente pelo prefeito de Saúde por ocasião da desativação da unidade escolar trouxe mais elementos que acrescentaram aos moradores de Grota das Oliveiras sobre a sua ancestralidade Os interlocutores as relataram que o prefeito e a sua comitiva sugeriram que eles organizassem uma associação quilombola A partir de então eles se mobilizaram em prol da certificação quilombola O maior obstáculo foi o documento sobre a história da comunidade elaborado em 2017 Antes do reconhecimento oficial pela Fundação Cultural Palmares FCP a associação já adotara a designação de Associação Quilombola de Grota das Oliveiras As representações elaboradas em torno do ser quilombola fundamentaram o autorreconhecimento de Grota das Oliveiras A predominância da epiderme negra ou cor morena entre os moradores e o sofrimento partilhado coletivamente foram associados ao cotidiano dos as antigos as escravizados as Durante a realização de um círculo de cultura indaguei a D Nina como é ser quilombola Ela esclareceu É de ser umas pessoa tudo moreninha que aqui não tem uma pessoa branca A gente se achou que podia se registrar como quilombola de pai para filho Então quando nossa agente de saúde chega aqui que ela vai botar a cor eu digo assim você vai botar é preta que eu não sou branca Como é que você vai botar no papel eu ser branca e eu vou mostrar no 271 papel eu ser preta Então nós tamos seguro de botar no papel e que vai está em nossas mão essa família quilombola daqui de dentro Se eu não souber alguma palavra é por que quem estudou é um e quem não estudou é outro Eu sou bem morena graças a Deus Eu posso tomar um dia inteiro de sol que eu não fico vermelha Eu quebrei o braço uma vez o sangue desceu mas o braço não caiu Marilene Sena dos Santos 51 anos em 27042017 Tenho observado durante cursos palestras e outras experiências com associações quilombolas que se organizam continuamente no sertão baiano de modo particular na região norte a substituição do ser moreno pelo ser negro afrodescendente e quilombola O processo de redescoberta dessa negritude epidérmica simbólica e cultural acompanha sentimentos de autoestima e de valorização entrelaçados na trajetória de sua comunidade e confere novos significados às lutas pelo território e na produção das identidades Na afirmação de D Nina sobre a sua condição quilombola foram destacadas a cor negra e os laços de parentesco De igual modo se expressou Seu Guilherme O quilombola foi criado pela classe humana pela classe negra como nós Os quilombola foi criado por causa da cor Por isso aí nós coloquemo esse nome de quilombola da associação quilombola por que nós somos negro e vivemo aqui dentro Então nós somos quilombola por isso Quilombola é um centro Guilherme João da Silva 58 anos em 27042017 Outro elemento enfatizado por Seu Guilherme foi à humanização como um contraponto à desumanização historicamente imputada aos atores sociais negros e afrodescendentes O viés construtor dessa humanização é a condição ancestral agora divisada como positiva Seu Guilherme destacou algumas transformações ensejadas pelo Barulho do Quilombo em sua comunidade como um maior conhecimento a instalação de políticas públicas a participação de reuniões em outras associações a valorização de seus modos de vida e os saberes ancestrais Seu Jorge dos Santos também externou as suas impressões sobre ser quilombola Os quilombola assim é um povo de sofrimento um povo negro assim como a gente aqui 272 Imagem nº 42 Batalhão para cascalhar a estrada em 2018 Fonte Foto cedida por Joseline Santos A produção da identidade quilombola tem fornecido novos contornos construções simbólicas práticas políticas econômicas e culturais à comunidade Os rearranjos se manifestam em diversas ações como na nomeação da Barraca Quilombola Grota das Oliveiras no anúncio de sua condição tradicional quando encenam o Samba de Palmas e Versos quando reivindicam uma educação escolar que contemple as suas especificidades quando organizam protestos reivindicando políticas públicas e quando organizaram um mutirão para cascalhar o trecho da estrada conhecido como o pé da ladeira com cerca de duzentos metros que em períodos chuvosos atolam dificultando o tráfego das motos e dos animais Eles promoveram uma vaquinha e organizaram um batalhão no qual todos participaram Após a fundação da Associação Quilombola o ativismo político foi incorporado ao cotidiano de Grota das Oliveiras Como destacou Vinícius dos Santos agora a gente 273 descobrimos muitas coisa que antes era ignorado a nós E é por isso que agora ninguém mais vai tirar o que é nosso aqui A afirmação do ser quilombola oportunizou a comunidade de Grota das Oliveiras assim como às demais comunidades estudadas a possibilidade de construir uma trajetória marcada pela autoria 274 CAPÍTULO 6 QUILOMBART O DESPERTAR DA CULTURA ATRAVÉS DAS RAMAS NOVAS A cultura não é um poder algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais os comportamentos as instituições ou os processos ela é um contexto algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível isto é descritos com densidade GEERTZ 1989 p 10 Imagem nº 43 Apresentação do Quilombart durante as comemorações do Novembro Negro na comunidade quilombola de Tijuaçu Fonte Acervo da pesquisadora 275 Eu sabia que a cultura do Cariacá um dia ia viver exclamou D Luci quando assistiu pela primeira vez em 2004 a uma apresentação do grupo de dança recém constituído pelas filhas da Raquel na Escola Municipal de Cariacá O convite para que realizassem uma apresentação de dança com a temática afro para o dia da Consciência Negra chegou até Glícia Milena através da filha de uma professora da escola e moradora da comunidade Segundo D Ninha o convite motivou a comunidade a reviver a cultura que estava morta Elas ensaiaram a coreografia e dançaram para as mães dos alunos as professoras es para as mulheres da igreja e para outros membros da comunidade A apresentação das meninas da Raquel superou as expectativas despertou aplausos e elogios e resultou em um convite do diretor da escola para que Milena coordenasse os ensaios do grupo para futuras apresentações Em pequenas comunidades rurais do sertão baiano assim como em alguns distritos as escolas promovem eventos culturais com a parceria das comunidades Contudo o mérito pela realização desses eventos recai apenas para a equipe gestora da escola Os demais participantes não recebem os créditos pelo trabalho realizado Todavia Milena se sentiu valorizada como professora de dança das meninas e os membros da comunidade ficaram orgulhosos com a reativação das atividades culturais Seu Eduardo D Luci e D Ivone dentre outros comentaram que as ramas novas iam agora levantar a cultura de Cariacá As motivações de Milena e dos demais membros da comunidade diferia das da administração da escola Enquanto para os primeiros a perspectiva de criação de um grupo de dança representava a possibilidade de retomar a prática de atividades culturais para a escola as apresentações do grupo de dança constituíam parte de uma agenda de atividades planejada pela Secretaria Municipal de Educação Em todo caso a escola disponibilizou o espaço para os ensaios do grupo de dança O grupo foi designado inicialmente Arte Dance pois à época a identidade quilombola ainda estava começando a se constituir em Cariacá Segundo Milena Arte Dance enfatizava dois elementos culturais relevantes a arte e a dança Ela relatou que para se aprimorar frequentou aulas de balé em Senhor do Bonfim A partir de então o grupo Arte Dance passou a se apresentar regularmente tanto na comunidade quanto na Escola Municipal de Cariacá em ocasiões festivas a exemplo do aniversário da cidade no Natal quando o grupo dançava em um palco montado em frente à prefeitura e na abertura de eventos promovidos pela Secretaria de Educação SEC A SEC disponibilizava o tecido 276 para confeccionar o figurino das integrantes mas o pagamento pela costura das roupas era custeado pelas mães das brincantes A parceria entre o Arte Dance e a Escola Municipal de Cariacá foi descontinuada porque os integrantes do grupo que queriam divulgar a sua comunidade perceberam que a escola estava interessada apenas em promover o trabalho pedagógico De acordo com o relato de membros do então Arte Dance a Associação Quilombola de Cariacá e Adjacências enfatizou que o grupo pertencia à comunidade e não à escola que estava crescendo em cima do trabalho das meninas observou Tânia Há uma tensão entre a direção da AQCA e a Associação de Moradores de Cariacá administrada dentre outros por dois professores da escola residentes na comunidade e que à época da pesquisa não se identificavam como quilombolas Aí os diretores gostaram aí pediu pra mim fazer uma apresentação pra se apresentar no aniversário da cidade Eu fiz com a música O Caderno Aí o pessoal gostou e eles começou a chamar a gente pra se apresentar aí foi quando a gente foi tendo acesso a outros lugares a Bonfim Mas aí eu não sabia e comecei a perceber que a gente foi perdendo por que a gente não tava mais sendo visto como o grupo Era só escola Agora era só escola Os convites chegavam para o diretor e aí o diretor ia chamando e a gente ia levando Ia a gente ia Mas aí todas as vezes que a gente ia se apresentar eu pedia que divulgasse o nome do grupo e que falasse o nome da comunidade só que eles nunca falavam Ai foi foi Aí há quatro anos atrás a gente começou a perceber que não tava certo Aí foi quando a gente colocou grupo Quilombart Aí Arte Dance ficou dois anos mas ninguém sabia quem era Arte Dance O pessoal sabia que era escola A ideia de colocar Quilombart veio mesmo quando a gente percebeu que era quilombola O Valmir que deu essa ideia pra gente Quilombo e Arte porque não é só uma arte misturou Na verdade foi há oito anos que a gente mudou de Arte Dance pra Quilombart Só que Arte Dance só existiu aqui porque não era divulgado Pra fora da comunidade já existiu Quilombart Glícia Milena Gomes da Silva 32 anos em 26082015 As solicitações para que durante as apresentações o nome do grupo de dança fosse anunciado destacando a comunidade de Cariacá não foram bem recebidos pela direção da 277 escola e pelas os professoras es Eles retrucaram que estavam ajudando as meninas que não eram nada antes Os integrantes do Arte Dance354 perceberam então que a colocação da AQCA tinha fundamento Milena fundadora e integrante mais velha do grupo começou a se sentir pressionada A minha parte de filha do Cariacá de ser da Família dos Congo e da pessoa que queria dançar e mostrar seu trabalho Foi um momento muito difícil na minha vida Eu sofri Eu sofri muito Paula Minha mãe minha tia e outros aqui da comunidade falava direto Aí e também por mim mesma Aí eu senti que tinha que tomar uma decisão e também tem aquilo que eu já lhe falei do Mais Educação Aí eu acho assim que aquilo me humilhou demais Não foi fácil tomar aquela decisão ali no meio de todo mundo Você tava lá e viu o que a gente passou né Aí eles nem olhavam mais na nossa cara Parecia assim que a gente não era mais nada Doeu Foi muita humilhação Aí falaram umas coisa pra gente no ônibus teve uns até que chorou nesse dia Mas aí eu vi e todo mundo viu também que as pessoa aqui da comunidade que ficava conversando assim com a gente que eles tava certo E agora que tudo passou eu agradeço muito e sou muito feliz por que o Quilombart assim somos nós mesmo Glícia Milena Gomes da Silva 32 anos em 19032018 O grupo de dança rompeu definitivamente com a Escola Municipal de Cariacá após uma apresentação no prédio do Centro Cultural Doutor Ceciliano de Carvalho em Senhor do Bonfim355 Os professores da escola se sentiram afrontados e desrespeitados publicamente O rompimento com a escola repercutiu na comunidade como uma tomada de consciência uma afirmação da autonomia do grupo Como declarou Valmir dos Santos Uma decretação de liberdade Por que aí eles disseram que não são mais dominados Mostraram que são independentes que têm capacidade de conduzir suas atitudes sem ser orientados pela cabeça dos outros por pessoas que não querem o bem da comunidade que não estão dispostos a colaborar com o crescimento da comunidade Muito pelo contrário que quer é se aproveitar Então foi um ato de coragem que a gente já 354 À época o grupo já contava com a participação de alguns rapazes 355 Conforme episódio relatado no Capítulo 3 278 vinha conversando incentivando mostrando o que era certo e na hora certa aconteceu Isso foi um orgulho no Cariacá Por que eles mostraram que não estão mais dispostos a abaixar a cabeça e deixar que pessoa que não tem trabalho prestado na comunidade venha aqui querer aparecer e dizer que é o pai da criança Valmir dos Santos 43 anos em 20042018 Desde então o Quilombart passou a ser identificado em Cariacá como articulador autorizado da cultura produzida na comunidade que expressa a sua identidade As apresentações do Quilombart estão em consonância com a luta da comunidade e são orientadas e supervisionadas pelos líderes Assim se expressou D Maria José Eu acho bonita a dança das menina e tudo mas acho que precisa elas se organizarem mais Elas vão pros lugar e se apresentam e ficam caladas Não querem falar nada e tem que falar pro povo saber que é do Cariacá e mais delas mesmo Que foi a Milena que criou esse grupo depois foi que apareceu esse aí da escola Mas elas ficam idiota e todo mundo quer ser o dono deles Maria José Nascimento 65 anos em 17122015 D Maria José se refere ao cuidado com a delimitação da pertença do Quilombart que ao contrário do grupo de dança da escola é patrimônio da comunidade quilombola de Cariacá Embora a escola se situe no território quilombola ela não é percebida como parte da comunidade mas como uma instituição distante fechada e alheia aos ideais comunitários Em maio de 2015 os integrantes do Quilombart estavam confiantes pois haviam sido convidados para participar da programação oficial do São João bonfinense O convite foi percebido como uma premiação pela disciplina nos ensaios e pela possibilidade de Cariacá retornar ao circuito dos festejos juninos de Senhor do Bonfim conhecidos regionalmente Segundo Ítala Raiane integrante do Quilombart desde a sua fundação só o fato de ouvir o nosso nome ser anunciado no rádio escrito nos cartazes da festa isso pra gente é uma grande realização É uma recompensa pelo nosso esforço Além disso pela primeira vez lhes foi oferecido um cachê pela apresentação O Secretário de Cultura propôs que o grupo escolhesse entre fazer uma viagem ou receber o pagamento em dinheiro R 40000 reais 279 Eles optaram pelo dinheiro pois precisavam adquirir novos figurinos A notícia se espalhou por toda VilaCentro e se tornou o principal assunto comentado pela população local de modo especial pelos membros da Família Congo O contentamento não foi compartilhado pela direção e pelos professores da Escola Municipal de Cariacá que se sentiram preteridos pois o grupo do projeto Mais Educação não recebera uma proposta semelhante Segundo relatos dos moradores a direção e as os professoras es da escola espalharam que o convite havia sido dirigido ao grupo Mais Educação e remetido ao Quilombart por engano pois a Secretaria de Cultura desconhecia que o grupo não mais representava a escola Foi estabelecido um novo conflito com ofensas verbais e disseminação de boatos De acordo com Joice Milene eles não chegavam pra falar assim na nossa cara mas ficavam dando risada e mandando recado Querendo abater a moral nossa As tensões se intensificaram quando o Quilombart foi homenageado por uma rádio local e convidado para uma entrevista A equipe escolar se reuniu com o Secretário de Cultura e criticou as performances realizadas pelo Quilombart O Secretário solicitou a Milena que enviasse um vídeo com apresentações do grupo O vídeo foi suficiente para anular as críticas e assegurar o convite No dia agendado para a apresentação a Secretaria de Cultura enviou o transporte para conduzir os integrantes para a festa Conforme os relatos de Ítala Raiane e Joice Milene uma das monitoras do projeto do grupo Mais Educação tentou impedir a saída do ônibus A mulher do Mais Educação ela pegou e queria levar a gente para a Cooper Para dar um lanche à gente para dar um suco à gente e a gente dormir E ela ir se apresentar no nosso lugar porque ela não estava na programação O que tinha na programação era grupo Quilombart Duas irmãs dela foram na rádio e falaram lá O homem o locutor viu e como ele já sabe o nosso grupo deu apoio à gente e deixou aberto para ela ir lá só que ela não foi Aí o professor do grupo da escola entrou dentro do ônibus e falou um monte de desaforo à gente e foi muita confusão para esse ônibus sair daqui Quem contou para a gente a intenção dela foi uma aluna dela que é amiga da gente que disse que a intenção dela era levar a gente pra lá dar esse lanche e depois que a gente dormisse levar o grupo dela para fazer a apresentação Antes disso ela foi lá no Ary funcionário da Secretaria de Cultura e disse que nós não sabia dançar Aí o Ary pediu um vídeo da nossa apresentação Foi uma confusão Eu acho assim Paula que a gente não tem que abaixar a nossa cabeça pra eles porque se você conversar com os mais velho daqui incluindo 280 meu avô que já morreu Eles vão dizer que o povo do Cariacá já foi muito humilhado aqui dentro e eu não tenho medo e não abaixo minha cabeça pra esse povo não Eu acho assim que a gente que é do Congo tem que se dar o nosso valor Que a gente já sofremos já fomos muito rebaixados e agora como quilombola que a gente sabemos disso assim através do Valmir A gente tem mesmo que mostrar que a gente quer respeito e eu falo Eu falo mesmo o que eu acho que tá no meu direito Joice Milene Nascimento de Oliveira 25 anos em 14032016 Esse episódio provocou um maior distanciamento da comunidade da instituição escolar Inclusive muitos pais dos integrantes do grupo de dança Mais Educação ao tomarem conhecimento do ocorrido reprovaram o comportamento da monitora Em novembro de 2016 a escola organizou uma série de atividades para celebrar a Semana da Consciência Negra Os integrantes do Quilombart e da AQCA não foram convidados para os eventos Apresentouse o Samba de Lata atividade cultural das mulheres da comunidade quilombola de Tijuaçu Apesar do relacionamento amistoso e dos vínculos de parentesco e compadrio com essa comunidade a população de Cariacá se sentiu desprestigiada A escola é percebida em Cariacá como um veículo fiscalizador manipulado pelos políticos de Senhor do Bonfim Nas últimas eleições municipais ocorridas em outubro de 2016 o então prefeito da cidade e os vereadores do seu partido não obtiveram a quantidade de votos esperada em Cariacá O Quilombart prossegue atuando expressando os valores e reivindicações de sua comunidade À época da pesquisa o grupo era constituído por dez integrantes dois rapazes e oito moças Laíse Raiane Gilmara Giovane Maiara Giovana Lara Joice Davi e Graziele À exceção de Graziele ainda criança a faixa etária dos componentes variava de quinze a trinta e dois anos O número de participantes oscila Alguns deixam o grupo quando migram com suas famílias para São Paulo para cidades do sul da Bahia ou quando se casam com pessoas de fora Além de participarem do Quilombart alguns de seus integrantes trabalham como professoras es de dança em distritos de Senhor do Bonfim e em escolas dessa cidade outros são estudantes universitários ou alunos as da Escola Municipal de Cariacá 281 Imagem nº 44 Milena contando a história do grupo após uma apresentação na sede da AQCA Fonte Acervo da pesquisadora O Quilombart foi originalmente concebido como uma forma de brincadeira organizada para colaborar com a escola local Atualmente constitui uma das maiores expressões culturais de Cariacá e os seus integrantes se percebem como mediadores da história das memórias conquistas e anseios de sua comunidade Durante as apresentações compartilham e celebram a sua identidade quilombola É portanto um instrumento dialógico e de construção identitária da comunidade de Cariacá Porque a nossa condição tá sendo muito procurada hoje em dia Antigamente a gente entrava numa loja e não podia entrar por causa da nossa cor Hoje as pessoas já recebe a gente com outra cara e eu acho que ser uma quilombola é participar da cultura da raça da cor O dia a dia de uma menina quilombola é trabalhando muito Eu trabalho muito mas é em casa com mãe e mãe diz que no passado era tudo muito 282 difícil que pra conseguir alguma coisa era trabalhando muito era catando mamona pra conseguir comprar alguma coisa Joice Milene Nascimento de Oliveira 25 anos em 14122015 Além de estudar Joice auxilia a mãe que trabalha como empregada doméstica em Senhor do Bonfim na fabricação de doces e salgados cuida da casa e dos irmãos menores A assunção da identidade quilombola incentivou a autoestima da comunidade e visibilizou Cariacá no contexto regional mais amplo em especial na cidade de Bonfim Conforme ressaltou Glícia Milena É gratificante Eu tenho orgulho porque toda a minha família é quilombola Então eu gosto muito de ser por que isso mudou toda a nossa vida aqui no Cariacá e não só aqui dentro Antes era assim as pessoa não dava tanto valor quanto dão agora principalmente quando a gente vai dançar Quando é o Cariacá eles já reconhecem e já sabe Então eles dão mais valor tá evoluindo mais através desses projetos que chega através da associação mesmo Antes quando eu falava sou do Cariacá as pessoa nem sabia onde era e hoje quando eu falo que sou do Cariacá as pessoa sabe onde fica Antes quando eu estudava as pessoa não sabia onde ficava o Cariacá então hoje tá mudando as pessoa sabe onde fica Glícia Milena Gomes da Silva 32 anos em 26082017 A reativação das atividades culturais pelo Quilombart promoveu o reconhecimento tanto da comunidade quanto do grupo Segundo Laíse irmã de Milena o Quilombart atua como uma bandeira aqui do Cariacá O Quilombart é uma bandeira e a associação é outra bandeira O grupo de dança é concebido como uma linguagem que suscita visibilidade e respeito coletivo Desde pequena mainha sempre disse assim que a gente era da etnia Congo Aí por isso eu sempre soube que era uma quilombola Eu já nasci sabendo que era descendente de Congo Me considero e tenho orgulho de ser Congo Pra mim assim é a nossa dança porque é mostrar a cultura de nosso povo Então pra mim isso é o mais importante de se fazer e a gente evoluiu muito 283 No começo a gente não era tão conhecido como é No começo a gente só se apresentava na escola Hoje a gente se apresenta em outros lugares por aqui pela região mesmo mas já é um ganho muito grande Eu queria que melhorasse mudar não Assim eu queria que mudasse a sede que tivesse a nossa sede porque assim é uma dificuldade muito grande A gente já ensaiou debaixo de pé de pau no meio da rua na terra ralando o joelho mas ensaiou A gente gosta do que a gente faz e quer mostrar o nosso trabalho Se for pra ensaiar debaixo de chuva a gente ensaia Hoje a gente ensaia na associação só não quando está ocupada Então se tivesse nossa sede era muito bom Laíse de Oliveira Souza Juvino 23 anos 21112016 Para os seus integrantes o Quilombart é uma conquista Para a comunidade o grupo é concebido como um símbolo de resistência dos mais jovens e deve ser aplaudido e incentivado como afirmou D Tânia essas meninas na hora certa não abaixaram a cabeça não e provaram que são dos Congo O Quilombart é mais um ato de autonomia empreendido pela Família Congo pois o gosto pela arte e o compromisso com a comunidade lhes foi legado pelos troncos velhos As apresentações do Quilombart em Cariacá são geralmente realizadas na sede da AQCA ou em frente à capela de Santa Rita Quando se apresentam em encontros com outras comunidades quilombolas da região norte da Bahia os mais velhos costumam afirmar que esses meninos levam a alma da comunidade com eles Após uma apresentação do Quilombart na sede da Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências AAQTA durante o Seminário Protagonismo Quilombola Giovane da Silva Oliveira 23 anos um dos poucos rapazes que integram o grupo destacou A gente tem uma responsabilidade de estar levando o nome da comunidade pra onde a gente vai Então tem que pensar bem no tipo de música de coreografia porque a gente tá em uma comunidade quilombola e quem convida sabe disso também Então eu acho que a gente tem que fazer nosso papel de não envergonhar nossos pais e aqueles que acreditam em nós A gente tem uma responsabilidade que é nossa e que é do nome da comunidade também Giovane da Silva Oliveira 23 anos em 30112016 284 Para Giovane a participação no Quilombart é uma vitória de cunho pessoal Ele derrubou uma barreira muito grande um preconceito social direcionado aos homens que se dedicam à dança principalmente no sertão baiano para um homem fazer isso é um ato de coragem É uma meta muito grande e eu sei que vou ajudar muita gente que tem vontade e se prende pelos outros por medo dos outros das risadas das conversinhas Ele relatou que em algumas circunstâncias sobretudo durante as primeiras apresentações do grupo foi alvo de olhares sorrisos maliciosos e ironias Giovane se sente orgulhoso por participar de uma manifestação cultural da comunidade depois do Quilombart voltaram a existir aqui no Cariacá porque todo mundo diz que a comunidade já teve muitas culturas bonitas e que agora tava tudo parado Então a gente voltou a dar vida a essa parte Ele precisou romper preconceitos para ser contratado como professor de dança em alguns distritos da região Desde quando eu era pequeno eu gostava muito de dançar e na escola sempre tinha essas coisas de dança Apresentava os ensaios nas festas de São João e eu sempre tava dançando Fazendo peça e eu sempre tava dançando Eu nunca desisti porque ficava muita gente mangando da minha cara por ser o único homem dançando no meio das meninas Eu fui indo eu gostava gosto muito da dança Hoje graças a Deus eu sou professor Trabalho na dança Sou professor de dança e eu tô muito feliz Eu me chateei mas eu não levei pro meu pessoal Eu guardei pra mim eu sonhei e hoje graças a Deus eu tô trabalhando como professor de dança e tô muito feliz Eu trabalho em Lajes Passagem Velha e Altamira e eu penso em fazer faculdade de Educação Física ou Pedagogia Giovane da Silva Oliveira 23 anos em 15122015 Giovane ingressou no curso de Pedagogia em 2016 e tem se dedicado a promover uma aproximação entre os saberes pedagógicos e o universo lúdico aspectos que têm influenciado o seu trabalho no Quilombart e nas escolas onde leciona O grupo de dança Quilombart tem também um caráter educativo pois estimula a comunidade a refletir sobre a identidade quilombola 285 Imagem nº 45 Apresentação do Quilombart durante a Primeira Etapa do Curso de Formação para Lideranças Quilombolas Fonte Acervo da pesquisadora Durante as performances o Quilombart utiliza dois trajes o primeiro todo branco foi inspirado nas indumentárias das religiões de matriz africana nas vestimentas das mulheres integrantes do Samba de Lata e além disso simboliza a paz Na segunda parte do espetáculo os integrantes do grupo portam camisetas azuis ou pretas e calças coloridas também inspiradas nos figurinos afros O Quilombart se mantém com recursos dos próprios integrantes ou de seus pais e com as contribuições de Valmir dos Santos que geralmente patrocina os tecidos utilizados para a confecção dos figurinos As roupas são confeccionadas por D Tânia que também disponibiliza o pátio de sua residência para a realização dos ensaios quando a sede da AQCA está ocupada O Quilombart é de fato um símbolo cultural de Cariacá Nos momentos de crise a comunidade organiza uma vaquinha para renovar o figurino do grupo Reitero pois que tanto o Quilombart quanto a AQCA fomentam o processo de conversão simbólica de uma comunidade negra rural 286 antes relegada a uma situação de invisibilidade e abandono para uma comunidade quilombola Os momentos que antecedem às apresentações do Quilombart são caracterizados por uma atmosfera de expectativa por parte de seus membros e familiares que costumam acompanhálos em alguns eventos principalmente os realizados em Senhor do Bonfim pois acreditam que nesses eventos há uma exposição maior dos integrantes e da própria comunidade O cuidado é mais intenso quando a identidade quilombola é acionada de maneira contrastiva pois os diálogos entre o Quilombart e a sociedade inclusiva são um pouco tensos Os integrantes do grupo sabem que serão observados e avaliados não apenas por suas performances mas como membros de uma comunidade tradicional Como já exaustivamente destacado há por parte dos órgãos públicos de Senhor do Bonfim apenas uma tolerância camuflada de aceitação com relação às comunidades tradicionais provocada pelo Barulho do Quilombo e não uma vontade sincera de dialogar e conviver com essas comunidades Indaguei aos integrantes do Quilombart como se sentem nos dias que antecedem às apresentações Tenso Por que a gente ensaia bastante O ensaio geral peço pra estar lá em casa antes de fazer a maquiagem Dou algumas instruções Peço pra eles se alimentarem direitinho E sempre antes da apresentação a gente faz uma oração a gente reza o PaiNosso e pede a Deus pra nos abençoar pra que dê tudo certo Aí nós ficamos aqui em casa esperando o transporte Glícia Milena Gomes da Silva 32 anos em 26082015 Assim a gente fica ansiosa Fica na expectativa pra não errar pra fazer tudo bonito Tendo o carro a gente vai pra todo lugar Um exemplo vai ter uma apresentação hoje então à gente ensaia a semana todinha Se a apresentação for à noite então a gente ensaia a semana durante a tarde A gente ensaia mais é à noite porque as meninas todas estudam ou pela manhã ou pela tarde Joice Milene Nascimento de Oliveira 25 anos em 14122015 Fico muito nervosa Reúne todo mundo e vai logo ensaiando ensaia a semana toda No São João por exemplo ensaia o mês todo Laíse de Oliveira Souza Juvino 23 anos 21122015 287 Muito bom Eu fico muito ansioso porque a gente ensaiou a semana toda pra mostrar Então quando chega no dia a gente quer dar o melhor Giovane da Silva Oliveira 23 anos em 15122015 Muito nervoso e trabalho porque a gente tem que ensaiar em cima da hora mas sempre dá tudo certo Ítala Raiane de Oliveira Juvino 20 anos em 15122016 Em março de 2016 Milena me convidou para uma conversa na sede da AQCA Ela observara que durante as apresentações o Samba de Lata de Tijuaçu abre e mostra duas bandeiras e mencionou que gostaria de fazer o mesmo nas apresentações do Quilombart Marcamos uma reunião com os integrantes do grupo para conceber a bandeira Segundo Milena o pano de fundo representa a luz e a sombra e enfoca a trajetória do grupo a representação das mulheres que constituem majoritariamente o Quilombart foi sugerida por Ítala Raiane Foram retratadas mulheres negras porque como destacou Joice Milene elas representam as mulheres da Família Congo são Congo quilombola A música e a capoeira também foram estampadas na bandeira pois desde 2014 as integrantes capoeiristas inseriram alguns movimentos da capoeira nas apresentações Como já enfatizado o Quilombart é mais um instrumento no processo de luta da comunidade quilombola de Cariacá Para os seus integrantes o grupo simboliza Conquista Glícia Milena Gomes da Silva 32 anos em 26082015 O Quilombart é especial Porque tira muito os meninos da rua e é muito bom a pessoa se dedicar a alguma coisa Joice Milene Nascimento de Oliveira 25 anos em 14122015 O Quilombart é minha vida Laíse de Oliveira Souza Juvino 23 anos 21122015 288 O Quilombart é tudo Giovane da Silva Oliveira 23 anos em 15122015 O Quilombart é o nosso orgulho Porque é uma coisa que a gente tá desde o início Ítala Raiane de Oliveira Juvino 23 anos em 15122016 Imagem nº 46 Bandeira do grupo Quilombart Fonte Acervo da pesquisadora No encenar da cultura reside o orgulho dos membros da comunidade de Cariacá que contribuem com suas visões de mundo e necessidades geracionais As raízes velhas são semeadas nas novas gerações Essas seguindo o exemplo dos mais velhos também cumprirão o seu papel na comunidade No Quilombart os jovens fortalecem e remodelam a cultura Como afirmou Hobsbawm 1987 a tradição para continuar existindo necessita 289 ser renovada e não permanecer estática residindo talvez neste princípio a sua persistência através das gerações 61 AQUI A GENTE NÃO TEM BRINCADEIRA NENHUMA NÃO Aqui a gente não tem brincadeira nenhuma não Essa foi à resposta que escutei dos moradores de Lajedo em um tom que revelava constrangimento quando indaguei sobre as suas atividades culturais Eles costumavam se expressar desse modo quando não queriam ou não se sentiam à vontade para conversar sobre determinados temas D Mariene comentou inclusive que eu estava ficando com fama de perguntadeira na comunidade Eu tinha a nítida impressão de que eles também me observavam e que queriam falar contar suas histórias Me esforcei para compreender o que os desconcertava pois as atividades culturais são geralmente caracterizadas por descontração e irreverência Desconfiei dessa propalada ausência de práticas culturais em Lajedo pois as populações sertanejas rurais mantêm o hábito de celebrar seja com o propósito de atenuar as dores seja com o objetivo de partilhar com os afetos mais caros parentes compadres comadres e amigos tanto as suas conquistas quanto as suas desventuras O ato de partilhar considerado do ponto de vista simbólico e ou material congrega os habitantes das pequenas comunidades rurais É nesses momentos que as felicitações e os dissabores são socializados e a cultura enquanto produção coletiva de agentes que se estimam se manifesta É algo singelo um encontro entre pessoas que se conhecem e se respeitam Em Lajedo todas as famílias possuem laços de parentesco e de proximidade As brincadeiras que encenam traduzidas nesta pesquisa pelo viés da cultura são genuínas valorizadas pelas contribuições dos atores sociais Por esse motivo continuei observando na expectativa de encontrar referências às formas de festejar Já havia constatado que em Lajedo todos as são festeiros frequentam as festas populares das cidades de Saúde Mirangaba e Caém356 e participam dos festejos promovidos em Coqueiros e Palmeira Durante uma conversa com Seu Armando eu havia mencionado ter um tio que cantava 356 Como já destacado entre os meses de junho e julho muitas famílias de Lajedo viajam para participar dos festejos de São João e de São Pedro À exceção de D Idália que é evangélica todos as vão às festas e retornam renovados com muita disposição para trabalhar e para colocar as novidades em dia Como ressaltou Seu Alberto a gente proseia assim Paula comentando das festa que é pra melhor alegrar a vida daqui da roça que é meio paradona 290 xulas enfatizei quanto o estimava ao que ele colocou pois é aqui até que tinha um samba menina mas aí depois se acabou Indaguei como era o samba e por que se acabou sei não acho que a turma aí se desgostaram sei que acabou respondeu Seu Armando e mudou de assunto Em um final de manhã quando eu estava de passagem pela residência de Seu Joaquim abordei novamente o tema comentando o que ouvira de Seu Armando e Joaquim ajudado por sua esposa Juce resolveu quebrar o silêncio a esse respeito quando esclareceu Você não ignore não Paula Aqui tinha um samba que a gente reunia assim de vez em quando tipo brincadeira mesmo sabe Mas aí aconteceu que nós foi convidado pelo pessoal do Coqueiro que eles comemora o dia de Santos Reis você sabe como é É assim eles faz assim uma representação tipo reisado sabe como é Lá tem umas festa bonita de Reis e aí o povo todo da região sempre vai nem precisa essas coisa de convite que a gente é parente tem conhecido e a gente gostamo de ir pausa Mas aí uma vez as mulher convidou assim o povo daqui pra fazer uma representação de samba e disse que ia as comunidade tudo a Dionísia Santa Cruz do Coqueiro o Carrasco e a gente também ia Aí a gente sabe que os povo são tudo organizado e aí a gente daqui quis se organizar também pausa A gente mandemo fazer umas camisa pra botar o nome da associação e botemo uma santa Nossa Senhora da Glória e fizemo tudo ajeitadinho que a gente ia apresentar nosso samba Umas pessoa ensaiou mas aí na hora de representar lá quando chamou o povo daqui assim ninguém sabe o que aconteceu que chamou de novo e ninguém foi Umas mulher queria ir e outros ficaro com vergonha aí eu penso assim que o povo não disse nada uns os outro mas se desgostou Que ninguém mais quis ir nem fazer o samba não Aí não fez mais o samba não Joaquim Santana de Azevedo 42 anos em 18062016 O relato de Seu Joaquim foi entrecortado por pausas ele parecia estar procurando as palavras adequadas para abordar um tema delicado para toda a comunidade Na reunião da associação realizada em três de julho D Rosa me segredou que Seu Alberto tem uma surpresa pra você D Mariene complementou ele vai falar do samba minha fia Me 291 sentei ao lado de D Narcisa e me concentrei nas anotações357 Seu Alberto abriu a reunião e indagou se eu desejava falar alguma coisa Como eu havia notado que os quilombolas de Lajedo apreciavam e apreciam estórias e casos apresentei um texto do livro Estórias Quilombolas de Glória Moura Era uma narrativa sobre fatos do tempo em que Deus andava no mundo Utilizamos o texto para refletir sobre as transformações ocorridas em Lajedo Finda a atividade Seu Alberto tomou a palavra É Paula a gente pensamo e decidimo aqui entre nós que a gente vai fazer uma surpresa aqui pra você botar aí no seu livro Que a gente decidiu assim que as comunidade tudo por aqui tem suas brincadeira suas manifestação e a gente vai fazer o nosso samba pra você ver como é Por que aqui a gente sempre teve um samba mas aí aconteceu que a gente fomos convidado por o povo do Coqueiro pra se apresentar no dia das festa deles de Santos Reis A gente se aprontemo mas aí na hora umas pessoa ficou assim eu não sei se foi descabriado o que foi que eu não tô na cabeça de ninguém Que na hora que o homem chamou nós aqui da comunidade chamou no microfone duas vez e ninguém foi Ficou tipo assim se amarrano Uns queria outros ficaro se escondeno E aí teve assim tipo de um desgosto e aí a gente não fez mais brincadeira aqui não É por isso que você andou por aí perguntano quereno saber e ninguém disse nada desse samba Que isso aqui pra nós é tipo assim de um desgosto Que a gente se desgostemo e não fizemo mais não por que ficou uma coisa assim meio vergonhoso Alberto Santana de Azevedo 48 anos em 03072016 Seu Alberto estava visivelmente nervoso e transpirava pois o seu relato concernia às pessoas presentes principalmente àquelas que ficaram inibidas e não se apresentaram em Coqueiros O ambiente ficou um pouco tenso até que Seu Alberto indagou é isso mesmo Vocês tudo concorda Vocês quer mostrar o samba De por mim tudo bem mas agora depende de vocês tudo Seu Heranga retorquiu pelo menos da minha parte tudo bem Aos poucos todos se comprometeram a fazer o samba Agradeci Estava sendo acordada coletivamente a incumbência de resgatar uma atividade cultural de grande relevância em Lajedo herdada dos seus ancestrais 357 A princípio os interlocutores as achavam engraçado e até perguntavam o que eu vivia escrevendo Certa feita pedi a Rose que lesse meus escritos em voz alta para a comunidade Consideraram o texto divertido e pareceram se sentir valorizados 292 Em 31 de julho último domingo do mês a comunidade promoveu um grande evento que contou com a participação de parentes compadres e amigos que se deslocaram de Palmeira Coqueiros Grota das Oliveiras Santa Cruz do Coqueiro e Dionísia para prestigiálos O evento foi planejado durante todo o mês de julho358 e organizado para acontecer em dois momentos de manhã na sede da associação e à tarde quando contou com a participação dos citados visitantes que além de convidados se dirigiram ao espaço da associação com o objetivo de apoiálos No período da manhã parecia que toda a população de Lajedo estava na sede da associação A notícia de que gravaríamos um vídeo contando a história da comunidade havia se espalhado e muitos estavam curiosos sobre o que seria dito Os narradores capricharam no figurino a gente quer fazer bonito Alguns enfatizaram que estavam ali para estuciar Seu João Colado afirmou ter aparecido para ver o que o povo ia dizer A possibilidade de participar de um vídeo atraiu os anciãos adultos jovens e crianças Seu Gilberto destacou porque é nossa história que vai ser contada aí todo mundo quer ouvir e quer falar Quem sabe vai dizer e os outros que às vezes sabe mas não quer falar nada por que é meio vergonhoso vai ajudar E os mais novo vai aprender que é pra contar melhor Os atores sociais de Lajedo envidaram esforços estuciaram para reconstituir as suas memórias queriam contribuir com a minha pesquisa mas aquele momento era um dia histórico para eles e no final das atividades batizaram o evento de Prosa do Quilombo do Lajedo O evento foi iniciado às nove horas e quarenta e cinco minutos com um círculo de oração D Rosa fez uma prece Em seguida Seu Alberto agradeceu à presença das pessoas e pediu que eu explanasse as atividades que seriam realizadas durante o dia Enfatizei a importância do evento e parabenizei a comunidade pelas conquistas realizadas Problematizamos as labutas insurgências e resistências de Lajedo comparandoas com as dos quilombos coloniais Construímos uma linha de tempo destacando a trajetória da comunidade Busquei demonstrar a importância do vídeo agradeci a colaboração de todos as e saudei à memória dos ausentes Iniciei então os trabalhos de escuta das narrativas e a gravação do vídeo Penduraram uma faixa com o nome da associação para ilustrar a atividade que estava sendo desenvolvida Os as voluntários as para as narrativas se organizaram em um círculo alguns permaneceram sentados outros se levantaram A princípio eles ficaram levemente constrangidos com a filmagem Aos poucos todos as 358 Foi decidido pela comunidade que essa seria a primeira atividade do Julho das Pretas em Lajedo 293 foram se manifestando homens e mulheres Os relatos evocavam lembranças e a história da comunidade a chegada dos primeiros habitantes como o senhor Paulo Quitero o fundador Enfatizaram o cotidiano de lutas a ausência de infraestutura o abandono por parte do poder público Terminadas as narrativas almoçamos A refeição coletiva foi preparada na casa de D Mariene359 A sesta tradicionalmente realizada após o almoço foi substituída por atividades lúdicas que incluíram o samba os visitantes das outras comunidades não quiseram descansar o almoço pois estavam na expectativa de ajudar fazer o samba Imagem nº 47 Almoço Coletivo Fonte Acervo da Pesquisadora A comunidade de Lajedo geralmente tranquila estava movimentada A sanfona a zabumba o triângulo e o pandeiro foram levados para a associação Os três últimos 359 As mulheres da comunidade realizaram um mutirão para preparar a refeição e lavar a louça Não foram utilizados pratos nem talheres descartáveis pois isso tira o gosto da comida 294 instrumentos foram emprestados pelos parentes e compadres de Palmeira Coqueiros e Grota das Oliveiras Seu Armando estava emocionado pois além de ser um dos poucos sanfoneiros da região há muito tempo não tocava na comunidade Ele tinha ajeitado à sanfona durante a semana Imagem nº 48 Início das Atividades Seu Armando dedilhando a sanfona ao lado tocando a zabumba está Seu Gilberto os pandeiristas que estão auxiliando são da comunidade de Palmeira e um deles é irmão de Juce Fonte Acervo da Pesquisadora A um chamado de Seu Alberto360 aos poucos a sede da associação começou a ficar repleta de pessoas novamente visto que o convite também fora revestido por uma perspectiva de intimação O interlocutor conclamou em voz alta imperativa e fazendo muitos gestos com os braços agora quem for fazer o nosso samba pode vim pra cá Os tocadores foram os primeiros a se aproximar eles foram sucedidos nessa atitude pelas mulheres que apareceram vestindo saias coloridas e algumas também estavam usando a 360 A partir daqui são transcritos trechos do Diário de Campo com algumas adaptações 295 blusa que fora confeccionada na ocasião anterior quando o samba não foi apresentado Os homens se aproximaram mais timidamente e demonstrando uma menor propensão para participar da atividade que estava sendo proposta naquele momento À proporção que as pessoas foram chegando e se dispersando por extremidades diferentes do local Seu Alberto começou a organizar o ambiente retirando os bancos as cadeiras e posicionando aqueles as que pareciam se colocar como participantes da atividade que seria ali iniciada as pessoas foram posicionadas de modo a formar uma grande roda Após terminar a distribuição Alberto falou para os presentes da seguinte forma Bom agora eu vou explicar pra vocês tudo que tão aqui desde cedo mais nós Dando apoio a nós e estuciando o que tá aconteceno aqui dentro A gente disse aqui a Paula e aos conhecido nosso que tão aqui no nosso meio que hoje nós ia aqui botar o nosso samba O samba do Lajedo Então primeiramente nós tivemo nossa conversa que ela queria gravar o vídeo dela e nós achemo que isso era importante pra nós aqui pra os filho da gente mais tarde e também pra nós mesmo não é verdade Que teve muitas coisa que a gente lembremo junto aqui hoje coisa que as vez a gente sabia mas que não tá assim falano e foi muito bom É mais agora o momento é de diversão que nós reuniu todo mundo Chamou os amigo que veio dar apoio que é pra nós fazer o nosso samba E aí agora depende não é só de mim mas é de vocês tudo também Alberto Santana de Azevedo361 48 anos em 310716 Seu Alberto estava um pouco nervoso e as pessoas se entreolhavam algumas mulheres começaram a se movimentar Os pandeiristas passaram a agitar os instrumentos ouviamse algumas risadas e palmas desconexas entretanto nada acontecia no que se refere a qualquer tipo de sapateado ou movimentar da roda Até que as mulheres passaram a conversar entre si como se ensaiassem baixinho uma cantiga que devido ao alarido de vozes não era possível escutar com exatidão Percebi que ainda não havia qualquer consenso entre eles as362 ninguém se propunha a iniciar a atividade e houve certa 361 Essas palavras proferidas por Seu Alberto foram transcritas da filmagem 362 Observei que os interlocutores as aparentavam estar divididos entre a vontade de apresentar o samba que havia ficado esquecido após uma contrariedade coletiva na qual ficaram expostos publicamente e a 296 impaciência que fez Seu Alberto perguntar sim vocês vão ficar aí A indagação ficou sem resposta e ele se distanciou dos possíveis brincantes Todos as olhavam emudecidos e alguns meneavam a cabeça quando de repente uma roda tímida composta por algumas senhoras começou a se movimentar Seu Armando com a sua sanfona procurou acompanhar a cantiga das mulheres que assim começou a ser entoada Leva eu meu bem Leva eu pra lá Leva eu meu bem Leva eu pra passear Versos pertencentes ao cancioneiro popular e cantado pelas mulheres de Lajedo A pequena roda foi aos poucos se avolumando outras mulheres mais jovens começaram a entrar até que tomasse todos os espaços do pequeno salão Além da sanfona a zabumba pandeiro e triângulo também começaram a ser ouvidos e a roda continuou na mesma proporção por exatos seis minutos até que ocorreu outra chateação agora envolvendo apenas as mulheres D Juce parou e junto com ela toda a roda ao que a interlocutora questionou e agora vocês vão ficar só assim Leva eu meu bem363 Algumas abaixaram a cabeça sorrindo outras olharam para os lados demonstrando certa irritação e D Rosa se voltou para suas vizinhas e comadres explicando agora nós tem que dizer os versos canta e cada uma diz seu verso364 D Rosa segurou nas mãos das companheiras que estavam ao lado e iniciou mais uma vez a roda pronunciando o citado refrão Os tocadores acompanharam e D Rosa declamou o primeiro verso sendo esse comportamento continuado por todas as brincantes permitindo que aos poucos a sisudez inibição demonstrada nessa situação atual provavelmente angustiante de repetir o fato agora em seu próprio território Foi um momento delicado talvez um dos mais significativos vivenciado em campo procurei apenas acompanhar o desenrolar dos fatos na expectativa que o desfecho fosse positivo para todos as afinal seria um desconcerto posterior caso o samba não fosse ali encenado 363 Enquanto falava D Juce ironizou os versos demonstrando sua insatisfação Outro momento tenso se estabeleceu entre as brincantes 364 As mulheres naquele momento olhavam D Rosa expressando certo rancor parecia que cada uma desejava responsabilizar a outra pelas dificuldades para a continuidade da apresentação Chamoume atenção a solidariedade das pessoas que vieram das comunidades vizinhas pois nenhuma delas desdenhou dos possíveis insucessos ali presenciados 297 cedesse lugar para a descontração no rosto das mulheres que fizeram a roda e daqueles as que assistiram acompanhando através de palmas que procuraram sincronizar com a entonação das vozes Quando o último verso rimado foi pronunciado por D Maria do Rosário as palmas dos presentes foram escutadas Seu Armando com a sanfona deu a volta no salão de maneira a reverenciar todos as ali e a roda aos poucos se desfez dando a impressão que iria dar início a um arrastapé que não aconteceu O arrastapé foi substituído por uma marcação de compasso mais firme aonde se escutava o som produzido pelos pés das mulheres que continuavam protagonizando a encenação Imagem nº 49 Roda de Lajedo Fonte Acervo da pesquisadora Os tocadores de pandeiro aceleraram o ritmo dos instrumentos e as pessoas começaram a se aproximar umas das outras como se quisessem estuciar melhor o que 298 estava acontecendo Compreendi que algo diferente estava se estruturando pois as palmas demonstravam uma sincronia de modo a evidenciar que um samba estava se formando A um sinal de Seu Alberto os instrumentos pararam facultando um curto período de silêncio ele então pediu a palavra informando agora que já tá tudo aqui não é para olhar umas pras outra viu É só começar Enquanto falava com as mulheres Alberto mostrou um pacote que tinha entre as mãos retirou o conteúdo e acrescentou aqui tem um rega bofe quem interessar Dito isso colocou um litro de cachaça no meio do salão e deixou o espaço livre para as mulheres que passaram a cantar É palmeira É palmeira Tem palmeira de gosto Tem palmeira É palmeira É palmeira Tem palmeira de gosto Tem palmeira Ô jumeira você é amigo meu Você tá la na cozinha Entra na roda mais eu Ô jumeira você é amigo meu Você tá la na cozinha Entra na roda mais eu Versos cantados pelas mulheres de Lajedo A primeira a entrar na roda e ensaiar um sapateado foi D Rosa a partir daí as mulheres de forma sequenciada passaram de uma a uma demonstrar que a ciranda exibida no momento anterior ganhava outra conotação caracterizada pela marcação dos passos cobrados no miudinho do pé conforme enfatizou D Narcisa Quando alguma 299 participante demonstrava estar encabulada era apontada por Alberto ou Joaquim precipitando sua participação Eles esclareceram que o samba começado tem que correr senão atrapalha posteriormente passaram a sambar em dupla apenas de mulheres sem distinção de faixa etária em uma apresentação muito democrática aonde muitas mães com bebês no colo participaram O protagonismo das mulheres aos poucos passou a dividir o espaço com alguns homens que também começaram a participar Todavia notei que estes apenas sambavam entre si ou com mulheres que fossem suas esposas mães ou irmãs Seu Alberto embora procurasse supervisionar a brincadeira não participou durante a roda nem no momento dedicado ao samba Além dos membros de Lajedo duas moças da comunidade de Palmeira e que são parentes de D Juce integraram a atividade elas destacaram que vieram com o propósito de ajudar e para atender a um convite feito pelas mulheres e pela associação Algumas crianças ensaiaram uma participação sucedendo seus pais quando estes deixavam a roda e a cada contribuição dos brincantes o salão da associação se transformou em palco de um espetáculo cuja memória coletiva talvez não possa desconsiderar Imagem nº 50 Samba de Lajedo Fonte Acervo da pesquisadora 300 É possível supor que transcorreu naquele começo de tarde animada e confusa caracterizada pela tentativa assim como pelo conflito o reaparecimento de uma atividade cultural que os atores sociais do grupo relataram que não pretendem deixar esquecida As primeiras estrelas da noite encontraram aquela comunidade em festa o sorriso aparecia com facilidade no rosto dos moradores as que não aparentavam cansaço nem disposição para terminar a brincadeira Aos poucos Seu Armando e Seu Gilberto que tocavam os instrumentos começaram a lembrar e a pontuar entre os presentes que amanhã é dia de trabalho ou ainda que amanhã é outro dia eles foram auxiliados nessa tarefa por Joaquim e Alberto Seu Alberto que à época conforme já foi mencionado exercia a função de presidente da associação e se colocara desde o início como anfitrião do evento fez uso da palavra e agradeceu a presença bem como o apoio de todos as Ele pediu a cada pessoa que se deslocasse para sua casa no entanto manteve o cuidado em afirmar isso que aconteceu aqui hoje vai continuar outras vez e nós aqui conta com o apoio dos amigo todos de novo Foram ouvidos alguns aplausos acompanhados pelo som dos pandeiros e aos poucos pequenas comitivas foram se formando constituídas por pessoas que em grupos haviam chegado ali ainda pela manhã e que também juntas pretendiam regressar às suas residências365 O evento encerrado com o samba fez história na comunidade do Lajedo Os participantes passaram da posição de narradores as no período matutino para a de sambadores as e encenadores da cultura Os moradores de Lajedo reativaram o samba que sempre constituiu um sinal diacrítico de sua identidade apontando novos caminhos para a comunidade como ressaltou D Rosa hoje aqui a gente tá fazendo nossa história A gente tá vendo que igual às outras comunidade a gente também faz uma história mas pra isso a gente tem que ficar junto Se unir muito mais 365 Informo ao leitor a que até aqui foram utilizados trechos extraídos do Diário de Campo aos quais foram acrescentadas pequenas adaptações 301 CAPÍTULO 7 FÉ ESPIRITUALIDADE E DEVOÇÃO CONVERSAS COM OS ENTRELAÇARES DA UMBANDA SERTANEJA A religião de um povo a par de suas motivações psicológicas mostra em suas instituições a influência de causas de natureza histórica e social Eduardo Galvão 1955 p 11 Imagem nº 51 Primeira festa realizada em Lajedo em homenagem a São Benedito Fonte Acervo da pesquisadora 302 Jesus quando andou no mundo rezou e curou de todo mal e aliviou toda dor com poderes de Deus e da Virgem Maria Se tem força enviada macumba açoitada mal de vento inveja inibição e todo mal que tiver no corpo e na alma Jesus Cristo açoite as ondas do mar por que Ele é forte pode com o bom e má em teu corpo Não pode apoderar pois é benta e consagrada com os poderes de Deus e da Virgem Maria Pois todo mal que tiver no teu corpo é de ser curado e aliviado porque Jesus disse se tiver fé em mim e em minha mãe Maria Santíssima todo mal vai ser rebatado para as ondas do mar sagrado AveMaria Estrela do Mar AveMaria Estrela do Mar Ave Maria Estrela do Mar Toda inveja toda maldição que tiver em mim ou em meus familiares Jesus Cristo tem o poder de curar Amém Eu te entrego a Jesus a Santa Cruz o Santíssimo Sacramento às três relíquias que tem dentro as três missas do Natal que a ti não aconteça mal A Virgem Maria seja a tua guia Te livre e defenda de todo o mal pelo amor de Deus Essa oração segundo D Roxa possui o poder de curar todas as mazelas do espírito e do corpo as moléstias adquiridas pelo corpo aberto366 por meio de coisa que tenha sido mandada367 encante gerado por cobiça e energia de ambição368 atrapalho de 366 Conforme referido no Capítulo 1 367 Nas palavras de D Roxa algum tipo de porcaria isto é de um trabalho espiritual encomendado contra algum desafeto 368 Na perspectiva das comunidades enfocadas nesta tese a inveja é a energia mais negativa que existe capaz de comprometer sobremaneira a vida do invejado lhe ocasionando prejuízos pessoais espirituais e materiais De acordo com D Roxa a inveja é botada até na feiúra D Luci complementou inveja minha filha é coisa que atrasa a vida do outro Quando você olhar e ver uma pessoa assim secando a vida dela desandando e a pessoa assim como que não tá vendo nada como que tá abobalhada ela tá com influência de inveja Aí tem que tirar procura um rezador forte mais velho que é pra benzer aquela pessoa três sextafeira antes de meiodia viu Que depois não serve tomar assim uns banhos acender uma luz pra o guia da pessoa que o problema hoje das pessoa é que vive assim desprezando a Deus desprezando o espiritual Você tá falando e a pessoa nem ligando como que tá bestando com a vida atrasada de corpo aberto aquebrantado É o que tem muito nesse Cariacá 303 cabeça369 e ou qualquer tipo de aflição que esteja deixando o cristão atormentado amofinado pede com fé e acredita na proteção Acredita em Deus que sem Deus ninguém anda Confia que Ele te alevanta D Roxa relatou que aprendeu essa oração com D Valvínia É uma invocação utilizada para benzer as enfermidades Tratase de uma oração especial que D Valvínia aprendeu com a mãe já falecida Os versos apareceram em um sonho foram revelados D Valvínia sucedeu a mãe na atividade de benzer e incorporou a oração enviada pelo Sagrado Segundo D Roxa ela é revestida de força e tem o poder de cura a cura você recebe teve licença diante de Deus aí você agradece O rezador só passa o ramo ou o que for que cada qual reza de seu jeito O ato de curar está subordinado à obtenção do dom cuja propriedade é remetida a Deus A quem Deus der o dom de benzer se puder curar a pessoa tem que aceitar e fazer o bem Só fazer o bem a quem lhe procurar num tá escolhendo pessoa Que num pode Essas coisa num escolhe A reza eu vou lhe dizer porque você veio aqui me perguntar A reza serve É boa pra quem pede e é boa pra quem dá Então a pessoa vem aqui e me pede eu faço o bem à pessoa e fico em paz Quanto mais eu rezar naquele dia melhor também eu vou ficar que é assim Eulina Carmelina de Santana 75 anos em 18052018 D Roxa destacou que quando a pessoa que pede a reza possui fé a oração é capaz de curar Quando a reza é solicitada por um descrente por gente que desfaz aí ele é quem fica desfeiteado se veio pedir tem que respeitar e acreditar370 A desfeita não provoca qualquer malefício à rezadeira D Roxa pressente se a pessoa que vai receber a reza tem fé ou carrega má intenção A pessoa que desfaz voltará uma segunda vez com uma necessidade real que será identificada pela rezadeira D Roxa não nutre rancor pelos descrentes Ela se apieda e por isso ajuda se Deus perdoa minha fia quem sou eu pra num perdoar A fé na perspectiva de D Roxa é o elemento subjacente que precede o poder curativo da oração algumas pessoa que vêm e pede pra benzer num fica boa nunca Porque pede a reza mas num acredita Então a reza num ajuda que a pessoa tem que se ajudar 369 Os quilombolas associam essa expressão a comportamentos súbitos e inexplicáveis Em Cariacá eles atribuem esse mal à perseguição invisível recorrendo frequentemente a curadores da cidade de Ponto Novo 370 Entrevista concedida em sua residência em 18 de maio de 2018 304 primeiro D Roxa classifica aqueles que frequentemente a procuram para benzimentos e orações como gente fraca por incorrer em atitudes que ao invés de praticar deveriam abdicar As crianças são inocentes são que nem malíce por tudo se aquebranta e aquelas que nem as mãe sabe ajudar coitadinhas Que tem mãe que num sabe ajeitar os fio Ajeitar os fio consiste em evitar que as crianças de modo especial os bebês tenham contato com pessoas consideradas pesadas e portadoras de olho ruim que podem transmitir afecções negativas potencialmente capazes de destruir a defesa do corpo D Roxa evita conversar sobre as práticas de benzimentos num se deve falar dessas coisa Não há nada em sua residência que identifique que é rezadeira Ela aparenta serenidade e possui um tom de voz manso Seu olhar é firme e penetrante parece auscultar a alma dos as que lhe procuram Reside em uma casa cercada por plantas Algumas delas são utilizadas para benzer outras na preparação de chás e de beberagens ou na decoração da casa as planta dá vida ao ambiente D Roxa é católica e devota de Nossa Senhora da Saúde Aprendeu a rezar com os mais velhos as Quando indaguei se ela era rezadeira ou benzedeira respondeu eu rezo mas esse negócio de rezadeira É quem reza é rezador Talvez a postura reticente em se afirmar rezadeira esteja relacionada às atitudes discriminatórias contra rezadeiras que em tempos pretéritos com maior intensidade eram vítimas de comentários pejorativos em decorrência da prática de rezar e ou benzer371 acusadas de charlatanismo D Roxa não gosta de rezar adulto mas se for para curar dor de cabeça não se nega pois conhece essa reza e é sabedora da necessidade de aliviar o sofrimento do dono da dor Realiza com satisfação a reza contra o quebranto porque o espírito do inocente precisa ser aliviado Indaguei se poderia revelar uma das orações realizadas nos benzimentos Com um sorriso que lhe é habitual ela consentiu é se você já é amiga de minha neta então eu acho que posso lhe dizer que a reza tem que passar pras pessoa Eu já passei pra Nice Valvínia agora tô dizendo também a você 371 Rezadores as ou benzedores as são diferentes de curadores Os as primeiros as são geralmente identificados como alguém que recebeu de Deus esse dom devendo praticálo Todavia nem todos os as rezadoresbenzedores assumem a prática abertamente São em sua maioria pessoas de certa idade Nas comunidades de Cariacá e Lajedo não há rezadores as jovens 305 Em nome do Pai do Filho e do Espírito Santo fulano diz o nome da pessoa Eu te benzo da dor de cabeça que tem ou dos maus olhos que para ti olharam ou o vento ou o sol ou o mal do tempo que por ti passou Repete três vezes Reza o PaiNosso e a AveMaria Oferece a Nossa Senhora das Cabeças E pede paz e proteção para a pessoa que foi benzida Eulina Carmelina de Santana 75 anos em 18052018 Ela explicou que essa invocação deve ser feita com três ramos verdes pois eles puxa a dor Por isso quando termina a reza o ramo tá caidinho muxano Pode ser rezada em qualquer dia da semana sempre antes do pôr do sol pois não se reza no truvo D Luci também mencionou que não se reza à noite isso é preceito que a gente tem Indaguei o porquê Ela respondeu É porque Paula se a pessoa já tá no escuro como é que vai rezar ela sem a luz do dia Então se for coisa de precisão caso que você tá vendo que a pessoa precisa tá assim padecendo Eu chamo por Deus e rezo Mas gostar não gosto não E peço pra vim de novo Luciana de Freitas Silva 75 anos em 10082018 Durante a pesquisa em Cariacá presenciei crianças e adultos sendo encaminhados para ser rezados por D Luci para curar quebranto agonia no juízo choro sem sentido peso no corpo dor de cabeça medos e dor de dente Algumas pessoas inclusive retornavam para agradecer Em uma manhã de sextafeira D Luci estava particularmente feliz por ter trocado os óculos ocupada com os afazeres domésticos e entretida com a música alta que escutava e cantava eu me aproximei de sua janela e perguntei se ela podia dar uma palavrinha comigo Ela sorriu e retrucou que também queria me ver para mostrar uma poesia que escrevera em homenagem ao dia dos pais e que recitaria naquela noite na escola e no domingo na capela de Santa Rita Após conversarmos sobre as suas poesias e repentes eu afirmei que desejava entender um pouco 306 mais sobre o seu dom de rezar Nas ocasiões em que a vi rezar ela já havia comentado que sofreu muito antes de aceitar essa responsabilidade adoeceu perdeu os cabelos e quase foi a óbito pois não gostava dessas coisas Ela respondeu bom a você eu conto mas se eu também não puder contar eu não digo Sentamos no sofá da sala e indaguei por que ela rezava Eu rezo a motivo da minha saúde Porque essa seita que eu tenho é de nascimento porque minha aldeia era de índio por parte de pai e de mãe Então parece que eu herdei alguma coisa minha filha Que eu não queria aceitar Aí eu fiquei doente que até meu cabelo caiu E eu tinha aquela visão assim me dizendo ou eu aceitava ou eu ficava louca por que eu já fiquei ou prostrada em cima de uma cama Fiquei tomando remédio controlado oito anos porque eu não queria aceitar a seita de rezar Aí quando eu vi que eu ia morrer mesmo porque eu só fiquei o couro e o osso Aí eu me assujeitei Rezo nas pessoas rezo nas crianças e aí eu me sinto bem Luciana de Freitas Silva 75 anos em 10082018 A seita é um dom que eu recebi de Deus aí eu tenho essa seita que me acompanha afirmou D Luci Ela é rezadeira há mais de vinte anos já estava casada quando começou Embora tenha declarado que o dom de rezar constitui uma herança de família ela reza a partir de uma intuição que por vezes também qualifica como uma visão Essa intuiçãovisão lhe possibilita recordar as palavras que pronuncia quando reza os as que lhe procuram porém não lhe faculta a lembrança do que diz antes ou após cada benzimento realizado Ela relatou que começou a ter visões insistindo para que rezasse as pessoas e que quando reza se sente muito bem é guiada por uma intuição que lhe permite perceber se o problema carregado por outrem é de natureza espiritual se é caso de médico ou se trata de um problema a ser resolvido por alguém mais forte isto é por um a rezador a mais velho a ou um a curador a Quando está diante da pessoa que solicita a reza D Luci recebe a determinação para rezar a criatura a ordem que eu tenho na hora me chamando com o objeto indicado que pode ser um terço uma folha de pião roxo uma folhinha verde ou um galho de arruda Ao analisar os símbolos 307 utilizados pelos rezadores em suas práticas Douglas 2010 destacou que os objetos utilizados no ritual promovem a interação entre o corpo e a mente dos rezadores Após aceitar o dom de rezar as pessoas D Luci revisou algumas ações que lhe traziam malestar Atualmente ela não utiliza expressões depreciativas como xingamentos falar da vida dos outros inventar da vida da pessoa me intrigar Eu não posso fazer dessas coisas que eu é que me dou mal Então eu tenho que atender Ela também evita desenvolver atitudes egoístas Então quando eu cometo assim qualquer falta eu sinto E tomo uma queda terrível Queda Queda Como eu já caí aí na porta sem ninguém empurrar sem tropeçar sem nada Então eu vou levando Eu tenho obrigação de dar merenda às crianças Eu compro bala eu compro pipoca eu faço arrozdoce e dou às crianças Então as crianças me cercam muito e eu me sinto bem Se chegar uma pessoa com uma criança pra eu rezar eu sinto aquele alívio no meu coração Quanto mais eu rezo nas pessoas mais eu me sinto bem Eu rezo e assim se vai acontecer algo assim numa pessoa eu tenho o dom de dizer fulano assim assim assim E as pessoas ficam bem Luciana de Freitas Silva 75 anos em 10082018 Antes de rezar D Luci realiza um rito a minha oração que Deus me deu Ela explicou que essas coisas aí minha filha são particular Não são de ficar dizendo Para D Luci rezar é uma virtude sagrada uma obrigação cuja força reside na inspiração de Deus na fé depositada no sagrado e na crença que há no coração daquele a que vem lhe pedir a caridade A oração possui uma energia invisível do plano do sentimento Conforme relatado no capítulo dois D Luci tem a sua mesa de santo onde mensalmente oferece comida aos seus meninos São Cosme e São Damião É a festa das crianças quando ela faz pipoca salgada e arrozdoce e compra um saco de balas para distribuir para as crianças372 da vilacentro Durante as atividades em campo presenciei duas rezas muito significativas realizadas por D Luci A primeira foi em uma mulher residente em um distrito de Senhor do Bonfim que procurou D Luci devido às dificuldades que estava 372 Ela faz um revezamento para assegurar que nenhum menino fique de fora que a festa é pra eles mesmos 308 enfrentando para se aposentar O benefício foi liberado quinze dias após o benzimento A segunda reza foi em uma sobrinha que ficou viúva no primeiro semestre de 2017 e estava muito triste Por esse motivo recorreu aos cuidados da tia Terminado o rito D Luci anunciou que a sobrinha estava grávida daria luz a uma menina e teria um parto muito feliz E assim de fato ocorreu A fé Paula é um recurso dado por Deus que sustenta a teia da vida mas pra isso a pessoa tem que se ajudar Você não vê aqui esse lugar O que tem sustentado esse Cariacá aqui de pé são as orações das pessoas que têm fé que faz diminuir as brigas a ambição que não tem nada pior que a ambição na vida da pessoa Se a pessoa vem aqui e me pede pra eu rezar eu rezo que é uma obrigação que eu tenho Mas aí se a pessoa não quer se ajudar vai ficar assim pedindo pra rezar toda vida Não é feliz Tem que ter a fé em Deus porque tem o invisível Tem o que é de Deus e o que não serve pra ninguém Então aí minha filha a pessoa é que tem que se apegar ao que é bom e fazer o bem Que raiva essas coisas não leva ninguém pra frente A pessoa que tem ódio no coração dá um passo pra frente e dois pra trás a vida toda Luciana de Freitas Silva 75 anos em 10082018 D Luci se define como rezadeira eu sou católica Vou pra igreja e não é só aqui no Cariacá não Vou na igreja em todo lugar O padre sabe que eu rezo que esse é um dom que Deus me deu Se disser assim a Luci é rezadeira Sou e me orgulho disso D Luci e D Roxa não costumam cobrar por seus benzimentos A prática de rezar coloca em diálogo essas duas mulheres que possuem trajetórias distintas mas dividem a missão que receberam para aliviar a dor das pessoas Certa ocasião enquanto eu contemplava algumas plantas no quintal de sua casa D Luci mencionou Você tá vendo aqui Tudo tem vida tudo é energia protege quem cultiva Esses gatos que eu tenho aqui que eu dou comida é energia Então a pessoa tem que se doar não adianta querer o bem pra si e não ajudar ninguém Que esse bem não chega que esse bem não vem Luciana de Freitas Silva 75 anos em 13082018 309 D Luci costuma presentear as pessoas que a procuram em busca de benzimentos partilhando orações católicas impressas terços e medalhas Desde que a conheci recebi diversos presentes dessa natureza Eu rezo mas também ajudo a pessoa a aprender a falar com Deus Que eu minha filha não sei de nada Quem sabe é Deus D Luci também prepara beberagens receita chás e alguns banhos para tirar o peso do corpo as pessoas se preocupam com o corpo mas às vezes quem tá carecido é o espírito As ervas são geralmente colhidas nos dias da Semana Santa Ela se levanta durante a madrugada para escolher as melhores folhas que serão utilizadas durante o ano a erva tirada na Semana Santa é erva benta Então você tem em casa pra usar quando é preciso Os habitantes de Cariacá e Lajedo procuram rezadores e curadores com frequência A cada quinze dias e ou no intervalo de um mês pais e avós costumam levar as crianças para ser rezadas para fortalecer o espirito do inocente Os adultos normalmente atribuem qualquer eventual desgosto ou circunstância inusitada na vida pessoal à ação de coisa feita se economicamente a situação desanda e começam a sofrer atribulação no diadia procuram um rezador ou consultam um curador Percebem o a rezador a como alguém que recebeu permissão de Deus para ajudar geralmente falam dos as rezadores as com muito carinho e lhe nutrem certo apreço Já o curador é alguém que deve ser temido Quando procuram curadores evitam conversar sobre o que viram ou ouviram durante a consulta temendo ser descobertos e punidos Assim afirmou D Naide não se brinca com curador tem que ter respeito porque é uma pessoa de força Eu acredito Alguns evangélicos também recorrem ao benzedor pois a reza é considerada sinônimo de bondade Porém não frequentam nem acreditam nas casas de curador Em ambas as comunidades enfocadas nesta tese as visitas aos curadores ocorrem discretamente Como afirmou D Raquel você não tem como saber quem é que tá impatano sua vida às vezes você tá aqui com toda fé com a pessoa e ela tá lhe destruindo Por isso quando vão em casa de curador costumam sair muito cedo para evitar que alguém bote ambição no que vão procurar e ou realizar Os as rezadores as também visitam os as curadores as ainda que com menor frequência e lhe solicitam auxílio pois são pessoas que têm mais força como destacou D Roxa se precisar é claro que eu vou Que eu não vou é ficar sofrendo sem dar providência D Luci também ressaltou a humildade é tudo na vida se eu preciso eu procuro A pessoa tem que se ajudar na vida tem que ter fé e humildade Ela só recorre a curadores em última instância pois costuma se benzer sozinha fazendo uso de 310 expressões que aprendeu com a avó e a mãe acionadas para fechar o corpo ao sair de casa ou para aquebrantar o inimigo São palavras de levantar Em algumas circunstâncias situações que a pessoa tem de passar porque aquilo faz parte da vida dela o silêncio é o recurso mais apropriado Em outros casos se deve evitar o uso de palavras de derrubar principalmente nas horas sagradas como na hora do Ângelo às seis da tarde e em determinados locais como em casa na casa de parentes muito queridos próximo a crianças de colo pois a criança fica assim toda vida com a sorte amarrada o inocente Aí é aquela pessoa que tudo que faz dá errado não tem sorte no emprego tudo que bota a mão não vai pra frente e aquilo começou pequenininho e o pobre não sabe A hora do Ângelo é também considerada especial para a população de Lajedo em observância aos preceitos dos antigos Seu Gilberto mencionou que pai mais mãe dizia que a hora do Anjo é uma hora sagrada que se a pessoa bem soubesse recanteava assim e rezava e a gente que anda no mato tem que saber e considerar essas ciência do povo véio A reza é percebida como um atributo constituinte dessa ciência todos precisam conhecer algumas palavras de reza para utilizar oportunamente seja para entrar no mato para espantar visagem do mato para repreender lobisomem e cobra para cortar olho ruim botado na barraca nos dias de feira A reza em Lajedo é ensinada aos de dentro e utilizada contra os de fora pois como esclareceu Seu Gilberto um parente aqui não vai rezar nas costa do outro Rezar nas costas tanto em Lajedo quanto em Cariacá é um recurso que se utiliza para afastar os desafetos aquebrantar as suas intenções e ações e promover o fechamento de seus caminhos A palavra lançada é um prognóstico ela pode abençoar ou amaldiçoar os seres humanos ou como destacado em Cariacá os caminhos da vida Através da reza a palavra adquire o sentido de uma evocação de força acionada pelos rezadores e curadores em diferentes proporções Algumas mulheres que são madrinhas em Lajedo no ato de botar a bença no a afilhado a pronunciam expressões próprias Quando os as filhos as viajam ou deixam a casa após o casamento ou em busca de trabalho nos grandes centros urbanos as bençãos são botadas com maior intensidade D Luci afirmou que abençoa os filhos todos os dias ainda quando ausentes e que nos dias de SextaFeira da Paixão para cada afilhado a utiliza uma palavra de abençoar que vai ao encontro de suas necessidades São palavras de abençoar filho e palavras de abençoar afilhado Os 311 quilombolas de ambas as comunidades também acreditam no poder das palavras utilizadas para esconjurar porcarias Os habitantes de Lajedo e Cariacá consultam concomitantemente médicos e curadores Em certos casos eles creem mais no poder do curador que adivinha o problema O médico não consegue diagnosticar imediatamente o mal que aflige o paciente Por esse motivo esses quilombolas sertanejos muitas vezes não adquirem os remédios prescritos pelos médicos mas sempre seguem à risca o tratamento receitado pelo curador Além de recorrerem aos benzedores e curadores eles acreditam na força de amuletos principalmente quando saem de casa ou vão para o mato Mulheres e homens costumam portar crucifixos e terços no pescoço fitas amarradas no braço ou tornozelo geralmente vermelhas e pequenas capangas confeccionadas por um curador de responsabilidade As mulheres colocam as capangas nos sutiãs e os homens no bolso Assim destacou D Luci a capanguinha assim é pra ninguém ver só sabe dela Deus e você Tem que ter cuidado para não perder pra outra pessoa não achar e você também não pode abrir pra ver o que tem dentro que aí tira o poder dela Muitas moradoras de Cariacá colocam plantas nas salas de suas residências para anular a energia negativa de certos visitantes Comigoninguémpode arruda e espada de Ogum por exemplo combatem olho ruim e inveja Elas também confeccionam arranjos com sal grosso e alho para as estantes ou mesas pois o sal e o alho absorvem a energia densa propagada no ambiente Segundo D Maria José toda casa se a pessoa bem soubesse criava uma tartaruga porque tudo quanto é ruim fica no casco da tartaruga Ela protege o dono da casa Durante os trabalhos em campo os as moradores as de Cariacá comentavam que a Luci sabe muita coisa ou ainda a Luci tem muita ciência D Luci se comunica com facilidade com o universo visível e invisível A necessidade de proteger o corpo o espírito e a casa é constante Ninguém vive bem se não tiver proteção afirmou D Luci e a reza é fundamental para obter proteção não importa se em casa ou na igreja Ela também recomendou acender uma luz de vez em quando pra o guia da pessoa pra o anjo da guarda porque é a gente quem precisa da companhia do guia Cada pessoa possui a sua companhia e deve zelar e agradecer os seus cuidados Esse universo místico invisível é constituinte do cotidiano dos moradores de Cariacá que com ele interagem e por ele são afetados Os mais velhos as ensinam os mais jovens a criar maldade para se defender Certa ocasião 312 quando escutava a narrativa de um caso sobre alguém que sofria perseguição invisível D Ivone destacou que não se deve dormir pro inimigo Os quilombolas de Cariacá acreditam que quando alguém está dormindo se torna vulnerável a orações específicas e a algumas práticas como por exemplo ter as sandálias emborcadas ou o seu nome escrito em um papel e lançado em um formigueiro Talvez essa preocupação esteja em parte relacionada aos já mencionados conflitos entre as famílias Congo Muricy e Tobodí que residem na vilacentro As práticas de rezarbenzer de manipular ervas para preparar chás beberagens e banhos o uso de amuletos e os cuidados diários com as afecções atribuídas ao mundo visível e invisível constituem um conjunto de preceitos observados no cotidiano de ambas as comunidades pesquisadas que coexistem com devoções a santos protetores igrejas e casas de curadores modelando uma espiritualidade que designo como Umbanda Sertaneja Como afirmou Resende 2018 p 64 a Umbanda ultrapassa os limites do religioso sendo concebida como uma rede para a obtenção de auxílio e suporte nos planos físico espiritual e emocional A Umbanda Sertaneja pode ser pensada como um conjunto de ritos entrelaçados pelos viveres e fazeres cotidianos que influenciam os caminhos da vida ou teia da vida dos quilombolas Cada ponto é tecido e ligado com esteio nas crenças que amparam ou expandem o sentido dessa espiritualidade A Umbanda Sertaneja fornece sentido ao ato de existir e de resistir Relato a seguir como essas práticas coexistem com o catolicismo sertanejo Concebo esse catolicismo como um intrincado sistema de práticas significados rituais e personagens que ultrapassam as fronteiras da Igreja e das ortodoxias católicas Steil 2001 p 10 71 QUANDO SÃO SEBASTIÃO PROTEGE O CARIACÁ DA FOME DA PESTE E DA GUERRA A população da VilaCentro de Cariacá venera e celebra os seus três santos padroeiros São Sebastião Santa Rita e Santo Antônio A devoção aos dois primeiros santos é mais expressiva pois ambos possuem capelas e são invocados com maior frequência no devocionário dos quilombolas 313 Imagem nº 52 Altar da Missa de Santo Antônio em 2019 Fonte Acervo da pesquisadora A imagem de Santo Antônio foi levada há cerca de dez anos para a capela de Santa Rita após a capela original situada em Morrinhos ter desabado em decorrência dos abalos provocados pelas atividades da construtora Irmãos Pelegrini373 373 Os atores sociais que residem nessa parte do território e que são devotos do santo explicaram que à época o empresário Aparício Pelegrini apareceu para se desculpar e reparar os danos ocasionados se propondo a reconstruir a capela No entanto como os moradores estivessem bastante chateados por que os abalos eram constantes em suas residências e segundo disseram em muitos momentos relativos ao dia sentiam o chão tremer assim como alguns objetos no interior de suas casas Eles não desejaram conversar com o dono da construtora tampouco aceitaram sua ajuda observei que especificamente em Morrinhos o senhor Aparício Pelegrini não é muito querido ao contrário do que ocorre na Vilacentro aonde o estimam bastante Na atualidade a antiga capela erigida em homenagem a Santo Antônio permanece em ruínas e a imagem do santo recebeu um altar na capela de Santa Rita de Cássia não obstante esse cuidado a devoção ao padroeiro diminuiu de intensidade Em 2018 depois de um vasto período sem receber homenagens Santo Antônio foi celebrado por seus fiéis que na tarde de treze de junho percorreram em procissão com o andor do santo o trajeto referente à capela de Santa Rita na vilacentro de Cariacá até o local onde antes se encontrava a antiga capela em Morrinhos Após a procissão aconteceu a celebração organizada por uma equipe de mulheres e a noite ocorreu à fogueira de Santo Antônio fato que emocionou sobremaneira os 314 A primeira vez que visitei Cariacá em 2014 me impressionou a quantidade de capelas e igrejas evangélicas especialmente a capela de São Sebastião situada em uma das áreas mais elevadas do território quilombola defronte ao cemitério local374 A devoção a São Sebastião está associada à vertente de cura à preocupação com a saúde do corpo e da alma Os quilombolas relataram que em 1925 a comunidade foi assolada por um surto de febre amarela que dizimou mais da metade de seus habitantes Abandonada à própria sorte a população vivenciou dias de medo e desespero sem qualquer tipo de assistência e sem recursos para se curar da enfermidade À época uma cearense que residia em Cariacá de Cima fez uma promessa para São Sebastião um voto perante o qual se comprometia caso a comunidade se livrasse do surto de febre a erguer uma capela em frente ao cemitério e iniciar a devoção ao santo Assim narrou D Luci A igreja de São Sebastião foi construída aqui por uma cearense Disse que houve uma epidemia que morria gente Disse que o coveiro não saía mais do cemitério cavando cova pra enterrar o pessoal Uma febre terrível O pessoal adoecia em um dia no outro morria onde eu perdi até uma tia que deixou cinco filhos ela adoeceu de uma febre amarela Ela adoeceu hoje aquela febre tão forte no outro dia o cabelo soltou todo e ela faleceu E essa cearense fez uma promessa com São Sebastião Que São Sebastião é o defensor da peste da guerra e da fome Então quem se pegar com ele essas doenças contagiosas não atinge a pessoa Até um bicho que você criar então se você se pega com ele então com fé você é atendida E ela construiu essa igreja de taipa Uma cearense que não era daqui mas tava aqui Então ela fez essa promessa de joelhos Se São Sebastião ajudasse que acabasse essa epidemia que ela construía essa igrejinha e não era para aumentar nunca Era para ser bem pequenininha que ainda hoje existe que é perto do cemitério Quem quisesse reformar podia reformar mas não pode tirar nem aumentar anciãos da comunidade que receberam um lugar de destaque ao redor da fogueira e mantiveram a oportunidade de reavivar sua fé Em 2019 o dia do padroeiro foi celebrado com uma missa solene que contou com a presença do padre e de uma equipe de mulheres vindas da cidade de Senhor do Bonfim Essa atividade na concepção dos devotos as atuou como um marco na retomada dos festejos que se encontravam adormecidos Existe muita expectativa para a reconstrução da capela que de acordo com os quilombolas se constitui a morada do santo 374 Nas pequenas comunidades rurais do sertão quilombolas ou não geralmente as capelas estão situadas em locais de fácil acesso 315 Aí ficou minha filha ela fez essa promessa Deus ajudou que acabou Acabou aquela peste e o pessoal ficaram bom Nunca mais atacou que é difícil acontecer essas meningite essas coisas aqui na nossa região Só acontece com quem não tem fé mas é difícil Aí ela fez Aí com o tempo derrubaram essa igreja fizeram de adobo Fizeram de adobo Aí com o tempo passou pra mão de uma Conga que é a Maria Aí o marido dela era pedreiro e trabalhava no Derba e fez a igreja de bloco A igrejinha tá aí bem bonitinha Outro rapaz que tá aí com as pernas amputadas que é dos Congos o Eduardo deu a cerâmica colocaram a cerâmica E tá aí Tem missa tem tudo aí na igreja Graças a Deus Luciana de Freitas Silva 75 anos em 23102015 A capela de São Sebastião já foi reconstruída três vezes Reformada em janeiro de 2017 e mais recentemente em janeiro de 2020 Na primeira ocasião as cores da fachada anteriormente branca e azul foram modificadas Isso desagradou a alguns devotos Todavia eles justificaram que a mudança de cores atendeu a um pedido feito pelo padre que realiza mensalmente as missas na capela A capela é arrumada três vezes por semana permanecendo aberta durante esse período Alguns moradores visitam o pequeno templo para rezar e acender velas A população católica da VilaCentro mantém uma cuidadora a serviço da capela de São Sebastião que vela por eles e os protege contra os malefícios da fome da peste e da guerra A primeira cuidadora do santo foi à própria cearense que realizou a promessa Ela passou a obrigação de zelar da igreja para uma tia de D Luci que por sua vez confiou a incumbência à irmã Maria Ferreira de Freitas sucedida na tarefa por D Maria da Silva Neris D Maria Neris declarou que quando era guardiã da imagem e da capela intensificou a veneração dedicada ao santo organizando novenas quermesses leilões e procissões Manteve essa tradição até adoecer e se mudar para a casa de sua filha em Senhor do Bonfim D Luzia Gomes conhecida como Lúcia é a atual cuidadora da capela Segundo D Luci A igreja de São Sebastião tem mais de 90 anos muitos anos Quando eu me entendi já existia Quem tomava conta era minha tia uma índia também irmã da minha mãe Ela ficou velha aí minha mãe foi quem ficou de conta da igreja Minha mãe era quem zelava Aí minha mãe 316 também ficou velha cansada aí passou pra mão dessa Conga Dona Maria Mas agora a Maria adoeceu e a chave fica na mão da Lúcia uma moça que zela que arruma Quando precisa a comunidade ajuda Sei que a igreja continua firme A imagem foi também essa cearense quem trouxe São Sebastião é bem pequenininho de madeira A primeira imagem ainda existe e é de madeira Tem a grande que colocaram depois mas São Sebastião antigo é bem pequenininho Luciana de Freitas Silva 75 anos em 23102015 Imagem nº 53 Capela de São Sebastião Fonte Acervo da pesquisadora 317 Em Cariacá os festejos de São Sebastião são realizados em 20 de janeiro A devoção ao padroeiro não inclui a puxada do mastro Defronte à capela há um cruzeiro375 e ao seu lado um pé de cedro cuja sombra favorece as atividades religiosas A árvore foi plantada quando a capela foi construída Couto 1994 apud Couto 2008 p 102 destacou que entre as antigas sociedades europeias era comum se erguer uma árvore mastro estaca poste ou coluna no centro de uma povoação para consagrar o espaço e invocar a atenção de divindades O mastro simbolizava o ponto de integração entre os três níveis cósmicos o céu a terra e o mundo dos mortos ou mundo de baixo O espaço no qual o mastro fosse fincado era sacralizado e tido como o centro do mundo o cosmo Cascudo 1979 sublinhou que muitas comunidades europeias durante a Idade Média representavam o mundo invisível por intermédio do abate e plantio de árvores cujo rito era acompanhado por cânticos de fertilidade Para Couto 2008 o hábito de fincar árvores como prática religiosa não é exclusividade europeia Em sua pesquisa sobre os indígenas Tupinambá da Serra do Padeiro no sul da Bahia ela sinalizou que nas culturas indígenas há rituais semelhantes a exemplo das corridas de toras dos indígenas Camacã A capela de São Sebastião possui dois ventrículos para ventilação e o piso foi recentemente revestido com cerâmica Há apenas um altarmor constituído por dois pilares de cimento e seis bancos de madeira envernizados O teto não é forrado No altar há uma estátua pequena de São Sebastião376 e outras imagens maiores um quadro uma pequena estátua de gesso e as imagens de Bom Jesus do Bonfim Senhor dos Passos Nossa Senhora da Conceição Aparecida e São José Esposo377 Na parede que sustenta o altar há quadros de Nossa Senhora do Desterro Santa Luzia e São José Operário No segundo pilar há um oratório antigo de madeira com algumas imagens e fotografias de devotos que fizeram promessas e que alcançaram graças Frequentemente são depositados três jarros de flores no altar pois segundo D Luzia São Sebastião assiste nós aqui do Cariacá diante de Deus E se a gente somos valido a gente cuida dele Eu agradeço a Deus hoje eu cuidar de São Sebastião que esse sempre foi um sonho assim na minha vida 375 Anteriormente os as devotos as utilizavam esse espaço para acender velas A prática foi abolida para não comprometer a base do cruzeiro que começara a ficar desgastada 376 Essa estátua de madeira foi doada pela primeira cuidadora e fundadora da capela É a imagem milagrosa e deve ser reverenciada por todas as gerações do Cariacá 377 Os católicos de Cariacá se relacionam com a paróquia de São José Esposo em Senhor do Bonfim Eles se valem da proteção do santo durante as estiagens 318 Imagem nº 54 Altar da celebração do dia de São Sebastião em janeiro de 2018 Fonte Acervo da pesquisadora Como já referido São Sebastião é festejado em Cariacá em 20 de janeiro Nesse dia a capela é aberta às seis horas da manhã e fechada após o retorno da procissão Há dez anos não é celebrada a missa D Regina se ressente da falta da missa mas faz o possível para que a procissão e a celebração ou a reza do terço em louvor ao santo não deixem de ocorrer Nas celebrações de 2015 e 2016 houve apenas a reza do terço à noite e em 2017 2018 e 2019 a procissão que contou com a participação de um pequeno número de fiéis em sua maioria residentes na VilaCentro Em 2020 não houve procissão e como a capela se encontrava em reforma a celebração em honra do padroeiro aconteceu no templo de Santa Rita de Cássia A retomada da procissão foi incentivada por Seu Bira e D Luci em reconhecimento à proteção do santo Como esclareceu Seu Bira 319 Porque você tá vendo como é que tá esse surto de zica e da chicungunha no mundo todo e o povo se acabando dessas doença E aqui no Cariacá você quase não vê essas doença mesmo com todo abandono dos político Que esse posto aqui não tem nada tem vez que nem abrir abre se você precisa de um remédio não acha Diz que não tem Um posto que não tem nada Mas aqui a gente não sofre dessas epidemia Por quê Porque abaixo de Deus aqui São Sebastião que vale todo mundo Que sustenta esse lugar A gente somos tudo validos Que ele é um guerreiro forte São Sebastião protege o Cariacá da fome da peste e da guerra Ubirajara de Jesus 51 anos em 09012018 Para os residentes na VilaCentro inclusive entre a população evangélica São Sebastião é associado a um guerreiro cuja atitude intercessora os favorece Os devotos retratam São Sebastião como um soldado que assiste o Cariacá diante de Cristo e afirmaram que em algumas circunstâncias entregam as demandas e agravos sofridos aos cuidados do santo Em Cariacá os mortos antes de ser sepultados passam pela capela de São Sebastião onde se realiza o rito de celebração do corpo378 Cunha 1979 afirmou que o santo católico São Sebastião tem como símile o orixá Obaluaye tido como o médico dos atores sociais negros e afrodescendentes Reginaldo Prandi 2001 também ressaltou que os valores atribuídos ao encantado tupinambá dialogam com as virtudes de bravura e força imputadas ao caboclo São Sebastião Seguem representações de habitantes de Cariacá sobre São Sebastião Um protetor da fome da peste e da guerra O povo acredita muito em São Sebastião e eu mesmo acredito muito nele Não só eu mas a família toda A gente aqui antigamente rezava antes de chegar o dia Quando chegava o dia mesmo a gente assim fazia muitas palhoça de palha e em cada palhoça de palha tinha uma representação Aí tinha assim a cigana cada uma palhoça dessas barraca tinha uma coisa diferente Rosângela Gomes de Oliveira 48 anos em 25112015 378 Até 2016 o rito fúnebre de recomendação das almas nas igrejas e capelas era frequente nas pequenas comunidades e cidades sertanejas Foi abolido oficialmente por determinação da Igreja Católica Em Cariacá entretanto o rito permanece a despeito das admoestações do pároco local 320 A mulher que toma conta da imagem dele também já fez muita festa bonita Só que agora a mulher adoeceu tá em cima da cama Então só reza e faz novena Essa devoção a São Sebastião eu ouvir falar que começou porque aqui tinha uma família e morreram tudo esse povo de uma febre que deu nas pessoa Aí fizeram uma promessa pra botar São Sebastião aqui por causa de uma febre a febre amarela Aí fizeram a igrejinha e colocaram ele lá A igreja é a mesma ela teve ruim derrubaram e aí fizeram do mesmo tamanho Fizeram do mesmo tamanho porque é promessa Não podia mudar Maria José do Nascimento 65 anos em 17122015 São Sebastião olha ele é um santo protetor Ele protege muito as pessoas Dele eu já ouvi falar de um milagre que aconteceu há muitos anos atrás Tinha uma pessoa doente eu não sei se era um filho que tinha pegado sarampo A pessoa ficou muito doente a família se apegou e ele ajudou Tânia Maria da Silva 54 anos em 28122015 Imagem nº 55 Velas em intenção às almas na capela de São Sebastião Fonte Acervo da pesquisadora 321 Durante a pesquisa de campo acompanhei as procissões realizadas em homenagem a São Sebastião organizadas pelos moradores da VilaCentro em 2017 2018 e 2019 A procissão é percebida como o ponto alto da festa A partir das quatorze horas as mulheres da comunidade começam a chegar à capela seja para auxiliar na arrumação ou para fazer preces e acender velas na intenção de seus entes queridos já falecidos guardados no cemitério sob a proteção do santo As mulheres acendem uma vela para cada membro da família sepultado para que eles encontrem a luz na eternidade Segundo Cascudo 2002 p 343 a representação da vida humana em velas e lâmpadas é um hábito universal As mulheres especialmente as de mais idade ou idosas esperam na capela a concentração dos demais devotos As últimas a chegar são as mulheres que coordenam a celebração D Regina e Adelmária conhecida como Sorriso se encarregaram dos ritos nos anos em que participei Fogos de artifício avisam à comunidade que a procissão está de saída Embora haja um andor a imagem de São Sebastião é conduzida pelo filho de Sorriso e pela neta de Regina Imagem nº 56 Procissão de São Sebastião em 2018 Fonte Acervo da pesquisadora 322 Um pequeno aglomerado de mulheres acompanha o cortejo que percorre as ruas de terra enfrentando o sol a pino e cantando Mártir São Sebastião Ele é nosso defensor Nos queira livrar da peste Meu amoroso senhor Nos queira livrar da peste Meu amoroso senhor Abrandai esses castigos Que andam sobre os pecadores Que anda sobre os pecadores Um castigo rigoroso Nos acode Senhor Com seu sangue precioso Livrainos com teu poder Da peste guerra e fome E também de todos os males Que os tristes homens consomem Jesus Cristo e São José Abençoe o nosso dia Mártir São Sebastião E a Virgem Santa Maria Oferecemos esse bendito Ao Mártir São Sebastião 323 Nos queira livrar da peste E nos dê a nossa salvação Benditos de São Sebastião entoado pelas mulheres de Cariacá À medida que a procissão passa muitas portas e janelas são abertas alguns moradores vão para as calçadas e traçam o sinal da cruz outros invocam com preces a proteção do santo Imagem nº 57 Altar da celebração do dia de São Sebastião em 2020 Fonte Acervo da pesquisadora Durante o trajeto ocorrem três paradas denominadas estações A primeira é em frente à capela de Santa Rita sinalizada por fogos de artifício Algumas mulheres residentes nas proximidades se juntam ao cortejo Os participantes se reúnem em círculo e 324 D Regina lê sobre algumas etapas da vida de São Sebastião destacando que o padroeiro os livrou da fome da peste e da guerra As pessoas rezam um PaiNosso e uma AveMaria e seguem adiante A segunda parada é em frente ao cruzeiro na entrada da comunidade É também sinalizada por fogos As mulheres formam um círculo ao redor do cruzeiro Adelmária lê mais alguns trechos sobre a vida de São Sebastião e todos realizam uma prece A terceira e última estação é embaixo do pé de cedro Revigorada com a sombra da árvore Regina lê os últimos episódios sobre a vida do padroeiro e o exalta São Sebastião como soldado de Cristo assiste o Cariacá em suas necessidades e na angústia de seu povo aflito as mulheres dão vivas ao santo e entram na capela para participar do rito final É realizada uma breve reflexão e todos na capela contribuem lendo evocando preces ou tirando benditos Todas as etapas da celebração são coordenadas por D Regina Tratase de uma devoção singela uma manifestação da fé depositada no santo protetor 72 UMA ROSA PARA SANTA RITA NOS VALER DAS CAUSAS IMPOSSÍVEIS A veneração a Santa Rita é a expressão de fé mais proeminente em Cariacá A padroeira possui inúmeros devotos em todo o território quilombola também em comunidades vizinhas e em alguns distritos de Senhor do Bonfim A santa é concebida como medianeira pelas viúvas idosos casais mães enfim por todos as os as que sofrem e necessitam da obtenção de graças impossíveis É uma crença tradicional na comunidade alicerçada em uma força moral e social e mantida por formas simbólicas e arranjos sociais Cf Geertz 2004 De acordo com os depoimentos de habitantes de Cariacá os tradicionais festejos de Santa Rita são realizados anualmente com novenas leilões bazar e confecção de camisas As comunidades vizinhas são convidadas especiais da novena Como enfatizou Nivaldo Osvaldo Dutra 2018 p 184 que pesquisou as comunidades negras de Mangal e Barro Vermelho situadas em Bom Jesus da Lapa os festejos em comunidades negras reforçam os laços de solidariedade ampliam as relações internas e externas e seus rituais extrapolam o campo religioso Em 2016 pela primeira vez um dos temas do novenário dialogou com a identidade quilombola A celebração foi conduzida por Valmir dos Santos 325 auxiliado pelos jovens Geovane Milena e Manuela relacionadas à AQCA Nesse mesmo ano a comunidade remanescente de quilombo de Tijuaçu foi à convidada especial da sétima noite da novena Santa Rita é celebrada durante todo o ano por seus fiéis nas atividades promovidas pelo grupo de oração379 que às terçasfeiras se reúne para rezar o terço O estandarte da santa é conduzido periodicamente para as casas das madrinhas do cruzeiro de pessoas doentes e dos devotos mais assíduos que participam das atividades religiosas na capela e contribuem para divulgar a devoção Durante o segundo semestre de 2015 o estandarte permaneceu a maior parte do tempo na casa de D Maria José Além de madrinha do cruzeiro ela carrega o andor durante a procissão A capela de Santa Rita foi edificada por uma mulher retratada como muito católica que residiu em Cariacá e foi sepultada na antiga capela de adobe A igreja de Santa Rita foi também gente de fora que fundou essa igreja aqui não sei o motivo Mas sei que foi uma mulher muito católica que construiu a igreja aqui também desses adobo crú construiu essa igreja tanto que ela faleceu e é enterrada dentro da igreja Eu não conheci essa mulher Depois ficou dona Maria Romana que é uma senhora de idade que tomava conta da igreja O sino da igreja é o sino melhor que tem na nossa região foi da Leste de Alagoinhas Um senhor que casou com uma moça daqui dos Muricy ele era agente da estação Aí ela pediu o sino se era fácil ele conseguir Ele disse que era que tinha bastante em Alagoinhas e trouxe o sino que ainda hoje existe aí Um sino muito bacana Luciana de Freitas Silva 75 anos em 23102015 Os quilombolas de Cariacá relataram que após a primeira capela ruir D Maria Romana envidou esforços para reconstruíla A capela atual é constituída por bloco e cimento Durante a minha primeira visita a Cariacá a capela de Santa Rita estava pintada de laranja a pedido do pároco local essa mudança desagradou alguns devotos Em 2018 a capela foi pintada de branco sua cor original 379 Grupo constituído por mulheres e homens que rezam o terço nas casas dos as devotos as ou de enfermos as Aos sábados o grupo reza o terço da Libertação e o Ofício da Imaculada Conceição na capela de Santa Rita 326 A presença ocasional de padres e bispos nas comunidades rurais é apenas tolerada pelos fieis pois eles costumam reprovar as práticas religiosas locais e introduzir inovações que não são acolhidas pelas comunidades Muitos devotos de Cariacá não frequentam as missas esparsas celebradas pelos padres pois o discurso canônico não dialoga com as visões de mundo e o universo religioso da comunidade Nos anos de 2015 e 2016 as relações dos moradores de Cariacá com o padre estavam estremecidas Apenas meia dúzia de fiéis compareciam às missas Desgostoso com a ausência dos devotos o padre passou a manter uma alternância maior entre suas visitas e presença na capela com a ausência do religioso a população devota de Santa Rita São Sebastião e Santo Antônio voltou a comparecer e retomar suas atividades habituais O que mais desagradou esses quilombolas sertanejos foram às modificações sugeridas pelo padre nos ritos da Semana Santa sobretudo nas vigílias e no cântico dos benditos Como destacou Dutra 2018 por vezes a religiosidade local tensiona quando confrontada com a cultura dominante A primeira imagem de Santa Rita foi roubada da capela Algumas moradoras de Cariacá suspeitam de uma mulher desconhecida que visitou a capela pretextando o cumprimento de uma promessa feita à santa Quando retornaram para fechar o templo a mulher e a imagem de Santa Rita haviam desaparecido D Maria Romana conseguiu trocar380 outra imagem na região O retorno de Santa Rita à capela foi celebrado com festa e procissão Outro episódio com a imagem da padroeira ocorreu no início de 2017 O padre levou a imagem em maio para restaurála Ela foi reconduzida ao altar apenas no dia da festa poucos minutos antes da procissão Na ocasião os as fiéis estavam alvoroçados as todos as desejavam ver a santa pois ansiavam o seu regresso Muitos as se emocionaram quando a imagem de Santa Rita foi depositada no andor A restauração da imagem da santa contribuiu para que o padre recuperasse a estima dos habitantes de Cariacá Em 2018 eles convidaram o pároco para a procissão e lhe pediram que presidisse a missa o rito final e mais importante dos festejos 380 Comprar 327 Imagem nº 58 Andor de Santa Rita de Cássia em 2017 Fonte Acervo da pesquisadora Acompanhei os festejos realizados em homenagem a Santa Rita de Cássia em Cariacá no período de 2015 a 2019 e percebi que nos anos de 2017 2018 e 2019 houve uma expansão das atividades desenvolvidas no novenário que passaram a agregar um número maior de fiéis inclusive àqueles que antes compareciam apenas à procissão D Regina forneceu uma explicação para o incremento da devoção à Santa Assim Paula a devoção de Santa Rita é um preceito das mulheres aqui do lugar desde os mais antigo Eu já cresci vendo a festa dela aqui porque todo mundo é valido por ela aqui no Cariacá e você sabe que devido às dificuldade da vida a pessoa se volta mais pra Deus e para a Mãe de Deus E assim o povo tá mais junto que a gente é uma comunidade quilomba e o povo do quilombo sempre teve junto Agora na capela na comunidade a gente tá tendo esse sentimento muito forte que é um sentimento de amor e você sabe que o amor é tudo Então hoje eu tô aqui mostrando aos meus neto amanhã eles tão no 328 meu lugar e a devoção a Santa Rita só aumenta Pras mulher pras mães pras viúva pra esse povo que é de idade e pros casais Então eu quero lhe dizer que Santa Rita protege todo mundo e o povo que antes era mais recanteado tá entendendo isso Que a casa de Deus cabe todo mundo Regina dos Santos Araújo 48 anos em 19052018 Em 2018 o prefeito indagou aos moradores de Cariacá se eles preferiam que a Prefeitura patrocinasse a festa junina local ou os festejos da padroeira Eles optaram pelos festejos de Santa Rita Com os recursos repassados pela Prefeitura anunciaram o evento em carros de som em todas as localidades do território quilombola e também nas comunidades de Terreirinho e Cachoeirinha divulgaram a programação do novenário nas rádios locais e confeccionaram convites impressos livro de cânticos e folhetos com a programação da festa A capela foi enfeitada com flores vela e água As flores foram oferecidas para agradecer a intercessão da padroeira nas causas impossíveis a vela simboliza a luz de Cristo sobre os membros de Cariacá e a água é a fonte da vida desde a barriga da mulher até os rios da terra Turner 2005 enfatizou que a finalidade dos símbolos é promover uma ligação entre o desconhecido e o conhecido Na perspectiva do autor os símbolos culturais constituem origem e sustentáculo de processos que envolvem transformações nas relações sociais As novenas foram mais animadas À noite havia quermesses e durante as tardes um bazar Fui convidada para celebrar uma das noites da novena que homenageava os idosos381 Interpretei o convite como uma demonstração de confiança fato que me deixou particularmente emocionada e agradecida Pedi permissão às mulheres para convidar D Ilca dos Santos moradora da comunidade quilombola de Tijuaçu e bastante conhecida em Cariacá D Ilca vende acarajé na VilaCentro aos domingos 381 Em 2019 fui novamente convidada Dessa vez para celebrar a noite de homenagem aos casais 329 Imagem nº 59 Novenário de Santa Rita de Cássia em 2018 Fonte Acervo da pesquisadora As atividades desenvolvidas no novenário tiveram como ápice a procissão em vinte e dois de maio Nesse dia a capela foi aberta às seis horas da manhã quando repicaram o sino e estouraram fogos de artificio Ao meiodia ela foi fechada e reaberta apenas para a missa campal A imagem da santa foi retirada da capela e depositada no andor D Regina é a responsável pela ornamentação do andor Ela é geralmente auxiliada por Gilmara Mônica Adelaide e Adelmária As outras mulheres se responsabilizam pela ornamentação da igreja e do cenário da missa campal Os homens colaboram movimentando os bancos para os locais apropriados as mesas para a composição do altar na iluminação e na armação dos dois toldos O período que antecede a procissão é caracterizado pelo vai e vem das pessoas que se esforçam para que tudo ocorra como planejado Em 2018 quando o padre participou do evento os devotos se esmeraram na decoração O trabalho de organização é concluído até às quinze horas quando os moradores vão para as suas casas se preparar para o evento Alguns vestem a camisa da festa outros usam roupas novas 330 compradas para o evento Como relatou D Maria José isso é um costume nosso Coisa que foi ensinada pelos nossos pai Ninguém vai de roupa velha no dia de Santa Rita Se a roupa não for toda nova tem que botar pelo menos uma pecinha diferente que é o dia da santa À tarde há uma maior circulação das pessoas que não estão envolvidas nos preparativos da procissão e da missa mas participam dessas atividades Às quinze e trinta os devotos ocupam os bancos da capela ou se espalham nas imediações Por volta das dezesseis horas chegam os ônibus com fiéis residentes nas outras localidades do território quilombola Moradores de comunidades e distritos vizinhos chegam em carros próprios para participar da festa e ou cumprir promessas Os quilombolas se sentem valorizados com a presença de amigos parentes e visitantes que contribuem para abrilhantar a festa Assim destacou D Lúcia quanto mais pessoas mais o dia de Santa Rita fica bonito As pessoa vêm aqui e veem tudo que nós fez pra ela Santa Rita Que ela merece tudo isso Há pessoas que só se reencontram no dia da Santa e aproveitam o momento para conversar indagar sobre os as afilhados as comadrescompadres e amigos as que não estão no evento Normalmente registram a festa com fotos e vídeos O cenário da missa campal é um dos mais registrados pelos fiéis Eles fotografam o altar e posam para fotos ao lado de afilhados as netos as e bisnetos as Alguns as fazem selfs O altar principal decorado pela manhã é constituído por uma mesa de madeira e duas de plástico forradas com toalhas de seda e renda brancas O altar principal é montado sobre a mesa de madeira coberta com uma toalha pintada com símbolos pascais São dispostas no altar uma imagem de Jesus Crucificado a Bíblia Sagrada e duas velas brancas O segundo altar é preenchido por duas jarras de água benta que serão aspergidas nos fiéis nos momentos finais da missa No terceiro altar são colocados os arranjos com flores Os sete bancos de madeira e as cinquenta cadeiras de plástico já estão totalmente ocupadas às dezessete horas quando chega o grupo musical de Senhor do Bonfim contratado para acompanhar a procissão e tocar o hino de Santa Rita ao longo do percurso As organizadoras da festa também chegam por volta desse horário 331 Imagem nº 60 Saída da Procissão de Santa Rita Fonte Acervo da pesquisadora A chegada do andor com a imagem da padroeira é saudada com palmas fogos e gritos de Viva Santa Rita de Cássia Esse é um dos momentos mais sublimes da festa caracterizado pela realização de preces e agradecimentos pessoais A capela que até então estava fechada é aberta e algumas mulheres entram para retirar o estandarte da Santa D Regina e D Gilmara se aproximam dos músicos para explicar o trajeto e fornecer instruções sobre os hinos D Maria José toca o sino repetidas vezes para anunciar a saída da procissão D Luci começa a distribuir água para os presentes advertindoos que não devem deixar o cortejo até que a procissão retorne D Adelaide conduz o estandarte à frente da procissão e D Maria José carrega o andor D Gilmara e D Regina solicitam que todos as fiquem de pé rezem um PaiNosso e uma AveMaria Após orarem elas anunciam o percurso da procissão Seu José Nunes solta fogos de artifício e a imagem de Santa Rita é conduzida através das ruas areentas da VilaCentro em meio a cânticos 332 orações e paradas para reflexões sobre a vida religiosa da Santa e os seus exemplos de humildade O percurso realizado pela procissão de Santa Rita é um pouco mais extenso do que o da procissão de São Sebastião O número das paradas é também mais longo são cinco Quando a procissão retorna para a capela já é noite A procissão é recebida pelas pessoas de mais idade que aguardam a realização da missa No período de 2015 a 2017 a festividade foi conduzida por religiosos da paróquia de São José Esposo ou por moradores da comunidade Em 2018 e 2019 como já referido o padre celebrou a missa Imagem nº 61 Andor de Santa Rita de Cássia durante o novenário de 2019 Fonte Acervo da pesquisadora 333 73 EM LAJEDO SÃO BENEDITO VEIO DO RIO A ligação da vida com o sagrado não é esporádica mas cotidiana e estreita As entidades são invocadas a qualquer hora do dia ou da noite com o propósito de bendizer e ou de requerer a maldição por qualquer desagravo ocasionado Além de preces orações benditos e cantigas os habitantes de Lajedo utilizam simpatias para assegurar a família e aqueles as que apreciam Quando invocam os seres reverenciados se emocionam e se exaltam modificando o timbre da voz e o gestual Afirmam sua fé em Deus nos santos e em parentes já falecidos Só frequentam igrejas por ocasião das homenagens a Nossa Senhora da Saúde Santa Luzia e São João Batista Por vezes organizam romarias para o santuário do Senhor Bom Jesus da Lapa Rezam com frequência e gostam de acender velas durante as preces pois a luz alumeia a vida Eles recebem muita proteção para viver naquele espaço afirmam que tudo que tem nome tem dono382 por isso precisam zelar pela terra na qual labutam pelas águas que correm nos regatos e pelas cachoeiras que os cercam Apesar de tecerem habilidosamente um universo místico para apoiar o seu cotidiano observei já nos primeiros dias em campo que os moradores de Lajedo não possuem um santo padroeiro Não há capelas na comunidade Antigamente durante a Semana Santa eles se reuniam para rezar na casa de D Maria Joaquina conhecida como Dita Além de rezadeira e parteira ela mantinha em sua residência um oratório com imagens sacras Seu Armando e Seu Timóteo se emocionaram ao falar sobre Dita Teve casa de reza mas igreja não A casa de reza era da minha tia e da minha avó Tanto rezava a criança quanto rezava em tempo de Semana Santa Ela rezava Ela chamava Maria Joaquina e Amanzinha Ela chamava Maria de Francisco mas o popular era Amanzinha Ela era muito querida dos mais velho fazia o bem a todos Timóteo Joaquim Santos 40 anos em 15072016 382 Essa expressão se refere tanto às entidades boas a exemplo de santos parentes falecidos espíritos da mata quanto às visagens do mato 334 Para os quilombolas de Lajedo as pessoas que rezam são sábias dominam a ciência para conectar os mundos visível e invisível Dita é reconhecida e respeitada pelos seus parentes pois manteve viva a prática de devoções e orações e zelou pelo desenvolvimento da espiritualidade nativa Ela ensinou orações aos parentes Eles se recordam da invocação ao Ofício de Nossa Senhora uma oração poderosa que deve ser rezada durante a Semana Santa e diante de qualquer dificuldade como parto difícil de mulher ou para espantar visagem que apareça em casa ou no mato Seu Timóteo relatou que nos dias de quarta quinta e sextafeira da Semana Santa os moradores da comunidade independente da faixa etária se dirigiam após as dezoito horas para a casa de Dita para tirar ladainhas cantar benditos e rezar ofícios Permaneciam rezando até a meianoite não podiam retornar antes para casa sob pena de se deparar com o lobisomem ou outras visagens do mato Durante a Sextafeira da Paixão Dita recebia muitos convidados para o almoço Os mais velhos jejuavam e segundo Seu Timóteo iam para a casa de sua tia para rezar antes de ingerir a primeira refeição do dia Entre os participantes do almoço muitos as ficavam para a reza da noite Seu Armando destacou Na Semana Santa juntava de oitenta a noventa pessoas pra rezar na casa de uma tia minha que era moça velha principalmente na Sexta Feira Santa Começava a rezar às oito horas da noite e ninguém ia embora não Enquanto não amanhecia o dia não ia ninguém Que ela mesmo dizia assim enquanto a gente não rezar o Ofício de Nossa Senhora não pode sair ninguém daqui porque corre o risco de vocês encontrar no caminho alguma coisa aí na estrada lobisomem visagem Aí o pessoal ficava com medo né Ficava a noite todinha ali O Ofício rezava perto de amanhecer o dia Armando João dos Santos 68 anos em 16072016 Quando dava a hora sagrada383 isto é a meianoite as mulheres que sabiam rezar o Ofício de Nossa Senhora384 se ajoelhavam diante do oratório cujas imagens sacras eram 383 A expressão hora sagrada foi também utilizada por Seu José Preto em Cariacá 384 O Ofício de Nossa Senhora é uma oração forte e poderosa que deve ser realizada de joelhos postos Eles afirmaram e afirmam que Nossa Senhora se ajoelha no céu sempre que o ofício é rezado na terra As mulheres da comunidade relataram que durante os partos difíceis as pessoas que entravam no quarto se ajoelhavam e rezavam o Ofício de Nossa Senhora em pouco tempo o inocente vinha ao mundo 335 cobertas com tecidos na cor roxa385 os homens se ajoelhavam atrás das mulheres pois nem todos sabiam a oração apenas acompanhavam As crianças ajoelhavam ao lado das mães ou das avós a hierarquia da penitência efetuada era estruturada em função do conhecimento da reza Quando entrevistei D Dejanira mãe de Seu Armando na cidade de Saúde ela rememorou que durante a reza eles acendiam um pacote de velas pois como afirmava Dita estavam velando a Paixão de Jesus Cristo e não podiam rezar para Nossa Senhora no escuro Quando terminavam de orar as mulheres cantavam benditos que faziam doer o coração Além do Ofício de Nossa Senhora as mulheres rezavam o Ofício das Almas após uma hora da madrugada para pedir pelas almas dos familiares falecidos D Dejanira relatou que Dita incitava a todos as a rezar com fé pedindo pelas almas dos fiéis defuntos Ninguém ousava levantar até que o rito estivesse finalizado Na acepção de Asad 1986 a tradição é constituída por discursos e práticas que se relacionam a um passado e a um futuro Após o falecimento de Dita alguns parentes que residiam em Saúde levaram o oratório e as imagens Atualmente as famílias de Lajedo almoçam na casa do parente mais velho da Quartafeira Maior até a Sextafeira da Paixão Todavia não mais tiram ladainhas e rezam diversos ofícios mas apenas o PaiNosso e a AveMaria O Sábado de Aleluia era investido de uma mística particular Em todos os lares os habitantes colocavam por volta de meiodia uma bacia no terreiro para ver a aleluia passar386 Nas comunidades quilombolas situadas na região em estudo às práticas religiosas observadas durante a Semana Santa expressam os ensinamentos daqueles as que fazem de sua fé a base para as lutas e labutas cotidianas Nas entrevistas realizadas durante a pesquisa etnográfica os moradores de Lajedo afirmaram que não havia um padroeiro em sua comunidade e que depois do falecimento de Dita ninguém mais trocou uma imagem sagrada Percebi que eu havia provocado uma recordação positiva na comunidade pois tanto as mulheres quanto os homens passaram a aventar a possibilidade de ter um santo advogado Assim argumentou D Rosa 385 Durante a Semana Santa as imagens sacras devem ser cobertas no primeiro dia da quaresma e descobertas após a meianoite do Sábado de Aleluia para reverenciar o luto pela morte de Jesus Cristo 386 Tratase de mais um rito que compõe a ciência denominada de sabedoria dos mais velhos O sol por vezes brinca ou briga com a lua e no Sábado de Aleluia ocorre um encontro entre os dois astros Os quilombolas colocavam uma bacia de esmalte no quintal e ou no terreiro da casa para enxergar no interior do vasilhame o sol passar pela lua 336 É eu acho que é preciso aqui ter alguém que vele por nós diante de Deus que todo lugar tem Então eu acho que a gente devia ter também que nós aqui também carece de bença Como todo mundo carece ser valido Rosália Matias dos Santos 65 anos 26052017 D Rosa associa a bênção à proteção que um santo padroeiro pode oferecer Os moradores de Lajedo começaram a discutir sobre qual santo padroeiro deveriam escolher pois também precisavam de um advogado para proteger e representar a comunidade destacou Seu Gilberto Um pouco antes da abertura da reunião da associação Seu Armando me chamou reservadamente e colocou Eu tive pensando Paula daquela pergunta que você fez lá na minha casa sobre a gente aqui ter um santo e eu acho assim que a gente aqui também devia ter o nosso santo Que isso é bom pra o lugar que a comunidade fica protegida fica com a proteção de Deus e do santo Aí eu mais os colegas as mulher também a gente teve assim a compreensão que o santo devia ser São Benedito Armando João dos Santos 68 anos em 28052017 Quando Seu Alberto finalizou a reunião e me perguntou se eu desejava dizer alguma coisa Eu me levantei e compartilhei o comentário de Seu Armando sobre São Benedito Os participantes se entreolharam D Idália se manifestou eu não tenho nada contra sobre isso não Indaguei se desejavam que eu trocasse a imagem Seria um presente meu para a comunidade Rose que estava debruçada sobre a pequena murada perguntou sim e onde é que vai botar São Benedito D Rosa propôs que colocassem a imagem na sede da associação Argumentei que a imagem de São Benedito deveria ser assentada em um local mais tranquilo onde pudessem rezar e acender velas Seu Alberto sugeriu a escola desativada situada na região dos Aprígio Todos concordaram Propus que fizéssemos um pequeno oratório com base de bloco e cimento para assentar a imagem de São Bendito Seu Gilberto afirmou que a imagem poderia ser colocada no terreiro em frente à sua casa Seu Heranga sugeriu que o oratório fosse erigido ao lado da associação próximo ao tanque Assim São Benedito abençoaria a comunidade a associação e a água Foi feita uma rápida 337 votação e a localidade sugerida por Seu Heranga foi acatada A escolha de São Benedito obedeceu a alguns critérios dentre os quais a cor negra da imagem e a trajetória de sofrimentos pessoais do Santo Ademais a população de Lajedo se identificou com a resiliência de São Benedito Quando realizei pesquisa de mestrado em Tijuaçu comunidade que também adota como intercessor São Benedito observei que de igual modo os quilombolas dessa comunidade se identificam com a trajetória e a personalidade do Santo Sobre a veneração a São Benedito em Tijuaçu a pesquisadora Carmélia Miranda 2009 p 129 destacou em suas mãos estão todas as agruras de seus devotos que aguardam com ansiedade o recebimento de suas graças e zelam com grande fervor o seu altar pondo flores trocando toalhas e acendendo velas Quando a comunidade de Lajedo começou a cultuar São Benedito o fez de um modo singular e portanto essa devoção se transformou em mais um sinal diacrítico do grupo Deixei o campo decidida a encontrar a mais bonita imagem de São Benedito em Senhor do Bonfim Mas não existem muitas imagens do Santo nessa cidade e as disponíveis são muito pequenas Queria uma imagem de tamanho razoável esculpida em resina Gostaria de levar um presente delicado pois a imagem concretizaria o início de uma devoção na comunidade de Lajedo Finalmente encontrei uma imagem com as características que almejava em uma loja de produtos católicos Quando cheguei em casa na cidade de Ponto Novo havia uma mensagem de Rose em meu celular informando que eles não desejavam receber São Benedito naquela semana Quando retornei ao campo Seu Alberto me explicou que eles haviam pensado melhor e perceberam que precisavam se organizar para receber o padroeiro Queriam convidar as comunidades vizinhas e fazer uma festa Os moradores de Lajedo apreciam celebrações e há tempos não confraternizavam com parentes comadres compadres e amigos em seu próprio território Após a construção do oratório compra de fogos e organização do lanche para os participantes em 30 de julho de 2017 a imagem de São Benedito foi recebida em Lajedo Participaram do evento membros das comunidades de Palmeira Coqueiros Dionísia Santa Cruz do Coqueiro Carrasco e Grota das Oliveiras A imagem foi recebida às margens do rio pois assim o Santo abençoaria as águas as cachoeiras e suas plantações e em seguida foi transportada para o oratório A veneração a São Benedito e a outros santos negros como Nossa Senhora do Rosário e Santa Efigênia durante o período colonial foi introduzida pelos missionários e 338 acolhida pelos as escravizados as Cf Miranda 2009 p 131 Eles reinterpretaram os rituais de devoção ao rosário de Nossa Senhora pois se emocionaram com a sua vida Sobre as práticas de devoção a São Benedito a autora enunciou O santo mais popular entre os negros São Benedito tem como atributo a humildade docilidade subserviência e submissão Dessa forma é apresentado como modelo a ser seguido Os referidos santos tiveram um grande número de devotos negros cativos e forros na América portuguesa em decorrência de suas histórias de vida e da cor de sua pele Os cativos negros e forros identificavamse com tais características apresentadas por esses santos MIRANDA 2009 p 132 A comunidade de Lajedo organizou uma carreata com quatorze automóveis A imagem do santo seguiu no carro principal Foi também realizada uma procissão Os participantes carregavam flores ou ramos verdes Não houve missa porque o padre não estava presente Uma celebração foi conduzida pelas rezadeiras387 da comunidade de Dionísia Elas recomendaram que o oratório fosse arrumado toda semana que os habitantes de Lajedo zelassem pelo santo e realizassem anualmente a procissão para receber bênçãos e proteção para a comunidade Terminada a celebração os participantes rezaram o terço e em meio ao estouro de fogos de artifício deram Vivas a São Benedito Viva o nosso padroeiro Seu Alberto fez uma louvação ao protetor agradecendo a sua presença na comunidade constituída por um povo negro e muito sofrido São Benedito seja advogado nosso diante de Deus Que aqui São Benedito todo mundo é muito sofrido Abandonado pelas autoridade aqui nós só tem Deus e agora o senhor que vai velar por nós e ajudar a gente E em nossa humildade que aqui São Benedito a gente é tudo fraco O senhor é muito querido e bem vindo por nós Alberto Santana de Azevedo 48 anos em 30072017 387 Grupo de mulheres que reza o terço e cuida das celebrações religiosas em sua comunidade Quando solicitadas auxiliam também as atividades religiosas das comunidades vizinhas 339 Imagem nº 62 Louvação de Seu Alberto a São Benedito Fonte Acervo da pesquisadora Finalizada a louvação Alberto agradeceu aos presentes pediu uma salva de palmas para o Santo e sugeriu que fosse servido o lanche preparado por D Mariene 731 CELEBRANDO O DIA DE SÃO BENEDITO A última semana do mês de setembro de 2018 foi movimentada na comunidade de Lajedo Todos as se mobilizaram para realizar a missa e a procissão em homenagem a São Benedito Em um primeiro momento a associação decidiu que organizaria apenas a procissão haja vista a dificuldade de conseguir um padre Porém Seu Joaquim anunciou que o pároco de Mirangaba se comprometeu a abençoar a imagem do santo e celebrar uma missa em Lajedo 340 O dia 30 de setembro foi escolhido para sediar os festejos dedicados a São Benedito uma data posterior à festa em homenagem a São Miguel celebrada na igreja das Figuras388 e frequentada por moradores de Lajedo Assim durante todo o mês de setembro a comunidade se envolveu nos preparativos dos festejos de São Benedito D Idália não permaneceu em Lajedo para acompanhar as atividades mas enfatizou que desejava que tudo ocorresse como esperado Que os povo convidado venha porque tá todo mundo trabalhando muito Todas comunidade que tem santo faz festa Então se o povo daqui agora já tem tem que fazer a festa também Eu não vou que eu conheço a palavra mas eu quero o bem deles aqui que é tudo meus irmão meus parente conhecido que nós mora tudo junto Então eu quero ver eles contente que eu acho que o povo daqui também merece ter uma festa pra o santo Idália Santana de Azevedo 45 anos em 25092018 Em 26 de setembro Seu Joaquim percorreu as localidades da Grota Quilombola para formalizar o convite para a festa de São Benedito nas associações e capelas Quando chegou em casa confidenciou à esposa Juce o Lajedo vai ficar lotado se o povo todo que disse que vinha aparecer no dia Ele confirmou com o padre a realização da missa Seu Joaquim e Seu Alberto providenciaram a bebida que seria comercializada pela associação durante os festejos e conseguiram um freezer para armazenála Providenciaram lâmpadas para melhorar a iluminação nas imediações da APACQL pois haveria dança após a missa Seu Armando que passara a semana consertando a sanfona e um tecladista de Senhor do Bonfim animariam a festa O evento foi integralmente organizado e patrocinado pela associação Eles as recusaram o auxílio de políticos Como observou Seu Heranga o Lajedo é forte não carece desse povo não A gente tem nossa capacidade 388 Igreja de São Miguel das Figuras construída em 1755 no alto da serra das Figuras em cumprimento a uma promessa pelo garimpeiro Romão Gramacho Atualmente a igreja está em ruínas mas a devoção ao santo permanece viva entre a população sertaneja inclusive a de Lajedo 341 Imagem nº 63 Oratório de São Benedito ao lado da Associação Fonte Acervo da pesquisadora Na véspera eles adquiriram pães e outros ingredientes para o cachorroquente que pretendiam comercializar durante os festejos para levantar recursos para a associação Se certificaram do comparecimento de parentes e compadres da Grota das Oliveiras principalmente de D Eliane Ela sabe rezar porque você sabe Paula que os povo daqui não tem muito esse costume das reza Assim das reza pra o santo Então a gente quer a ajuda das mulher da Dionísia e das Oliveira Que um dia com fé em Deus as mulher daqui vão saber ajudar também Alberto Santana de Azevedo 48 anos em 29092018 342 No dia dos festejos a população de Lajedo estava muito animada Alguns homens levantaram às quatro da manhã para retirar palha verde com o propósito de enfeitar a entrada e a saída da festa outros foram buscar o freezer e armar a barraca das bebidas Imagem nº 64 Entrada para a Festa de São Benedito Fonte Acervo da Pesquisadora As mulheres ornamentaram o altar e o andor e prepararam o almoço dos visitantes assim como o cachorroquente Os moradores de Lajedo recepcionaram os parentes das outras comunidades procurando acomodálos da melhor forma possível Para agilizar o serviço da cozinha as mulheres agregaram aos fogões a lenha pequenas trempes nos terreiros das casas pois precisavam finalizar todo o trabalho até o meiodia já que a procissão estava marcada para as catorze horas e a missa para as quinze horas D Juce comentou agora a gente também vai celebrar nosso padroeiro As rezas nós vai aprender com as mulher da Dionísia Às 12h30 o fluxo de pessoas era intenso sobretudo na região dos Félix e dos Inocêncio Todas as residências estavam lotadas de parentes comadres 343 compadres afilhados e amigos Segundo D Roxa que se hospedou na casa de sua filha Idália Os povo tudo veio pra prestigiar São Benedito Eu trouxe três caixa de fogos que eu vou soltar na procissão E agora o povo do Lajedo tá feliz com essa festa É pena que os mais véios nem tudo vem mas eu vou ficar aqui até terminar tudinho Eulina Carmelina de Santana 75 anos em 30092018 Faltavam vinte minutos para as catorze horas quando D Juce sua mãe duas sobrinhas e seus três filhos nos encontraram na casa de Seu João Colado Seguimos para o entroncamento389 e nos reunimos com visitantes e moradores de Lajedo esperando a chegada do andor com a imagem de São Benedito para iniciar a procissão Quando chegamos ao entroncamento D Juce explicou que teríamos que descer um pouco pois colocar o Santo numa encruzilhada é desrespeitoso A alegria do encontro atenuou a espera havia muita expectativa ante a chegada das rezadeiras da Dionísia principalmente D Aparecida muito querida na comunidade e adjacências Como destacou D Roxa nos assuntos de reza a palavra da senhora Aparecida possui um valor inconteste Ela costuma substituir os padres nas celebrações do território quilombola Quando o automóvel chegou trazendo D Aparecida e as demais rezadeiras da Dionísia o número de pessoas que esperavam o andor havia se multiplicado Eliane nora de D Miúda solicitou a D Roxa que soltasse fogos de artifício para sinalizar o começo da procissão Alguns sugeriram que os fogos deveriam ficar sob a responsabilidade dos homens mas D Roxa retorquiu eu mesma solto que foi eu que soltei meus fogos quando eu cheguei da Lapa Eu mesma sei soltar Ela disparou a primeira caixa despertando a admiração e o respeito dos presentes As mulheres quilombolas sertanejas constroem suas autonomias nas labutas cotidianas quando reafirmam por meio de atitudes diversas o valor da santa ousadia com a qual conduzem as suas vidas 389 O entroncamento é uma encruzilhada que limita a região dos Félix com a região dos Inocêncio lá estão colocadas as únicas placas da comunidade uma indica o caminho para a cachoeira do Gelo e a outra sinaliza a chegada da energia elétrica no território quilombola 344 Embora passasse das quinze horas e o sol reivindicasse uma resistência maior por parte dos presentes todos esperaram o andor e o ônibus da cidade de Mirangaba com os fiéis do grupo do terço das igrejas de Santa Luzia e de São João Batista Havia muita expectativa com relação à ida do padre Quando Seu Joaquim apontou na larga estrada de terra trazendo junto ao peito a imagem de São Benedito acompanhado por outras pessoas que carregavam o andor D Roxa soltou mais fogos e o Santo foi efusivamente saudado Viva São Benedito Viva o nosso padroeiro Viva todas comunidades Viva o povo do Lajedo Houve muitos aplausos alguns se emocionaram e D Juce acomodou a imagem no andor Imagem nº 65 Entronização da imagem de São Benedito no andor Fonte Acervo da pesquisadora 345 Houve certo tumulto pois todos as queriam tocar o padroeiro se persignar fazer uma prece ou agradecimento Findo o ato de receber São Benedito D Aparecida conduziu a procissão Ela cumprimentou a todos as e agradeceu as presenças ressaltando a relevância do momento para a comunidade de Lajedo Povo de Deus Atenção aqui pra um esclarecimento eu expliquei ao Alberto que não era para deixar São Benedito na associação que era pra ele levar o Santo e deixar na casa dele Pra gente fazer um percurso diferente do ano passado mas ele acho que esqueceu Que isso é ciência dos povo antigo O Santo não pode fazer o mesmo trajeto Eu tô dizendo isso pros mais novo não esquecer mas São Benedito perdoa Maria Aparecida dos Santos em 30092018 Seu Joaquim me pediu que proferisse algumas palavras antes da saída da procissão Falei um pouco sobre a vida de São Benedito e parabenizei a comunidade pelo carinho e esforço coletivo para comemorar o dia do padroeiro Destaquei que a partir daquela data os festejos de São Benedito seriam incorporados ao calendário religioso de Lajedo e de toda a Grota Quilombola Em seguida D Aparecida pediu a todos que rezassem o PaiNosso e a AveMaria de mãos dadas para iniciar a procissão As rezadeiras da Dionísia e as mulheres de Grota das Oliveiras390 se posicionaram de modo que quando um grupo de mulheres tirasse o bendito o outro grupo pudesse responder D Aparecida cantou Meu São Benedito Sua casa cheira Cheira a cravo cheira a rosa Cheira a flor da laranjeira 390 Os quilombolas de Grota das Oliveiras compareceram ao evento com uma camisa em homenagem a Nossa Senhora das Grotas Considerei o fato curioso pois quando da minha estadia nessa comunidade eles elas informaram que a sua padroeira é Nossa Senhora da Conceição Aparecida Indaguei a Seu Jorge por quê eles vestiram a camisa com a imagem de Nossa Senhora das Grotas Ele informou que o padre presenteou a comunidade com a imagem da Santa e pediu a eles que mantivessem no cruzeiro a imagem de Nossa Senhora Aparecida e na sede ao lado da associação a de Nossa Senhora das Grotas 346 Cheira cravo cheira a rosa Cheira a flor da laranjeira Meu São Benedito É um santo preto Que fala na boca E responde no peito Que fala na boca E responde no peito Meu São Benedito Com Jesus Menino Ele é um santo forte Do amor divino Ele é um santo forte Do amor divino Trechos do bendito de São Benedito entoado pelas mulheres da comunidade de Dionísia A procissão conduziu o andor para a associação onde ocorreria a missa Descemos a ladeira de terra com guardachuvas nas mãos e atravessamos um pequeno olho dágua A chegada da procissão na sede suscitou novas homenagens ao Santo foram ouvidos aplausos e fogos de artifícios Orientados por D Aparecida os fiéis circularam três vezes o oratório O andor foi disposto sobre a mesa e as pessoas se dispersaram A festa teve dois momentos seu Armando se apresentou com a sanfona e na sequência houve a dança animada por um tecladista especialmente contratado para a ocasião Foi à primeira festa ocorrida em Lajedo após a instalação da energia elétrica 347 A demora na chegada do pároco começou a inquietar as mulheres algumas cogitaram a possibilidade de ele não aparecer ou ter errado o caminho Finalmente ele chegou no carro da paróquia D Aparecida se adiantou para recebêlo e aos três coroinhas que o acompanhavam As pessoas que estavam no salão da associação aplaudiram e pediram a bênção ao sacerdote Com a chegada do religioso o fluxo de pessoas no salão aumentou Seu Heranga acendeu as luzes D Juce se aproximou cumprimentou o padre e providenciou quatro cadeiras colocandoas ao lado da mesa O padre solicitou vamos ajustar o altar Alguns homens retiraram o andor e ficaram com a imagem na mão e o padre ajudou a reorganizar o altar para a cerimônia Durante a celebração o padre não mencionou a história de São Benedito nem enfatizou a relevância dessa primeira missa celebrada em homenagem ao padroeiro Ele também não cumprimentou os moradores pelo esforço empreendido para realizar a festa Finalizada a missa o padre olhou para os presentes e colocou o padre quer dizer uma coisa para vocês Quando eu cheguei aqui o padre só celebrou a missa porque eu olhei e vi aqui vocês que são as minhas ovelhas Em seguida ele repreendeu os participantes esclarecendo a diferença entre ritos religiosos e eventos considerados profanos Todos ficaram constrangidos sobretudo as mulheres que permaneceram de cabeça baixa evidenciando sentimentos de vergonha e de contrariedade Solicitei a D Juce que localizasse Seu Joaquim para agradecer ao pároco em nome da associação e da comunidade391 A ausência do sacerdote deixou os participantes mais à vontade para externar a alegria D Mariene descreveu a ocasião como um sonho de todos nós aqui Pena que não deu pra fazer batizado dos menino Foi tudo muito rápido mas ano que vem nós se prepara melhor Seu Joaquim Seu Gilberto e Seu Alberto arrumaram o caminhão que serviria de palco para os artistas da festa As casas da comunidade repletas de parentes que já residiram no território permaneceram com as portas e janelas abertas durante a festa O sorriso aparecia com facilidade no rosto de todos as crianças corriam e brincavam serelepes fazendo algazarra os idosos riam alto enquanto aproveitavam para conhecer as ramas mais novas e provar de todas as iguarias oferecidas nas barracas alguns adultos bebiam ou se abraçavam e ensaiavam passos de samba outros trabalhavam procurando 391 Após a saída do padre da sede da associação tentei encontrálo para argumentar sobre a relevância do evento para a comunidade mas ele já havia partido 348 vender quitutes e bebidas Os adolescentes namoravam e teciam novas relações de amizade Quando a noite caiu sob o céu do Lajedo as mulheres de forma reverente e contrita se persignaram diante da imagem de São Benedito devolvendo o padroeiro para o oratório sob aplausos dos fiéis Quando as luzes da gambiarra foram acesas e a sanfona de Seu Armando começou a tocar todos se aproximaram do palco com um brilho especial no olhar Imagem nº 66 Segunda procissão realizada em homenagem a São Benedito em Lajedo em 2019 Fonte Acervo da Pesquisadora 349 As comunidades quilombolas enfocadas nesta tese se pensam amparam seus saberes e expandem as suas existências com esteio na espiritualidade A espiritualidade precede os processos de afirmação étnicoidentitária ela é constituída por saberes ancestrais que sempre nortearam as suas trajetórias de vida Ressignificados no contexto da luta eles são percebidos como saberes da resistência ou emancipatórios Cf Gomes 2017 visto que lhes possibilitaram migrar do terreno da marginalidade e tomar as rédeas do seu próprio destino 350 CONSIDERAÇÕES FINAIS OU A DIFÍCIL TAREFA DE COLOCAR UM PONTO SEM INTENÇÃO DE FINALIZAR Onde se dizia ou se pensava não existir milhares de homens e mulheres em comunidades rurais populações ribeirinhas povos da floresta ou populações tradicionais passaram a reivindicar a terra territórios e políticas públicas Ao longo dos anos 1980 e 1990 em vários encontros com destaque ao pioneirismo do Maranhão comunidades negras rurais remanescentes de quilombo começaram a se organizar nas reivindicações de seus direitos sobre as terras que ocupavam Quilombos e mocambos do presente e do passado se encontram aí Tratase de uma história secular de luta pela terra articulada às experiências da escravidão e da pósabolição GOMES 2015 p 128129 As comunidades negras rurais situadas na região norte do sertão baiano reorganizaram suas relações de parentesco entrelaçadas por laços do compadrio e vizinhança e reforçadas na luta pelo território Foram estigmatizadas durante séculos devido à cor e à condição socioeconômica dos seus habitantes Foram expropriados de suas terras e submetidas a um isolamento sem acesso a meios de comunicação educação escolar assistência à saúde e às demais políticas públicas No final da década de 1990 essas comunidades protagonizaram e permanecem protagonizando o Barulho do Quilombo cujos ecos promoveram o despertar de seus membros para a percepção de sua ancestralidade A Negritude Sertaneja tanto durante a escravidão quanto no período pós escravocrata permaneceu adormecida misturada à população camponesa Essa foi uma estratégia de resistência Ela silenciou memórias e omitiu o heroísmo de seus ancestrais Não obstante as comunidades negras se agruparam em contínuos étnicos sobreviveram e proliferaram contestando a autoridade excludente da sociedade inclusiva O despertar dessas comunidades foi caracterizado por uma tomada de consciência sobre ser negro a pressuposto básico para a construção identitária do ser quilombola A etnicidade foi impulsionada na ação política O Barulho do Quilombo é interpretado nesta tese não apenas como um movimento de natureza política mas também pedagógico um lugar compartilhado para discussões sobre existências insurgências e resistências de recuperação da história e dos saberes tradicionais das comunidades As famílias negras organizadas em pequenas médias e grandes comunidades ao estuciarem o Barulho do 351 Quilombo atentam para o valor das tradições ressignificam simbologias e reivindicam autorias enquanto netos e bisnetos de mocambeiros que se descobriram quilombolas O contato com comunidades tradicionais determinou a escrita desta tese que objetivou compreender como as comunidades quilombolas de Cariacá e Lajedo constroem as suas identidades A convivência com os membros dessas comunidades as interações em campo viabilizadas pela técnica da participação observante foram os fios condutores deste trabalho que enfocou as cosmovisões saberes tradicionais rearranjos políticos econômicos sociais e culturais que conferem sentidos e produzem significados Foi necessário entender o caminhar desses sujeitos antes e após a descoberta de sua ancestralidade seus ritos simbólicos de passagem e suas implicações em ambas as comunidades Como destacou Clifford Geertz 1989 o etnógrafo deve ter a habilidade necessária para construir reconstruir signos e analisar os discursos A convivência com os membros de Cariacá e Lajedo ampliou os meus conhecimentos problematizados ao final do curso Como observa James Clifford 2014 o trabalho de campo antropológico é tanto um laboratório científico quanto um rito de passagem pessoal Enfatizo que deve ser tomado em conta o impacto do agenciamento etnográfico tanto para o pesquisador quanto para os seus interlocutores uma vez que ambos constituem sujeitos cuja participação ativa é determinante durante a pesquisa e a construção do texto Foi difícil colocar um ponto final nesta tese pois temi fragilizar o pacto etnográfico que pressupõe uma relação de confiança entre pesquisadores as e pesquisados as e que não se dilui com a finalização do trabalho de campo e a elaboração do texto Compartilho a perspectiva de Geertz 1989 de que o trabalho de campo é uma experiência maravilhosa difícil é a tarefa de decidir o que foi aprendido Entre os aprendizados na convivência com os quilombolas destaco uma fala de D Luci sobre a natureza dos pontos que ligam a teia da vida Partilho pois da concepção nativa que modela um pensamento sistêmico caracterizado pela comunhão entre os seres saberes e vivências no escopo dos ideais projetados para uma sociedade planetária como propôs Edgar Morin 2015 Não me interessam a frieza e a suposta neutralidade da ciência hegemônica que ao não se permitir ser tocada se aprisiona Definome como uma pesquisadora itinerante sensibilizada pelas lutas e resistências tecidas pelos quilombolas sertanejos que em suas trajetórias cotidianas produzem epistemologias É a sabedoria do povo do mato cunhada nas artes de estuciar e prestar assunto para orientar a 352 caminhada confrontar os obstáculos e inimigos externos a exemplo das lentes estreitas da burocracia estatal Para pensar a produção identitária pesquisei os modos de ser e de se perceber quilombola nas comunidades de Cariacá e Lajedo e percebi que tão importante quanto à identidade modelada como linguagem é aquela produzida de maneira intimista isto é o fluxo cotidiano que norteia comportamentos viés que sustenta e impulsiona as labutas As cosmovisões entrelaçam fé conhecimentos e espiritualidades invocando proteção para si para a família e estendendo essa condição à parentagem ou acionando os efeitos da proteção contra os de fora Esses saberes tradicionais norteiam a relação com o território concebido como um lugar sagrado que precisa se identificar com seu dono como informou D Maria do Rosário A relação com a terra é caracterizada por afeto e zelo evidenciados quando trazem uma garrafa com a água dos milagres de Bom Jesus da Lapa para utilizála quando realizam o primeiro plantio do ano ou guardam as cinzas da fogueira de São João para espalhálas sobre o solo em atitude de reverência esperando receber a retribuição na colheita e na prosperidade As orações preceitos experiências e saberes que compõem a sabedoria do povo do mato nem sempre se revelam ao olhar externo pois sua força reside parcialmente no segredo Esses conhecimentos foram historicamente percebidos como subalternos e passíveis de reproches Como argumentou Boaventura de Souza Santos 2002 a ciência moderna promovida a racionalizador de primeira ordem da vida social assume o extraordinário privilégio epistemológico de se apresentar como a única forma de conhecimento válido Em muitos momentos da pesquisa essa ciência foi contestada pelos meus interlocutores as As epistemologias produzidas distintamente e com zonas de confluências em ambas as comunidades enfocadas nesta tese não me passaram despercebidas Interpretei as vivências como processos educacionais Na concepção de Nilma Lino Gomes 2017 p 91 na medida em que se afirmam como sujeitos da história do conhecimento e da cultura os as atores sociais negros as têm a oportunidade de afirmar e reafirmar modos alternativos de humanidade e de se perceber como sujeitos de direitos e de conhecimento ainda não reconhecidos pelas concepções hegemônicas de cidadania e ciência Em ambos os grupos a descoberta da tradicionalidade ensejou a reconstrução da etnicidade agenciada como uma costura interna e um canal de comunicação com a 353 sociedade envolvente A condição que em tempos pretéritos fora utilizada para destituir seus ancestrais de humanidade para inferiorizálos passa a ser utilizada para construir a cidadania de todo um coletivo possibilitando que mulheres homens jovens e crianças descubram a beleza de seus corpos cabelos e estilos de vida antes divisados como inadequados diante do fenótipo branco e eurocentrado percebido como majoritário Os quilombolas de Cariacá e Lajedo se reinventam continuamente Destaco como parte importante dessa costura identitária os esforços mobilizados para recuperar o mito fundador A história dessas comunidades foi sufocada também por uma questão de preservação pessoal O senhor Paulo Quitero por exemplo chegou ao Lajedo fugido para se livrar da perseguição do coronel Joaquim Malta Também a Família Congo esteve exposta ao preconceito xingamentos e cerceamentos por parte de membros da família Muricy As memórias eram relegadas ao esquecimento pelos descendentes porque as lembranças provocavam sofrimento psicológico e vexame social D Ninha e D Maria José em Cariacá e Seu Gilberto Seu Alberto e Seu Joaquim em Lajedo afirmaram a gente não dava importância não ligava não sabia que essas histórias tinha valor É o despertar da ancestralidade quilombola que estimula a recuperação das histórias coletivas utilizadas para legitimar a condição de comunidades tradicionais O ativismo político fomenta as ressemantizações sobretudo o da Associação Quilombola cujo trabalho tanto em Cariacá quanto em Lajedo é de fundamental importância para a compreensão do rito de passagem dessas comunidades Essas comunidades construíram uma identidade contrastiva identificada pela sociedade inclusiva e pelo Estado como identidade quilombola O ser quilombola dialoga com muitas outras identidades tecidas pelos atores sociais A emancipação e a costura identitária foram perpassadas pela retomada das atividades culturais que no caso de Cariacá foi facilitada pela criação do Quilombart e em Lajedo pelo reaparecimento do samba Assim a cultura assume o lugar da tensão contínua fluida e muitas vezes incoerente de relacionamentos influências e antagonismos com a cultura dominante Cf Hall 2005 p 257 Outro elemento relevante para pensar a tessitura da identidade e a função de linguagem é o papel da religiosidade nessas comunidades Ressalto os critérios que orientaram a escolha do padroeiro em Lajedo Ao elegerem São Benedito como protetor seus membros evidenciaram uma identificação com a vida do Santo e a devoção passou a ser utilizada como sinal diacrítico da comunidade única naquele contínuo étnico que apoia 354 a sua caminhada de fé na intercessão de um advogado negro como São Benedito passou a ser conhecido Os quilombolas não são mais tidos como seres genéricos e abstratos São percebidos pelo Estadonação como sujeitos políticos de direito e historicamente situados A identidade das comunidades quilombolas se constrói na interseção com a sociedade envolvente De maneira análoga aos elementos acionados nas comunidades quilombolas para orientar os processos de construção identitária a escrita do texto etnográfico é composta com esteio em traduções dos recortes da realidade trabalhada sob a perspectiva da plausibilidade Como destacou Geertz 1989 a prática da etnografia pressupõe o estabelecimento de relações a seleção de informantes a transcrição de textos a elaboração de genealogias entre outros Isto é a sistematização do risco elaborado para uma construção densa É também percebida como uma análise que envolve aprender e depois apresentar Nesta tese o pacto etnográfico agenciou o encontro com as emergências lutas e resistências protagonizadas pelos as interlocutores as aqui apresentados sob a ótica da criatividade do Barulho do Quilombo atividade que prossegue pulsante no contexto dos sertões baianos driblando obstáculos negociando com as instituições estimulando a produção de saberes e vivências em contínua reinvenção pois ainda há muito a ser dito sobre as insurgências assim como sobre as tessituras inscritas e escritas pelas comunidades de Cariacá e Lajedo 355 REFERÊNCIAS ABREU José Capistrano Caminhos antigos e povoamento no Brasil São Paulo Edusp 1988 ALMEIDA Alfredo Wagner Terras Tradicionalmente ocupadas processos de territorialização e movimentos sociais Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais v 06 nº 1 maio de 2004 Os quilombos e as novas etnias é necessário que nos libertemos da definição arqueológica In LEITÃO Sérgio org Direitos Territoriais das Comunidades Negras Rurais Documento do Isa n 5 1999 pp 4379 Terras de Preto Terras de santo Terras de índio uso comum e conflito In Habette Castro org Na Trilha dos grandes Projetos Belém NAEAUFPA 1999 ARANTES NETO Antônio A Sagrada Família uma análise estrutural do compadrio Caderno 5 Campinaas BrasilienseIFCH Unicamp 1975 ARRUTÍ José Maurício Mocambo Antropologia e História do processo de formação quilombola São Paulo Edusc 2006 O Quilombo Conceitual para uma Sociologia do artigo 68 Rio de Janeiro Mímeo 2003 A emergência dos remanescentes notas para o diálogo entre indígenas e quilombolas Mana Rio de Janeiro V 03 nº 2 1997 ANDERSON Benedict Nação e Consciência Nacional São Paulo Ática 1989 356 ANJOS Rafael Sanzio Araújo Territórios das Comunidades Remanescentes de Antigos Quilombos no Brasil primeira configuração espacial Brasília Mapas Editora Consultoria 2000 BAIOCCHI Mari de Nazaré Kalunga povo da terra Brasília Ministério da Justiça Secretaria do Estado dos Direitos Humanos 1999 BHABHA Homi O Local da Cultura Tradução de Myriam Ávila Eliana Lourenço de Lima Reis Gláucia Renate Gonçalves Belo Horizonte UFMG 2003 BANDEIRA Maria de Lourdes Terras Negras invisibilidade expropriadora Textos e debates Florianópolis NUERUFSC ano I nº 2 1991 BARTH Frederik Grupos Étnicos e suas Fronteiras In POUTIGNAT Philippe e STREIFF Jocelyne Teorias da Etnicidade São Paulo Unesp 1997 BARTOLOMÉ Miguel Alberto As etnogêneses velhos atores e novos papéis no cenário cultural e político Mana online 2006 vol 12 n 1 pp 3968 BAUMAN Zygmunt Identidade Rio de Janeiro Zahar 2005 O Malestar da Pósmodernidade Rio de Janeiro Zahar 1998 BELTRÃO Maria O Alto Sertão Anotações Rio de Janeiro Casa da Palavra 2010 BENTO Maria aparecida Silva Cidadania em Preto e Branco discutindo relações raciais São Paulo Ática 2000 BERND Zilá O que é Negritude São Paulo Brasiliense 1988 357 BOSI Ecléa Memória e Sociedade lembranças de velhos São Paulo Companhia das Letras 1994 BRASIL Constituição Federal de 1988 Artigos 68 215 216 Brasília Senado Federal 1988 BRASIL Presidência da República Decreto nº 6040 de 7 de Fevereiro de 2007 Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais Disponível em httwwwplanaltogovbrcivil 03Ato 2007 20102007DecretoD6040htm Acesso em 20 de outubro de 2010 BRASIL SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL Parâmetros Curriculares Nacionais Pluralidade Cultural Secretaria de Educação Fundamental Brasília MECSEF 1997 BRASIL SECRETARIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA ALFABETIZAÇÃO E DIVERSIDADE Dimensões da Inclusão no Ensino Médio mercado de trabalho religiosidade e educação quilombola Brasília MECSEPPIR 2006 BRASIL SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana Brasília MECSEPPIR 2004 BULTEAU Veronique Para uma Antropologia do Sertão Ecologia e Sociologia do Cotidiano Petrolina Edupe 2016 CARVALHO Maria Rosário CARVALHO Ana Magda org Índios e Caboclos a história recontada Salvador EDUFBA 2012 CARVALHO José Jorge org O Quilombo do Rio das Rãs Histórias tradições e lutas Salvador CEAO EDUFBA 1996 358 CASCUDO Luís da Câmara Antologia do Folclore Brasileiro Vol1 São Paulo Global 2014 Dicionário do Folclore Brasileiro São Paulo Global 2002 A vaquejada nordestina e sua origem Recife Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais 1969 CASTRO HENRIQUES Isabel Percursos da Modernidade em Angola Lisboa Instituto de Investigação Científica Tropical 1997 CESAR América Lúcia Silva Lições de Abril a construção da autoria entre os Pataxó de Coroa Vermelha Salvador EDUFBA 2011 CHAGAS Míriam de Fátima A Política de Reconhecimento dos remanescentes das comunidades dos quilombos Horizontes Antropológicos V 07 nº 15 2001 CHAUÌ Marilena Cultura e Democracia Salvador Secretaria de Cultura 2007 CLIFFORD James A Experiência Etnográfica Antropologia e Literatura no século XX Rio de Janeiro UFRJ 2014 COUTO Patrícia Navarro de Almeida Morada dos Encantados Identidade e Religiosidade entre os Tupinambá da Serra do Padeiro Buerarema Ba 2008 169 f Dissertação Mestrado em Ciências Sociais Programa de Pósgraduação em Ciências Sociais UFBA Salvador 2008 CRESHAW Kimberlé Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial relativos ao Gênero Estudos Feministas 12002 Ano 10 p 171 188 359 CUNHA Euclides Os Sertões a campanha de Canudos São Paulo Martin Clairet 2005 CUNHA Manuela Carneiro Antropologia do Brasil mito história etnicidade São Paulo Brasiliense 1987 FANON Frantz Pele Negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 FREIRE Paulo Pedagogia da Esperança Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido 6ª ed São Paulo Paz e Terra 1999 Pedagogia do Oprimido Rio de janeiro Paz e Terra 1975 FILHO Wilson Trajano Por uma Etnografia da Resistência o caso das Tabancas de Cabo Verde Brasília Série Antropológica vol 408 2006 FOUCAULT Michel Microfísica do Poder Graal Rio de Janeiro 1979 FUNES Eurípedes Nasci nas matas nunca tive senhor história e memória dos mocambos do Baixo Amazonas In REIS João e GOMES Flávio Liberdade por um Fio história dos quilombos no Brasil GALVÃO Eduardo Santos e Visagens um estudo da vida religiosa de Itá Amazonas São Paulo Companhia Editorial Nacional 1955 GEERTZ Clifford A Interpretação das Culturas Rio de Janeiro LTC 1989 GENNEP A V Os ritos de passagem Petrópolis Vozes 2011 GILROY Paul O Atlântico Negro 34ª ed São Paulo Cultura 2001 360 GODOI Emília Pietrafesa de Mobilidades Encantamentos e Pertença o mundo ainda está rogando porque ainda não acabou Revista de Antropologia São Paulo USP 2014 v 57 nº 2 p 143167 GOLDMAN Márcio Contradiscursos Afroindígenas sobre Mistura Sincretismo e Mestiçagem Estudos Etnográficos RAU v 9 n2 juldez de 2017 pp 1128 A Relação Afroindígena Cadernos de Campo n 23 UFRJ 2014 História Devires e Fetiches das Religiões Afrobrasileiras ensaio de simetrização antropológica Análise Social Vol XLIV nº 190 pp 105137 2009 Os Tambores do Antropólogo Antropologia PósSocial e Etnografia Ponto Urbe Ano 02 versão 30 julho de 2008 Experiência em Lienhardt uma teoria etnográfica da religião Religião e Sociedade v19 nº 02 outubro 1999 pp 930 GOMES Flávio dos Santos Mocambos e Quilombos uma história do Campesinato negro no Brasil São Paulo Claro Enigma 2015 De Olho em Zumbi dos Palmares São Paulo Claro Enigma 2011 Histórias de Quilombolas mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro século XIX Rio de Janeiro Arquivo Nacional 1995 GOMES Nilma Lino O Movimento Negro Educador saberes construídos nas lutas por emancipação Petrópolis RJ Vozes 2017 361 HALL Stuart Da Diáspora Identidades e Mediações Culturais 2ª ed Belo Horizonte UFMG 2008 LIMA Vivaldo da Costa O Conceito de Nação nos Candomblés da Bahia AfroÁsia n 12 p 6590 1976 LOSONCZY A Marie A sabedoria e o umbigo Ritos de nascimento entre Parteiras entre os Embera e AfroColombianos do Alto Choco Colômbia In CARVALHO Maria Rosário REESINK Edwin CAVIGNAC Julie Orgs Negros no Mundo dos Índios imagens reflexos alteridades Natal RN EDUFRN 2011 p 427447 MACÊDO Ulla A Dona do Corpo um olhar sobre a reprodução entre os Tupinambá da SerraBA Dissertação Mestrado em Ciências Sociais Universidade Federal da Bahia PPGCSUFBA Salvador 2007 MARTINEZ Paulo África e Brasil uma ponte sobre o Atlântico São Paulo Moderna 1992 MARQUES Carlos Eduardo De Quilombos a quilombolas notas sobre um processo históricoetnográfico Revista de Antropologia São Paulo v 52 nº 1 pp 340374 2009 MAUSS Marcel Ensaio sobre a Dádiva In Sociologia e Antropologia São Paulo Cosac Naify 2003 Parentescos de Gracejos Ensaios de Sociologia São Paulo Perspectiva 2005 Ensaio sobre a Dádiva Forma e Razão da Troca nas Sociedades Arcaicas Sociologia e Antropologia Vol II São Paulo EPU 1974 p 37185 MIRANDA Carmélia Aparecida Vestígios Recuperados experiências da comunidade negra rural de Tijuaçu Ba São Paulo Annablume 2009 362 MOREIRA Gislene Sertões Contemporâneos rupturas e continuidades no semiárido Salvador EdunebEdufba 2018 MOURA Glória Festas dos Quilombos Brasília Unb 2012 MOURA Clóvis Os Quilombos e a Rebelião Negra 6ª ed São Paulo Brasiliense 1986 Rebeliões da Senzala quilombos insurreições e guerrilhas Rio de Janeiro Conquista 1972 MUNANGA Kabengelê GOMES Nilma Lino O Negro no Brasil de Hoje São Paulo Global 2006 MUNANGA Kabengelê Org Superando o Racismo na Escola 2ª ed Brasília 2005 Redescutindo a Mestiçagem no Brasil São Paulo Autêntica 2004 Negritude usos e sentidos 2ª ed São Paulo Ática 1988 NASCIMENTO Abdias O Quilombismo Petrópolis Vozes 1980 ODWYER Eliane Catarino org Terras de Quilombo Rio de Janeiro ABAUFRJ 1995 PARÉS Luis Nicolau REVISTA ESBOÇOS Volume 17 Nº 23 pp 165185 UFSC PIRES Maria de Fátima Novaes SANTANA Napolitana Pereira SANTOS Paulo Henrique Duque org Bahia Escravidão PósAbolição e Comunidades Quilombolas Estudos Interdisciplinares Salvador EDUFBA 2018 363 PIRES Maria de Fátima Fios da Vida tráfego interprovincial e alforrias nos Sertoins de SimaBA 18601920 São Paulo Annablume 2009 O crime na Cor escravos e forros no Alto Sertão da Bahia 18301888 São Paulo Annablume FAPESP 2003 PIRES Pedro Stoeckli Sobre Mestres e Encantados a Jurema como expressão sentimental 2010 177 f Mestrado em Antropologia Programa de Pósgraduação em Antropologia Social Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 REIS João José GOMES Flávio dos Santos Liberdade por um Fio história dos quilombos no Brasil São Paulo Companhia das Letras 1996 RODRIGUES Nina Os Africanos no Brasil São Paulo Companhia Editora Nacional 1977 SANTOS Boaventura de Souza A Difícil Democracia Reinventar as esquerdas São Paulo Boitempo 2016 Para além do Pensamento Abissal das linhas globais a uma ecologia de saberes In SANTOS Boaventura Souza MENESES Maria Paula orgs Epistemologias do Sul São Paulo Cortez 2010 p 3183 SANTOS Paula Odilon Ser Quilombola no Sertão Tijuaçu lutas e resistências no processo de construção identitária 2013 208 f Dissertação Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos Programa de Pósgraduação Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos Universidade Federal da Bahia UFBA Salvador 2013 SANTOS Paula Odilon Educação e Cultura Negra o caso de Tijuaçu Senhor do Bonfim 2001 Monografia de Graduação Universidade do Estado da Bahia UNEB 364 Educação e Cultura Negra o caso da comunidade quilombola de Tijuaçu Senhor do Bonfim 2004 Monografia de Pósgraduação Latusenso em Psicopedagogia Escolar Universidade do Estado da Bahia UNEB SERRA Ordep No Caminho de Aruanda a Umbanda Candanga revisitada Afro Ásia 2526 2001 pp 215256 SILVA Eduardo A Função Ideológica da Brecha Camponesa In REIS João José SILVA Eduardo Negociação e Conflito A Resistência Negra no Brasil Escravista São Paulo Companhia das Letras 1989 pp 6278 SILVA Jônatas Conceição Vozes Quilombolas uma poética brasileira Salvador EDUFBA 2006 SILVA Mônica C A M Emponderamento e Potencialidades para o desenvolvimento local na tradicional comunidade negra São João Batista de Campo Grande MS Campo Grande 2010 Dissertação de Mestrado Universidade Católica Dom Bosco SILVA Tomaz Tadeu Org Identidade e Diferença a perspectiva dos Estudos Culturais Rio de Janeiro Vozes 2009 SILVA Valdélio Santos Rio das Rãs e Mangal Feitiçaria e Poder em Territórios Quilombolas do Médio São Francisco 2010 354 f Tese Doutorado em Estudos Étnicos e Africanos Programa de Pósgraduação Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos Universidade Federal da Bahia UFBA Salvador 2010 SOARES Mariana Pettersen Almas e Encantados uma cosmologia sobre o mundo dos mortos na região do Baixo Amazonas 2013 278 f Tese Doutorado em Antropologia Programa de Pósgraduação em Antropologia Universidade Federal Fluminense UFF Niterói 2013 365 TADDEI Renzo Serestar no Sertão capítulos da vida como filosofia visceral Interface Botucatu online 2014 vol 18 nº 50 pp 597607 VASCONCELOS Cláudia Pereira Sertão Baiano o lugar da sertanidade na configuração da identidade baiana Salvador Edufba 2012 VIEIRA Filho Raphael Rodrigues Os Negros em Jacobina Bahia no século XIX São Paulo Annablume 2009 VIEIRA Suzane de Alencar Resistência e Pirraça na Malhada cosmopolíticas quilombolas no Alto Sertão de Caitité 2015 425 f Tese Doutorado em Antropologia Social Programa de Pósgraduação em Antropologia Social Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ Rio de Janeiro 2015 WEBER Max Sociologia da dominação In WEBER Max Economia e sociedade Brasília UnB 1991p 187223 367 ANEXO 1 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM OS ANCIÃOS DE CARIACÁ Identificação 1 Nome 2 Idade 3 Nome dos pais 4 Onde nasceu Sobre a vida na Comunidade 1 Me conte a história de Cariacá quando o senhorsenhora era menino a 2 O senhorsenhora sabe por que o Cariacá tem esse nome 3 Quem botou esse nome aqui 4 Eu ouvi falar que aqui já foi Passagem de Boiada O senhorsenhora sabe disso Me conte essa história 5 Me falaram que no passado o Cariacá era uma fazenda O senhor senhora sabe disso 6 De quem era essa fazenda 7 O senhorsenhora sabe como foi construída essa ferrovia 8 Me disseram que aqui antigamente teve muito índio O senhorsenhora sabe algo sobre isso Teve índio aqui 9 Para onde os índios foram ANEXOS 368 10 Me disseram que aqui tem uma família Congo O senhorsenhora conhece alguém dessa família 11 Quem são esses Congos 12 Me contaram que a dona desse casarão era D Trindade O senhorsenhora já ouviu falar dela 13 Falaram que aqui o Cariacá é um quilombo O senhor senhora sabe disso 14 Para o senhorsenhora o que é um quilombo 15 O senhorsenhora é quilombola 16 Como é ser um quilombola 369 ANEXO 2 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM OS MEMBROS DA DIREÇÃO DA ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA DE CARIACÁ E ADJACÊNCIAS AQCA Identificação 1 Nome 2 Idade 3 Nome dos pais 4 Onde nasceu O sentido de ser quilombola 1 Você é quilombola 2 Como é ser quilombola 3 Como ficou sabendo que Cariacá é uma comunidade remanescente de quilombo 4 O que mudou em você depois desta informação 5 Como era a vida aqui em Cariacá antes da comunidade ser considerada quilombola 6 Para você o que é mais importante na comunidade 7 Houve mudança na comunidade depois que ela foi reconhecida como quilombola 8 O que ainda não aconteceu aqui na comunidade e que você gostaria que acontecesse 9 Como você acha que a região principalmente a cidade de Senhor do Bonfim trata a comunidade de Cariacá O trabalho da Associação Quilombola de Cariacá 1 Como é o trabalho realizado pela Associação Quilombola de Cariacá 2 Como são escolhidos os membros da direção da Associação Quilombola de Cariacá 3 Quanto tempo dura o mandato dos membros da direção 4 Há quanto tempo você participa da direção da Associação Quilombola 370 5 Se não existisse a Associação Quilombola de Cariacá como a comunidade estaria 6 O que mudou na comunidade a partir do trabalho realizado pela Associação Quilombola 7 O que é mais importante no trabalho da Associação Quilombola 8 Quais as principais conquistas alcançadas até agora pela Associação 9 O que a Associação Quilombola ainda não conseguiu fazer e que você gostaria de ver realizado 10 Se você fosse definir a comunidade de Cariacá em uma frase o que diria 11 O poder político de Senhor do Bonfim colabora com o trabalho realizado pela Associação Quilombola Por quê A festa de Santa Rita 1 Como você vê Santa Rita 2 Como começou a festa de Santa Rita na comunidade 3 Quem trouxe a primeira imagem de Santa Rita para Cariacá 4 O que você sente no dia da festa de Santa Rita 5 Você acredita que Santa Rita protege a comunidade Por quê 6 Você já ouviu falar de algum milagre de Santa Rita aqui na comunidade Qual 7 Como você se sentiria se em algum ano a festa de Santa Rita não acontecesse A festa de São Sebastião 1 Como você vê São Sebastião 2 Como começou a festa de São Sebastião na comunidade 3 Quem trouxe a primeira imagem de São Sebastião para Cariacá 4 O que você sente no dia da festa de São Sebastião 5 Você acredita que São Sebastião protege a comunidade Por quê 6 Você já ouviu falar de algum milagre de São Sebastião aqui na comunidade Qual 7 Como você se sentiria caso em algum ano a festa de São Sebastião não acontecesse 371 Sobre as atividades culturais da comunidade 1 Como você vê o Quilombart aqui na comunidade 2 Como você se sente quando o Quilombart está se apresentando 3 Se o Quilombart fosse ficando esquecido na comunidade o que você sentiria Sobre as instituições que existem na comunidade 1 Como você vê a igreja Católica aqui em Cariacá 2 Como você vê a igreja Assembleia de Deus na comunidade 3 E a igreja Adventista do Sétimo Dia como ela age aqui em Cariacá 4 Você acredita que as igrejas que existem em Cariacá valorizam a causa quilombola da comunidade Por quê 5 Qual a importância da escola aqui em Cariacá 7 Você concorda com o tratamento que a escola dá a comunidade 8 Esse tratamento sempre foi assim 9 O que você gostaria de ver a escola fazer na comunidade 10 Se você pudesse mudar alguma coisa no trabalho da escola o que mudaria 372 ANEXO 3 ROTEIRO DA ENTREVISTA COM LIDERANÇAS QUILOMBOLAS DE CARIACÁ Identificação 1 Nome 2 Idade 3 Nome dos pais 4 Onde nasceu O sentido de ser quilombola 1 Você é quilombola 2 Como é ser quilombola 3 Como ficou sabendo que Cariacá é uma comunidade remanescente de quilombo 4 O que mudou em você depois dessa informação 5 Como era a vida aqui em Cariacá antes da comunidade ser considerada quilombola 6 Para você o que é mais importante na comunidade 7 Na sua opinião houve mudança na comunidade depois que ela passou a utilizar o título de comunidade quilombola 8 O que ainda não aconteceu aqui na comunidade e que você gostaria que acontecesse 9 Como você acha que a região principalmente a cidade de Senhor do Bonfim trata a comunidade de Cariacá Atividade de uma liderança quilombola 1 Como é ser uma liderança quilombola 2 Como você foi escolhido a para ser uma liderança 3 Qual é o trabalho de uma liderança quilombola 373 4 Como você se sente atuando como liderança em Cariacá A festa de Santa Rita 1 Como você vê Santa Rita 2 Como começou a festa de Santa Rita na comunidade 3 Quem trouxe a primeira imagem de Santa Rita para Cariacá 4 O que você sente no dia da festa de Santa Rita 5 Você acredita que Santa Rita protege a comunidade Por quê 6 Você já ouviu falar de algum milagre de Santa Rita aqui na comunidade Qual 7 Como você se sentiria se em algum ano a festa de Santa Rita não acontecesse A festa de São Sebastião 1 Como você vê São Sebastião 2 Como começou a festa de São Sebastião na comunidade 3 Quem trouxe a primeira imagem de São Sebastião para Cariacá 4 O que você sente no dia da festa de São Sebastião 5 Você acredita que São Sebastião protege a comunidade Por quê 6 Você já ouviu falar de algum milagre de São Sebastião aqui na comunidade Qual 7 Como você se sentiria caso em algum ano a festa de São Sebastião não acontecesse Sobre as atividades culturais da comunidade 1 Como você vê o Quilombart aqui na comunidade 2 Quando o Quilombart está se apresentando como é esse momento para você 3 Se o Quilombart fosse ficando esquecido na comunidade o que você sentiria Sobre as instituições que existem na comunidade 1 Como você vê a igreja Católica aqui em Cariacá 374 2 Como você vê a igreja Assembleia de Deus na comunidade 3 E a igreja Adventista do Sétimo Dia como ela age aqui em Cariacá 4 Você acredita que as igrejas que existem em Cariacá valorizam a causa quilombola da comunidade Por quê 5 Qual a importância da escola aqui em Cariacá 7 Você concorda com o tratamento que a escola dá à comunidade 8 Esse tratamento sempre foi assim 9 O que você gostaria de ver a escola fazer na comunidade 10 Se você pudesse mudar alguma coisa no trabalho da escola o que mudaria 375 ANEXO 4 ROTEIRO DA ENTREVISTA COM OS PARTICIPANTES DO GRUPO QUILOMBART Identificação 1 Nome 2 Idade 3 Nome dos pais 4 Onde você nasceu O sentido de ser quilombola 1 Você é quilombola 2 Como é ser quilombola 3 Como ficou sabendo que Cariacá é uma comunidade remanescente de quilombo 4 O que mudou em você depois dessa informação 5 Como era a vida aqui em Cariacá antes da comunidade ser considerada quilombola 6 Para você o que é mais importante na comunidade 7 Em sua opinião houve mudança na comunidade depois que ela passou a utilizar o título de comunidade quilombola 8 O que ainda não aconteceu aqui na comunidade e que você gostaria que acontecesse 9 Como você acha que a região principalmente a cidade de Senhor do Bonfim trata a comunidade de Cariacá A importância do Quilombart 1 Como o Quilombart começou 2 Quando iniciou suas atividades no Quilombart 3 Como isso aconteceu 4 Como as pessoas são escolhidas para participar do Quilombart 376 5 Você já se afastou do grupo alguma vez 6 Em caso afirmativo como se sentiu nesse período 7 O que você sente quando está se apresentando 8 Qual a sua função no grupo 9 Quem lhe ensinou 10 Como o grupo se mantém 11 Você acredita que existe alguma diferença de quando o Quilombart começou para o que é hoje 12 Quando o Quilombart vai se apresentar como é esse dia para você 13 Tem alguma coisa no grupo que você gostaria de mudar 14 O que você gostaria que ocorresse para melhorar as atividades do Quilombart 15 Você se sente valorizado pela comunidade como participante do Quilombart Por quê 16 Como a cidade de Senhor do Bonfim trata o Quilombart 17 Este tratamento sempre foi assim 18 Se você fosse definir o Quilombart em uma palavra o que diria A Festa de Santa Rita 1 Como você vê Santa Rita 2 Como começou a festa de Santa Rita na comunidade 3 Quem trouxe a primeira imagem de Santa Rita para Cariacá 4 O que você sente no dia da festa de Santa Rita 5 Você acredita que Santa Rita protege a comunidade Por quê 6 Você já ouviu falar de algum milagre de Santa Rita aqui na comunidade Qual 7 Como você se sentiria se em algum ano a festa de Santa Rita não acontecesse A Festa de São Sebastião 1 Como você vê São Sebastião 2 Como começou a festa de São Sebastião na comunidade 377 3 Quem trouxe a primeira imagem de São Sebastião para Cariacá 4 O que você sente no dia da festa de São Sebastião 5 Você acredita que São Sebastião protege a comunidade Por quê 6 Você já ouviu falar de algum milagre de São Sebastião aqui na comunidade Qual 7 Como você se sentiria caso em algum ano a festa de São Sebastião não acontecesse Sobre as instituições da comunidade 1 Como você vê a igreja Católica aqui em Cariacá 2 Como você vê a igreja Assembleia de Deus na comunidade 3 E a igreja Adventista do Sétimo Dia como ela age aqui em Cariacá 4 Você acredita que as igrejas que existem em Cariacá valorizam a causa quilombola da comunidade Por quê 5 Qual é a importância da escola aqui em Cariacá 7 Você concorda com o tratamento que a escola dá à comunidade 8 Esse tratamento sempre foi assim 9 O que você gostaria de ver a escola fazer na comunidade 10 Se você pudesse mudar alguma coisa no trabalho da escola o que mudaria 378 ANEXO 5 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM OS AS MORADORES AS DAS LOCALIDADES QUE CONSTITUEM O TERRITÓRIO QUILOMBOLA DE CARIACÁ Identificação 1 Nome 2 Idade 3 Nome dos pais 4 O senhorsenhora nasceu aqui Sobre a vida na Comunidade 1 Me conte como era a vida na comunidade quando o senhorsenhora era menino a 2 Por quê a comunidade tem esse nome 3 Quem botou esse nome 4 Todo mundo que mora aqui é nascido no lugar mesmo 5 Alguém veio de fora Quem 6 As pessoas casam com gente daqui mesmo 7 Aqui tem igreja Qual 8 Sabe como foi construída a igreja 9 Aqui tem padroeiro 10 Tem escola Já teve 11 Aqui tem algum samba ou alguma brincadeira 379 Relação da comunidade com a VilaCentro de Cariacá 1 Quem é mais velho aqui ou Cariacá 2 O senhorsenhora costumava ir a Cariacá no seu tempo de criança 3 Lembra como era 4 Pode me contar 5 O senhorsenhora sabe quem botou o nome do Cariacá 6 Eu ouvi falar que teve índio no Cariacá O senhorsenhora sabe disso 7 O senhor senhora conhece uma família Congo no Cariacá 8 Quem são esses Congos Pode me contar 9 Aqui tem Congo 10 Ouvi falar de uma fazendeira do Cariacá a Trindade Muricy Já ouviu falar dela 11 Pode me contar quem era D Trindade Muricy Sobre o Sentido de Ser Quilombola 1 O senhorsenhora é quilombola 2 Como é ser quilombola 3 Como ficou sabendo que sua comunidade é quilombola 4 O que mudou em sua vida depois dessa informação 5 Como era a vida aqui antes da comunidade ser considerada quilombola 6 O que ainda não aconteceu aqui na comunidade e que o senhorsenhora gostaria que acontecesse 7 Como o senhorsenhora acha que a região principalmente a cidade de Senhor do Bonfim trata sua comunidade 8 O senhorsenhora participa da Associação Quilombola 9 O que acha do trabalho da Associação 380 10 Se não fosse esse trabalho da associação como é que a comunidade aqui estaria hoje 381 ANEXO 6 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM OS ANCIÃOS DE LAJEDO QUE FORAM RESIDIR NA CIDADE DE SAÚDE Identificação 1 Nome 2 Idade 3 Nome dos pais 4 Nasceu em Lajedo Sobre a vida na comunidade 1 Como era a comunidade quando o senhorsenhora era menino a 2 Ouviu falar quem foram os primeiros moradores 3 Já ouviu falar de um homem chamado Quitero 4 Sabe me contar quem foi Quitero 5 Por que a comunidade se chama Lajedo 6 Todo mundo que mora no Lajedo é nascido lá mesmo 7 Alguém veio de fora 8 As pessoas casam com gente de lá mesmo 9 Onde as crianças são batizadas 10 Onde acontecem os casamentos 11 Os padrinhos são escolhidos entre o pessoal da comunidade 12 Quantas famílias moram no Lajedo 13 Do que as pessoas vivem na comunidade 14 No seu tempo de menino a o que mais gostava lá no Lajedo 15 Já teve igreja na comunidade 16 Quem é o santo padroeiro 17 Como é a festa do Santo 18 Na comunidade tem outras festas Quais 19 Quando acontecia das pessoas adoecerem no Lajedo onde se tratavam 20 Onde ocorriam os partos 21 Tinha parteira Quem era 22 Na comunidade tem alguém que reza nas pessoas 23 No Lajedo tem algum samba ou algum tipo de brincadeira 24 Por que o senhorsenhora foi embora da comunidade 25 Sente falta do Lajedo Por quê 26 Costuma visitar o Lajedo 27 Como faz isso 28 Para o senhorsenhora o que é mais importante na comunidade 382 O Sentido de ser quilombola 1 Me contaram que o Lajedo é uma comunidade quilombola Isso é verdade 2 O senhorsenhora é quilombola 3 Como é ser quilombola 4 Como o senhorsenhora ficou sabendo dessa informação 5 Teve alguma mudança em sua vida depois que soube que é quilombola 6 E no Lajedo sabe se teve alguma mudança 7 Em sua opinião a cidade de Saúde dá um bom tratamento às pessoas do Lajedo Por quê 8 Para o senhorsenhora o que é um quilombo Sobre a Associação Quilombola 1 Tem associação no Lajedo 2 Qual é a associação 3 Como ela trabalha 4 O senhor senhora concorda com o trabalho da associação Por quê 5 Já foi beneficiado por ela 6 Pode me contar como isso aconteceu 7 Teve mudança no Lajedo depois do trabalho da associação Qual 8 Se não tivesse o trabalho da associação em sua opinião como a comunidade de Lajedo estaria hoje 383 ANEXO 7 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM OS MORADORES DE LAJEDO Identificação 1 Nome 2 Idade 3 Nome dos pais 4 Nasceu aqui mesmo na comunidade Sobre a vida na comunidade 1 Me conte como era a vida aqui no Lajedo quando o senhorsenhora era menino a 2 Ouviu falar quem foram os primeiros moradores daqui 3 Já ouviu falar de um homem chamado Quitero 4 Sabe me contar quem foi Quitero 5 Por que a comunidade tem esse nome 6 Quem botou esse nome no lugar 7 Todo mundo que mora aqui no Lajedo é nascido no lugar mesmo 8 Alguém veio de fora 9 As pessoas se casam com gente daqui mesmo 10 O casamento acontece aonde 11 As crianças são batizadas aqui na comunidade 12 Os padrinhos são escolhidos entre o pessoal daqui 13 Quantas famílias moram no Lajedo hoje 14 Do que as pessoas vivem aqui na comunidade 15 No seu tempo de menino a o que mais gostava na comunidade 16 Já teve igreja aqui 17 Quem é o santo padroeiro 18 Como é a festa do Santo 19 Na comunidade tem outras festas Quais 20 Quando acontece das pessoas adoecerem aqui no Lajedo onde se tratam 21 Sempre foi assim 22 Onde ocorrem os partos 23 Sempre foi assim 24 Tinha parteira aqui na comunidade Quem era 25 Aqui na comunidade tem alguém que reza nas pessoas 26 Aqui na comunidade vocês fazem samba ou algum tipo de brincadeira 27 Eu ouvi falar que já teve gente que foi embora da comunidade Em sua opinião por que algumas pessoas vão embora daqui 384 28 Quando acontece das pessoas irem embora daqui vão morar aonde 29 Já teve vontade de ir embora Por que 30 Do que você mais gosta aqui no Lajedo O Sentido de ser quilombola 1 Me contaram que aqui é uma comunidade quilombola Isso é verdade 2 O senhorsenhora é quilombola 3 Como é ser quilombola 4 Como o senhorsenhora ficou sabendo que aqui é uma comunidade quilombola 5 Teve alguma mudança em sua vida depois que soube que é quilombola 6 E na comunidade teve alguma mudança Qual 7 Em sua opinião a cidade de Saúde dá um bom tratamento às pessoas do Lajedo Por que 8 E a cidade de Mirangaba 9 O senhorsenhora se considera morador da cidade de Saúde ou de Mirangaba 10 Para o senhorsenhora o que é um quilombo Sobre a Associação Quilombola 1 Tem associação no Lajedo 2 Qual é a associação 3 Como ela trabalha 4 O senhor senhora concorda com o trabalho da associação Por que 5 Já foi beneficiado por ela 6 Pode me contar como isso aconteceu 7 Teve alguma mudança no Lajedo depois do trabalho da associação Qual 8 Se não tivesse o trabalho da associação como a comunidade de Lajedo estaria hoje 385 ANEXO 8 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM OS MEMBROS DA DIREÇÃO DA ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA DOS PEQUENOS AGRICULTORES DE LAJEDO AQPAL Identificação 1 Nome 2 Idade 3 Nome dos pais 4 Nasceu aqui mesmo na comunidade Sobre a vida na comunidade 1 Me conte como era a vida aqui no Lajedo quando o senhorsenhora era menino a 2 Ouviu falar quem foram os primeiros moradores do lugar 3 Já ouviu falar de um homem chamado Quitero 4 Sabe me contar quem foi Quitero 5 Por que a comunidade tem esse nome de Lajedo 6 Todo mundo que mora aqui no Lajedo é nascido no lugar mesmo 7 Alguém veio de fora 8 As pessoas se casam com gente daqui mesmo 9 Onde os casamentos são realizados 10 As crianças são batizadas aqui na comunidade 11 Os padrinhos são escolhidos entre o pessoal daqui 12 Quantas famílias moram em Lajedo 13 Do que as pessoas vivem aqui na comunidade 14 No seu tempo de menino a o que mais gostava na comunidade 15 Já teve igreja aqui 16 Quem é o santo padroeiro 17 Como é a festa do santo 18 Na comunidade tem outras festas Quais 19 Quando acontece das pessoas adoecerem aqui no Lajedo onde se tratam Sempre foi assim 20 Onde ocorrem os partos 21 Sempre foi assim 22 Tinha parteira aqui na comunidade Quem era 23 Na comunidade tem alguém que reza nas pessoas 24 Aqui na comunidade vocês fazem samba ou algum tipo de brincadeira 25 Eu ouvi falar que algumas pessoas foram embora daqui Em sua opinião por que essas pessoas foram embora da comunidade 386 26 Quando acontece das pessoas irem embora daqui onde vão morar 27 Já teve vontade de ir embora Por quê 28 Do que mais gosta aqui no lugar O Sentido de ser quilombola 1 Me contaram que aqui é uma comunidade quilombola Isso é verdade 2 O senhorsenhora é quilombola 3 Como é ser quilombola 4 Como o senhorsenhora ficou sabendo que aqui é uma comunidade quilombola 5 Teve alguma mudança em sua vida depois que soube que é quilombola 6 E na comunidade teve alguma mudança Qual 7 Em sua opinião a cidade de Saúde dá um bom tratamento às pessoas do Lajedo Por quê 8 E a cidade de Mirangaba 9 O senhorsenhora se considera morador da cidade de Saúde ou de Mirangaba 10 Para o senhorsenhora o que é um quilombo Sobre o trabalho da Associação 1 Como é o trabalho realizado pela Associação Quilombola 2 Me conte como é no dia da reunião 3 Como são escolhidos os membros da direção da Associação 4 Quanto tempo dura o mandato dos membros da direção 5 Tem quantos sócios 6 Já teve mais 7 Há quanto tempo o senhorsenhora participa da direção da Associação Quilombola 8 Em sua opinião a Associação já trouxe algum benefício para a comunidade Qual 9 Para o senhorsenhora o que é mais importante no trabalho da Associação Quilombola 10 Quais as principais conquistas alcançadas até agora pela Associação 11 O que a Associação Quilombola ainda não conseguiu fazer e que o senhorsenhora gostaria de ver realizado 387 ANEXO 9 RELAÇÃO DOS ENTREVISTADOS AS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CARIACÁ Agripino Pedro dos Santos Anaíde Anária Nascimento do Monte Antônia de Freitas Silva Célia Marli Menezes Araújo Elvira Gomes Damasceno Epifânio Ferreira Damasceno Ermínia Gonçalves de Souza Eurides Pereira Brito Fernando do Monte Geovani da Silva Oliveira Glícia Milena Gomes da Silva Isabel Vítor de Souza Ivone Gonçalves de Souza Ítala Raiane de Oliveira Juvino Jéssica Saldanha dos Santos Joice Milene Nascimento de Oliveira José Pedro dos Santos Laíze de Oliveira Souza Juvino Luciana de Freitas Silva Luzia Gomes 388 Manuel Julião Dias Maria da Silva Dias Maria da Silva Neris Maria José de Ermínio Maria José do Nascimento Mônica França Dias Regina dos Santos Araújo Rosângela Gomes de Oliveira Tânia Maria da Silva Dias Ubirajara de Jesus 389 ANEXO 10 RELAÇÃO DOS ENTREVISTADOS AS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE LAJEDO Alberto Santana de Azevedo Antônio José Clementino dos Santos Armando João dos Santos Dejanira Maria de Jesus Domingas Rosalina dos Santos Eulina Carmelina de Santana Euvira Passos de Sena Francisco João dos Santos Gilberto Inocêncio dos Santos Gisele Juracy Santos de Jesus Idália Santana de Azevedo João Aceno Gabriel Pereira Joaquim dos Santos Joaquim Santana de Azevedo José Santana de Azevedo Judite Lauzira de Jesus Maria do Rosário de Jesus Narcisa Inocêncio dos Santos Mariene Isautina dos Santos Rosália Matias dos Santos 390 Roseane Santana de Azevedo Timóteo Joaquim Santos 391 ANEXO 11 RELAÇÃO DOS ENTREVISTADOS AS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA GROTA DA OLIVEIRAS Arquimino dos Santos Eliane dos Santos Guilherme João da Silva João José da Silva Jorge dos Santos Joseline Santos Gomes Maria de Lurdes dos Santos Marilene Sena dos Santos Roseni Sena dos Santos Vinícius dos Santos 392 ANEXO 12 PERFIS INDIVIDUAIS DOS SUJEITOS DA PESQUISA MORADORES DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CARIACÁ Agripino Pedro dos Santos É um dos anciãos mais velhos do grupo Melhor conhecido na comunidade como Seu Nino Ele nasceu na VilaCentro de Cariacá onde passou a maior parte de sua vida Durante a juventude trabalhou na cidade do Salvador e retornou para Cariacá É filho do senhor Frugêncio Pedro dos Santos e da senhora Maria Dias dos Santos Seu Nino é irmão de Seu José Preto e se percebe como um Congo da gema Ele é casado tem filhos as e netos as é alfabetizado e atualmente é lavrador aposentado Anaíde Anária Nascimento do Monte É presidente da Associação Quilombola de Cariacá e Adjacências AQCA e participa dessa entidade desde o ato de sua fundação Possui uma trajetória de ativismo na comunidade que remonta aos primórdios das movimentações realizadas para a certificação do grupo como remanescente de quilombo Anaíde é casada com o senhor Valmir dos Santos possui dois filhos e está concluindo o curso de Pedagogia Atualmente trabalha na cidade de Senhor do Bonfim e ainda possui uma pequena mercearia em sua residência Antônia de Freitas Silva Anciã bastante conhecida na comunidade Nasceu na VilaCentro de Cariacá e já empreendeu algumas migrações para o Rio de Janeiro onde viveu e trabalhou em períodos específicos de sua vida Dona Antônia concluiu o curso de magistério todavia nunca exerceu a profissão No momento presente é aposentada e se reconhece como afroindígena 393 Célia Marli Menezes Araújo É moradora da comunidade de Limões Filha do senhor Flávio Mendes de Menezes e da senhora Eponina Almeida de Menezes Célia nasceu e foi criada na comunidade de Limões é casada possui filhos as e netos as Ela concluiu o Ensino Médio é lavradora e liderança quilombola promovendo constantemente articulações entre sua comunidade e a VilaCentro Elvira Gomes Damasceno Uma das anciãs mais idosas do grupo Nasceu e foi criada em Cariacá É filha do senhor Alfredo de Jesus e da senhora Eucinda Gomes Damasceno Dona Elvira possui muitos parentes em Tijuaçu de modo especial entre os atores sociais oriundos do núcleo dos Damasceno Ela se define como Congo legítima A anciã se encontra aposentada e é reconhecida na comunidade como contadora das histórias do Cariacá Epifânio Ferreira Damasceno Ancião muito conhecido e querido na comunidade Seu Epifânio é apontado em Cariacá como contador da história do grupo Ele nasceu e foi criado na comunidade onde também constituiu família o ancião é casado tem filhos as e netos as Filho do senhor José Gomes Damasceno e da senhora Fermina Ferreira Damasceno Seu Epifânio é lavrador aposentado e tem parentes no quilombo contemporâneo de Tijuaçu mais precisamente entre o núcleo dos Damasceno Ermínia Gonçalves de Souza É moradora da comunidade de Teiú e a pessoa mais idosa do grupo Filha do senhor João Gonçalves da Silva e da senhora Adelaide Pereira Brito Dona Ermínia assim como os seus pais nasceu e foi criada na comunidade onde também constituiu família possuindo filhos as netos as e bisnetos as A anciã é lavradora aposentada 394 Eurides Pereira Brito O ancião nasceu em Cariacá de Cima e mora na comunidade de Teiú desde os dois anos de idade O pai de seu Eurides iniciou o povoamento da comunidade de Teiú Eurídes é mais conhecido como Seu Nem e é o morador mais velho da comunidade Filho do senhor Galdino Pereira Brito e da senhora Noêmia Pereira Brito O ancião é lavrador aposentado e articulador da causa quilombola em sua comunidade participando ativamente das reuniões da AQCA Fernando do Monte Ancião muito apreciado e conhecido na comunidade É liderança quilombola A casa de Seu Fernando foi utilizada como espaço para muitas rodas de conversa durante as primeiras movimentações para a certificação da comunidade Ele é sogro de Valmir dos Santos e pai da atual presidente da Associação Quilombola Geovane da Silva Oliveira Liderança quilombola na Vilacentro e participante do Quilombart No momento presente ele atua como organizador de quadrilhas juninas e performances de dança ao longo do território quilombola Geovane concluiu o curso de Pedagogia e é professor de dança Glícia Milena Gomes da Silva Liderança quilombola na VilaCentro capoeirista desenhista criadora e organizadora do grupo Quilombart Filha da senhora Raquel Gomes da Silva que é liderança quilombola e do senhor Eduardo Freire da Silva Glícia Milena é sobrinha de Rosângela Gomes que é reconhecida como uma das lideranças mais ativas da comunidade Milena é estudante do curso de Pedagogia e exerce suas funções de trabalho como professora de dança em uma escola da rede privada de Senhor do Bonfim 395 Isabel Vítor de Souza É moradora da comunidade de Cariacá de Baixo onde nasceu e foi criada Filha do senhor Antônio Vítor de Souza e da senhora Ermenegilda de Almeida O pai de D Isabel também nasceu em Cariacá de Baixo D Isabel é lavradora e liderança quilombola Ela promove articulações políticas entre sua localidade e a comunidade de Cariacá de Cima Ivone Gonçalves de Souza Moradora da comunidade de Limões para onde se mudou após o casamento com um rapaz dessa comunidade Ela nasceu em Cariacá de Baixo e é filha do senhor Isaías Gonçalves de Santana e da senhora Edite Delmira da Silva D Ivone é liderança quilombola Trabalha como agente de saúde nas localidades do perímetro quilombola de Cariacá Ela fundou a capela de Nossa Senhora da Conceição Aparecida em Limões e organiza as atividades religiosas promovendo interações entre a capela de Nossa Senhora Aparecida e a capela de Santa Rita na Vilacentro D Ivone se reconhece como afroindígena Ítala Raiane de Oliveira Juvino Integrante do grupo Quilombart é capoeirista e liderança quilombola na VilaCentro Filha da senhora Raquel Gomes de Oliveira e do senhor Francisco Souza Juvino É estudante do Ensino Médio e pretende cursar Universidade Jéssica Saldanha dos Santos É vicepresidente da Associação Quilombola de Cariacá e Adjacências AQCA e participa dessa entidade desde o ato de sua fundação Uma das lideranças mais conhecidas do grupo devido ao trabalho comprometido que realiza Concluiu o curso de Pedagogia é Técnica em Enfermagem e trabalha em Senhor do Bonfim especificamente na área de Saúde Jéssica é casada e mãe de uma menina 396 Joice Milene Nascimento de Oliveira Joice é neta do senhor Manuel Julião Dias identificado na comunidade como o pai dos Congos Joice Milene é liderança quilombola e participante do grupo Quilombart Concluiu o Ensino Médio e pretende cursar Universidade José Pedro dos Santos O ancião faleceu no segundo semestre de 2017 aos 104 anos de idade Seu José Pedro era mais conhecido em Cariacá pelo seu apelido de José Preto e ocupava o lugar de pessoa mais velha do grupo Ele fixou residência em Cariacá de Cima e também morou muitas vezes em Cariacá de Baixo empreendeu algumas migrações ao longo de sua vida para cidades do sul da Bahia em busca de trabalho Considerado um repositório de sabedoria contador de casos e narrador da história da comunidade O ancião trabalhou como tropeiro agricultor vendedor e antes de falecer ainda fabricava tijolos Laíse de Oliveira Souza Juvino Integrante do grupo Quilombart liderança quilombola capoeirista e estudante de Ciências da Natureza na Universidade Federal do Vale do São Francisco UNIVASF Filha da senhora Raquel Gomes de Oliveira e do senhor Francisco Souza Juvino Laíse organiza seu tempo procurando conciliar as atividades da vida acadêmica e as atividades que desenvolve na comunidade mais precisamente aquelas que se referem ao ativismo na causa quilombola Luciana de Freitas Silva É liderança quilombola repentista poetisa organizadora de atividades culturais e professora aposentada D Luci é uma das anciãs mais conhecidas e procuradas de Cariacá Além de quilombola ela se reconhece como afroindígena 397 D Luci exerce um papel importante no que se refere à espiritualidade do grupo pois é rezadeira prepara beberagens receita banhos de folha e é cuidadora de Santo Ela se declara católica e participa ativamente da reza do terço assim como das atividades desenvolvidas nas capelas de Santa Rita de Cássia e de São Sebastião Luzia Gomes É a cuidadora da capela de São Sebastião Seu nome é uma homenagem a Santa Luzia devido ao fato de D Luzia ter nascido no dia da Santa de quem se declara devota A interlocutora é mais conhecida na comunidade pelo apelido de Lúcia Para D Lúcia sua vida possui uma relação direta com as práticas religiosas que adota haja vista que quase todos os membros de sua família nasceram em dias considerados santos e assim como ela possuem seus nomes próprios associados ao dia do Santo padroeiro Filha do senhor José Gomes de Souza e da senhora Maria Calixta Gomes D Lúcia mora na VilaCentro e tem muitos parentes na comunidade de Limões Manuel Julião Dias O ancião é considerado o pai dos Congos e faleceu em 2015 Conhecido como Seu Menininho ele nasceu e morreu em Cariacá Se afastou algumas vezes da comunidade sobretudo em períodos de seca Fez isso em busca de trabalho nas muitas frentes de serviço que existiam no sul da Bahia Além de narrar à história do grupo Seu Menininho afirmava a existência da escritura de compra da Fazenda Cariacá por seus antepassados Antes de falecer o ancião concedeu duas entrevistas muito significativas para a construção desta tese Maria da Silva Dias A anciã reside na VilaCentro É muito querida e conhecida na comunidade Ela organiza e participa das atividades religiosas na capela de Santa Rita de Cássia D Maria é mãe de Tânia Dias 398 Maria da Silva Neris A anciã foi cuidadora da capela de São Sebastião e durante muito tempo participou de atividades contribuindo para o ativismo na causa quilombola D Maria Neris conforme é conhecida se mudou para a cidade de Senhor do Bonfim devido a um problema de saúde O sentimento de pertença que a anciã mantém em relação ao grupo e mais precisamente à Família Congo é o que lhe faz voltar sempre uma vez por mês para passar um final de semana ou ainda alguns dias em sua antiga casa na comunidade e em companhia de seus parentes e amigos Maria José de Ermínio É liderança quilombola e moradora da comunidade de Cruzeiro Filha do senhor Silvério de Lima e da senhora Luzia Chagas Dias Ela é casada tem filhos as e netos as Dona Maria promove articulações entre a Associação Quilombola de Cruzeiro e a AQCA Maria José do Nascimento Liderança quilombola e participante da AQCA desde o ato de sua fundação As primeiras movimentações para a formação da Associação Quilombola foram iniciadas em muitos momentos na casa de D Maria e com a participação direta de membros da sua família Filha do senhor Ermilton Ermenegildo Nascimento e da senhora Djanira Brito Nascimento que foi professora na comunidade Dona Maria nasceu e foi criada em Cariacá Ela trabalhou ao longo de sua vida como lavradora e também desenvolvendo a função de zeladora na Escola Municipal de Cariacá Na atualidade D Maria se encontra aposentada e passa a maior parte do dia cuidando dos seus netos as Mônica França Dias É liderança quilombola e organizadora das atividades religiosas na capela de Santa Rita de Cássia Mônica é casada mãe de dois filhos Concluiu o Ensino Médio e deseja cursar Universidade 399 Regina dos Santos Araújo Uma das principais organizadoras das atividades religiosas que são praticadas nas capelas de Santa Rita de Cássia e de São Sebastião Regina trabalha com a organização de festas infantis principalmente festas de aniversário Além disso costuma entregar semanalmente encomendas de doces e salgados Ela é casada possui filhos as e netos as Rosângela Gomes de Oliveira Uma das lideranças mais conhecidas da comunidade e membrofundadora da Associação Quilombola Filha do senhor Januário Batista de Oliveira e da senhora Rosa Gomes de Oliveira Ela é tia de Glícia Milena Participante das atividades religiosas nas capelas de Santa Rita de Cássia e de São Sebastião A interlocutora é mais conhecida em Cariacá pelo apelido de Ninha Rosângela é armadora de Judas trabalhou como lavradora e está aposentada Tânia Maria da Silva Dias Liderança quilombola e membrofundadora da AQCA Filha do senhor Pedro Julião Dias e da senhora Maria da Silva Dias Tânia nasceu e viveu a maior parte de sua vida em Cariacá se afastou algumas vezes da comunidade quando esteve trabalhando em São Paulo Ela é costureira técnica em enfermagem cuidadora de idosos e cursa faculdade de Pedagogia Ubirajara de Jesus Liderança quilombola membrofundador da AQCA e participante das atividades religiosas na capela de São Sebastião Seu Ubirajara concluiu o Ensino Médio deseja cursar Universidade e é funcionário concursado na Prefeitura Municipal de Senhor do Bonfim Ele exerce suas atividades de trabalho na VilaCentro de Cariacá atuando no setor de limpeza 400 ANEXO 13 PERFIS INDIVIDUAIS DOS SUJEITOS DA PESQUISA MORADORES DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE LAJEDO Alberto Santana de Azevedo É membrofundador da Associação dos Pequenos Agricultores da Comunidade Quilombola de Lajedo APACQL Já foi presidente da Associação Possui uma participação ativa na comunidade mantendo uma atitude de liderança Morador da região dos Félix Alberto é irmão de D Idália e filho de D Roxa Seu Alberto é agricultor Além de praticar a agricultura de subsistência ele comercializa os produtos de sua roça em feiras livres da região de modo particular na feira livre da cidade de Saúde Antônio José Clementino dos Santos Conhecido na comunidade pelo apelido de Heranga O interlocutor mantém uma participação ativa na Associação Quilombola Ele é filho do senhor Albino Clementino dos Santos e da senhora Valdevina Rosalina dos Santos É casado pai de dois filhos e sobrinho de D Miúda Seu Heranga além de ser agricultor monta barraca na feira livre onde comercializa principalmente a farinha Armando João dos Santos Morador da região dos Aprígio filho do senhor João Joaquim dos Santos e da senhora Dejanira Maria de Jesus Seu Armando é casado com D Rosa e suas filhas atualmente moram em São Paulo O interlocutor nasceu e foi criado em Lajedo se afastou da comunidade em alguns períodos de sua vida quando esteve trabalhando em São Paulo Minas Gerais e Goiás Na atualidade ele se encontra aposentado trabalha em sua roça e por vezes monta barraca na feira livre do município de Saúde Seu Armando é sanfoneiro e por vezes anima os festejos em sua comunidade e em comunidades vizinhas 401 Dejanira Maria de Jesus É a anciã mais idosa da comunidade No momento presente ela reside na cidade de Saúde Quando residiu em Lajedo foi moradora da região dos Aprígio D Deja conforme é conhecida é viúva mãe dos senhores Armando e Arnaldo A interlocutora além de ter sido agricultora é costureira Domingas Rosalina dos Santos A única parteira viva da comunidade D Domingas é mais conhecida em Lajedo e em toda a região do contínuo étnico que circunda a comunidade pelo apelido de D Miúda Ela é filha do senhor João Pedro dos Santos e da senhora Rosalina Antônia de Jesus Dona Miúda nasceu na comunidade quilombola de Coqueiro e se mudou para a comunidade de Lajedo em companhia de seus pais Ela é moradora da região de Várzea Comprida Dona Miúda relatou que começou suas atividades de parteira acompanhando sua mãe e que além de ter aprendido a partir dos ensinamentos maternos ela afirma que aprendeu ser parteira com as necessidades da vida Muito estimada por todos na comunidade D Miúda é uma das poucas idosas que permanece no território Eulina Carmelina de Santana A anciã é conhecida entre seus parentes e amigos pelo apelido de D Roxa No momento presente ela reside em Saúde Em Lajedo foi moradora da região dos Félix D Roxa é mãe de D Idália e dos senhores Joaquim e Alberto que residem em Lajedo e são moradores da região dos Félix A anciã que trabalhou toda a sua vida nos cuidados com a terra está aposentada e se dedica principalmente aos cuidados com os netos e a prática de atividades religiosas D Roxa é rezadeira se declara católica e devota de Nossa Senhora da Saúde 402 Euvira Passos de Sena D Euvira é uma das anciãs que migrou de Lajedo para a cidade de Saúde É filha do senhor Firmino e da senhora Raimunda que também nasceram em Lajedo D Euvira não se recorda o sobrenome dos seus pais Ela trabalhou na agricultura na extração do coco babaçu e afirmou que encontrou pequenas pepitas de ouro no rio que atravessa a comunidade Entre os anciãos que deixaram o grupo D Euvira não mais retornou ao território devido às dificuldades de locomoção que ela enfrenta A anciã anda com bastante dificuldade Afirma que sente muita falta da comunidade e das vivências que lá estabeleceu Ela foi moradora da região dos Félix Francisco João dos Santos O ancião é mais conhecido pelo apelido de Sariabo Ele é contador de casos de piadas gosta de cantar xulas e de tocar violão Foi morador da região dos Aprígio e atualmente também reside na cidade de Saúde Seu Sariabo é filho do senhor João dos Santos e da senhora Rosalina Antônia de Jesus que também nasceram e viveram em Lajedo Na atualidade todos os filhos de Seu Sariabo residem fora da comunidade alguns moram em Saúde e outros estão em São Paulo O ancião está aposentado e mora sozinho em sua residência Ele espera com certa ansiedade a chegada do dia de sábado quando vai à feira principalmente com o objetivo de rever seus parentes e amigos de Lajedo que montam barracas para comercializar os produtos cultivados em suas roças Gilberto Inocêncio dos Santos É membrofundador da Associação Quilombola Foi o primeiro presidente dessa entidade e mobilizou esforços para organizála e registrála Mantém uma postura de ativismo na comunidade colaborando para que todos os assuntos referentes à causa quilombola sejam bem resolvidos Ele é filho do senhor José Maurício de Jesus e da senhora Judite Lauzira de Jesus Seu Gilberto é também conhecido na comunidade pelo apelido de Beto ele mora na região dos Inocêncio e é casado com a senhora Mariene 403 Gisele Juracy Santos de Jesus A anciã reside em Saúde É filha do senhor Manoel Picinino de Jesus e da senhora Francisca Maria de Jesus Seus pais eram moradores da comunidade de Coqueiro e migraram para o Lajedo onde D Gisele nasceu foi criada e constituiu família A anciã trabalhou na agricultura em casas de farinha e na procura do ouro de aluvião no leito dos rios que banham a comunidade Na atualidade ela se encontra aposentada está viúva e se dedica aos cuidados e educação dos netos Idália Santana de Azevedo É membrofundadora da Associação Quilombola e liderança na comunidade Dona Idália é esposa de Seu João Colado mãe de Rose e de Zé Moradora da região dos Félix ela nasceu e foi criada em Lajedo A interlocutora é filha de D Roxa e irmã dos senhores Alberto e Joaquim Dona Idália trabalha como agricultora em sua roça onde desenvolve a técnica de irrigação por gravidade além disso comercializa os produtos que cultiva ao lado da família em diversas feiras livres da região a saber Mirangaba Saúde Quixabeira e Jacobina João Aceno Gabriel Pereira É mais conhecido na comunidade pelo seu apelido de João Colado e uma das lideranças mais respeitadas em perspectiva interna e no entorno do contínuo étnico no qual reside em companhia de sua família Filho do senhor Aceno Gabriel Pereira e da senhora Adeltina Martins Pereira os pais de Seu João são oriundos da comunidade quilombola de Palmeira O interlocutor nasceu em São Paulo e veio morar na comunidade quilombola de Palmeira quando contava doze anos de idade Ele reside em Lajedo há trinta anos desde que se casou com D Idália Seu João Colado é agricultor trabalha em sua casa de farinha e comercializa seus produtos nas feiras livres da região Sua personalidade e carisma permite que seja uma das pessoas mais procuradas do grupo Sua residência serve como referência para os principais assuntos discutidos na comunidade 404 Joaquim dos Santos Um dos poucos anciãos do grupo que ainda reside na comunidade Ele é morador da região dos Aprígio Filho do senhor João Joaquim dos Santos e da senhora Maria Helena dos Santos Seu Joaquim é casado possui filhos e netos Ele nasceu e cresceu em Lajedo apenas se afastou da comunidade quando esteve trabalhando em São Paulo e ao regressar não saiu mais da comunidade Seu Joaquim permanece trabalhando em sua roça cuidando dos cavalos e de seu galináceo Joaquim Santana de Azevedo É o atual presidente da Associação Quilombola e participa dessa entidade desde o ato de sua fundação Seu Joaquim é casado com Juce tem filhos e reside na região dos Félix Ele é irmão de D Idália e de Seu Alberto Filho do senhor Joel Bispo de Azevedo e da senhora Eulina Carmelina de Santana D Roxa O interlocutor nasceu e cresceu em Lajedo nunca se afastou da comunidade Seu Joaquim é agricultor e comercializa seus produtos em feiras livres da região José Santana de Azevedo Filho do senhor João Colado e da senhora Idália Ele é mais conhecido em Lajedo pelo apelido de Zé O interlocutor além de agricultor é estudante e se casou recentemente com uma moça da comunidade de Palmeira ele é pai de uma menina Judite Lauzira de Jesus A anciã reside atualmente em Saúde Filha do senhor Avelino Ferreira da Cruz e da senhora Leomira Pastora Rosa de Jesus Dona Judite nasceu e foi criada em Lajedo Saiu da comunidade após ter ficado viúva e ainda por causa da idade Ela era moradora da região dos Inocêncio e é mãe de Seu Gilberto 405 Maria do Rosário de Jesus Dona Maria do Rosário é uma das poucas anciãs que ainda reside em Lajedo Mora na região dos Aprígio vizinha ao senhor Timóteo que é seu filho D Maria é filha da senhora Maria das Dores e do senhor Francisco de Jesus Ela nasceu na região de Várzea Comprida e se mudou para a região dos Aprígio quando se casou A interlocutora é viúva e se dedica a trabalhar em sua roça e na casa de farinha Mariene Isautina dos Santos Dona Mariene é liderança quilombola e participa da associação desde o ato de sua fundação Filha do senhor Joelino Davino dos Santos e da senhora Isautina Maria de Jesus ela nasceu e foi criada em Lajedo onde também constituiu a sua família D Mariene é esposa de Seu Gilberto tem filhos e netos Ela é moradora da região dos Inocêncio Narcisa Inocêncio dos Santos É liderança quilombola e participa ativamente de todas as reuniões da associação assim como de todas as pautas de luta da causa quilombola D Narcisa é moradora da região dos Inocêncio Ela divide seu tempo se dedicando à criação dos filhos e ao desenvolvimento de atividades agrícolas lavrando suas roças Rosália Matias dos Santos Dona Rosa conforme é conhecida na comunidade é filha do senhor Avelino Barbosa de Almeida e da senhora Francisca Matilde de Almeida Ela nasceu em Mirangaba e mora em Lajedo há quarenta e três anos desde que se casou com Seu Armando A interlocutora foi professora do grupo até se aposentar Atualmente dedicase à agricultora cuidando de sua roça ao lado do marido na região dos Aprígio 406 Roseane Santana de Azevedo Rose como é chamada por seus parentes e amigos nasceu e foi criada em Lajedo Atualmente ela se movimenta entre sua comunidade de origem e a comunidade quilombola de Palmeira onde foi morar após o casamento com Moisés Rose é a secretária da Associação Quilombola de Lajedo Ela concluiu o Ensino Médio estudando em Mirangaba e deseja cursar faculdade de Assistência Social Filha do senhor João Colado e de D Idália Rose é bastante conhecida e querida em todo o contínuo étnico da Grota Quilombola Rose é agricultora e comercializa os produtos que cultiva na roça ao lado dos seus pais e do esposo em feiras livres da região Timóteo Joaquim Santos Seu Timóteo é morador da região dos Aprígio Ele é filho do senhor Manoel Joaquim Santos e da senhora Maria do Rosário de Jesus Santos Atua como liderança quilombola Seu Timóteo é agricultor e comercializa os produtos cultivados em sua roça principalmente na feira livre da cidade de Saúde 407 ANEXO 14 PERFIS INDIVIDUAIS DOS SUJEITOS DA PESQUISA MORADORES DA COMUNIDADE QUILOMBOLA GROTA DAS OLIVEIRAS Arquimino dos Santos Ancião muito conhecido e querido na comunidade Filho do senhor Siriaco dos Santos e da senhora Isaura dos Santos Ele foi uma das primeiras pessoas a chegar a Grota das Oliveiras Seu Arquimino é casado com D Nina e é pai de Joseline Na atualidade o ancião que além de agricultor também já foi vaqueiro se encontra aposentado Ele se dedica aos cultivos agrícolas em sua roça assim como ao trabalho na casa de farinha da comunidade Eliane dos Santos É liderança quilombola organizadora e participante do Samba de Palmas e Versos e se dedica as atividades religiosas realizadas em sua comunidade D Eliane é nora de Dona Miúda Ela concluiu o Ensino Fundamental I é agricultora e comercializa os produtos de sua roça na feira livre da cidade de Saúde Guilherme João da Silva O senhor Guilherme é a primeira pessoa entre os adultos que nasceu na comunidade Filho do senhor João José da Silva e da senhora Judite Francisca de Jesus Seu Guilherme é alfabetizado é agricultor comercializa os produtos de suas roças em feiras livres da região e é liderança quilombola 408 João José da Silva Seu João foi a primeira pessoa a chegar à comunidade Ele é pai de Seu Guilherme O interlocutor é um dos anciãos mais conhecidos principalmente devido as suas práticas de benzer e dar remédios Seu João é rezador e prepara beberagens fato que faz dele uma pessoa muito procurada inclusive por sujeitos de comunidades vizinhas Na atualidade ele se encontra aposentado e permanece trabalhando em sua roça Jorge dos Santos É presidente da Associação Quilombola e participante do Samba de Palmas e Versos Seu Jorge é casado e tem filhos Ele é alfabetizado é agricultor comercializa os produtos de sua roça em feiras livres da região e possui um bar ao lado de sua residência Geralmente é na casa de Seu Jorge que acontecem boa parte das reuniões e comemorações da comunidade Joseline Santos Gomes Filha de D Nina de Arquimino Joseline é liderança quilombola e está sempre na comunidade Ela mora na cidade de Saúde desde que se casou Sua residência às sextas feiras funciona como local de apoio e estadia para as pessoas da comunidade que colocam barracas na feira livre de Saúde que acontece aos sábados Joseline concluiu o Ensino Médio e deseja cursar universidade Maria de Lurdes dos Santos É liderança quilombola participante dos Samba de Palmas e Versos e organizadora das atividades religiosas da comunidade D Maria de Lurdes é casada e tem filhos Ela concluiu o Ensino Fundamental I é agricultora e comercializa os produtos de sua roça na feira livre da cidade de Saúde 409 Marilene Sena dos Santos Liderança quilombola organizadora e participante do Samba de Palmas e Versos Dona Nina de Arquimino conforme é conhecida organiza as atividades religiosas da comunidade e ao lado de Seu Jorge foi uma das principais responsáveis pela construção do cruzeiro de Nossa Senhora Aparecida que se encontra assentado na serra mais elevada que cerca a comunidade D Nina é mãe de Joseline e de mais oito filhos Ela veio de Lajedo para a Grota das Oliveiras quando ficou viúva Em Grota das Oliveiras ela se casou com Seu Arquimino Roseni Sena dos Santos É liderança quilombola participante do Samba de Palmas e Versos e organizadora das atividades religiosas da comunidade Dona Rosa é casada tem filhos e é agricultora
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA UFBA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS FFCH CENTRO DE ESTUDOS AFROORIENTAIS CEAO PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓSGRADUAÇÃO EM ESTUDOS ÉTNICOS E AFRICANOS Estuciando o Barulho do Quilombo no Sertão Cariacá e Lajedo entrelaçares identitários insurgências lutas e resistências Paula Odilon dos Santos Orientadora Profa Dra Maria Rosário Gonçalves de Carvalho Salvador Bahia 2021 PAULA ODILON DOS SANTOS Estuciando o Barulho do Quilombo no Sertão Cariacá e Lajedo entrelaçares identitários insurgências lutas e resistências Tese de Doutorado apresentada ao Programa Multidisciplinar de Pósgraduação em Estudos Étnicos e Africanos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas FFCH Universidade Federal da Bahia UFBA como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Estudos Étnicos e Africanos Orientadora Profa Dra Maria Rosário Gonçalves de Carvalho Salvador Março de 2021 Biblioteca CEAO UFBA S237 Santos Paula Odilon dos Estuciando o barulho do quilombo no Sertão Cariacá e Lajedo entrelaçares identitários insurgências lutas e resistências Paula Odilon dos Santos 2021 355 f Orientadora Profª Drª Maria Rosário Gonçalves de Carvalho Tese doutorado Universidade Federal da Bahia Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Centro de Estudos ÀfroOrientais 2021 1 Comunidades quilombolas 2 Sertão BA 3 Identidade s I Carvalho Maria Rosário Gonçalves de II Universidade Federal da Bahia Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Centro de Estudos Áfro Orientais III Título CDD 3253 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA UFBA PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓSGRADUAÇÃO EM ESTUDOS ÉTNICOS E AFRICANOS TESE DE DOUTORADO Estuciando o Barulho do Quilombo no Sertão Cariacá e Lajedo entrelaçares identitários insurgências lutas e resistências Autora Paula Odilon dos Santos BANCA EXAMINADORA Profa Dra Maria Rosário Gonçalves de Carvalho Orientadora Programa de Pósgraduação em Estudos Étnicos e Africanos PósAfro UFBA Profa Dra América Lúcia Silva Cesar Programa de Pósgraduação em Estudos Étnicos e Africanos PósAfro UFBA Prof Dr Claudio Alves Furtado Programa de Pósgraduação em Estudos Étnicos e Africanos PósAfro UFBA Profa Dra Cristiane Batista da Silva Santos Programa de Pósgraduação em Educação PPGE UESC Profa Dra Paula Cristina da Silva Barreto Programa de Pósgraduação em Ciências Sociais PPGCS UFBA À Espiritualidade que me guia e à Ancestralidade que me ampara AGRADECIMENTOS Agradecer em parte significa contemplar o infinito buscando aquilo que se deseja assim como olhar para trás e observar a extensão dos caminhos percorridos bendizendo aqueles as que seguem contigo e que te veem de perto sendo igualmente grata aos que ficaram em um ponto importante da estrada haja vista que esta é atravessada por um processo de longevidade que jamais termina Na jornada empreendida permitome agradecer ao universo Invisível e visível que me cerca e que se fazem importantes em minha existência pessoal acadêmica profissional e principalmente espiritual já que os considero em parte sementes e pétalas de luz cujo perfume e fruto sinto e colho à medida que caminho sejam a passos lentos e ou apressados contudo sempre alcançados por aqueles as nos quais sinceramente acredito e reverencio Dos recônditos mais profundos da minha alma agradeço A Deus Força suprema e sublime na qual creio e deposito sonhos angústias medos e esperanças Presumo que vem Dele as mãos que senti impulsionando minhas costas todas as vezes que me dirigi à cidade do Salvador com o propósito de estudar Essa é uma experiência que me tranquiliza traz serenidade e ajudou a continuar mesmo quando algumas dificuldades apareceram e me fizeram pensar em trancar ou desistir do curso todavia desistir é para aqueles as que se fragilizam ou quebram no meio com facilidade A presença das Mãos me recordava quem eu sou uma cabocla sertaneja e como tal conforme enunciou o jornalista Euclides da Cunha o sertanejo é antes de tudo um forte acrescento a essa frase uma observação advinda do meu lugar de fala ou seja além de forte assim como a caatinga sobrevivemos e nos renovamos a cada estação movimentando o ciclo que floreia a vida A Jesus de Nazaré cuja transcendência me encanta Em muitos momentos das labutas da vida me deixo guiar por sua suavidade e amor sendo meu irmão e pai de fato o tenho como modelo e guia Colo da minha tristeza confidente dos meus projetos e alegrias Aprendi a sentilo em três representações com as quais dialogo e que significam para mim resistência misericórdia e luz Desse modo agradeço ao Senhor Bom Jesus da Lapa a Jesus Misericordioso e ao Bom Jesus do Bonfim três representações distintas mas que sempre me falam na linguagem que eu posso ouvir À Senhora Iemanjá dona de meu Ori e das subjetividades que emanam do meu ser É ela que sempre toma minha guerra fazendo toda a areia necessária para me proteger das tempestades que por vezes se apresentam no caminho Moça bonita e docemente forte que influencia minha personalidade e direciona atitudes À Maria de Nazaré espírito iluminado em quem confio e a quem me curvo para levantar mais forte À Nossa Senhora da Conceição Aparecida por sua interseção tão presente em minha vida e por me encontrar em todas as demandas À Santa Bárbara e a Santa Luzia por sua força e proteção À Cabocla Jurema das Matas ela que através de sua simplicidade e sabedoria tem me ensinado a enxergar fatores que nem sempre consigo divisar por mim mesma Agradecer a Espiritualidade à qual me consagrei e que me guarda se faz sumamente importante nesse momento por que sei que devo a eles os caminhos abertos para a realização desse estudo assim como para continuar caminhando De igual modo desejo estender os agradecimentos àquelas e àqueles que partilham comigo a existência e que em muitas circunstâncias são apoiadores cúmplices e estimuladores dos desejos que carrego na alma À minha mãe Olindina fonte de amor incondicional Mulher de personalidade forte cuja bravura e caráter sempre foram referências em minha vida sobretudo quando através de suas posturas é capaz de desafiar nosso contexto e os lugares que o sertão elencou para as mulheres As rezas e os benzimentos de minha mãe influenciam em muitos momentos o equilíbrio espiritual que necessito para continuar as travessias que me proponho Ao meu irmão Washington Ninho pelos cuidados em todas as circunstâncias e pelo seu bom humor invejável capaz tanto de me tirar do sério quanto de me fazer sorrir trazendo um pouco mais de graça ao nosso cotidiano À minha avó Laurentina dona Loló in memoriam mulher sertaneja que com suas rezas benzimentos leituras e ensinamentos ajudou a modelar nossa trajetória enquanto família Mesmo ausente fisicamente sintoa perto de nós Aos pequenos Luna e Bóris meus dois grandes amores de patinhas felpudas e olhos brilhantes Ao amigo e compadre Valmir dos Santos da comunidade quilombola de Tijuaçu por seu apoio e esclarecimentos constantes Permaneço imensamente agradecida aos atores sociais das comunidades quilombolas de Cariacá Lajedo e Grota das Oliveiras por terem me recebido na intimidade de suas vidas e de suas residências colaborando ativamente para que esta tese fosse escrita Além das narrativas e informações agradeço principalmente a acolhida que recebi dos mesmos as a troca de saberes e o afeto compartilhado haja vista que esse é o único sentimento que enobrece a alma É sincero o carinho que nutro por todas essas pessoas contudo quero agradecer precisamente à dona Luci detentora de uma alma perfumada À Naide D Maria Seu Fernando e os pequenos Valentina e Vinícius meus afilhados pela acolhida em suas casas pela companhia nas atividades e principalmente por me fazerem sentir tão bem entre os mesmos À D Antônia Joice Milene Ítala Raiane e Geovane à Ninha Milena e o pequeno Luquinhas à Jéssica moça valente e destemida Sou grata também à D Ivone à Tânia e à D Maria Dias à Regina José Nunes Mônica e a Sorriso por sempre me facultarem o encontro entre a pesquisadora e a mulher de fé Aos senhores Menininho e José Preto in memoriam Seu Epifânio Seu Nem D Adelaide D Raquel Seu Bira e a D Elvira que de maneira muito simpática conversaram muito comigo Enfim a toda população da comunidade quilombola de Cariacá pois mesmo aqueles as com quem não dialoguei e ou entrevistei diretamente sem exceção contribuíram para minha estadia ali e geralmente me recebem com uma cortesia que me faz desejar ficar Agradeço particularmente à Rose minha anfitriã e companhia constante em Lajedo à D Dália Seu João Colado e ao Zé que cuidadosamente me ajudava a subir serras e andar por trilhas temendo que eu pudesse deslizar e cair aos senhores Gilberto Joaquim Alberto e Heranga à senhora Mariene dona de uma personalidade amorosa e discreta sempre muito preocupada com meu bem estar à D Maria do Rosário Seu Timóteo à professora Rosa e Seu Armando à Juci Narcisa e Seu Valdevino à D Miúda mulher fascinante e em grande parte responsável pela renovação do fluxo da vida em sua comunidade À D Roxa Valvínia Mili e Alberto meu carinho e terno agradecimento sentimento que estendo a toda a população de Lajedo que além da alegria da convivência me legaram o exemplo de suas lutas e resistências A Joseline Seu Jorge D Nina e Seu Arquimino a Eliane Vânia e Seu João amigos queridos da comunidade quilombola de Grota das Oliveiras Pegando carona nos braços do Rio Itapicuruaçu até os mares de Salvador desejo agradecer àqueles as que conheci na Universidade Federal da Bahia UFBA e que muito contribuíram para meu amadurecimento enquanto pesquisadora itinerante Assim sendo sou grata à Professora Doutora Maria Rosário de Carvalho minha orientadora pela acolhida esclarecimentos e por que juntas escrevemos o texto que apoia esta tese Os comentários e intervenções da professora Rosário desde o mestrado foram norteadores para os caminhos que desejo percorrer Ao Professor Doutor Claudio Furtado a quem admiro sinceramente por sua sensibilidade e respeito na convivência com os acadêmicos as e ainda por seus comentários altamente esclarecedores durante as aulas e após esse período À Professora Doutora América César cuja gentileza e nobreza de alma se fazem referência em minha caminhada Aos professores as Paula Barreto Marcelo Cunha Ângela Figueredo Jeferson Bacelar e Jocélio Teles por suas aulas e atenção que me foram dispensadas À Lindinalva Barbosa pelo carinho de sempre Aos colegas de curso de modo especial a Benedito Bené pelos diálogos e cumplicidade no que se refere as nossas pesquisas A todos aqueles as que me encontraram e que divisei ao longo do caminho enternecida digo obrigada Continuemos a caminhar Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e assim descobrindose com eles sofrem mas sobretudo com eles lutam PAULO FREIRE 1968 p 23 RESUMO Esta tese trata do reaparecimento das comunidades quilombolas de Cariacá e Lajedo na porção norte do sertão baiano procurando demonstrar como as mesmas tecem seu processo de construção identitária a partir do momento em que descobrem sua tradicionalidade fator que lhes permite reorientar trajetórias que passam a ser caracterizadas por ciclos sucessivos de ressemantização no decorrer dos quais a redescoberta da etnicidade assume o lugar de linguagem e agencia o rito simbólico de passagem que possibilita o transmutar itinerante da condição de comunidade negra rural relegada ao preconceito racial e à inferiorização social para a construção do significado de comunidade quilombola A costura identitária é pensada nesta etnografia por meio do diálogo estabelecido com o movimento que acontece como um fluxo e que os interlocutores as denominam de Barulho do Quilombo assim como através do encontro entre a pesquisadora e os jeitos de ser e de se perceber quilombola traduzidos através da criatividade que entrelaça os saberes fazeres e vivências descortinados por intermédio das memórias orais cujas narrativas foram primordiais para auxiliar a composição da história dessas comunidades suas labutas e resistências influenciadas em muitos momentos pela espiritualidade capaz de agregar ora as potências divinas ora entidades invisíveis pelas quais se permitem afetar A etnogênese experimentada por esses grupos tem lugar ao longo de um conjunto de etapas a saber a caminhada política mobilizada por suas associações instituições que são tratadas nessa pesquisa como agentes pedagógicos a ressignificação das atividades culturais e a atualização constante de suas religiosidades Em ambos os grupos prevalece uma atitude de contínua reinvenção e autoria Palavraschave comunidades quilombolas Cariacá Lajedo resistências sertão identidade s ABSTRACT This thesis deals with the appearance of the quilombola communities of Cariacá and Lajedo in the northern portion of the Bahian hinterland trying to demonstrate how they weave their identity construction process from the moment they discover their traditionality factor which allows them to reorient trajectories that are characterized by successive cycles of redismantling in which the rediscovery of ethnicity takes the place of language and the symbolic rite of passage that allows the itinerant transmute of the condition of rural black community relegated to racial prejudice and social inferiorization for the construction of the meaning of quilombola community The identity seam is thought in this ethnography through the dialogue established with the movement that happens as a flow and which the interlocutors call the Quilombo Noise as well as through the encounter between the researcher and the ways of being and being to understand quilombola translated through creativity that interweaves knowledge practices and experiences unveiled through oral memories whose narratives were primordial to help the composition of the history of these communities their toils and resistances influenced in many moments by spirituality capable of to aggregate now the divine powers now invisible entities by which they allow themselves to be affected The ethnogenesis crossed by these populations is also demonstrated from the following elements namely the political walk mobilized by their associations institutions that are conceived in this research as pedagogical agents the resignification of cultural activities and the constant updating of their religiosities characters that allow in both groups an attitude of continuous reinvention and authorship Keywords Maroon communities Cariacá Lajedo resistances backcountry identity s RESUMEN Esta tesis trata sobre la aparición de las comunidades quilombolas de Cariacá y Lajedo en la parte norte del interior de Bahía tratando de demostrar cómo tejen su proceso de construcción de identidad desde el momento en que descubren su tradicionalidad factor que les permite reorientar trayectorias que se caracterizan por ciclos sucesivos de desmantelamiento en el que el redescubrimiento de la etnicidad toma el lugar del lenguaje y el rito simbólico del pasaje que permite la transmutación itinerante de la condición de la comunidad negra rural relegada a prejuicio racial e inferiorización social para la construcción del significado de la comunidad quilombola La costura de la identidad se piensa en esta etnografía a través del diálogo establecido con el movimiento que sucede como un flujo y que los interlocutores llaman el ruido Quilombo así como a través del encuentro entre el investigador y las formas de ser y ser comprender quilombola traducida a través de la creatividad que entrelaza conocimientos prácticas y experiencias revelada a través de recuerdos orales cuyas narraciones fueron primordiales para ayudar a la composición de la historia de estas comunidades sus esfuerzos y resistencias influenciados en muchos momentos por la espiritualidad capaces de para agregar ahora los poderes divinos ahora entidades invisibles por los cuales se dejan afectar La etnogénesis atravesada por estas poblaciones también se demuestra a partir de los siguientes elementos a saber la marcha política movilizada por sus asociaciones instituciones que se conciben en esta investigación como agentes pedagógicos La resignificación de las actividades culturales y la constante actualización de sus religiosidades personajes que permiten en ambos grupos una actitud de continua reinvención y autoría Palabras clave comunidades quilombolas Cariacá Lajedo resistencias sertão identidade s LISTA DE IMAGENS Imagem 1 Encontro promovido em campo reunindo os atores sociais de Cariacá Lajedo e Grota das Oliveiras 35 Imagem 2 Entrada da Comunidade 83 Imagem 3 Casarão que pertenceu a D Trindade Muricy 99 Imagem 4 Estrada rural que até junho de 2017 ligou a comunidade de Cariacá até o município de Senhor do Bonfim 104 Imagem 5 Casas localizadas na Rua Cariacá Central 106 Imagem 6 Escola Municipal de Cariacá 109 Imagem 7 Curso estreito do Rio da Prata em Cariacá de Baixo 122 Imagem 8 Capela de Nossa Senhora Aparecida 124 Imagem 9 Lagoa da comunidade de Teiú 126 Imagem 10 Acesso à localidade de Teiú com pontos de alagamento 127 Imagem 11 Estrada de acesso a comunidade de Cruzeiro 129 Imagem 12 Casa que pertenceu a uma Família Congo 130 Imagem 13 Curso de Formação para Lideranças Quilombolas 132 Imagem 14 Da esquerda para a direita Tânia Ninha e Mônica durante o curso de Formação para Lideranças Quilombolas 148 Imagem 15 Glícia Milena Gomes da Silva 151 Imagem 16 D Maria da Silva Neris 155 Imagem 17 D Luzia Gomes 156 Imagem 18 D Luciana de Freitas Silva 158 Imagem 19 Bandeira da AQCA 163 Imagem 20 I Encontro do Novembro Negro em Cariacá 166 Imagem 21 Caminhos que conduzem ao Lajedo 167 Imagem 22 Olho dágua do Rio Preto 170 Imagem 23 Cachoeira do Gelo 182 Imagem 24 Garimpo de Quartzo Verde desativado 184 Imagem 25 Escola Manuel Dias dos Santos 185 Imagem 26 Casa de família quilombola na região dos Félix 187 Imagem 27 Casa de família quilombola na região dos Aprígio 188 Imagem 28 Cozinha da casa de D Mariene 190 Imagem 29 Casa de farinha na região dos Aprígio 193 Imagem 30 Seu Joaquim D Idália Seu João Colado e Seu Valdevino 194 Imagem 31 Dona Miúda 204 Imagem 32 Dona Miúda arrumando lenha em sua cozinha 205 Imagem 33 Reunião da Associação Quilombola 235 Imagem 34 Encontro entre comadres na comunidade Grota das Oliveiras 237 Imagem 35 Via de acesso a Grota das Oliveiras 246 Imagem 36 Reunião em casa de Seu Jorge dos Santos 248 Imagem 37 Roda de Conversa com os moradores 251 Imagem 38 Crianças da comunidade à espera do transporte escolar 253 Imagem 39 Grupo Samba de Palmas e Versos 261 Imagem 40 Cruzeiro de Nossa Senhora da Conceição Aparecida 266 Imagem 41 Subida ao Cruzeiro 268 Imagem 42 Batalhão para cascalhar a estrada 272 Imagem 43 Apresentação do Quilombart na comunidade quilombola de Tijuaçu 274 Imagem 44 Milena contando a história do grupo 281 Imagem 45 Apresentação do Quilombart durante a primeira etapa do curso de Formação para Lideranças Quilombolas 285 Imagem 46 Bandeira do Grupo Quilombart 288 Imagem 47 Almoço Coletivo 293 Imagem 48 Início das Atividades 294 Imagem 49 Roda de Lajedo 297 Imagem 50 Samba do Lajedo 399 Imagem 51 Primeira festa realizada em Lajedo em homenagem a São Benedito 301 Imagem 52 Altar da missa de Santo Antônio em 2019 313 Imagem 53 Capela de São Sebastião 316 Imagem 54 Altar da celebração do dia de São Sebastião em janeiro de 2018 318 Imagem 55 Velas em intenção às almas 320 Imagem 56 Procissão de São Sebastião em 2018 321 Imagem 57 Altar da celebração do dia de São Sebastião em 2020 323 Imagem 58 Andor de Santa Rita de Cássia em 2017 327 Imagem 59 Novenário de Santa Rita de Cássia em 2018 329 Imagem 60 Saída da procissão de Santa Rita 331 Imagem 61 Andor de Santa Rita de Cássia durante o novenário de 2019 332 Imagem 62 Louvação de Seu Alberto a São Benedito 339 Imagem 63 Oratório de São Benedito ao lado da Associação 341 Imagem 64 Entrada para a Festa de São Benedito 342 Imagem 65 Entronização da imagem de São Benedito no andor 344 Imagem 66 Segunda procissão realizada em homenagem a São Benedito em Lajedo em 2019 348 LISTA DE MAPAS E FIGURAS Figura nº 01 Mapa do Consórcio de Desenvolvimento Sustentável do Piemonte Norte do Itapicuru 95 Figura nº 02 Mapa das Estações Ferroviárias do Brasil 101 Mapa 1 Localização da VilaCentro de Cariacá e das localidades do perímetro 120 Mapa 2 Localização da comunidade de Lajedo na Grota Quilombola 171 Mapa 3 Regiões de Lajedo 173 Mapa 4 Organização das residências dos Anciãos de Lajedo que residem em Saúde 228 Mapa 5 Comunidade de Lajedo Grota das Oliveiras e Água Fria 257 LISTA DE TABELAS Tabela 1 Mesadiretora da Associação 165 Tabela 2 Demonstrativo das Famílias de Lajedo agrupadas por região 179 Tabela 3 Demonstrativo da trajetória percorrida pelos moradores as para comercializar os produtos de suas roças em feiras livres da região 195 Tabela 4 Anciãos de Lajedo que residem atualmente em Saúde 225 LISTA DE SIGLAS AAQTA Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências APEB Arquivo Público do Estado da Bahia APAGO Associação dos Pequenos Agricultores de Grota das Oliveiras AQCA Associação Quilombola de Cariacá e Adjacências AQPAL Associação Quilombola de Pequenos Agricultores do Lajedo COELBA Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia CPT Comissão Pastoral da Terra EBDA Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional PARFOR Programa Nacional de Formação de Professores da Educação Básica PSF Posto de Saúde da Família UFBA Universidade Federal da Bahia UNEB Universidade do Estado da Bahia RTID Relatório Técnico de Identificação e Delimitação VFLB Viação Férrea Federal Leste Brasileira CONVENÇÕES GRÁFICAS Em todo o texto da tese o discurso direto expresso pelos interlocutores as é apresentado com letra do tipo itálico para diferenciálo de outras citações As palavras que se encontram apresentadas em aspas duplas de igual modo fazem referências às expressões nativas cuja transcrição foi feita a partir de gravações assim como de anotações realizadas pela pesquisadora ao longo da participação observante Foram conservados os nomes próprios e os apelidos dos atores sociais que participaram da construção desta etnografia com o cuidado de não lhes ocasionar prejuízos de ordem pessoal política e social SUMÁRIO PRINCÍPIOS DA TESE 23 1 ESTUCIANDO O BARULHO DO QUILOMBO 35 11 Conversando com a Negritude Sertaneja 49 111Traçados e Trançados da Negritude Sertaneja 57 112 Prestando Assunto 59 113 Autoridade para botar bença 64 114 O Respeito pelas Horas Mortas a Obediência e o Zelo da Proteção 67 115 Cumprimento da Palavra se fazendo homem e se botando mulher 77 2 CARIRI CARIACÁ 83 21 Uma Comunidade que tece um fluxo Afroindígena 87 212 Vestígios das Terras da Fazenda Cariacá 94 22 Apresentando a VilaCentro 103 221 Andando pelas ruas de Cariacá de Cima 105 222 Percorrendo o Território 119 2221 Cariacá de Baixo 121 2222 A Comunidade de Limões 123 2223 A Comunidade de Teiú 125 2224 A Comunidade de Cruzeiro 128 3 AQUI É TUDO CONGO QUILOMBOLA 132 31 Mulher Congo é Mulher que tem Bigode 141 311 Armadora de Judas e Articuladora da Luta Quilombola Rosângela Gomes de Oliveira 144 312 Da costura de tecidos à tomada de decisões na Associação Quilombola de Cariacá e Adjacências AQCA Tânia Maria da Silva Dias 148 313 Arte de transformar a dança a serviço do sonho para as meninas e meninos da comunidade Glícia Milena Gomes da Silva 150 314 Guardiã da capela de São Sebastião e estimuladora da espiritualidade das mulheres da Família Congo Maria da Silva Neris 154 315 Do trançado da História aos rearranjos do presente Luciana de Freitas Silva 157 32 O nascimento de uma Associação Quilombola é semelhante ao nascimento de uma criança 161 4 AQUI SE TIVESSE UMA ESTRADA TODO MUNDO CONHECIA O LAJEDO 167 41Conhecendo o Lajedo 172 411 Pelejando 191 42 Artes do Nascimento 200 421 Ritos de Parição 206 43 Artes do Casamento 216 44 Artes da Migração 224 45 Quando os ecos produzidos pelo Barulho do Quilombo chegam ao Lajedo 231 5 QUANDO AS RELAÇÕES DE COMPADRIO EXPANDEM OS LAÇOS DO PARENTESCO 237 51Grota das Oliveiras o movimento itinerante dos outros descendentes de Quitero 244 511 De mamando a caducando aqui todo mundo reza e samba 257 512 A Força que vem da Fé um cruzeiro oferecido a Nossa Senhora da Conceição Aparecida 262 52 Representações sobre Ser Quilombola 270 6 QUILOMBART O DESPERTAR DA CULTURA ATRAVÉS DAS RAMAS NOVAS 274 61 Aqui a gente não tem brincadeira nenhuma não 289 7 FÉ ESPIRITUALIDADE E DEVOÇÃO CONVERSAS COM OS ENTRELAÇARES DA UMBANDA SERTANEJA 301 71Quando São Sebastião proteje o Cariacá da fome da peste e da guerra 312 72 Uma rosa para Santa Rita nos valer das causas impossíveis 324 73 Em Lajedo São Benedito veio do rio 333 731 Celebrando o dia de São Benedito 339 CONSIDERAÇÕES FINAIS OU A DIFÍCIL TAREFA DE COLOCAR UM PONTO SEM INTENÇÃO DE FINALIZAR 350 REFERÊNCIAS 355 ANEXOS 23 PRINCÍPIOS DA TESE Peço licença para abrir esta tese atravessando os caminhos que conduzem aos sertões1 que guardam histórias seculares algumas bastante conhecidas outras sufocadas muitas adormecidas e ainda aquelas que apenas recentemente começaram a ser contadas com maior frequência e profundidade entre as quais situo as histórias concernentes aos quilombos sertanejos Esses grupos ao reaparecerem corrigem a considerada história oficial que durante muito tempo permaneceu omissa à existência dessas populações ao mesmo tempo em que demonstram a intensidade do povoamento assim como das construções simbólicas políticas econômicas sociais e culturais modeladas pelos atores sociais negros as que devido à indústria da escravidão foram levados por motivos diversos a migrar para essa parte do país aí permanecendo durante muito tempo despercebidos Não obstante a partir do ano de 1994 estimulados pelos desdobramentos do Primeiro Encontro Nacional de Comunidades Negras Rurais começaram a protagonizar um processo de ressurgência parecido com aquele que se verificou entre muitas etnias indígenas do Nordeste O citado evento começou a promover entre esses agentes o despertar da consciência no que se refere à sua condição de grupo tradicional até então pouco notabilizada talvez por estar metamorfoseada em uma situação camponesa o que possibilitaria o início de um movimento denominado nesta tese de Barulho do Quilombo2 O convite para comparecer ao referido encontro chegou a essas comunidades3 através do trabalho de divulgação e incentivo realizado pelas igrejas Católicas locais mais precisamente por intermédio de grupos ligados à Comissão Pastoral da Terra CPT e em casos específicos a disseminação dessa informação foi feita por padres que atuavam em paróquias onde sabiam existir comunidades divisadas como eminentemente negras De acordo com as narrativas oferecidas pelas vozes do lugar o primeiro desafio a ser enfrentado em alguns desses grupos que não estavam acostumados a esse tipo de discussão foi conseguir representantes que se dispusessem a participar do evento Muitas 1 O sertão baiano é aqui pensado a partir de sua porção norte como se verá nos capítulos subsequentes 2 Conforme descrito de maneira especial no Capítulo 1 3 A partir do comparecimento nessa atividade teve início o processo de emergência das comunidades quilombolas que se encontram localizadas na região norte 24 dessas pessoas não tinham o hábito de sair de suas comunidades para realizar esse tipo de atividade o que suscitou uma espécie de estranhamento em relação ao que estava sendo proposto Ademais o fato de que muitos as nunca haviam ido à capital do Estado provavelmente causou receio do desconhecido É oportuno observar que a condição de ator social negro naquele contexto até então se encontrava associada sobretudo ao preconceito e a atitudes de discriminação muitas das quais sem qualquer tipo de reparação e ou punição O convite recebido representou assim a possiblidade para esses sujeitos se autoperceberem certamente pela primeira vez como visualizados de forma positiva em função de sua ancestralidade4 Escutar e ou estuciar5 os ecos produzidos pelo Barulho do Quilombo significa em parte compreender as diversas formas como esses grupos agenciaram e permanecem agenciando seus modos de vida transformando os espaços ocupados e estabelecendo com os mesmos diálogos nos quais sobressaem os atributos que elegeram para reescrever suas vivências e amparar suas existências Eles acionam princípios ora ancorados no que herdaram de seus ancestrais ora pautados nas ressignificações que estabeleceram à luz de peculiaridades individuais coletivas e geracionais capazes de imprimir nesses espaços sertanejos pouco divisados como guardadores e multiplicadores de legados africanos as marcas de suas etnicidades que atualmente transparecem e são manejadas como sinais comunicantes de suas insurgências labutas e resistências Traduzir as memórias e histórias dessas populações equivale a entrar em contato com o caminhar de sujeitos que ao atravessarem e participarem desse processo de emergência que se faz contínuo mantêm de igual modo a oportunidade de reorientar suas vidas assim como os percursos trilhados por suas comunidades encontrando em sua Negritude6 em seus saberes e vivências outros contornos para reescrever suas trajetórias migrando de posições subalternas a que foram relegados para a construção de suas identidades e autorias Eles atravessam um rito simbólico de passagem que conforme propõe Bartolomé 2006 propicia que velhos atores passem a exercer novos papéis por meio de um 4 As comunidades de Cariacá e Lajedo não enviaram representantes a esse seminário contudo as informações a ambos os grupos chegaram através do senhor Valmir dos Santos e dos contatos estabelecidos com os quilombolas da comunidade de Tijuaçu 5 No âmbito do Capítulo 1 faço referência a esse termo esclarecendo a forma como o mesmo apareceu e é utilizado pelos interlocutores as 6 O vocábulo é aqui disposto de modo a evocar a forma como o mesmo é pensado e descrito ao longo do Capítulo 1 25 processo de etnogênese constante Essa conversão simbólica é por mim pensada mediante os seguintes critérios a A ressemantização da condição de comunidade negra rural preterida ao silenciamento exposta ao racismo e à exclusão social para a construção do significado de comunidade tradicional fato que possibilitou a esses agentes tecer representações positivas sobre si e estender esses significados ao grupo que integram Esse movimento de ressemantização ocorreu tanto em perspectiva individual quanto coletiva isto é no âmbito do próprio grupo o que implicou no ato de transmutação da condição de consciências ingênuas7 para a construção de uma consciência crítica e interventiva capaz de promover modificações internas passíveis de beneficiar o próprio coletivo e estabelecer negociações com a sociedade inclusiva b A luta pela posse e ou reaquisição de suas terras quase sempre expropriadas no passado sob condições que violentam a dignidade humana É pertinente relatar que além de terem tido suas terras usurpadas os quilombolas ainda são apontados como invasores de terras que em tempos pretéritos foram suas e ou de propriedade de seus parentes circunstância essa que além de se constituir em um desrespeito é vista nesta tese como uma contradição presente na narrativa da memória nacional8 De maneira particular quando a situação de expropriação ocorre no contexto dos sertões região caracterizada desde os tempos antigos até a contemporaneidade pela presença de minefeudos de coronéis classe que mantinha e mantém a seu favor o protecionismo do Estado cujos descendentes têm conseguido reproduzir em tempos presentes talvez com menor intensidade e maior discrição os mecanismos de dominação e impunidade capazes de assegurar o status quo A visibilidade conquistada pelas comunidades quilombolas tem sido assim percebida como ameaçadora incomodando sobremaneira as 7 Faço uso desse conceito de maneira análoga como o mesmo foi pensado pelo professor Paulo Freire 1975 haja vista que se trata de um conceito mencionado em quase todas as obras do autor de forma particular na Pedagogia do Oprimido 8 Denominação utilizada por Benedict Anderson 1989 para mencionar os critérios a partir dos quais se estrutura a narrativa da memória de um Estadonação 26 hierarquias do poder local e subtraído certos privilégios de vigência também secular9 c A participação e as transformações decorrentes do exercício desenvolvido nas atividades políticas até então praticamente inexistentes ou direcionadas para uma orientação diferente tendo em vista que as populações do campo sempre desenvolveram articulações fundamentadas em suas necessidades e labutas diárias A partir do estímulo à tomada de consciência no que tange à ancestralidade quilombola essas lutas passaram a conhecer pautas específicas e favoráveis ao fomento entre esses agentes do desenvolvimento do sentimento de pertença associado à aceitação da categoria social quilombola cujo significado produzido a partir da constituição de 1988 pelo Estado atende e respeita as características observadas em cada grupo que declara sua filiação tradicional Passando a haver a contar daí não apenas a adesão a uma identidade mas a compreensão de fatores que antes desconheciam ou sabiam de forma restrita aos quais os ecos produzidos pelo Barulho do Quilombo foram capazes de lançar luz A construção simbólica em torno do ser quilombola passa a influenciar as vivências desses sujeitos auxiliando os também a encontrar seu lugar es de participação na estrutura social Argumento que esse comportamento adquire importância fundamental quando adotado em contextos caracterizados pela ausência de discussões e distanciamento geográfico do Movimento Negro nacional que se formou no âmbito urbano mas que é crescentemente transformado pelas modificações agora introduzidas pelo Movimento Quilombola e que adquire cada vez mais expressão no âmbito rural e sertanejo O ressurgimento desses grupos tem possibilitado conhecer e articular deliberações específicas compatíveis com os desejos e necessidades nutridos por sujeitos que tecem outras interpretações e transformam o anonimato projetado para sua categoria em instrumento de luta e busca de equidade social 9 Esclareço que não desconheço ter havido algumas mudanças sobretudo no que concerne aos dispositivos legais apenas entendoas como tardias rasas e pouco eficientes em sua concretude 27 Esta é uma etnografia artesanal cuja tessitura foi construída pacientemente considerando os significados das movimentações ocorridas em campo a partir das participações bem como das perspectivas evidenciadas pelos sujeitos e não mediante as determinações impostas pelas instituições haja vista que o olhar lançado pelas mesmas geralmente se apresenta estreito e com o propósito de emoldurálos para que atendam ditames em sua maioria distantes das necessidades e modos de vida nativos todavia para que não seja mal compreendida informo que a perspectiva do Estado não é desconsiderada apenas não é o lócus pelo qual se orientou esse trabalho O texto a seguir fundamenta esta tese e emerge de manuscritos desenhados no silêncio que resguarda as madrugadas sertanejas ora influenciados pelo calor das brasas que queimam a caatinga ora pelos relampejos que antecedem o trovão e quando estrondam lá fora anunciam que estão trazendo novamente a revitalização da vida para o sertão em forma de melhores dias safras colheita abundante e mesa farta fatores que tendem a beneficiar a vida dos grupos aqui estudados Apresento ao leitor a um estudo que se permitiu e permite afetar pelos conceitos sentimentos externados e ações evidenciadas pelos quilombolas A tradução e as concepções aqui desenvolvidas também foram compostas e recompostas no âmbito de um processo dialógico apoiado pelo encontro entre a pesquisadora e os interlocutores as Esclareço que opto por chamar os interlocutores as de quilombolas não necessariamente para estar em consonância com a categoria criada pelo Estado e sim em respeito à maneira como informaram que se percebem e desejam ser identificados O termo quilombola utilizado ao longo desta tese toma em consideração a posição dos sujeitos em relação a esse conceito tendo sido apreendido mediante a criatividade com a qual é modelada em cada grupo pesquisado OS CAMINHOS CONTORNADOS PELA PESQUISA Como tão bem coloca a pesquisadora Nilma Lino Gomes 2017 o conhecimento válido é aquele que se forma nascido em um processo de lutas talvez por que nesse espaço simbólico e físico as realidades sociais as vivências dos sujeitos e o conhecimento elencado como científico se proponham a conversar oportunizando que um confira significado ao outro e legitime sua existência mútua Motivada por essa maneira de pensar 28 e de existenciar10 me aproximei do Movimento Quilombola Rural que se constituiu e constitui de forma dialética na região norte da Bahia isso ainda pelos idos do primeiro semestre do ano de 1999 Essa atitude foi estimulada inicialmente por dois fatores que se relacionam entre si estando o primeiro associado a uma questão de origem sendo eu uma mulher negra de pele clara sertaneja e do campo ao passo que o segundo dizia respeito às minhas inquietações epistemológicas porquanto buscava um diálogo entre a universidade e a diversidade das realidades que se revelam para além dos muros acadêmicos visto que cursava a graduação em Pedagogia e começava a me preparar para a realização do primeiro estudo monográfico Estava portanto nessa oportunidade buscando uma aproximação entre dois campos até então pouco habituados a dialogar11 Contornando esses caminhos e também respaldada pela circunstância de vizinhança cheguei até a comunidade de Tijuaçu que embora não houvesse sido certificada pela Fundação Cultural Palmares FCP e continuasse sendo divisada como mais um distrito pertencente ao município de Senhor do Bonfim já começara a se projetar no cenário regional como comunidade negra rural e que reivindicava o título de comunidade quilombola Desde o ano de 1994 algumas discussões nesse sentido estavam sendo desenvolvidas e timidamente a comunidade estava recebendo em seu território alguns antropólogos e pesquisadores O contato que estabeleci e permaneço estabelecendo entre os atores sociais de Tijuaçu possibilitou que também eu iniciasse meu processo de politização dado que a própria universidade fora pouco eficaz em oferecer esse estímulo comparativamente à conscientização que as atividades experimentadas entre os quilombolas suscitaram As relações mantidas com a Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências AAQTA que estava à época em formação aguçaram na pesquisadora o desenvolvimento de uma melhor compreensão no que se refere às insurgências e a causa quilombola A partir daí passei a frequentar constantemente a comunidade assim como as reuniões que ali sempre tiveram lugar podendo presenciar o crescimento de um grupo que gradativamente migrou de um estado de invisibilidade e marginalização para a construção 10 Utilizo aqui esse conceito conforme o mesmo foi pensado nas obras que compõem o acervo do professor Paulo Freire 11 Nesse período ainda não havia sido sancionada a lei nº 1063903 que modificou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDB 93941996 também conhecida como Lei Darcy Ribeiro e portanto o campus universitário ao qual me encontrava vinculada na qualidade de acadêmica pouco acolhia essas discussões que eram tidas como distantes do campo da Pedagogia 29 da autoria por meio da qual é também cotidianamente produzida a identidade s fazendo assim o seu rito simbólico de passagem e se tornando referência para o surgimento de outros grupos negros sertanejos localizados nesse espaço O envolvimento político inicial alargouse tornandose aos poucos afetivo fiz amigos estabeleci com esses sujeitos vínculos de compadrio e pedi licença para pesquisar a comunidade durante o curso de Mestrado realizado no Centro de Estudos AfroOrientais CEAO da Universidade Federal da Bahia UFBA Assim sendo a relação estabelecida com Tijuaçu de maneira especial com o senhor Valmir dos Santos12 me possibilitou conhecer outras comunidades situadas no entorno e algumas um pouco mais distantes tendo como contributo a guisa de reciprocidade um projeto que desenvolvo em formato de oficina pedagógica intitulado Ser Quilombola no Sertão e que se propõe a oferecer cursos voltados para lideranças quilombolas Mantive os primeiros contatos com as pessoas de Cariacá em Tijuaçu durante algumas atividades realizadas na associação e em eventos promovidos por ocasião das celebrações relativas ao Novembro Negro É oportuno relatar que também ocorreram muitos encontros casuais quando de visitas feitas à casa de parentes e ou em outras atividades que incentivaram a ida dos membros de Cariacá à comunidade vizinha Nessas ocasiões as apresentações sempre ficaram a cargo do senhor Valmir ou da senhora Ilca dos Santos13 Em um dos diálogos mantidos com Valmir fui informada acerca da suposta vontade que as pessoas de Cariacá acalentavam de acordo com as palavras que foram proferidas pelo interlocutor de ter sua história contada a exemplo do que já ocorrera em Tijuaçu14 De posse dessa informação e mediante um convite que recebi por parte do senhor Valmir durante um almoço na casa de Ilca me desloquei uma semana depois até a supracitada comunidade mais precisamente no mês de janeiro de 2014 Nessa ocasião conheci uma parte do território de maneira particular a VilaCentro fui apresentada a algumas pessoas e retornei outras vezes com a finalidade de me aproximar As relações se consolidaram um pouco depois especificamente no ano seguinte quando eu iniciei a pesquisa de campo já 12 Presidente da Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências AAQTA e membro do Conselho Estadual de Comunidades Quilombolas 13 Liderança quilombola participante da mesadiretora da AAQTA e brincante do Samba de Lata 14 A referida comunidade possui o laudo antropológico que foi utilizado como instrumento para auxiliar no processo de certificação Além disso Tijuaçu dispõe do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do Território RTID e se tornou lócus de muitas pesquisas em áreas diversificadas do conhecimento 30 após o ingresso no curso de Doutorado e concomitante ao cumprimento das disciplinas que compõem o conjunto dos créditos teóricos15 Em Lajedo cheguei pela primeira vez em 2013 logo após a conclusão do curso de Mestrado em um momento em que me encontrava desobrigada de atividades acadêmicas dispondo por conseguinte de mais tempo para continuar o trabalho desenvolvido por meio da oficina pedagógica Estive pela primeira vez no território no dia sete de setembro do mesmo ano fiz a visita em companhia de alguns estudantes do curso de Pedagogia e orientei um estudo monográfico desenvolvido por uma equipe de graduandos vinculados ao projeto da Plataforma Freire PARFOR programa oferecido pela Universidade do Estado da Bahia UNEB e que teve a comunidade como lócus de pesquisa Nesse período aconteceu também a minha aproximação com o grupo porquanto mantinha interesses específicos nesse estudo e estive por algumas vezes em campo em companhia dos orientandos Fiquei impressionada com a comunidade assim como com os seus habitantes e como mantinha a intenção de concorrer ao processo seletivo que me levou ao Doutorado decidi já no ato de elaboração do projeto estudar as comunidades de Cariacá e Lajedo No que se refere ao segundo grupo suponho que posso argumentar que esse estudo também pode ser pensado sob a perspectiva da memória futura devido ao processo migratório16 que se verifica no território Após esse contato inicial eu continuei encontrando os interlocutores as em situações específicas sobretudo no âmbito da feira livre da cidade de Saúde pois apenas retornei à comunidade no ano de 2016 para realizar a pesquisa de campo Os caminhos contornados justificam essa etnografia que se propôs dialogar menos com as categorias jurídicoburocráticas e mais voltarse para a tradução da criatividade dos modusvivendi observados em cada grupo talvez por entender que o processo de construção identitária é tecido nesse cotidiano e não diante da autoridade do Estado pois percebi que os interlocutores as não se deixam intimidar pelos ditames de um ente externo que se apresenta como soberano não obstante estabeleçam negociações com o mesmo Os quilombolas de Cariacá e Lajedo constroem trajetórias coletivas a partir 15 Não foi difícil conciliar essa situação considerando que Cariacá dista 50 quilômetros de minha residência e eu não residi em Salvador durante esse período apenas aí permaneci durante os dias correspondentes às aulas Esse comportamento se verificou devido ao fato de eu não haver sido dispensada das minhas funções de trabalho como professora da rede municipal de ensino Motivo pelo qual costumo mencionar que nunca me afastei do meu local de origem que aliás respalda em todo o texto o lugar de fala reivindicado pela pesquisadora 16 Esse fato é explicado no Capítulo 4 31 sobretudo de suas labutas resistências e inclusive confrontando a hierarquia científica de saberes daí porque são as práticas observadas em suas vivências que orientam prioritariamente a escrita desta tese No primeiro capítulo os dois grupos pesquisados são colocados em diálogo para apresentar ao leitor a os saberes produzidos pelos mesmos algumas vezes denominados por esses coletivos de sabedoria do povo do mato ou ainda ciência dos mais véios porquanto são os mais velhos que com as ressignificações produzidas por cada geração amparam as vivências diárias e oferecem sentido à existência desses sujeitos por intermédio de mecanismos nomeados como a arte de prestar assunto O poder que reveste a autoridade consentida e que é desvelada através do ato de botar a bença O respeito declarado pelas horas consideradas mortas e propensas à dominação do invisível descrito mediante a simbologia construída pelo imaginário local de cada comunidade caracterizado ora pela presença dos invisíveis ora pelo aparecimento das visagens do mato bem como a importância concedida ao cumprimento da palavra para a construção da respeitabilidade em perspectiva interna e também externa Esses construtos estão reportados a produções modeladas pela Negritude Sertaneja conceito cunhado nesta tese com a finalidade de pensar o povoamento do ator social negro na porção norte do estado assim como o hibridismo que há em suas produções simbólicas as resistências assinaladas em suas intervenções políticas ações econômicas papéis sociais e atividades culturais Escolhi apresentar os coletivos estudados a partir dessa simbologia de saberes por haver percebido em campo o quanto tais saberes são revestidos de importância e evocados pelos nativos em seu cotidiano ocupando portanto o lugar do conhecimento real e que após a tomada de consciência da ancestralidade quilombola passam a ser pensados como conhecimentos tradicionais migrando do local de conhecimento inferiorizante em que secularmente foram colocados seja pela Ciência hegemônica e eurocentrada seja através das interpretações estreitas advindas da sociedade envolvente para a posição de saberes que dialogam com o universo espiritual e que costumam ser utilizados de maneira oculta ao olhar externo porque os próprios atores sociais que os produzem preferem manipulálos como uma linguagem que deve ser preservada entre os de dentro e utilizada em relação aos de fora A comunidade de Cariacá é apresentada no capítulo dois mediante as narrativas orais oferecidas pelos interlocutores as de modo especial pelos sujeitos mais velhos cujas memórias reveladas auxiliaram sobremaneira o ato de composição da história do 32 grupo Nesse capítulo focalizo a VilaCentro suas formas de organização em tempos pretéritos caracterizada por certa proeminência econômica facultada principalmente pela existência da ferrovia e seus serviços e demonstro de igual modo as articulações tecidas em tempos presentes fazendo um paralelo com as outras localidades que compõem o perímetro Procurei demonstrar como aconteceu a descoberta da tradicionalidade quilombola o processo de certificação da comunidade e o protagonismo exercido pelos membros da Família Congo Outra discussão diz respeito à produção de um fluxo afroindígena que é reivindicado entre algumas pessoas do grupo O capítulo três se propõe a descrever a Família Congo isto é agentes que declaram a pertença quilombola e realizam as articulações políticas ao longo do território de maneira particular à frente da associação Busco demonstrar que em Cariacá as percepções construídas em torno do ser quilombola perpassam o trinômio negrocongoquilombola São narradas ainda as disputas pretéritas assim como as rivalidades atuais que envolvem os membros das famílias Congo e Muricy Entre os atores sociais que fazem parte da Família Congo o presente capítulo procurou dialogar especificamente com as mulheres tendo em vista a liderança por elas exercida Busquei evidenciar algumas trajetórias femininas que percorrem caminhos emancipatórios cujos significados se fazem sentir no interior do grupo tanto em perspectiva individual quanto influenciando as atitudes que orientam a coletividade A comunidade de Lajedo é apresentada no capítulo quatro onde procuro relatar como aconteceu a ocupação ancestral do território as formas de organização secularmente adotadas pelos sujeitos em espaços que são designados regiões e representadas por núcleos familiares que se encontram entrelaçados pela noção que elaboraram e continuam elaborando do conceito de parentagem construto habilidosamente modelado e capaz de possibilitar ao grupo se identificar e ser conhecido no contexto regional sob a denominação de os pretos do Quitero Ao longo do capítulo propusme a traduzir as diversas formas de resistência que esses atores sociais têm desenvolvido com o objetivo de permanecer no território que ora experimenta um processo de desertificação São situações vivenciadas por meio das pelejas na roça nos usos e cuidados com a terra nas atividades comerciais que realizam em feiras livres da região na solidariedade que recebem em situações que envolvem o nascimento das crianças os cuidados com os doentes e o zelo com os mortos Essas formas de resistência são tratadas nesta tese de acordo com a perspectiva da 33 criatividade sendo denominadas de Artes do Nascimento Artes do Casamento e Artes da Migração O capítulo cinco se propõe a demonstrar outro aspecto presente nas vivências da população de Lajedo isto é o comportamento itinerante que deu origem à formação de outra comunidade fundada por pessoas que saíram desse território para tocar roça ou em busca de melhores condições de vida em épocas descritas como tempo ruim e devido à celebração de alguns casamentos Assim apresento a comunidade Grota das Oliveiras com a qual os membros de Lajedo mantêm relações muito próximas e onde são observadas formas de organização semelhantes talvez assim estruturadas devido à parentagem que por ora se apresenta fortalecida em virtude dos laços de compadrio As atividades culturais produzidas em ambos os grupos estudados estão apresentadas no capítulo seis Onde inicialmente é feita uma abordagem sobre o Quilombart encenado em Cariacá desde o ano de 2007 e cuja criação é atribuída aos sujeitos mais jovens como propósito de reativar as tradições culturais que se encontravam adormecidas no território desde o falecimento dos antigos brincantes Busquei retratar como encenar a cultura pode servir de contributo para a recuperação da autoestima construção de uma imagem positiva fortalecimento do sentimento de pertença e para estimular o desenvolvimento de reflexividade no que diz respeito à ancestralidade sobretudo nos encontros com outras comunidades tradicionais e ou quando são convidados para se apresentar em instituições a exemplo de escolas universidades e no circuito oficial do São João bonfinense atuando inclusive como canal de comunicação com a sociedade envolvente Em um segundo momento faço uma narrativa para esclarecer como aconteceu o ressurgimento do samba praticado em Lajedo considerando que essa atividade cultural havia sido interrompida devido a uma situação vexatória experimentada pelo grupo voltando a ser encenada novamente durante uma atividade promovida no decorrer da pesquisa No capítulo sete abordo a espiritualidade que se desenvolve nessas comunidades cuja fé é atualizada em articulação com os elementos do Catolicismo Sertanejo assim como da Umbanda manejados por meio de um universo transcendente que se caracteriza pela prática de rezas benzimentos uso de amuletos através de orações enunciadas para abençoar e para esconjurar porcarias e ainda por meio de visitas realizadas às casas de curadores bem como mediante as representações sociais que são elaboradas em torno dos rezadores e curadores Outro componente significativo são as devoções oferecidas aos santos padroeiros Esse tipo de religiosidade é interpretada neste estudo sobretudo do 34 ponto de vista das articulações que produz visto que é capaz de influenciar as vivências dos sujeitos assumindo em muitos momentos o papel de uma linguagem por intermédio da qual eles pensam contrastam e entrelaçam identidade s Ao longo dos sete capítulos me propus a entender e buscar traduzir como os grupos estudados constroem sua identidade s mediante uma etnografia que se permitiu ser construída estuciando os ecos e as intervenções produzidas pelo Barulho do Quilombo 35 CAPÍTULO 1 ESTUCIANDO O BARULHO DO QUILOMBO Tomada de consciência de uma comunidade de condição histórica de todos aqueles que foram vítimas da inferiorização e negação da humanidade pelo mundo ocidental a negritude deve ser vista também como a afirmação e construção da solidariedade entre as vítimas A negritude tornase uma convocação permanente de todos os herdeiros dessa condição para se engajarem no combate para reabilitar os valores de suas civilizações destruídas e de suas culturas negadas MUNANGA 2009 p 82 Imagem nº 01 Encontro promovido em campo reunindo os atores sociais de Cariacá Lajedo Tijuaçu Grota das Oliveiras Palmeira e Coqueiros Fonte Acervo da pesquisadora 36 Senhor põe teus anjos aqui Senhor põe teus anjos aqui com a espada desembainhada Senhor põe teus anjos aqui Não deixe que o inimigo escarneça e zombe de nós Cobre Senhor com teu manto Senhor põe teus anjos aqui17 E dessa forma segundo a senhora Luciana de Freitas Silva Dona Luci de setenta e cinco anos que além de quilombola reivindica sua ascendência indígena o Cariacá é protegido da fome da peste e da guerra já para o senhor João Aceno Gabriel Pereira Seu João Colado de quarenta e cinco anos o Lajedo aqui moça é uma pedra que se bate mas não se quebra Nas invocações de natureza religiosa ou naquelas voltadas para explicar o sentido de existir quando as vozes quilombolas se fazem ouvir no sertão18 baiano e têm a oportunidade de dizer sua palavra19 fazemno de modo a expressar o significado de suas resistências Suas vivências carregam nas entrelinhas a tessitura desenhada pelos rearranjos das labutas que têm possibilitado a esses grupamentos se reinventarem em especial do ponto de vista histórico e cultural A louvação proferida por Dona Luci professora da comunidade que além das atividades docentes se ocupou durante a juventude das encenações de reisado quadrilhas 17 Informo ao leitor a que opto ao longo do texto por transcrever as falas dos interlocutores as em itálico Utilizo esse recurso como forma de diferenciálo de outras citações e como testemunho do respeito que nutro por eles haja vista que além de interlocutores as alguns se tornaram minhas comadres e compadres 18 Nesta tese procuro chamar a atenção para o fato de que o sertão não é uma região homogênea e estática ao contrário as regiões sertanejas da Bahia atuam como um caleidoscópio produtor de vivências saberes e culturas que se ressignificam geracionalmente A palavra sertão passou a ser utilizada para se referir às regiões norte e nordeste do estado ainda durante a colonização portuguesa As diferenças notadas no relevo fauna flora e clima nessa parte específica da Bahia que começava a ser invadida e usurpada fizeram com que essa região fosse inicialmente chamada de desertão expressão que aos poucos a exemplo do que aconteceu em outros estados do Nordeste foi sendo alterada para sertão Os estudos clássicos a respeito do sertão foram agrupados em três marcos analíticos paradigmáticos a saber o geoclimático o político e o culturalista Abordagens apoiadas nos três séculos de povoamento inicial apresentam sociedades caracterizadas pelo pastoreio do gado pela concentração fundiária oligárquica exagerada dispersão espacial e organização familiar de base patriarcal Proponhome a pensar o sertão a partir do que é dito por Moreira 2018 p 31 A citada autora afirma que na atualidade o sertão nordestino equivale ao semiárido mais populoso do planeta habitado por mais de vinte e quatro milhões de brasileiros as o qual nas últimas décadas se transformou e imergiu nos avanços da globalização Ela contesta assim o que revelam os dicionários que permanecem cristalizados apresentando definições que fixam o sertão como sinônimo de distância ausências vazio ermo e atraso Justifico que não trago uma discussão teórica abrangente a respeito dos conceitos que têm sido cunhados para pensar os sertões por não ser esse o lócus deste estudo 19 Construto presente na Pedagogia do Oprimido Cartas a Guiné Bissau e Cartas à Cristina títulos que compõem o acervo de obras do professor Paulo Freire 37 e rodas e que agora aposentada dedica sua vida às tarefas religiosas através dos trabalhos desenvolvidos na igreja Católica e das benzeções que realiza para aqueles as que a procuram solicitando ajuda Do mesmo modo as afirmações de Seu João Colado quando busca explicar a persistência de sua comunidade mesmo diante das adversidades enfrentadas são utilizadas aqui para expressar faces que circundam o mecanismo presente no ato de resistir A louvação recitada por Dona Luci é associada ao poder divinatório atribuído a Deus aquele que dá a vida e aos Invisíveis aqueles as que regem a vida entidades nas quais acreditam e com as quais se pegam20 para nascer e para morrer mas principalmente para caminhar21 por que existir na perspectiva dos sujeitos sociais que nascem no sertão já é caminhar todavia para caminhar conforme é dito pela interlocutora tem que saber abrir e tem que saber fechar 22 Aprendi na convivência com os atores sociais de Cariacá23 que qualquer caminho não é caminho há de se saber sair e se saber entrar e que essa postura funciona como condição para poder ficar e ser aceito no grupo As escolhas realizadas ao longo da vida desde o nascimento até a morte acarretam influências no destino de cada ser motivo pelo qual a senhora Luci relata que as ações adotadas para a prática do bem são capazes de abrir os caminhos da vida de uma pessoa desde a infância até o último suspiro do ser quando o fôlego da vida volta para Deus ao passo que as atitudes direcionadas para o que é descrito como o mal são capazes de 20 Os interlocutores as emprestam a essa palavra o sentido equivalente a uma atitude de devoção e ou veneração E dizem acreditar que essas entidades que chamam de Invisíveis interferem diretamente no curso de suas vidas e destinos tanto em perspectiva individual como de forma coletiva influenciando o cotidiano da comunidade ora em caráter positivo ora negativo 21 Abordarei especificamente esse assunto presente no universo religioso nativo no Capítulo 7 22 De acordo com a percepção evidenciada pela senhora Luci ao longo de muitas conversas que tivemos e das vivências estabelecidas esse adágio que ela pronuncia constantemente se refere aos caminhos da vida segundo suas explicações os caminhos tendem a permanecer abertos ou fechados a partir das atitudes adotadas na trajetória cotidiana que por vezes ela também denomina de teia da vida Para a interlocutora são as boas atitudes praticadas pelos sujeitos que garantem a abertura de seus caminhos ao passo que a permanência no que denomina de procedimentos maus possibilita que seus caminhos sejam fechados portanto abrir ou fechar os caminhos da vida pode ser entendido como uma faculdade que se encontra relacionada não ao destino e sim a um prognóstico que corresponde às escolhas e atitudes de cada ser haja vista que nas explicações sugeridas pela senhora Luci são essas atitudes que unem ou quebram o ponto da teia da vida 23 A comunidade está situada no município baiano de Senhor do Bonfim região norte do estado e será cuidadosamente descrita no Capítulo 2 38 fechar a sorte e os caminhos de crianças mulheres homens e ainda retirar a perspectiva de crescimento no âmbito da comunidade atrasando24 seu progresso Aqueles as que desde a infância pronunciam palavras consideradas positivas e mantêm o hábito de auxiliar as pessoas sempre manterão os caminhos da vida abertos enquanto aqueles as que fazem uso de xingamentos25 e adotam atitudes depreciativas ou voltadas para a prática do que descrevem como sendo o mal estes as veem muito cedo seus caminhos ficando curtos até fechar já que como argumenta a senhora Luciana aí a pessoa tá quebrando o ponto da teia da vida26 O sinônimo atribuído à atitude que compreende o ficar relacionase às diversas maneiras utilizadas pela comunidade para inscrever seus nomes no curso do tempo e se assentar para o que é imprescindível isto é possuir um pedaço de chão no espaço em que residem garantindo suas vivências com a dignidade que solidifica o ato de existir caracterizado pela proteção espiritual e o sustentáculo econômico Afirmar a existência tornase uma das primeiras necessidades nutridas desde o passado histórico até os dias contemporâneos em termos de cada geração visto que cada tronco quilombola está relacionado a fatos que têm sua importância garantida justamente em função das habilidades demonstradas pelos ancestrais com o propósito de declarar ter a força necessária para legitimar suas lutas e conquistas São vivências que orientam esses atores ressemantizados através dos ensinamentos guardados e transmitidos pelos mais velhos as que ensinam os sentidos do caminhar seja no mato na roça na comunidade e ou na sociedade envolvente Essa condição presente nos ensinamentos guardados e transmitidos pelos mais velhos as abrange também o itinerário dos animais e vegetais assim como de quase tudo o que respira no universo sertanejo Daí porque a cada dia aprendese através das 24 Esses sujeitos acreditam que sua comunidade é sustentada por energias A energia maior aquela que vem de Deus e a intervenção de seres que são designados Invisíveis alguns Invisíveis são apontados como bons outros como maus e ambos serão descritos ao longo desta tese Na concepção nativa são as palavras e atitudes que adotam cotidianamente que os aproximam ou distanciam desses seres permitindo também que sua comunidade seja influenciada pela energia e intervenção dos mesmos 25 Palavra utilizada pelos habitantes de Cariacá para se referir a palavrões Eles diferenciam os que apesar de não serem bons não causam tanto prejuízo e os que são considerados nomes do inferno portanto capazes de fechar os caminhos 26 A interlocutora explicou que à medida que os pontos da teia da vida vão sendo quebrados pelo sujeito ele também vai se perdendo ao longo de sua caminhada 39 circunstâncias práticas que se apresentam na rotina cotidiana o significado de que existir já é caminhar A resistência é também pensada na perspectiva da labuta pois como se diz em Lajedo27 aqui a gente vive de labutar roça Labutar é uma palavra utilizada para se referir ao exercício do trabalho porquanto entre os sujeitos negros rurais do sertão o trançado do trabalho sempre representou uma das principais atitudes norteadoras do curso de suas histórias de vida em caráter individual e também na esfera coletiva Esse é talvez um dos motivos pelo qual a terra se torna sinônimo de espaço sagrado convertendo se em território pisado remexido e lavado pelos suores lágrimas e por vezes pelo sangue dos que com ela labutam Em ambas as comunidades eu ouvi dizer que a terra clama clamor que na compreensão evidenciada pelos quilombolas quase sempre é suscitado por situações de usurpação territorial e por toda sorte de injustiças sociais às quais eles estão expostos Na terra estão registradas as histórias de vida de lutas conquistas e ultrajes experimentados por mulheres homens e herdados pelas crianças que representam as ramas mais novas e que portanto carregam consigo a cada geração a responsabilidade da herança coletiva dos seus geralmente relacionada a mecanismos de reparação por parte dos de fora em relação aos de dentro28 As narrativas se descortinam e se legitimam tomando como referência os espaços da terra em que habitam Assim rios cachoeiras lagoas cacimbas e outras fontes de água perenes ou não árvores e morros constituem marcos específicos a partir dos quais a memória oral se manifesta e reivindica sua veracidade histórica Ao conversar com o senhor Manuel Julião Dias 88 anos conhecido em Cariacá como Seu Menininho e tido como um dos moradores mais velhos do grupo os marcos referenciais por ele acionados para narrar à história de fundação da comunidade e explicitar a anterioridade de Cariacá 27 Comunidade localizada entre as cidades de Saúde e Mirangaba também situadas na região norte do sertão baiano Essa comunidade será enfocada no Capítulo 4 28 Na compreensão revelada pelos grupos que atuaram como interlocutores as nesta tese os de dentro são percebidos como as pessoas da comunidade Àqueles as que ali são nascidos e ainda os que se aproximam e se tornam parentes por afinidade ao passo que os de fora são as pessoas que além de não manterem com o grupo relações de pertença vizinhança e compadrio são inimigas potenciais em decorrência de disputas de terra e preconceitos raciais entre outras situações geradas por uma má convivência 40 em relação à cidade de Senhor do Bonfim foram os limites geográficos das serras da Umburana e do Botequim Nas palavras proferidas pelo senhor Menininho bico da Serra da Umburana bico da Serra do Botequim Essas serras de acordo com Seu Menininho se encontravam inseridas nos limites territoriais da antiga Fazenda Cariacá Atualmente ambas foram inseridas no relevo da cidade de Senhor do Bonfim O território tradicional demarcado de Cariacá está a uma distância de sete quilômetros de Senhor do Bonfim O pé de Cedro constitui outro elemento da paisagem comumente citado pelos anciãos referido como testemunha de vista das disputas envolvendo as famílias Congo e Muricy29 Como resultado dessa hostilidade pregressa permanece um antagonismo velado que se manifesta sempre que interesses divergentes são discutidos Em Lajedo um pequeno olho dágua afluente do rio Preto30 é o ponto de referência que os moradores utilizam para especificar no território as famílias cujas casas se encontram situadas nos municípios de Mirangaba e Saúde31 Os núcleos familiares que habitam na comunidade estão organizados espacialmente considerando a proximidade dos citados rios e da cachoeira do Gelo As três famílias que constituem o núcleo dos Félix32 externam orgulho pela presença da cachoeira do Mandigueiro situada praticamente nos quintais de suas residências e utilizada para a prática da irrigação por gravidade nos cultivos agrícolas assim informaram o senhor João Colado e sua esposa a senhora Idália Quando fui pela primeira vez à cachoeira do Gelo acompanhada por Roseane Azevedo Pereira de 24 anos eu estava empolgada e mantinha expectativas em relação à beleza do local fiquei frustrada porém quando percebi que os interlocutores as não costumam visitála com frequência Rose como prefere ser chamada é a única moradora que já concluiu o Ensino Médio estudando na cidade de Mirangaba A perspectiva de continuar os estudos e o trabalho nas feiras livres da região comercializando os produtos cultivados na roça da família a impedem de permanecer cotidianamente na comunidade além disso como o seu esposo Moisés é oriundo da comunidade quilombola de Palmeira Rose possui residência nas duas comunidades Em um domingo frio após o café da manhã 29 No terceiro capítulo deste estudo serão mencionadas as tensões envolvendo membros das famílias Congo e Muricy 30 Os rios que atravessam o território de Lajedo e que os quilombolas denominam de Preto e Gelo são afluentes dos rios Paiaiá Itapicuru e das Pedras 31 Esse fato será relatado minuciosamente no quarto capítulo 32 Os núcleos familiares dos moradores de Lajedo serão destacados no Capítulo 4 41 mesmo com a chuva de trovoada33 que caia de maneira entrecortada Rose atendeu o meu pedido para conhecer a cachoeira do Gelo Durante o percurso ela se divertia ao indagar pra que a senhora quer ir lá se tem uma cachoeira no quintal 34 Essa relação dialógica cultivada entre as pessoas e os elementos da natureza pode por vezes ser utilizada para compreender diversas situações da vida cotidiana e constitui parte integrante do código moral presente no modus vivendi dessas populações Uma cacimba que não mais jorra ou um tanque que racha e não mais conserva a água são atribuídos a um mecanismo de maldição desencadeado por ambições relacionadas a este recurso hídrico tido como sagrado uma vez que água não gosta de ambição35 e ainda por que quem sabe louvar sabe também espraguejar36 e amaldiçoar Nos diálogos estabelecidos com os anciãos de Cariacá quando enfocamos os longos períodos de estiagem atravessados pela comunidade a senhora Maria José do Nascimento de 65 anos relatou o processo de esgotamento da água da cacimba dos Morrinhos Esse episódio se verificou após a existência de desentendimentos envolvendo as famílias de Cariacá de Cima e Morrinhos que divergiam frequentemente por compartilhar a mesma fonte hídrica Na visão de Dona Maria as brigas e os xingamentos pronunciados diante da cacimba ocasionaram o exaurimento da água devido ao egoísmo e à avareza que as mulheres principalmente demonstravam nas constantes discussões verbais e eventualmente agressões físicas para decidir sobre o direito de pegar água na cacimba 33 Os interlocutores as denominam chuva de trovoada a chuva forte porém passageira seguida do aparecimento do sol 34 O pronome senhora utilizado por Rose não é uma forma de tratamento exclusiva fornecida a mim Tratase de uma expressão respeitosa que os sujeitos mais jovens da comunidade utilizam para se referir aqueles as que possuem uma idade cronológica maior que a sua o mesmo tratamento se direciona a padrinhos e madrinhas mesmo quando estes as não possuem uma idade tão superior à idade do afilhado a Externar respeito por intermédio de palavras ou atitudes significa demonstrar o grau de consideração que se possui em relação a outrem razão pela qual nunca percebi como sinônimo de distanciamento o pronome de tratamento senhora que Rose outros jovens e as crianças do grupo geralmente utilizavam para se comunicar comigo considerando que o mesmo pronome costuma ser empregado em situações de diálogo com os mais velhos as 35 Na perspectiva externada em ambos os grupos a água é apontada como um recurso divino potencialmente concentradora de bênçãos e avessa a disputas ou divergências portanto sempre que uma fonte hídrica se torna motivo de desentendimento esse recurso que é tido como sagrado adota a tendência de desaparecer ou tornarse escasso 36 Nas histórias que escutei dentro do universo místico tecido pelos quilombolas cujas explicações são utilizadas para salientar os acontecimentos felizes e trágicos da vida diária o espraguejamento figura como uma imprecação lançada contra outrem que feriu profundamente e em caráter particular o praguejador ou ocasionou um agravo social 42 Essa ambição segundo Dona Maria precisaria ter sido corrigida com pedidos de perdão a Deus e orações Contudo como prevaleceram as intrigas a água que deveria ter sido partilhada desapareceu se recusou a permanecer ali A louvação e a maldição interferem no fôlego da vida no nascimento das crianças na constituição de uma nova família na germinação ou fenecimento das plantações na multiplicação dos rebanhos de gado das cabras e até mesmo na criação de galinhas e porcos Interferem sobretudo na sustentação da terra Quando lavrada e pisada por pessoas de espíritos bons a terra agradece e prospera quando acontece de modo contrário a terra se torna solo ingrato pois o chão tem necessidade de se identificar com o seu dono Na concepção nativa a seiva da terra precisa combinar com o sangue de quem com ela labuta Conforme Dona Maria do Rosário de 70 anos não é toda mão que consegue plantar nem toda mão que sabe colher Quando a questionei sobre o significado dessa expressão ela explicou que uma pessoa de coração perverso não tem capacidade para labutar com a terra pois o sangue da pessoa não vai combinar com o sangue da terra Quando essa combinação não acontece a colheita não prospera e a pessoa se torna objeto de menosprezo dos demais que a divisam como alguém de mau coração ou mau espírito cuja mão é pesada não lhe permitindo obter abundância naquilo que realiza A memória das populações quilombolas construída pelos mais velhos e ressignificada pelos mais jovens perpassa a dimensão territorial assim cada espaço da terra costuma ser utilizado para demarcar a vida do grupo e evidenciar os feitos realizados por seus ancestrais de modo especial àqueles que foram capazes de garantir segurança à posteridade Se as atitudes de um ancestral são consideradas dignas de orgulho essa memória é acionada com facilidade em contraposição às situações consideradas vexatórias quando a memória tende a permanecer sufocada e parece desejar ser esquecida No tocante à história coletiva do grupo em especial aos fatos que envolvem constrangimento de pessoas e apropriação indevida do território por indivíduos externos à comunidade a situação não é diferente Os acontecimentos que suscitam dor e desonra aparecem com dificuldade representando o segredo o ethos do silêncio que é quebrado aos poucos e com cuidado visto que recontar essas histórias consiste em reviver não mais a coação física e sim a violência simbólica aquela que permanece ora atormentando ora aprisionando as memórias orais Essa constituiu durante muito tempo a principal característica presente na 43 invisibilidade de pessoas que antes de estuciar37 o Barulho do Quilombo38 estavam submetidas ao barulho ocasionado pelo desrespeito em forma de preconceitos raciais usurpação do território e negação de suas humanidades Elas eram apontadas apenas como sujeitos negros e pobres no contexto pesquisado Escutei ambas as expressões estuciar e Barulho do Quilombo em circunstâncias específicas em cada um dos grupamentos estudados No entanto o significado a elas atribuído encontra um sentido similar relacionado à compreensão do ser quilombola assim como aos caminhos percorridos para se chegar a esse entendimento Fato que advirto aconteceu em cada uma dessas comunidades de maneira específica e em um momento particular que serão cuidadosamente descritos ao longo desta tese O termo estuciar aparece com facilidade no vocabulário adotado pelas pessoas de Lajedo de modo especial entre os mais velhos O sentido atribuído a estuciar abrange as diversas formas de perceber e buscar explicações para os acontecimentos diários vivenciados por cada indivíduo em particular e pelos membros da família Referencia também as situações que envolvem toda a comunidade A prática de estuciar algo encontra correspondência na atitude de se chegar a uma compreensão apurada dos fatos que determinam a sua existência e ou acontecimentos estuciar adquire também o sentido de uma faculdade utilizada para se relacionar com o contexto interagir com pessoas interpretar fatos e adquirir a habilidade necessária para dialogar com os episódios que regem a vida Em relação à compreensão da ancestralidade quilombola nos diálogos 37 Essa é uma prática linguística frequentemente utilizada pelos habitantes de Lajedo empregada para enfatizar situações relacionadas à compreensão dos fatos cotidianos da vida e do universo social que os circundam No que concerne à descoberta da ancestralidade quilombola os interlocutores as da pesquisa que apoia esta tese enfatizaram nos diversos diálogos estabelecidos a expressão recorrente estuciei e vi que aqui era quilombola Os vocábulos estuciando estuciar e estucio compreendem variações que aparecem com facilidade nos dialetos adotados entre as populações rurais sejam elas quilombolas ou não assim como das pequenas cidades da porção norte da Bahia Em algumas circunstâncias a palavra estuciar é substituída por astuciar 38 Comecei a escutar esse artefato linguístico durante as atividades de campo quando as pessoas de Cariacá em algumas ocasiões da pesquisa fizeram uso dessa colocação para se referir ao momento em que as informações sobre a identidade quilombola começaram a ser difundidas na comunidade Eu me aproprio desse artefato do vocabulário nativo como uma ferramenta para pensar esse movimento de descoberta da tradicionalidade que ocorre como um fluxo nos contextos pesquisados haja vista que a comunicação e o intercâmbio estabelecido entre esses grupos tem se mostrado fundamental para o crescimento do número de comunidades que se autodeclara quilombola Esses aspectos serão mais explorados no Capítulo 2 44 informais mantidos com os membros da comunidade a palavra estuciar foi empregada para explicar os caminhos que o grupo percorreu com o objetivo de entender sua ancestralidade afirmar o pertencimento39 e iniciar suas atividades políticas estabelecendo relações mais diretas com outras comunidades O senhor Gilberto Inocêncio dos Santos de 47 anos que durante dois mandatos exerceu o cargo de presidente da associação e que atualmente dela participa como sóciofundador destacou reiteradamente aqui a gente foi estuciando estuciando até entender como era o quilombola Na segunda etapa da pesquisa quando a proximidade construída me assegurou um lugar mais confortável de observar e escutar sem ser tão notada percebi que a palavra estuciar assume em muitos contextos o significado de resumir uma verdade descrita como absoluta como para justificar um enunciado através da seguinte proposição eu sei por que estuciei ou ainda com a intenção de encerrar qualquer possibilidade de contestação em um discurso Estuciar talvez possa também ser definida como uma postura assumida pelos atores sociais de Lajedo para desmistificar desde os fatos corriqueiros até as situações tidas como mais complexas a exemplo do lugar ocupado nas atividades concernentes ao ativismo político quando ocorrem as reuniões promovidas pela associação normalmente durante o último domingo de cada mês exceção do mês de junho quando em vista dos festejos populares de São João e São Pedro a reunião costuma ser antecipada Antes de saírem de casa os moradores repetem com certa frequência a seguinte expressão deixa eu ir ali estuciar na associação Também nas plenárias durante as reuniões aparece com certa facilidade a colocação estuciando vocês tudo aí Nesse contexto eles emprestam à expressão o sentido de afirmar consentimento em relação ao que está sendo debatido É possível que a habilidade de estuciar e os ecos produzidos pelo Barulho do Quilombo ainda que através de circunstâncias e situações específicas a cada grupo pesquisado possam ser compreendidos como agenciamentos estimuladores de intercâmbio político e de mecanismos produtores de reflexões Ou como gostam de falar em Lajedo estuciações que até então não faziam parte da dinâmica de suas vidas 39 Esse fato será abordado de forma cuidadosa no Capítulo 4 45 O Barulho do Quilombo é uma expressão que se manifestou entre as lideranças mais jovens de Cariacá quando se referiram às informações sobre Tijuaçu40 e ao acompanhamento sobre as atividades desenvolvidas nessa comunidade vizinha Devido ao fato de ter sido uma das primeiras comunidades certificadas na região de Senhor do Bonfim e de ter precedido uma trajetória de lutas em busca de autonomia e de afirmação o quilombo contemporâneo de Tijuaçu permanece como referência para as demais comunidades do entorno que desejam compreender a sua ancestralidade quilombola e iniciar a sua própria caminhada É muito comum que outros grupos que desejam a certificação quilombola contatem as lideranças de Tijuaçu e participem de reuniões na sede da Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências AAQTA41 antes de fundarem uma associação em sua comunidade de origem Para os moradores de Cariacá escutar o Barulho do Quilombo é prestar atenção e interagir com os fatos que se apresentam e precisam ser resolvidos na luta quilombola Esse ativismo embora desenvolva características particulares inerentes a cada grupo específico é agenciado através das comunicações estabelecidas por esses sujeitos de direito que têm emergido em localidades diversas O Barulho do Quilombo é um processo interno de natureza dialética que mantém os membros de Cariacá em constante interação com os de Tijuaçu desde as primeiras movimentações para aprender os caminhos que precisariam atravessar até serem certificados pela Fundação Cultural Palmares FCP No presente essas relações foram intensificadas e articulações foram estabelecidas também com outras comunidades do norte baiano em especial por ocasião das celebrações e problematizações relativas ao Novembro Negro quando as associações quilombolas da região organizam comitivas para prestigiar o evento onde quer que ele esteja sendo realizado Além do apoio moral e representativo que esse intercâmbio viabiliza desde novembro de 2016 tem havido um interesse crescente de se promover interações mais focadas nas atividades culturais Esses eventos 40 Grupo tradicional no qual teve início as discussões e movimentações a respeito da compreensão e reivindicação da ancestralidade quilombola entre as comunidades que se encontram na região de Senhor do Bonfim e no qual desenvolvi pesquisa de Mestrado SANTOS Paula Odilon Ser Quilombola no Sertão Tijuaçu lutas e resistências no processo de construção identitária 2013 208 f Dissertação Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos Programa de Pós graduação Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos Universidade Federal da Bahia UFBA Salvador 2013 41 A Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências AAQTA foi fundada em 02 de abril de 2000 46 têm se estabelecido como um espaço privilegiado não apenas para confraternizar mas também para estimular reflexões sobre a autoafirmação e as percepções em torno do ser quilombola Há inclusive uma comunicação prévia entre as associações para organizar um calendário para que os eventos que celebram o Novembro Negro ocorram em datas alternadas nas diversas comunidades divulgadas com antecedência por intermédio de convites impressos possibilitando uma confraternização e o fomento à conscientização até então ausentes em muitos espaços da porção norte do sertão baiano Portanto a ausência de interação tem dado lugar à construção de um sentimento de irmandade ao estabelecimento de relações entre as comunidades quilombolas e a sua visibilização pela sociedade envolvente que passa a ter o seu cenário alterado pela emergência dessas populações Daí por que presumo ser possível compreender o Barulho do Quilombo como um movimento de abrangência política e educativa que produz transformações no interior dessas comunidades assim como no contexto social mais amplo nos quais elas se encontram inseridas Para a comunidade de Cariacá a relação constituída com Tijuaçu permanece uma referência importante e norteadora para a tomada de algumas decisões Nas locuções estuciar pronunciada com frequência em Lajedo e Barulho do Quilombo utilizada em Cariacá percebo construções empregadas como formas de oferecer sentido à existência e aos fatos que assinalam o cotidiano individual e coletivo no caso do primeiro grupo e iniciar um processo de ativismo político no caso do segundo Suponho que em ambas as comunidades se notabilizam a presença dos mecanismos da resistência s e da insurgência s que vêm orientando as suas caminhadas para compreender quem são a assunção do protagonismo de atores sociais que possuem um itinerário de individuação são capazes de interagir com histórias coletivas como povos tradicionais relacionados aos lugares que hoje ocupam e que desejam vir a ocupar na sociedade que se coloca como inclusiva As histórias das comunidades quilombolas podem ser narradas a partir de diversos olhares Portanto esclareço ao leitor a que a minha percepção talvez se encontre relacionada ao fato de não ser uma moça urbana que se desloca para um campo considerado distante de seu universo social e em busca de algo que possa funcionar como aquilo que foi designado por Clifford 2014 como uma experiência autêntica Pelo contrário mantenho relações intrínsecas com o lugar de que falo por uma questão de origem sendo eu uma mulher sertaneja filha neta e bisneta de mulheres ribeirinhas que 47 tem participado do ativismo na causa quilombola em contexto regional desde 1999 e acompanhado de perto as modificações ocasionadas nesse espaço em função das transformações suscitadas pelo Barulho do Quilombo assim como percebido as alterações que a presença das comunidades quilombolas tem ocasionado nesse contexto Me assumo como herdeira de muitos aspectos que caracterizam a Negritude42 Sertaneja Tenho tentado traduzilos à luz do encontro entre a pesquisadora e o agenciamento etnográfico Escolhi narrar a trajetória das comunidades estudadas pela perspectiva baseada no princípio da resistência s presumindo que conforme menciona Clifford 2014 p 09 a compreensão da diversidade e o processo de construção dos textos etnográficos funcionam como uma composição de elementos textuais situados em circunstâncias históricas e culturais específicas que acontecem em um complexo sistema de relações envolvendo pesquisador pesquisados e outros personagens situados no contexto De acordo com João de Pina Cabral 2003 p 109111 a interpretação de qualquer mensagem ou fato social se realiza tomandose como ponto de partida o contexto no qual esse fato ocorre assim sendo o argumento é que o pesquisador no desenvolvimento de seu trabalho atua como um observador situado e consequentemente a narrativa que resulta da atividade de pesquisa está inextricavelmente associada à sua postura e relacionamento estabelecidos em campo Como mantenho certa interação entre os grupos quilombolas do contexto social e político no qual me situo conjecturo que essas vivências certamente direcionam a escrita deste trabalho originando possivelmente o que Sardam 2008 denomina de pacto etnográfico Estou cônscia de precisar atender às exigências da academia ao mesmo tempo em que me comprometo a manter engajamento pessoal e político com aqueles que abrem as portas das suas casas e a intimidade das suas histórias pessoais e coletivas de suas famílias e em um segundo momento do grupo que integram Essa é uma das razões pelas quais 42 De acordo com o pensamento de autores como Munanga 1988 e Bernd 1988 a Negritude enquanto movimento se constitui em uma reação de legítima defesa funcionando como uma resposta negra a uma agressão histórica branca de mesmo teor A Negritude permite ao sujeito negro intelectualizado ou não perceber que uma possível solução para desconstruir sua situação de opressão reside na retomada de si próprio na negação do embranquecimento e na aceitação de sua herança sociocultural que deixa de ser concebida como sendo inferior 48 não desejo e não posso percebêlos somente como sujeitos de pesquisa no que se refere aos dois grupos focalizados neste estudo em especial os quilombolas de Cariacá tratase de pessoas com as quais interajo não apenas quando estou no campo Muitos deles frequentam a minha casa e participam da minha vida pessoal Esse tipo de relacionamento não pode ser reduzido a uma situação que coloque de um lado a etnógrafa e do outro os etnografados Não existe esse distanciamento Em Cariacá minha presença antecede a pesquisa de campo durante o curso de Doutorado e certamente não permanecerá restrita a esse período O trabalho etnográfico que conforme esclarece Geertz 1989 busque compreender os fenômenos a partir da perspectiva e compreensão por parte dos que dele participam pode funcionar como um instrumento de desconstrução da visão essencialista que a sociedade vigente possui em relação às comunidades tradicionais Presumo que aprendi a melhor estuciar à realidade dos quilombos contemporâneos discutindo abertamente ideias solicitando sugestões ao senhor Valmir dos Santos que reside entre Tijuaçu e Cariacá e estreitando com os atores sociais das comunidades relações de parentesco compadrio e vizinhança Além de líder quilombola Valmir é estudante de pósgraduação latusenso na área de Educação e as suas considerações a respeito da minha pesquisa contribuíram significativamente tanto para a minha performance em campo quanto para a narrativa construída sobre o grupo Nas concepções trazidas pela pesquisadora América César 2001 as comunidades tradicionais por vezes passam a ser conhecidas pelo que é dito sobre elas partindo dessa premissa compete ao pesquisador manter não apenas uma atitude de vigilância epistemológica em relação ao campo mas também de respeito no processo de utilização de seus dados No tocante ao Lajedo embora eu já tivesse visitado esse grupo algumas vezes desde 2013 as relações apenas se estreitaram durante a pesquisa de campo Antes desse período eu mantinha um contato mais acentuado com algumas pessoas da comunidade apenas quando as encontrava em feiras livres da região 49 11 CONVERSANDO COM A NEGRITUDE SERTANEJA43 A partir do aparecimento de diversas comunidades quilombolas rurais pesquisadores como Clóvis Moura 1972 Flávio dos Santos Gomes 1994199620052015 José Maurício Arrutí 199620002006 Steil 1996 Schwart 1996 Glória Moura 20002012 Maria de Fátima Novaes Pires 200320102018 Nivaldo Osvaldo Dutra 2015 Paulo Henrique Duque Santos 2018 Napoliana Pereira Santana 2018 Gabriela Amorim Nogueira Silva 2018 entre outros começam a contribuir com a desconstrução do estereótipo da não existência ou da pouca influência do ator social negro no sertão baiano Os estudos desenvolvidos por esses pesquisadores têm colaborado para desconstruir a premissa de que apenas as regiões litorâneas concentraram africanos as escravizados as deles recebendo contribuições para a sua formação política econômica social e cultural Nesta tese não pretendo afirmar que a existência numérica e a influência cultural africana se fizeram sentir no sertão da Bahia com a mesma intensidade como ocorreu no litoral e no recôncavo No entanto me proponho a contribuir para a revisão crítica da suposta afirmação da não ocupação africana nas regiões interioranas do estado e consequentemente da sua não participação ativa para a formação dessas regiões De modo especial concentro essa discussão na região norte onde se encontram localizadas as comunidades estudadas Segundo Reis e Gomes 1996 p 20 grupamentos quilombolas teriam se instalado há centenas de quilômetros na região norte da Bahia e também em Pernambuco ocupando centros urbanos ou deslocandose para outras áreas de povoamento Entre essas zonas de povoamento chamo a atenção para a posição ocupada pelo sertão principalmente devido à atividade de criação de gado vacum e cavalar que se proliferou nessa região do país afirmandose durante muito tempo como a principal atividade econômica desenvolvida Muitos exescravizados as tornaramse após a abolição da escravatura agregados as de seus antigos senhores Esse sistema predomina até os dias atuais inclusive em 43 O termo Negritude Sertaneja designa grupos negros do sertão invisibilizados pela história oficial marginalizados pela sociedade envolvente e que afirmam uma tradicionalidade quilombola Diviso como atributos inerentes à Negritude Sertaneja os saberes ancestrais vivências e interações que esses grupos estabelecem em suas atividades políticas qualificadas pela emergência não exatamente de uma categoria criada pelo Estado o quilombola e sim de um conceito que constroem com criatividade particular e com base no qual negociam as suas identidades 50 comunidades que se descobrem quilombolas A esse respeito se pode parafrasear Capistrano de Abreu 2000 quando ele relata que os primeiros ocupantes do sertão não eram os donos das sesmarias e sim os escravos ou prepostos afirmando que esses últimos devem ter experienciado uma vida bem apertada devido ao absenteísmo de seus senhores Nessa mesma linha de raciocínio a pesquisadora Gabriela Amorim Nogueira Silva 2018 p18 em seu estudo sobre o povoamento das fazendas setecentistas do Certam de Cima enuncia que nas vivências pregressas de escravos verificadas em fazendas do interior do alto sertão é possível revelar suas estratégias de sobrevivências relativas autonomias conquistadas nas labutas cotidianas reelaboradas na condição de viver por si característica peculiar dos sujeitos escravizados as que imprimiram novas mediações sociais e especificidades da escravidão nos sertões baianos setecentistas Um fator que pode ser considerado como atrativo para o povoamento de várias regiões sertanejas é a presença de grandes rios a exemplo do rio São Francisco Donald Pierson 1972 como é sabido realizou um importante estudo sobre a presença e influência do homem no Vale do São Francisco região onde é oportuno lembrar concentra um grande número de comunidades remanescentes44 de quilombo a exemplo de Rio das Rãs situado no município de Bom Jesus da Lapa banhado pelas águas do rio São Francisco e localizado na região oeste do estado da Bahia Vale notar que tanto a comunidade de Cariacá quanto a comunidade de Lajedo estão estabelecidas próximas a rios perenes A primeira desenvolveuse próxima à bacia do Rio Itapicuruaçu ao passo que a segunda se encontra situada de forma privilegiada próxima aos rios Paiaiá Pedras e Itapicuru Algumas quedas dágua entre as quais a cachoeira do Gelo e do Mandingueiro conforme já foi relatado se encontram também nos limites do território tradicional de Lajedo O silenciamento no que se refere à presença das diversas comunidades negras rurais que de forma secular estão estabelecidas nessa região do estado emergindo crescentemente de uma situação de invisibilidade histórica passa a dar espaço a 44 A palavra remanescente não é utilizada aqui como sinônimo de resquício e ou vestígio referente a tempos passados visto que neste estudo as comunidades quilombolas são percebidas levandose em consideração tanto sua ancestralidade africana quanto as ressignificações estabelecidas por esses grupos ao longo da história Fato que lhes permite a possibilidade de figurar no momento presente como quilombos contemporâneos 51 discussões sobre o povoamento de grupos negros nos sertões e a historiografia produzida por esses atores sociais que é aqui analisada sobretudo da perspectiva das diferenças que utilizam para construir as suas identidades e não apoiada em uma ótica homogênea Embora possuam traços comuns construídos ao longo de suas trajetórias coletivas esses grupos tradicionais redirecionaram suas vivências mediante particularidades ressemantizadas por mais de uma geração atendendo às necessidades requeridas em cada contexto O movimento de transmutação das comunidades negras rurais em comunidades quilombolas tem se tornado uma realidade cada vez mais frequente na atualidade e confirma a presença de africanos as em diversos espaços sertanejos As antigas comunidades negras rurais antes disseminadas entre a população camponesa local têm se insurgido contra uma situação de ocultação e marginalização para se colocar diante do Estadonação45 como grupos diferenciados e que reivindicam sua cidadania com esteio em uma condição étnica e cultural da qual se declaram herdeiros A ancestralidade africana que os atores sociais quilombolas reclamam tem encontrado na atualidade um terreno propício para se manifestar no passado em função de uma situação histórica de opressão essa reivindicação permaneceu oculta em estado latente É cabível relatar que os sertões da Bahia se notabilizam como palco de diversos silenciamentos alicerçados na impunidade que sempre favoreceu a prepotência e a arbitrariedade das ações dos segmentos da população detentores de títulos considerados poderosos Os sujeitos negros cujo fenótipo era geralmente associado a uma inferioridade econômica eram discriminados pelas elites dirigentes que contra eles exerciam coerções diversas lhes negando o acesso a empregos à educação escolar saúde e outros serviços sociais A desconsideração da humanidade e do exercício da cidadania das comunidades negras do norte baiano antes das movimentações ensejadas pelo Barulho do Quilombo era um fato naturalizado Relato inclusive que piadas ancoradas em estigmas racistas a 45 O Brasil sendo um país constituído por povos diversos e possuidor de uma variação étnica demográfica e cultural que atua como um fluxo renovandose e promovendo um intenso hibridismo pode ser percebido como várias nações sob a égide de um Estado centralizador 52 exemplo de branco é filho de Deus mulato enteado caboclo não tem parente e negro é filho do diabo ou ainda nega preta do sovaco fedorento rala a bunda no cimento pra ganhar mil e quinhentos46 continuam sendo empregados como ditos espirituosos Por mais de uma vez escutei essas quadras vulgares sendo recitadas em diversos locais como escolas repartições públicas lojas de comércio ônibus e feiras livres direcionadas a pessoas negras quilombolas ou não e acolhidas pelos presentes como um comportamento desprovido de perversão e portanto não necessitado de punição Argumento que uma extensão da escravidão do corpo negro permaneceu durante muito tempo entre as populações do sertão tratase da servidão simbólica aquela que fere e maltrata de maneira meticulosa compelindo o sujeito à qual se destina a um estado frequente de subalternidade Esse tipo de silenciamento adotado em um contexto constituído historicamente por povos misturados mas que por uma questão de manipulação das classes dirigentes sempre se perceberam e desejaram ser brancos é divisado nesta tese como um dos contributos para a continuada invisibilização da Negritude Sertaneja Entendida nesse estudo como uma região de refúgio para escravizados amocambados e indígenas que fugiam do litoral em decorrência de perseguições dos colonizadores a fronteira sertaneja inaugurou um novo espaço no país ocupado por grupos socialmente minoritários tais como quilombolas indígenas ribeirinhos comunidades de fundo e fecho de pasto e não negros empobrecidos que por necessidade de sobrevivência e aceitação social se tornaram invisíveis Em sua pesquisa sobre o quilombo contemporâneo de Mocambo localizado na região sertaneja de Porto da Folha em Sergipe Arruti 2006 fornece alguns aportes teóricos para se repensar a situação de desconhecimento projetada para os grupos negros sertanejos Na concepção de Arruti 2006 p 172 são as regiões interiores os chamados sertões espaços onde não são encontrados com a mesma facilidade registros de existência 46 Quadras vulgares pronunciadas a voz corrente por indivíduos que se percebem como não negros com o objetivo de inferir e discriminar os atores sociais negros Essas ditas brincadeiras durante muito tempo sobretudo antes da conscientização suscitada pela emergência das comunidades quilombolas ficaram sem qualquer tipo de punição Presumo que a compreensão do significado da existência dos grupos quilombolas espalhados nos diversos sertões acarretou para a sociedade envolvente o traço diferencial de saber que a reivindicação de atitudes caracterizadas pelo viés do respeito deve acontecer como algo que é inerente a todos os povos e grupos sociais independente de etnia credo e ou opção sexual Em um contexto no qual o desconhecimento atua como fomentador de muitas invenções negativas e discriminações a presença dos grupos tradicionais tem provocado mudanças significativas 53 de grupos fugidos ou forros as localidades que melhores condições ofereciam para a instalação de grupos sociais marginalizados e para a sua organização em unidades territoriais dotadas de alguma estabilidade Quando esses grupos se afastavam da zona canavieira ou se reproduziam mediante outras formas de subsistência distintamente dos assaltos às estradas e engenhos saíam do raio de atenção das autoridades e passavam a ser confundidos com a população camponesa local Arruti 2006 problematiza uma discussão realizada anteriormente por Clóvis Moura 1972 que argumentou em prol da presença e colaboração dos atores sociais negros na produção econômica e cultural da região do São Francisco no oeste e no norte baiano mesma mesorregião onde se encontram localizadas as comunidades aqui trabalhadas Moura 1972 enfatiza que esses sujeitos teriam sido conduzidos a esse espaço e distribuídos por fazendas na condição de escravizados ou ainda adentrado às matas morros e caatingas como fugitivos na condição de quilombolas De acordo com o supracitado autor Quando o legendário monge que fundou o santuário do Bom Jesus da Lapa chegou ao local onde ele hoje se encontra divisou em Itaberaba currais de vastas proporções que eram ainda cuidados por alguns portugueses e escravos da África Ainda na região do Bom Jesus da Lapa informa o mesmo autor existiam distantes da gruta uns quinhentos metros umas quantas choças de índios e a uma légua uns currais de gado do Conde da Ponte aos cuidados de portugueses e africanos MOURA 1972 p 217 Em sua análise sobre o quilombo do Oitizeiro tido como um dos maiores produtores de farinha do interior do estado e situado mais precisamente nas imediações de Barra do Rio de Contas o historiador João José Reis 1996 p 333 faz referência às inúmeras propriedades do Conde da Ponte O autor afirma que nelas se encontravam milhares de cabeças de gado centenas de escravizados engenhos distribuídos no Recôncavo dezenas de fazendas e sítios arrendados que cobriam imensos territórios nos sertões da Bahia A existência dos quilombos sertanejos entre os séculos XVIII e XIX foram também relatadas por Stwart 1996 p 382 em seus estudos sobre a rebelião dos Haussás em 1814 Ele menciona a diversidade de quilombos que se espalhavam pelo sertão da Bahia 54 localizandoos entre as Águas Verdes e Côncavo na bacia do Jacuípe Orobó e Andaraí localizados na Chapada Diamantina Em um mapeamento realizado pela Prefeitura Municipal de Salvador Pedro Tomás Pedreira 1973 registrou a presença de populações negras no sertão e de escravizados as nas longínquas vilas de Nossa Senhora do Livramento no Rio de Contas e nos sertões da Jacobina Ainda sobre essa presença africana no sertão de Jacobina e de Rio de Contas o pesquisador Flávio dos Santos Gomes 2015 relata que havia denúncias sobre mocambos de negros que se comunicavam com grupos indígenas considerados arredios enfatizando que para fugir das expedições que tentavam escravizálos os índios Mongoiós se aliaram aos quilombolas de Jeremoabo As comunidades de Cariacá e Lajedo estão localizadas em territórios que no passado pertenceram à Vila de Santo Antônio da Jacobina As dependências da Vila compreendiam originalmente cerca de 300 léguas abrangendo terras de propriedade da Casa da Ponte da família Guedes de Brito estendendose desde o Rio de Contas até os limites correspondentes ao atual estado de Sergipe incluindo a cachoeira de Paulo Afonso A discussão sobre a contribuição dos atores sociais negros durante o povoamento dos sertões foi também revisitada pelo pesquisador Valdélio Silva 201047 em sua tese de Doutorado sobre a comunidade quilombola de Rio das Rãs O autor faz referência à grande quantidade de africanos as e afrodescendentes que por ocasião da abolição da escravatura acorreram ao Santuário do Bom Jesus da Lapa para comemorar a alforria Em seu estudo Silva 2010 ressalta os obstáculos superados pelos africanos as e afrodescendentes para participar da manifestação pública diante da Gruta que se prolongou por oito dias Os exescravizados as celebraram em uma grande festa pública cantando tocando pandeiros e maracaxás dando vivas ao Senhor Bom Jesus da Lapa que saudavam e conheciam pela denominação de Lenimbé Furáme Esses registros sobre a presença dos negros no Santuário do Bom Jesus da Lapa após a abolição poderiam ser tomados como importantes pistas para uma pesquisa específica sobre esse assunto pelas seguintes razões a os negros estavam presentes no Vale do São Francisco ao que parece de forma significativa e isso mostra ser evidente não somente pela referência à imensa multidão mas também por que a festa durou oito 47 SILVA Valdélio Santos Rio das Rãs e Mangal Feitiçaria e Poder em Territórios Quilombolas do Médio São Francisco 2010 354 f Tese Doutorado em Estudos Étnicos e Africanos Programa de Pósgraduação Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos Universidade Federal da Bahia UFBA Salvador 2010 55 dias b os negros acompanhavam os acontecimentos nacionais mesmo estando confinados em uma região distante e a maior parte residindo no meio rural sem falar das imensas dificuldades de comunicação c estavam bem articulados na região pois não deve ter sido fácil organizar uma manifestação nas proximidades da Gruta do Bom Jesus que teria durado uma semana e envolvido uma imensa multidão sem que se tivesse uma preparação prévia e convicções formadas sem o significado daquela decisão SILVA 2010 p 60 Essa celebração interpretada como um ato político demonstra que desde o período escravocrata existiu entre os negros rurais uma capacidade de articulação que passou despercebida por seus senhores talvez por desconsiderarem suas habilidades de organizar mobilizações devido ao fato de não estarem em um ambiente urbano A concentração de grande número de exescravizados as no Templo do Bom Jesus da Lapa pode também ser percebida como mais um exemplo para desautorizar o mito do isolamento atribuído às comunidades negras rurais Gomes 2015 e estendido às comunidades quilombolas sobretudo por parte de setores da sociedade pouco envolvidos com essa temática Ao conjecturar sobre o destino dos quilombos brasileiros após 1888 Gomes Ib p 120 afirma que esses núcleos continuaram a existir e se multiplicar como micro comunidades camponesas constituídas em sua maioria por sujeitos negros e afrodescendentes Não foram extintos As categorias de escravizados e fugitivos é que foram substituídas por outras classificações como a de sertanejo Essas micro comunidades camponesas se perpetuaram em seus lugares de origem Na concepção de Gomes Ib esses agentes permaneceram migrando desaparecendo e se reproduzindo em meio ao emaranhado das diversas comunidades camponesas espalhadas de norte a sul do país Os grupamentos negros rurais resistiram porque sempre souberam administrar ao seu favor a identidade que precisaram constituir para preservar a sua existência e reprodução sociocultural Conforme afirma Schwartz 1996 p 376 os quilombos que se espalhavam pela zona rural serviam de farol e refúgio para os escravizados as dos engenhos sendo portanto de suma importância tanto para os que lá se encontravam quanto para aqueles as que percebiam nesse ato de fuga e migração a possibilidade de assegurar a sua liberdade migrando de sua região de origem e adotando uma nova identidade Eles se integraram à população sertaneja possivelmente se adequando a designações comuns atribuídas aos agentes sociais residentes nessa parte do país se 56 tornaram portanto camponês caiçara da roça caipira do mato e no máximo caboclo identidades que melhor se aproximam dos ideais de branqueamento nutridos nessas regiões em especial por parte das camadas governantes e socialmente abastadas Estimulados a perder o vínculo com sua negritude epidérmica principalmente com os valores africanos que foram ressignificados na diáspora e procurando se incorporar à chamada população rural brasileira os grupamentos negros rurais sejam aqueles constituídos na época da escravidão ou no chamado período do pósabolição têm uma história apoiada não apenas na luta como também na capacidade demonstrada para reinventar vivências e estilos de vida ancorados nos valores que professam assim como no território que ocupam os sertões e interiores concebidos neste estudo como repositório de vivências ancestrais Os amocambados ao se afastarem do debrum litorâneo buscaram constituir suas vidas nos novos espaços buscados de modo a evitarem qualquer possibilidade que pudesse ameaçar essa suposta liberdade adquirida Menciono que entre os fatores divisados como ameaçadores se sobressaía a sua condição quilombola que necessitava ser esquecida ou apagada para assegurar a sua existência na sociedade formalmente pós escravocrata Essa capacidade histórica de se metamorfosear possibilitou que esses grupos aparecessem na atualidade substituindo o ethos do silêncio pelos ecos de suas vozes Demonstrando habilidade de se articular para reivindicar do Estadonação direitos que lhes foram suprimidos e cuja usurpação serviu para mantêlos em uma situação de inferioridade perante outras categorias sociais A necessidade de preservar suas vidas suas liberdades individuais e coletivas certamente estimulou os inúmeros homens e mulheres negras que buscaram o sertão a abdicar cada vez mais de suas identidades africanas e afrodescendentes bem como de qualquer outro vínculo que remetesse à situação servil a qual foram confinados aderindo a uma sertanidade48 que passou a orientar as suas formas de vida Nesses espaços agenciados a etnicidade funcionou como o sinal diacrítico que permaneceu submerso no interior dos grupamentos negros por ser considerada um 48 Compreendo sertanidade como os estilos de vida e formas de organização verificados nos âmbitos político econômico social e cultural adotados pelos agentes que residem em diversos interiores baianos designados sertão 57 elemento denunciador de sua origem A Negritude Sertaneja passou então a se reconfigurar camuflada nessas comunidades de modo a assegurar seu convívio na sociedade regional daí por que memórias foram sufocadas atividades culturais reprimidas e religiosidades reinventadas por esses povos que ali se encontravam e que reescreveram outras narrativas históricas Comungo com os historiadores Reis e Gomes 1996 p 12 quanto à necessidade de se atentar para esse processo de construção e reconstrução de novas instituições culturas e relações sociais inclusive com o propósito de compreender por que os quilombolas e escravizados as em geral optaram por manter certos aspectos de suas origens africanas e não outros Ao fazêlo ao tempo em que africanizavam o seu novo mundo renovavam o que da velha África conseguiam carregar consigo Pretendo enfocar alguns caracteres observados nos saberes práticas e vivências dos habitantes de Cariacá e de Lajedo que se estruturam no universo de signos do que denomino Negritude Sertaneja 111 TRAÇADOS E TRANÇADOS DA NEGRITUDE SERTANEJA A trajetória histórica empreendida pelos ancestrais africanos as quase sempre permanece desconhecida nos quilombos contemporâneos em especial a chamada história oficial O que é sabido ainda que em forma de fragmentos considerando que em algumas comunidades a memória oral aparece com certa dificuldade é a história de seu grupo específico As ações realizadas pelo ancestral fundador a ou ainda os feitos praticados pelas primeiras famílias que iniciaram o povoamento da comunidade estes constituem legados que atravessam gerações sendo repetidas pelos netos e bisnetos as que por vezes fazem questão de narrálas de modo a especificar sua legitimidade Além da legitimidade atestada entre outros fatores pelo mito fundador há os traçados e trançados internos que podem ser observados nos estilos de vida adotados pelos membros das comunidades em foco capazes de amparar as suas existências Eles constituem um estatuto interno que não chega a ser explicitado oralmente mas é apresentado às crianças e performado pelos atores sociais mais jovens modelam suas 58 ações e comportamentos Os sinais que os diferenciam e compõem o trançado da vida como relatou o senhor Francisco João dos Santos 81 anos conhecido em Lajedo como Seu Sariabo Contador de piadas e narrador de muitas histórias ele é muito apreciado na comunidade Meu primeiro contato com Seu Sariabo ocorreu na cidade de Saúde Na ocasião ele afirmou que pra saber o trançado da vida do Lajedo a menina vai ter que ir lá pra entender por que o povo não quer sair dali O trançado descrito por Seu Sariabo se refere à organização do modusvivendi em sua comunidade caracterizado pelas histórias ancestrais e por um imaginário povoado de saberes denominados sabedoria do povo do mato49 O trançado da vida também opera em Cariacá Descrevo algumas características culturais observadas em ambos os grupos estudados considerando as suas especificidades mas também os aspectos similares Elejo os elementos que compõem as construções presentes nos traçados e trançados da Negritude Sertaneja os conhecimentos ancestrais que permanecem referendando a vivência cotidiana desses grupos e as habilidades que podem ser também pensados como modos de ser e de se perceber quilombola A literatura produzida sobre as populações quilombolas geralmente prioriza a memória histórica e as lutas políticas empreendidas Ambas constituem aspectos relevantes para orientar a caminhada dessas comunidades assim como a reivindicação por políticas públicas específicas No entanto há uma rica produção interna de saberes tradicionais que possui uma função social cotidiana na vida dos seus membros e que não pode por mim ser descartada haja vista que pude observar a importância desses saberes na construção do processo educacional informal que concede significado sustenta as lutas insurgências e resistências modelando concepções de vida traçadas isto é os conhecimentos que herdaram e permanecem herdando dos mais velhos as e trançadas sobre o olhar que cada geração lança sobre esses ensinamentos e a credibilidade que a eles conferem Motivo pelo qual os designo também nesta tese de saberes da resistência Advirto que não pretendo cristalizar conceitos tampouco essencializar comportamentos observados Presumo que uma pesquisadora que se propõe a desenvolver um trabalho ético e comprometido politicamente com os as interlocutores as deve 49 Expressão utilizada por esses grupos quilombolas sertanejos para expressar o conhecimento de manipulação das ervas simpatias e orações consideradas imprescindíveis para entrar e sair da mata fechar o corpo dos adultos e proteger as crianças de mauolhado e visagens 59 produzir uma narrativa respeitosa sobre as construções simbólicas que norteiam os modos de vida dos membros de Cariacá e Lajedo evidenciando a relevância dessas cosmovisões no cotidiano dessas comunidades 112 PRESTANDO ASSUNTO Assuntar50 é uma postura altamente prestigiada em Cariacá uma arte aprendida pelos mais velhos as e um legado para os mais jovens Segundo Seu Manuel Julião Dias quem não assunta é assuntado Ele provavelmente iniciou seus filhos as e netos as nessa tarefa divisada como condição necessária para experimentar e estabelecer posicionamentos diante da vida Seu Manuel ou Mané Congo como gostava de ser identificado justificando que pertencia ao tronco velho dos Congo faleceu no segundo semestre de 2015 após ter concedido duas entrevistas que contribuíram significativamente para a escrita desta tese Além dessas entrevistas destaco os diálogos igualmente proveitosos mantidos com o ancião e sua importante contribuição na rememoração da história de fundação da comunidade51 A atitude de assuntar se relaciona ao ato de observar pessoas objetos ambientes e situações de forma a não ser ludibriado e permanecer no prejuízo seja no plano econômico afetivo e ou espiritual se colocando em uma posição de desvantagem capaz de acarretar problemas não apenas para aquele a que experimentou tais situações como também para a sua parentela e assim comprometendo moralmente a família perante o grupamento Quem mantém o hábito de assuntar se isenta de adquirir indisposições por isso desde muito cedo os membros de Cariacá são engajados na arte de assuntar aprendendo a prestar assunto às diversas situações que se apresentem no cotidiano pois é prestando assunto que se adquire experiência e conhecimento valores muito apreciados e capazes de suscitar a consideração coletiva Percebi a arte de assuntar contemplando os membros das comunidades as suas formas de se relacionar com a vida em uma cosmovisão que respeita o espaço e as horas consideradas sagradas Atitudes que puderam ser observadas quando eles realizavam as 50 Em Cariacá os quilombolas emprestam a essa palavra o sentido de observar ou ainda de prestar atenção 51 No Capítulo 2 farei referência direta a esse assunto 60 tarefas cotidianas e se resguardavam de pronunciar palavras que por motivos diversos não devem ser ditas nem escutadas Dona Luci de Cariacá advertiu aos seus muitos afilhados as residentes na comunidade e nas outras localidades do perímetro sobre a força da palavra pois existe palavra de levantar e de derrubar a pessoa Segundo Dona Luci algumas pessoas derrubam com o olho outras com a boca que não é abençoada é boca de derrubar pois a palavra antes de ser direcionada a outrem já existe e arregimenta em seu entorno um significado portanto antes de ser lançada a força da palavra já existe dentro ela e é essa circunstância que concentra a energia que derruba ou levanta a pessoa à qual a palavra foi dirigida É fato comum em Cariacá alguém dizer está contrariado por ter começado o dia falando ou olhando para uma pessoa que tem olho ou palavra ruim encontrar pessoas assim ainda no início da manhã é tido como um aviso ou prenúncio que esse dia não terminará bem e ou ainda que acontecerá alguma circunstância adversa Um encontro tão evitado quanto aquele que acontece envolvendo pessoas que possuem olho e boca ruim é o contato com os intrigados já que essa energia também compromete a teia da vida As pessoas que se acredita terem olho e boca ruim não costumam ser hostilizadas apenas evitadas especialmente em algumas circunstâncias Elas não devem visitar os recémnascidos ou presenciar a realização de algumas tarefas de preparação de alimentos costura de roupas e até mesmo durante atividades que envolvam o uso de dinheiro porquanto sua presença pode atrasar ou gorar52 essas atividades De acordo com Dona Luci é preciso revelar à pessoa que ela possui olho goro como forma de ajudála a reverter essa sina Porém essa é uma atitude complicada pois expõe ambas as pessoas a uma situação vexatória que pode se converter em um melindre e potencial intriga Em Lajedo também existe a preocupação de resguardar as crianças de colo do mau olhado esse cuidado é todavia observado com relação às pessoas de fora O sentimento de pertença observado no grupo o sentimento de que formam uma única família um tronco de várias ramas permite cultivar a crença de que a energia emanada pelas pessoas da própria comunidade não é capaz de ofender as crianças 52 Os interlocutores as utilizam essa palavra para indicar uma atividade que não se realizou devido a um empecilho externo 61 Não se faz queimada ao meiodia53 nem mesmo nos quintais das casas Antes de iniciar esse procedimento tão comum entre os rurais negros é preciso rezar54 e pedir a permissão para controlar o fogo Essa atividade de coivarar terra55 comum entre os grupos tradicionais é uma habilidade que passa de pai para filho tratase de uma técnica aprendida através da observação das tarefas realizadas pelos mais velhos as cuja experiência se faz respeitar principalmente quando da ateação do fogo pois isso exige ciência56 há que se verificar o posicionamento do sol e a direção do vento Por isso as pessoas que não demonstram experiência não são admitidas nesse trabalho é preciso aprender prestar assunto escutar ao que é dito pelos mais velhos as A faculdade de ter ciência é descrita como um acúmulo de saberes que se aplicam às circunstâncias práticas da vida Coube aos mais velhos as a oportunidade de ser iniciados as nesse tipo de práxis e por isso a eles as compete cuidar da sua transmissão àqueles as que se encontrem aptos para herdála aptidão que se verifica por meio de inclinação pessoal ou ainda quando escolhido pelo paimãe avôavó ou outro ancestral A autoridade aqui evidenciada deve ser cultivada pois esse princípio quando delegado a outrem fundamentase em um comportamento construído tomando como base as experiências que se acumulam ao longo da vida Ela não se encontra alicerçada em qualquer tipo de imposição As gerações mais jovens quando não demonstram respeito pelos preceitos de seus ancestrais e pelas diversas dimensões da vida sociocultural da comunidade não são bem vistas pelo grupo passando a ser apontadas como pessoas que não merecem confiança não servem para casar pois não saberiam conduzir a família Elas incorrem frequentemente em erros que poderiam ser evitados se mantivessem uma atitude de escuta e de obediência 53 Esse horário é considerado sagrado em Cariacá É um horário de preceito pois ao meiodia não nasce ninguém nem morre ninguém sendo um horário de silêncio quando o tempo para 54 Essa crença é comum entre os atores sociais de Cariacá e Lajedo 55 Procedimento comum entre populações quilombolas e camponesas Realizada para possibilitar o plantio da agricultura de subsistência o processo tem início com a derrubada da mata nativa seguida da queimada do solo Apesar das polêmicas que envolvem esse procedimento ainda é uma atividade usual em localidades rurais onde as comunidades descritas nesta tese se encontram localizadas 56 Palavra difusa principalmente entre os mais velhos as que se refere à habilidade de demonstrar conhecimento sobre determinado fato ou manipulação de tarefa 62 A habilidade de ter ciência expandese a outras situações da vida cotidiana a exemplo do reconhecimento das horas verificando o tempo de Deus57 isto é sem a necessidade de recorrer a ajuda de um relógio ou aparelho celular O tempo de Deus é uma expressão acionada para indicar os fatos ocorridos no passado Em Cariacá Seu José Pedro dos Santos conhecido como Zé Preto orgulhavase de conhecer essa ciência que lhe foi transmitida por seu pai tropeiro descrito como alguém que andou bastante na vida e aprendeu em todo canto que andou58 A vida para os grupos quilombolas focalizados neste estudo é apreendida na rotina diária como um atributo divino e uma experiência que confere aprendizado Os atos de assuntar e aprender ensejam na compreensão dos sujeitos das comunidades estudadas a sabedoria socialmente validada Alguém que não acumulou sabedoria é desconsiderado referido apenas nos exemplos aos mais jovens de condutas que devem ser evitadas Nas ocasiões em que encontrei Seu José Pedro adotei o hábito de indagar sobre as horas em tom de brincadeira Sem se perturbar observando o céu e a sua sombra em relação ao sol ele me respondia em tom audacioso tá certo pra mais ou pra menos Ele faleceu em setembro de 2017 Eu o entrevistei três vezes a primeira entrevista foi realizada em janeiro de 2014 antes do meu ingresso no curso de Doutorado Seu José Pedro morreu com 104 anos vividos em Cariacá exceto por alguns períodos de ausência migrações temporárias para o sul da Bahia quando das grandes secas que acometeram o sertão em especial a de 1932 Sua idade e conhecimentos lhe conferiram os títulos de membro mais velho do grupo e depositário de sabedoria Encontrei Seu Pedro diversas vezes embaixo de um pé de umbuzeiro ou em sua residência sentado em um sofá situado próximo a uma mesa de madeira com bancos que ele próprio havia construído Ele costumava manipular uma enxada ou um facão entre as mãos ferramentas das quais dizia não se apartar pois as usava para cavoucar a terra considerada o maior benefício de minha vida 57 Essa expressão é muito utilizada por esses sujeitos ressemantizados em especial durante o horário de verão Em Cariacá os quilombolas acreditam que modificar o tempo através do adiantar das horas contraria o que chamam do tempo de Deus Outra expressão recorrente nesse grupo para se referir aos fatos positivos que ocorreram no passado é isso é coisa do tempo em que Deus andava no mundo 58 Andar nesse contexto significa acumular conhecimentos e experiências É comum afirmarem que alguém é bem corrido quando desejam enfatizar vivências capazes de assegurar o que denominam de sabedoria de vida 63 Quando eu chegava Seu Zé Preto que ainda fabricava tijolos pausava o trabalho e me concedia a possibilidade de melhor compreender a trajetória de sua comunidade informando aqui no Cariacá quem quiser saber das coisa tem que perguntar ao Zé Preto Por isso não se acanhe não e quando quiser saber venha cá Pode vim Essas palavras pronunciadas em tom de satisfação eram escutadas por sua esposa e netos as que também apareciam durante as entrevistas para aprender as histórias narradas com lucidez capazes de revelar a postura cônscia do ancião no que se refere à condição que ocupava no interior do grupo Em uma das conversas informais que tivemos que se realizavam preferencialmente antes do meiodia quando Seu Zé Pedro demonstrava mais disposição para prosar indaguei sobre os procedimentos que ele utilizava para saber as horas através do sol Ele retorquiu provocativamente isso é ciência que gente nova não tem Esse episódio me tornou motivo de risos durante algum tempo entre os as presentes Compreendi que essa ciência representa um lugar de segredo Possuir essa ciência concede certo enaltecimento portanto esse conhecimento é preservado e pouco partilhado com os demais Durante a noite a averiguação das horas é feita com menor probabilidade de acerto considerando a posição da constelação do Cruzeiro do Sul Segundo Seu José Pedro quando o cruzeiro se levanta no céu e forma uma cruz aí nesse momento dá meia noite Aí atingiu a hora sagrada Suponho ser oportuno estabelecer um comparativo entre a intimidade demonstrada pelos anciões de Cariacá com os movimentos dos astros e o comportamento atribuído ao universo místico presente no animismo indígena É uma herança registrada na memória coletiva do grupo59 Além de conviver de modo respeitoso com os elementos da natureza ou com o mato a expressão da Negritude Sertaneja também se manifesta em alguns comportamentos da vida cotidiana que são traçados e permanecem sendo descritos neste estudo 59 No Capítulo 2 abordo com mais propriedade a ascendência afroindígena de Cariacá 64 113 AUTORIDADE PARA BOTAR BENÇA A bênção é percebida pelos membros das comunidades estudadas como uma invocação que fornece ajuda e proteção Pedir a benção é um costume das crianças adolescentes e até de alguns adultos em momentos específicos do dia como ao acordar ao se preparar para dormir e às seis horas da tarde Em Cariacá às seis horas da tarde todas as luzes das residências estão acesas pois se acredita que Nossa Senhora vai passar e abençoar a casa manter as luzes apagadas nesse horário é uma atitude de desrespeito à santa cuja bênção é tida como especial O poder da bênção costuma também ser requerido em situações que demandam a realização de tarefas importantes como antes de uma viagem de um casamento e principalmente quando da migração para os grandes centros urbanos em busca de oportunidades de trabalho Nessas ocasiões o ato de botar bença conforme é dito em Lajedo quase sempre é sucedido pelo traçar do sinal da cruz na testa do abençoado a Esse gesto considerado sagrado funciona como uma confirmação da benção Botar bença transfere poder e força do a que abençoa àquele a que é abençoado Para ser eficaz a benção só pode ser conferida por pessoas eleitas para a função como para os seus parentes diretos pois existe a crença de que o poder da bença pega isto é o abençoado a adquire traços característicos da personalidade do a abençoador a Em novembro de 2017 presenciei o caráter afetivo e místico do qual se reveste a benção quando D Idália Santana de Azevedo 45 anos botou a bença em sua filha Rose que estava viajando para Minas Gerais onde passaria três meses auxiliando uma tia em período de resguardo Rose foi abençoada pela mãe e por um tio materno Seu Alberto Santana de Azevedo O pai de Rose Seu João Colado também a abençoou Mesmo sendo atualmente evangélica Dona Idália reconhece o valor da bênção para alcançar um estado de bemestar na vida de todos os seres e por isso nunca deixou de praticar o costume de pedir a bênção à mãe D Roxa uma vez que o seu pai já é falecido Quando D Idália está na cidade de Saúde na casa de sua mãe as crianças costumam confundila com Dona Roxa e solicitam a bênção quando a encontram para não desapontálas D Idália responde Deus te abençoe60 Certa ocasião indaguei a D Idália se ela não havia 60 O motivo dessa solicitação encontrase associado ao fato que a Senhora Eulina Carmelina de Santana Dona Roxa é rezadeira e costuma ser procurada constantemente para rezar nas crianças 65 enfrentado problemas com a sua nova religião por permanecer dando a benção Ela respondeu tem coisa na vida da gente Paula que ninguém tem nada a ver não Compreendi então que a crença depositada no poder desse rito transcende o credo religioso e encontra sua força no universo espiritual construído na comunidade No casamento de Rose realizado em dezembro de 2018 observei o quanto o poder atribuído à bênção é forte entre as pessoas de Lajedo haja vista que antes de sair de casa para a realização da cerimônia a noiva se ajoelhou e solicitou a bênção da mãe e da avó materna Embora com menor frequência as crianças antes de ir para a escola61 situada na comunidade de Palmeira ou na cidade de Mirangaba conservam o hábito de tomar bença aos pais Quando não o fazem espontaneamente são com frequência repreendidos sob a alegação de falta de consideração ou de responsabilidade para com os mais velhos as A bênção é normalmente solicitada aos que possuem atribuições para abençoar no caso os pais avós tios irmãos mais velhos e padrinhos A autoridade para botar bença se verifica em função do grau de parentesco da idade das experiências de vida e do respeito que a pessoa suscita entre os membros da comunidade Entre os as mais velhos as e alguns as adultos as a bênção pedida aos padrinhos é antecedida de uma louvação Louvado Seja Nosso Senhor Jesus Cristo Bença minha madrinhapadrinho Ela é especialmente recitada nos dias de Sexta Feira da Paixão quando usualmente as famílias têm convidados para o almoço geralmente afilhados as e filhos as que já constituíram suas próprias famílias que comparecem com seus cônjuges e filhos A louvação pronunciada por afilhados as de batismo crisma e ou representação62 se relaciona ao afeto desenvolvido pela o madrinhapadrinho Ainda quando não ficam para o almoço os afilhados as são aguardados pelos padrinhos e madrinhas para lhes pedir a bênção Após a benção seguese a troca de presentes ou das iguarias que serão servidas durante a refeição do dia santo No caso dos mais jovens a louvação é menos observada pois se sentem constrangidos e por isso se restringem a pedir a bênção e ser abençoados Em ambas as comunidades enfocadas os quilombolas utilizam a expressão tomar bença acreditando que ela se reveste de proteção espiritual uma vez que segundo D 61 No Capítulo 4 abordarei os motivos que levaram ao fechamento da escola na comunidade 62 No Capítulo 5 discutirei a relevância dos laços de compadrio estabelecidos 66 Roxa a bença serve pra quem pede e pra quem dá Em suas palavras tanto aquele a que invoca a bênção quanto quem é investido a do poder para abençoar se beneficiam durante o processo pois esse rito concentra força que se multiplica através dos atos de abençoar e de ser abençoado É por muitos tido como vantajoso tomar bença várias vezes ao dia e a pessoas diferentes As crianças e adolescentes de Lajedo são orientados a pedir bença quando encontram ou se dirigem às casas dos as mais velhos as Alguns adultos possuem o hábito de pedir a bênção a D Rosália Matias dos Santos de 65 anos D Rosália se distingue na comunidade pelo fato de durante muito tempo ter sido professora na escola local Ela se aposentou em 2010 mas ainda é considerada como mãe dos seus exalunos Ela começou a ensinar quando se casou com Seu Armando João dos Santos de 68 anos e mudouse para o Lajedo O respeito devido à D Rosália ou Rosa como é comumente tratada por seus vizinhos e conhecidos se estende à D Domingas Rosalina de Santana ou D Miúda de 78 anos também conhecida pelos moradores da comunidade como a mãe de todos D Miúda foi parteira nas comunidades de Lajedo Grota das Oliveiras e Água Fria até o ano de 201263 Os grupos quilombolas descritos nesta tese acreditam que as pessoas rebeldes que não tomam bença se tornam sofredoras devido à falta de humildade e respeito à autoridade dos mais velhos as Parentes que não tomam bença costumam despertar sentimentos de compaixão e ou de desprezo tornandose alvo de críticas constantes Mesmo entre as crianças que ainda não foram batizadas notase o hábito de pedir a bênção sempre que encontram os seus futuros padrinhos é um gesto de respeito aos que foram escolhidos por seus pais ou pelo a próprio a afilhado a e que se espera também se responsabilizarão por sua educação acompanhando mais de perto o seu crescimento O costume de tomar bença muito apreciado em Lajedo é transmitido às crianças desde a mais tenra idade para que com o tempo não se perca entre pessoas que se estimam 63 Esclareço ao leitor a que muitas famílias que antes viviam em Lajedo migraram para a comunidade de Grota das Oliveiras Essa comunidade será abordada no capítulo cinco 67 114 O RESPEITO PELAS HORAS MORTAS A OBEDIÊNCIA E O ZELO DA PROTEÇÃO Não se sai de casa à meianoite pois se acredita que este é o momento de dominação do invisível64 ou o tempo das horas mortas Os espíritos dos que dormem estão a passear e é preciso ter preparo para caminhar nesses horários que não pertencem aos vivos Seu Fernando do Monte 75 anos narrou que em certa ocasião em Cariacá ao sair para tirar leite das vacas por volta das 03h30min da madrugada avistou um homem vestido de branco à sua frente Como ele estava distante não o reconheceu e decidiu aumentar o passo disposto a alcançálo e assim ter companhia Quanto mais apressava o passo mais o desconhecido se distanciava passando a aparecer e desaparecer simultaneamente Seu Fernando constatou então que o vulto vestido de branco não se tratava de gente desse mundo mas de uma visagem Para evitar esses avistamentos e outras circunstâncias adversas as pessoas da comunidade evitam sair durante as horas mortas Elas compreendem o período que vai da meianoite às 04 horas da madrugada são horas consideradas longas e misteriosas portanto regidas pelo universo invisível que atua no silêncio do mundo dos vivos para exercer a vontade do mundo daqueles que dormem isto é daqueles que não se encontram mais nesse mundo O meiodia por outro lado é considerado como um tempo suspenso como relatou D Maria José o horário do silêncio quando o tempo para os bichos se deita e o tempo silencia Os mais velho dizia que meiodia é horário de preceito por que não nasce ninguém nem morre ninguém Ao indagar sobre os invisíveis e as suas representações no imaginário da comunidade me foi explicado com reservas que os invisíveis ou são bons ou aparecem com o propósito de assombrar e ou atormentar suas vítimas Nem todos as conseguem enxergálos apenas aqueles as que como afirmou D Luci receberam de Deus a permissão para vêlos A visão está condicionada ao comportamento ou seja uma pessoa que pratica bons atos não será punida com o aparecimento dos invisíveis maus pois a presença deles revela a necessidade de punição e ou advertência na teia da vida Em Cariacá os invisíveis maus são a caipora65 o zumbi a cachorra Lindaura e o 64 Expressão pronunciada com frequência em Cariacá 65 Conforme o dicionário Aurélio 1986 do tupi Kaa porá morador do mato Espírito que costuma habitar as matas pouco povoadas e encantar os seus invasores 68 lobisomem embora os dois últimos já tenham sido avistados por muitos moradores as da comunidade são classificados como invisíveis Os invisíveis bons são parentes já falecidos que permanecem próximos e se preocupam com o destino dos seus entes queridos Alguns moradores as de Lajedo mencionaram a existência da caipora mas não se sentiram à vontade para falar sobre essas visagens do mato Todavia observei que quando os membros da comunidade vão para as roças ou para o mato com o propósito de caçar ou extrair o coco babaçu geralmente levam fumo de corda ou cigarros comuns e os depositam nos tocos de pau para agradar à caipora e evitar as suas brincadeiras Não reuni muitos elementos em campo sobre essa visagem do mato pois os as moradores as de Lajedo se esquivavam sempre que eu abordava o tema Me limitei portanto a observar como se precaviam contra as artes da temida e respeitada caipora As conversas sobre a caipora se desenvolvem com naturalidade em Cariacá Presumo que isso esteja associado à ascendência afroindígena da comunidade e ao fato de que em Cariacá o mato fechado morada desse invisível foi substituído pelas casas dos moradores Eles também demonstram tranquilidade para falar sobre locais antes tidos como mal assombrados a exemplo da linha do trem e o antigo lajedo ocupado atualmente por uma empresa extratora de britas e produtora de material de construção Grupo Irmãos Pelegrini Esses espaços transformados já não provocam tantos receios na população Contudo notei a existência de um preceito que é acionado sobretudo nas horas descritas como sagradas ou mortas propensas ao domínio dos invisíveis isto é se necessitam sair nesses horários traçam o sinal da cruz e fazem uso de amuletos A influência das forças caracterizadas como invisíveis é tão forte em Cariacá que as circunstâncias adversas não explicadas são consideradas malefícios dos invisíveis e é habitual os interlocutores as repetirem isso é perseguição invisível D Antônia de Freitas Silva 76 anos refuta a existência desse universo invisível tão enfatizado por seus parentes Ela não acredita na existência da caipora todavia reconhece já ter sido encantada por esse invisível quando quebrava lenha no mato do lado oposto ao rio Na ocasião D Antônia estava em companhia de uma amiga Claudia e de seu No universo dos saberes nativos a caipora é o guardador do mato responsável pela sua proteção motivo pelo qual se compraz em encantar o invasor a arrogante que não a respeita e desafia sua existência ultrapassando sem pedir licença os seus domínios 69 cachorro Brinquedo quando percebeu que ela e sua amiga estavam ariadas66 Compreendendo o que havia ocorrido D Antônia chamou pelo cachorro que as conduziu para casa pondo fim ao encanto67 Ela sentiu como se estivesse em transe e o mesmo ocorreu com a sua amiga Seguiram o cachorro sem ter noção exata do caminho percorrido Ela só conseguiu entender o que houve quando avistou a sua casa percebeu o adiantado da hora e a preocupação da família D Luci assegura que a caipora tanto encanta no mato quanto na cidade Certa feita ela ficou ariada em Senhor do Bonfim durante uma viagem para comprar mistura68 e permaneceu o dia inteiro perambulando pelas ruas Apenas quando se sentiu cansada o suficiente para continuar caminhando se recordou de um ensinamento do pai que a advertia várias vezes durante a infância sobre as artes da caipora Meu pai dizia o seguinte que quando a gente fosse tirar licuri no mato tinha que levar uma capa de fumo colocar a capa de fumo em um oco de pau que isso era para a caipora Aí se você já tivesse ariado tinha que trocar o chinelo Luciana de Freitas Silva 75 anos em 290917 A expressão trocar o chinelo utilizada por Dona Luci se refere ao ato de trocar o pé esquerdo da sandália pelo pé direito como forma de anular o efeito do encanto e recobrar a lucidez dos sentidos Nesse dia vivenciado em Senhor do Bonfim ela só conseguiu chegar a casa à noite O seu esposo estava angustiado e já de saída para procurá la O episódio deixou D Luci equivocada por alguns dias pois ela não conseguia compreender o fato cuja lembrança ainda é capaz de suscitar certo entristecimento Para D Luci a caipora é uma entidade que pega a gente e a gente fica sem saber como é que faz 66 De acordo com os interlocutores as se encontra ariada a pessoa que passa horas andando em círculos sem conseguir se dar conta desse fato Esse estado de espírito é atribuído às artes da caipora que costuma encantar aqueles as que não tem bom coração entrem no mato sem respeito sem pedir licença ou ainda que façam pouco caso de sua existência O encanto da caipora sempre tem a função de legar um ensinamento ao sujeito 67 Os interlocutores as explicaram que o encantamento produzido pela caipora apenas finaliza quando aparece uma outra pessoa a sua frente despertando aquele a que antes se encontrava ariado para a realidade ou ainda através da presença de um animal como o cachorro ou o cavalo capazes de conduzir em segurança para casa o indivíduo que se encontre nesse estado de transe momentâneo 68 Os quilombolas emprestam a essa palavra o sentido de aquisição do alimento especialmente a carne 70 Para as comunidades em foco o encanto ou brincadeira da caipora e de qualquer outra entidade que habite o plano invisível não ocorre desprovido de um ou mais motivos Cabe à vítima entender o que motivou o ataque Quando isso não ocorre e a pessoa permanece se comportando de modo repreensível o encanto pode se repetir com intensidade ainda maior Geralmente o temor de um novo ataque da caipora estimula as pessoas a se comportarem de modo conveniente Outra entidade muito temida em Cariacá é o zumbi que costuma surpreender aos desavisados com o seu assovio Os pescadores e caçadores voltam para casa assombrados sempre que se deparam com esse ser que afirmam não ver apenas escutam o seu assovio agudo e ensurdecedor Quando isso ocorre eles permanecem entorpecidos por alguns instantes Escutar o assovio do zumbi é interpretado como um aviso para que retornem às suas casas e não cacem ou pesquem nesse dia ou noite Nunca se sabe se esse aviso vem para o bem ou para o mal Muitas mulheres da comunidade evitam sair durante as horas mortas porque temem a reprimenda do zumbi As crianças são informadas e prevenidas sobre a existência dessa visagem que perturba suas vítimas ao meiodia e a partir da meia noite Dona Maria José relatou que já foi surpreendida pelo assovio do zumbi quando estava com algumas amigas catando lenha no mato Elas também escutaram gemidos o que as levou a cogitar que se tratava de alguém que pudesse estar ferido e necessitando de ajuda Contudo não encontraram ninguém a quem pudessem atribuir os gemidos e então concluíram não se tratar de gente do mundo dos vivos Segundo D Maria José quando isso ocorre é necessário insultar a visagem para que ela fique amedrontada e vá embora Os insultos devem ser simples e diretos mandar a visagem pra merda e para a baixa da égua Não é recomendável pronunciar os nomes ditos do inferno para não comprometer a sua própria alma uma vez que a caipora e o zumbi não são considerados coisas de Deus Enquanto os as mais velhos as teciam narrativas sobre as peripécias do zumbi observei que os as mais jovens permaneciam incomodados as Para esses as últimos as a palavra Zumbi se reveste de outro significado é o herói que representa o povo negro e afrodescendente Um dos netos de D Maria externou o seu incômodo ante a apropriação 71 negativa do termo atravessando69 a conversa e retirando a palavra da avó para esclarecer que o Zumbi é um valente guerreiro e que ela não deveria se referir a ele dessa forma O incidente foi motivo de contrariedade pois interromper os mais velhos as é sinônimo de desrespeito e atitude passível de correção Entre os moradores de Lajedo o zumbi é identificado pela denominação de os assobeios do mato não sendo utilizada a palavra zumbi ou qualquer nomenclatura específica Quando escutam esses assobeios os quilombolas não interrompem suas atividades tampouco retornam para casa porém se benzem70 para espantar o que não é da parte de Deus Associam os assobeios a coisa ruim e se resguardam de falar a respeito dizem apenas que ficam arrepiados e com os cabelos levantados do casco da cabeça Por isso se protegem antes de sair advertindo que no mato tem muita coisa que pega gente mal ouvido71 Em um estudo realizado na comunidade de Itá situada na região do Baixo Amazonas Eduardo Galvão catalogou diversas entidades que permeiam o universo místicoreligioso daquela comunidade como os bichos visagentos Os bichos visagentos não recebem qualquer culto ou devoção A atitude do caboclo é de evitálos tanto quanto possível ou de recorrer a técnicas de imunização ou de neutralização de seus poderes malignos Os santos ao contrário recebem culto e deles o caboclo se aproxima através de orações de promessas e de atos festivos Acreditase que protejam a comunidade e o indivíduo Galvão 1955 p 06 Os membros de Cariacá afirmam que caso haja necessidade de sair durante as horas mortas é imperativo adotar certos cuidados como se benzer nas encruzilhadas habitat de invisíveis ruins e ao passar nas cercas72 Esses atos se praticados de maneira 69 Para os idosos atravessar a conversa alheia é participar dela e isso não deve ser feito pelos mais jovens exceto quando convidados 70 Gesto de traçar o sinal da cruz 71 Essa expressão é utilizada no sentido de desobediência 72 Cuidado mantido em função da crença que possuem de que tudo o que é ruim para nas cercas e nas porteiras de curral espreitando alguém desprevenido para ser prejudicado 72 distraída podem acarretar problemas para quem possui corpo aberto73 No conjunto de regras que compõe a chamada sabedoria do povo do mato não é prudente sair de casa de corpo aberto além do costume da persignação é preciso tomar um gole de café do dia A prática desses dois ritos é considerada potencialmente capaz de evitar problemas descritos como simples a exemplo de inveja mal desejo e olho ruim no entanto para as consequências mais sérias é preciso recorrer a alguém de experiência para fechar o corpo74 Tanto em Cariacá quanto em Lajedo me habituei a escutar as mães advertirem às crianças e adolescentes que por qualquer motivo esqueciam de fazer sua obrigação deixando de fechar o corpo e zelar por sua defesa são cuidados que devem ser adotados antes de sair de casa e conviver com o mundo lá de fora descrito como suscetível de aborrecimentos e dificuldades que podem ser atenuados com a adoção de alguns cuidados Fazer a obrigação nesse caso é rezar antes de se levantar ou apenas fazer o sinal da cruz É igualmente relevante o preceito75 de não permitir que o sol passe por cima76 das crianças e jovens Saber reverenciar as horas sagradas assim como as horas mortas e realizar com respeito as suas obrigações constituem condições para ter os caminhos abertos e encontrar a boa sorte na vida As pessoas que cortam os seus caminhos se tornam desprezadas e não servem de exemplo para as demais Além disso quase sempre são punidas por suas más ações Em Lajedo próximo ao local aonde funcionou o antigo garimpo77 existem duas pedras que chamam a atenção por suas dimensões São conhecidas como duas comadres Seu Gilberto Inocêncio dos Santos 47 anos explicou que as duas comadres foram mulheres que contrariando a guarda dos dias sagrados iniciaram uma briga na Sexta feira da Paixão e como castigo se transformaram em pedras permanecendo naquele local 73 Estado de espírito atribuído a pessoas tidas como fracas e fáceis de serem prejudicadas por atitudes próprias ou por fatos atribuídos a outrem Os grupos quilombolas pesquisados acreditam que a fraqueza de espírito é facilmente associada ao hábito de não rezar pronunciar palavras tidas como ruins e ainda devido ao fato de não zelar por sua proteção 74 As pessoas consideradas fracas costumam procurar ou serem levadas até a presença de um rezador a ou curador a que realizará os ritos necessários para fechar o corpo 75 Os quilombolas de Cariacá e Lajedo costumam emprestar a essa palavra o significado de cuidado 76 Essa é uma expressão recorrente tanto em Cariacá quanto em Lajedo Nessas comunidades é sinônimo de imprudência levantarse quando o sol já se encontra alto no céu Quem assim procede é reputado como preguiçoso ou de má índole 77 Trago essa narrativa no Capítulo 4 73 Escutei por mais de uma vez as mulheres da comunidade chamarem à atenção das crianças quando se conduziam mal78 e advertilas que poderiam ter o mesmo destino das duas comadres Os dias sagrados são reverenciados como a Semana Santa e os dias em louvor aos santos padroeiros Nesses dias os preceitos são redobrados pelos mais velhos as que combatem com maior rigor as atitudes de invigilância dos mais jovens Durante a Semana Santa são evitados xingamentos desobediências e permanências longas no mato principalmente a partir do meiodia da quartafeira maior79 pois os as moradores as de Lajedo temem encontrar o ajapau Esse castigo da natureza na forma de um pássaro grande que possui uma cabeça humana aparece apenas nos dias sagrados seu canto é estridente e assustador Ele é denominado ajapau porque quando aparece repete infinitamente essas duas palavras O ajapau era originalmente um filho desobediente que a mãe amaldiçoou em um dia de Sextafeira da Paixão razão pela qual aparece nesse período Não se trata de um invisível ele é descrito como uma visagem e ou visão que aparece para quem precisa ver pois ainda que duas pessoas estejam juntas pode ocorrer de apenas uma delas enxergar o ajapau e escutar o seu lamento triste Avistar o ajapau é percebido como sinal de punição e de necessidade de promover mudanças Por outro lado o ajapau também aparece para pessoas que possuem uma natureza piedosa e rezam por ele A Semana Santa é um período caracterizado por muitas prescrições nas comunidades quilombolas estudadas Os habitantes de Cariacá referiram à existência da cachorra Lindaura Tratase segundo relataram D Ivone Gonçalves de Souza Maria José Antônia Elvira e Luci80 de Lindaura Lourenço já falecida que durante os dias sagrados embora conservasse a forma humana andava de quatro pés e agia como um cachorro A cachorra Lindaura que residia na localidade de Cariacá de Baixo81 era uma filha muito 78 As crianças que demonstram propensão para a desobediência são tidas como má criadas e não são bem vistas na comunidade 79 Como é denominada localmente a quartafeira da Semana Santa 80 A entrevista sobre as prescrições foi realizada em um final de manhã quando muitas senhoras da comunidade estavam reunidas esperando a visita do médico que ocorre geralmente uma vez por mês ou a cada quinze dias Após a consulta geralmente as mulheres se reúnem na casa de D Luci para almoçar ou para conversar sobre as novidades 81 Sobre essa parte específica da comunidade será narrado no Capítulo 2 74 ruim maltratava a mãe deficiente visual lhe negando comida e outros cuidados Todos estavam cientes mas evitavam se envolver pois consideravam Lindaura uma pessoa maldita Quando a viram pela primeira vez agindo como um cachorro durante uma Semana Santa poucos se apiedaram pois entenderam tratarse de um castigo merecido Durante a Semana Santa as mães e avós protegem as crianças recémnascidas ainda pagãs tanto da aparição da cachorra Lindaura quanto do lobisomem As mulheres de Cariacá argumentam que o lobisomem além de investir contra as crianças e as mulheres paridas ataca as criações novas Uma forma de proteção frequentemente utilizada é pendurar uma réstia de alho do lado de fora da porta da cozinha nas casas onde residem mulheres paridas e crianças recémnascidas Outro exemplo82 utilizado na educação das crianças com o objetivo de implantar a obediência e infundir o bom caráter nos pequenos é a estória do corpo seco83 Há um medo generalizado circundando o universo infantil que vai ao encontro de um pavor consciente esboçado pelos adultos no que se refere a esse castigo da natureza embora em Cariacá nunca tenha aparecido um corpo seco esses sujeitos acreditam em sua existência Essas narrativas que talvez se apresentem de forma ingênua à compreensão do olhar externo no interior desse grupo costumam ser realizadas em uma atmosfera de respeito e temor Em Lajedo um cuidado realizado de maneira sutil e cautelosa é o zelo da proteção Durante a segunda etapa da pesquisa de campo em outubro de 2017 conversei com Cristina dos Santos de 17 anos sobre a educação de seus dois filhos um menino de um ano e quatro meses e uma recémnascida de apenas um mês de vida O diálogo fluía animado na cozinha da casa dos sogros de Cristina que chegou recentemente à comunidade originária do povoado de Genipapo84 De repente o sogro de Cristina Seu Gilberto que terminava de arrumar as cadeiras que seriam levadas para a sede da associação começou a participar da conversa afirmando que ia levar sua neta a pequena 82 Ao relatar essas estórias muitos sujeitos mais velhos costumam afirmar que esses fatos constituem exemplos e que devem ser tomados como advertência 83 Em Cariacá se acredita que o corpo seco é um cadáver rejeitado pela terra e que ao invés de entrar em processo de decomposição começa a secar Afirmam que esse tipo de corpo pertenceu a um filho mau tido como desobediente e que manteve uma relação de rebeldia junto aos pais Por possuir corpo gênio e espírito ruim até a terra se recusa a recebêlo 84 A moça estava vivendo com os sogros porque o seu esposo estava em Minas Gerais trabalhando 75 Ana Júlia para ser benzida em Coqueiros porque é preciso zelar a proteção da menina Após um suspiro saudoso Seu Gilberto lamentou não mais existir curador a na comunidade e relembrou o trabalho do antigo curador o seu falecido avô Inocêncio Jesus dos Santos afirmando era um curador bom que tinha Santo Antônio no corpo um homem sábio e muito respeitado na comunidade porque sabia rezar e dar remédio Inocêncio foi um dos primeiros moradores do lugar Seu Gilberto relatou que Inocêncio comprou a mesma área de terra duas vezes pois da primeira não obteve um documento escrito O comprovante da operação realizada foram fios de cabelo da barba do comprador e do vendedor Segundo Seu Gilberto seus avós paternos eram rezadores tinham ciência e sabiam das coisa Seu Inocêncio na perspectiva do neto se comportava de maneira diferente por que desde criança fora protegido por Santo Antônio e por isso era um homem entendido Rapaz Ele tinha o Santo Antônio no corpo Diz ele que quando era pequeno colocaram nele que era para ele ficar sabido Se parasse um carro aí fora só saia quando ele quisesse Uma vez um rapaz que vendia carne teve um desentendimento mais ele aí meu avô disse esse é o último pedaço de carne que você vai vender Aí o negócio dele desandou e o rapaz não foi mais pra lugar nenhum Ele tinha o Santo Antônio quem botou ele não sabe mas avisaram a ele pequenininho Era na barriga no lado da barriga Eu cheguei a ver o cálculo via mas ele não dizia o que era Quando os povo perguntava ele dizia aqui é espinho de erva benta que me pegou na caatinga É mas não era não Era esse santinho dele Aí no dia que foi embora estourou Fez foi estourar para fora Aí foi à força dele que ele disse que tinha ido embora O santinho foi embora Aí a sabedoria dele acabou Fazia mas não era a mesma coisa Ele tinha os dia de ter relação com mulher os dias de tomar banho e pai também era assim Pai cansava de me dizer assim No mês de agosto nem um dos dois nem ele nem pai moiava a cabeça não por que dizia que morria doidava ou enricava Era essas três palavra Eles era assim cheio de ciência Gilberto Inocêncio dos Santos 47 anos em 29102017 Quando indaguei a Seu Gilberto se ele também tinha essa ciência ele desconversou pai mais mãe não ensinava nada a ninguém Sua avó paterna foi quem lhe 76 ensinou a reza de mulher quando vai despachar Mas isso eu não posso lhe falar não D Mariene que estava coando o café aproveitou a pausa na conversa para esclarecer que quem fala dessas coisa perde sua força e enfatizou que por essa razão o avô de seu esposo perdeu o zelo da proteção Compreendi a importância que eles atribuem ao silêncio sobre os fatos que regem a vida pessoal e espiritual Eles não se sentiam à vontade quando eu indagava sobre o tema e só o retomavam algum tempo depois Certa vez D Mariene confidenciou que o tio de seu esposo residente na comunidade de Coqueiros herdou as coisa do avô mais da avó mas ele mantinha reservas sobre o assunto essas coisa minha fia não se pode descobrir não quem descobre fica sem Outra referência muito citada na comunidade como curador é João Geraldo Alves da Silva já falecido Sua filha D Maria Rosa dos Santos 57 anos herdou as coisas do pai embora mantenha o hábito de rezar quem lhe procura D Maria de Chico como é conhecida desconversou quando abordei o assunto Observei que quando solicitada ela reza porém não assume abertamente a missão que pertenceu ao seu pai D Maria de Chico se mudou para a cidade de Saúde após ter enviuvado mas mantém casa e terras em Lajedo e está sempre na comunidade com o seu filho cultivando roças de banana e de mandioca Em Cariacá nunca ouvi qualquer indicativo feito ao zelo da proteção o que costuma ser dito de modo especial por D Luci que é a única rezadeira viva na comunidade é que todo mundo tem que zelar pelos seus guias explicando que é preciso agradecer a Deus a proteção recebida A interlocutora faz a diferença entre santos e guias os primeiros são referidos como as imagens católicas e os segundos a mesma define como São Cosme e São Damião aos quais esclarece que se deve agradar com algumas práticas específicas a saber oferecendo comida fato que faz semanalmente e acendendo velas que também são chamadas de luzes Em uma manhã enquanto fomos comprar um anel de madeira que havia me interessado devido ao design D Luci segredou que quando se esquece de fazer a obrigação para São Cosme o guia fica chateado e que já a castigou lhe derrubando na rua no momento que caiu sem haver tropeçado em qualquer obstáculo então se recordou da falta cometida e procurou se corrigir D Luci não oferece caruru apenas dá a comida do santo e reza a qualquer pessoa que lhe procure tive ocasião de presenciar em muitas circunstâncias pessoas da comunidade solicitando a mesma que lhes rezasse ao que ela atendia sem qualquer ritualística que estivesse visível aos olhos fazendo 77 apenas a recomendação que afastasse as crianças do lugar e que quem tivesse corpo aberto85 saísse de perto A proteção e os guias são concebidos como seres sagrados sejam santos católicos ou não São bons não fazem brincadeiras ou encantos apenas cuidam sempre de seus protegidos especialmente nas situações adversas A proximidade com esses seres sagrados constitui um tipo de fé que dialoga com o diadia desses sujeitos sem os fundamentalismos das instituições externas Tudo ocorre de modo intuitivo entre protegido e protetor guia e guiado 115 CUMPRIMENTO DA PALAVRA SE FAZENDO HOMEM E SE BOTANDO MULHER No cotidiano das comunidades compreendi como são tecidos os fundamentos da habilidade de cumprir a palavra empenhada O cumprimento da palavra está associado ao caráter da pessoa e à sua credibilidade Em Cariacá é grande a relevância atribuída ao cumprimento da palavra É um princípio preponderante da vida de mulheres homens e crianças pois pelo cumprimento da palavra o menino se faz homem e a menina se bota mulher D Luci relatou episódios de pessoas que por não cumprirem suas palavras e saldar as dívidas assumidas em vida o fizeram após a morte Conforme D Luci isso ocorria com maior frequência no passado quando vizinhos ou parentes habitualmente tomavam gêneros alimentícios ou dinheiro emprestados e não conseguiam devolvêlos Exemplos desse tipo foram relatados por quase todos os membros mais velhos da comunidade Quando o a endividado a falece sem resgatar a dívida costuma aparecer em sonho a um parente ou afilhado a quem muito estimava relatando que gostaria de devolver tal objeto o valor penhorado Segundo os quilombolas no dia seguinte ao sonho a pessoa deve procurar o cobrador mencionado no recado e narrar o sonho caso a dívida de fato exista precisa ser paga pelo sonhador pois essa é a vontade do morto e condição para que descanse em paz Além das estórias envolvendo resgate de dívidas os anciãos de Cariacá relataram situações de entes queridos que por avareza enterraram 85 Mediante os esclarecimentos de D Luci nesse sentido ter ou estar com o corpo aberto pode referirse também a situação da mulher quando esta se encontra menstruada 78 dinheiro ou ouro e precisaram aparecer depois de mortos a parentes solicitando que desenterrassem os objetos aliviando a consciência da alma Descrevo um episódio relatado em momentos distintos por D Maria José D Elvira e D Luci Nos tempos em que D Luci era jovem e ainda não havia se casado Cariacá era mais movimentada Muitas pessoas passavam no Cariacá algumas moravam e outras apareciam de vez em quando D Luci destacou a presença de um senhor que embora se assemelhasse a um retirante é retratado como bemapessoado de pele clara e cabelos brancos com cerca de cinquenta anos Ele se chamava José aparecia e ia ficando fazia as refeições em casas diferentes e pernoitava nas calçadas ou em algum quarto desocupado na casa de algum a morador a Já havia se tornado conhecido em Cariacá as pessoas confiavam e gostavam dele apesar de não saberem nada sobre o seu passado Em uma ocasião José declarou para os moradores as aqui está se passando um fato que ninguém está acreditando mas é verdade Segundo D Luci José relatou que havia uma casa na comunidade que estava sendo assombrada A dona da casa já falecida confirmou que há algum tempo estava sendo vítima de uma visagem Os moradores de Cariacá não atribuíram muita importância ao relato Todavia quando da última visita realizada por José a Cariacá ele destacou olhe eu vim aqui em uma diligência não sei se volto mais Ele informou que não podia fornecer mais detalhes sobre a diligência Três dias depois José realizou um trabalho para limpar a casa da assombração Aí aconteceu O pessoal tava tudo no quintal assim lavando roupa e ele tava hospedado assim arranchado em um quartinho que tava abandonado Aí ele entrou cavou o buraco dentro do quarto Aí tinha o pessoal da casa que disse que via luz clarear via criança chorar via pisada dentro de casa olhava e não via nada Olhava e não via nada Aí ele foi Ele entrou e cavou Ficou ali aquele buraco enorme que ele cavou ele era um senhor mas era um homem forte Aí daí para cá esse homem não apareceu mais nunca e a assombração que tinha dentro da casa acabou Tinha ouro aí ficou o lugar Todo mundo disse que era ouro Aí ele cavou e carregou Aí os donos da casa foram pagar um pedreiro para entupir o buraco Luciana de Freitas Silva 75 anos em 29092017 79 A casa foi reformada e o filho da antiga moradora Seu Eduardo declarou aos vizinhos as que não mais tiveram problemas com almas ou espírito de morto D Luci e D Maria José se encontravam no quintal da residência quando José retirou o caldeirão de ouro e não presenciaram as atividades realizadas por ele Desde então José não retornou a Cariacá pois é sabido que nessas circunstâncias não se deve retornar ao local sob pena de pagar a desobediência com a própria vida O ouro ou o dinheiro desenterrado caso ainda possua valor monetário só pode ser utilizado após dois anos Se for movimentado antes desse prazo a pessoa que o desenterrou ao invés de usufruílo é castigada com a morte prematura As causas do falecimento de alguém nessas circunstâncias geralmente não são divulgadas na comunidade o seu conhecimento permanece restrito aos parentes do da morto a D Luci esclareceu que a família do da morto a deve ser informada para que se conscientizem da necessidade de respeitar o prazo Quando indaguei sobre como o prazo foi estabelecido D Luci afirmou porque tem que ser assim desde que o mundo é mundo Quem recebe e retira o ouro ou o dinheiro deixado pela visagem deve adquirir uma réstia de fumo de corda e atirar no mato deve também mandar celebrar uma missa para a alma desventurada cumpridos esses ritos resta apenas esperar o final do prazo para usufruir da suposta recompensa Seu Epifânio Ferreira Damasceno 69 anos afirmou já haver recebido a aparição de uma visagem que queria lhe dar ouro A visagem aparecia todas as noites à porta de seu quarto Como ele não demonstrou interesse a visagem foi embora A alma ou visagem não costuma aparecer para todas as pessoas apenas para aquelas potencialmente capazes de ajudála Se não houver a cooperação esperada consoante informou S Epifânio ela não fica não vai embora Boa parte dos espaços de Cariacá são encantados pela presença do ouro Uma estória recorrente é a da aparição do cordão de ouro Quase todos os anciãos afirmam já ter se deparado com essa aparição que descrevem como uma visagem porque ao mesmo tempo em que aparece desaparece Essa visão mais frequente no passado ainda aparece nas dependências da pedreira do Grupo Irmãos Pelegrini Embora muitos tenham avistado essa visagem ninguém conseguiu desvendar o significado da aparição Seu Fernando acredita que esse cordão encantado um dia será encontrado 80 Isso é ouro O cordão saia dos Morrinhos e ia pra a Missão Missão do Sahy Quando eu era menino os americano vieram fizeram um estudo e afirmaram que em Cariacá existia ouro Já vi ali pros lado das lajes onde hoje tá a pedreira um homem rodando na minha frente feito currupio e entrando no chão Isso é o quê Isso é coisa de ouro Fernando do Monte 75 anos em 10122017 O ouro é considerado encantado e maldito devido às ambições que concentra razão pela qual quem o encontra pode até ficar rico todavia não desfruta de felicidade já que existem muitas energias ruins provenientes de sentimentos acumulados por pessoas que vieram a óbito para dar prosseguimento à ambição do ouro Em Lajedo existia um garimpo e os as moradores as asseguraram que ainda há ouro na região Os seus ancestrais encontraram pequenas pepitas preciosas no leito dos rios Todavia estórias desse tipo não foram mencionadas durante os trabalhos em campo Além do compromisso com a palavra empenhada há outros comportamentos em ambas as comunidades estudadas cultivados como importantes para que o menino se faça homem e a menina se bote mulher O aparecimento da barba no rosto dos meninos é um indicativo de que eles estão virando homens Seu Agripino Pedro dos Santos 87 anos morador de Cariacá conhecido na comunidade como Nino explicou que um rapaz de respeito que vai se tornar um homem de verdade quando aparecem os primeiros fios no queixo deixa a barba crescer encher até fechar Com a barba fechada pode pedir a bênção ao pai e na ausência desse ao avô paterno e ou ainda ao avô ou tio materno mais velho essa atitude representa uma espécie de licença para que o meninorapaz possa tirar a primeira barba É um momento de transição quando o sujeito se faz homem afirmou S Nino Os anciãos da comunidade acreditam que caso o filho não cumpra o rito o pai pode vir a falecer Em Lajedo o rito da primeira barba ocorre com menor frequência pois existem poucos adolescentes no grupo86 Nessa comunidade os homens costumam afirmar que aqui o boi se conhece pela ponta e o homem pelo bigode A manutenção da barba e do 86 Darei especial ênfase a esse aspecto no Capítulo 4 81 bigode ao longo dos períodos seguintes é opcional contudo conservar a primeira barba e bigode é imprescindível para um ingresso respeitoso na vida adulta Em relação às meninas quando aparece à primeira menarca é anunciado na família que ela ficou moça Em Cariacá a condição de ficar moça é cercada por alguns cuidados como aparar três gotas de água em uma bica e dar a menina para ingerir pois assim se acredita que a sua primeira regra e todas as seguintes terão a duração de apenas três dias evitando dessa forma prejuízos à saúde Em Lajedo as meninas que se tornam moças observam algumas restrições alimentares Não podem ingerir frutas ácidas como abacaxi laranja tangerina e limão nem frutas frias como mamão e melancia e outros alimentos carregados como ovo bacalhau e buchada Tanto em Cariacá quanto em Lajedo as meninas quando se tornam adultas se abstêm por toda a vida de ingerir durante uma mesma refeição carne vermelha e carne de peixe Se associados esses alimentos podem provocar filhos com deformidades físicas Em ambas as comunidades as meninas e mulheres são aconselhadas a não lavarem o cabelo durante os três primeiros dias da menarca Esse hábito é adotado sobretudo em Lajedo onde não há banheiros na maioria das residências e as pessoas tomam banho no rio As mães preparam chás para que as filhas mantenham o útero limpo e não desenvolvam problemas ao engravidar Na educação informal87 não apenas o nascimento mas sobretudo a imersão nos valores do grupo legitima o sujeito como membro da comunidade A pesquisadora Glória Moura 2000 em seus estudos sobre narrativas quilombolas denominou esse processo de educação fundamentado na oralidade e no ato de biografarse88 de currículo invisível isto é o caminho que os membros das comunidades percorrem construindo significados para as suas vivências e resistências Neste primeiro capítulo apresentei o universo de signos operantes nas comunidades quilombolas de Cariacá e Lajedo Esses signos constituem o traçado que herdaram dos seus antepassados e o trançado reconstruído da Negritude Sertaneja viés identitário 87 Utilizo uma denominação produzida pela Pedagogia para descrever os processos educativos que acontecem com base nas atividades do cotidiano assim como dos conhecimentos mediados por intermédio da oralidade e da observação 88 Conceito desenvolvido por Paulo Freire presente em quase todas as suas obras 82 e comunicante dessas comunidades com o contexto envolvente Suponho que esses saberes identificados como jeitos de ser e de se perceber quilombola não são menos relevantes nesses grupamentos que a descoberta de sua tradicionalidade Busquei abordá los nesta tese em sintonia com a sua relevância no cotidiano dos atores sociais de Cariacá e Lajedo 83 CAPÍTULO 2 CARIRI CARIACÁ Pela memória o passado não só vem à tona das águas presentes misturandose com as percepções imediatas como também empurra descola estas últimas ocupando o espaço todo da consciência Bosi 2003 p41 Imagem nº 02 Entrada da comunidade Fonte Acervo da pesquisadora 84 Ficate aí Cariacá de areia por que de areia você não passará89 Essas palavras pouco gentis segundo D Maria José do Nascimento são o espraguejamento o modo como alguns padres e monges católicos se referiram à comunidade em um passado distante Esse espraguejamento ficou conservado na memória do grupo sendo relembrado com certo temor em períodos de adversidade A crença de que viviam em uma comunidade que havia sido amaldiçoada e que por isso não prosperava incomodou sobremaneira os moradores de Cariacá até 2004 Essa percepção foi alterada durante um encontro promovido pela Secretaria de Cultura do município de Senhor do Bonfim quando foram confrontados com os brincantes de Tijuaçu cujas atividades culturais também seriam encenadas durante o evento Muitos membros de Cariacá já estavam cientes da certificação de Tijuaçu90 através do que fora dito por seus parentes e tentavam se aproximar da associação dessa comunidade vizinha pois acreditavam ser também quilombolas Eles relataram que nesse período entendiam pouco sobre o quilombo e desejavam alargar a sua compreensão conquanto também se percebessem como negros as afrodescendentes pobres economicamente e discriminados pelo contexto social Antes dos diálogos estabelecidos no referido encontro cultural Seu Ubirajara de Jesus 51 anos conhecido como Bira Ele encerrou o mandato de vicepresidente da Associação Quilombola de Cariacá e Adjacências AQCA91 em 2017 Natural de Salvador Bira foi criado em Cariacá e é funcionário municipal vinculado ao setor de limpeza da Prefeitura de Senhor do Bonfim O interlocutor informou que quando soube da 89 Segundo D Maria José certa feita houve um desentendimento entre religiosos que estavam desenvolvendo um trabalho de evangelização e algumas pessoas da comunidade Em decorrência os clérigos foram embora e antes de se retirarem espraguejaram o local 90 Tijuaçu foi certificada como comunidade remanescente de quilombo em 28 de fevereiro de 2000 Entretanto a comunidade já era muito conhecida na região por sua luta histórica e ativismo político Nos anos 2000 muitas comunidades negras rurais localizadas no município de Senhor do Bonfim e no seu entorno contataram a Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências AAQTA O movimento social Barulho do Quilombo fomentou a interação entre esses agentes Tijuaçu se tornou uma referência na região e os membros da AAQTA passaram a ser continuamente solicitados a auxiliar no processo de reconhecimento de outras comunidades que passavam a se perceber como quilombolas Os agentes de Cariacá relataram que muitos moradores as já haviam tentado contatar o senhor Valmir dos Santos para solicitar esclarecimentos sobre o processo de autorreconhecimento das comunidades quilombolas 91 A Associação Quilombola de Cariacá e Adjacências AQCA foi fundada em 03 de junho de 2007 85 certificação de Tijuaçu escreveu uma carta para Valmir dos Santos mas não obteve resposta92 A aproximação entre Cariacá e Tijuaçu se estreitou quando da visita do senhor Valmir dos Santos93 Valmir foi a Cariacá para relatar a história e a ancestralidade de Tijuaçu A visita foi realizada após Valmir assistir à apresentação de uma quadrilha do povoado de Cariacá durante um festival de quadrilha junina promovido pela Secretaria de Cultura de Senhor do Bonfim Valmir mencionou que o detalhe capaz de lhe chamar a atenção na apresentação dos brincantes foi o fato de serem todos as negros as e afrodescendentes Ele contatou um professor que lecionava em Cariacá já falecido para obter mais informações sobre a comunidade Conjecturo que o Barulho do Quilombo agenciou essa comunicação e a presença de Valmir na comunidade despertou as memórias da população de Cariacá até então espalhadas em suas ruas areentas e esquecidas pelo poder público Assim quando o entendimento dos moradores as mais jovens começou a se manifestar auxiliado pelos relatos dos mais velhos as uma comunidade adormecida reorientou os rumos da sua história94 Na primeira visita de Valmir dos Santos95 os as moradores as de Cariacá estavam desprevenidos Valmir foi à comunidade sem aviso prévio Ele conversou inicialmente com D Elvira Gomes Damasceno96 80 anos Indagada sobre a história da comunidade a anciã relatou o que sabia e apresentou o visitante há muito tempo esperado 92 Muito tempo depois S Bira soube que a carta endereçada nunca chegou até o destinatário Além de S Ubirajara outras pessoas de Cariacá procuraram se comunicar com o senhor Valmir dos Santos por intermédio de cartas e bilhetes 93 Os interlocutores as não conseguiram identificar o dia assim como o mês em que aconteceu a primeira visita da liderança quilombola de Tijuaçu em sua comunidade porém afirmaram que o ano foi 2004 94 Os interlocutores as reiteraram durante a pesquisa de campo que Cariacá foi esquecida em Senhor do Bonfim Mesmo durante as campanhas de vacinação os lotes destinados à comunidade traziam os nomes dos povoados vizinhos Costuma ser dito a voz corrente que somente quando souberam que o Cariacá é quilombola foi que passaram a receber um tratamento respeitoso mas ainda insatisfatório por parte do poder público da cidade de Senhor do Bonfim 95 Na região norte da Bahia o processo de certificação de diversas comunidades guarda semelhanças O contato com líderes de comunidades próximas tem auxiliado os processos de mobilização interna nesses grupos e o seu reconhecimento como quilombolas Na mesorregião de Senhor do Bonfim o processo de reconhecimento de diversas comunidades teve como marco inicial uma visita de Valmir dos Santos 96 Esse encontro não foi programado mesmo a senhora Elvira tendo entre seus parentes pessoas que pertencem ao núcleo familiar dos Damasceno na comunidade de Tijuaçu A razão da conversa com a interlocutora está relacionado ao fato que a mesma era a única pessoa que na oportunidade se encontrava em frente à sua residência visto não ser um hábito da população de Cariacá permanecer fora de suas casas sobretudo no período diurno 86 a outros membros idosos do grupo Eles resgataram episódios significativos de suas memórias ancestrais O próximo passo foi convocar uma reunião realizada na sede da antiga Associação dos Moradores de Cariacá para discutir a tradicionalidade do grupo Nas reuniões subsequentes predominava uma atmosfera de expectativa e de curiosidade a parcela da população negra de maneira especial aqueles as que se declaram Congos97 nutriam o desejo de se autodeclarar quilombola ao passo que os demais moradores descendentes das famílias Muricy Tobodi e aqueles as que se percebem como não negros compareceram para compreender o que estava se passando no território As primeiras rupturas internas eclodiram quando a mesadiretora da Associação dos Moradores passou a se sentir ameaçada ante a possiblidade de se constituir uma nova associação e a provável dissolução da entidade que há anos administravam monopolizando a representação política tanto no âmbito da Associação dos Moradores quanto na direção da única escola da comunidade Os ânimos ficaram exaltados no grupo e os dirigentes da antiga associação afirmaram abertamente que não dariam poder a preto e ainda que não dariam poder a Congo Todavia os atores sociais que se percebiam e se percebem como membros da Família Congo negros as e afrodescendentes98 em especial as senhoras Anaíde Anária Nascimento do Monte e Rosângela Gomes de Oliveira afirmaram a ascendência quilombola e se mobilizaram em prol da certificação quilombola da comunidade Apesar das tensões internas geradas pelo protagonismo dos as moradores as antes oprimidos na comunidade os Congos assumiram a liderança da luta pela certificação ocorrida em 20 de outubro de 200599 Uma das primeiras atitudes posta em prática pela AQCA foi preocuparse com a estimulação da consciência coletiva em relação à mudança na forma de se referir à comunidade substituindo a denominação até aquele momento dominante povoado de 97 Esse fato será analisado no Capítulo 3 98 Informo que a palavra afrodescendente foi utilizada pelos interlocutores as em alguns discursos 99 A primeira certidão foi emitida em nome da Associação dos Moradores de Cariacá pois a princípio esses atores sociais tentaram evitar que as divergências locais já existentes se agravassem no entanto como os Congos continuaram sofrendo discriminações específicas sendo chamados pejorativamente de pretos que não valem nada e escutando que nunca teriam oportunidade dentro da comunidade Eles resolveram fundar a Associação Quilombola de Cariacá e Adjacências AQCA e contestar a certidão anterior que fora espedida motivo pelo qual a atual carta de certificação veio com retificação Segundo os interlocutores as não apenas o documento oficial foi retificado mas também o direcionamento de sua história que passou a conhecer outros contornos sobretudo o da busca pela valorização de sua ancestralidade negra e quilombola 87 Cariacá por comunidade quilombola de Cariacá Quando questionei aos interlocutores as a respeito dos fatores que exortaram essa mudança na forma de qualificação de seu território Foi explicado que não se tratava apenas de uma mudança na forma de expressão a ser empregada mas uma tentativa de migração da condição subalterna a que estavam compelidos tanto no que se refere aos agentes internos a exemplo dos moradores as que não se consideram negros na comunidade isso desde a parte referida como VilaCentro quanto nos Morrinhos e principalmente declararam que objetivavam e objetivam uma transformação em relação à maneira pouco valorizada como eram vistos e tratados em Senhor do Bonfim Talvez essa modificação na designação represente no interior do grupo mais um ciclo presente no rito simbólico de passagem Van Gennep 2011 que desejaram atravessar em busca de reconhecimento melhoramento da autoestima e construção de outras formas de representação capazes de influenciar positivamente a identidade s que desejam construir em perspectiva interna e também externa Existem duas associações em Cariacá a dos moradores e a quilombola Os membros de cada entidade deslegitimam a outra principalmente em função da disputa pela representação política interna e dos interesses que a circundam A Associação dos Moradores congrega os interesses dos sujeitos que não se percebem como negros as e a segunda representa os interesses dos quilombolas É oportuno destacar que a Associação dos Moradores possui relações intrínsecas com o poder público de Senhor do Bonfim ao passo que a segunda articulada em prol dos direitos quilombolas se esquiva das ingerências políticas municipais 21 UMA COMUNIDADE QUE TECE UM FLUXO AFROINDÍGENA100 100 Esclareço ao leitor a que opto pela escrita da conjunção Afroindígena sem o uso do hífen como forma de procurar traduzir a maneira como essa expressão emerge em alguns discursos escutados em Cariacá Quando os interlocutores as declararam parte de mim é de afro e a outra parte é indígena ou ainda parte de mim é de quilombo e a outra parte é de índio fazendo dessa maneira uma referência ao encontro dos termos para pensar sua identidade s Para interpretar o entrelaçamento afroindígena tecido em Cariacá me apoiei largamente no pensamento teórico de Marcio Goldman 201420152017 88 Durante os trabalhos de campo realizados em Tijuaçu101 escutei sobre a existência de um parentesco dos moradores com os indígenas que habitaram na comunidade Muitas famílias declararam que alguns parentes possuem sangue de índio principalmente os idosos Eles relataram que no passado havia uma pequena aldeia indígena constituída por casas de palha cujos habitantes eram muito restritos em suas comunicações Quando visitei Cariacá pela primeira vez em 06 de janeiro de 2014 ainda não havia ingressado no curso de Doutorado Esperava encontrar mais informações sobre as etnias indígenas pois havia escutado histórias sobre a possível origem indígena dessa comunidade À medida que a minha presença se tornou mais constante em Cariacá indaguei sobre a questão visto que no passado na região classificada como sertão de caatinga alta que abrange tanto Cariacá quanto o distrito de Missão do Sahy102 há registros de povoamentos de indígenas da família Kariri e ou Karirizeiros Nos diálogos com os as mais jovens e de modo especial com os as anciãos observei a existência de uma memória indígena que não transparece com facilidade são fragmentos transmitidos pelos ancestrais e que a geração atual conserva não como um segredo mas como um legado aqui nossa aldeia é de índio e também de negro Em Cariacá há uma localidade denominada Aldeia uma referência ao fato de se perceberem parecidos com os índios que já viveram na comunidade Segundo os seus habitantes Cariacá já foi povoada por indígenas da etnia Kariri também conhecidos como Karirizeiros Eles habitavam em ranchos de palha ou debaixo de pés de pau localizados rio abaixo103 ou na localidade de Morrinhos Os Kariri costumavam se deslocar para a Passagem Velha104 seguindo o curso do rio da Prata 101 Cito Tijuaçu com frequência por se tratar de uma comunidade com a qual os atores sociais de Cariacá mantêm um intercâmbio direto e constante 102 A Missão do Sahy constitui um dos distritos do município de Senhor do Bonfim Referido sobretudo após o Barulho do Quilombo como uma região de influência indígena Tratase de um antigo aldeamento indígena fundado pelos frades capuchinhos em 1697 Cf SANTANA Carlos Eduardo Carvalho de Processos Educativos na formação de uma identidade em comunidades remanescentes de quilombos Um estudo sobre as comunidades de Barra Bananal e Riacho das Pedras no município de Rio de ContasBA Dissertação de Mestrado Programa de PósGraduação em Educação e Contemporaneidade Universidade do Estado da Bahia 2005 180p P 79 103 O rio Cariacá é conhecido mais amplamente como rio da Prata 104 Comunidade quilombola também situada nas dependências do município de Senhor do Bonfim 89 O entorno social e mais especificamente a cidade de Senhor do Bonfim reverbera essa memória ancestral e reconhece uma ascendência indígena em Cariacá Segundo D Luci quando do reconhecimento oficial da comunidade ela recebeu a visita do educador e exprefeito do município o Prof Dr Paulo Batista Machado Ele indagou se em Cariacá as pessoas se percebiam como indígenas ou como quilombolas D Luci respondeu parte de mim é indígena a outra parte é de quilombola Segundo relatos coletados entre anciãos de Cariacá os indígenas amansaram e migraram para Salvador e para a Amazônia Seu José Preto narrou ter escutado de seus pais e avós que os indígenas se dedicavam ao plantio de verduras e trabalhavam em um engenho situado na localidade de Cariacá de Baixo Isso aqui essa beira de rio aqui por aqui as casas de onde era aqui desses índio de engenho de plantarem cana aqui na beira desse rio Foi a terra dos índio Agora eu não sei pra onde eles foram mas tem aí o terror das casa deles deixaram aí tanta coisa na beira do rio tanta verdura tanta fruta Eles aqui muitos me pergunta eu digo eu não conheci mas a moradia deles ainda vi muitos aí José Pedro dos Santos 104 anos em 28082015 D Luci também destacou a passagem dos indígenas por Cariacá Aqui quando eu me entendi já tinha esse nome Eu ouvi falar que é por que aqui era uma descendência de índio Então aqui os índios era do Kariri Aí devido esse nome de Kariri botaram o nome de Cariacá por que meu pai e minha mãe eram descendentes de índio Os avós deles foram tudo pegados a dente de cachorro no mato por que eu nasci e me criei aqui mas minha aldeia é de índio por que meus pais vieram do Kariri Ali nos Morrinhos disseram que tinha uma aldeia de índio As ocas deles que dizem que eles moravam lá mas esses índios morreram outros foram embora não existe mais Só a gente as pontas de rama risos Eu me considero as duas partes indígena e quilombola Porque o quilombola tem assim uma tendência de negros índio e branco também né Então como minhas raízes é indígena minha entidade é os dois indígena e quilombola Luciana de Freitas Silva 75 anos em 23102015 90 O relato de D Luci aciona dois elementos constitutivos da sua identidade minha entidade é os dois indígena e quilombola Há uma interseção entre os termos indígena e quilombola Nesse sentido afro e indígena são identidades que dialogam e se complementam Quando realizei trabalho de campo nas localidades do perímetro de Cariacá essa memória ancestral indígena começou a aparecer com maior intensidade especialmente entre os moradores as que também se identificam como descendentes dos Kariri D Ivone relatou que os moradores as da localidade de Limões cogitaram afirmarse como indígenas No entanto não conseguiram resgatar os elementos históricos concebidos como necessários para realizar essa passagem É interessante essa busca de um background histórico Em Alcântara no Maranhão os moradores dos povoados rurais se veem e se pensam como muito misturados embora em muitos desses locais os pesquisadores tenham identificado uma narrativa histórica própria das origens Algumas narrativas apoiamse sobre referências explícitas à ascendência indígena outras remetem ao tempo da escravidão e a seus descendentes Emília Piatrefesa de Godoi desenvolveu pesquisa em três povoados ou seja Vila de São João de Cortes e Itauaú pensados e percebidos como povoados de caboclos e Itapuauá pensado e percebido como povoado de negros São João de Cortes está efetivamente em terras de um antigo aldeamento jesuíta e as narrativas orais de seus moradores relatam que as terras eram moradia dos índios e que não se sabe em que era época os índios teriam ido embora deixando ali um santo São João Batista a quem teriam doado as terras Outros ainda dizem que quando os jesuítas foram embora doaram as terras para os índios e os índios doaram para os caboclos da terra para o pessoal daqui os antepassados As narrativas orais de Itauaú evocam os antepassados como a geração dos caboclos do mato dos índios Em Itapuauá por outro lado é ao tempo da escravidão que os moradores se referem quando falam da história do lugar do tempo do cativeiro GODOI 2014 p 144 Godoi se surpreende quando em uma nova etapa de campo em 2010 encontrou no vocabulário cotidiano dos povoados a palavra quilombo Vários moradores dos povoados começaram a participar de um projeto de formação das comunidades para a gestão do território étnico quilombola de Alcântara e foi nesse novo contexto que caboclos e negros passaram a se perceber e a serem percebidos como quilombola GODOI 2014 p 156 91 Mas a autora assinala uma diferença significativa no novo contexto ie a criação do sujeito político através da adoção e uso da categoria quilombola implicando para aqueles que a assumem a possibilidade de ocupar um novo lugar na relação com seus vizinhos na política local diante dos órgãos e políticas governamentais no imaginário nacional e finalmente no seu próprio imaginário ARRUTI 1997 p 22 Em Cariacá as pessoas costumam falar em voz baixa ou permanecer em silêncio por longos períodos Essa característica segundo os mais velhos as é coisa de índio ou coisa de Congo Tanto os indígenas quanto os Congos são percebidos como povos introspectivos e observadores qualidades que simbolizam a virtude Como explicou D Ivone Aí em cima antes era uma mata e era aí que antes tinha umas casa de índio E minha avó que também o nome dela era cabocla que o pai dela foi pego a dente de cachorro Eu tenho parente índio A casa deles ficava aí em cima Nós vinha da escola que aí era mata Aí nós passava que a gente passava olhando Eu vi depois de abandonada não vi os índio que nós vinha da escola Eu tinha oito anos Ivone Gonçalves de Souza 68 anos em 10022016 Na localidade de Teiú em Cariacá a memória indígena surge em relatos vagos porém ditos com seriedade Eles fortalecem a hipótese da herança afroindígena de Cariacá Assim relatou Seu Eurides Já ouvi falar nesses índio Até ali perto da casa de meu avô ali onde hoje é a casa do Durval tinha umas loca que era dos índio Lá nos Limões perto da Ivone Aí quando a gente foi crescendo meu avô me falava que aqui era umas locas dos índio que morava aqui Por que ali era uma mata fechada Os mais veios ali nos Limões era meu avô e meu pai E meu pai também morou ali no Cariacá de Baixo Da vez que o Lampião veio aqui em Bonfim aí perguntou quem era os melhorzinho aqui da área Aí falou que era meu avô o finado Caboco o finado Pedro Vítor e o finado João de Brito Aí o Lampião mandou um recado que vinha visitar essas casa risos 92 Mãe passou mais pai três dias dormindo no mato bem onde perto de onde os índio fizeram as bionguinha deles com medo do Lampião Só que ele não veio veio só até Bonfim Eurides Pereira Brito 75 anos em 09022016 O Relatório Anual da Diretoria Geral dos Índios de 07 de fevereiro de 1875 disponível no Arquivo Público do Estado da Bahia registrou as dificuldades encontradas pelos missionários para manter o trabalho de catequese e civilização dos índios e o controle das aldeias Sugeriu a extinção de alguns aldeamentos indígenas com população escassa dentre eles o da Missão de Nossa Senhora das Neves do Sahy Dos Aldeamentos existentes ou que trazem este nome nenhum ha que resista á desorganização que o attaca e em breve todos elles tenderão a desaparecer Prevalecendome da opportunidade julgo conve niente propôr á VExa a suppressão destes aldeiamentos visto como alem de ser mui diminuto ou antes pequeno o numero de Indios as rendas dos terrenos são usufruidas com raras exepções pelos respectivos Directores Cota Salvador APEB CP AgriculturaDiretoria Geral dos Índios maç 4613No FUNDOCIN APEBCP Identificador Numérico 00899 Aldeia da Pedra Branca no Termo da Tapera de Mirandella de Pombal de Cachimbos na Villa da Victoria do Sacco dos Tapuios na Comarca de Inhambupe de Nossa Senhôra da Saúde do Soure de Massacarás de Rodella do Bom Jesus da Gloria de Nossa Senhôra do Sahy de Aricobé no Rio de S Francisco de Santarem Cota Salvador APEBCP AgriculturaDiretoria Geral dos Índios maç 4613NoFUNDOCIN APEBCP Identificador Numérico 00899 Em outro documento datado de 18 de dezembro de 1887 o Diretor Geral dos Índios respondendo a um ofício expedido pelo Presidente da Província se comprometeu a coletar informações sobre o Aldeamento de Sahy não obstante se compromete em verificar tal informação Ainda no mesmo ano esclarece que em Nossa Senhora das Neves do Sahy existem poucos índios não mais necessitando de diretor motivo pelo qual recomenda a extinção desse aldeamento e de outros que se encontrem em situação semelhante Cota Salvador APEB CP agricultura maço 4614 93 É possível cotejar a memória oral com a documentação escrita Meus interlocutores as em Cariacá mencionaram a existência da estrada dos indígenas105 que ligava Cariacá a Tijuaçu e era utilizada pelos antepassados Essa estrada evidencia que as interações entre Cariacá e Tijuaçu foram estabelecidas em um tempo pretérito Outro marco territorial segundo informaram anciãos de ambas as comunidades tratase de uma vereda106 aberta por moradores de Cariacá e de Tijuaçu para transportar dormentes de trem Essa atividade agregou durante algum tempo uma renda adicional às famílias dessas comunidades Suponho que a vereda aberta coletivamente representa portanto um indicador do estreitamento dos laços de parentesco consolidados por intermédio de casamentos relações de compadrio e de vizinhança De acordo com os quilombolas de Tijuaçu a matriarca fundadora da comunidade a senhora Mariinha Rodrigues se casou com um congo de Cariacá o senhor Austaciano Rodrigues e com ele teve dez filhos107 O enlace transformou Cariacá e Tijuaçu em comunidades irmãs Seu José Preto informou que não alcançou os escravizados não viu a escravidão Todavia seu pai lhe relatou que muitos escravo de Tijuaçu vieram também se esconder no Cariacá Talvez essa união tenha estimulado as migrações constantes de famílias originadas sobretudo das localidades de Laginha e de Curral Derrubado108 para Cariacá que ocorrem até os dias atuais A origem do nome Cariacá se relaciona à história indígena do povoado Na perspectiva dos moradores as foram os índios que batizaram a localidade com a denominação de Cariri Cariacá De acordo com o educador Paulo Batista Machado 1993109 Cariacá é um vocábulo de origem Tupi e significa cabeça de homem jovem e valente mato de homem jovem valente 105 A estrada dos indígenas também foi mencionada pela população de Tijuaçu durante a pesquisa realizada no curso de Mestrado Ela foi retratada como um local relevante tanto para o deslocamento das pessoas quanto para a prática do Samba de Lata atividade cultural secularmente praticada em Tijuaçu 106 Indica um caminho estreito aberto na mata para o trânsito de pessoas e de animais 107 Conforme relato de D Anísia Rodrigues 103 anos bisneta da senhora Mariinha e do senhor Austaciano Rodrigues 108 Constituem localidades de Tijuaçu 109 MACHADO Paulo Batista Cartilha Histórica sobre as Origens de Senhor do Bonfim Salvador Eduneb 1993 94 212 VESTÍGIOS DAS TERRAS DA FAZENDA CARIACÁ Segundo a história oral o surgimento da comunidade de Cariacá antecede à fundação da cidade de Senhor do Bonfim Como afirmou Seu Menininho o Cariacá vem primeiro Bonfim chega depois A origem do município de Senhor do Bonfim está relacionada às rotas das bandeiras nas margens do rio São Francisco e das minas de ouro da cidade de Jacobina desbravadas no século XVII por bandeirantes tropeiros e aventureiros É provável que os indígenas que habitavam no local onde se estabeleceu Cariacá assim como em outros distritos de Senhor do Bonfim a exemplo de Missão do Sahy tenham sido subjugados dispersados nesse período e se integrado à população sertaneja local Como destacou Machado 1993 Senhor do Bonfim foi povoado inicialmente por indígenas do aldeamento da Missão de Nossa Senhora das Neves do Sahy110 Na Enciclopédia dos Municípios Brasileiros 1958 p 354 consta que a Vila de Jacobina foi instituída por Carta Régia em 5 de agosto de 1720 tendo por sede o então Arraial de Nossa Senhora das Neves do Sahy Após a criação da Vila de Jacobina novas habitações dispersas se instalaram ao longo da estrada das boiadas atualmente denominada Estrada Real Bonfim Essa estrada liga a cidade de Senhor do Bonfim ao município de Juazeiro Ainda segundo Machado Op Cit a povoação que se desenvolveu as margens da estrada das boiadas foi designada em 1750 como Arraial de Senhor do Bonfim da Tapera Em 1795 o arraial foi elevado à categoria de julgado por intermédio do ouvidorgeral Florêncio de Morais que atendeu às solicitações encaminhadas pela população local Uma carta régia de 1º de julho de 1799 autorizou a adoção do topônimo Vila Nova da Rainha incorporado em 1º de outubro de 1799 Enciclopédia dos Municípios Brasileiros 1958 p 354 No século XIX a então Vila Nova da Rainha foi elevada à categoria de cidade conforme a lei provincial nº 2499 de 28 de maio de 1885 Em seguida o seu topônimo foi alterado para Bonfim O decretolei nº 141 de 30 de dezembro de 1943 alterou o nome do município para Senhor do Bonfim A cidade ocupa atualmente uma posição econômica e politicamente relevante na região de referência para municípios menos expressivos situados em seu entorno como Campo Formoso Ponto Novo Filadélfia Itiúba Antônio Gonçalves Andorinha Pindobaçu e Jaguarari 110 O arraial foi administrado pela Ordem dos Frades Franciscanos também denominada Ordem dos Frades Menores Os franciscanos construíram uma igreja em homenagem a Nossa Senhora das Neves do Sahy e um convento 95 Apresento ao leitor a o Mapa do Consórcio de Desenvolvimento Sustentável do Piemonte Norte do Itapicuru com destaque para o município de Senhor do Bonfim Figura nº 01 Mapa do Consórcio de Desenvolvimento Sustentável do Piemonte Norte do Itapicuru Fonte httpcdsitapicuruwixsitecomitapicuruoconsorcio acesso em 28012019 No município de Senhor do Bonfim estão situadas às comunidades quilombolas rurais de Cariacá Tijuaçu Passagem Velha Cazumba Cruzeiro Umburanas111 e também o quilombo urbano Alto da Maravilha Dentre as narrativas locais destaco os relatos do senhor Manuel Julião Dias Mané Congo ou ainda Seu Menininho como é lembrado por seus netos as e bisnetos as O 111 Essas comunidades citadas possuem outras localidades que compõe seu perímetro quilombola 96 falecimento do ancião no segundo semestre de 2015 consternou a comunidade de Cariacá Seu Menininho era conhecido como o pai dos Congos por ter sido o representante mais velho da Família Congo Da ultima vez que o entrevistei em sua residência ele relatou a origem de Cariacá Então tinha uma fazenda que era interado antigamente até chegar no Bonfim aqui em Cariacá ela é dessa época do D Pedro I112 Seu Menininho também mencionou a demarcação das terras da antiga Fazenda Cariacá Por ter essa terra muito grande aqui pros Congo ficava repare bem como era a demarcação bico da Serra da Umburana bico da Serra do Botequim que é o Cazumba hoje Voltando por uma área chamada Priquito cortando voltando pela Passagem Velha e morrendo na Serra da Umburana no bico da serra Cortando na banda do Enxú e aqui pé do Morro Jabuticaba Aí fechava a Fazenda Cariacá Era a Fazenda Cariacá Quem comprou foi meu pai Pai dos Congo que os Congos são quilombola e vieram do Cariri Novo vieram por causa da seca que lá não tinha nada pra comer Não foi ele só não vários Agora pra viver aqui se habituaram nesse lugar No passado foi cheio de casa da minha família A escritura ela existe ela foi feita no cartório como que vai pro Campo do Gado O cartório antigo velho era ali Manuel Julião Dias 88 anos em 23072015 Chamo a atenção para o fato de que a memória oral complementa as lacunas da história oficial A memória dos mais velhos é o principal elemento utilizado para a recomposição da história nas comunidades tradicionais De igual modo é essa memória que ora dialoga ora confronta e ou corrige os documentos oficiais A existência de uma escritura de terras relatada por Seu Menininho permaneceu desconhecida pela comunidade até 16 de janeiro de 2016 quando durante um curso de formação de lideranças quilombolas113 do qual participei como mediadora alguém mencionou a 112 Entrevista concedida em 23072015 113 O curso me foi solicitado pela direção da Associação Quilombola de Cariacá e Adjacências AQCA O primeiro dia da atividade foi tumultuado devido à ocorrência de um evento promovido por parte da Secretaria de Assistência Social do município segundo os participantes essa atividade foi desenvolvida concomitantemente com o propósito de desestruturar e reduzir o número de pessoas que compareceriam a sede da AQCA dispostas a participar do curso Ainda foi cogitado pelos presentes que essa pudesse ter 97 existência desse documento Na tarde do segundo dia do curso quando havia um número maior de participantes D Tânia Maria da Silva Dias 54 anos declarou estar de posse do documento114 desde o falecimento de seu pai Ela ocultou a informação dos demais por temer represálias dos fazendeiros tive medo de mexer nessas histórias e ter problema com os fazendeiros Na semana seguinte ao curso fui à residência de Tânia e visualizei a escritura de compra da Fazenda Cariacá O documento confirmou o relato de Seu Menininho A propriedade foi adquirida em 04 de janeiro de 1929 de Adélia Amália de Carvalho Leite pelo valor correspondente a trinta mil réis Os compradores foram os irmãos João Julião Dias Joviniano Julião Dias e Manuel Julião Dias esse último pai de Seu Menininho e pelo cunhado Manuel Pedro da Silva De acordo com Seu Menininho antes de efetivar a compra a sua família já ocupava as terras A sua antiga proprietária Adélia Leite passava a maior parte do tempo na cidade de Tucano onde residiam seus pais Foi uma tarefa difícil reconstituir a história de Cariacá sobretudo porque os relatos eram escassos Os as moradores as muitas vezes estranhavam as minhas indagações principalmente os as mais velhos as e não viam sentido em falar sobre o passado115 Os fatos que trago a seguir não foram vistos em campo mas são contados a partir do que foi dito pelos interlocutores as sendo portanto narrados levandose em consideração a importância que os agentes da pesquisa demonstraram atribuir aos mesmos No passado as terras da Fazenda Cariacá constituíam uma rota de passagem de boiadeiros e tropeiros que costumavam pousar na fazenda Durante as travessias eles guardavam os animais em currais ou pastos de moradores as como José Gomes Antônio Totonho e a senhora Dilina116 O relato da formação da comunidade de Cariacá encontra sido uma estratégia utilizada por parte da mesadiretora da Associação dos Moradores de Cariacá que em parceria com algumas secretarias do município costuma dificultar o êxito das tarefas mediatizadas pela AQCA 114 A declaração de Tânia gerou uma grande comoção entre os participantes houve choros por parte de alguns as e questionamentos diversos por parte de outros as O episódio desencadeou algumas divergências entre os presentes e foi atenuado por um intervalo As conversas e o lanche descontraíram o ambiente 115 Essa circunstância me incomodou profundamente pois antes da pesquisa eu já mantinha contato com muitas pessoas de Cariacá e frequentava a comunidade desde janeiro de 2014 Quando partilhei essa dificuldade com D Maria José do Nascimento ela afirmou que a quietude e o hábito de não gostar de falar de sua história eram caraterísticas do grupo os Congo Paula são tudo assim não gostam de falar de seu sofrimento mas eu conto mesmo Todavia eu já havia sido prevenida por Valmir dos Santos que os Congos são um grupo mais fechado 116 Os interlocutores as não recordaram os sobrenomes de Antônio e Dilina já falecidos e cujas famílias não mais residem em Cariacá 98 correspondência na história de fundação do município de Senhor do Bonfim pois como enunciado pela pesquisadora Carmélia Aparecida Miranda 2006 durante o século XVIII as terras que atualmente constituem o município de Senhor do Bonfim eram ocupadas pelas rancharias de tropeiros e exploradas pela Casa da Torre de propriedade da família Garcia DÁvila Seu José Preto foi o único morador de Cariacá que auxiliou o pai na atividade de tocar tropa de burro serviço que prestava à família de D Trindade Muricy A família Muricy aparece em todos os relatos dos anciões de Cariacá em especial D Trindade seu esposo Joaquim Muricy e o seu sogro capitão Joaquim Belizário de Freitas Essa família possui ainda hoje muitas propriedades na VilaCentro em Cariacá administradas por D Euzarir Muricy neta de D Trindade Os membros da família Muricy são foco de sentimentos que variam do bem querer ao temor e hostilidade declarada Tais sentimentos alternam conforme a relação que os mais velhos as e os seus ancestrais construíram principalmente com D Trindade Muricy quase sempre caracterizada como uma pessoa de bom coração Essa virtude lhe é atribuída por ter facultado em suas terras a atividade de plantio do arroz em sistema de meação e também por partilhar gêneros alimentícios e roupas com a população de Cariacá D Trindade assume a forma de uma figura mitológica O seu esposo aparece com menos assiduidade nas narrativas locais117 O antigo casarão de propriedade da família Muricy ainda que reformado constitui para os moradores de Cariacá um marco territorial que acionam frequentemente nos relatos históricos e de resistência No casarão apenas o pé de cedro permanece a estrutura do prédio sofreu diversas alterações118 117 Foi ressaltado que o senhor Joaquim permanecia pouco tempo em Cariacá afastado em função de suas atividades como comprador de madeira e de dormentes de trem 118 Após reformada a casa permanece fechada 99 Imagem nº 03 Casarão que pertenceu a D Trindade Muricy Fonte Acervo da pesquisadora Nas entrevistas realizadas durante a primeira etapa da pesquisa de campo os interlocutores as destacaram que no casarão da Trindade havia um porão onde ficavam sujeitos negros as escravizados as trazidos do Recôncavo e de Tijuaçu Relataram a existência de correntes e troncos que teriam sido retirados após a reforma da propriedade encomendada por D Euzarir Muricy também conhecida como a juíza Zazá Muricy Assim informou D Luci Era uma moradeira antiga a senhora Trindade Muricy era a mulher mais rica que tinha no Cariacá da família dos Muricy Ela já é falecida Inda hoje existe o casarão dela que é a casa mais antiga de nossa comunidade que é a casa que disse que ficava os prisioneiros o pessoal dos cangaceiros dizem que ficavam tudo aí Vi falar que aí ficavam os escravos e não é mentira não Que tem essa juíza aí que comprava as casas tudo que tem as casas abandonadas que ela nem derruba nem concerta nem dá pra ninguém morar 100 Teve um dos herdeiros que disseram que vendia a parte do casarão a ela mas outros disse que não vendia e aí a casa tá aí abandonada Desses escravos que ficava preso na casa disse que muitos vinha do Tijuaçu Eu não conheci que não foi do meu tempo mas eu ouvia falar Luciana de Freitas Silva 75 anos em 23102015 Atualmente D Euzarir Muricy é proprietária de seis casas na VilaCentro Uma dessas casas um sobrado que é uma das construções mais imponentes do lugar Há também uma chácara que visita a cada dois anos Durante as visitas a juíza Zazá adquire informações sobre pessoas que desejem vender suas casas em Cariacá e se propõe a comprálas para conserválas fechadas Os moradores as acreditam ser essa uma estratégia para transformar a VilaCentro em uma comunidade fantasma As lembranças do passado foram verbalizadas pelos mais velhos as envolvidas em uma atmosfera de orgulho e saudosismo Esses sentimentos talvez se encontrem amparados em uma reverência aos tempos de ouro da comunidade caracterizados por um desenvolvimento econômico e social relevantes Cariacá dispunha de serviços de telegrafia e sediava uma das seis estações ferroviárias do município de Senhor do Bonfim A ferrovia foi inaugurada em 31 de agosto de 1887119 Em conversas informais os as moradores as mencionaram a passagem de trens de carga e de passageiros inclusive do transporte conhecido à época como Estrela do Norte Quando o trem passava os pais temendo acidentes orientavam as crianças a não se aproximar da linha férrea A estação de Cariacá integrava o sistema ferroviário que conectava o sertão à cidade do Salvador O último trem de passageiros o Marta Rocha que ligava Senhor do Bonfim à cidade de Alagoinhas foi desativado em 1989120 em virtude da forte concorrência rodoviária e da precariedade dos serviços prestados aos passageiros Atualmente apenas os trens de carga atravessam Cariacá Da antiga ferroviária não resta mais nada Todos os 119 Informação disponível no Guia Geral das Estradas de Ferro do Brasil 120 PESSOA Ciro Deocleciano Estudo Descritivo das Estradas de Ferro do Brasil 1986 101 objetos de valor foram retirados pela Leste121 e a linha do trem permanece para os as moradores as apenas como mais uma referência do passado Figura nº 02 Mapa das Estações Ferroviárias do Brasil em destaque a linha que ligava o sertão ao litoral onde aparece a cidade de Senhor do Bonfim e da qual fazia parte a estação ferroviária de Cariacá Fonte httpwwwestacoesferroviariascombrbapaulistanasenhorhtm acesso em 290119 Havia em Cariacá um animado comércio de produtos como mamona ouricuri milho e feijão A mamona e o ouricuri eram transportados para a SAMBRA122 em Salvador Esses produtos segundo os quilombolas ficavam armazenados em um depósito de propriedade de Ermelino Mendes de Oliveira ou Mestre Ermelino como era conhecido Ele é mencionado com respeito um homem de autoridade antigo delegado que exercia as 121 Viação Férrea Federal Leste Brasileiro VFFLB criada em 1935 durante o governo do presidente Getúlio Vargas 122 Atualmente conhecida como Bom Brasil Óleo de Mamona 102 funções de agente dos correios e de mestre de obras Os as moradores as de Cariacá destacaram um curtume de couro que pertenceu a Joaquim Belizário de Freitas123 um açougue de propriedade de José Gomes da Silva cujo abate de bovinos e caprinos se verificava às quintasfeiras As carnes eram comercializadas em Senhor do Bonfim Tijuaçu Quicé e Antônio Gonçalves Nesse período a rua do Cariacá contava com menos de vinte casas algumas eram ranchos de palha Segundo os moradores as os seus ascendentes residiam embaixo de pés de pau e em pequenos ranchos erigidos coletivamente A solidariedade entre os membros da comunidade se verificava tanto na construção de moradias quanto de caixões Eles eram produzidos debaixo de um pé de cajarana124 A fabricação de caixões era uma atividade que se estendia por toda a madrugada A madeira utilizada provinha da umburana ou das tábuas da cama do a morto a O passado promissor de Cariacá foi interrompido após a construção da Rodovia Federal Lomanto Júnior BR 407125 em 1960 que desencadeou impactos negativos sobretudo econômicos Em pesquisa anteriormente realizada na comunidade quilombola de Tijuaçu constatei que a construção da citada rodovia impulsionou parcialmente o progresso econômico da referida comunidade126 Todavia em Cariacá a rodovia acarretou a desvalorização da ferrovia e a isso se seguiu um longo período de esquecimento e abandono que prevalece até os dias atuais inclusive por parte da cidade de Senhor do Bonfim Segundo as narrativas orais apenas quando ocorreu a afirmação da ancestralidade quilombola é que o pequeno povoado passou a receber da cidade polo algum tipo de atenção 123 Do curtume restam alguns tanques desativados 124 A cajarana e o cedro foram classificados como árvores ancestrais 125 A BR 407 ou Rodovia Federal Lomanto Júnior foi construída durante a década de 1960 na gestão do governador Lomanto Júnior 126 A construção desta rodovia desencadeia impactos positivos e negativos para a comunidade quilombola de Tijuaçu principalmente no setor econômico visto que facilitou o acesso à cidade de Senhor do Bonfim e favoreceu a instalação de comerciantes na VilaCentro É oportuno esclarecer que esses comerciantes em sua maioria são sujeitos não negros as e ou ainda descendentes dos fazendeiros que em tempos pretéritos invadiram as terras dos quilombolas 103 22 APRESENTANDO A VILACENTRO A referência para se chegar à comunidade de Cariacá é o posto de combustível Transvale A partir daí é necessário abandonar a Rodovia Federal Lomanto Júnior e adentrar por um pequeno entroncamento cuja pavimentação foi inaugurada em 03 de julho de 2017 Na época mais intensa da minha pesquisa era uma estrada vicinal de chão batido caracterizada pela presença de costelas de vaca127 O percurso de sete quilômetros até Cariacá revela ao visitante elementos significativos como a poeira e um lixão a céu aberto um problema antigo a ser solucionado pelo poder público Em 2016 o lixão foi cercado com arame e em suas dependências foi construída uma guarita Contudo durante a noite o espaço funciona como ponto de consumo e venda de drogas comprometendo a segurança das famílias de Cariacá No trajeto para a comunidade nos deparamos com frequência com caçambas do Grupo Irmãos Pelegrini128 Também os ônibus transitam pelo local movimentando o trecho estreito e castigado pelo sol do sertão Os ônibus viabilizam os deslocamentos dos moradores de Cariacá para a cidade de Senhor do Bonfim Diariamente nos horários de 6 7 e 12 horas os ônibus saem da VilaCentro para a cidade de Senhor do Bonfim retornando ao meio dia O último ônibus regressa a Cariacá por volta das 17 horas Além do transporte coletivo para Senhor do Bonfim há os ônibus escolares restritos ao uso de estudantes e professores as Motos e veículos particulares de moradores as circulam constantemente no percurso povoado por algumas chácaras que não são de propriedade dos quilombolas Também fazem parte do trajeto CariacáBonfim a Fazenda Laminha de Carlos Farias129 e uma lagoa que costuma secar nos períodos de estiagem Esse pequeno fluxo cotidiano de veículos levanta a poeira das ruas areentas e pouco organizadas que se distribuem pela VilaCentro 127 As costelas de vaca são ondulações provocadas pela ação dos transportes que trafegam cotidianamente nas estradas rurais 128 Uma empresa voltada para a produção de materiais préfabricados e derivados de pedra que se instalou na comunidade em 1984 É popularmente chamada pelos as moradores as de pedreira 129 A família Farias instalada em Cariacá é constituída por parentes de Paulo César Farias político que ficou conhecido nacionalmente durante o governo do expresidente da República Fernando Collor de Melo O fazendeiro Carlos Farias não reside na propriedade aparecendo uma vez por ano para verificar a sua situação 104 Imagem nº 04 Estrada rural que até junho de 2017 ligou a comunidade de Cariacá até o município de Senhor do Bonfim Fonte Acervo da pesquisadora A comunidade de Cariacá possui poucos acessos viários e apenas a Rua Cariacá Central é pavimentada Seu calçamento foi concluído em 2007 As demais ruas são denominadas Quilombola e da Linha Somente o loteamento Altamirando Pelegrini130 não foi designado pelos as moradores as Há uma divisão interna na comunidade que foi instituída por seus ascendentes em decorrência de rivalidades entre as famílias Congo e Muricy Cariacá de Cima Vila Centro Cariacá de Baixo e Morrinhos respectivamente Essas localidades constituem o território de Cariacá O marco divisório entre a VilaCentro e os Morrinhos é a estrada 130 A denominação do loteamento foi uma homenagem ao pai do senhor Aparício Pelegrini 105 férrea e uma mercearia O Cariacá de Baixo compreende as terras que se distanciam da VilaCentro em direção às localidades rurais Para melhor situar o leitor a informo que o território de Cariacá cuja população é estimada em 2109131 habitantes encontrase assim constituído Cariacá de Cima Vila Centro Morrinhos e Cariacá de Baixo as outras localidades que formam o perímetro são Limões Teiú e Cruzeiro É identificada no território a presença das seguintes fazendas Laminha Umburanas Três Morros Pedro Souza Lagoa do Boi e Picada Em tempos pretéritos essas terras pertenciam aos ancestrais do grupo e atualmente a exceção de parte das fazendas Pedro Souza e Lagoa do Boi as demais propriedades estão em posse de pessoas que até o presente momento não se identificam nem são identificadas como quilombolas 221 ANDANDO PELAS RUAS DE CARIACÁ DE CIMA Cariacá de Cima é também referida como Cariacá Central pois tratase do núcleo do povoado Organizado como uma vila é mais urbana que as demais localidades É possível ter acesso às ruas de Cariacá de Cima pela localidade de Morrinhos que é quase totalmente pavimentada A rua Central é organizada em duas avenidas com casas até o início da estrada para Cariacá de Baixo Nessas avenidas estão as construções mais antigas Chama a atenção o sobrado imponente de D Euzarir Muricy Na parte final da rua Central a mais antiga segundo os moradores as encontrase o casarão que pertenceu a D Trindade Muricy e o pé de cedro Há nas vizinhanças seis casas antigas constituídas em adobe de propriedade de D Euzarir Muricy A maioria dos as moradores as que residem nessa parte da localidade se identificam como membros da Família Congo 131 Dados fornecidos por parte da Secretaria de Saúde do município de Senhor do Bonfim 106 Imagem nº 05 Casas localizadas na Rua Cariacá Central Fonte Acervo da pesquisadora Há um cruzeiro assentado em uma base de cimento a linha férrea e um orelhão desativado situados no começo da rua Central Existe um ponto de ônibus ao lado do cruzeiro Outras ruas se projetam desordenadamente formando pequenas vielas em aclives e declives Nelas estão as construções mais recentes de Cariacá De maneira geral as casas situadas na Vila apresentam alguns contrastes Há construções erigidas em bloco e cimento Algumas são caiadas outras azulejadas com cerâmicas simples e portão de ferro ou pequenas grades singelas na parte frontal Os tetos dessas residências geralmente não são forrados e o piso é confeccionado por um tipo de cimento queimado de coloração vermelha amarela ou branca Algumas casas possuem piso de cerâmica em forma de mosaico Essas casas se diferenciam das antigas habitações de adobe danificadas oferecendo ao espectador um pequeno registro do passado As residências são divididas internamente em sala cozinha dois ou três quartos O banheiro se localiza com frequência 107 na área externa132 Não há portas dividindo os cômodos são utilizadas cortinas coloridas para separar os quartos e salas Não há rede de esgotamento sanitário em todo o território quilombola Predominam as fossas sépticas cavadas em regime de mutirão também designado batalhão A escavação das fossas sépticas mobiliza todos os homens da família ampliada É um trabalho solidário de grande relevância Durante o trabalho as mulheres da casa se ocupam da preparação do almoço133 que costuma ser especial em função da força empregada na atividade No mutirão observase a alegria da confraternização entre parentes e alguns compadres que eventualmente colaboram A decoração das casas observa um padrão regular com destaque para o televisor que ocupa lugar privilegiado em todas as salas de Cariacá de Cima O aparelho permanece ligado durante todo o dia pois os as moradores as acompanham assiduamente as notícias e assistem às novelas Notase também a presença de pequenos sofás de dois lugares cobertos com capas lisas ou coloridas e de uma estante contendo imagens sacras quando os as moradores as são católicos as e a Bíblia Sagrada quando se trata de uma família evangélica Em algumas casas há aparelhos de som e de dvd Os adolescentes e as crianças se distraem com celulares tabletes e computadores As comunidades quilombolas não constituem espaços isolados e seus membros estão na medida do possível integrados à sociedade pósmoderna Em algumas cozinhas há fogões a lenha que permanecem acessos durante todo o dia em outras os fogões a lenha dividem espaço com o fogão a gás um armário de pé ou de parede e uma mesa de madeira cujo tamanho é proporcional à quantidade de pessoas que residem na casa Alguns quintais das residências não são divididos por muros ou cercas de arame134 e por vezes interligam algumas ruas Assim é possível atravessar de uma rua para a outra atravessando apenas um quintal Alguns membros da comunidade criam porcos em chiqueiros outros criam galinhas A presença de aves em gaiolas de gatos e de cachorros é frequente em quase todos os quintais É comum em Cariacá encontrar cavalos e jumentos 132 Poucas casas possuem banheiro em seu interior Ele é geralmente um cômodo recente construído com recursos da aposentadoria do a morador a 133 O almoço tradicionalmente preparado é constituído por uma fatada ou buchada arroz branco e cachaça com limão Os quilombolas acreditam que essa alimentação produz força e fogo suficientes aos homens da família que conseguirão terminar com sucesso a atividade iniciada geralmente por volta das 500 ou 600 h da manhã podendo se estender até o final do dia 134 Cercas e muros só são colocados quando os as vizinhos as não são parentes de primeiro grau 108 circulando sem restrições pelas ruas Quando lecionei em uma turma de Pedagogia135 em Cariacá os cavalos invadiram a escola diversas vezes Em algumas residências da VilaCentro habitam mais de uma família nuclear devido aos problemas econômicos enfrentados tanto para a aquisição do terreno quanto para a construção do imóvel Em 2015 os territórios quilombolas de Cariacá e Cazumba136 foram contemplados com quarenta e duas casas do Programa Nacional de Habitação Rural PNHR A VilaCentro é constituída por oito mercados de pequeno porte que se assemelham a mercearias Muitos estão instalados nas salas das residências dos proprietários ou em um cômodo lateral137 Há seis bares que aos domingos proporcionam diversão e encontros entre as famílias Os homens da comunidade geralmente frequentam os bares ao passo que as mulheres se reúnem em frente às casas mandando buscar a bebida e alguns petiscos em especial o acarajé138 A única escola da comunidade a Escola Municipal de Cariacá está situada em Cariacá de Cima Nela estudam alunos de todas as localidades do território quilombola No turno matutino há classes do Ensino Fundamental II ministradas por professoras es da cidade de Senhor do Bonfim139 No turno vespertino funcionam classes de Educação Infantil e de Ensino Fundamental I No período noturno foi implantado o Ensino Médio na modalidade de Educação a Distância Uma professora da comunidade realiza as atividades de tutoria Atualmente boa parte dos das adolescentes em especial os as que cursam o Ensino Médio estudam na cidade de Senhor do Bonfim onde há escolas mais organizadas que a da comunidade Alguns desses alunos relataram serem vítimas de discriminação por 135 Há um projeto em Cariacá e em diversas outras comunidades tradicionais como Fumaça Acaru São Pedro Tamanduá e Alto do Capim cuja proposta é levar a universidade para o quilombo formando turmas de licenciatura em Pedagogia O curso é oferecido pelo Instituto Brasil Quilombola IBRAQ e vinculado ao Instituto Superior de Educação ISEPRO Tenho lecionado nessas comunidades desde 2016 136 Cazumba é uma comunidade quilombola situada no município de Senhor do Bonfim 137 Quatro desses estabelecimentos pertencem a moradores as que não se percebem como quilombolas 138 O acarajé não é produzido pelas mulheres de Cariacá Entretanto aos domingos uma moradora da comunidade quilombola de Tijuaçu D Ilca dos Santos vende o produto em Cariacá 139 Apenas duas professoras da comunidade trabalham na escola 109 parte de colegas e educadores nas escolas públicas de Senhor do Bonfim por residirem em áreas rurais140 Imagem nº 06 Escola Municipal de Cariacá Fonte Acervo da pesquisadora Em Cariacá há um posto de saúde Um médico atende no local a cada quinze dias Não há medicamentos ou outros serviços no posto Uma zeladora que é moradora da comunidade D Raquel Gomes da Silva e membro da Família Congo se encarrega da limpeza local e o mantém aberto durante a semana Ela também atua como recepcionista durante as visitas médicas A AQCA enviou dois ofícios à Secretaria de Saúde do 140 A discriminação é atenuada quando eles as se identificam como quilombolas Os órgãos públicos de Senhor do Bonfim têm desenvolvido políticas públicas de valorização e respeito à diversidade cultural 110 município reivindicando a instalação de um Posto de Saúde da Família PSF141 em Cariacá A comunidade também reivindica medicamentos e serviços técnicos no posto de saúde Em Cariacá há técnicas de enfermagem que poderiam trabalhar no posto Em Cariacá de Cima há um posto dos correios desativado duas capelas três igrejas evangélicas um cemitério um campo de futebol construído pelos próprios moradores as e a sede da AQCA o grande orgulho dos quilombolas Entre as capelas a mais antiga foi erigida em homenagem a São Sebastião e a mais recente construída para reverenciar Santa Rita de Cássia Ambos os padroeiros são invocados em um universo de fé e de respeito pelas famílias católicas de Cariacá que rezam contra a fome a peste e a guerra Os evangélicos frequentam as igrejas Assembleia de Deus Adventista do Sétimo Dia e Batista com sedes na comunidade Os quilombolas afirmaram que no passado havia curadores as e benzedores as no território Alguns deles já falecidos foram mencionados durante a pesquisa Alfredo e Josefa essa última apontada como curadeira forte do Cariacá de Baixo D Nair era uma reputada rezadorabenzedora que residia na localidade de Morrinhos Seu Venâncio e D Marieta foram também destacados Atualmente D Luci é a única rezadora de Cariacá Em quase toda a VilaCentro há energia elétrica Ela foi instalada na comunidade em 1981 Todavia em algumas casas mais humildes há gatos de energia A água encanada começou a ser instalada em 1988 mas muitas localidades do território ainda não dispõem do serviço e dependem de cisternas A internet foi instalada pela Associação Quilombola em 2015 Alguns membros da comunidade também adquiriram o sistema via cabo para as suas residências O uso da internet é um recurso muito apreciado Em quase todas as residências de Cariacá de Cima os moradores as possuem diversos celulares de operadoras distintas142 Eles facilitam a comunicação entre parentes que migram para as regiões sudeste e sul do país em busca de trabalho para assegurar as necessidades da sua família em Cariacá A tecnologia apazigua a saudade dos entes queridos distantes 141 Todavia a Secretaria de Saúde alegou que não há moradores em número suficiente em Cariacá que justifiquem a instalação de um PSF A Secretaria disponibilizou o veículo de um morador da comunidade para transportar os pacientes até o hospital de Senhor do Bonfim 142 A disseminação de aparelhos como celulares e tabletes entre os as moradores as tem contribuído para a circulação de informações e para o acesso a políticas públicas 111 A agricultura quase não é mais praticada no perímetro à exceção das localidades de Cariacá de Baixo e Teiú Essa atividade constituiu outrora uma das principais características do passado de Cariacá quando o plantio de gêneros como o arroz e a mamona eram responsáveis pela subsistência das famílias Os quilombolas não plantam atualmente devido à escassez de terras Muitas áreas foram expropriadas ou vendidas durante os longos períodos de estiagem por um valor inferior ao estimado Eles relataram que venderam as terras para assegurar a sobrevivência de suas famílias Alguns alegaram que perderam suas terras durante a seca de 1932143 quando muitas famílias migraram para a região sul da Bahia em busca de melhores condições de vida Quando retornaram encontraram parte de suas terras invadidas por estranhos e pela família Muricy Por esse motivo os interlocutores as afirmam que os Congo não têm terra apenas os quintais das casa Os quilombolas que ainda possuem alguma terra no máximo duas tarefas desenvolvem uma pequena atividade agrícola durante os anos chuvosos plantando feijão e milho na beira da linha Eles as relataram que nunca foram advertidos pela LESTE todavia são admoestados por D Euzarir Muricy que apenas a contragosto permite plantações ao lado da cerca de sua propriedade Uma atividade econômica desenvolvida por apenas duas famílias em Cariacá é a pecuária leiteira A criação de gado bovino é concentrada nas fazendas de não quilombolas situadas na antiga rota de passagem de boiada e tropa de burro A existência das fazendas evidencia a subjugação imposta no processo de apropriação do território quilombola por indivíduos de fora Alguns membros de Cariacá trabalham nas feiras em Senhor do Bonfim realizadas aos sábados Antigamente havia uma pequena feira na comunidade aos domingos mas atualmente os únicos estabelecimentos abertos em Cariacá nesse dia da semana são os bares A principal fonte de renda em Cariacá provém do trabalho assalariado realizado na pedreira cuja construção imponente pode ser visualizada a partir da BR 407 O Irmãos Pelegrini é o maior empreendimento do ramo da construção civil da região e tem uma boa reputação no território quilombola pois prioriza a mão de obra local A pedreira como é 143 O ano de 1932 é rememorado em muitas localidades sertanejas quilombolas ou não como o período de estiagem que quase matou o sertão 112 popularmente designada está localizada próxima aos Morrinhos em um local que funcionou como ponto de encontro para as lavadeiras do grupo144 Os as moradores as de Cariacá declararam que mantém boas relações com o seu proprietário Aparício Pelegrini a exceção das famílias de Morrinhos impactadas pelos tiros disparados pela pedreira e pela perfuração realizada através das máquinas que ocasionavam e por vezes ainda ocasionam alguns abalos e prejuízos Há dez anos muitas casas de Morrinhos tiveram parte das paredes rachadas e toda a estrutura comprometida As atividades da pedreira e as chuvas acarretaram a destruição da capela de Santo Antônio145 Segundo os as interlocutores as quando essas atividades geram prejuízos o empresário Aparício Pelegrini ressarce as pessoas recuperando as suas residências e porventura algum móvel que tenha sido danificado O proprietário da pedreira é considerado como um benfeitor em Cariacá As pessoas do lugar recorrem ao empresário para solicitar ajuda no momento de construir casas para a ampliação da sede da associação e para custear o pagamento de parte da mensalidade dos estudantes da comunidade que cursam o Ensino Superior Além de constituir a principal fonte de renda dos moradores as a pedreira em Cariacá é motivo de orgulho pois de acordo com os interlocutores as o proprietário Aparício Pelegrini os valoriza e busca atender às suas necessidades Alguns membros da comunidade de Cariacá são funcionários públicos municipais geralmente alocados no setor de limpeza Há jovens contratados como monitores do Projeto Mais Educação nas escolas de outros povoados do município Algumas mulheres trabalham como empregadas domésticas na cidade de Senhor do Bonfim Aquelas que são casadas retornam para casa no final do dia enquanto as solteiras regressam apenas nos finais de semana Boa parte dos as moradores as são beneficiários de programas sociais do governo federal ou recebem auxílio de pais aposentados Em muitas famílias a aposentadoria dos idosos as representa o sustentáculo econômico para filhos netos e bisnetos A produção das atividades culturais é outro aspecto relevante observado no módus vivendi desses quilombolas sertanejos em especial entre aqueles as que residem em Cariacá de Cima são práticas que traduzem sua fé e atuam como formas de se comunicar com a sociedade inclusiva As principais atividades culturais encenadas nessa parte da 144 Muitas mulheres preferiam lavar roupas no lajedo espaço atualmente invadido e deteriorado 145 A imagem do santo está na capela de Santa Rita 113 comunidade são a Lapinha Cantada a Roda do Povoado de Cariacá o Terno de Reis e na atualidade o grupo de dança Quilombart146 as três primeiras atividades constituem construções presentes desde os ancestrais ao passo que a existência do Quilombart é algo recente por ser uma produção da juventude Entre as atividades encenadas pelas antigas gerações apenas a Lapinha Cantada permanece na atualidade a Roda e o Terno de Reis encontramse desativados porém considerando a importância que a existência dessas manifestações em tempos pretéritos possuiu e ainda possui para o grupo estimulando o orgulho dos mais velhos e a admiração por parte das gerações mais jovens faço a seguir uma descrição das mesmas Na primeira semana do mês de dezembro de 2016 encontrei D Luci em sua residência montando a lapinha em homenagem ao Menino Jesus Essa devoção é muito difundida entre as mulheres de Cariacá e foi iniciada por D Evanice Lopes Guimarães Montar a Lapinha é um rito feminino que passa de mãe para filha atravessando gerações de uma mesma família É um trabalho que envolve habilidade preocupação com os detalhes e principalmente a prática das orações As guardadoras acreditam que a prática traz saúde proteção e harmonia para toda a família e também boa sorte nas atividades que serão realizadas no ano seguinte Antes de começar a montagem da Lapinha é necessário pedir licença ao Menino Jesus através de orações A primeira delas é o PaiNosso em seguida a mulher considerada a dona da lapinha faz uma oração particular Durante a realização dessa atividade as mulheres são assistidas por suas filhas e ou netas que darão continuidade ao rito quando chegar no seu tempo Algumas lapinhas são montadas no chão da sala com os personagens da Sagrada Família do catolicismo cristão outras são improvisadas nas estantes e algumas são confeccionadas em pequenas caixas de papelão Há pois várias alternativas para a construção da estrutura que depois de concluída revela a subjetividade de quem a produziu Enquanto a lapinha é montada cânticos são entoados para saudar a chegada do Menino Jesus que na concepção das guardiãs da devoção entra em suas residências permanecendo até o dia 06 de janeiro quando a lapinha é desmontada Esse cântico é o mais recorrente 146 Abordarei essa atividade cultural que constitui uma construção das gerações mais jovens do grupo no Capítulo 6 114 Os olhos de Deus Menino São dois navios de guerra De dia clareia o mundo De noite clareia a terra Lá vem o carro cantando Cheio de botão de rosa Deus Menino vem no meio Escolhendo a mais formosa Nós vamos todos cantando Com prazer e alegria Adorando a Jesus Filho da Virgem Maria Cântico entoado por D Luciana de Freitas Silva 75 anos No período em que a lapinha permanece montada a família ora diariamente às seis horas da tarde A oração pode ser realizada pela dona da devoção ou compartilhada com todos as os as moradores as da casa Quem inicia a devoção da Lapinha do Menino Jesus deve se encarregar dela por sete anos ininterruptos O mesmo ocorre na confecção das árvores de Natal Completado o ciclo é possível abrir mão dessas atividades interpretadas como preceitos Todavia abdicar das tarefas antes do tempo previsto significa se expor e à sua família a acontecimentos negativos No momento de desmanchar a lapinha geralmente em sete de janeiro a família se reúne para rezar o terço finalizando o rito A Roda do Povoado de Cariacá e o Terno de Reis constituíam sinais diacríticos dos brincantes na cidade de Senhor do Bonfim Embora não sejam mais realizadas desde o final da década de 1990 essas atividades são percebidas como uma herança cultural dos troncoso Antes de se tornarem conhecidas na sede do município já alegravam a vida da 115 comunidade Foram iniciadas com a Família Congo mas durante as apresentações não havia distinção entre Congos Muricys ou descendentes de índia147 Elas deixaram de ser realizadas após o falecimento de seus organizadores e em vista das dificuldades econômicas que se acentuaram na comunidade Entre os antigos brincantes D Luci é a única que ainda vive e reside na comunidade Outros as moradores as relataram lembranças das noites de reisado dos ensaios e das apresentações da roda Eles as apontaram D Luci como guardiã das fotografias e principal organizadora desses festejos Quando indaguei a D Luci sobre essas atividades ela me puxou pela mão e me conduziu para a residência afirmando que necessitava da minha ajuda para pegar uma caixa com álbuns de fotografias antigas e assim ilustrar o seu relato148 As fotografias são em sua maioria em preto e branco Elas constituem ao lado da memória oral uma herança dos troncos velhos com os quais se aprendeu e durante muito tempo manteve o compromisso de multiplicar para que a brincadeira não se perdesse A Roda do Povoado de Cariacá como era conhecida passou a ser organizada por D Luci em março de 1962 período em que atuava como professora na comunidade condição que lhe facultava um contato direto com o poder executivo municipal que patrocinava a atividade colaborando com os figurinos e o transporte As apresentações eram realizadas na Praça Nova do Congresso e os ensaios ocorriam no prédio escolar Eles eram iniciados em abril para estarem aptos a participar do circuito oficial do São João bonfinense A roda era constituída por sessenta pessoas entre moças rapazes mulheres casadas e algumas senhoras idosas O destaque ia para os participantes que demonstravam habilidade para dançar roda e dizer verso Os versos quase sempre rimados pertenciam ao cancioneiro popular ou eram criações de D Luci que ainda os recita e canta com facilidade 147 Como já referido embora a memória indígena tenha se perdido entre os as moradores as algumas lembranças aparecem quando os sujeitos mais velhos do grupo relatam antigas histórias A expressão descendente de índia costuma ser utilizada por D Luci 148 Durante essa visita D Luci me apresentou à sua mesa de Santo um espaço que permanece oculto para algumas pessoas da comunidade Me senti honrada com o convite Nas pequenas comunidades rurais do sertão as pessoas que não exercem a atividade religiosa de curador a mas constituem mesa de Santo devido ao fato de serem rezadoresbenzedores as ainda que de maneira reservada não costumam permitir a presença de visitantes nesses espaços D Luci mostrou as suas bonecas presentes de parentes e amigos as e depois apresentou o nicho dedicado aos santos afirmando que reza em adultos e crianças e que se sente feliz por ter recebido de Deus essa missão Em seguida ela separou as fotos do acervo testemunho da riqueza cultural da comunidade 116 Apresento alguns versos que foram cantados pela interlocutora durante os diálogos que mantivemos na sala de sua residência Chora bananeira Bananeira chora Chora bananeira Amanhã eu vou embora Meu anel caiu do dedo Dentro de um belo jardim Viva o povo da cidade E o prefeito de Bonfim Chora bananeira Bananeira chora Chora bananeira Amanhã eu vou embora Já te disse que não quero Já te dei o desengano Não me importo que tu morra No sereno cochilano Chora bananeira Bananeira chora Chora bananeira Amanhã eu vou embora 117 Eu subi na serra negra Com a sandália de algodão Minha sandália pegou fogo Na noite de São João Luciana de Freitas Silva 75 anos em 28122015 Os versos eram recitados por três cantoras os homens não cantavam no microfone estes conforme salientou D Luci apenas acompanhavam o coro de vozes puxado pelas mulheres Os brincantes se apresentavam com roupas coloridas sendo que os homens vestiam calças jeans camisas brancas e chapéus enquanto as mulheres trajavam blusas brancas saias coloridas sandálias enfeitadas com o mesmo tecido utilizado na confecção das saias pulseiras e usavam uma fita branca no cabelo Oito mulheres se apresentavam vestidas com roupas de ciganas Além dos brincantes havia a presença de um sanfoneiro O Terno de Reis é a atividade cultural que obteve maior destaque em Cariacá Segundo D Luci o Reisado foi iniciado pela senhora Maria Lopes descendente de indígenas da família linguística Kariri e falecida aos 116 anos Ela foi descrita como uma pessoa religiosa que se preocupava com o bemestar de todos as O Terno de Reis unia o grupo pois havia mais de um brincante em quase todas as casas da comunidade Os participantes se apresentavam caracterizados como Estrela Dalva lua rei rainha princesas casais de sertanejos e os tocadores de sanfona triângulo e por vezes zabumba As cores predominantes no vestuário dos brincantes eram o branco e o verde associadas ao universo sertanejo A cor verde faz referência à mata e o branco simboliza um pedido de paz no mundo Durante a sua existência o Terno de Reis de Cariacá era aguardado tanto na comunidade quanto na cidade de Senhor do Bonfim O terno percorria as localidades do território quilombola de Tijuaçu e muitos povoados da região atendendo aos convites e reverenciando a chegada de Jesus Menino D Luci última organizadora do evento rememorou os versos cantados e o modo como o Reis chegava saudando aos que o assistiam A lua guiando a estrela E o romper do lindo sol 118 Vem mostrar sua beleza E a harmonia do arrebol Cada qual com seus afetos Vem mostrar sua beleza E a todos Vos imploram Oh Autor da natureza Luciana de Freitas Silva 75 anos em 27122016 Segundo D Elvira muitas pessoas da comunidade não acreditavam na concretização do Terno de Reis em Cariacá em face das dificuldades enfrentadas na organização Assim cantavam os versos Todo mundo aqui dizia Que esse terno não saía Esse terno anda na rua Com prazer e alegria Meu Senhor Meu Deus Menino Saia fora e venha ver Venha ver suas pastorinhas Como vem Lhe obedecer Boanoite meus senhores Minhas senhoras também Nós somos as pastorinhas Da lapinha de Belém Elvira Gomes Damasceno 80 anos em 10092015 119 D Luci narrou com orgulho a respeito do período em que na companhia do senhor Olívio José de Freitas apresentou por três anos consecutivos o Terno de Reis de Cariacá ficando em primeiro lugar nas competições promovidas pela paróquia de São José Esposo a qual a comunidade permanece vinculada em Senhor do Bonfim Descritos os principais aspectos produzidos nas vivências que se verificaram em Cariacá de Cima procedo a seguir a uma descrição das demais localidades que integram o perímetro e que mantém com a Vilacentro relações políticas econômicas sociais e culturais Essas localidades se encontram articuladas a AQCA 222 PERCORRENDO O TERRITÓRIO Antes do início da pesquisa de campo eu estava acostumada a encontrar os atores sociais que residem nas outras comunidades do território nas reuniões da Associação Quilombola em casas de parentes na Vilacentro ou ainda em Senhor do Bonfim Conhecia algumas pessoas apontadas como lideranças porém um contato restrito que passou a se aprofundar a partir do dia 09 de fevereiro de 2016 quando pela primeira vez comecei a aparecer nas demais comunidades do perímetro Iniciei as atividades de campo de maneira didática considerando a ordem indicada no roteiro que D Maria José traçou em uma das muitas tardes em que estive em sua residência local que representou meu ponto de apoio e referência circunstância que se verificou e verifica em função da interlocutora ser sogra de Valmir dos Santos A amizade e o laço de compadrio construídos previamente com o senhor Valmir possibilitaram minha estadia praticamente fixa até então na residência da família Nascimento Embora o roteiro tenha sido traçado por D Maria fui conduzida inicialmente nas localidades através de Valmir esse intercâmbio aconteceu na semana do carnaval Utilizei esse período por dois motivos específicos o semestre acadêmico já havia começado no mês anterior e ainda possuía créditos teóricos para serem cumpridos segundo não existe carnaval na região em que me situo portanto desejava utilizar o período disponível para não me afastar do campo A partir daí continuei retornando aos finais de semana até que finalmente o semestre acadêmico terminasse para exercer as atividades de pesquisa com 120 maior liberdade e respeito àqueles as que sempre se mostraram receptivos a minha presença e necessidades etnográficas O auxílio direto prestado pelo senhor Valmir dos Santos constitui um comportamento que se tornou habitual acontecendo desde a época do trabalho monográfico escrito durante o curso de graduação em Pedagogia desde então em quase todas as ocasiões em que tenho mantido a oportunidade de estar nos quilombos contemporâneos que despertam na região norte do sertão baiano Valmir tem atuado como meu principal colaborador mediatizando os diálogos iniciais estabelecendose a posteriori o efeito bola de neve Encontravame entusiasmada para essa segunda etapa no roteiro de pesquisa atividade que foi realizada a pé e de carro pouco se trafega de moto no interior do território de Cariacá Esse tipo de veículo costuma ser utilizado com maior frequência para percorrer a distância que separa a comunidade do município No mapa abaixo demonstro ao leitor a a relativa proximidade espacial existente entre a VilaCentro as outras localidades do território e a comunidade quilombola de Tijuaçu Fonte Adobe Photoshop CC 2019 Ilustração da Pesquisadora 121 Ofereço ao leitor a a descrição dos principais aspectos percebidos nessas localidades e que caracterizam as vivências estabelecidas pelos interlocutores as 2221 CARIACÁ DE BAIXO Chegamos ao Cariacá de Baixo em um dia chuvoso Após percorrer um quilômetro e meio na rua principal que atravessa a VilaCentro avistei uma sucessão de casas separadas por pequenas cercas de arame Segundo os quilombolas o Cariacá de Baixo e o Cariacá de Cima foram povoados concomitantemente pelos ascendentes da Família Congo Durante certo período o Cariacá de Baixo possuía mais habitantes que a VilaCentro O processo de desertificação teve início quando os as primeiros as moradores as migraram para São Paulo em busca de melhores possibilidades de vida e como relatou D Isabel Vítor de Souza 65 anos aos poucos foram puxando os parentes que ficaram As famílias remanescentes se mudaram para o Cariacá de Cima restando apenas dez famílias em Cariacá de Baixo Em algumas residências habitam mais de uma família nuclear As casas são exíguas construídas em adobe e caiadas os pisos são de cimento queimado branco ou vermelho Em algumas casas o piso é de cimento grosso com algumas crateras em função do desgaste provocado pelo tempo Os telhados em madeira estão comprometidos Os as moradores as aguardam ansiosamente a construção de oito residências contempladas pelo projeto Minha Casa Minha Vida As casas possuem sala cozinha e dois quartos Os banheiros se localizam nas áreas externas Os cômodos são divididos por cortinas havendo apenas duas portas em cada residência a de entrada e a de saída da cozinha para o terreiro149 As portas são de madeira e tramela Não há escolas na localidade Os alunos estudam em Cariacá de Cima A energia elétrica foi instalada em 2004 A água não é encanada Há cisternas nos terreiros das residências Elas foram construídas em 2007 A água armazenada na cisterna é utilizada para o consumo humano para o banho e para as atividades de limpeza doméstica 149 Porção do quintal mais próxima à moradia O varandado da frente também é denominado terreiro 122 Imagem nº 07 Curso estreito do Rio da Prata que em períodos muito chuvosos reaparece em Cariacá de Baixo Fonte Acervo da pesquisadora Os as moradores as de Cariacá de Baixo são católicos e frequentam as missas quinzenais da localidade de Limões ou da VilaCentro de Cariacá Durante a Semana Santa rezam e cantam benditos em todas as casas e são convidados para entoar os benditos antigos na Vila com a qual mantêm relações muito próximas pois constituem uma só família Segundo D Isabel moradora mais idosa da localidade os habitantes de Cariacá de Cima são as ramas nova dos Congo véio Ela afirmou com certa melancolia que não sabe até quando o Cariacá de Baixo vai existir mas enquanto tiver Congo no mundo vai ter história pra contar complementou sorridente Atualmente nenhuma atividade cultural é praticada na localidade Os mais velhos evocam o período em que era encenada a brincadeira de reis150 para alegrar as noites do povoado 150 O Reisado aqui referido constituiu uma atividade praticada pelos residentes de Cariacá de Baixo Alguns brincantes do Reisado também integravam o tradicional Terno de Reis do Povoado de Cariacá 123 2222 A COMUNIDADE DE LIMÕES Durante o trajeto de três quilômetros da VilaCentro até a localidade de Limões não encontrei nenhum limoeiro que justificasse o topônimo do lugar Não obstante nas conversas realizadas com membros das vinte famílias residentes em Limões foi relatado que no passado havia muitos limoeiros em especial o pé de limão galego As casas de Limões foram construídas em um período recente pelos as filhos as dos habitantes mais antigos que constituíram famílias e permaneceram no local A grande maioria foi reformada pelos as moradores as Algumas casas pertencem aos retornados indivíduos que migraram para São Paulo e depois regressaram Eles dispõem de maior poder aquisitivo para investir nas residências e por vezes montar um bar ou uma pequena mercearia ao lado da casa Quase todas as construções se encontravam em fase de acabamento e apresentavam uma arquitetura praticamente uniforme alpendre sala ampla dois ou três quartos cozinha banheiro e uma pequena varanda com acesso ao terreiro Há um campo de futebol improvisado pelos as moradores as uma escola desativada e uma capela construída em homenagem a Nossa Senhora da Conceição Aparecida padroeira do grupo A capela é motivo de orgulho para os quilombolas Ela foi construída através do sistema de adjutório151 Os habitantes de Limões são católicos Segundo D Célia Marli Menezes Araújo 58 anos cujos pais nasceram e se criaram na localidade o maior sonho dos das moradores as era ver a capela edificada Eles relataram que embora todos as tenham participado da construção da capela a habilidade e persistência de D Ivone Gonçalves de Souza e o auxílio financeiro do padre Ramon foram fundamentais para a finalização da obra D Ivone relatou que durante uma das visitas mensais à localidade para celebrar a missa no antigo prédio escolar o padre Ramon indagou se eles haviam desistido de construir a igreja Os moradores destacaram a falta de recursos e o padre se propôs a ajudar financeiramente Ele também aconselhou D Ivone a pedir patrocínio do comércio bonfinense para a construção da capela Os homens constituíram a mão de obra e as mulheres forneceram a alimentação durante os trabalhos 151 Prática comum nas comunidades quilombolas e camponesas Consiste na união de todos as os as moradores as com o objetivo de arrecadar fundos para empreendimentos coletivos ou para auxiliar alguém que esteja enfrentando dificuldades 124 Imagem nº 08 Capela de Nossa Senhora Aparecida Fonte Acervo da pesquisadora A inauguração da capela de Nossa Senhora da Conceição Aparecida foi um dos dias mais importantes na história de Limões Além da população local compareceram ao evento parentes e amigos de todo o território quilombola A capela estava inicialmente destinada à invocação de Santo Antônio em respeito à devoção de Seu Galdino Pereira Brito fundador da localidade Todavia uma exmoradora argumentou que havia feito uma promessa de enviar para a localidade tão logo fosse construída uma igreja uma imagem de Nossa Senhora Aparecida trazida da cidade de Aparecida do Norte152 Assim Nossa Senhora da Conceição Aparecida foi consagrada padroeira celebrada em 12 de outubro e reverenciada durante o novenário tanto pelas famílias da localidade quanto pelos demais quilombolas de Cariacá As atividades culturais praticadas outrora foram sendo abandonadas à medida que os moradores responsáveis pela sua realização faleciam Os as habitantes mais velhos as 152 Nas comunidades rurais do sertão um compromisso feito em caráter de promessa constitui algo a ser respeitado sem questionamentos 125 relataram o reisado153 as brincadeiras do bumbameuboi e as tradicionais quadrilhas juninas Os brincantes de Limões costumavam alegrar as famílias de outras localidades do território quilombola Estreitar o contato com os quilombolas de Limões foi importante sobretudo para me auxiliar a compreender os elementos de pertença familiar e étnica que conformam a comunidade de Cariacá Quando eu percorria o território em companhia dos das interlocutores as ou sozinha visitando as casas os habitantes já sabiam que eu apareceria para conversar Em algumas localidades como Limões e Teiú os diálogos e entrevistas gravadas durante os trabalhos em campo eram assistidos por pessoas que queriam entender melhor a história de sua comunidade Em uma dessas reuniões D Ivone entoou uma das trovas utilizadas durante as encenações do bumbameuboi de Limões Alguns dos moradores as mais velhos não se recordavam da trova e os mais jovens não a conheciam transcrevo a seguir o pequeno fragmento cantado pela interlocutora que emocionou os presentes O boi dos Limões É feito de chitão Pega esse boi vaqueiro Oi oi oi Ivone Gonçalves de Souza 68 anos em 10022016 2223 A COMUNIDADE DE TEIÚ A localidade de Teiú se situa a dois quilômetros da VilaCentro e foi constituída por famílias oriundas dos Limões A família de Seu Eurides Pereira Brito 75 anos se mudou para a localidade quando o seu pai resolveu tocar roça no Teiú Seu Nem como é conhecido na localidade e D Ermínia Gonçalves de Souza 91 anos são os moradores mais antigos de Teiú 153 O Reisado era encenado em todo o território quilombola 126 Imagem nº 09 Lagoa da comunidade de Teiú Fonte Acervo da pesquisadora O meu primeiro acesso a essa localidade foi dificultado pelas fortes chuvas que caíam na região pois a lagoa que em épocas de estiagem seca havia transbordado impedindo os deslocamentos pela estrada rural alagada em diversos trechos Visitei o Teiú com D Ivone Fizemos o trajeto a pé atravessando roças e cercas de arame farpado D Ivone tem parentesco com quase todas as famílias do local e facilitou a minha entrada na área A localidade é assim denominada em função da existência de grande quantidade de um pequeno réptil conhecido no sertão como teiú ou tju A comunidade de Teiú ainda hoje é conhecida como um local propício à caça Durante a grande seca de 1932 a caça se tornou a principal fonte alimentar e de renda para os habitantes do lugar 127 Imagem nº 10 Acesso à localidade do Teiú com pontos de alagamento Fonte Acervo da pesquisadora O Teiú é constituído por uma vila de casas agrupadas em círculo onde residem quinze famílias Em quatro delas residem os filhos do Seu Nem Os as moradores as cultivam plantas conformando um jardim comunitário Além das casas de moradia dos quilombolas há cinco pequenas chácaras cuja extensão não excede dois hectares Seus proprietários não nasceram em Teiú adquiriram os lotes de terra dos das moradores as antigos ou de membros da localidade que migraram para a região sudeste do país Os donos das chácaras não residem na comunidade nem são agricultores São profissionais liberais que utilizam as chácaras nos finais de semana Até o momento em que estive em campo observei que eles mantêm relações amistosas com os quilombolas 128 Algumas casas das famílias quilombolas foram reformadas recentemente outras se encontram em fase de acabamento ou de construção São residências amplas com varandas algumas gradeadas sala dois ou três quartos cozinha e banheiro154 A infraestrutura da comunidade é constituída apenas pelas habitações e pelas roças dos as moradores as Eles cultivam feijão mandioca e verduras como tomate pimentão e mais esporadicamente maxixe e quiabo Os produtos agrícolas são em sua maioria consumidos pelas famílias do Teiú O excedente é comercializado em Cariacá de Cima e ou na feira livre da cidade de Senhor do Bonfim Não há escolas nem capelas Os as moradores as frequentam as missas em Limões e em Cariacá de Cima Após a missa visitam parentes e compadres nessas localidades Os moradores de Teiú são católicos e devotos de Nossa Senhora da Conceição a quem invocam como padroeira do lugar Em todas as casas que visitei as estantes das salas constituíam altares para os santos As imagens sacras de Nossa Senhora da Conceição Santa Luzia São Jorge e a Sagrada Família geralmente são colocadas sobre pequenas toalhas de tecido Essa é uma forma de expressar reverência Em Teiú eram realizados o reisado e a brincadeira denominada Careteiros D Ermínia Gonçalves de Souza 91 anos relatou que embora nunca se tenha comemorado o carnaval na comunidade durante o período os as moradores as costumavam se fantasiar de careteiros e percorrer as localidades do território quilombola divertindo os seus habitantes 2224 A COMUNIDADE DE CRUZEIRO Para acessar o Cruzeiro é necessário retornar à BR 407 e atravessar a comunidade de Passagem Velha Algumas crianças e adolescentes de Cruzeiro estudam na escola da Passagem Velha em virtude da maior proximidade de suas residências Fui ao Cruzeiro pela primeira vez com Valmir dos Santos e sua família Fizemos a maior parte do percurso de carro Após atravessar a Rodovia Federal Lomanto Júnior adentramos em uma estrada rural de chão batido e percorremos cerca de dois quilômetros 154 Em Teiú todas as residências possuem banheiros 129 Imagem nº 11 Estrada de acesso à comunidade de Cruzeiro Fonte Acervo da pesquisadora O Cruzeiro inicia ao longo de uma pequena ladeira de terra onde se localizam três habitações antigas constituídas em adobe e que no passado foram ocupadas por membros da Família Congo Como acreditei que as casas estivessem desabitadas comecei a fotografálas espontaneamente mas fui surpreendida pela indagação do morador de uma das casas como não é ignorado perguntar a moça tá tirando foto por que Me aproximei e percebi também a presença de uma mulher sentada Sorri acanhadamente pedi um pouco de água e enquanto esperava sentei na soleira da porta Eu estava sozinha pois Valmir e sua família se encontravam a alguns metros de distância entretidos com os frutos de um pé de umbuzeiro155 155 Não se tratava de uma família quilombola mas de pessoas que por não possuírem moradia haviam se instalado na casa Posteriormente fui informada que os quilombolas não sabiam que a casa havia sido ocupada 130 Imagem nº 12 Casa que pertenceu a uma Família Congo Fonte Acervo da pesquisadora Alguns metros após as casas dos Congos há uma placa com a inscrição Recanto da Paz Tratase de um cemitério constituído por pequenas carneiras Segundo Valmir o Recanto da Paz é um dos locais mais antigos da comunidade Aí estão sepultados as os as recémnascidos as que faleceram antes de completar dois anos156 Os adultos que falecem em Cruzeiro são sepultados na Passagem Velha ou na comunidade de Cazumba Há um imenso cruzeiro de madeira na localidade as casas são dispersas e seguem o curso da estrada formando um pequeno povoado que se expande em direção ao interior Existem algumas construções antigas de adobe e outras mais recentes em fase de acabamento Ao contrário do que se observa nas outras localidades do território quilombola em Cruzeiro as casas são em sua maioria divididas por cercas de arame ou por pequenos muros Os quilombolas de Cruzeiro organizaram a sua própria associação e 156 Os anciãos relataram que esse costume antigo em relação às crianças constitui uma atitude de respeito pois a maioria desses seres inocentes ou anjos faleceu pagã isto é sem receber o sacramento do batismo cristão 131 se desfiliaram da AQCA157 Constituída por trinta famílias Cruzeiro é a maior localidade do território quilombola Algumas famílias são oriundas da VilaCentro e outras naturais do lugar Há diversidade de credos religiosos em Cruzeiro pois existem moradores católicos adventistas do sétimo dia e cristãos do Brasil Não obstante na localidade há apenas a sede da igreja Cristã do Brasil Os fiéis das demais denominações se reúnem para celebrar as suas práticas na sede da associação nas casas dos religiosos na localidade de Passagem Velha e na cidade de Senhor do Bonfim Em relação aos aspectos culturais os interlocutores as declararam que no passado seus ancestrais encenavam o reisado Após haver procurado descrever alguns entre os principais caracteres políticos econômicos sociais e culturais observados e narrados pelos interlocutores as desta tese ao longo do território de Cariacá Mantendo o cuidado de demonstrar como essas comunidades interagem desde o passado histórico até as relações que cultivam nos dias contemporâneos No capítulo subsequente me proponho a apresentar ao leitor a a Família Congo suas estratégias e resistências para permanecer e se movimentar no território em que habitam esclarecendo por que se declaram um grupo quilombola e as ressignificações que estabeleceram e permanecem estabelecendo em seu processo de construção identitária 157 A desfiliação da AQCA não foi resultante de conflitos internos mas atendeu segundo os moradores as do Cruzeiro à busca por autonomia 132 CAPÍTULO 3 AQUI É TUDO CONGO QUILOMBOLA A proliferação das alianças parentais conduz de modo geral à formação de uma identidade mais abrangente a comunidade O transcorrer das gerações em convívio produz um efeito gregário o que fornece a amálgama é a existência de antepassados comuns e de símbolos e crenças frequentemente aprendidos desses antepassados que também são partilhados pela maioria dos membros da comunidade ENGEMANN 2005 p 182 Imagem nº 13 Curso de Formação para Lideranças Quilombolas Fonte Acervo da pesquisadora 133 À medida que estreitei contato com os moradores as de Cariacá observei uma característica singular no grupo sobre a autoafirmação bem como sobre as formas de ser e de se pensar como quilombola A autoafirmação não se fundamentava apenas na epiderme negra ou em um mito fundador de um ancestral em fuga do contexto escravocrata Ao invés disso estava associada à convicção de serem Congos quilombolas isto é membros da Família Congo158 Desde a primeira fase da pesquisa de campo e por todo o período subsequente busquei entender o que significava a expressão frequentemente enunciada pelos interlocutores as quando argumentavam aqui é tudo Congo quilombola Os membros da Família Congo eram tradicionalmente percebidos como pessoas distintas nas localidades que atualmente constituem o território quilombola Essa distinção se ancora no fato de se afirmarem como as ramas provenientes de um mesmo tronco velho159 São atores sociais negros e afrodescendentes muito ciosos da sua unidade parental Para ser classificado a como Congo é necessário compartilhar o sangue ou em caso de matrimônios com sujeitos da Família Congo passar por um rito de aceitação interna capaz de legitimar o pertencimento Não há um código escrito que regulamente esse princípio mas um conjunto de regras e atitudes que deverão ser observados por parte dos as que buscam se integrar à família A primeira regra é aceitar e defender em qualquer circunstância a família assimilando os fatores positivos e estigmas que constituem a identidade Congo A segunda regra é ser solidário e enfrentar as adversidades O terceiro princípio desse código moral invisível é preservar os assuntos que concernem apenas à família Esse conjunto de valores ou codificação simbólica é o mecanismo que assegura a preservação da identidade da Família Congo até os dias atuais De acordo com as memórias orais seus ancestrais vieram do Recongo de Santo Amaro160 Entre os sujeitos mais velhos as unicamente D Elvira e Seu Agripino 158 A compreensão de ser Congo se manifestou em perspectiva individual e também coletiva A expressão Família Congo se refere a uma designação reivindicada por todos os atores sociais que se declaram quilombolas Informo ao leitor a que opto pela escrita maiúscula da expressão Família Congo por haver observado que se trata de um conceito para os membros do grupo 159 Congo não é sobrenome mas a autodesignação de um grupo familiar ampliado 160 As pessoas mais velhas do grupo utilizaram o vocábulo Recongo ao invés de Recôncavo Essa informação apareceu ainda durante a primeira etapa da pesquisa e ficou melhor compreendida após o curso de Formação para Lideranças Quilombolas até então as gerações mais jovens desconheciam esse fator e os mais velhos as quando perguntados as restringiamse a falar que seus pais tinham vindo do Cariri A revelação a respeito da origem dos ancestrais da Família Congo apareceu com certa dificuldade a 134 aceitaram narrar essa informação durante a entrevista gravada Transcrevo portanto o que foi dito pela interlocutora considerando a minuciosidade de detalhes relatados Eu vejo falar desse negócio de Congo aí eu perguntava mamãe esse negócio de Congo de onde veio Ela dizia assim minha avó falava que a gente veio do Recongo de Santo Amaro Aí dizia que não tinha casa aqui que era uns pé de pau aí dizia que cortava a palha aí cortava os pau fazia aquele ranchinho fazia e aí ficava Minha mãe criou a gente dentro de uma casa de palha Ela dizia que era Congo Então eu sou não é Que tô na famia Então eu esmiunçava mais e de onde veio esses Congo Ela respondia Ah Você quer saber demais vá cuidar de sua esteira Isso era de noite Aí ela dizia eu nasci aqui mas minha avó e meu avô veio de lá do Recongo de Santo Amaro aí eu dizia vixeMaria Que nome feio Eu que falava Aí ela dizia é dos Congo Congo Por isso é que eu digo que é Congo né Sou Congo com orgulho O Valmir quando veio aqui eu tava sentada no prédio e aí à associação era ali Aí ele apareceu lá e perguntou venha cá minha tia me diga onde é a associação Aí eu não sabia quem era mas eu fiquei observando Aí ele ficou perguntando e eu falando Perguntou quem era parente aí eu falando aí então ele falou então eu tô no meio da minha famia dos Congo Aí muitos misturaram com os de Tijuaçu misturou o sobrenome Eu não tinha pra onde esconder que eu tenho parente em Tijuaçu na Lajinha no Derrubado Se eu sou Congo eu vou dizer que não é Minha mãe era dos Congo né Elvira Gomes Damasceno 80 anos em 10092015 princípio cogitei a possiblidade do desconhecimento porém quando o ethos do silêncio foi quebrado por D Elvira em uma situação em que o gravador já se encontrava desligado outros sujeitos mais velhos confirmaram essa afirmação Através dessa experiência compreendi melhor o significado da expressão coisa de Congo pois constatei que os anciãos sabiam dessa informação apenas a preservavam entre si Comentei esse episódio com o senhor Valmir solicitando que ele emitisse uma opinião a respeito o colaborador sorriu e arrematou eu lhe disse que eles eram assim fechados por causa do sofrimento mas se tiver paciência vai descobrir mais coisas Permaneci em atitude de vigilância epistemológica a procura de mais coisas Comecei a perceber que os membros da Família Congo quando resolvem falar não o fazem em única vez mas vão se pronunciando aos poucos sobre o mesmo assunto Os Congos mantiveram o hábito de conversar melhor quando a entrevista terminava e o gravador era colocado na bolsa observei que não gostavam do aparelho e que conseguiria melhores dados em sua ausência Desse modo a participação observante e a conversa informal foram instrumentos mais significativos entre os quilombolas de Cariacá que a entrevista gravada Informo ao leitor a que nunca estabeleci qualquer diálogo com o gravador ligado dentro da bolsa e sem o consentimento prévio dos interlocutores as além de considerar essa uma atitude desprovida de ética adotei esse comportamento em respeito à confiança demonstrada pelos mesmos as 135 Outro elemento significativo no relato de D Elvira é o parentesco estabelecido no passado com os quilombolas de Tijuaçu Além dos laços firmados pelos casamentos existe uma ligação que remonta ao tempo da escravidão e que foi enfatizada pelos anciãos quando disseram muitos escravos fugiram do Tijuaçu para Cariacá Essa fuga talvez tenha sido realizada pela estrada dos indígenas ou estrada velha Como já observado muitos moradores as de Tijuaçu ainda a utilizam para ir até Cariacá161 Os membros da Família Congo se distribuem do seguinte modo no território quilombola de Cariacá os Dias162 apontados como o núcleo fundador do qual descendem os primeiros Congos que chegaram em Cariacá reivindicam o povoamento da comunidade os Gomes cujas famílias residem na VilaCentro e nas localidades os Nascimento cujas famílias se concentram na VilaCentro e os Damasceno e Santos constituídos por famílias que migraram de Tijuaçu para Cariacá163 No cotidiano cada família de Cariacá se dedica às suas próprias atividades Mas a comunicação entre os núcleos familiares é constante e se manifesta em diversas situações como por exemplo na divisão de gêneros alimentícios principalmente carnes de peixes e bode164 comercializadas no território e compartilhadas pela família ampliada Os laços de solidariedade que perpassam Cariacá possibilitam que os quilombolas que não possuem geladeira levem a mistura para ser armazenada na casa de outrem A solidariedade também predomina quando é necessário servir o parente Em caso de doenças prolongadas um parente solteiro se hospeda na casa do paciente para lhe prestar cuidados A criação das crianças é compartilhada pelas mulheres da família Entre os Congos as famílias nucleares não são numerosas Os casais idosos possuem no máximo dez filhos165 e os mais jovens não costumam ter mais de quatro Os as filhos 161Daí por que argumento nesta tese a respeito do povoamento pretérito dos chamados sertões de caatinga alta por sujeitos quilombolas e etnias indígenas Assim como de sua capacidade para se metamorfosear integrandose à população sertaneja pois em toda região de Senhor do Bonfim há limites territoriais como a Estrada dos Indígenas em Tijuaçu o túnel e a serra da Pedra da Baleia em Missão do Sahy que podem ser pensados como raios culturais percorridos por esses povos 162 Com o menor número de famílias 163 Na comunidade remanescente de quilombo de Tijuaçu também se verifica a presença dos Damasceno e dos Santos entre os núcleos familiares existentes 164 Uma parcela significativa dos membros do sexo masculino da família Congo sobrevive da pesca realizada no rio que atravessa a comunidade Os bodes são abatidos em Cariacá o que facilita o seu consumo pelos moradores locais 165 Exceto quando há mais de um casamento geralmente motivado pelo falecimento de um dos cônjuges 136 as mesmo quando possuem residências próprias costumam passar o dia na casa dos pais onde realizam as refeições Essa permanência cotidiana nas casas dos das genitores as segundo D Maria José é um sinal de respeito aos pais a continuação da semente da gente é o nosso sangue né E não dá pra deixar à toa Seu Eurídes se refere aos netos como os Conguinho que vão manobrar a famía daqui pra frente já que os Congo véio tão ficando cansado Notase assim o cuidado de estimular entre as gerações mais jovens a convivência com a família ampliada As ações das crianças passíveis de elogio ou repreensão são interpretadas como sinais de pertença esse a é dos Congo mesmo Em Cariacá as primeiras gerações ocuparam inicialmente o local conhecido como Morro dos Congos166 e aos poucos foram se espalhando livremente pelo território Após a chegada da família Muricy que reivindicou a propriedade das terras da fazenda Cariacá se iniciou um período conturbado de conflitos e disputas motivadas por questões étnicas e territoriais Os membros da família Muricy são considerados pelos quilombolas como antagonistas Durante as pesquisas de campo as disputas sobre as terras estavam arrefecidas em Cariacá167 O território quilombola permanecia invadido por fazendeiros e proprietários das pequenas chácaras mencionadas anteriormente mas todos podiam circular livremente Os quilombolas aguardavam o processo de regularização fundiária do território No passado os membros das famílias Congo e Muricy não partilhavam os espaços Assim foi estabelecida uma divisão do território A delimitação foi realizada pelo sogro de D Trindade capitão Belizário Se valendo da patente militar ele elegeu a linha férrea como marco da divisão territorial À época os Muricy contratavam jagunços armados para monitorar os seus espaços Esses quilombolas sertanejos relataram que mesmo nos dias de feira não podiam ultrapassar os limites da estrada de ferro A situação era mais confortável para os Muricy pois os seus espaços dispunham de iluminação pública168 e a família tinha 166 O Morro dos Congos foi apropriado pela fazenda Picada 167 Como já destacado a migração de membros da Família Congo durante a seca de 1932 ensejou a invasão do território Quando retornaram a Cariacá suas terras estavam ocupadas e registradas em cartório por membros da família Muricy e de outras famílias Um desses invasores foi o senhor Antônio Félix que também se apropriou de terras pertencentes aos quilombolas de Tijuaçu Seu José Preto enfatizou que Antônio Félix e a senhora Trindade Muricy eram considerados o reis e a rainha de terra desse lugar 168 Os três lampiões instalados em pontos específicos da comunidade beneficiavam apenas a família Muricy e o Sr Ermelino ou mestre autor do projeto de iluminação da comunidade De acordo com Seu José Preto os lampiões eram ligados por Antônio Figura às 19h00 e desligados às 21h00 137 acesso à feira livre169 Em muitas situações a divisão de limites imposta pelos Muricy não era respeitada pelos membros da Família Congo constrangidos por não poderem se deslocar livremente em seu próprio território usurpado por invasores O pai de Seu José Preto era casado com uma mulher da Família Congo e trabalhou durante quase toda a sua vida para a família Muricy Quando adulto Seu José Preto se casou com uma sobrinha de D Trindade Muricy mas por ser um homem negro e pobre não foi incorporado à família Embora ele tenha sucedido o pai nos serviços prestados à família Muricy nutria um sentimento de revolta por não ter sido aceito como parente José Preto relatou que certa feita Antônio Julião Dias conhecido na comunidade como Antônio Congo pai dos irmãos que adquiriram a Fazenda Cariacá entrou no espaço onde era realizada a feira livre A morada deles Congo era tudo do lado de lá da linha Dentro do Cariacá eles não podia entrar não Foi quando esse capitão Belizário deu pra cá a feirona aí o pai desses Congo véio chamava Antonio Congo um dia ele entrou pra lá Aí ele tá aí dentro da feira e o Belizário aí cismou e aí a madeira deitou lá E aí deitaram o pau aí o pai e o fio que chamava Mané Coxo Ele botou o Mané Coxo e aí atravessou a linha pro lado de cá quando ele atravessou a linha ele disse pula pro lado de cá Belizário sem vergonho Esses Congo eles não era mole não e aí se acabaram era tio com sobrinho era irmão com irmão que esses Congo era tudo perigoso viu Agora eu não sei por que eles brigavam tanto José Pedro dos Santos 104 anos em 23092015 A ida de Antônio Congo à feira incitou à ira do capitão Belizário e é relatado frequentemente com orgulho pelos Congos como um ato de resistência de seus ancestrais o dia da derrota do capitão Belizário o primeiro passo para recuperar o direito de se movimentar livremente no território O segundo ato que contribuiu para a desonra do capitão Belizário foi articulado por duas irmãs Congo Maria Cajuí e Maria Bertulina que 169 As feiras livres realizadas nas comunidades e pequenas cidades do interior constituem um importante espaço de socialização e de realização de atividades comerciais O dia da feira é o mais importante da semana Portanto privar os membros da Família Congo de participar das feiras é uma violência física e simbólica que ademais acarreta prejuízos econômicos 138 entraram em luta corporal com Belizário para assegurar o direito de circular em todo o território Assim narrou Seu José Preto O capitão Belizário com esses Congo aí era um bacafum do diabo Tinha uma loja um armazém eu conheci No dia de domingo tinha uma feira aqui no Cariacá Era a coisa mais linda do mundo Ele capitão Belizário mais os Congo não se dava bem Dia de domingo era uma briga um tiroteio que nessa época da linha pra saltar a linha pra entrar ali dentro esses Congo não entrava não Era daí por aqui Era um tiroteio O pau quebrava deles aí Teve um tiroteio deles aí e quem tirou a valentia do capitão Belizário aqui chamava Maria ela era tia dessas menina o interlocutor se refere à senhora Anáide que estava me acompanhando chamava Maria Cajuí Ele topou Ela deitou o pau e caiu pra cima dele debaixo de um pé de juazeiro Duas muié ela e a irmã Maria Bertulina Elas não mataram ele por causa de um jagunço que chamava Didal que socou o pau nelas E o Belizário Foi disso que ele se acabou não foi mais homem pra nada E o Belizário era sogro da finada Trindade Belizário José Pedro dos Santos 104 anos em 20082015 A memória dos mais velhos constitui o principal recurso utilizado para construir a narrativa sobre o passado da comunidade de Cariacá Como destacou Dante170 1992 o entrevistado relata as suas experiências subjetivas sobre fatos vivenciados ou escutados razão pela qual muitos fenômenos históricos são produzidos com base na oralidade Na perspectiva de Ecléia Bosi 1994 no caso do ancião a função da memória é o conhecimento do passado que se organiza ordenando o tempo situando cronologicamente os fatos O passado revelado funciona não exatamente como antecedente do presente mas representa a sua própria fonte O ancião quando rememora não sonha desempenha uma função para a qual está maduro de ligar o começo ao fim tranquilizando as águas revoltas do presente e alargando as suas margens 170 DANTE M Claramonte Gallian Pedaços da Guerra experiências com História Oral de Vidas de Tobarrenhos 1992 Dissertação Mestrado Departamento de História Universidade de São Paulo São Paulo 1992 139 Se os conflitos territoriais relatados pelos mais velhos estão adormecidos o mesmo não ocorre com os conflitos étnicos que permanecem velados até que alguma situação discriminatória os reativa cimentando o racismo e cristalizando as hostilidades declaradas Os membros da Família Congo ainda são apontados como negros cachaceiros negros que não valem nada Esse estigma inicialmente difundido pela família Muricy é atualmente velado O não dito é traduzido em atitudes de preconceito que embora com menor intensidade persistem nas instituições religiosas na escola nos casamentos interraciais e principalmente em diversas situações cotidianas Embora a participação das famílias que residem na VilaCentro nos festejos religiosos dedicados à Santa Rita de Cássia171 tenha se ampliado poucos membros da Família Congo comparecem ocupando cargos e ou posições de destaque Segundo D Elvira essa relativa ausência é um resquício do passado quando Congos e Muricys se recusavam a compartilhar o novenário e demais celebrações O pároco de Cariacá instituíra uma noite para que os membros da Família Congo pudessem prestar homenagem à padroeira da comunidade Era a noite dos leites afirmou D Luci A pirraça racista aqui evidenciada converteuse em necessidade de superação Segundo os relatos de mulheres da Família Congo a celebração na noite dos leites era realizada com primor a família se esforçava para demonstrar a sua maestria na organização dos festejos As meninas da Família Congo que integram o Quilombart e estudavam na escola de Cariacá declararam que devido ao preconceito intensificado pelo corpo docente e pela direção após fundarem um grupo cultural se transferiram para escolas públicas de Senhor do Bonfim Os casamentos que ocorrem à margem da pertença familiar sobretudo com cônjuges que se identificam como não negros ou são tidos como forasteiros geralmente provocam desavenças que tendem a perdurar por mais de uma geração principalmente quando envolvem membros das famílias Congo e Muricy Já os casamentos entre Congos e Tobodi são menos hostilizados Entre os mais jovens há mais receptividade para acolher as escolhas dos cônjuges Os anciãos contudo não avalizam certas escolhas que reputam como insensatas realizadas pelos mais jovens Seu Epifânio Ferreira Damasceno relatou as desavenças que resultam dessas uniões exemplificando com o seu próprio casamento 171 A religiosidade exercida pelo grupo será abordada com mais propriedade no Capítulo sete 140 Bom o que eu penso é realmente o que tá escrito por que aqui não existe branco só existe negro E esses negro vieram de um quilombo agora de que quilombo eu não sei informar Porque se for olhar desses Congo da parte de meu avô e de minha avó todo mundo é quilombola Porque meu sangue é de negro é de preto mesmo por que meu pai era negão só minha mãe que era clara mas ela veio de lá do Lagarto Tijuaçu também Eu tenho orgulho de ser quilombola porque acabou mais esse preconceito e melhorou muito né Que preconceito até hoje ainda tem de uma famia não querer que os branco case com os negro com uns mais claro que aqui não tem branco só tem uns misturado com os outros mas branco mesmo aqui não tem Eu vi falar que aqui antigamente quem mandava era os Muricy e o povo do coronel Antonio Félix então até o chapéu deles não podia ninguém comprar igual o deles então só era pra ter aqueles chapéu eles mesmo Realmente essa famia da véia Trindade era dos Muricy a famia dos Muricy toda Antonio Félix nem se fala que não mora mais aqui já foram embora A famia maior daqui são a famia dos nego e tinha essas também aqui que eram grande Aqui acolá tem um preconceito diz nego cachaceiro famia de negro não dá certo Eu mesmo a famia da minha muié é famia de gente fraco igualmente a mim mas até hoje tem o preconceito Eu fui na casa do meu sogro duas vezes por que não tinha como não tinha apoio Duas vezes durante quarenta anos de casado só porque a famia inteira é uma famia de gente mais claro tal e coisa Então tinha esse preconceito né Namorei cinco anos com ela nunca pisei na porta que ele não deixava Pra me casar foi obrigado carregar pra depois casar Preconceito então Começa por aí Ele é da famia dos Tobodi eu conheço eles aí Agora de onde chegaram eu não sei Epifânio Ferreira Damasceno 69 anos em 10092015 A família Tobodi chegou em Cariacá após a família Muricy Os seus membros residem principalmente nas localidades de Morrinhos e VilaCentro Alguns se definem como descendentes de alemães Muitos dizem que possuem olhos azuis Antigamente se notabilizaram como sapateiros A superioridade que ainda reivindicam está fundamentada na cor da epiderme pois se afirmam como brancos e estabelecem relações mais próximas com os Muricy Do ponto de vista econômico são pobres e talvez por isso alguns Tobodi tenham se casado com membros da Família Congo As uniões ocorrem preferencialmente entre homens da família Tobodi e mulheres da Família Congo 141 Os membros da Família Congo além de tradicionalmente identificados como de ancestralidade africana172 eram alvos de estereótipos racistas considerados inferiores e excluídos Atualmente os Congos reivindicam a identidade quilombola Ser Congo é ser negro e membro de um grupo familiar específico Para os habitantes de Cariacá ser Congo condensa as noções de parentesco negritude e identidade Os Congos se fortaleceram na luta quilombola Os seus membros ressignificaram a condição marginal à qual haviam sido relegados passando de uma condição subalterna a líderes Congo negro a e quilombola 31 MULHER CONGO É MULHER QUE TEM BIGODE Aqui a gente era assim uns analfabetos sabia ler mas era ao mesmo tempo uns analfabetos porque não sabia da existência dessa lei Não sabia como usar Rosângela Gomes de Oliveira 48 anos em 25112015 Conversei pela primeira vez com as mulheres de Cariacá em janeiro de 2014 Durante um final de tarde sentada na varanda da casa de D Anaide Anária Nascimento então minha anfitriã quando escutei um comentário seguido de um prolongado silêncio interrompido quando Vinícius filho de D Anaide caiu de um cavalo de pau atraindo a atenção das mulheres que acorreram para verificar se o garoto havia se machucado As mulheres estavam curiosas sobre mim mas eu agi de modo cauteloso Sabia que estava sendo atentamente observada embora me sentisse confortável por ser comadre de Valmir dos Santos Em meio aos risos que permearam esses diálogos femininos despertando a atenção de alguns homens que retornavam de suas atividades de trabalho D Luci mencionou de modo descontraído que as mulheres Congo não gostam de casar Esse comentário inesperado desconcertou as mulheres que participavam da conversa 172 Vivaldo da Costa Lima afirma que uma das etimologias sugeridas para candomblé é precisamente dança de negros E certamente de negros de Angola ou do Congo dada à morfologia da palavra p 67 Luis Nicolau Parés por seu turno afirma que a nação angola também inclui a congo p 182 142 Retornei a Cariacá mais duas vezes em 2014 e iniciei os trabalhos de campo logo após a aprovação no processo seletivo do Doutorado antes de cumprir os créditos teóricos Já possuía amigos em Cariacá e em Tijuaçu e os visitava com frequência D Anaide e sua mãe D Maria José foram as minhas principais interlocutoras em Cariacá Durante as duas primeiras semanas da pesquisa elas se revezaram em me acompanhar nas andanças pela comunidade e me auxiliaram a explicar os objetivos da pesquisa em Cariacá em especial aos mais idosos173 Além disso intermediaram as aproximações com as mulheres Recebi esse cuidado com muito afeto e agradecimento Durante as visitas Dona Maria adiantava ela é comadre do Valmir e veio estudar a gente igual lá no Tijuaçu Essa apresentação quebrava as barreiras do distanciamento e encurtava o acesso à comunicação174 O comentário enigmático de D Luci durante o meu primeiro encontro informal com as mulheres de Cariacá me inquietara No entanto como mulher sertaneja residente no mesmo contexto regional não me são desconhecidas certas características das mulheres congos que demonstram pouca aptidão para o casamento Avaliei não ser prudente abordar o assunto de modo direto pois poderia suscitar constrangimentos Valmir já me advertira sobre a natureza fechada das mulheres da Família Congo elas são muito fechadas tenha cuidado com tudo que for perguntar Em uma tarde eu estava com D Rosângela Gomes de Oliveira conhecida como Ninha Ela relatava episódios de sua infância de trabalho na lavoura ao lado dos pais quando declarou Ah Paula mulher congo é mulher que tem bigode Após essa afirmação enérgica indaguei se era por isso que algumas mulheres decidiam permanecer solteiras Ninha175 sorriu e retrucou que ela e muitas outras mulheres da comunidade priorizam a independência financeira pois não pretendem ser dominadas a vida toda176 Nesse contexto ter bigode não remete a um traço fisionômico de boa parte das mulheres da 173 Em 2014 os anciãos vivenciaram pela primeira vez a experiência de ser entrevistados Essa situação causava estranheza em alguns e fomentava a autoestima em outros 174 Quando os adultos não podiam me acompanhar recomendavam a crianças e adolescentes que andassem comigo Interpretei esse gesto como sinônimo de amizade e de cuidado pois apenas se cuida de quem se estima 175 Ninha é uma das muitas mulheres da Família Congo que não optou pelo casamento Mora sozinha e investiu em autonomia incentivando as suas quatro sobrinhas a fazerem o mesmo A presença no contexto investigado de mulheres fortes e economicamente independentes parece afigurarse tão inusual que aquelas que se sabem fortes e querem sêlo lançam mão de um estereótipo mulher congo é mulher que tem bigode e radicalizam o comportamento através do celibato 176 Essa expressão é utilizada para caracterizar as mulheres consideradas passivas 143 Família Congo que de fato cultivam um bigode ralo na face mas à recusa de assumir uma postura apática ocupando apenas os espaços delegados por outrem Além de contestar o casamento naturalizado nas comunidades rurais sertanejas como único futuro possível as mulheres da Família Congo são protagonistas enfrentando as labutas diárias e desempenhando tarefas diversas em casa na roça no comércio informal ou em pequenos estabelecimentos comerciais instalados nas salas de suas residências São agricultoras artesãs lavadeiras costureiras professoras técnicas em enfermagem trabalham como empregadas domésticas e cuidadoras de idosos em Senhor do Bonfim São essas mulheres que com suas atividades movimentam em grande parte a economia do grupo As mulheres solteiras são geralmente arrimos de família177 Quando se casam e têm filhos associam as tarefas domésticas a um trabalho que lhes assegure autonomia financeira A grande maioria se insere no comércio informal vendendo roupas sandálias artigos para cama mesa banho ou se tornam representantes de cosméticos Elas se definem como sacoleiras De fato algumas delas vão de porta em porta oferecendo as suas mercadorias outras também disponibilizam as suas mercadorias em uma prateleira na sala ou em outro cômodo da casa Adquirem geralmente os produtos em Tobias Barreto e Caruaru para onde se deslocam a cada dois ou três meses para repor os estoques e diversificar as mercadorias Às vezes aos sábados e nos períodos festivos principalmente no mês de junho e no final de ano as mulheres montam barracas na feira livre de Senhor do Bonfim São auxiliadas por filhos as e netos as Furtado apud Miranda 2009 p 82 destacou a relevância das atividades comerciais das mulheres negras desde o final do período escravocrata O comércio exercido pelas mulheres negras livres e libertas dava uma certa autonomia Muitas vezes com o dinheiro adquirido com a venda de seus quitutes compravam a alforria de seus filhos ou de algum parente Algumas negras transformaramse em exímias comerciantes inseriramse em associações de brancos e ocupavam cargos administrativos nas mesas diretoras das confrarias Tal posição demonstrava importância social e mesmo quando entre iguais demonstrava ascendência no seio da comunidade 177 Ao progredir economicamente elas atendem às necessidades da família de modo especial das crianças e adolescentes já que os idosos recebem a aposentadoria 144 A busca pela independência econômica propicia a essas mulheres uma ascensão e valorização interna tanto no âmbito doméstico quanto no da família ampliada e da comunidade Acompanhando o cotidiano das mulheres da Família Congo percebi que ter bigode não se refere apenas ao estado civil se relaciona também à forma como organizam as suas vidas Elas protagonizam histórias que transparecem nas narrativas nos silêncios e nas pausas que intercalam as falas A ênfase na força da palavra178 se ancora na determinação para se colocar diante da vida construindo caminhos que se contrapõem à patrilinearidade local e regional A sua palavra é criadora de vida e revestida de significados trabalhados nas posturas assumidas nas diversas circunstâncias que permeiam as suas labutas Nas narrativas elas evocam a vida Na próxima seção descrevo as trajetórias de algumas mulheres da Família Congo os diversos papéis assumidos como mãe e provedora do lar e os caminhos percorridos no concorrido mercado de trabalho A intenção é evidenciar porque mulher congo é mulher que tem bigode Selecionei mulheres empenhadas em contribuir para o crescimento coletivo que demonstram um compromisso com o seu contexto e exercem de maneira prática o que o educador Paulo Freire 1967 no estudo Educação como Prática da Liberdade179 denominou de ação das consciências críticas para a transformação de suas realidades considerando que a consciência se constitui com o mundo e não separadamente 311 ARMADORA DE JUDAS E ARTICULADORA DA LUTA QUILOMBOLA ROSÂNGELA GOMES DE OLIVEIRA Retratada por D Luci como uma Congo legítima Rosângela Gomes de Oliveira poucas vezes se afastou da comunidade e quando o fez foi para cuidar da saúde minha vida tá nesse Cariacá eu não sei ficar muito tempo longe daqui parece que longe da terra da gente o coração se entristece Filha de Rosa Gomes de Oliveira e de Januário Batista de Oliveira Ninha relatou ter herdado dos pais o gosto pelo trabalho com a terra e os cuidados com a família pois seu pai lhe dizia que os filhos são como sementes das quais se precisa 178 Conforme destacado no Capítulo 1 179 FREIRE Paulo Educação como Prática da Liberdade Rio de Janeiro Paz e Terra 1967 145 cuidar para ver germinar Como não teve filhos Ninha canalizou todo o zelo para a educação das sobrinhas e do sobrinhoneto Desde que se aposentou por motivo de doença180 ela deixou de ser agricultora embora tenha saudades do tempo em que trabalhava na lavoura ao lado dos pais Essa foi uma das etapas mais significativas de sua vida relatou Era uma vida sofrida pela época que eu vejo agora né Mas era feliz Era uma família assim tudo carente assim se podia ter alguma coisa alguém grande não deixava ter né Porque era preto e preto tinha que ser assim pobre sempre Era uma família assim que trabalhava Eu sempre trabalhei na roça trabalhei em roça que era de parente Então a gente ia pra lá plantar mamona e colher milho Rosângela Gomes de Oliveira 48 anos em 25112015 Ninha trabalhou com os pais em terras de outros parentes e desse período recordase com alegria Também trabalhou em roças de terceiros de gente de fora e nessa época se sentia explorada e em desamparo Eu trabalhava assim Paula me sentindo tipo uns escravo porque eu tava dando meu suor aos outros pra receber uma merrequinha suspiro e pausa Meu valor acabava com o trabalho que ia embora Pra os parente da gente é diferente Trabalhar pros outro é abrir o terreno da gente pro outro e quando o outro chega é porque os da gente vai embora Rosângela Gomes de Oliveira 48 anos em 16012018 Impossibilitada de trabalhar na agricultura Ninha relatou o processo de expropriação do território enquanto cuidava de algumas plantas cultivadas em seu vasto quintal que se estende de uma extremidade à outra da rua Ela descreveu a chegada das famílias de fora denominados pelos quilombolas de chegantes ou gente de fora Para os chegantes 180 Em decorrência de uma enfermidade adquirida na infância uma fratura na perna cuidada tardiamente aos 33 anos por intermédio de uma freira que se encontrava em Cariacá realizando um trabalho missionário 146 a terra e as pessoas possuem apenas um valor utilitário A preocupação com o coletivo ganhou contornos mais profundos na vida de Ninha após a criação do Barulho do quilombo181 Ela começou a organizar atividades políticas internas estimulando a conscientização da comunidade Ninha é atualmente uma das pessoas mais respeitadas em Cariacá Ela organizava os festejos de queimar o Judas durante o Sábado de Aleluia confeccionava o boneco e colocava as bombas nos pontos estratégicos Essa habilidade lhe rendeu fama tanto em Cariacá quanto em outros povoados da região e ela se tornou muito procurada para armar o judas em diversas localidades A composição do Judas envolvia a participação de crianças e adolescentes que auxiliavam colhendo o capim que seria utilizado para preencher a roupa do personagem O professor Olívio membro muito querido da Família Congo já falecido elaborava o testamento que antecedia a queima do boneco As deixas do Judas escritas por Olívio eram aguardadas com expectativa pela comunidade uma vez que quase todos as os as moradores as da VilaCentro eram mencionados no testamento Essa atividade cultural encenada até os anos 2000 costumava atrair a atenção de membros de toda a comunidade e também de habitantes de povoados vizinhos que se deslocavam até a VilaCentro de Cariacá para assistir o Judas queimar Ninha narrou entre sorrisos e intervalos de tempo quando parecia que o seu pensamento se reportava a uma atmosfera de encanto que nos dias que antecediam o espetáculo muitas pessoas iam à sua residência para tentar descobrir o rosto escolhido para o Judas confeccionado naquele ano Mas essa novidade era o brilho da festa e não era revelada destacou Ninha Ela desenvolvia múltiplas estratégias para aplacar a curiosidade das pessoas Em uma manhã um pouco abafada com sol escaldante aceitei o convite de Ninha para almoçar Dividindo a atenção com Luquinhas seu sobrinho neto Ninha relatou que antes de obterem o conhecimento da ancestralidade quilombola boa parte dos membros da Família Congo quando eram chamados de negros vagabundos e negros preguiçosos por algum a empregador a não costumavam revidar permaneciam cabisbaixos Se sentiam impotentes pois sabiam que qualquer atitude ou exigência de retratação poderia colocálos em uma situação de vulnerabilidade no escasso mercado de trabalho local Ninha mencionou que essas situações vexatórias a que eram submetidos esporadicamente se acentuaram após perderem a possibilidade de cultivar as suas próprias 181 Como referido no Capítulo 1 147 terras e se engajaram como trabalhadores diaristas Negros vagabundos negros preguiçosos e Congo não vale nada eram expressões pejorativas alusivas à suposição de terem vendido as suas terras por preguiça de cultiválas passando da condição de proprietários as para a de empregados as A necessidade de se engajarem nas frentes de serviço ofertadas sobretudo nos períodos chuvosos contribuiu para a redução da autoestima da comunidade O conhecimento e a luta pelo reconhecimento como remanescente de comunidade quilombola reanimou a Família Congo Que a gente não tem oportunidade de mostrar muitas coisa assim sobre o direito que o nego tem e que a gente não sabia pausa Antes as pessoas xingava maltratava a gente e a gente ficava assim naquela que é a gente dizia é a gente é isso mesmo A gente é preto Aí ficava quieto mas agora não A gente já tem o conhecimento Ele fez a gente entender que a lei aqui é pra nós Foi o Valmir ele fez a gente entender quem somos que a gente não pode andar de cabeça baixa É cabeça erguida E ensinou um bucado de coisas Ele foi um professor Porque tinha uma famia aqui que dizia uh Uh Essa raça de Congo Essa raça de nego E a gente ficava quieto agora tinha uns que não ficava quieto não sempre xingava brigava mas a gente não tinha o conhecimento que a gente tem agora Essa família era a família Muricy ainda tem muito deles aqui mas tem mais do Congo Eles foram pra Senhor do Bonfim Serrinha Alagoinhas uns moram pros lados da Picada Aqui sempre prevaleceu mais a Família dos Congo mas ainda tem deles aqui só que a gente aprendeu a se defender É falar e a gente botar pra calar Rosângela Gomes de Oliveira 48 anos em 25112015 O educador Paulo Freire 1975182 argumentou que a verdade imposta pelo opressor encontra terreno propício para se desenvolver no âmbito da consciência ingênua do próprio sujeito oprimido É necessário estimular a transição para a construção de uma consciência crítica No caso dos membros da Família Congo o movimento em prol da conscientização e da autonomia constitui um ideal surgido no passado e ressignificado no presente com a inserção na causa quilombola Portanto quando indagados se são quilombolas eles respondem sou Congo quilombola evidenciando que a consciência de sua ancestralidade se encontra assentada em ambas as dimensões 182 FREIRE Paulo Pedagogia do Oprimido Rio de Janeiro Paz e Terra 1975 148 Imagem nº 14 Da esquerda para a direita Tânia Ninha e Mônica durante o Curso de Formação para Lideranças Quilombolas Fonte Acervo da pesquisadora 312 DA COSTURA DE TECIDOS À TOMADA DE DECISÕES NA ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA DE CARIACÁ E ADJACÊNCIAS AQCA TÂNIA MARIA DA SILVA DIAS Tânia Maria da Silva Dias 54 anos é uma liderança cujo trabalho de articulação política na AQCA foi constituído ainda no ambiente doméstico a partir dos exemplos de ativismo comunitário legados por seu pai Tânia é filha de Pedro Julião Dias e de Maria da Silva Dias e é identificada em Cariacá como Conga da gema isto é descendente dos primeiros Congos que chegaram ao local Tânia encerrou o mandato como presidente da Associação Quilombola no biênio 20152017 Ela foi a primeira presidente da entidade fundada em 2007 149 Essa veia de luta é de meu pai foi ele quem conseguiu junto com outros Congo essa energia luz elétrica pra aqui Ele sempre lutou pela comunidade ele e os parentes tudo da gente E quando a luta pelo quilombo chegou quando o entendimento do quilombo começou a vim pra nós aí eu não podia decepcionar a memória dele Tânia Maria da Silva Dias 54 anos em 19122015 Algumas casas de Cariacá ainda não dispõem de energia elétrica e Tânia tem se empenhado para sanar a situação Quando a visitei pela primeira vez em sua residência no início de 2015 ela me mostrou a sua máquina de costura e observou que alinhavando as peças de roupa aprendeu a alinhavar os fatos da vida como uma mulher destemida Além de costurar para a comunidade183 e para famílias de povoados vizinhos Tânia é uma das poucas mulheres de sua geração que concluiu o ensino médio um curso técnico de enfermagem184 e cursava faculdade de Pedagogia à época da pesquisa Ela trabalha como diarista fazendo faxinas em residências de Senhor do Bonfim e ocasionalmente cuida de idosos as Como presidente da AQCA Tânia desempenhava diversas tarefas administrativas de limpeza da sede de supervisão dos computadores das máquinas de costura e do galpão para lapidação de pedras185 Ela iniciou as atividades sociais na igreja católica de Cariacá Foi catequista e organizava as visitas periódicas do padre na Vila Centro Após alguns desentendimentos internos passou a se dedicar apenas à causa quilombola Tânia afirmou que a descoberta da ancestralidade negra acarretou mudanças significativas para o cotidiano de toda a comunidade Mudou muita coisa que eu fui descobrindo principalmente a origem da gente Aí eu fui entendendo sobre o que é ser quilombola Como funcionam os quilombola em uma comunidade A gente fundou a associação e através dessa associação a gente teve mais informações No começo foi um pouquinho difícil porque ninguém queria assumir inclusive a primeira presidente dessa associação fui eu Aí foi em 2007 que foi fundada essa associação Aí o Valmir foi informando a gente como era ser quilombola o desenvolvimento o 183 Tânia é a costureira oficial do grupo Quilombart 184 Tânia presta serviços voluntários na área de saúde pois não há enfermeiras ou técnicas de enfermagem no posto de saúde de Cariacá 185 A lapidação de pedras era um sonho antigo da comunidade que iniciado em novembro de 2017 foi interrompido em 2018 e retomado em 2019 Atualmente o artesanato produzido em Cariacá é comercializado em feiras culturais da região norte da Bahia e na sede do Instituto de Educação Brasil Quilombola IBRAQ 150 desempenho que os quilombola mantêm nas comunidades e os outros conhecimentos de ser quilombola Tânia Maria da Silva Dias 54 anos em 28122015 As mudanças pontuadas por Tânia pelas mulheres quilombolas e por toda a comunidade decorreram da visibilidade étnica alcançada pelo grupo o que ensejou a sua valorização social A vida dessas mulheres os compromissos que estabelecem e as suas intervenções no contexto social se definem como sinalizou Becácia Versiane 2002 em um estudo sobre mulheres integrantes de minorias étnicas por abalar uma concepção de vida fundamentada em uma individualidade exemplar para associarse a uma existência coletiva p 62 313 ARTE DE TRANSFORMAR A DANÇA A SERVIÇO DO SONHO PARA AS MENINAS E MENINOS DA COMUNIDADE GLÍCIA MILENA GOMES DA SILVA Glícia Milena Gomes da Silva 32 anos é filha de Raquel Gomes da Silva da Família Congo e de um não quilombola que não reside em Cariacá Milena é uma das mulheres mais conhecidas e procuradas em Cariacá Ela organizou um grupo de dança com crianças e jovens da comunidade em 2004 o Quilombart Eu a conheci em Tijuaçu em 2012 durante as celebrações do Novembro Negro que contou com a participação do grupo Quilombart A primeira vez em que estive em Cariacá Milena que se encontrava no oitavo mês de uma gestação de risco estava organizando uma apresentação do Quilombart que seria realizada no dia seguinte Ela nasceu e passou a maior parte do tempo em Cariacá Após o nascimento do filho migrou para São Paulo onde permaneceu por um ano e quatro meses Segundo relatou esse foi o período mais difícil de sua vida O compromisso com a dança ensejou o seu retorno para Cariacá Segundo Milena o Quilombart foi criado para oferecer às crianças e adolescentes da comunidade a possibilidade de utilizar o seu tempo livre fazendo algo criativo Ela cresceu escutando histórias sobre as antigas apresentações de reisado e das rodas de Cariacá e se propôs a reativar o gosto pela arte e pela cultura que outrora notabilizaram a comunidade em toda a região A necessidade de cuidar do bem 151 estar coletivo que transparece nos seus relatos e ações foi cultivada no âmbito doméstico pois como primogênita ajudou a criar as três irmãs O filho de Milena que à época da pesquisa estava com 4 anos já participava do Quilombart e fazia aulas de capoeira com a mãe e as tias em Senhor do Bonfim Imagem nº 15 Glícia Milena Gomes da Silva Fonte Acervo do Quilombart Milena é considerada uma mulher Congo cujas ações foram modeladas na interação com os membros de sua comunidade Em uma entrevista concedida na sede da AQCA durante o intervalo de um ensaio ela compartilhou as suas expectativas Era que os jovens aprendessem mais e tivessem mais oportunidade de trabalho Como agora o Valmir quer trazer a faculdade para cá e antes à gente nem pensava em fazer faculdade e fazer a faculdade aqui então 152 isso é muito importante pra gente Porque a gente que é daqui a gente tem obrigação de fazer a comunidade crescer É por isso que houve uma divergência com o pessoal da escola porque eu queria o nome da comunidade e a escola daqui queria que fosse o nome da escola e eu não queria Queria que fosse o nome da comunidade Glícia Milena Gomes da Silva 32 anos em 26082015 A faculdade mencionada por Milena é um projeto comunitário compartilhado com outras comunidades quilombolas que oferta o curso de Pedagogia Esse curso foi escolhido em virtude da importância da educação escolar na formação dos membros das comunidades e da necessidade de se construir um currículo em consonância com os parâmetros dispostos na Lei nº 1063903 e nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola Os habitantes de Cariacá reconhecem a relevância da educação formal na constituição dos indivíduos e para a sua ascensão na hierarquia social Milena é professora de dança mas não atua na escola de Cariacá pois teve a sua candidatura recusada para trabalhar no projeto Mais Educação A direção da escola priorizou a contratação da filha de uma professora Ela encerrou o trabalho voluntário desenvolvido na Escola Municipal de Cariacá motivada pela divergência sobre a divulgação do grupo durante as apresentações de dança Milena se sentiu explorada pela direção da escola pois apesar de organizar a coreografia o figurino e a maquiagem para as apresentações o seu nome não constava nos créditos o grupo era anunciado como grupo de Dança da Escola Municipal de Cariacá Ela também se sentiu desvalorizada por não ter sido contratada para exercer uma atividade remunerada na escola como monitora do projeto Mais Educação Aí quando veio o projeto Mais Educação a Nara ela é filha de uma professora que já tem mais de 27 anos que ela trabalha na escola Tem muito tempo mesmo O vice muito tempo que trabalha aqui também Eu não era nem nascida e eles são amicíssimos Aí quando veio o projeto eles fizeram uma reunião com nós duas porque como ela dançava muito comigo eu passava o que eu aprendia pra ela claro que ela ia aprender Só que quando veio o projeto só podia colocar uma pessoa só E eles disseram que iam colocar a pessoa mais próxima da escola Aí colocaram ela como a pessoa mais próxima da escola 153 Então eu fiquei pensando Aí eu ainda fiquei por lá uns dois meses só que aí eu não consegui levar não Eu fiquei pensando e eu era o quê Se eu sempre fiz tudo aqui na escola Se eu sempre ensinei Se a escola hoje é reconhecida pela dança Porque antes a escola só participava de desfile cívico Só levava assim aqueles jeguinhos três jeguinhos e hoje a escola é reconhecida pela dança não tem mais esse desfile Quem ensinou a dança Eu fiquei pensando fui eu Então por que eu não tive esse reconhecimento Eu merecia Então hoje eu ensino em Bonfim mas eu sou filha daqui Então eu acho que peca muito por que não tinha necessidade disso de eu ter que tá fazendo isso lá fora Aí quando alguém quer fazer parte do grupo o Quilombart a escola chega e diz que vai cortar o Bolsa Família se sair do projeto Mais Educação Aí o ano passado ela a professora do projeto Mais Educação e mais outra pessoa teve de casa em casa chamando os meninos pra participar do projeto Mais Educação Falando que se não fosse não ia ganhar ponto e que o Bolsa Família ia ser cortado querendo atrapalhar a gente Porque não tem necessidade disso aqui Paula Por isso eu não quero que o Quilombart morra porque ele é tudo o que eu tenho pra levar Eu posso tá trabalhando fora mas meu compromisso tá aqui Glícia Milena Gomes da Silva 32 anos em 26082015 O rompimento de Milena com a escola de Cariacá não ocorreu apenas por ela ter se sentido descartada pela escola quando apareceu a oportunidade de exercer uma atividade remunerada no Mais Educação Ela continuou desenvolvendo trabalhos voluntários na escola até 2013 quando durante uma apresentação no Centro Cultural Dr Ceciliano de Carvalho em Senhor do Bonfim no âmbito do Seminário de Formação do Programa de Educação Inclusiva Direito à Diversidade186 ocorreu o fato que provocou a ruptura Quando o grupo de dança foi anunciado para realizar a apresentação todos os componentes se recusaram a entrar no palco Até que uma das professoras da escola solicitou ao mestre de cerimônias que anunciasse a atração como grupo da comunidade de Cariacá e finalmente o grupo se apresentou Esse protesto coletivo previamente articulado pelos membros do grupo evidenciou a preponderância da pertença à comunidade quilombola e contribuiu para o seu fortalecimento 186 Um evento pedagógico que reuniu profissionais da área de educação de toda a mesorregião do Piemonte Norte do Itapicuru O Quilombart realizou a abertura do evento 154 A partir de 14 de outubro de 2013 o grupo de dança passou a se apresentar como Quilombart Durante uma apresentação realizada em novembro desse mesmo ano no Centro Cultural o grupo enfrentou atitudes hostis e olhares de censura O Quilombart se blindou para enfrentar as retaliações advindas da instituição escolar que tentou forçar as crianças e adolescentes de Cariacá a optar entre o Quilombart e o projeto Mais Educação desenvolvido na escola Como coreógrafa e professora do Quilombart Milena promove vivências em prol da inclusão e da diversidade e que buscam neutralizar a influência de pessoas que usurparam da Família Congo além do território a produção simbólica Ao longo de sua trajetória pessoal e profissional Milena tem colaborado para a desconstrução das hegemonias e para o fortalecimento dos quilombolas Através da dança ela auxilia no crescimento cognitivo das crianças e jovens de Cariacá que optaram pela autonomia tornandose referência para a construção de outras subjetividades que se constroem em movimento 314 GUARDIÃ DA CAPELA DE SÃO SEBASTIÃO E ESTIMULADORA DA ESPIRITUALIDADE DAS MULHERES DA FAMÍLIA CONGO MARIA DA SILVA NERIS Sou Congo com muito orgulho Maria da Silva Neris 80 anos em 18112018 As mulheres Congos se identificam como católicas187 mas algumas além de desenvolverem atividades nas capelas de Santa Rita e de São Sebastião188 possuem outras devoções particulares recônditas Uma equipe de mulheres se revezam nos trabalhos da Capela de Santa Rita ao passo que na capela de São Sebastião cuja devoção é menos proeminente os cuidados de manutenção a limpeza do ambiente e as práticas religiosas foram executados durante quatro décadas por Maria da Silva Neris 80 anos filha de Juviniano Julião Dias e de Anazira Amorim da Silva A devoção a São Sebastião é uma prática religiosa das mulheres da comunidade Embora não tenha sido a fundadora da capela de São Sebastião D Maria Neris como é 187 Também as mulheres que desenvolvem práticas umbandistas ou frequentam as Casas de Curador a se afirmam publicamente como católicas 188 A história de fundação de ambas as capelas será relatada no Capítulo sete 155 conhecida foi a responsável pela sua reconstrução quando ela desmoronou há 43 anos À época a capela era constituída de adobe e cuidada por Maria Ferreira de Freitas retratada como uma índia já bastante idosa Assim D Maria Neris e o seu esposo Manuel Neris que era pedreiro e trabalhava no bairro do Derba em Senhor do Bonfim preocupados com a situação do templo e temerosos que as enfermidades189 voltassem a castigar a comunidade reergueram a capela com bloco e cimento D Maria mobilizou os moradores de Cariacá e pediu patrocínio no comércio bonfinense delegando ao esposo a tarefa de levantar a capela no que foi auxiliado pelos homens da comunidade Segundo D Maria os trabalhos foram realizados em regime de mutirão e toda a população católica colaborou Imagem nº 16 D Maria da Silva Neris Fotografia cedida por Eliane da Silva Neris Carlos 189 Esse aspecto será desenvolvido no Capítulo sete 156 Consoante o relato de Maria Eliane da Silva Neris Carlos filha de D Maria os seis bancos de madeira e o piso da capela foram doados por Seu Eduardo Dias membro da Família Congo e parente de D Maria Após a reinauguração da capela D Maria Neris incrementou a devoção ao santo padroeiro e não mediu esforços para que o padre celebrasse as missas e batismos quinzenalmente no local Ela cuidava do novenário190 dedicado a São Sebastião dos leilões e da procissão que costumavam atrair fiéis de todo o território quilombola Atualmente por questão de doença D Maria reside a maior parte do tempo em Senhor do Bonfim retornando a Cariacá mensalmente para cuidar da casa e rever os parentes Ela transmitiu a função de guardiã da capela a D Luzia Gomes que se sentiu honrada em dar continuidade à devoção Imagem nº 17 D Luzia Gomes Fonte Acervo da pesquisadora 190 O novenário foi interrompido há seis anos quando D Maria Neris teve um acidente vascular cerebral Após a sua doença e afastamento a devoção a São Sebastião só se expressa em Cariacá na procissão de 20 de janeiro 157 Dona Luzia Gomes conhecida na comunidade como Lúcia é filha de José Gomes de Souza e de Maria Calista de Souza Ela mora na VilaCentro há cerca de quarenta anos embora a maior parte de seus parentes resida na localidade de Limões Ela tem desempenhado o papel de guardiã da capela de São Sebastião desde 2013 Luzia mantém a capela aberta durante três dias toda semana e no dia de finados quando os devotos costumam acender velas para agradecer ao santo e ou pedir orações por entes queridos falecidos Segundo D Luzia Essa foi uma tarefa que a Maria me confiou e eu vou cumprir enquanto viver ou enquanto eu puder Vou zelar daqui 315 DO TRANÇADO DA HISTÓRIA AOS REARRANJOS DO PRESENTE LUCIANA DE FREITAS SILVA Os versos rimas acordes e orações estiveram sempre presentes na vida de D Luciana de Freitas Silva 75 anos conhecida como D Luci Ela relatou que desde criança possuía habilidade para recitar cantar e dizer verso Posteriormente já adulta passou a rezar nas pessoas aplicando o seu dom mítico religioso Esse dom classificado como uma missão de Deus é uma herança materna que agora lhe compete exercer com gratidão e generosidade pois não pode faltar a quem lhe pedir ou necessitar D Luci reza geralmente quando solicitada mas se por acaso notar que alguém precisa de proteção reza em segredo pois acredita que a bondade fortalece o dom Embora não se identifique como curandeira ela assume abertamente possuir o dom de rezar fato que não é desconhecido pela comunidade nem censurado pelo pároco que celebra as missas nas capelas dedicadas a Santa Rita e a São Sebastião o padre sabe disso e ele diz que é bom rezar E rezar minha filha você sabe que protege a gente de tudo Entre as atividades desenvolvidas por D Luci191 rezar é a mais importante Ela reza em sua residência e durante as visitas a pessoas enfermas192 Nessas ocasiões o único preparo consiste em procurar um ramo verde para ser utilizado durante o rito D Luci organiza a reza do terço da Libertação193 entre as mulheres da comunidade Além 191 Ela desempenha os papéis de mãe avó professora aposentada poetisa repentista comerciante e líder da capela católica local 192 Dona Luci só não reza nas pessoas durante a noite 193 A cada semana o terço é rezado em uma casa diferente mediante solicitação 158 disso é uma das poucas moradoras da VilaCentro que canta benditos durante a Semana Santa Em uma quartafeira maior194 de 2016 pouco antes do meiodia eu a visitei e ela me presenteou com orações e folhetos religiosos entoando em seguida um bendito Na quintafeira Jesus com seus discípulos Vem de Oliveira para Jerusalém Na paz de Cristo Jesus com seus discípulos Que padeceu ao favor de nosso bem Luciana de Freitas Silva 75 anos em 23032016 Imagem nº 18 D Luciana de Freitas Silva Fonte Acervo da pesquisadora 194 Denominação do calendário católico 159 Nas celebrações que ajuda a realizar na capela e nos cuidados com sua mesa de santo D Luci tece as fibras que compõem a sua existência com uma alegria contagiante Com a mesma fé que entoa benditos e arruma altares elas desenvolve suas labutas de mulher afroindígena195 e sertaneja Se veste diariamente de forma caprichosa adornada com brincos colares pulseiras e anéis Gostar de se enfeitar é uma herança de sua descendência de índio D Luci comercializa bijuterias sapatos e cosméticos por todo o território quilombola Essa atividade é desempenhada com habilidade sua simpatia e carisma lhe facultam transitar facilmente entre os membros das famílias Congo Muricy e Tobodi aqui minha filha eu me dou com todo mundo porque a vida é uma teia que a gente tem que saber ligar D Luci é a única pessoa em Cariacá relacionada à causa quilombola que cultiva relações com a Escola Municipal sendo frequentemente convidada para declamar poesias ou cantar repentes nas festas promovidas pela instituição D Luci se casou aos 19 anos com um rapaz da família Tobodi Eles tiveram dois filhos Atualmente ela é avó de dois adolescentes e de um bebê Ela não teve mais filhos devido às atividades docentes realizadas durante trinta anos na VilaCentro em Terreirinho e Quicé196 O magistério não apenas lhe assegurou a subsistência econômica mas proporcionou a satisfação de exercer uma função até então inacessível para as mulheres de Cariacá D Luci seguiu uma trajetória diferente da de sua mãe D Santa que trabalhou como lavadeira para famílias tradicionais de Senhor do Bonfim Através dos conhecimentos de D Santa D Luci e sua irmã Antônia conseguiram uma bolsa197 para cursar um ano letivo na Escola Parque em Salvador Quando retornou à comunidade D Luci que apoiava politicamente o prefeito passou a lecionar como professora não titulada198 nos turnos matutino e vespertino Ela complementou a sua formação participando de cursos em Senhor do Bonfim O empreendedorismo de D Luci constitui uma referência para os as adolescentes de sua comunidade Ela aceitou o desafio de residir um ano na capital para obter uma formação que lhe permitisse ter uma vida diferente da maioria das mulheres de sua faixa etária e contexto social Um dos fatores que a motivou a perseguir esse ideal foi à vida difícil e de grande labuta da mãe como 195 Autodescrição 196 Comunidades vizinhas a Cariacá 197 As bolsas de estudo foram oferecidas por Margarida Catalar então diretora do Colégio Isabel de Queiroz Margarida era uma das freguesas de roupa de D Santa 198 Forma de tratamento para as professoras leigas que lecionavam naquela época 160 lavadeira D Luci observava a rotina das lavadeiras de Cariacá que dedicavam todos os dias da semana para a lavagem da roupa Às segundasfeiras as lavadeiras iam a pé ou montadas em jumentos buscar as roupas dos fregueses em Senhor do Bonfim Na terça lavavam e passavam as peças em Cariacá na quartafeira entregavam as roupas limpas e engomadas e levavam mais roupas sujas para lavar devolvendoas na sextafeira ou no sábado Embora admirasse a bravura de sua mãe não desejava ser lavadeira e divisou no magistério a oportunidade de construir uma vida melhor Dona Luci começou a lecionar em 10 de março de 1962 Ela se diz realizada sempre rodeada por crianças de modo especial por meninas que gostam de brincar com a sua coleção de bonecas D Luci promoveu uma interação entre as atividades pedagógicas e as encenações culturais da comunidade199 Nasci aqui no Cariacá estudei aqui dei aula aqui Trabalhei no Terreirinho no Quicé e aqui Estudei aqui e em Bonfim Trabalhei trinta anos na prefeitura Dei aula Levei muita roda pra Senhor do Bonfim Por dez anos minhas rodas tirava em primeiro e em segundo lugar Fiz terno de reis pra igreja de São José Esposo em Senhor do Bonfim O meu reis sempre chamou muita atenção Deixei porque é muito cansativo Minhas rodas era 60 componentes que eu levava O prefeito dava o carro dava todas as despesas levava e trazia Graças a Deus Luciana de Freitas Silva 75 anos em 23102015 Assim como Milena D Luci é uma pessoa muito querida em Cariacá É interessante perceber os impactos do comprometimento com as práticas culturais na vida de ambas as mulheres de gerações distintas reconhecidas por sua dedicação à comunidade Dona Luci tem admiração e respeito pelas apresentações do Quilombart essas meninas agora é quem tão representando o quilombola e que elas tem tudo pra crescer e levar a comunidade junto A família e a comunidade são nucleares na vida de D Luci Ela visita anualmente filhos e netos no Rio de Janeiro Nessas ocasiões a sua ausência é sentida por muitas pessoas em Cariacá principalmente quando da realização das atividades religiosas a Luci é quem é animada e sabe ajeitar bem as coisas Como já 199 Destacado no Capítulo 2 161 mencionado D Luci se identifica como descendente de indígenas da família Kariri a minha descendência é de índio A sua avó materna era índia legítima a mãe era índia e o pai caboclo Meu pai era caboclo mesmo A orelha bem grande cabelo lisinho meu pai morreu com 90 anos não tinha um dente cariado e ele não escovava o dente com pasta escovava com uma folha de zabelê porque disse que quem escovava o dente com aquela folha o dente não ficava cariado E meu pai veio no médico com 90 anos Luciana de Freitas Silva 75 anos em 06012014 A memória lúcida e ativa torna D Luciana de Freitas Silva uma das anciãs mais solicitadas para tecer as narrativas sobre as histórias da comunidade o que lhe suscita um sentimento de responsabilidade coletiva pois se trata de alinhavar as tessituras que ordenadas com clareza conformam a identidade dos quilombolas de Cariacá Como destacado por Pollak 1992 p 204 a memória é constituinte do sentimento de identidade tanto individual quanto coletivamente A memória é vital para a continuidade e a coerência de uma pessoa ou de um grupo As mulheres quilombolas retratadas nesta tese reconstroem a história de sua comunidade revertendo uma condição historicamente subalterna imposta pelos colonizadores Nos diferentes papeis protagonizados elas consolidam as suas vivências no trabalho cotidiano nas atividades lúdicas na devoção e na solidariedade familiar Suas lutas e labutas em prol do desenvolvimento da comunidade quilombola constituem escrevivências no sentido conferido ao termo por Conceição Evaristo 2016 32 O NASCIMENTO DE UMA ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA É SEMELHANTE AO NASCIMENTO DE UMA CRIANÇA Em Cariacá as transformações ocasionadas pelo Barulho do Quilombo têm sido apoiadas pela Associação Quilombola de Cariacá e Adjacências AQCA Essa entidade tem valorizado o pequeno povoado antes abandonado e marginalizado política e socialmente A identidade quilombola de Cariacá vem sendo tecida de modo intercambiável e em diálogo permanente com os quereres e fazeres da comunidade 162 As reuniões frequentadas pelos 200 associados da AQCA intensificam a conscientização do coletivo étnico agregando valores que orientam os caminhos trilhados pelos atores sociais já enquadrados na categoria dos povos tradicionais pelo Estado nação As reuniões são geralmente realizadas nos finais de tarde do último sábado ou domingo de cada mês quando os as sócios as já encerraram as atividades cotidianas Além dos residentes na VilaCentro participam quilombolas de outras localidades do perímetro As reuniões da AQCA fortalecem os laços de parentesco compadrio e vizinhança Na plenária muitos sujeitos abdicam do silêncio destinado a aqueles que não sabem falar condição que integra o fosso do mutismo que foi produzido para as populações do sertão e integram o grupo dos que sabem conversar200 Atribuem novos significados a fatores antes tidos como pouco relevantes como a história da comunidade e os atos de resistência protagonizados pelos seus ascendentes em defesa do direito de viver e de circular livremente pelo território tradicional Essas reuniões reafirmam sobretudo a pertença à Família Congo Esses quilombolas sertanejos relataram que antes da associação não se reuniam para conversar com os parentes mas apenas para escutar pessoas de fora geralmente políticos ou representantes da prefeitura que os procuravam para pedir votos A criação da AQCA enfatizou o valor de cada membro da comunidade Jéssica Saldanha que à época da pesquisa era vicepresidente da associação afirmou que uma liderança tem um valor maior que um político por que ela luta pela gente ela sabe a nossa voz já o político não Saber a nossa voz significa compreender os anseios do grupo e reivindicálos Ninha comentou que quando escolheram o símbolo da associação cuidaram para que cada elemento fosse posicionado de modo a retratar a trajetória do grupo pois entendiam que precisavam de uma bandeira de luta capaz de expressar as suas expectativas Esse entendimento adveio em grande medida do período em que frequentaram as reuniões da Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências AAQTA que havia constituído uma bandeira para expressar a sua luta A bandeira da AQCA é constituída pela imagem do casarão mais antigo da comunidade onde outrora eram acorrentados as os as escravizados as e pelos 200 Saber conversar é estar informado e transmitir o seu conhecimento a outrem 163 trilhos da estrada férrea que simbolizam a luta da comunidade A criança rabiscando a palavra Congo simboliza a identidade quilombola e afroindígena em construção Como pano de fundo temse as cores de países africanos A composição da bandeira evidencia a auto percepção da comunidade e demarca a sua especificidade étnica Imagem nº 19 Bandeira da AQCA Fonte Acervo da pesquisadora Na segunda etapa do curso de Formação para Lideranças Quilombolas realizado no final de janeiro de 2016 foram constituídas quatro equipes para elaborar cartazes com as principais conquistas logradas com o suporte da associação pontuando as transformações ensejadas em suas vidas pessoais e da comunidade Dentre os elementos mais relevantes para a reorientação do grupo foram destacadas a distribuição das cestas básicas principalmente para as famílias cuja principal fonte de renda era o Bolsa Família e para os idosos que subsistem da aposentadoria a construção de casas no âmbito do projeto 164 Minha Casa Minha Vida por intermédio do programa Brasil Quilombola a instalação de energia elétrica e de água encanada para algumas famílias da VilaCentro a aquisição de máquinas de costura industrial e de máquinas de lapidação de pedras201 a construção de um telecentro com dez computadores que facilitaram a rotina dos estudantes da comunidade e finalmente a implantação de uma cozinha comunitária A sede da AQCA constitui motivo de orgulho para os seus membros pois é considerada uma das construções mais bem estruturadas de Cariacá e das demais comunidades da região norte da Bahia Como relatou D Tânia Uma das primeiras conquistas que a gente alcançou foi o terreno pra sede Aí depois junto do governo federal a gente conseguiu a verba para construir essa sede que foi uma luta grande vitória pra nós porque em todo esse território que tem a cobertura quilombola a nossa associação é um dos melhores núcleos em espaço e tudo Só existem dois e aqui tá em primeiro lugar Aí essa foi uma das conquistas maior que a gente teve Depois a gente conseguiu quatro computadores com a verba adquirida pelo fundo de arrecadação da associação Nós compramos as mesinhas passado o tempo o Valmir conseguiu mais dez computadores desse modelo novo que você já viu lá né Consegui doze máquinas de costura a cozinha comunitária e cada vez mais a gente tá tentando conseguir mais coisas pra trazer pra comunidade Tem também a sede da lapidação de pedra que a gente já conseguiu as máquinas só tá faltando às instalações pra desenvolver o trabalho é bijuteria esses enfeitinhos de pedra brinco colar essas coisas assim pulseiras e os artesanato que é como bisqui É isso que a gente vai construir lá Tânia Maria da Silva Dias 54 anos em 28122016 As conquistas supracitadas objetivaram assegurar a autonomia da comunidade e incentivar tanto o respeito interno quanto o do contexto envolvente São indicativos palpáveis de que esses sujeitos se tornaram protagonistas de suas existências Percebi nas vivências de campo que o reconhecimento antes dedicado aos de fora foi redirecionado 201 Em novembro de 2017 a comunidade realizou um curso de artesanato mineral com vinte participantes dezenove mulheres e um homem O curso foi realizado em um galpão de Valmir dos Santos situado ao lado da sua residência 165 para os líderes locais cujo trabalho tem merecido a credibilidade de todos os quilombolas de Cariacá A AQCA foi indubitavelmente a entidade que mais contribuiu para a constituição identitária da comunidade Durante o período em que se deu a atividade de pesquisa a associação teve a mesa diretora composta pelas seguintes pessoas conforme indica a tabela demonstrativa abaixo Biênio Presidente Vice presidente Secretário a Tesoureiro a 2015 2017 Tânia Maria da Silva Dias Ubirajara de Jesus Jéssica Saldanha dos Santos Anaíde Anária Nascimento 2017 2019 Anaíde Anária Nascimento Jéssica Saldanha dos Santos Jonilson de Araújo Santos José Nunes Tabela nº 01 Mesadiretora da Associação Fonte Dados de Campo Após 2016 a direção da AQCA incrementou a interação com os membros das mesasdiretoras de outras associações quilombolas regionais principalmente durante as celebrações do Novembro Negro202 Nesse período as comunidades quilombolas do entorno se encontraram para discutir demandas gerais e específicas e para compartilhar histórias e labutas consolidando um sentimento de solidariedade étnica que ultrapassa as fronteiras de cada comunidade O Novembro Negro foi portanto ressignificado As celebrações passaram a ser pontuadas por atos de protesto e caracterizadas pela socialização dos problemas enfrentados pelas comunidades quilombolas de todo o país 202 Participaram desses eventos mediados pela Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências AAQTA as comunidades de Tijuaçu Cariacá Fumaça Jiboia Nova Represa Lajedo Coqueiro Palmeira São Pedro Acaru Tamanduá e Alto Capim 166 Imagem nº 20 I Encontro do Novembro Negro em Cariacá em 2015 com a participação das mulheres do Samba de Lata de Tijuaçu Fonte Acervo da pesquisadora A alegria de cada encontro tem sido reforçada pelo comprometimento com a luta iniciada pelos ancestrais fundadores que constituem a herança coletiva das comunidades quilombolas Dentre os eventos do calendário do Novembro Negro que participei durante a pesquisa etnográfica destaco o I Encontro do Novembro Negro em Cariacá efetuado em 2015 o Fórum Rediscutindo a EJA nas Comunidades Quilombolas realizado em 2016 em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de Senhor do Bonfim a Noite da Consciência Negra na comunidade Alto Bonito em 2017 Quilombola é Cidadania realizado em novembro de 2018 na sede da AQCA e o I Encontro de Comunidades Quilombolas em Nova Represa desenvolvido em 2019 na segunda Festa da Consciência Negra promovida por esta comunidade 167 CAPÍTULO 4 AQUI SE TIVESSE UMA ESTRADA TODO MUNDO CONHECIA O LAJEDO No século XX os quilombos ficaram em parte invisíveis e em parte estigmatizados O processo de produção da invisibilidade data desde a escravidão quando os quilombos se articularam com as roças dos escravos transformandose em camponeses sendo difícil definir quem era fugido diante de roceiros negros além daqueles que tinham nascido nos quilombos e nunca foram escravos GOMES 2015 p 120 Imagem nº 21 Caminhos que conduzem ao Lajedo Fonte Acervo da pesquisadora 168 Na madrugada relativamente fresca de 14 de junho de 2016 me desloquei para o Buraco do Lajedo203 Eu havia estado nessa localidade algumas vezes entre os anos de 2013 e 2014 mas não conseguia lembrar com exatidão o caminho a ser percorrido Ao contrário do que acontece em Cariacá e em outras comunidades do norte baiano onde tenho estado com maior frequência seja por ocasião do Novembro Negro ou a convite de alguma associação para realizar palestras ou pequenos cursos Lajedo permanecia no plano do desconhecido ocupando o lugar de uma comunidade emblemática e ainda pouco visitada por pesquisadores as204 Antes de me encaminhar para lá permaneci um período de dez dias na cidade de Saúde onde procurei conversar com os anciãos205 da comunidade que migraram para esse município e cujos filhos e netos as ainda se encontram morando em Lajedo Esse intervalo que fiz em Saúde206 foi importante para compreender como a cidade percebe e trata a comunidade Não fiquei espantada com as impressões iniciais mas talvez desalentada Estive em alguns órgãos públicos como na prefeitura nas secretarias de saúde e educação e na secretaria da igreja católica em busca de alguns registros de batismo e em todas essas instituições escutei comentários depreciativos em relação a Lajedo e seus moradores as entre os quais eles ainda estão lá São um povo muito difícil não tem controle de nada As mulheres parem de mais hoje nem tanto Você sabe das doenças que pode pegar se ficar por lá Tome cuidado É bom se vacinar Sem maiores dificuldades percebi que o grupo não é bem visto pelo poder municipal e recordeime que em 2013 quando os visitei pela primeira vez eles pareciam abandonados sem acesso à saúde e saneamento básico e chateados porque a unidade escolar207 havia sido fechada nesse mesmo ano deixando as crianças impossibilitadas de estudar 203Alguns anciãos se referem à comunidade como Buraco do Lajedo As casas dos das moradores as são cercadas por serras ocasionando a impressão de que se está em um caldeirão 204 Durante todo o período em que estive em campo apenas em outubro de 2017 tive ocasião de encontrar uma equipe de acadêmicos as da Universidade do Vale do São Francisco UNIVASF que esteve na comunidade por duas vezes com o propósito de estudar a cachoeira do Gelo Foi um encontro muito significativo aliás como costumam ser todos os intercâmbios promovidos pelo campo de pesquisa 205 Em 2013 já havia conhecido e conversado com alguns destes moradores as inclusive alguns que já faleceram 206 Já conhecia o município porquanto lecionei algumas vezes em instituições de ensino superior que existem na cidade estreitando alguns laços em função da profissão entretanto essa estadia foi particularmente diferente visto que buscava outra rede de relações os antigos moradores de Lajedo 207 Em 2013 após algumas reuniões onde foi discutida a importância da existência da escola na comunidade o grupo formou uma comissão e decidiu procurar a Secretaria Municipal de Educação assim 169 Já se aproximava das 10h00min da manhã e eu ainda não havia chegado à comunidade por isso me lembrei do comentário feito por Seu João Colado por ocasião de minha última visita em 2014 quando o interlocutor mencionou aqui se tivesse uma estrada todo mundo conhecia o Lajedo208 Eu estava apreensiva porque chovia bastante sabia que não estava sendo esperada e já havia decorrido certo tempo desde o último contato e não tinha certeza se todos as eles as se lembrariam de mim vez por outra encontrava com alguns na feira livre de Saúde porém não era a mesma coisa de estar em contato na comunidade sobretudo porque havia notado o quanto se sentiam valorizados quando eram visitados e como gostavam de receber e sabiam fazer isso muito bem Embora já existisse a estrada tão reivindicada por João Colado não havia referências de como se chegar lá nem possibilidade de perguntar em muitos trechos do caminho já que não há casas e se chove o que é habitual parece que tudo se transforma em uma mata fechada Apesar do horário estava escuro devido ao tempo e excessivamente frio209 A presença de um pequeno olho dágua que os quilombolas chamam de rio Preto me oportunizou perceber que estava nas proximidades Permanecia ansiosa pois o rio estava cheio dificultando a passagem do carro Um pouco adiante o encontro com duas crianças que esperavam o transporte escolar para se deslocarem até a cidade de Mirangaba onde a população discente estuda encorajoume a continuar haja vista que elas informaram o restante do caminho e forneceram o indicativo de que a rota estava certa Mais tarde fiquei sabendo que o rio Preto é utilizado como marco para especificar as famílias que residem em áreas que são consideradas pertencentes aos municípios de Saúde e Mirangaba porquanto desde o ano de 2010 com a abertura da estrada boa parte dos moradores as transferiram seus títulos de eleitor para o segundo município como forma de agradecer a como realizou a denúncia em uma emissora de rádio local Após esses acontecimentos a escola foi reaberta e funcionou até o ano letivo de 2014 fechando novamente e assim permanecendo até os dias atuais 208 Embora ainda fosse muito acidentada em 2014 já havia uma estrada rural capaz de permitir chegar ao Lajedo de carro ou de moto Essa mobilidade de acesso melhorou a partir de 2010 quando o poder público do município de Mirangaba realizando um sonho antigo dos moradores as como eles mesmos gostam de enfatizar abriu as estradas Até então o acesso era mais difícil contornando as serras da cidade de Saúde seguindo por uma trilha realizando parte do trajeto de animal ou moto e uma pequena parte a pé Nos períodos de chuva intensa essa trilha se torna praticamente inacessível Na atualidade esse caminho é percorrido basicamente pela população do lugar nos dias de sextafeira e sábado em função das atividades que desenvolvem na feira livre de Saúde 209 Faz muito frio na comunidade sendo comum nos meses de maio junho e julho os moradores as passarem o dia com agasalho touca e meia 170 atitude adotada pelo então prefeito que conforme os interlocutores as se interessou pelo lugar Imagem nº 22 Olho dágua do Rio Preto no mês de setembro quando as águas estão relativamente rasas Fonte Acervo da pesquisadora Quando finalmente avistei a primeira casa compreendi que havia chegado No entanto não havia ninguém e tampouco em nenhuma das residências alcançadas Como o trovão e o relâmpago me paralisassem de vez em quando deduzi que talvez estivessem em suas roças e como não sabia o que fazer para chegar até lá resolvi esperar não sem alguma preocupação visto que nem os animais se encontravam por perto Como não mais conseguisse ficar no mesmo local voltei à primeira casa ainda não conseguia me orientar espacialmente no território e para a minha tranquilidade a porta estava aberta saí do carro já ensopada mas me protegendo da chuva quando escutei uma voz de mulher mencionar entre pra cá Pode vim Não esperei por um segundo convite pois reconheci a voz de Dona Mariene que já estava em casa coando o café A solidariedade 171 nas comunidades quilombolas sertanejas é algo extraordinário são pessoas que nas labutas da vida aprendem a ler no olhar a necessidade do outro a Além do café e de uma toalha para me secar Dona Mariene me ofereceu hospitalidade Estava estabelecido o primeiro contato210 No mapa abaixo apresento ao leitor a a localização de Lajedo assinalando a sua proximidade de outras comunidades do contínuo étnico que vem sendo denominado pelas pessoas do lugar de Grota Quilombola Fonte Base da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia SEI adaptado no Adobe Photoshop CC 2019 Ilustração da Pesquisadora 210 Trechos retirados do Diário de Campo p 1519 172 41 CONHECENDO O LAJEDO Em 2013 saí de Lajedo com uma indagação que apenas algumas visitas não permitiram responder o que justificava que alguns permanecessem naquele espaço uma vez que muitos as já haviam ido embora A região apesar de muito bonita parecia esquecida e totalmente desassistida À medida que melhor conhecia a comunidade notei que havia diminuído o número de famílias211 e fui então buscando compreender a razão dessas migrações e os fatores capazes de amparar a permanência daqueles as que ao contrário de seus parentes declararam preferir ficar se não por toda a vida pelo menos até quando fosse possível ou conforme é dito até a idade permitir por que quando a gente chega pra idade é preciso sair As quarenta e uma famílias que atualmente moram no local declaramse parentes consanguíneos ou por afinidade212 pois todos as se estimam não existindo pessoas no grupo que não interajam A pertença ao grupo é reavivada pelas atitudes diárias de auxílio mútuo tanto nas ocasiões de celebração da vida de modo especial durante as festas de casamento quanto nos momentos de solidariedade com a dor como em casos de doenças partos difíceis ou ainda diante da morte Não se definem por núcleos familiares Seu Joaquim Santana de Azevedo 42 anos teve o cuidado de esclarecer que aqui se assina quatro sobrenomes Santana de Jesus Silva e Inocêncio Identificamse por região ou por grota que conservam em sua maioria os nomes de antigos moradores formando as nove regiões que compõem o grotão do Lajedo213 encontrandose assim distribuídas Félix Firmina Aprígio Capão Fojo também referido como Mariquita Lajedo Inocêncio Várzea Comprida de Cima e Várzea Comprida de Baixo Em algumas dessas regiões reside apenas uma família e é comum encontrarse mais de uma família habitando uma mesma casa 211 Em 2013 havia 48 famílias no território 212 A afinidade que legitima o parentesco é pensada a partir do estreitamento das relações familiares por intermédio de casamentos e relações de compadrio As relações locais não são apenas de vizinhança mas de parentesco Costumase afirmar que a parentagem aqui é grande 213 Os moradores costumam referir à comunidade por três designações Lajedo Buraco do Lajedo e Grotão do Lajedo Nas relações estabelecidas com a sociedade regional utilizam apenas Lajedo e ficam muito chateados as quando ocorre de alguém não identificar a comunidade Comentam por vários dias seguidos quando nos dias de feira livre seja na cidade de Saúde seja no município de Mirangaba encontram pessoas que dizem não saber a localização de Lajedo ora se ressentem ora acreditam que estão sendo afrontados as nesse tipo de situação 173 Apresento a seguir uma representação da organização espacial das famílias distribuídas nas regiões povoadas bem como das cidades com as quais estabelecem contato direto principalmente de caráter comercial Fonte Base da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia SEI adaptado no Adobe Photoshop CC 2019 Ilustração da Pesquisadora Todos os moradores as se percebem como descendentes dos Quiteros embora afirmem que os parentes diretos do ancestral fundador já faleceram O último parente consanguíneo de Quitero que residiu na comunidade é lembrado como tendo sido a senhora Firmina Quitero referida como contadora de muitas histórias do tempo do cativeiro As famílias que residem na região dos Inocêncio são apontadas como pessoas 174 que têm sangue dos Quitero e bisnetos as do fundador consoante afirmação de Seu Gilberto Inocêncio dos Santos 47 anos e neto da senhora Firmina Quitero Rapaz Os primeiros aqui era avô avó da minha avó Era os chamado Quitero Era a família dos Quitero a gente Eu sou uma raiz dele mais longe mas sou Eu ouvi minha avó contar muitas histórias dele Quitero Dizia que tinha ele Mas não sei o que significa essa palavra Rapaz Esse Quitero nossa família antes não queria se identificar por que era uma família meio malina esse povo essas coisa Aí não queria se identificar ficava prendendo Depois que a gente cresceu pra cá que soube de onde veio aí teve que apoiar né Por que não é todo mundo que é igual Entrevista com Gilberto Inocêncio dos Santos 47 anos em 170616 A reserva do interlocutor em se declarar parente de Quitero talvez se encontre relacionada às impressões negativas sobre esses descendentes disseminadas tanto em Lajedo quanto externamente O sentido que Gilberto empresta à palavra malino está associado a opiniões que apontam Quitero e seus parentes como praticantes de pequenos furtos motivo pelo qual mesmo em Lajedo seus descendentes ainda se sentem pouco à vontade para confirmar o parentesco Ao conversar com a senhora Eulina Carmelina de Santana Dona Roxa 75 anos em sua residência no município de Saúde ela permaneceu silenciosa durante alguns minutos ao ser indagada sobre Quitero Diante do seu mutismo passei às perguntas seguintes e depois voltei a indagar se ela tinha ouvido falar de Quitero Um pouco tímida D Roxa afirmou a gente ouvia falar que esses Quitero era meio esperto risos e pausa Que gostava de pegar as coisa dos outro Esse Quitero véio Mas eu não alcancei não214 Durante as primeiras conversas e mesmo no decorrer das entrevistas215 muitos as desconversavam chegando até mesmo a afirmar que não sabiam o que significava a palavra Quitero embora admitissem ter escutado referências a esse nome por parte de seus pais e avós Outros as chegaram a informar que apenas os mais velhos as sabiam descrever quem fora Quitero alguns preferiram apontar nomes de parentes específicos que poderiam falar a respeito e por fim revelaram que o constrangimento em falar sobre 214 Entrevista realizada na residência da anciã em 080616 215 Algumas entrevistas foram realizadas mais de uma vez pois em algumas situações muitos as dos interlocutores as falam simultaneamente dificultando a compreensão Outra situação inusitada se verificou nas entrevistas realizadas com as mulheres casadas cujas falas foram escutadas e corrigidas pelos maridos 175 Quitero se devia a informações depreciativas imputadas ao mesmo e por não desejarem ser confundidos com qualquer pessoa que não fosse digna de consideração De acordo com as memórias orais o Grotão do Lajedo foi fundado pelo senhor Paulo Quitero escravizado do coronel Joaquim Malta Quitero chegou ao local acompanhado de uma irmã e uma sobrinha fugindo da ira do citado coronel Além dos relatos orais216 o historiador saudense217 Raimundo Moraes Pereira 2004 relata com certa profundidade essa história que se encontra descrita no livro de sua autoria intitulado Memórias na Varanda origens história e estórias do município de Saúde218 Segundo Pereira 2004 o coronel Joaquim Malta e sua esposa referida como à senhora Nanília eram ricos proprietários de terras gado engenhos e escravizados entre os quais Paulo Quitero sua irmã Joana e sua sobrinha citada como Mariazinha Ela teria despertado a afeição de Rosalvo Miranda Malta filho do coronel o que levou Joaquim Malta a conceder alforria a Quitero sob o imperativo de que ele levasse consigo sua sobrinha e a irmã para algum lugar distante de suas terras e portanto do seu filho A estratégia contudo não deu certo pois Rosalvo localizou o esconderijo de Mariazinha e levoua para o município de Sento Sé onde foi formalizado o temido matrimônio do qual nasceu Joaquim Malta Neto O nascimento da criança suscitou o perdão do avô coronel e o regresso de Joana do novo casal e filho para as terras das fazendas Malta e Campo Verde de propriedade do coronel Apenas Quitero permaneceu em Lajedo Vejamos o trecho em que o historiador descreve esse fato A Fazenda Grande administrada por Rosalvo voltou a produzir melaço e rapadura os rebanhos cresceram e se desenvolveram Mariazinha muito feliz mandou buscar sua mãe Joana e deu uma casa para ela morar A nova casa de Joana tinha sido uma loja para vender tecidos A velha ficou conhecida como Joana da loja O velho Quitero continuou morando na fazenda Buraco onde formou um pequeno quilombo Até hoje existem remanescentes dos Quiteros vivendo no mesmo local PEREIRA 2004 p 103 216 Esclareço que não são todas as pessoas da comunidade que narram essa história No entanto todos as contam que o Lajedo foi fundado por Quitero 217 Adjetivo utilizado para qualificar aqueles as que nascem na cidade de Saúde 218 No período em que estive na cidade de Saúde busquei entrar em contato com o referido historiador porém fui informada que ele já havia falecido 176 No supracitado livro constam as cartas trocadas por Rosalvo Malta e Mariazinha219 e ainda a carta que o primeiro escreveu ao seu pai dando notícias sobre o nascimento do filho A existência dessas cartas era desconhecida da população de Lajedo que ficou bastante sensibilizada ao ouvir a leitura da correspondência220 Após esse episódio algumas crianças passaram a comentar agora eu sei quem é o Quitero e as conversas a respeito do ancestral fundador passaram a ser cercadas por uma atmosfera de respeito já que passamos a desmistificar em campo as molduras pejorativas que foram construídas para cristalizar uma imagem negativa de Paulo Quitero tanto entre seus descendentes quanto no contexto regional e problematizamos como esse fato foi utilizado para a marginalização do grupo Por intermédio de um curso foram feitas algumas provocações no intuito de desconstruir a representação depreciativa e elevar a autoestima desses quilombolas sertanejos tais como a quem interessava apresentar Quitero como praticante de ações ilícitas A usurpação da liberdade de Quitero circunstância que coloca o usurpador em uma posição pouco respeitosa a personalidade de Paulo Quitero seu empenho em proteger sua família da perseguição do fazendeiro e ainda sua bravura para iniciar o povoamento da comunidade Transcrevo algumas representações que os interlocutores as apresentaram a essa pesquisa a respeito do senhor Paulo Quitero Essa Fermina fazia parte dos Quitero Eu conheci como os Quitero A gente ouvia assim que os Quitero parte dos Quitero era muito sofrido Que era uns escravos umas parte de umas pessoa bem pobrezinha sofredor Joaquim Santana de Azevedo 42 anos em 170616 Os primeiros moradores foi um pessoal que chamava Quitero Essas pessoas morreram só tem os netos agora 219 As cartas estão datadas de 11 de agosto de 1886 A correspondência de Rosalvo é oriunda da Fazenda Campo Verde ao passo que a de Mariazinha foi endereçada da Fazenda Buraco No período em que estive no município de Saúde não obtive maiores informações acerca das cartas tampouco como estas foram coletadas pelo historiador 220 Eu fiz a leitura das cartas após o final de uma reunião em que o grupo me solicitou a realização de um curso que os auxiliasse a entender melhor sua condição de povos tradicionais A leitura estimulou o enternecimento dos adultos e o riso de algumas crianças que acompanhavam seus pais 177 Beto mesmo é neto É da família dos Quitero mas eu não sei se é dos Quitero dos quilombolas ou se é nome que chamava Quitero O pai de Beto era e ele é da família dos Quitero Conheci muita gente da família Os Quitero foi aquele povo que vieram da África né Aí vieram pra o Brasil e foi rendendo aquelas pessoas Rosália Matias dos Santos 65 anos em 030716 É o seguinte eu não cheguei a conhecer ele não mas é o finado Paulo Quitero que morava aqui perto Eu não cheguei a conhecer ele não Quem conheceu ele foi o meu pai e minha mãe Eles conheceram Paulo Quitero Meu pai falava muito nele Meu pai dizia que ele era gente boa e trabalhava aqui naquele sistema antigo Ele era parente daquele rapaz lá da associação o Gilberto mas eu não sou parente dele não Armando João dos Santos 68 anos em 160616 Do Quitero Ele não morava aqui Ele morava numa grota que tem aqui a quatro quilômetros Aí chamava Quitero Ah Ele é muito véio que um senhor que morreu aqui com 95 anos não chegou a conhecer ele não Alberto Santana de Azevedo 48 anos em 180616 As impressões externadas a respeito de Paulo Quitero se encontram associadas ao sofrimento condição considerada como compartilhada por todos os habitantes do lugar e que surge tanto nas entrevistas quanto nas conversações informais que foram estabelecidas Sofrimento e resistência são palavras acionadas frequentemente em Lajedo relacionadas ao conceito que vige sobre os quilombos Em ambas as circunstâncias as memórias relacionadas à Quitero são utilizadas para aludir ao povoamento ancestral da comunidade e à tradicionalidade da qual se declaram herdeiros A tabela a seguir distribui as famílias pelas respectivas regiões 178 Região Número de Famílias Nomes dos Moradores as que foram apontados como representantes de cada família Félix 03 João Colado Alberto Joaquim Firmina 01 Alberto Alves Aprígio 07 Armando Manuel Timóteo Maria do Rosário Arnaldo Ilda Zé Capão 02 Heranga Zé Mariquita Fojo 02 Zilô Sérgio Lajedo 04 Anália Sena Naide Edmilson Várzea Comprida de Cima 04 Antônio Pedro Clodoaldo Márcio 179 Várzea Comprida de Baixo 14 Miúda Ninha Neide Luciano Vanusa Mirene Joana Nóia Daniel Márcio Manuel Valdianor Claúdio Peta Inocêncio 04 Gilberto Narcisa Valdevino Zé do Corte Tabela nº 02 Demonstrativo das Famílias de Lajedo agrupadas por região Fonte Dados catalogados em campo Não há pessoas desconhecidas residindo no território e há preocupação para que essa situação não se modifique Em uma das conversas com Seu João Colado ele relatou que em certa ocasião quase vendeu um terreno de sua propriedade a um médico residente na cidade de Jacobina que costumava visitar a comunidade e se hospedar em sua casa todavia mudou de atitude e desistiu do negócio por considerar que essa poderia ser a primeira iniciativa para pestear o lugar João Colado justificou sua opinião mediante uma apreciação dos impactos negativos que a permanência de pessoas de fora ocasiona na rotina do modo de vida local Aqui você não vê um som alto uma bebida uma bagunça uma confusão Por quê Por que não tem atrapaio de fora Aqui a gente sai larga tudo aí e não acontece nada Pode sair um mês certinho e não acontece nada A gente cansa de sair no São João e no Ano Novo acha tudo igual 180 Eu não quero uma mercearia aqui eu não quero um campo de bola aqui Eu sei como é que começa essas coisa É por isso que eu tenho raiva da infuca dessa cachoeira Eu tirei a placa que ficava aqui perto de casa e o Beto botou lá perto da casa dele por que eu às vezes de madrugada era acordado por gente bêbado e sem estilo pra amostrar a cachoeira Não vou negar que de primeiro eu até gostava mas depois vi que aquilo não ia dar certo É por que agora tá no frio mas depois você vai ver a presepada de todo tipo de gente que quer vim aqui Vem aqui e deixa o lixo aí e aparece com falta de respeito no terreiro da casa da gente por que pensa assim que a gente é uns coitados por que sabe que não tem nenhuma polícia aqui Eu não quero gente de fora aqui Uma vez veio um ônibus de gente de Salvador pra ficar aí na cachoeira e vieram pedir se eu não queria cozinhar galinha caipira e pirão pra eles Era por três dias eles ia me dar cem reais Eu olhei assim e disse que não queria não eu não quis dizer nada Eles pensaram assim que eu era um besta Oferecer cem reais que não paga nem as galinhas mas eu não disse nada não João Aceno Gabriel Pereira 45 anos em 151017 João Aceno Gabriel Pereira conhecido por todos as como João Colado tornouse uma liderança em reconhecimento à sua presteza em socorrer os parentes compadres e vizinhos nos momentos de necessidade ie por ocasião de doenças concessão de empréstimos e favores diversos assim como por sua disposição e espírito crítico para dialogar com políticos e outros agentes sociais do contexto regional Já fez parte por mais de uma vez da mesadiretora da Associação Quilombola da qual atualmente é apenas sócio Ele se ressente por algumas discordâncias entre as associações de Lajedo Palmeira e Coqueiros nas quais supõe que sua comunidade saiu prejudicada221 Esses desencontros levaramno a se distanciar do ativismo na causa quilombola não se opondo contudo que sua esposa e filha permaneçam ajudando na associação 221 Em um encontro de associações quilombolas promovido na sede da associação de Lajedo no dia 220117 para a surpresa de todos as o interlocutor se fez presente e externou toda a sua mágoa aos três vereadores que participaram do evento Dois deles são oriundos das comunidades quilombolas de Coqueiros e Palmeira e a terceira uma vereadora de Jacobina que ao tomar conhecimento dessa atividade apareceu no local pretextando desejar entender melhor as questões quilombolas João Colado que há bastante tempo deixou de frequentar as reuniões da associação falou por trinta e oito minutos durante os quais relembrou o desrespeito dos vereadores e argumentou que os mesmos nada fazem para melhorar a vida das pessoas da comunidade motivo pelo qual nem deveriam ter aparecido ali Todos as os presentes permaneceram calados À exceção dos vereadores que se mostraram constrangidos as pessoas estavam felizes e aplaudiram a intervenção de João No final do encontro após um almoço coletivo no terreiro da casa de Seu Gilberto foi formada uma pequena comissão de mulheres para solicitar da vereadora de Coqueiro que obteve muitos votos em Lajedo a reabertura da escola no período noturno o que todavia não foi por ela atendido 181 A preocupação externada pelo interlocutor revela conscientização em preservar suas terras em termos ecológicos e de permanente vigilância para que futuramente não tenham o território expropriado por fazendeiros ou outros indivíduos invasores Alguns moradores as à época da pesquisa mostraramse revoltados porque o espaço onde está localizada a cachoeira do Gelo fora comprado pelo irrisório valor de R 150000 Um mil e quinhentos reais pelo Grupo Amigos da Natureza GAM a pretexto de cuidarem de uma área de preservação ambiental A princípio segundo os quilombolas a equipe do GAM manteve o compromisso de promover a limpeza do local e colocar uma placa indicando a existência da queda dágua o que foi na sequência negligenciado Atualmente a cachoeira é frequentada por pessoas da região e outros turistas especialmente durante o verão o que tem ocasionado constrangimento às famílias quilombolas devido às desordens e à uma morte por afogamento Após a presença do GAM a cachoeira do Gelo tornouse divulgada sobretudo no contexto regional e os quilombolas passaram a visitála com menor frequência já que não se sentem satisfeitos diante dos visitantes de finais de semana que além de promoverem a poluição do local agredindo o meioambiente adotam comportamentos222 desrespeitosos Esse turismo inoportuno tem exposto as residências causado prejuízos às roças e à tranquilidade dos moradores nos finais de semana As duas vezes em que visitei a cachoeira do Gelo ao lado de Rose não encontramos nenhum banhista talvez por se tratar de um período frio e frequentemente chuvoso quando a queda dágua permanece mais volumosa despertando certo receio em função da profundidade do local Havia no entanto sacos plásticos litros de vidro e garrafas pet denunciando o comportamento inadequado dos últimos visitantes e a falta de zelo e acompanhamento por parte do GAM223 222 São comportamentos diversos e que variam desde brigas uso de bebidas alcóolicas e consumo de drogas 223 No período concernente às atividades de campo nunca tive ocasião de encontrar com qualquer membro do GAM Depareime casualmente com dois deles em Senhor do Bonfim e eles tiveram a indelicadeza de tecer considerações discriminatórias sobre as pessoas de Lajedo inclusive afirmando que elas não preservam aquela região Argumentei que o desrespeito à natureza e o vandalismo têm sido promovidos pelos turistas ocasionais que acampam por dois ou três dias produzem lixo e vão embora sem qualquer compromisso 182 Imagem nº 23 Cachoeira do Gelo Fonte Acervo da pesquisadora A comunidade está localizada a uma distância de 19 km da cidade de Mirangaba e a10 km do município de Saúde sendo possível chegar pelas duas rotas224 O acesso foi facilitado a partir de 2010 quando a prefeitura municipal de Mirangaba informada a respeito da existência do grupo e de sua condição de população tradicional se interessou por manter contato com os mesmos Foram realizadas algumas reuniões no decorrer das quais houve a proposta da abertura da estrada que era totalmente inacessível após a 224 O percurso por Mirangaba possibilita fazer todo o trajeto de carro mesmo durante os períodos mais chuvosos por uma estrada rural que vem sendo designada Grota Quilombola uma vez que concentra no mesmo raio os territórios de Carrasco Coqueiros Palmeira Lajedo e Santa Cruz do Coqueiro Já o percurso através da cidade de Saúde requer contornar as serras de moto animal ou a pé pois não há exatamente um caminho ou algo que possa ser chamado de vereda e sim uma pequena trilha cuja manutenção é feita a cada três meses pelos próprios quilombolas uma vez que muitos utilizam esse caminho semanalmente para alcançar a feira da cidade mediante um percurso de aproximadamente três a quatro horas Houve época em que foram remunerados pela prefeitura municipal de Saúde para roçar a trilha porém após a transferência de quase todos os eleitores locais para a cidade de Mirangaba só os votantes em Saúde são tratados como munícipes 183 comunidade de Palmeira e a negociação da transferência dos respectivos títulos de eleitor a A aproximação foi acolhida pela comunidade até então completamente abandonada pelo poder político de Saúde situação que ainda prevalece contemporaneamente Segundo os interlocutores as desde a época dos seus avós havia reivindicação de ajuda ao poder público para a abertura da estrada que em muito facilitaria o acesso de pessoas e mercadorias porquanto em diversas situações perderam parte de suas cargas devido ao deslizamento dos animais ao longo do trajeto sem que houvesse qualquer atitude de condescendência225 Apesar dos acordos firmados nos chamados anos políticos quando os candidatos pediam para reunir as famílias na residência de Seu João Colado e se comprometiam com a tão sonhada e necessária estrada A população de Lajedo afirma que no dia específico da eleição os potenciais eleitores as costumam ser tratados com deferência até as 17h00min quando é finalizado o fluxo de votação Em muitos de nossos diálogos eles comentaram sobre a ocorrência de humilhações nos ônibus no regresso até suas casas pois os motoristas percorrem o trajeto pronunciando palavrões e inferiorizando seu lugar de origem226 o que tem contribuído para a sua estigmatização e dos seus modos de vida A infraestrutura do Lajedo é basicamente constituída pelas casas dos moradores as e suas roças Algumas regiões ficam próximas umas das outras a exemplo da Várzea Comprida de Cima e Várzea Comprida de Baixo ao passo que outras variam de uma distância entre dois e quatro km entre si As únicas instituições são a escola227 e a Associação Comunitária dos Pequenos Produtores Rurais da Comunidade Quilombola de Lajedo228ACPPRCQL Outros marcos territoriais relevantes são cachoeiras rios pedras 225 Exceto nos anos eleitorais quando era costumeira a organização de uma frente de serviço constituída pelos próprios moradores para realizar a limpeza da estrada Nesse período geralmente eram remunerados por quinzena quando não eram ludibriados 226 Consoante às vozes locais no dia da votação os candidatos por vezes disponibilizavam e disponibilizam um ônibus para leválos até Saúde Nessas ocasiões o percurso é realizado pela cidade de Jacobina 227 Segundo já referido esta unidade se encontra desativada havendo apenas a permanência do imóvel 228 De acordo com os moradores as inicialmente ficaram vinculados à Associação Quilombola de Coqueiros haja vista que essa comunidade preconizou as movimentações em torno da causa quilombola na região Fundaram sua própria associação em 04 de maio de 2005 mas só obtiveram o registro em 04 de outubro de 2007 184 que chamam atenção por seu grande tamanho229 e o local onde funcionou uma extração de quartzo verde Imagem nº 24 Garimpo de Quartzo Verde desativado Fonte Acervo da Pesquisadora A escola Municipal Manuel Dias dos Santos230 é considerada o único benefício que a prefeitura de Saúde fez A construção da unidade foi uma promessa de campanha que ocorreu em um período muito tenso quando os moradores as não desejaram participar de reuniões com nenhum dos candidatos231 postulantes ao cargo de prefeito Embora seja constituída basicamente pela sala de aula a escola levou seis meses para ficar pronta 229 As quedas dagua rios e pedras já foram nominalmente citadas nesta tese 230 A unidade escolar recebeu esse nome em homenagem ao morador que doou o terreno para a construção 231 Mediante o que foi relatado pelos quilombolas mesmo diante da relutância demonstrada por eles o então candidato o senhor Antônio Fernando apareceu para uma visita que reuniu uma pequena assembleia diante da qual Antônio Fernando se comprometeu se vitorioso no pleito a construir a escola 185 devido à dificuldade encontrada para transportar o material assim como de conseguir mão de obra que se dispusesse a trabalhar no local Inicialmente os materiais começaram a ser transportados em uma caçamba através da cidade de Jacobina porém como o veículo tivesse quebrado por três vezes durante o trajeto o motorista paralisou as atividades A partir daí foi necessário mobilizar a solidariedade de todos os moradores para que auxiliassem no transporte do material restante que foi transportado em cargas de jumentos e mulas Muitos homens trabalharam como pedreiros e serventes uma vez que os trabalhadores de Saúde também se recusavam a continuar trabalhando na comunidade Segundo Seu Armando João dos Santos que participou ativamente da construção e cuja residência se localiza em frente à escola na região dos Aprígio a unidade foi inaugurada em 07 de abril de 1987 com a presença do prefeito Antônio Fernando Ferreira Rocha que chegou com uma comitiva da qual fazia parte o cantor Zelito Miranda232 transformando o evento em uma grande festa que permanece lembrada com euforia pela população adulta do lugar que além de desfrutar da festa aproveitou o momento para montar barracas de comidas e bebidas ganhando assim um dinheiro extra Imagem nº 25 Escola Manuel Dias dos Santos Fonte Acervo da pesquisadora 232 Artista ainda muito famoso e querido na região 186 Dona Rosália Matias dos Santos233 atuou como professora na comunidade por vinte e cinco anos após o que se aposentou Ela relatou que a primeira turma foi composta por quarenta e oito alunos e a última por apenas doze educandos Com a aposentadoria da docente a educação formal das crianças e adolescentes começou a ser negligenciada pois a Secretaria Municipal de Educação alegava não encontrar professoras es que desejassem residir no local Esse foi um período em que os moradores de Lajedo ficaram muito descontentes pois eles reconhecem a importância da educação escolar para melhorar a qualidade de vida de seus filhos as Estimulados por essa percepção positiva pressionaram coletivamente a Secretaria de Educação A mobilização surtiu efeito e duas educadoras lecionaram na comunidade as professoras Jeane dos Santos que é oriunda do próprio território embora resida na atualidade em Saúde234 e Euzenir da Silva procedente da comunidade quilombola de Palmeira Após o segundo fechamento da instituição educativa a situação foi contornada quando a prefeitura municipal de Mirangaba atendeu em parte os pedidos da comunidade ao assegurar transporte escolar para os estudantes que cursam a Educação Básica na sede do município e para as crianças em idade de Educação Infantil serem conduzidas à creche na comunidade de Palmeira O prédio escolar só é utilizado eventualmente nas ocasiões em que é organizada alguma brincadeira geralmente durante os festejos juninos Ainda no tocante à infraestrutura da comunidade as casas são em sua maioria construídas de adobe235 embora haja em menor quantidade algumas de taipa236 Essas residências são organizadas em pequenos cômodos tais como sala dois quartos e cozinha O fogão a lenha permanece aceso como utensílio de destaque não apenas para o cozimento de alimentos mas como o lugar mais concorrido durante os dias frios e chuvosos Em algumas residências há uma pequena varanda na parte frontal com um banco de madeira 233 A senhora Rosália é esposa de Seu Armando Iniciou suas atividades docentes como professora leiga tendo participado nos anos 2000 do curso oferecido pelo Programa de Formação para Professores em Exercício PROFORMAÇÃO através do qual concluiu o Magistério Ela recebeu o diploma em 20 de janeiro de 2003 234 A saída de Jeane da comunidade aconteceu após o seu casamento com um rapaz de Saúde Este veio a se tornar agente de saúde na comunidade 235 Residências modificadas por eventuais reformas apresentam parte de sua estrutura de bloco e cimento A maioria contudo são de adobe com exceção de algumas construções mais recentes localizadas na região de Várzea Comprida 236 Na atualidade essas residências geralmente são utilizadas para armazenar os produtos que serão comercializados nas feiras livres da região 187 e na maioria não existe banheiro237 São casas pequenas exceção feita à casa de Seu João Colado e de D Idália que é a maior da comunidade Em nenhuma delas há mais que duas portas de entrada e de saída da residência portas antigas que costumam fechar com a ajuda de tramelas Alguns dos quartos são divididos por cortinas de cores estampadas ou lisas Imagem nº 26 Casa de família quilombola na região dos Félix Fonte Acervo da pesquisadora Nas laterais ou ao fundo de algumas casas costuma haver um giral238 onde os moradores as guardam bicicletas motos ou carros239 Há também ao lado de quase todas 237 Apenas nas casas de João Colado e Armando há banheiro Na casa do segundo esse cômodo é recente tendo sido construído em 2017 238 Tratase de um cercado pequeno em forma de círculo ou retângulo feito à base de estacas e amarrado com arame liso 239 A moto se tornou um veículo acessível nas comunidades quilombolas sertanejas Em quase todas as regiões de Lajedo há esse transporte O automóvel porém ainda é uma aquisição de difícil acesso sendo privilégio de apenas três famílias 188 as habitações uma cisterna240 cuja presença melhorou significativamente o manejo da água Todas as casas foram edificadas sob o sistema de adjutório capaz de envolver não apenas as famílias de cada região específica mas os outros membros da comunidade e compreendendo desde o transporte dos materiais a maioria em lombo de animal até a doação do dia de serviço Imagem nº 27 Casa de família quilombola na região dos Aprígio Fonte Acervo da pesquisadora O tipo de piso varia entre o cimento grosso ou cimento queimado nas cores branca e vermelha Em duas casas nas regiões dos Félix e dos Aprígio uma parte considerável do piso é de cerâmica O telhado das residências praticamente não apresenta emadeiramento sendo construído com caibros comuns extraídos das roças dos próprios quilombolas e cobertos com telhas simples fabricadas nas cerâmicas ou olarias da região 240 Construídas a partir de 2015 mas há ainda residências em que elas inexistem 189 O formato singelo dessas construções bem como a precariedade de assistência médica e hospitalar favorece a exposição dos moradores as a uma proliferação de doenças que poderiam ser facilmente evitadas Observei que todas as crianças com as quais mantive contato são propensas ao desenvolvimento de micoses de pele que se transformam em pequenas úlceras sobretudo nas pernas e nos braços tratadas com remédios caseiros banhos de ervas e pomadas que são trazidas pelos agentes de saúde241 muitas crianças também são acometidas pela leishmaniose242 Entre a população adulta são constatados casos de doença de chagas esquistossomose e verminoses243 O mobiliário das residências observa um padrão uniforme isto é salas com sofás de dois e três lugares cobertos com capas uma pequena estante de madeira ou cristaleira e espelho de parede Em algumas cozinhas além do fogão a lenha há um fogão a gás pouco utilizado baterias ou peças de madeira que servem para guardar as panelas de alumínio potes filtros e uma pequena mesa com quatro a seis cadeiras A energia elétrica244 é uma conquista recente que ainda não contempla todas as regiões motivo pelo qual alguns moradores as conservam as placas de energia solar anteriormente instaladas Há porém algumas residências ainda não alcançadas pela energia elétrica e que os moradores não tiveram a possibilidade de instalar a energia solar nestas casas são utilizados apenas lampiões e candeeiros Essa situação os priva da aquisição de eletrodomésticos essenciais a exemplo de geladeira o que é motivo de contrariedade por parte das mulheres Embora quase todas as famílias possuam televisor nas casas sem eletrificação onde é usada a placa solar o aparelho permanece desligado durante o dia sendo utilizado somente à noite de modo especial nos dias muito chuvosos devido à precariedade da fonte 241 Dois agentes de saúde fazem acompanhamento na comunidade a serviço respectivamente das secretarias de saúde de Mirangaba e de Saúde As visitas acontecem semanalmente ou quinzenal A partir de 2015 a prefeitura municipal de Mirangaba atendeu a um pedido dos moradores as e passou a manter um médico a cada quinze ou trinta dias No dia de consulta o médico quase sempre se hospeda na região de Várzea Comprida onde se encontra o maior número de famílias 242 Segundo informações coletadas na Diretoria Regional de Saúde de Jacobina DIRES no final da década de 1990 a comunidade foi acometida por um surto de leishmaniose 243 Dados fornecidos pelos respectivos agentes de saúde 244 No mês de setembro de 2017 os primeiros postes de eletrificação começaram a chegar abrangendo inicialmente uma parte da região dos Inocêncio e de Várzea Comprida Os moradores que já dispunham de energia solar continuam a esperar a instalação de energia elétrica em suas regiões 190 de energia disponibilizada Poucas famílias possuem aparelho de som ou dvd sendo o rádio o eletrodoméstico mais popular A partir de 2019 o sinal de celular245 e a rede de internet246 passaram a ser disponibilizados ainda que limitadamente o que permanece dificultando em parte o trabalho desenvolvido pela associação quilombola inclusive as mobilizações para o recebimento das cestas básicas Não há também água encanada embora o perímetro ocupado seja totalmente banhado por rios247 e a solução encontrada por algumas famílias foi realizar o encanamento da própria cisterna e em alguns casos da água procedente diretamente do rio Assim é que em algumas casas há água na pia da cozinha em outras um cano jorra água continuamente no terreiro o que facilita o desenvolvimento das atividades domésticas Imagem nº 28 Cozinha da casa de D Mariene Fonte Acervo da pesquisadora 245 Exceção feita à região dos Félix onde o senhor João Colado e a senhora Idália adquiriram há algum tempo uma antena 246 Rose e José filhos do senhor João Colado utilizam a internet através dos dados móveis do aparelho celular desde o ano de 2016 247 Conforme foi referido no Capítulo 1 191 Causoume impressão a capacidade que esse grupo possui para desenvolver estratégias que tornem possível melhorar sua qualidade de vida assim como a sua permanência na comunidade Após certo período em campo comecei a entender melhor os fatores que concorrem para isso ou seja o sentimento que nutrem pela terra na qual dizem que se criaram e que também foi de seus pais as histórias de vida que construíram e constróem as labutas nos dias chuvosos248 e períodos de seca para permanecer naquelas propriedades constituir famílias erguer casas fazer roças e tecer identidades O preconceito a que é submetido no contexto regional não arrefece o seu sentimento de pertinência aos pretos do Quitero o povo dos Quitero ou ainda os parentes do Quitero véio Permanecer naquele território representa vivenciar a cada dia uma atitude de pirraça249 e resistência s 411 PELEJANDO O dia já estava terminando quando eu cheguei à casa de Seu Timóteo Joaquim Santos 40 anos morador da região dos Aprígio Era mais ou menos 16h30min e eu presumi que todos as estivessem em casa contudo a família ele sua esposa mãe e filhos estavam retornando das atividades desenvolvidas na roça todos encharcados devido à forte chuva que caíra desde o início da manhã Fiquei um pouco tímida porque considerando o horário não julguei ser a visita inoportuna Aparentemente Timóteo percebeu o meu desconserto e foi adiantando de maneira gentil Paula entre aí não se acanhe não É por que aqui a gente só vive pelejando250 na labuta mesmo Para as famílias quilombolas a peleja tem início por volta das 05h00min da manhã horário em que costumam levantar para preparar o café e a mistura251 que levarão no embornal de trabalho juntamente por vezes da água rapadura e farinha Todas 248 Em Lajedo ao contrário do que ocorre em muitas comunidades quilombolas do sertão baiano a intensidade das chuvas sobretudo antes da abertura da estrada os impossibilita de realizar a travessia das serras para a cidade de Saúde 249 Em muitas situações de diálogo no decorrer da pesquisa de campo ficou claro haver consciência de que o entorno representado pelos poderes políticos locais pouco se importa com sua existência 250 O sentido que as pessoas de Lajedo emprestam à palavra pelejar se encontra relacionado às atividades agrícolas que desenvolvem e com as quais ocupam praticamente todo o tempo 251 Palavra que utilizam para se referir ao almoço já que nem sempre costumam realizar essa refeição em casa 192 as pessoas da casa se envolvem nessa atividade que para as crianças e jovens é uma jornada reduzida devido à escola252 A labuta diária de segunda a quintafeira ocupa o tempo de homens mulheres e crianças que trabalham assiduamente em suas roças cultivando uma diversidade de produtos entre os quais feijão andu mandioca laranja tangerina e banana Essa é cultivada em tipos variados prata maçã café e a banana dágua Antes de iniciar o plantio é observado o preceito de rezar pedindo a Deus que abençoe e faça vingar a colheita Quando acontece o primeiro plantio do ano é comum as famílias que acreditam no preceito disporem de uma pequena garrafa contendo a água dos milagres253 encomendada ao último parente ou conhecido que tenha realizado romaria para Bom Jesus da Lapa porquanto consideram que esse rito proporcionará o sucesso de suas plantações bem como da venda de seus produtos Embora cada família trabalhe em sua própria terra sempre que se faz necessário montam um batalhão com o propósito de ajudar os vizinhos Todos são produtores de farinha254 chegando a produzir em algumas regiões cinco toneladas desse produto Além das dificuldades enfrentadas para a realização dessa atividade ocupação que envolve todos as os membros da família sem maiores distinções de tarefas o maior obstáculo é transportar os sacos de farinha até a feira livre da cidade de Saúde dando continuidade à tradição que foi iniciada por seus ancestrais cujas habilidades fizeram com que a farinha do Lajedo fosse apontada pelos consumidores como a melhor da região Conforme foi explicado por Seu João Colado em sua narrativa No meu tempo de menino e até hoje o que eu mais gosto é de trabalhar Vender minha farinha Aí eu faço dez sacos de farinha Não tenho como levar pra feira por que o animal não pode levar nem tem estrada 252 As crianças de até seis anos de idade estudam na comunidade quilombola de Palmeira os que cursam a Educação Básica e o Ensino Médio costumam se dirigir até a cidade de Mirangaba e há uma pequena quantidade de alunos as que estudam na cidade de Saúde e ali permanecem de segunda a sextafeira em uma casa mantida pela prefeitura retornando aos sábados para casa 253 Tratase de uma água retirada de uma fonte específica na Gruta do Bom Jesus da Lapa e que os quilombolas acreditam ser capaz de curar doenças ajudar nos partos das mulheres fazer prosperar plantações e protegêlos dos maus espíritos e visagens Geralmente o vasilhame contendo a água é trazido por seus parentes e compadrescomadres das comunidades de Coqueiros e Grota das Oliveiras 254 A feitura desse produto acontece de forma totalmente artesanal principalmente na região dos Aprígio onde a casa de farinha permanece levantada durante todo o ano De acordo com os moradores as em tempos pretéritos a produção de farinha ocupou o lugar de maior fonte de renda na comunidade 193 Se eu puder levar três quatro sacos pra rua chegar lá não tem onde deixar Aí o lugar fica muito desvalorizado João Aceno Gabriel Pereira 45 anos em 030716 Imagem nº 29 Casa de Farinha na região dos Aprígio Fonte Acervo da pesquisadora Praticam o extrativismo do coco babaçu255 e do leite da mangaba256 que é tirado no mato nas proximidades da cachoeira do Gelo cuja comercialização é feita a famílias específicas nas cidades de Saúde e Mirangaba através de encomenda prévia Há também na comunidade uma pequena pecuária de corte e leiteira que é mantida por um número diminuto de famílias cujo gado é criado solto 255 O coco é vendido nas cerâmicas da região para ser utilizado na fabricação de telhas Cada caixa do produto é comercializado pelo valor de R 300 reais Segundo as memórias orais em tempos pretéritos a atividade de quebrar coco babaçu ou a transformação deste em óleo representou a única fonte de renda de algumas famílias 256 O litro do produto é vendido por R 1000 reais para clientes diretos e atravessadores que o transportam para revender em cidades da região 194 Imagem nº 30 Sentado à esquerda Seu Joaquim D Idália Seu João Colado e Seu Valdevino de pé chegando do trabalho na roça Fonte Acervo da pesquisadora Os produtores possuem cavalos e jumentos utilizados sobretudo como animais de carga para transportar os produtos cultivados tanto nas roças como para as feiras livres da região Criam chiqueiros de porcos257 e em todas as casas há galinheiros que abrigam uma diversidade de aves tais como galinhas galos patos gansos e pavões Segundo D Idália fui eu a única pessoa diferente a frequentar sua casa que não sofreu a perseguição de seu ganso258 mais velho 257 A criação desses animais constitui uma importante fonte de renda em geral utilizada como uma espécie de depósito providencial em situações específicas como em casos de doenças ou realização de viagens repentinas Geralmente os padrinhosmadrinhas presenteiam seus afilhados as após a realização da cerimônia de batismo com suínos fazendo a recomendação isso aqui é para você fazer um futuro 258 Os quilombolas acreditam que essas aves enrrabam caso não simpatizem com o a visitante Quando isso acontece supõem que a visita possa estar investida de um propósito ruim em relação ao dono a da casa 195 Quando termina a peleja da roça tem início a peleja da feira pois as famílias observam semanalmente uma rotina itinerante para comercializar seus produtos percorrendo as feiras livres das cidades abaixo referidas Famílias de Lajedo identificadas por Região Dia da feira livre Cidade A família do senhor João Colado da região dos Félix Segundafeira Caldeirão Grande A família do senhor João Colado da região dos Félix Quintafeira Quixabeira Famílias das regiões dos Félix Aprígio e Inocêncio Sextafeira Mirangaba As famílias residentes em todas as regiões da comunidade todos os moradores de Lajedo participam dessa feira independente de comercializarem seus produtos ou não Sábado Saúde A senhora Idália esposa do senhor João Colado da região dos Félix Sábado Jacobina Tabela nº 03 Demonstrativo da trajetória percorrida pelos moradores para a comercialização dos produtos de suas roças em feiras livres da região Fonte Elaboração da Pesquisadora 196 A oferta dos produtos cultivados em feiras livres da região ao lado dos obstáculos enfrentados para fazer chegar com qualidade sua mercadoria representa para esses quilombolas sertanejos os meios através dos quais constroem autonomia e demonstram para a sociedade envolvente a capacidade de manejar a seu favor os recursos de que dispõem para permanecer em seu lugar de origem Em Lajedo o dia de sextafeira tem uma rotina particular pois em todas as casas os membros estão envolvidos em se preparar para a feira de Saúde haja vista que todos as têm o que levar desde as cargas maiores que saem nos caçoás dos jumentos até as pequenas encomendas que vão ser entregues a pessoas específicas Somente Seu João Colado possui uma caminhonete onde transporta os produtos de suas roças assim como outros artigos que compra para revender quando a mercadoria está pouca Por vezes os vizinhos preferem pagar a passagem e ir no carro do João o que acontece quando eles têm pouco para levar e vão primordialmente comprar gêneros alimentícios bem como querosene para os candeeiros ou ainda a gasolina que driblando as proibições permanece comercializada em pequenos vasilhames Aqueles as que realizam o trajeto a pé trazendo os animais com cargas costumam deixar a comunidade por volta das 02h00min da madrugada uma vez que o trajeto além de longo é incerto e se o animal deslizar e cair vão precisar levantálo e tentar salvar o que for possível de sua mercadoria Os interlocutores as afirmam que especialmente durante o período de maio a julho esse percurso é sempre mais dificultoso devido a fatores como chuvas serração e frio contribuindo para que principalmente as bananas cheguem ao destino machucadas o que implica na diminuição do preço do produto Esse é um dos principais motivos do ressentimento da comunidade para com o poder público da cidade de Saúde porquanto segundo os mesmos as o executivo municipal poderia sem maiores dificuldades resolver essa situação Geralmente eles chegam à praça e ao galpão onde se organiza a feira livre por volta das 05h30min e 06h00min da manhã ocupando seus respectivos lugares e montando suas bancas Costumam ser encontrados desenvolvendo suas atividades em espaços como os galpões das bananas e da farinha onde são muito procurados graças à tradicional oferta de produtos orgânicos o que fazem questão de enfatizar durante a transação comercial quando legitimam a qualidade de seus produtos por intermédio da expressão que se tornou recorrente pode confiar que aqui não tem remédio não Algumas mulheres e crianças 197 se deslocam para participar da missa dos feirantes celebrada aos sábados às 06h00min da manhã com o objetivo de contemplar as famílias de diversas áreas rurais do município que não costumam receber a visita de padres em seus territórios Por volta das 13h00min da tarde à exceção dos senhores João Colado Antônio José Clementino e Timóteo que permanecem comercializando feijão e farinha os outros as moradores as já se desocuparam da venda de suas mercadorias e dão prosseguimento à segunda etapa do seu dia na feira ie as compras domésticas que compreendem carnes gêneros de supermercado e pães Em algumas circunstâncias festivas a exemplo das datas correspondentes ao São João São Pedro e Natal de maneira especial as mulheres se dirigem às barracas de roupa e sapato e quando conseguem dispor de tempo procuram os serviços de uma manicure Além dessa rotina que assume aspecto quase regular a feira livre de Saúde representa ocasião para estabelecimento de socialização259 com os parentes e compadres das comunidades de Grota das Oliveiras e Água Fria260 Nessas oportunidades tomam conhecimento sobre o crescimento dos sobrinhos as afilhados as a saúde dos mais velhos agendam possíveis encontros comunitários e procuram agradar com pasteis refrigerantes balas pirulitos e outros doces tanto os afilhados as que conseguem encontrar nos dias de sábado quanto aqueles as que ficaram em casa e que receberão a encomenda que lhes foi enviada com gosto Em meio a essas chamadas obrigações a volta para casa acontece após às dezesseis horas para alguns uma vez que outros as preferem ficar na casa dos pais261 e passar a noite em sua companhia O domingo é muito esperado de maneira particular pelas mulheres para cuidar da casa encerar o cimento liso e arear as panelas de alumínio que são arrumadas caprichosamente nas baterias e prateleiras de suas cozinhas É também o momento de lavar as roupas sendo frequente mães e filhos as se dirigirem juntos ao rio onde passam boa parte da manhã transformando esses cuidados domésticos em pequenas diversões semanais tendo em vista que é no rio que as vizinhas se encontram e atualizam as conversas nessas ocasiões os sorrisos das mulheres vão ao encontro da algazarra 259 A comunicação é facilmente oportunizada já que no circuito da feira todos a ficam localizados próximos uns aos outros as em função dos produtos comuns que são oferecidos 260 Comunidades já citadas nesta tese 261 Quase todos os idosos de Lajedo que foram residir em Saúde são viúvos Razão pela qual a obrigação dos filhos as em dormir ao menos uma vez por mês ou ainda quinzenalmente fazendo companhia aos pais 198 promovida pelas crianças Os cuidados com os filhos são redobrados nesse dia quando as mães reparam em suas unhas por vezes os cabelos262 e cuidam da farda da escola As mulheres utilizam ainda o domingo para abastecer o estoque da lenha lavar filtros e potes Para os homens é o dia de cuidar dos animais sobretudo dos jumentos e cavalos visto que estes precisam estar saudáveis para enfrentar a rotina da semana Em alguns momentos é também durante o domingo que organizam os churrascos na cachoeira do Mandigueiro263 recebem parentes das comunidades de Coqueiros e Palmeira para um jogo de bola visitam uns aos outros recebem parentes que já deixaram a comunidade e estão morando em Saúde essas visitas são muito festejadas pelas pessoas do lugar pois elas sabem das dificuldades que precisam ser enfrentadas pelos parentes e amigos para alcançar suas casas264 e algumas mulheres vão à missa ou ao culto265 nas comunidades de Palmeira e Coqueiros A itinerância desses agentes não acontece apenas para as atividades de trabalho que ocupam a maior parte da sua rotina diária mas também nos momentos de festejos Eles se deslocam de suas residências ao longo de quase todo o mês de junho para participar das comemorações de São João nas cidades de Saúde e Mirangaba assim como das festividades de São Pedro no município de Caém Ficam ausentes de casa por até três semanas consecutivas Tratase de um período em que poucas famílias permanecem em Lajedo e organizam em 24 de junho um forró nas dependências do antigo prédio escolar ocasião em que acendem fogueira ficando a música sob a responsabilidade de Armando João dos Santos 68 anos que é o sanfoneiro da comunidade Armando aprendeu o ofício de tocador com seu pai o senhor João Joaquim dos Santos saudosamente lembrado 262 As meninas de Lajedo costumam recorrer a um profissional para cuidar dos cabelos a partir da adolescência Até então esses cuidados são realizados pelas próprias mães tias e ou madrinhas 263 Conforme já foi relatado essa cachoeira se localiza na região dos Félix 264 Quando essas visitas acontecem em outros dias da semana é comportamento comum os parentes levarem pão como forma de agradar as crianças O pão é um alimento muito apreciado em Lajedo e os estudantes ao deixarem a escola por vezes costumam comprar sacolas de pão que será consumido no café da noite 265 As celebrações religiosas costumam acontecer no período vespertino Entre as mulheres do grupo apenas a senhora Idália Santana de Azevedo costuma frequentar os cultos uma vez que é a única pessoa evangélica na comunidade 199 Os moradores de Lajedo aprenderam que autossuficiência é pressuposto para a permanência em seu lugar de origem Manifestam orgulho ao afirmar que não dependem do poder público e que em sua comunidade não querem político pelo meio Conforme já assinalado ressentemse profundamente da inexistência de uma estrada que lhes possibilite alcançar com tranquilidade a cidade de Saúde mas nem por isso deixam de tecer relações com a sociedade regional indo e vindo semanalmente oferecendo os produtos habilidosamente cultivados em suas roças As famílias que atualmente permanecem na comunidade não se colocam na posição de pessoas oprimidas e ou excluídas ao contrário em todos os caracteres que permeiam seus modos de vida elas pelejam para combater esses conceitos que talvez possam alicerçar os interesses da sociedade envolvente em relação a sua considerada teimosia266 em decidir ficar no território povoado secularmente por seus ancestrais e zelosamente cuidado pelos mesmos as Segundo as memórias orais em tempos pretéritos identificados entre os anos de 1920 e 1930 Lajedo já foi povoado por cerca de setenta famílias que devido às dificuldades já mencionadas em relação à moradia acesso à educação escolar assistência médica hospitalar e saneamento básico migraram para grandes centros urbanos tais como Minas Gerais São Paulo Rio de Janeiro e também para a cidade de Saúde No ano de 2010 a comunidade recebeu a visita de uma missionária católica a senhora Maria Rita267 que durante sua estadia escreveu com o auxílio dos moradores um texto sobre o território inclusive informando a quantidade de famílias residentes no local estimada à época em quarenta e quatro Ainda de acordo com os dados catalogados pela missionária cerca de trinta famílias haviam deixado o território 266 Em muitas ocasiões da pesquisa observando suas labutas diárias eu os questionei sobre os motivos que os levava a permanecer no local Eles me olhavam surpresos alguns até magoados por vezes silenciavam e depois esclareciam com altivez invejável que ali estavam por amor e teimosia Sentimentos que não foram apresentados pelos interlocutores as de forma ambivalente mas ao contrário foram manipulados de maneira complementar O amor por suas roças animais e parentes completase com a pirraça em desafiar um contexto político e social cujas atitudes denotam desrespeito e menosprezo por suas capacidades de enfrentar e contornar dificuldades históricas Consoante argumentou Domingas Rosalina dos Santos Dona Miúda 78 anos a única parteira viva da comunidade aqui minha irmã a gente vive por que é um povo ateimoso 267 Os quilombolas não se recordaram do sobrenome da missionária 200 A itinerância da população é um aspecto sociocultural produzido tradicionalmente por levas de moradores que em diferentes períodos ali se estabeleceram Outros permanecem tenazmente graças ao que denomino Artes da Resistência ou seja as Artes do Nascimento as Artes do Casamento e as Artes da Migração ao longo das interações e mobilizações que são estabelecidas 42 ARTES DO NASCIMENTO O nascimento de uma criança é cercado de muitas expectativas pois como esclareceu D Eulina Carmelina de Santana D Roxa durante uma conversa informal na residência de sua filha Idália A criança que nasce pode vim ser a valença dos pai Você não tem como saber quem vai lhe aproveitar268 na vida Então tem que fazer hoje pelo fio e depois ele faz amanhã por você Se Deus já deixou nascer nós tem que aceitar que é pro bem de todo mundo Aquele bem não é só do lado da criança Eulina Carmelina de Santana 75 anos em 30092018 Outros cuidados que segundo D Roxa devem ter os futuros pais que aguardam o nascimento dos filhos as é a observação e o acompanhamento do estado da natureza da criança haja vista que esta é uma situação que não pode ser prevista antes do rebento vir ao mundo Vai sendo revelada ao longo do crescimento da criança por atitudes que permitem antever suas subjetividades Dona Roxa é muito procurada pelos pais principalmente antes das crianças serem batizadas269 na igreja para que tenham o ramo passado na cabeça As crianças consideradas choronas ou medrosas são levadas semanalmente à presença da anciã 268 Nessa colocação o sentido que a interlocutora empresta a palavra aproveitar se encontra relacionado ao cuidado posterior que o filho adulto dispensa aos pais no momento da velhice 269 Para esses quilombolas sertanejos a criança que ainda não recebeu o batismo católico é considerada pagã Como não tem defesa a criança precisa ser cuidada isto é ser levada periodicamente até uma rezadeira que possa cuidar da defesa de seu corpo e espírito A rezadeira pode batizar a criança todavia costuma recomendar que ela receba o batismo prescrito pela igreja 201 para que por meio de rezas sejam curadas e não cheguem à adolescência com a natureza fraca A interlocutora relatou que durante as rezas ela costuma acender a luz270 para identificar a natureza do menino Após as rezas D Roxa orienta os pais sobre como dar providência na proteção271 do filho a A natureza boa deve ser incentivada A natureza ruim tem de ser combatida com benzimentos e às vezes com obrigações como acender uma vela para o anjo da guarda da criança Isso pode ser feito tanto pela mãe quando pela avó materna ou paterna até quebrantar a natureza má a família tem de cuidar Caso esses zelos sejam negligenciados na primeira infância até os sete anos de idadeessa natureza toma conta da pessoa e aí quem vai rebater As crianças de zero a dez anos de idade nasceram em hospitais públicos das cidades de Mirangaba e Jacobina272 Os demais habitantes da comunidade nasceram em casa pela mão de parteira Por esse motivo todas as mulheres do grupo possuem experiência de pegar menino visto que conhecer essa ciência era um requisito para assegurar a vida da mãe e da criança Assim destacou Dona Mariene enquanto dava banho em sua neta nascida na maternidade do hospital Regional Dr Antônio Teixeira Sobrinho em Jacobina Aqui Paula quase toda mulher tem obrigação com os filho das outra mas aquela que cortou o cordão do imbigo essa é mãe também Igual àquela que deu leite ao filho da outra essa também é mãe É por isso que você vê tanta bença aqui Quem não dá bença pedir a bênção todo dia mas no dia de Sextafeira da Paixão tem que vim e dá a bença a mãe de imbigo Tem de considerar o irmãozinho de leite Mariene Isautina dos Santos 47 anos em 08042018 270 Tratase de uma simpatia realizada pela anciã que não desejou fornecer maiores detalhes a respeito 271 A proteção está relacionada tanto ao dia do nascimento quanto ao anjo da guarda da criança Caso ela tenha nascido em um dia considerado santo ou seja em um dia atribuído a um santo venerado pelo catolicismo a criança deverá zelar pelo santo visto que este é seu protetor Inclusive deve ser batizada com o nome da entidade Porém se o nascimento da criança tiver acontecido em um dia tipificado como comum a dedicação deve se voltar em rezar pelo anjo da guarda No capítulo 1 fiz referência à maneira como acontece o que a população de Lajedo denomina o zelo da proteção 272 A abertura da estrada possibilitou esse comportamento 202 As crianças crescem sabendo quem é sua mãe de imbigo273 e ou sua mãe de leite274 Desenvolvese entre elas um vínculo norteado pelo agradecimento respeito e cuidado que dura toda a vida Para as mulheres quilombolas é preciso honrar esses laços275 que são parte do destino da pessoa como enfatizou D Narcisa Inocêncio ninguém foge do destino O destino é uma coisa que acompanha Que pega a pessoa Já vem no nascimento não tem como cortar Os mais velho sempre diz isso A palavra dita e a experiência das gerações mais velhas ocupam o lugar do conhecimento e são adotadas pelos adultos jovens e crianças tanto para nascer quanto para se criar Enquanto cortava madeira para lenha D Idália se divertiu ao lembrar que durante a sua primeira gestação276 não fazia ideia de como era o nascimento de uma criança Mas ela precisou parir sozinha o seu filho mais velho pois não houve tempo para o seu esposo chamar a parteira que se encontrava na cidade de Saúde Seu João Colado saiu de a pé277 em busca da sogra para pegar o menino Porém quando ambos retornaram ao Lajedo a criança já havia nascido e sua mãe D Roxa teve apenas o trabalho de cortar o cordão umbilical se tornando assim avó e mãe de imbigo de seu neto Embora as mulheres tenham afirmado que precisaram obter experiência nos casos de parição apenas algumas são apontadas como parteiras e tratadas com enlevo por terem pegado quase todas as crianças da localidade São lembradas como parteiras do grupo as senhoras Firmina Inocêncio Antônia Francisca Dita do Inocêncio e Miúda Dentre elas Miúda é a única ainda viva e residente na comunidade Todas são chamadas de mãe e recordadas com afeto 273 Condição atribuída à mulher que corta o cordão umbilical no momento do parto Essa função de acordo com as interlocutoras é sempre desenvolvida pela parteira Razão pela qual as crianças são incentivadas a chamála de mãe forma de tratamento que manterão ao longo da convivência A parteira ou mãe de imbigo passa também a ser responsável em parte pela educação da criança podendo interferir em sua natureza principalmente no momento de abençoála conforme já foi explicado no Capítulo 1 274 É chamada mãe de leite a mulher que amamenta o filho a de outra quando a mãe biológica não possui leite suficiente para isso ou ainda quando a criança se recusa a mamar na mãe 275 As crianças são estimuladas desde cedo a identificarem seus irmãos de leite para que posteriormente não venham estabelecer união matrimonial entre si 276 As mulheres da comunidade começaram a fazer acompanhamento prénatal a partir do ano de 2014 Até então todas as orientações a respeito da gestação eram ministradas pelas parteiras e mulheres mais velhas 277 Com o propósito de situar o leitor a em relação ao tempo decorrido para ir e voltar da comunidade para a cidade de Saúde Informo que o senhor João Colado gastou cerca de quatro horas para realizar o trajeto 203 Dona Miúda é tratada com estima por todos os moradores as Os quilombolas mantêm o hábito de tomar bênção à anciã e presenteála com artigos comprados nas feiras livres ou adquiridos durante viagens São agradecimentos pelos cuidados e dedicação de D Miúda às mulheres de Lajedo e às suas parentas que migraram para as comunidades de Grota das Oliveiras e Água Fria Atualmente em virtude da idade sua avançada e da facilidade que as parturientes possuem para se deslocar da comunidade de Lajedo para a maternidade D Miúda não é mais requisitada para realizar partos Todavia em Grota das Oliveiras seus trabalhos ainda são solicitados Domingas Rosalina dos Santos é também conhecida pelos residentes de Lajedo como Mãe Miúda Quando indaguei à interlocutora sobre a origem do apelido obtive como resposta uma justificativa simpática é promode a altura você não tá vendo que é quase do meu tamanho Essa observação que arrancou sorrisos dos presentes foi complementada pelo comentário de Seu Alberto Mãe Miúda é pequena no tamanho mas grande no coração Nós nos conhecemos em sua residência na região de Várzea Comprida considerada uma das mais longínquas do território Fui alertada pelas mulheres de Lajedo de que talvez D Miúda não quisesse conversar comigo pois a parteira estava sendo atormentada por algumas visagens Alberto que à época ocupava o cargo de presidente da associação me acompanhou na primeira visita a D Miúda Os pais de D Miúda foram os primeiros moradores da região de Várzea Comprida e ela é a residente mais velha do local Eu a encontrei trabalhando em sua roça de mandioca e andu Ela me pareceu uma senhora alegre e bastante lúcida embora preocupada com a doença da filha que à época estava internada no hospital da cidade de Jacobina Assim que me viu D Miúda disparou é você que vive por aí procurando saber da vida do povo do Lajedo Veio me perguntar também Pensei que não vinha me ver porque dos morador véio agora aqui só tem eu mesmo A espontaneidade da acolhida me deixou bastante à vontade e surpreendeu Seu Alberto pois todos as haviam alertado que D Miúda se encontrava meio adoentada e que por isso eu não deveria visitála 204 Imagem nº 31 Dona Miúda Fonte Acervo da pesquisadora Dona Miúda é uma mulher de personalidade forte mora sozinha e reformou recentemente a sua casa Guarda devoção a São Sebastião Ela afirmou não se recordar quando começou a atuar como parteira Após conversarmos por algum tempo D Miúda indagou a moça veio saber como os menino nasce no Lajedo Pode perguntar Nascer aqui é difícil mas com a graça de Jesus e Nossa Senhora nasce Eu fiquei encantada com aquela mulher que parecia antecipar os meus questionamentos Ela relatou como realizava as atividades que a celebrizaram como Mãe Miúda na comunidade do Lajedo Eu não tenho maltratação com mulher que eu sou mulher também Eu só pego o menino na força de Deus e de Nossa Senhora Nunca morreu uma mulher em minha mão nem teve um menino que não vingasse De minha vida toda sá menina só precisei acompanhar duas mulher pra Saúde 205 Uma foi comade Dália mas nasceu no caminho mas o resto nasceu tudo aqui Aqui nessa Várzea Comprida peguei esses menino tudo Peguei Beto aí que você tá vendo Tem que ter fé Por que às vezes a mulher não despacha Aí é preciso oração278 Isso é coisa que não pode dizer Arruda e caatinga de bode arruda e caatinga de bode dentro de uma cabaça e às vezes amarrar a dona do corpo279 Às vezes a dona do corpo tem que ser amarrada Isso é coisa que não pode dizerChama por Deus pra dar força à mãe e o menino nasce Domingas Rosalina dos Santos 78 anos em 22082016 Imagem nº 32 Dona Miúda arrumando lenha em sua cozinha Fonte Acervo da pesquisadora 278 Dona Miúda não desejou falar sobre a oração Ela se absteve em informar isso é coisa que não pode dizer 279 Mediante sucessivas indagações de minha parte a interlocutora explicou que a dona do corpo consiste em uma horta lateral que a mulher possui Essa horta se movimenta e por vezes é preciso rezar para acalmar e amarrar Para a senhora Miúda a dona do corpo é equivalente à força e ou a saúde da mulher Ainda segundo suas concepções é por isso que existe o período de resguardo isto é com a finalidade de reestabelecer a saúde da dona do corpo 206 421 RITOS DE PARIÇÃO Do período de gestação ao nascimento da criança as mulheres cumprem ciclos de um mesmo rito280 iniciados de acordo com D Miúda quando a gestação é anunciada Nesse momento cabe às mães ou às sogras deitar uma galinha281 para de sua ninhada retirar alguns frangos e castrálos no terceiro ou quarto mês de gravidez Esses frangos serão utilizados para preparar o pirão da parida282 Durante o período de gestação devese evitar fazer bramuras283 pois as mulheres precisam estar saudáveis e ter força suficiente para colaborar com a atividade da parteira contribuindo para que o seu filho a venha ao mundo a esse mundo por que no mundo o menino já tá A gente é que num sabe afirmou D Miúda As dores do parto ocorrem no segundo ciclo e para esse momento as mulheres mantêm em casa uma garrafa de azeite doce que será oportunamente utilizado pela parteira Quando as dores se intensificam a irmã ou a cunhada284 e na ausência dessas a vizinha mais próxima são chamadas pelo marido da parturiente que se desloca para buscar a parteira Enquanto se espera a parteira se ferve um buião285 com ervas como folha de arruda algodão maravilha mamona e caatinga de bode folhas combinadas para o banho de assento da mulher Além de proporcionar o asseio essas ervas estimulam o aumento das contrações A parteira confecciona o unguento macerando as ervas no azeite doce sempre pisado em um caco de barro para ser passado nas partes fina da mulher para amolecer as parte 280 Cunho nesta tese o conceito Ritos de Parição para descrever as fases atravessadas pelas mulheres quilombolas de Lajedo desde a gestação formas de nascimento e resguardo dos filhos as Embora os partos domiciliares não mais aconteçam na comunidade suponho que não seja descabido relatar a riqueza dessas experiências haja vista que mantive a oportunidade de conhecer e conversar com a mulher apontada como a única parteira viva do grupo 281 Mediante o que foi explicado pelas interlocutoras corresponde ao ato de colocar a ave sobre os ovos para que assim possa incubálos 282 De acordo com D Miúda e D Maria do Rosário as mulheres paridas devem preferencialmente comer capãos isto é frangos castrados visto que estes são separados em um puleiro evitando assim que comam toda sorte de comidas e portanto se tornem alimentos adequados a dieta que deve ser seguida por parte da parida 283 Na compreensão externada por D Miúda e outras mulheres do grupo evitar fazer bramuras equivale à abstenção de alguns alimentos considerados carregados conforme foi relatado no Capítulo 1 e abdicar dos trabalhos da roça que são divisados como serviços pesados 284 Essas parentas são trazidas para a casa da gestante ainda no oitavo mês da gravidez com o propósito de passar o período de resguardo Rose na condição de cunhada foi a segunda pessoa a segurar no colo sua sobrinha a pequena Ana Mirela que nasceu em dezembro de 2019 A menina é a primogênita de Zé o filho mais novo de Seu João Colado 285 Como são chamadas as panelas de barro que permanecem rotineiramente no fogo 207 para que elas fiquem bem abertas para facilitar a passagem do bebê Geralmente o trabalho da parteira é auxiliado pela mãe e pela sogra da parturiente Por isso as mulheres do Lajedo se tornam experientes noscasos de parição Com base nos relatos de D Miúda identificamos cinco diferentes tipos de parto286 mediados pela anciã que proporcionaram a continuidade e a renovação da vida entre os atores sociais de Lajedo Para auxiliar a expulsão do feto do útero materno nos partos que se apresentavam como mais fáceis D Miúda oferece alguns goles de cachaça com arruda à parturiente para ajudála a ter mais força para expelir o bebê Caso a parturiente peça é colocada uma rodilha de pano em sua boca para evitar que ela grite e comprometa o processo Nas palavras da anciã Quando eu chegava que olhava a mulher aí eu já sabia se ela tinha condição ou se ia demorar Quando tinha condição eu chamava por Deus e Nossa Senhora Botava mais duas mulher de coragem pra ajudar a segurar uma nos braço e a outra me ajudava no que fosse preciso Aí era só apertar a mãe que a danada paria Com pouco tempo eu já via era a cabeça do menino Graças a Deus Domingas Rosalina dos Santos 78 anos em 15102017 O segundo tipo de parto ocorre quando asituação se complica ou seja quando a criança passa do tempo de nascer causando angústia à família Nessas situações a parteira sugere um método que por vezes assusta os presentes todavia costuma ser eficiente Nesses casos D Miúda solicita às pessoas da casa que amarrem uma corda no caibro do telhado do quarto dandoa à parturiente para puxar O esforço pressiona a saída do bebê ajudandoo a nascer Quando esse método não surte efeito D Miúda aciona dois elementos intercambiáveis coragem e fé em Deus e faz uso de outras técnicas para evitar que a mulher ficasse estrupiada Esse é o terceiro tipo de parto quando a criatividade associada à fé e a sabedoria ancestral são utilizados não apenas pela parteira mas por todas as pessoas que estão na residência O marido é convidado a entrar no quarto e auxiliar na tarefa de desprenhar a mulher 286 Informo ao leitor a que as experiências narradas por D Miúda abrangem toda sua trajetória de parteira Não são relatos circunscritos a comunidade de Lajedo 208 Segundo D Miúda sendo o marido um homem de força compete a ele dar início aos atos de suspender e sacudir cuidadosamente a mulher enquanto a parteira se prepara paraaparar o menino Se isso não surtir efeito as mulheres de coragem e que soubesse entrava no quarto e começava a rezar o Ofício de Nossa Senhora287 À essa altura a parteira solicitava uma gamela288 sobre a qual a parturiente deveria sentar assim tendo início o quarto tipo de parto A parturiente é sustentada por outra mulher enquanto a parteira macerava as folhas nas partes fina em uma labuta insistente pela sobrevivência da mãe e do filho a É um momento crucial Não era toda parteira que enfrentava não pausa Moça eu lhe digo que essa é uma hora que se você não tiver fé em Deus você abandona Porque é muito sofrimento Mas eu chamo por Nossa Senhora que é mãe e aí eu abaixo de Deus faço Que eu nunca deixei mulher na mão Eles aqui sabe disso e as duas que não nasceu por minhas mão eu levei mais os homem pro hospital e os médico tiraram a criança Domingas Rosalina dos Santos 78 anos em 15102017 A anciã se refere ao quinto tipo de parto considerado o mais doloroso consiste em sem anestesia apenas com a ingestão de alguns goles de cachaça para entorpecer e reduzir as dores a parteira corta a puérpera com um ferracho melado na cinza289 É também a parteira quem costura de modo artesanal dando dois ou três pontos nas parte da mulher Quando essas complicações ocorriam o parto podia durar até três dias Findo esse período se não houvesse êxito a parturiente era transportada por parentes e vizinhos e pela 287 As mulheres que rezam o Ofício não podem mais ajudar na operação pois o Ofício de Nossa Senhora é uma oração que não pode ser interrompida Atualmente poucas pessoas na comunidade conhecem essa oração que permanece sabida pelas mulheres de Grota das Oliveiras porquanto muitas delas continuaram e por vezes continuam parindo seus filhos em casa e com a ajuda de parteira 288 Também chamada de aribé Tratase de uma vasilha grande e de madeira que os quilombolas usam para lavar louça pés e quando é necessário fazer o asseio do corpo As mulheres costumam manter várias vasilhas desse tipo em casa cada uma para uma finalidade específica 289 Uma faca quente passada em brasas 209 parteira preferencialmente em uma rede290 para a maternidade do hospital Nossa Senhora da Saúde Mulheres e homens que presenciaram e se envolveram nessas situações adversas destacaram o sentimento de fraternidade que os define como uma parentagem só Transcrevo a seguir algumas narrativas Que eu mesmo já levei muita gente no braço na rede pra Saúde seja mulher pra ganhar menino seja gente doente Ajunta os homens tudo da comunidade e leva Rosa mesmo quando adoeceu botando sangue que não teve vasilha que chegasse teve de ir amuntada passou trinta dias internada pra poder fazer uma cirurgia Depois foi que Deus abençoou que melhorou Quando foi ter as crianças precisou sair daqui em rede e se chega em Saúde e não tem médico tem que levar pra Jacobina Armando João dos Santos 68 anos em 16062016 Segundo os moradores do Lajedo era preciso reunir um batalhão de homens para retirar à parturiente Semelhante estratégia é às vezes empregada para retirar pessoas doentes com destino ao hospital O batalhão que variava entre quinze e vinte homens que se revezavam para alumiar o caminho e carregar a mulher na rede Essa era uma atividade que requeria não apenas habilidade mas também paciência conforme enunciou Seu Joaquim dos Santos Moça podia ser de noite mas tinha que levar Uma mulher tava doida pra parir A gente pegava essa mulher botava na rede e levava pra Saúde Quando a mulher dava aquela dor pior a gente parava e botava a rede no chão E isso era uma vergonha porque não tinha estrada como até hoje não tem Agora mesmo nós vai roçar o caminho de novo Você tá vendo esse prédio de escola aí Tá parado que a maior parte dos pai e mães de família aqui mudou pra Mirangaba por causa da ingratidão dos prefeito de Saúde aqui Joaquim dos Santos 78 anos em 15062016 290 A partir da abertura da estrada e mesmo em dias atuais a rede se constitui um utensílio adquirido por todas as famílias da comunidade A especificidade desse objeto se faz sentir sobretudo na descrita hora da precisão 210 A falta de políticas públicas estimulou o desenvolvimento de práticas que aprimoraram e aprimoram uma autossuficiência uma vez que se encontram praticamente abandonados pela sociedade envolvente Esse abandono político e social que provoca um sentimento de indignação coletiva contribuiu também para ressignificar os laços de parentesco de compadrio e de coesão comunitária Como destacou Seu João Colado A gente fazia assim quando era mulher que ia parir ou assim quando adoecia um chamava a comunidade toda Se tivesse uma rede que cada morador aqui tinha que ter uma rede se a pessoa não tivesse arrumava Aí ajeitava num pau e levava nas costa pra Saúde Eu mesmo cansei de levar Teve uma mulher mesmo aqui na Várzea Comprida o filho dela botou um espeto no fogo Ela sentou de mau jeito aí furou as partes fina Eu tava até rancano mandioca nesse dia aí vieram me chamar Aí nós ajuntou um bucado de homem e levemo nas costa pra Saúde Teve um cunhado meu também que nós ajeitou na rede aí levemo até seu Caboco Aí vem um carro pra pegar ele aí também nós disse que não bota no carro não Nós já trouxe até aqui agora leva até no hospital véio Aí se o dono do doente tivesse condições dava umas cachaça umas bolacha à gente Aí a gente comia deixava lá e ia embora Se não tivesse condição cada um comprava sua bolacha seu líquido era a cachaça a cachaça não faltava João Aceno Gabriel Pereira 45 anos em 03072016 As mulheres principalmente as que precisaram ser retiradas em redes também expressaram seus sentimentos que variaram do riso à revolta pois a caminhada era dolorosa e perigosa e às vezes agravava a situação na qual se encontravam A duração do trajeto era determinada em parte pelo estado da parturiente uma vez que em alguns momentos era preciso parar quando as contrações aumentavam e a parteira informava que a criança ia nascer ali mesmo sob a luz de candeeiro e no meio do mato O trajeto era realizado tanto durante o dia quanto à noite às vezes debaixo de chuva com o rio cheio Após uma reunião da associação de Lajedo D Maria do Rosário relatou que sua penúltima filha nasceu no hospital da cidade de Saúde e que ela foi transportada em uma 211 cama por quinze homens e duas mulheres uma delas solteira291 A criança para a surpresa de todos as acabou nascendo durante o trajeto Como nenhuma das mulheres presentes conhecia os procedimentos pós parto mãe e filha foram conduzidas até o hospital Esse episódio gerou revolta entre os moradores as de Lajedo pois como assinalou D Rosália minha irmã era moça e teve que fazer o parto Então o que é isso Devido às circunstâncias do seu nascimento a filha de D Maria do Rosário foi apelidada pelos parentes de a menina da estrada Outra situação difícil foi a enfrentada por D Idália Parturiente aguardou três dias em sofrimento e sem sucesso o nascimento do seu terceiro filho Zé D Idália foi transportada para a maternidade no lombo de um jumento acompanhada por seu esposo a parteira e por mais dez homens da comunidade Ela foi submetida a uma cesariana O episódio me foi relatado por seu irmão AlbertoVisivelmente chateado ele descreveu uma situação semelhante vivenciada por sua exesposa Era na comunidade Agora é nascido as criança na cidade mas antigamente era tudo aqui Uma vez mesmo minha esposa aqui foi abaixo de Deus a parteira Que a criança nasceu morta nasceu já morta a criancinha Minha irmã mesmo que ela tá aí pra contar passou três dias em cima de uma cama pra parir o menino Aí a gente mesmo que foi conversando conversando Aí montaram ela em um jegue daqui pra Saúde ela sentindo dor e a parteira atrás e os homens atrás Aí ela foi chegou lá no hospital doutor Sérgio foi e tirou a criança dela Tá aí pra contar o caso se tivesse morrido era por quê Porque não tinha socorro Que a gente não tinha uma estrada Agora hoje em dia pra gente umas coisas tem outras não O médico vem aqui uma vez por mês fica num ponto Numa casa e todo mundo vai lá Alberto Santana de Azevedo 48 anos em 16062016 Em meio a sorrisos e protestos os quilombolas sertanejos do Lajedo relataram as suas idas ao hospital Nessas ocasiões atraíam a atenção de populares pois saiam de casa sem se ajeitar para prestar o socorro e quase sempre chegavam ao hospital com a roupa e o 291 Nessa ocasião a parteira se encontrava ausente da comunidade 212 corpo sujos de lama Não poupavam esforços para assegurar o bemestar do paciente As mulheres além de ser retiradas de suas casas sem os recursos apropriados por vezes necessitavam permanecer afastadas de seus outros filhos as e regressavam a pé ou montadas em um jumento Como descreveu D Rosa Eu mesmo minhas meninas quando eu ganhei eu tive que sair de rede daqui A primeira e a segunda porque não tinha carro não tinha transporte né E aí tinha que esperar ficar boa a criança ficar durinha pra voltar pra casa de pé Rosália Matias dos Santos 65 anos em 03072016 Todavia o nascimento da criança coroava os esforços principalmente se ocorria na casa dos pais pois então era possível celebrar com os parentes da região os compadrescomadres e vizinhos Assim ponderou Seu Antônio José Clementino conhecido como Heranga sobrinho de D Miúda Que até filho meu já nasceu aqui Nasceu dois No caso mesmo de minha esposa no dia só tava eu e minha mãe e minha mãe não era parteira mas era experiente véia no ramo Aí foi ela que ajudou e com a graça de Deus deu certo Antônio José Clementino 40 anos em 02072016 Os quilombolas do Lajedo comunicam o nascimento de seus filhos as à família expandida pronunciando a louvação Viva a Nosso Senhor Jesus Cristo soltando fogos ou disparando tiros para o alto Para anunciar tanto o nascimento292 quanto a chegada do novo habitante do lugar os pais mantêm por hábito disparar três foguetes ou tiros quando se trata de um menino e dois para anunciar que é uma menina Além disso abrem uma garrafa de cachaça guardada para a comemoração O primeiro gole é do pai o segundo é oferecido ao padrinho da criança Em seguida a garrafa é compartilhada entre os presentes 292 De acordo com as mulheres do grupo caso não haja tempo a criança ainda nasce em casa visto que todas elas possuem experiência nesse tipo de atividade O que houve é que após a abertura da estrada os sofrimentos demasiadamente enfrentados durante o parto passaram a ser evitados pois não há motivo para colocar em risco a vida da mãe e do infante 213 Como explicou D Miúda aqui tem que comemorar minha fia que aqui nós se alegra com tudo É mais um valente chegando no mundo Após o nascimento da criança se estabelecia um novo vínculo entre D Miúda e a parturiente Elas se tornavam comadres Para a mãe da criança se iniciava uma nova fase caracterizada pelos cuidados do resguardo o último ciclo dos Ritos de Parição As prescrições relativas ao resguardo quando seguidas fielmente regulam a saúde feminina são cuidados prescritos não apenas pela parteira mas por todas as mulheres mais velhas especialmente mães e sogras Elas são depositárias de conhecimentos de saberes da resistência pois caucionam a saúde e atestam a continuidade da vida por meio de banhos de ervas chás infusões benzimentos e orações manuseados com fé e respeito As mulheres de Lajedo não se sentem à vontade para comentar sobre a dieta do resguardo na frente de seus maridos pois eles não são receptivos a todas as etapas que a caracterizam principalmente a abstinência sexual Por esse motivo durante a dieta do resguardo é comum à mãe da parturiente deslocarse para a residência do casal com o fim de assegurar à mulher a abstinencia sexual pois quando ela não é observada pode ocorrer uma gravidez sucessiva desencadeando problemas que afetam a saúde da mulher Tratase de uma relação de opressão entre agentes estruturalmente oprimidos em termos de classe e raça e no âmbito da qual o homem o cônjuge masculino oprime adicionalmente a mulher em uma clara intersecção de gênero O contexto forças econômicas culturais e sociais colabora para colocar as mulheres em uma posição onde acabam sendo afetadas por outros sistemas de subordinação CRESHAW 2002 p 176 É oportuno também referir à alternativa que no caso referido é acionada para contornar o constrangimento de caráter sexual passível de ser causado pelo cônjuge masculino sobre o feminino ie a presença da sogramãe que ali está principalmente como pessoa moral MAUSS 1974 em decorrência da relação de parentesco e senioridade um claro sinal de que falta à cônjuge feminina o que parece exceder no homem ou seja condições objetivas para exercer a sua vontade autônoma Na sociologia Weberiana como é sabido a dominação constitui um caso especial de poder caracterizado pela possibilidade de impor ao comportamento de terceiros a vontade própria WEBER 1991 p 187 214 Nesse período os banhos de assento costumam ser executados mormente o banho de arruda e da pedra una293 Porém o corpo apenas deve ser lavado após transcorridos três dias do parto e o cabelo após um intervalo de trinta dias Todavia segundo D Mariene tem mulher que só lava a cabeça com noventa dias As mais véia que era assim Eu lavo com menos que isso depende é da pessoa Nos primeiros trinta dias do resguardo a mulher permanece em casa evitando contato com o terreiro e a malhada Ela deve se esquivar de escutar barulhos fortes passar sustos e ter quaisquer contrariedades para não quebrar o resguardo294 Os três primeiros dias que sucedem o parto são considerados fundamentais tanto para as mulheres que parem em casa quanto para as que regressam do hospital Elas devem ficar reclusas no quarto com os ouvidos tapados um lenço amarrado na cabeça e calçadas com meias preferencialmente do marido Concluído esse breve período de recolhimento nas palavras de D Maria do Rosárioa mulher vem e senta na porta do quarto em riba de uma esteira pra comer o pirão da parida O período do puerpério é vigiado sempre pelas mulheres da casa as mães e as sogras são guardiãs dessa observância ao passo que as mulheres solteiras só observam pois não é recomendado que opinem No entanto todas elas aprendem esses saberes que cada uma possivelmente desenvolverá a seu turno Os primeiros dias que sucedem o parto também seguem em estado de vigilância para o bebê pois a circunspeção do umbigo precisa ser assistida pela parteira ou pelas avós materna e ou paterna As mães temem que seus filhos venham a padecer do que descreveram e descrevem como o mal de sete dias295 que é uma doença que ataca o imbigo da criança Para evitála realizam um procedimento conhecido como a cura do imbigo através do uso do pó de couro296 No sétimo dia de vida do recémnascido não o retiram do quarto evitam banhálo e o vestem com uma roupa vermelha esses cuidados iniciados pela manhã são estendidos até o período noturno quando os pais se furtam de 293 Cientificamente conhecida como Pedra Hume 294 As mulheres de Lajedo acreditam que o período referente ao puerpério precisa ser respeitado pois quando acontece de forma contrária não apenas a saúde física da mulher fica abalada como também a saúde psicológica podendo resultar até mesmo em loucura Foi colocado pelas mesmas que caso o resguardo seja quebrado o sangue pode subir pra cabeça e a mulher enlouquece 295 A medicina tradicional denomina de tétano neonatal 296 As interlocutoras explicaram que o coto umbilical do recémnascido é realizado a partir do uso de um pedaço de sola torrado ao fogo que após esse processo é transformado em polvilho e utilizado como cicatrizante 215 deixar o quarto no escuro Os primeiros sete dias da vida da criança são temidos e seu término é sinônimo de alívio para a família Para os membros da comunidade de Lajedo os cuidados com o umbigo também são necessários pois conforme os ensinamentos de D Miúda o umbigo influencia a natureza da pessoa equivale à semente da pessoa Portanto negligenciar os cuidados com o umbigo pode cortar ou influenciar negativamente a sorte de outrem Motivo pelo qual enfatizaram e enfatizam que é preciso guardar o umbigo em uma tirinha de pano cada filho de uma cor pra não misturar como detalhado por D Roxa para depois de grandinho o menino enterrar na porteira do curral para ajudar ele ser rico ou na biqueira da casa debaixo de um pé de tangerina pra ajudar a criança ter sorte boa É preciso evitar que o umbigo seja roído por um rato uma vez que se acredita que isso influenciaria negativamente a natureza da pessoa comprometendo o seu caráter Como destacou D Roxa você conheceu meus fio meus neto sabe que é tudo fraco mas é gente de bem Eu enterrei os imbigo tudo Chamei eles tudo e enterrei Deu tudo trabalhador Você enterra o imbigo do menino fora da vista dele Manda ele passar por riba aí pergunta menino tu passou por riba de quê Se ele responder assim de meu imbigo Aí os mais véio dizia que era um adivinhão que tinha sabedoria Já teve gente assim Lá no Lajedo mesmo já teve O avô do Beto que era um sabido Eulina Carmelina de Santana 75 anos em 10112017 Sobre as artes do nascimento as famílias de Lajedo informaram que é preciso assuntá o nascer da pessoa haja vista que essa circunstância não representa apenas o princípio da vida ao contrário disso Afirmaram que as situações que envolvem o ato de vir ao mundo são potencialmente capazes de interferir na personalidade dos sujeitos Como ressaltou Seu Gilberto Pai mais meu avô dizia assim se nasce de madrugada é trabalhador é ligeiro Se nasce de dia é agitado é valente Se nasce de noite é do tipo sossegado assim desse povo que fica bem com tudo Tudo pra eles é bom 216 Mãe mais pai dizia que eu nasci assim de manhã Então deve ser por isso que eu sou assim agitado disposto É aqui a gente conta assim Gilberto Inocêncio dos Santos 47 anos em 15042018 Presumo que para seguir estuciando e ajudando a natureza as pessoas que nascem na comunidade de Lajedo devem ser assistidas ao longo de suas existências contando com a orientação de suas mães297 biológica de imbigo e por vezes de leite Esses laços afetuosos são quase sempre entrelaçados pelos laços da parentagem pois como argumentaram em variadas situações da pesquisa aqui a parentagem nossa é grande 43 ARTES DO CASAMENTO A pila do arroz do casamento é um fato muito esperado pelas famílias Quando um jovem anuncia seu matrimônio seja com uma moça da comunidade ou de comunidades vizinhas a notícia é recebida com contentamento tendo em vista que é o ciclo da vida em fluxo com a construção de uma nova moradia298 e a perpetuação do nome dos antepassados299 Quando é a moça que vai se casar com um rapaz de outra comunidade ou das cidades de Saúde ou Mirangaba predomina uma atitude de aceitação pois ela poderá ter oportunidade de ascender socialmente vivendo no meio urbano Além disso mais tarde sua casa na cidade poderá servir de amparo aos pais idosos pois embora eles não desejem abandonar o território quilombola encaram positivamente que as filhas após o casamento passem a residir na cidade pois isso não representa uma ruptura com os laços de parentesco com os que ficaram Muito pelo contrário se observa um estreitamento das comunicações entre a comunidade e o meio urbano pois os seus pais e os parentes mais 297 A autoridade da mãe de imbigo e da mãe de leite não acontece na mesma proporção que a autoridade da mãe biológica ao contrário costuma antes ser permitida por ela 298 A moça sempre vai residir na região de origem do rapaz mesmo que ela seja moradora de comunidades vizinhas Há uma preocupação generalizada por parte das famílias no que se refere a uniões de seus filhos com moças da cidade pois acreditam que o casamento raramente dará certo uma vez que a moça pode não se acostumar com a vida sofrida do lugar As mulheres da comunidade relataram alguns casos em que a união se desfez por esse motivo 299 Conforme já foi explicado cada região de Lajedo possui até os dias atuais o nome do ancestral fundador 217 próximos utilizarão a sua casa como ponto de apoio durante as idas ao médico e principalmente durante os dias de feira livre A ideia de casamento passou a ser a principal temática das conversações na casa de D Idália e de Seu João Colado Desde o final de 2017 o casal tem dividido o tempo entre as ocupações na roça nas feiras e supervisionando a construção da casa de seu filho mais velho O rapaz trabalha há alguns anos em Minas Gerais e visitou a família em dezembro de 2016 ocasião em que anunciou a sua união com uma moça da comunidade de Coqueiros300 D Idália e Seu João Colado também externaram satisfação com a notícia do casamento de sua filha Rose com um rapaz da comunidade de Palmeira Entre novembro de 2017 e fevereiro de 2018 Rose residiu na cidade de Prata em Minas Gerais servindo uma tia durante o ciclo do resguardo Moisés o noivo esperou o seu regresso que ocorreu em fevereiro A atitude respeitosa do rapaz fortaleceu a simpatia dos futuros sogros Atualmente há poucos jovens em Lajedo Quando indaguei sobre isso a D Mariene ela afirmou que as moças haviam se casado e ido embora posteriormente ela revelou o motivo da redução de indivíduos jovens no povoado Durante algum tempo os casais passaram a evitar o nascimento de novos filhos pois a comunidade fora acometida por um surto de leishmaniose e muitas crianças pereceram Esse é um tema evitado pelos moradores as porque além de todo sofrimento emocional que suscita estigmatizou a comunidade quilombola na região Segundo D Mariene muitos moradores do município de Saúde evitam ir a Lajedo temendo se contaminar através do contato com a água e o solo da comunidade Em 2016 D Mariene e Seu Gilberto permaneceram por quase seis meses em Salvador acompanhando o tratamento de um dos filhos que fora infectado por essa doença Assim com uma população jovem em declínio a pila do arroz do casamento reduziu a intensidade e atualmente a comunidade de Lajedo é constituída basicamente por adultos e crianças No período em que estive em campo havia apenas doze jovens na comunidade entre catorze e dezesseis anos de idade Uma preocupação por parte das mães ante às possíveis uniões matrimoniais é se o sangue vai combinar pois quando o sangue não combina um dos cônjuges adoece e a 300 Geralmente os rapazes solteiros quando saem para trabalhar em outros estados são incentivados pelos pais a apenas retornarem ao lar quando tiverem construído sua própria casa e comprado uma moto Essas duas atitudes são interpretadas pelo grupo como sinônimo de independência financeira 218 união pode ficar comprometida Quando após o casamento o casal não engorda e ambos passam a aparentar uma magreza que antes não exibiam os comentários começam a surgir e a mãe da moça se aflige profundamente passando a orientar melhor a filha sobre os cuidados de uma dona de casa Para a mulher essa é uma situação constrangedora pois o retorno à casa dos pais desperta a inquietação e traz a desonra à família Os interlocutores as acreditam que as mulheres vivem melhor quando estão casadas por isso evitam que as moças fiquem solteiras e que as mulheres permaneçam viúvas não há viúvas na comunidade301 Embora haja um incentivo coletivo para o casamento as uniões entre os primos de primeiro grau são combatidas e evitadas Na concepção de D Narcisa primo irmão não pode casar que a criança nasce com defeito É preciso respeitar Já as uniões matrimoniais entre primos de segundo grau costumam ser incentivadas e consentidas O casamento informal é uma contrariedade e algumas mulheres que se encontram nessa situação se ressentem desse fato viver junto sem oficializar a união não é algo bem visto pelos pais parentes e vizinhos Em 2010 foram realizados casamentos e batizados coletivos no terreiro da casa de Seu João Colado302 Atualmente os casais que vivem juntos atribuem essa situação a dificuldades econômicas para realizar a festa que representa um acontecimento na comunidade de Lajedo e pode durar dias A cerimônia de casamento tanto em tempos passados quanto no presente ocorre na cidade de Saúde em Santa Cruz do Coqueiro e por vezes em Mirangaba Já as festas são realizadas em Lajedo e duram entre dois e três dias As comemorações têm início na véspera quando os familiares e amigos saudam a pila do arroz Segundo D Nóia essa expressão tem origem no costume dos antigo quando o arroz era apisado no pilão Embora ainda existam muitos pilões nas cozinhas das casas esses utensílios já não são usados com a mesma finalidade de outrora A comemoração da véspera simboliza a despedida da noiva da casa dos pais Participam prioritariamente da festividade os parentes da região que passam o dia em preparação para a grande festa do 301 Entre as pessoas idosas que migraram para Saúde há três mulheres viúvas e o motivo apresentado para a saída das mesmas da comunidade foi prioritariamente o falecimento dos esposos 302 O padre que se dirigiu até a comunidade era proveniente da cidade de Mirangaba O religioso se deslocou montado a cavalo para atender um pedido feito pela direção da Associação Quilombola 219 dia seguinte quando receberão a família expandida das outras regiões do território bem como de comunidades vizinhas303 A pila do arroz conta com a participação das mulheres que querem ou podem ajudar a matar e temperar as galinhas que serão consumidas no dia seguinte Buscar a bebida e abater os porcos são tarefas delegadas aos homens Segundo as narrativas orais os pais e avós dos interlocutores de Lajedo iam a pé arrumados para a realização da cerimônia do casamento religioso em Saúde Atualmente quando há um casamento em Saúde os noivos e seus familiares se arrumam para a cerimônia nas casas dos parentes mais velhos residentes na cidade Em função das dificuldades enfrentadas para se deslocar até a cidade de Saúde os moradores do Lajedo têm preferido se casar em Mirangaba ou em Santa Cruz do Coqueiro Em Mirangaba eles podem realizar tanto o casamento religioso quanto o civil Os casais com mais de trinta anos de idade oficializaram a sua união matrimonial em Saúde As noivas faziam o trajeto montadas em um jumento enquanto o noivo e os demais parentes caminhavam de três a quatro horas para chegar à cidade Retornavam para Lajedo invariavelmente no final do dia ou à noite quando a chegada do novo casal era festejada com fogos e três mesas encarreadas304 eram preparadas para felicitar os noivos os padrinhos e os convidados classificados como especiais305 D Idália relatou que a festa de seu casamento durou quatro dias foi a confraternização que mais se prolongou entre os casais de sua geração A comemoração só terminou após a intervenção de sua mãe que advertiu os presentes sobre a necessidade de retomarem as suas rotinas diárias No dia de meu casamento a gente saiu daqui duas horas da manhã pra casar oito horas Saiu de casa de a pé um monte de gente só que a gente 303 Durante o período em que estive em campo mantive ocasião de presenciar apenas uma festa de casamento portanto boa parte da narrativa desenvolvida a esse respeito foi construída levandose em consideração o que foi dito pelos membros de Lajedo 304 O sentido emprestado a essa expressão correspondia e corresponde à atitude de colocar três mesas postas uma ao lado da outra contendo comidas e bebidas A primeira mesa costuma ser maior que as demais visto que é reservada aos noivos e seus padrinhos 305 A condição especial atribuída ao convidado a quase sempre remete ao vínculo de amizade que o liga aos noivos ou ainda essa circunstância pode estar relacionada ao fato do mesmo a residir na cidade Esse tipo de comportamento não suscita qualquer desarmonia interna ao contrário faz parte do critério adotado pelas pessoas do grupo para oferecerem um tratamento diferenciado e positivo aqueles as que vem de fora 220 se trocava lá na Saúde Aí saiu um monte de gente de a pé madrugada adentro com candeeiro lumiando Teve festa antes e a noite toda A noite toda teve festa Meus sogros meus cunhado um monte de gente ficaram aí dançando a noite toda e a gente saiu duas horas da manhã pra oito horas tá em Saúde Foi pra casa de um conhecido de seu Nocêncio tomou banho que era um povo amigo de Seu Nocêncio Depois pra vim de lá de novo segurando essa roupa uma pegava de um lado outra de outro Cheguemo aqui tudo escurecendo e a festa era três dias de festa O tocador era um que chamava Mael esse homem era afamado em festa Pagou esse homem aí depois de três dias no outro dia meiodia foi obrigado minha mãe se zangar por que os povo era pra parar Minha mãe dizia já deu meu povo E o povo dançando Meu Deus Mais de três dias de festa Depois era pertinho Eu vim pra minha casa Idália Santana de Azevedo 45 anos em 15102017 Segundo Seu Joaquim já houve casamento em que a festa se estendeu por oito dias O prosseguimento ou a interrupção da festa estão condicionados à situação econômica do pai da noiva assim como ao gosto que tem com a união da filha Aqui casa em Mirangaba ou na Saúde e vem pra aqui As festa aqui é de sanfona é O casamento aqui dura dois dias ou mais Assim hoje é a véspera Comemora a véspera Aí vai e casa vem pra aqui e comemora o dia Quem puder comemora mais Que já teve casamento aqui de comemorar até oito dias Joaquim Santana de Azevedo 42 anos em 17062016 Seu Timóteo que participava da conversa acrescentou mas por ser fraco aqui quando casa não deixa de ter alguma coisa Se os pai de tudo não pode os parente ajeita Que aqui a parentagem é tudo de um tipo só Os quilombolas relataram que após a abertura da estrada os noivos e seus parentes saem da comunidade em caminhões e se encontram defronte à igreja retornando após a realização da cerimônia 221 O casamento em Lajedo é um agenciamento cujo valor remete à longevidade e à honra do nome da família Portanto é preciso celebrar As festas são rituais de reafirmação da resistência no território e a renovação de suas tradições Como destacou Lília Shuwarcz 2012 o ritual não expressa simplesmente a realidade social mas também a produz conferindo significado e reconhecendo as articulações que viabilizam a manutenção dessa realidade No caso da população de Lajedo o simbolismo da realização e do prolongamento das festas de casamento remete à força dos membros da comunidade e à sua especificidade étnica Com as celebrações eles contrariam as expectativas da sociedade envolvente fazem uma pausa no som de seus instrumentos de trabalho substituindoos pela alegria produzida no som do dedilhar da sanfona tal como nos ecos estridentes das vozes das mulheres que felizes cantam e cumprimentam mais uma moça que contribuiu para a permanência de seus parentes naquele território reforçando a presença secular dos pretos do Quitero no espaço que elegeram para viver A realização das festas estimula os habitantes de Lajedo a refletir sobre quem verdadeiramente são e a demonstrar isso para as crianças que mais tarde poderão seguir essa mesma trajetória A esperança se expressa na alegria da dança no estourar dos fogos que anunciam o nascimento de mais uma família e na representação de papéis que marcam suas escolhas de vida consoante o enunciado por Mauss 1974 a festa é o fato social total do qual se faz a leitura das vidas e lidas de um povo Em pesquisa realizada sobre a diversidade das festas quilombolas Glória Moura 2012 p 110 comparou esses eventos a uma lente microscópica através da qual se pode entrever múltiplas relações microssociais e valores que vão do parentesco ao meio ambiente do calendário agrícola ao respeito pelos mais velhos da produção artesanal à história dos ancestrais da liderança feminina ao conhecimento das plantas das relações de afetividade a valores humanos fundamentais Para os quilombolas de Lajedo as festas de casamento constituem um ritual que atualiza a pertença consentida desses homens mulheres e crianças que se definem como uma única família e que ao aumentar sua parentagem permanecem comungando e ressignificando os estilos de vida que os distinguem como os descendentes do Quitero O casamento de Rose foi um dos fatos mais comentados na região dos Félix haja vista que há bastante tempo os membros haviam celebrado essa cerimônia com a tradicionalidade observada em tempos pretéritos isto é com a realização dos trâmites religioso e civil na cidade seguidos da comemoração na comunidade Embora a festa tenha 222 sido realizada em Palmeira local onde os noivos passaram a residir após o enlace matrimonial os moradores de Lajedo compareceram e havia certa emoção no olhar das pessoas que pareciam reviver suas experiências individuais e coletivas Rose e Moisés escolheram a data de 01 de dezembro de 2018 para oficializar a união consentida tanto pela família do noivo quanto da noiva As comemorações foram iniciadas em 30 de novembro quando começaram a chegar os convidados as oriundos das comunidades mais distantes e que desejavam celebrar esse momento tão significativo na vida de parentes que se estimam São pessoas que além de terem ido com o propósito de festejar anteciparam a sua chegada para auxiliar no que se fizesse necessário e não sobrecarregar os pais dos noivos Tratase de coletivos que se encontram e renovam seus sentimentos de solidariedade familiar e étnica A Grota Quilombola se mobilizou para assistir o casamento da filha de João Colado Embora os pais da noiva tivessem contratado os serviços de um bufê realizando uma inovação na tradição do lugar durante a sextafeira o sábado no período diurno e o domingo as mulheres e homens de Lajedo e Palmeira se desdobraram em esforços para colaborar com a festa acomodando convidados em suas casas lhes providenciando o banho e as refeições Além disso contribuíram para que a cerimônia ocorresse conforme a vontade dos noivos Seu João Colado entrou no salão às 19h30 conduzindo Rose ao altar especialmente montado e ornamentado para a ocasião Poucas vezes Seu João Colado expressou tamanha serenidade e visível satisfação Além de ser sua única filha Rose desperta um sentimento de bem querer nas pessoas em função de sua delicadeza e presteza para com todos as que a procuram O casamento para a população de Lajedo é mais que uma mera formalidade de cunho social Ele é concebido como um parâmetro culturalmente tecido pelos ancestrais que assegura a continuidade da existência do grupo O novo casal também assume responsabilidades coletivas como os demais membros da comunidade Quando Rose mencionou que iria morar em Palmeira destacou mas a senhora não pense que eu vou sair daqui não Vou ficar o tempo todo aqui mais tempo aqui na casa de mãe do que lá Assim reforçou o seu pertencimento à comunidade de Lajedo participando ativamente das lutas e labutas políticas econômicas306 e sociais Rose incorporou uma rotina que lhe permite 306 Após o casamento Rose continuou desenvolvendo suas atividades agrícolas e comerciais agora ao lado dos pais do irmão e do esposo 223 participar dos modos de vida de ambas as comunidades sucedendo outras mulheres em condição análoga A festa realizada após a cerimônia de casamento de Rose promoveu a interação com a parentagem do lugar com os as que por motivos diversos migraram e com os parentes e compadres das comunidades vizinhas Nas festas de casamento esses atores sociais se reencontram e reafirmam os laços que os aproximam e os mantém interligados por gerações Afirmam e redefinem papéis no grupo de lideranças femininas e masculinas de agentes fomentadores de práticas culturais de orientadores as religiosos rezadores as e de coordenadores as de atividades ligadas ao catolicismo rural A ritualística que envolve as festas de casamento é percebida nesta tese como um dos vieses pelos quais os moradores de Lajedo constroem a sua identidade s Segundo Seu Armando pai de duas mulheres um genro é mais um filho e portanto um braço forte para as labutas da roça e da feira ao passo que uma nora simboliza para a sogra tanto uma ampliação do exercício da sua autoridade307 quanto um apoio para as necessidades cotidianas em um contexto marcado por relações próximas no qual a solidariedade feminina é muito valorizada observada desde a colaboração na criação dos filhos nos conselhos que fomentam a estabilidade do casamento bem como nos favores recíprocos que uma mulher presta e recebe da outra Em um ambiente caracterizado por um total abandono do poder público a população local atua como agenciadora de mecanismos capazes de criar e recriar as condições necessárias para assegurar a sua perpetuação enquanto grupo etnicamente diferenciado As boas noras na definição de D Mariene são tratadas como filhas e não costumam despertar ciúmes entre as cunhadas No entanto quando as noras não são receptivas às orientações e não se integram à família do marido308 acabam ocasionando um distanciamento entre mãe e filho Quando isso ocorre segundo as mulheres de Lajedo o fluxo da vida é perturbado pois nesse triângulo regido pela animosidade um entre os três costuma adoecer e nesse momento cabe ao sogro pai do marido interferir para contornar a 307 As moças quando constituem matrimônio mesmo quando vão morar em suas próprias residências sabem que devem respeito e obediência às sogras devendo inclusive lhes pedir a bênção assim como fazem com suas mães A inimizade entre sogra e nora é vista como sinônimo de muito desgosto na comunidade e segundo explicaram pode atrasar a sorte do casal 308 Notei que mesmo quando os interlocutores as afirmaram que constituem uma só parentagem reivindicam dos sujeitos mais novos uma atitude de solicitude e respeito à hierarquia familiar 224 situação O nascimento do primeiro neto é uma boa ocasião para dissolver as tensões entre noras e sogras e restaurar a harmonia familiar Quando a intriga persiste levando a uma ruptura nas relações as mães podem retirar a bênção do filho e dos netos As mulheres de Lajedo relataram alguns episódios309 que tiveram esse desfecho que segundo D Maria do Rosário atrasa a sorte do casal porque minha fia triste do fio que a mãe olhar com maus olhos Quando indaguei à interlocutora sobre o significado desse atraso ela explicou que é um bloqueio que afeta diretamente as condições da vida do casal porquanto a vivência fica conturbada as finanças não prosperam porque a produção agrícola pouco vinga o buxo da mulher também fica fechado310 e ela pode demorar um tempo maior que o esperado para gerar uma criança fato que suscita comentários entre os parentes e vizinhos Além disso a convivência entre os cônjuges fica atropelada Essas afecções produzidas na vida do casal são geralmente atribuídas à paixão da sogra que se sente desfeiteada pelas atitudes da nora Para restabelecer a harmonia na família e cessar os efeitos que os sentimentos de pesar nutridos pela sogra lançam sobre o casal é necessário que os envolvidos na contenda façam as pazes 44 ARTES DA MIGRAÇÃO Os pais da geração adulta da comunidade de Lajedo migram para outros espaços quando chegam à terceira idade Deixam suas terras e a antiga casa aos cuidados de filhos as e netos as Esses atores sociais que dedicaram uma parte significativa de suas vidas às atividades agrícolas um legado de seus ancestrais quando se aposentam adquirem uma casa na cidade de Saúde e lá fixam residência Em Saúde quando da escrita desta tese havia sete anciãos residindo em ruas periféricas nas imediações do bairro da rodoviária Residem próximos uns aos outros e interagem com frequência São conhecidos como os Quitero do Lajedo 309 Por se tratar de circunstâncias que envolvem as subjetividades dos interlocutores as bem como a privacidade de suas famílias opto por não as citar nominalmente 310 O significado que as mulheres de Lajedo emprestam a expressão buxo fechado está relacionado ao retardo da maternidade pois de acordo com o que foi explicado pelas interlocutoras uma mulher má não pode parir um filho 225 NOME IDADE REGIÃO DE ORIGEM TEMPO QUE SE ENCONTRA MORANDO EM SAÚDE Dejanira Maria de Jesus Dona Deja 98 anos Região dos Aprígio 20 anos Eulina Carmelina de Santana Dona Roxa 75 anos Região dos Félix 13 anos Euvira Passos de Sena Dona Nega 77 anos Região dos Inocêncio 12 anos Francisco João dos Santos Seu Sariabo 81 anos Região dos Aprígio 10 anos Giseli Juraci Santos de Jesus Dona Roxa 73 anos Região dos Inocêncio 10 anos Judite Lauzira de Jesus 75 anos Região dos Inocêncio 08 anos Maria Rosa dos Santos Dona Maria de Chico 57 anos Região dos Felix 05 anos Tabela nº 04 Anciãos de Lajedo que residem em Saúde Fonte Elaboração da pesquisadora A primeira idosa a deixar a comunidade foi a senhora Dejanira Maria de Jesus Além de se dedicar à agricultura no Lajedo ela costurava e confeccionava vestidos de noiva atividade que manteve por alguns anos quando passou a residir em Saúde Ela relatou que precisou deixar a comunidade em um momento muito difícil de sua existência quando ficou viúva As casas em Lajedo são muito distantes umas das outras e quando o seu marido faleceu os filhos do casal Armando e Arnaldo estavam em Minas Gerais e em São Paulo trabalhando Dona Deja relembrou as dificuldades enfrentadas quando se 226 mudou para Saúde Ela foi a primeira anciã de Lajedo a tomar essa difícil decisão Atualmente já se adaptou aos rearranjos impostos pela nova vida que precisou construir Dona Deja vai a Lajedo duas vezes por ano visitar os filhos parentes e amigos Apesar da idade avançada ela faz o trajeto de Saúde a Lajedo a pé contornando as serras A segunda anciã que realizou o Rito da Migração311 foi a senhora Eulina Carmelina de Santana D Roxa Ela reside com uma filha em Saúde e semanalmente recebe a visita de sua neta Rose que vende bananas na feira livre da cidade nos dias de sábado D Roxa auxilia Rose na feira tomando conta da banca para que a sua neta possa passear na feira A feira livre de Saúde é um local de reencontro um canal de comunicação entre a população que saiu de Lajedo e os residentes na localidade Eles aproveitam a ocasião para indagar sobre os parentes enviar e receber lembranças e encomendas Os habitantes de Saúde provenientes de Lajedo frequentam a barraca de Seu João Colado onde recebem e enviam recados e presentes variados para seus filhos e netos Entre os mais velhos as D Roxa é a única que visita mensalmente a comunidade de Lajedo em companhia do genro312 e de Rose uma vez que a maior parte de seus filhos313 reside na região dos Félix A senhora Euvira Passos de Sena D Nega a terceira idosa que se mudou do Lajedo informou que passou a residir na cidade por ter perdido a saúde Ela não retornou mais ao Lajedo pois seus filhos também abandonaram a comunidade Alguns residem em Saúde ao lado da mãe outros estão na comunidade negra de Água Fria314 A necessidade de cuidados médicos constantes também ocasionou a transferência do senhor Francisco João dos Santos Seu Sariabo para Saúde Entre piadas e sorrisos Seu Sariabo revelou que não deixou o Lajedo mas foi puxado por suas filhas quando adoeceu Por um período ele continuou visitando as suas roças até sofrer um acidente eu caí do 311 Nomeio de Rito da Migração por entender esse comportamento adotado pelos anciãos do grupo como parte das Artes da Resistência Costume que a população de Lajedo aciona com o propósito de talvez evitar a desertificação do território 312 Conforme já foi relatado o senhor João Colado é pai de Rose e genro de D Roxa No entanto o que torna o interlocutor muito procurado pelos mais velhos é o fato de lhes facultar carona em seu caminhão até a comunidade Além disso João Colado não demonstra qualquer enfado pela realização dos favores que presta entre os idosos e seus parentes que permanecem em Lajedo 313 A anciã possui três filhos nora genro e netos residindo na região dos Félix Os demais se encontravam à época da pesquisa morando e trabalhando no estado de Minas Gerais e na cidade de Saúde 314 A população de Lajedo que migrou e migra para as comunidades de Água Fria e Grota das Oliveiras geralmente preferem esses territórios pela facilidade encontrada para continuar a atividade de tocar suas roças 227 burro informou Adoeceu gravemente e vendeu o animal se conformando com o fato de que doravante não poderia mais fazer o caminho das serras Uma situação semelhante ocorreu com a senhora Giseli Juraci Santos de Jesus D Roxa cuja enfermidade nas pernas motivou a migração forçada da comunidade Dentre todos as os anciãos com os quais conversei e entrevistei a única que declarou estar satisfeita com a transferência para a cidade foi a senhora Judite Lauzira de Jesus Sua mudança para a cidade de Saúde ocorreu após o falecimento do marido Ela adquiriu uma casa na cidade convive atualmente com um homem do local e recebe com frequência a visita do filho o senhor Gilberto que reside na região dos Inocêncio A senhora Maria Rosa dos Santos foi à última anciã de Lajedo a comprar uma casa em Saúde embora visite com frequência a comunidade para cuidar da sua roça Dona Maria de Chico como é conhecida decidiu adquirir uma casa em Saúde quando em um dia de feira após o término de suas atividades ao retornar para a sua residência em Lajedo soube que o filho havia se acidentado e quebrado uma perna A sua condição de viúva associada ao acidente do seu filho influenciaram a sua decisão A facilidade de locomoção facultada pela pouca idade permite que semanalmente D Maria transite entre Lajedo e Saúde uma vez que na comunidade permanece cultivando seus produtos e na cidade os comercializa Os anciãos que se mudaram de Lajedo afirmaram estar conformados com a necessidade de fixar residência na cidade não obstante seis deles tenham externado profunda tristeza ao relatar o processo de adaptação ao estilo de vida urbano Eles sentem saudades de suas terras das criações e se ressentem até mesmo das dificuldades encontradas para acomodar as plantas em casa pois os quintais de suas residências são exíguos Nenhum deles as mora sozinho aos poucos vão puxando os netos e depois os filhos Além disso as suas casas na cidade constituem pontos de apoio para os que ficaram na comunidade Na figura abaixo mapeei as residências dos anciãos do Lajedo na cidade de Saúde 228 Fonte Google Earth Pro Ilustração da Pesquisadora Uma das transformações que a retirada dos mais velhos ocasionou na comunidade de Lajedo foi o relacionamento com a morte e o agenciamento dos ritos fúnebres Em suas narrativas eles as mencionaram a existência de um pequeno cemitério em Lajedo que não conseguiram manter em seu território por se tratar de um local clandestino Como precisavam tratar seus parentes falecidos com o respeito adequado decidiram enterrálos em Santa Cruz do Coqueiro ou na cidade de Saúde onde eles haviam sido registrados315 Antigamente os caixões eram fabricados na própria comunidade pelos senhores Tarcísio e Ricardo Enquanto eles confeccionavam a urna mortuária as mulheres se ocupavam do banho do defunto da costura da mortalha e velavam o corpo morto recitando orações e ofícios À meianoite a população reunida rezava o Ofício de Nossa Senhora Todo o ato 315 Toda a população com mais de dez anos de idade teve seu registro de nascimento expedido em Saúde Observei que esse vínculo pretérito com o município de Saúde é importante para os quilombolas 229 litúrgico de natureza religiosa ficava a cargo das mulheres316 Caso fosse possível a família do falecido a abatia um boi ou um porco cuja carne seria consumida durante o velório e no dia seguinte quando os homens da comunidade levavam nas costas o defunto Para o trajeto fúnebre eram utilizados três jumentos que transportavam a comida e a bebida Os homens seguiam na frente conduzindo o caixão enquanto as mulheres seguiam ao lado incumbidas das orações De acordo com D Deja alguns mortos eram conduzidos em redes para Saúde onde eram enterrados Ochente Trazia pra cá na rede Muita gente já veio Trazia pra cá nas costa nessa serrona aí Por que não passava carro né Às vezes morria trazia pra enterrar aqui Trazia na rede Os homens tudo que trazia e as mulher rezava Era assim Dejanira Maria de Jesus 98 anos em 23062016 Com a adesão dos idosos aos planos funerários que se popularizaram na região e após a abertura da estrada quando falece algum morador do Lajedo a família aciona o plano O caixão é transportado no carro funerário e os parentes seguem de ônibus para o cemitério Caso o falecido a não possua qualquer tipo de plano o caixão é conduzido na caminhonete do senhor João Colado acompanhado pelos parentes A migração para a cidade de Saúde opera uma mudança definitiva nas vidas dos antigos moradores de Lajedo Eles não mais retornarão ao território como moradores alguns não conseguem retornar nem mesmo para uma curta visita Não obstante permanecem cônscios das labutas enfrentadas para assegurar a permanência dos seus no território quilombola por isso declararam que ficam enquanto podem Seu Joaquim relatou que já começou a cogitar a possibilidade de se mudar da comunidade O que eu mais gosto na região é que eu moro na minha sede Aqui é um lugar aberto um lugar solto Eu vou pra rua lá tem diversão mas diversão pra mim é meu criatório Meus bichinhos meu cavalo Uma galinha aqui que na rua não tem criatório Então se eu vou pra rua eu perco tudo Que na rua a gente não tem nada Joaquim dos Santos 75 anos em 15062016 316 O que acontece até os dias atuais 230 Perder tudo na concepção externada por Seu Joaquim não se refere apenas às aquisições de ordem econômica mas à identidade construída da qual abdicam em parte quando migram para Saúde Entretanto esses novos rearranjos nem sempre correspondem às suas subjetividades haja vista a idade cronológica na qual se encontram e também a disparidade entre os modos de vida no meio negro rural e na cidade Portanto essa mudança que por ora se apresenta como obrigatória na vida das pessoas do grupo embora seja percebida como um fato dado e com o qual aprendem a se relacionar é também interpretada nesta tese como um ato de violência velada estimulado pela negligência e abandono da sociedade envolvente já que o poder público não oportuniza a esses agentes melhores condições de vida de sorte que possam optar na velhice entre ficar no território ou migrar para um centro urbano Quase toda a população adulta que reside atualmente em Lajedo já adquiriu uma casa na cidade de Saúde e ou de Mirangaba317 Para D Mariene a mudança para um centro urbano será menos dolorosa caso ela e Seu Gilberto consigam comprar uma casa em Mirangaba318 pois poderão visitar Lajedo com mais frequência em virtude da maior facilidade de acesso em comparação à cidade de Saúde Entre preocupada e triste com a decisão de seu esposo de economizar dinheiro para comprar uma residência na cidade D Mariene desabafou nós só vai embora daqui Paula por motivo de doença e por questão de idade porque nós não tem influência de cidade Ela cogitou essa possibilidade no final de 2015 quando um de seus filhos necessitou de cuidados médicos especializados Quando meu menino adoeceu nós quase pula fora daqui Porque adoeceu desse problema de calasar Aí o povo fica dizendo que é da água do lugar Aí nós quase foi embora daqui Tanta coisa Beto ainda falou de vender Aí Deus abençoou e nós ficou de novo Mariene Isautina dos Santos 47 anos em 16062016 317 A dificuldade pontuada em se adquirir um imóvel nessa cidade é que as casas ou terrenos possuem um valor comercial maior que em Saúde 318 Em meados de 2017 o casal começou a cogitar a possibilidade de comprar uma casa nessa cidade Porém desistiram dessa ideia e em 2019 construíram uma nova residência ao lado da antiga casa de morada em sua região de origem em Lajedo 231 Há entre os quilombolas de Lajedo uma preocupação quando pensam em vender as suas propriedades pois os parentes podem não ter recursos financeiros para adquirilas Nesses casos optase geralmente por permanecer um pouco mais no território para não permitir a entrada de pessoas estranhas que possam perturbar as formas de vida tecidas pelos moradores do lugar Esses sujeitos mantêm portanto a preocupação de cuidar do território no qual residem as memórias de suas resistências e de deixálo como um dos legados de sua ancestralidade de modo que nunca se perca a história inscrita pelos Pretos do Quitero 45 QUANDO OS ECOS PRODUZIDOS PELO BARULHO DO QUILOMBO CHEGAM AO LAJEDO O movimento denominado nesta tese de Barulho do Quilombo se caracteriza de modo especial pelas comunicações estabelecidas entre as comunidades quilombolas que ressurgem e se ressemantizam na região norte da Bahia Embora as comunidades sejam próximas as interações entre elas nem sempre eram frequentes e foram intensificadas pari passo à construção de uma identidade diferenciada etnicamente a partir da descoberta da ancestralidade quilombola O rito de passagem que marca a etnogênese de comunidade negra rural para a construção do significado social de comunidade quilombola é influenciado pelas compreensões do que é dito e vivenciado nas comunidades vizinhas que além de possuirem como atributo principal a negritude partilham laços de parentesco expandidos por relações de compadrio As comunidades negras rurais situadas nas proximidades do Lajedo são grupos que compartilham uma invisibilidade imputada pelo contexto social mais amplo e a marginalização sustentada por estereótipos negativos e racistas que historicamente também são modelados pelo entorno através do embranquecimento epistemológico político e cultural A descoberta e tomada de consciência do ser quilombola reorientam o curso das histórias dessas comunidades A assunção da identidade quilombola não representa a aquisição de status quo mas anuncia interna e externamente que aquele grupo antes estigmatizado por uma trajetória de inferiorização negação de oportunidades e rebaixamento de suas humanidades acorda de um período de dormência e silenciamentos 232 para a construção de sua autoria porque as mudanças coletivas observadas são influenciadas pelas transformações de subjetividades individuais que passam a dialogar entre si sobre temáticas que antes pouco problematizavam As vozes do Lajedo afirmaram que a descoberta de sua tradicionalidade quilombola ocorreu a partir dos diálogos estabelecidos entre o senhor Valmir dos Santos e outros líderes das comunidades de Palmeira e Coqueiros a exemplo de Francisco Durval e da senhora Socorro que começaram em suas respectivas comunidades a desenvolver reflexões e a rememorar as suas histórias Posteriormente outras comunidades negras rurais daquele contínuo étnico também se integraram a esse movimento de compreensão e de reivindicação da pertença quilombola Nesse sentido além de ser divisado como um ato político o Barulho do Quilombo também pode ser compreendido de uma ótica pedagógica tecida nas lutas e labutas desses sujeitos históricos Os interlocutores de Lajedo destacaram tanto nas entrevistas quanto nas conversas informais a relevância do processo do despertar da ancestralidade quilombola em seu território Rapaz Foi um amigo da gente de Tijuaçu Foi ele quem explicou toda procedência nossa Timóteo Joaquim Santos 40 anos em 15062017 Aí devido esse sofrimento essa associação tentou O Mácio Fioquinha acho que ele trabalha hoje em Caldeirão Caldeirão Grande Ele explicou pra nós aceitemos Aí ó escolheram logo eu Disse você é quem vai se debater pra correr pra nós Bem verdade aceitei Agora eu disse que eu não quero política no meio Só que depois veio perturbar um vereador Claudiano Jatobá pegou uns papel ficou seis meses com ele Todo dia eu perguntava rapaz cadê os papel Me fazendo dá viagem ir pra Jacobina de pé Aí eu me chateei fui na ADAB conversei com Eva e contei Ela disse se ele não lhe entregar eu lhe ajudo mas aí nesse dia fui lá e ele disse rapaz à tarde eu lhe entrego Aí me entregou só que não tinha nada feito Aí conversando com o pessoal lá de Saúde disse que tinha uma mulher chamada Maria Rita de São Paulo que disse que tinha vontade de vim aqui que queria ajudar Eu disse pode ir se quiser vim ajudar e quem quiser vim conhecer pode vim ajudar que nós aceita Aí foi ela quem terminou de ajudar e um advogado Paulo Rodrigues ajudou muito Até comprou um terreninho perto de nós depois foi embora 233 Aí passei quatro anos arrumando ela a Associação Quilombola mais dois anos e não quiseram me tirar mas agora já entreguei ela Gilberto Inocêncio dos Santos 47 anos em 17062016 Rapaz Quando foi fundar essa associação aí a gente sempre falou desse povo os Quitero A gente via falar na televisão de comunidade essas coisa Teve um conhecido do Tijuaçu que veio aqui conversando com o povo da Palmeira também A gente via falar de comunidade quilombola Aí a gente viu que era quilombola também por causa da origem das pessoa Antônio José Clementino dos Santos 40 anos em 02072017 Isso aí é por que quando a gente foi registrar a associação a gente ficou sabendo aí em voz altura que a gente aqui é negro Então nós somos todos quilombolas E as nação quilombolas aqui no Brasil aqui é muito bom que isso aqui tá no Brasil inteiro Nós somos quilombolas mesmo Armando João dos Santos 68 anos em 16062016 Em seus discursos os interlocutores as apontaram o fator da comunicação como preponderante para agenciar o entendimento assim como a conversão simbólica que lhes permitiu declarar o reconhecimento e a construção do ser quilombola inclusive conforme enfatizado por Seu Armando ressignificando os usos e sentidos319 em torno do ser negro no contexto do sertão baiano As representações acerca do sentido de ser quilombola de acordo com esses sujeitos estão associadas a dois fatores específicos à negritude e ao sofrimento cotidiano O povo diz e eu não sei se é porque no lugar tem muita gente moreno que trabalha muito risos 319 Para pensar sobre a ressignificação dos usos e sentidos atribuídos a palavra negro assim como sobre a construção social do ser negro me apoio no pensamento do pesquisador Kabengelê Munanga de modo especial nas seguintes obras MUNANGA Kabengelê Negritude usos e sentidos 2ª ed São Paulo Ática 1988 e MUNANGA Kabengelê Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil São Paulo Autêntica 2004 234 Eles fala que o quilombola é mais no lugar que tem muita gente moreno Mas não sei se é verdade né Mariene Isautina dos Santos 47 anos em 14062016 Quilombola é as pessoas de uma comunidade quilombola Ajuda uns os outros Pessoas negras pessoas quilombolas Quando eu comecei dar aula porque a gente estudando sabe o que é o quilombola Por que eu me considero quilombola E eu sou feliz por que eu sou desse jeito quilombola Negra Minha pele Rosália Matias dos Santos 65 anos em 03072016 Quilombola aqui é a descendência dos mais velho Que eu me considero aqui como a raiz dos mais antigo Por que começou aí essa associação E aí gerou que é quilombola todo mundo Quem trouxe a informação aqui foi o Valmir Maria do Rosário de Jesus 70 anos em 010716 Eu me considero porque o quilombola é assim o quilombola é uma pessoa que foi sofrido e unido E a gente além de ser sofrido a gente aqui é unido Nós somos unido na associação Em roça aqui se for botar um batalhão todo mundo vai Aqui nós somo umas pessoa que ainda é unido Não é que nem o povo da capital Que eu já tive em capital e sei o que é um povo que só dá um bom dia uns os outro a pulso E aqui não Aqui a gente somos unido Aqui você chega na casa de um ele dá um cafezinho Se você conta a sua situação divide até a feira Isso é um povo unido Você chega bate o feijão Bate Aí leva um prato leva dois Fez farinha oxe Leva aí dois três prato de farinha A gente somos um povo unido e na cidade não é unido João Aceno Gabriel Pereira 45 anos em 03072016 Além da epiderme negra e do sofrimento mencionados em quase todas as narrativas Seu João Colado ressaltou a união Essa coesão comunitária foi constatada nas vivências 235 de campo nas relações cotidianas estabelecidas com a família domiciliar os parentes compadres e vizinhos da própria região e das demais que constituem o Grotão do Lajedo até as lides nas roças e a atividade comercial nas feiras livres Parece não haver desavenças ou concorrências severas entre esses agentes existindo antes uma solidariedade que os agrega A comunidade de Lajedo foi certificada em 19 de novembro de 2009 Desde então a associação de pequenos agricultores local passou a atuar sob a designação de Associação Comunitária dos Pequenos Produtores Rurais da Comunidade Quilombola de Lajedo ACPPRCQL Imagem nº 33 Reunião da Associação Quilombola Fonte Acervo da pesquisadora 236 Eles iniciaram o ativismo político em torno da causa quilombola se recusam a manter relações com a política partidária e fazem questão de esclarecer esse posicionamento em todas as suas colocações talvez por refutarem algumas posturas assumidas por líderes de comunidades vizinhas que ingressaram na carreira política tornandose vereadores Há uma hostilidade declarada entre os membros de Lajedo contra a interferência negativa de políticos sejam eles prefeitos as vereadores as e ou secretários do executivo municipal As ações desses indivíduos são quase sempre desacreditadas pelas pessoas da comunidade que se percebem desassistidos pelo poder público e se recusam a lhes permitir qualquer interferência sem que haja antes uma discussão prévia um consentimento coletivo Durante as eleições municipais de 2016 a comunidade de Lajedo se recusou a receber candidatos a prefeito Alguns permitiram que seus simpatizantes que foram pedir votos entrassem em suas residências mas não na sede da associação A sede da associação está localizada na região dos Inocêncio e durante a realização da pesquisa estava em construção A ACPPRCQL funciona para esses agentes como um dos símbolos de suas insurgências lutas e resistências visto que tudo tem sido edificado com recursos próprios advindos das mensalidades pagas pelos sócios e de doações auxílios financeiros e mutirões Nas reuniões eles discutem os problemas que afligem o grupo Elas são um palco de diálogo sobre suas vivências cotidianas quando reforçam a fraternidade consolidada pelos laços de família ou como gostam de enfatizar de parentagem 237 CAPÍTULO 5 QUANDO AS RELAÇÕES DE COMPADRIO EXPANDEM OS LAÇOS DO PARENTESCO Depreendese das fontes estudadas que os escravos e forros dessas fazendas sertanejas estiveram envolvidos por relações familiares intensas que ocasionaram a formação de uma comunidade na qual todos estiveram ligados por laços de parentesco fossem consanguíneos ou pelas práticas de compadrio Sendo assim compartilhavam de uma nova identidade gestada em meio às influencias locais bem como do antepassado comum a ascendência africana SILVA 2018 p 26 Imagem nº 34 Encontro entre comadres na comunidade Grota das Oliveiras Fonte Acervo da pesquisadora 238 A professora Rosa mencionou ter saudades de suas duas filhas que residem em São Paulo Entre o descortinar de uma lembrança e outra ela arrematou a dor da saudade é grande Paula Porque parente é que nem conta no rosário de Deus e filho é cordão de ouro do coração da gente Os parentes consanguíneos de modo especial os as filhos as e irmãos as recebem um tratamento diferente dos demais entram e saem das casas uns dos outros sem precisar anunciar a sua chegada compartilham gêneros alimentícios e utensílios diversos sem se preocupar em devolvêlos e realizam favores sem aborrecimentos As tias são quase sempre consideradas madrinhas nem sempre em decorrência do batismo católico As irmãs mais velhas cuja idade em relação aos mais novos excede a diferença de dez anos também são madrinhas entrelaçando as fibras entre os laços de parentesco e as relações de compadrio Durante a minha convivência com as famílias de Lajedo observei que além dos laços do parentesco as relações são consolidadas pelo compadrio O padrinho não é tão prestigiado nomeado apenas por exigência da cerimônia do batismo cristão A madrinha ocupa posição de destaque entre as mulheres e meninas do grupo A primeira madrinha que a criança conhece é a responsável pelo corte do seu cordão umbilical320 as parteiras ou suas avós A segunda madrinha é apontada entre as tias maternas a terceira pode ser escolhida pela própria criança quando toma a bênção a uma mulher por quem sinta afeição durante a SextaFeira Santa A quarta madrinha é frequentemente escolhida pela mãe por critérios de amizade gratidão e ou expectativa de que ela possa auxiliar o a afilhado a no futuro A quarta madrinha é a oficial a do batismo católico Os cursos preparatórios de batismo são realizados em Santa Cruz do Coqueiro ou em Mirangaba As madrinhas irmãs participam ativamente da educação do a afilhado a com a mesma autoridade da mãe Elas são encarregadas da criação dos irmãos mais novos As madrinhas tias são socialmente incumbidas de atenuar as punições maternas acolhendo os as afilhados as em suas casas como filhos as Todavia não reclamam com eles ou lhes dão tarefas Especialmente na região dos Félix onde as residências são muito próximas umas às outras é comum que as crianças façam refeições na casa de suas madrinhas ou permaneçam sob a sua tutela até o final do dia retornando para casa quando seus pais mandar buscar Mesmo após ter se convertido à igreja Cristã do Brasil D 320 Como relatado no Capítulo 4 as parteiras são tomadas como comadre chamadas de mãe e ou de madrinha 239 Idália não se incomoda de ser chamada de madrinha pelos a sobrinhos as eu tenho o conhecimento da palavra mas o amor é o mesmo Isso não tem nada não tô no lugar de madrinha e de tia que aqui a gente é desse jeito As madrinhas de Sextafeira da Paixão são aquelas com as quais as afilhadas321 mantêm maior proximidade Voluntariamente na SextaFeira Santa antes do meiodia elas se dirigem às casas das mulheres que escolheram por madrinha levando algum presente algo colhido em suas roças ou um objeto de decoração Em uma atitude de respeito lhes tomam a bênção pela primeira vez Esse gesto será repetido por toda a vida De acordo com as mulheres da comunidade nesses casos há um compromisso afetivo maior da madrinha com a afilhada já que a escolha foi referendada pela existência de um carisma pessoal Essas madrinhas são adotadas como modelo a ser seguido por suas afilhadas pois possuem características que despertam estima e confiança incentivando uma amizade alicerçada no devotamento recíproco A madrinha de Sextafeira da Paixão não pode rejeitar a afeição da afilhada322 deve recebêla como uma segunda filha Ter afilhadas de SextaFeira é sinônimo de respeitabilidade entre as mulheres um alargamento de sua autoridade e uma afirmação de seu valor pessoal As madrinhas de batismo embora estimadas pelos pais dos das afilhados as às vezes não residem no território quilombola Podem ser parentes próximas ou de terceiro grau São pessoas com as quais não se deseja perder os vínculos que moram em comunidades vizinhas em Saúde ou Mirangaba As famílias de Lajedo possuem comadrescompadres residentes nas comunidades de Água Fria Palmeira Coqueiro Santa Cruz do Coqueiro e principalmente em Grota das Oliveiras para onde se transferiram muitos de seus parentes de primeiro grau Ao aceitarem o compromisso as madrinhas devem se dispor a acompanhar a criação do a afilhado a e substituir as mães quando necessário em caso de viagens ou falecimento A interação é um aspecto fundamental das relações de compadrio Há uma expectativa de que comadres e afilhados as se visitem com certa frequência Como relatou D Miúda 321 Não há na comunidade afilhados homens de Sextafeira da Paixão Apenas as meninas do grupo escolhem as suas madrinhas por afinidade admiração e respeito Com elas aprenderão tarefas domésticas como costurar fazer crochê e bordar atividades agrícolas e lhes confidenciarão problemas pessoais 322 As mulheres de Lajedo afirmaram que uma madrinha não pode renegar o a afilhado a sob pena de transgredir um vínculo sagrado 240 As mulher daqui tá sempre em conversa com as mulher da Grota Umas por que é parente é comade e as comade tem que levar os menino pra dá bença A madrinha tem que botar a bença no afilhado pelo menos uma vez no ano Aí as mães vai levando que os homens você sabe que homem não entende essas coisa Aí quando o menino vai ficando grandinho ele vai só Faz o caminho só Aí os parente não se perde uns dos outro Eu tô sempre lá Tenho meus fios e as mulher que pare Aí os povo de lá vem me chamar Tem que ir Domingas Rosalina dos Santos 78 anos em 22042018 No dia do batizado há uma grande comemoração e os parentes se reencontram em clima de festa Ao saírem da igreja todos retornam para a casa dos compadres onde serão servidos o almoço e o bolo do afilhado A confraternização se estende por todo o dia As cerimônias de batismo ocorrem sempre aos domingos Além dos compadres e filhos as comparecem outros parentes estimados A presença das crianças é importante nessas celebrações pois provavelmente se tornarão compadres de afilhados as de seus pais ou de seus tios Rose por exemplo possui dezoito afilhados residentes nas localidades de Lajedo Palmeira Santa Cruz do Coqueiro e Grota das Oliveiras As crianças tratam os pais e seus padrinhos com a mesma deferência323 Em conversas informais algumas mulheres destacaram preferir dar seus filhos para batizar às amigas casadas porque assim não precisam procurar o padrinho Participei de dois batizados realizados por Rose em Santa Cruz do Coqueiro O primeiro no final de 2017 e o segundo em abril de 2018 A chegada dos compadres afilhado a e convidados as foi saudada pelos que não compareceram à cerimônia pois se encarregaram dos preparativos da festa subsequente ao batismo da igreja A recepção oferecida aos padrinhos deve ser impecável A mesa onde sentarão os novos compadres e o a afilhado a é bem arrumada Os demais convidados se espalham pela casa e pelo terreiro Cumprida a formalidade da refeição as pessoas ficam à vontade para conversar e circular pelo local até o final do dia Elas costumam aproveitar a ocasião para visitar parentes outros compadres e conhecidos O almoço servido tradicionalmente é constituído por arroz vatapá saladas e frango assado e acompanhado por bebidas diversas Após o 323 As crianças também denominam de compadre ou comadre as pessoas que já possuem esse vínculo com os seus pais e não são seus padrinhos 241 almoço são servidos bolo e refrigerantes Em ambas as ocasiões findo o almoço Rose presenteou os afilhados com um envelope contendo dinheiro para comprar um porco ou começar a fazer um futuro Como os afilhados eram crianças o presente da madrinha foi recepcionado pelos pais responsáveis por adquirir o animal ou multiplicar a dádiva Boa parte dos compadres da população adulta de Lajedo residem na comunidade de Grota das Oliveiras e são visitados anualmente na QuartaFeira Maior da Semana Santa quando levam os filhos as para tomar bença à madrinha de batismo e se reúnem com outros parentes da localidade para rezar o terço O compadrio se entrelaça à parentagem reforçando laços que desejam perpetuar Muitos habitantes de Grota das Oliveiras são referidos como uns parentes da gente que foram pra lá botar roça e dos quais não desejam abdicar Embora residam em Grotas das Oliveiras essas famílias constituem parte dos que permaneceram no território de origem A rede de conexão assegurada pelas relações de compadrio conecta parentes e atualiza os vínculos entre esses atores sociais A evocação de uma parentagem ampliada que abrange pais mães irmãos cônjuges cunhados sobrinhos sogros sogras comadres compadres e afilhados as constitui um aspecto peculiar da organização da comunidade tratase de uma tessitura em movimento que considera além do fator consanguíneo as alianças caracterizadas por sintonia e afinidades entre os de dentro e os de fora O vínculo do compadrio instituído pelo rito do batismo é via de regra horizontal e suas características principais são a cumplicidade e o respeito ao valor atribuído à categoria comadrecompadre São também consideradas as brincadeiras de tirar entre si324 as tarefas de trabalho e as rezas que dizem juntos Os homens ao se referirem aos compadres afirmam a gente somos compadres irmãos Nesse contexto irmão não se reporta a um parentesco consanguíneo antes expressa o afeto que os une aqui nós é compadre de fé Os compadres desfrutam de um sentimento de solidariedade que se manifesta quando das vicissitudes enfrentadas ao longo da vida Sobre a amizade entre compadres Seu Gilberto colocou 324 Expressão utilizada para indicar brincadeiras ou provocações que expressam afeto e respeito Apenas se tira brincadeira de quem se estima e sabe que pode brincar 242 Tipo assim a gente tem os compades aqui que é um tipo de refrigério pra gente Se você precisa assim de uma força de um apoio se você faz assim uma brincadeira eles tão tudo pelo meio se bem que tem uns que é parente mas tem outros que é mais que irmão Meus irmão não é todos não agravando a eles mas não é todos que eu tenho amizade como com uns compade aqui Gilberto Inocêncio dos Santos 47 anos em 23042018 Aos domingos a rotina é alterada pelo recebimento de visitas dos afilhados que aparecem para acompanhar ou participar de partidas de futebol com times de moradores de Lajedo Palmeira e Coqueiros Os afilhados chegam ao início da manhã e quase sempre trazem consigo pão ou algum produto da roça enviado por suas mães para as madrinhas Os rapazes passam a maior parte do tempo com os padrinhos retornando à casa das madrinhas ao meiodia ou no final da tarde quando tomam a bênção para retornar às suas casas Presenciei em alguns domingos as recomendações e presentes enviados às comadres distantes O presente possui valor simbólico Os compadres normalmente se estimam e não poupam esforços para estar juntos Geralmente se encontram no dia da feira livre de Saúde por vezes em espaços previamente combinados como no galpão da farinha nas bancas de banana nas barracas de comida ou casualmente O compadrio ora é utilizado para reforçar a fraternidade ora para fortalecer o parentesco de sangue as visitas a troca de presentes e a solidariedade recíproca As relações de compadrio em Lajedo evocam tanto em termos da sua centralidade quanto de suas especificidades que demarcam diferenças aquelas entre os autóctones Embera e os afrocolombianos do Alto Chocó Colômbia uma região coberta por uma floresta tropical fluvial densa que faz parte do ocidente colombiano e se abre sobre a costa do Pacífico Entre eles as alianças matrimoniais são terminantemente proibidas mas em compensação o compadrio é à base de um sistema de parentesco ritual desencadeada por meio de um recémnascido Embera do sexo masculino Cabe ao pai da criança escolher na comunidade camponesa negra mais próxima o homem que batizará seu filho e lhe dará o seu prenome adquirindo em troca o status de compadre do genitor do que advêm relações privilegiadas de assistência recíproca e intensificação de trocas de bens e serviços O compadrio envolve também as esposas LOSONCZY 2011 p 427 243 A conclusão de Anne Marie Losonczy é que o compadrio ao criar um laço de consanguinidade ritual entre dois homens substituindo simbolicamentre a troca de mulheres estrutura ritualmente as relações interétnicas em torno do recémnascido LOSONCZY 2011 p 428 o que ocorre também em nosso contexto de investigação Como vimos o compadrio complementa o parentesco consanguíneo e o ressignifica Desse modo as famílias de Lajedo e as residentes em Grota das Oliveiras permanecem ligadas por uma rede difusa Como a maior parte das famílias de Grota das Oliveiras são originárias de Lajedo e descendentes do senhor Paulo Quitero visitei aquela comunidade para compreender como reorganizaram as suas vidas Vislumbrei a possibilidade de visitar a comunidade Grota das Oliveiras após um encontro na sede da Associação Quilombola de Lajedo realizado em 22 de janeiro de 2017 Participaram quilombolas de nove comunidades da região325 dentre eles o presidente da associação de Grota das Oliveiras o senhor Jorge dos Santos Seu Jorge desejava obter informações sobre os procedimentos a serem adotados para certificar a sua comunidade como quilombola soube que meus parente de Lajedo agora são certificado como quilombola E nós somo igualmente uns irmão Somos tudo igual e parente Outros representantes compareceram ao evento com a mesma finalidade As movimentações ensejadas pelo Barulho do Quilombo326 fortalecem a luta quilombola no sertão baiano No evento supracitado membros de diversas comunidades negras rurais tiveram a oportunidade de escutar e trocar ideias sobre a ancestralidade a pertença negra e quilombola Seu Jorge convidou a mim e a Valmir dos Santos para visitar a sua comunidade No momento em que Seu Jorge fez a solicitação houve certo silêncio no ambiente atitude que um pouco mais tarde foi esclarecida por Dona Mariene De acordo com a interlocutora as pessoas que estavam presentes nutriam o receio que não aceitássemos o chamado do Jorge e isso soaria como uma desfeita fato que desagradaria a muitos e talvez pudesse comprometer minhas relações com alguns 325 Como relatado no capítulo anterior 326 Como referido no Capítulo 1 244 Realizo a seguir uma narrativa do contato estabelecido com os moradores as de Grota das Oliveiras327 51 GROTA DAS OLIVEIRAS O MOVIMENTO ITINERANTE DOS OUTROS DESCENDENTES DE QUITERO Em 14 de março de 2017 eu e Valmir dos Santos328 visitamos a comunidade Grota das Oliveiras O dia estava úmido e ameaçando chover329 comecei a pensar sobre a semelhança do episódio da chuva que assinalou minha primeira ida ao Lajedo Fui despertada dessas comparações quando Valmir mencionou olhe o Jorge já está ali Ele veio mesmo E agora comadre vai Eu não sei pra onde estou indo e começou a sorrir como faz habitualmente diante de alguma preocupação Notei que Valmir se encontrava dividido entre seguir o caminho ou conversar com Seu Jorge ali mesmo no Paiaiá Suponho que o fato que o incomodava era o mesmo que também me causava certo desconforto isto é seguir pessoas pouco conhecidas para um lugar de onde não poderíamos entrar ou sair sozinhos No entanto antes que tomássemos qualquer decisão contrária Seu Jorge assim que nos reconheceu se adiantou dizendo é vosmicês veio mesmo Bem que João Colado disse que vosmicês tinha palavra Agora é ver se tem coragem também pra mode subir a serra Diante daquela colocação entendi que caso não cumpríssemos o combinado eu poderia contrair uma situação adversa com os moradores de Lajedo pois ficara visível que eles também mantinham expectativas em relação a nossa visita conversa e prestação de auxílio para o 327 Informo ao leitor a que restringi esse contato à comunidade de Grota das Oliveiras não tendo estendido essa experiência à comunidade de Água Fria porquanto verifiquei que na atualidade há apenas duas famílias descendentes dos quilombolas de Lajedo residindo nesse segundo território Dessa forma não considero pertinente descrever a comunidade de Água Fria nesta tese 328 Agradeço imensamente a Valmir dos Santos por ser meu amigo compadre e sempre me auxiliar com sua companhia esclarecimentos e orientações sobre as atividades desenvolvidas nas comunidades quilombolas do norte baiano No dia relativo à primeira visita realizada em Grota das Oliveiras saímos de minha residência na cidade de Ponto Novo às seis horas da manhã inicialmente com destino ao município de Saúde que dista 47 quilômetros Após atravessarmos a referida cidade nos deslocamos para o povoado de Paiaiá onde Seu Jorge e um irmão nos aguardavam para nos conduzir até a comunidade 329 A partir desse segundo parágrafo e nos quatro subsequentes são transcritos trechos do Diário de Campo com algumas adaptações 245 ato de certificação de seus parentes como povos remanescentes de quilombo De igual modo não pude deixar de analisar que mais uma vez de forma prática os acontecimentos desencadeados em campo me possibilitavam uma compreensão a respeito da importância do cumprimento da palavra330 no universo simbólico que é tecido por parte dos atores sociais que povoam as comunidades negras sertanejas e como a riqueza desses signos modelados pelas perspectivas evidenciadas em cada geração influenciam seus modos de vida e as relações que estabelecem Terminados os cumprimentos iniciais caracterizados por apertos de mão mediante a intimação pronunciada pelo Seu Jorge nós voltamos ao carro traçamos o sinal da cruz331 e seguimos o caminho que ele e seu irmão nos indicavam Em alguns momentos os perdemos de vista porém como não houvesse qualquer desvio ou entrada mantivemos o curso que durou cerca de 40 minutos Eu e Valmir quase não conversávamos possivelmente por estarmos impressionados com as paisagens que se descortinavam a nossa frente e sobretudo por que à medida que avançávamos parecia que a vegetação se tornava mais densa Chegamos a parar uma vez porquanto além de ter perdido de vista os nossos mediadores nós não conseguimos encontrar os rastros feitos pelas motos332 e apenas retomamos a rota quando Jorge percebendo nossa demora retornou para nos buscar Observei que assim como eu Valmir estava reticente pois ficava claro que não conseguiríamos voltar sem a ajuda de nossos anfitriões considerando que nenhum de nós já havia estado ali 330 Mediante o que já foi tratado no Capítulo 1 331 Hábito comum entre a população sertaneja quando se vai viajar e ou realizar qualquer tarefa considerada importante 332 É comportamento comum nas comunidades sertanejas rurais quando se está perdido ou em dúvida em relação ao caminho que deve ser tomado seguir o rastro mais visível deixado por pneus de motos ou carros 246 Imagem nº 35 Via de acesso a Grota das Oliveiras Fonte Acervo da pesquisadora Após uma curva que se mostrou a mais sinuosa do caminho imitando a atitude dos nossos condutores nós paramos o carro e pela primeira vez eu avistei uma casa Fomos então informados que já estávamos no território da Grota mais especificamente na entrada da comunidade aonde precisaríamos deixar o automóvel e seguir de moto com eles Quando desci eu percebi que havia três casas Duas muito próximas por se tratarem de famílias constituídas por pais e filhos e a terceira um pouco mais além Foi realizada uma pequena apresentação em relação às pessoas que ali nos encontraram e nessa primeira parada pudemos sorver um aromático copo de café em seguida nos certificamos que os donos dessas casas também seguiriam conosco Compreendi que além da visita ao território Seu Jorge como presidente da Associação dos Pequenos Agricultores de Grota das Oliveiras APAGO havia organizado uma reunião e todos os moradores as estavam a nossa espera visto que desejavam melhor entender sobre a questão do quilombo Com 247 um pouco mais de companhia e o estômago forrado de café o trajeto foi percorrido de forma mais tranquila Continuamos o trajeto de moto já que segundo os interlocutores começaríamos a subida da serra À medida que nos distanciávamos a paisagem voltou a ficar deserta aumentando o frio e a velocidade do vento Decorridos vinte e três minutos as motos precisaram ser desligadas para evitar o risco de deslizamentos e o próximo trecho foi realizado a pé Depois de catorze minutos de caminhada nós voltamos a fazer uso das motos e dezessete minutos depois eu finalmente divisei o núcleo da comunidade Paramos em frente a um bar chamado Ponto da Amizade que fica ao lado da casa de Jorge Nesse local adultos e crianças se encontravam a nossa espera Embora eu não tenha demonstrado aliás como é típico das mulheres do meu contexto intimamente estava com o espírito transbordando em emoções por perceber a expectativa que aquelas pessoas mantinham em relação ao reconhecimento de sua ancestralidade enquanto grupo tradicional333 Presumo que esse seja um dos grandes legados do Barulho do Quilombo isto é converter a identidade acionada em diretriz norteadora da construção de novos significados para a Negritude Sertaneja A nossa chegada foi recepcionada por Seu João José da Silva 88 anos que representando os anciãos do grupo fez questão de enfatizar que almejava que a nossa presença fosse capaz de trazer alegria para a comunidade a pequena assembleia que nos aguardava se organizou de maneira circular se espalhando pelas dependências do terreiro da casa do Seu Jorge Ele muito solícito pediu a atenção de todos fez os agradecimentos costumazes e esclareceu os motivos daquela reunião passando em seguida a palavra para Valmir cuja palestra foi ouvida com uma atenção particular por parte dos presentes já que todos as que se encontravam naquele espaço tinham informações a respeito da trajetória do mesmo sua dedicação e solidariedade à causa quilombola Valmir fez um relato de todo o processo que culmina na certificação de uma comunidade negra como tradicional as lutas existentes assim como as transformações positivas ocasionadas nas vivências empreendidas pelos atores sociais que passam a ser percebidos como sujeitos 333 Aqui finalizam os trechos do Diário de Campo 248 políticos e de direito constituído Fiquei um pouco preocupada por que a empolgação foi geral e as pessoas aplaudiram efusivamente na sequência a palavra foi passada para mim Imagem nº 36 Reunião em casa de Seu Jorge dos Santos Fonte Acervo da pesquisadora Nas associações quilombolas do norte baiano cada membro aprende a praticar a oralidade Como destacou Paulo Freire no livro Pedagogia do Oprimido 1975 todos as possuem o direito de dizer a sua palavra crítica e criadora revestida de significados emprestados de suas biografias A minha explanação foi breve pois a intenção era escutálos Durante a reunião os moradores de Grota das Oliveiras relataram diversas histórias quase sempre associadas ao território no qual labutam diariamente para assegurar o sustento de suas famílias pois a chuva é o sangue da terra que também corre 249 em suas veias Finalizada a reunião a ata foi assinada e em seguida foi servido um almoço preparado pelas mulheres da comunidade 334 Durante a tarde percorremos a comunidade visitando casas e roças dos as moradores as Observei que a organização espacial das roças e as distâncias entre as casas é semelhante à de Lajedo As residências são esparsas algumas estão situadas em pontos muito elevados outras em baixios designados localmente como tabuleiros A população constituída por trinta e duas famílias migrou para a Grota das Oliveiras em decorrência da fertilidade de suas terras335 e se instalou nas localidades do território denominadas Riachão Morro Dantas Mocambo Alto Bonito e Boa Vista Dona Marilene Sena dos Santos conhecida como Nina de Arquimino afirmou Aqui nas Oliveira é igualmente a uma mãe de muitos filho que tem muito nome pra botar E aí nós vai batizando esses filho de acordo com cada pai Cada qual tem um nome mas quando se ajunta é tudo filho de uma mãe só A terra aqui é uma mãe só Marilene Sena dos Santos 51 anos em 140317 Da fala da interlocutora depreendese a relação que as populações quilombolas desenvolvem com a terra e um sentimento de fraternidade provavelmente fundamentado em vínculos constituídos quando ainda se encontravam em Lajedo e que se fortaleceram no novo território durante as lides e labutas da vida cotidiana As famílias fundadoras chegaram a Grota das Oliveiras na década de 1950 e começaram a botar suas roças em terrenos caracterizados pela abundância de água pois todo o perímetro é banhado por um afluente do rio Paiaiá denominado localmente de Riachão Os primeiros moradores foram João José da Silva e Judite Francisca de Jesus sucedidos por João da Grota Chicão Preto Adão José do Instantino e D Maria Joana Quase todos eles já faleceram Segundo relataram eles chegaram sozinhos e depois 334 A comunidade foi certificada como remanescente de quilombo em 18 de agosto de 2017 335 Eles migraram porque o solo de Lajedo parecia não agradecer isto é não prosperava dificultando as atividades agrícolas As terras férteis em Lajedo já não eram suficientes para assegurar a subsistência de todas as famílias Alguns moradores de Lajedo informaram que cerca de setenta famílias migraram para as comunidades de Coqueiro Palmeira Água Fria Grota das Oliveiras e para a cidade de Saúde 250 constituíram famílias com outros moradores de Lajedo a oitava moradora a migrar para a comunidade foi Marilene Silva dos Santos que se casou com Arquimino dos Santos Ambos eram viúvos Arquimino é originário de Itiúba Ele era vaqueiro no povoado de Santo Antônio336 e residia com os seus pais Se mudou com a família para Grota das Oliveiras em decorrência do tempo ruim isto é os longos períodos de seca especialmente a de 1932 notabilizada em todo o sertão baiano Adquiriu duas tarefas de terra em Grota das Oliveiras de Doutor Pinheiro337 mas permaneceu trabalhando como vaqueiro em uma fazenda de Santo Antônio Durante as noites trabalhava nas terras recém adquiridas abrindo covas que eram cultivadas durante o dia por sua primeira esposa já falecida Os moradores de Grota das Oliveiras relataram que os fundadores foram aos poucos puxando os parentes de Lajedo e povoando a localidade constituída pelas famílias Santos e Silva O topônimo de Grota das Oliveiras remete a um antigo garimpo desativado que foi instalado na serra das Oliveiras Quase toda a região que circunda a cidade de Saúde em tempos pretéritos foi caracterizada pela presença de garimpos muitos dos quais acabaram originando algumas povoações338 Percorri a comunidade em companhia de Maria de Lurdes dos Santos Roseni Sena dos Santos e Nina de Arquimino D Nina me puxou pelo braço e afirmou olhe você não perguntou mas eu vou logo lhe dizer aqui ninguém tem desafio uns aos outro e a amizade é 336 Localizado na região de Jacobina 337 Médico e político muito conhecido na região 338 É pertinente informar que o município de Saúde está localizado a uma distância que corresponde a 353 quilômetros da cidade do Salvador fazendo divisa entre as cidades de Caldeirão Grande Mirangaba Caém e Pindobaçu Saúde possui o formato semelhante a um planalto triangular abriga serras que no passado foram exploradas por mineradores e garimpeiros que chegaram à região desde a data de 1586 muitos dos quais atraídos pela possibilidade de explorar com total isenção de impostos locais como o Vale do Papagaio as serras da Jaqueira e da Maravilha O Arraial de Nossa Senhora da Saúde primeira denominação recebida pelo município ainda nos últimos anos do século XVI começou a receber mineradores ávidos pela saga do ouro sobretudo do ouro de aluvião Segundo o historiador local Pereira 2004 no período de 17551772 as minas encontradas nas serras de Saúde foram ocupadas por centenas de mineradores e garimpeiros entre os quais o bandeirante João Romão Garamacho Falcão vindo de Oliveira dos Brejinhos A quantidade de ouro retirada pelo garimpeiro foi tamanha capaz de atrair as atenções da fiscalização da Coroa que exigiu o quinto de toda produção extraída nas serras bem como nos rios locais Entre os anos de 19371943 outros exploradores tiveram suas atividades facilitadas devido ao apoio concedido por parte do executivo municipal representado à época pelo senhor Edgar Agnelo Pereira Informo que as terras habitadas por esse grupo encontramse situadas abaixo do local onde funcionou o antigo garimpo das Oliveiras 251 sempre continuano destacando a prevalência da união e de afeto entre os membros na comunidade Imagem nº 37 Roda de Conversa com os as moradores as Fonte Acervo da pesquisadora A maior parte das famílias de Grota das Oliveiras é proveniente de Lajedo Duas são originárias das localidades de Canabrava e Angelim339 Entre a população adulta apenas Seu Guilherme João da Silva 58 anos nasceu em Grota das Oliveiras Dentre os jovens até dezessete anos e crianças alguns nasceram na comunidade com o auxílio da parteira D Miúda340 e outros na maternidade dos hospitais de Saúde e Jacobina 339 Povoações situadas na região de Saúde 340 D Miúda também realizou os partos de seus netos que nasceram e residem na comunidade 252 À medida que eu caminhava com minhas anfitriãs escutei muitas narrativas de suas histórias de vida algumas semelhantes às de suas comadres em Lajedo Enquanto Lajedo é uma comunidade caracterizada pela desertificação Grota das Oliveiras está em processo de formação Quando indaguei às mulheres de Grota das Oliveiras sobre o cotidiano na comunidade D Nina respondeu Ah Moça Que aqui eu vou lhe dizer que eu só comparo minha sorte Com a sorte do PassoPreto Voando o sertão de luto E alegre sastisfeito Marilene Sena dos Santos 51 anos em 14032017 D Nina comparou a trajetória de Grota das Oliveiras com a da iraúnagrande Molothrus oryzivorus conhecida em todo o sertão nordestino como Passopreto341 É um dos pássaros mais apreciados da fauna silvestre devido à pelugem negra e canto mavioso que se distingue do canto dos outros pássaros seja em cativeiro ou no meio do mato O Passopreto é uma ave diferente com algumas habilidades específicas identifica quem é o seu sua dono a entre os membros da família e canta apenas quando o seu sua dono a está em casa É uma ave majestosa A infraestrutura342 da comunidade é constituída pelas casas e roças dos moradores e por uma casa de farinha Há também um prédio escolar desativado que funcionou em regime de classe multisseriada até 2016 com classes de Educação Infantil e Ensino Fundamental I As aulas eram ministradas por um professor do povoado próximo de Riacho Os moradores de Grotas das Oliveiras relataram que no final do ano letivo de 341 Segundo informações contidas no dicionário Aurélio 1986 a iraúnagrande é uma ave passeriforme da família Icterida e campestre Possui seu habitat do México à Bolívia Argentina e em grande parte do Brasil especialmente no Nordeste onde é conhecida popularmente por graúna 342 Mantenhome sabedora de que o tempo em que estive na comunidade foi insuficiente para uma descrição que se proponha ser mais densa 253 2016 receberam a visita inesperada do prefeito de Saúde Ele se reuniu com os pais dos estudantes e explicou que o prédio escolar seria desativado e os seus alunos transferidos para escolas da sede do município Justificou o fechamento da escola pela necessidade de aprimorar a aprendizagem das crianças e viabilizar o deslocamento dos adolescentes que já estudavam fora da comunidade disponibilizando um transporte escolar Imagem nº 38 Crianças da comunidade à espera do transporte escolar Fonte Acervo da pesquisadora As mulheres não se opuseram à medida pois até então a locomoção dos estudantes para as escolas do município era muito trabalhosa Eles saiam às quatro da manhã montados em jumentos ou cavalos para o povoado de Paiaiá onde esperavam o transporte escolar que passava para pegálos por volta das seis horas A reunião com o prefeito de Saúde foi realizada embaixo de um pé de manga árvore à qual é atribuída certa relevância Segundo Seu Pedro Sena dos Santos a mangueira foi à primeira árvore plantada pelos moradores em Grota das Oliveiras O local sombreado é 254 um dos mais importantes da comunidade e ali realizavam reuniões celebrações religiosas e pequenos festejos como aniversários e encontros de amigos343 As casas originalmente erigidas com taipa são atualmente de adobe com um alicerce de cerca de meio metro de altura para evitar alagamentos Com exceção da casa de farinha as habitações de taipa remanescentes são conservadas e utilizadas para armazenar a produção semanal das roças levada às feiras livres da região principalmente de Saúde Jacobina e Pindobaçu Em Grota das Oliveiras as casas são constituídas por sala dois quartos e cozinha Não existem portas internas apenas as portas de entrada e de saída Em algumas casas as divisões entre os cômodos são feitas por cortinas Não há banheiros nem água encanada Os moradores utilizam fogão a lenha e energia solar A principal fonte de renda dos quilombolas é a agricultura Os produtos cultivados são feijão andu banana344 e jaca A farinha é fabricada artesanalmente A sua qualidade é apreciada pelos consumidores na feira livre de Saúde Os moradores de Lajedo e Grota das Oliveiras são considerados os melhores fornecedores de farinha da região Muitos membros de famílias abastadas só adquirem a farinha dessas comunidades A farinha é um produto cultivado tradicionalmente nas comunidades negras rurais e quilombolas Em uma análise sobre a economia do campesinato negro no Brasil o historiador Flávio dos Santos Gomes destacou Um elemento típico da economia quilombola foi à farinha de mandioca Plantavam e colhiam mandioca transformandoa através da moagem peneiras em forno em farinha e outros derivados No Nordeste colonial se falava que viviam em numerosas choças construídas por ramos de capim e rodeadas de hortas A produção econômica podia ser complexa como foi nos grandes quilombos coloniais de Pernambuco Minas Gerais Mato Grosso e Goiás Além do feijão arroz e mandioca com fartas plantações aproveitavam do peixe em abundância e da carne de animais silvestres pois passavam o dia caçando Plantavam colhiam e realizavam festas para homenagear suas colheitas GOMES 2015 p 21 343 Entrevistei alguns moradores embaixo dessa mangueira D Nina mencionou que eu havia escolhido bem o local 344 Assim como em Lajedo a banana é o principal produto cultivado nas seguintes variações prata dágua maçã e café Em Grota das Oliveiras não se utiliza agrotóxicos nas plantações 255 A rede tecida pelas conexões econômicas assume um aspecto significativo na vida dessas comunidades à qual dedicam tempo e atenção Tratase de uma economia relativamente articulada que além de proporcionar coesão entre as famílias valoriza as comunidades no contexto regional mais amplo Não se pode analisar os modos de vida das populações quilombolas sertanejas negligenciando as relações que estabelecem no mundo do trabalho Cada membro desempenha tarefas específicas que contribuem para a melhoria de suas comunidades Os anciãos de Grota das Oliveiras embora ainda trabalhem em suas roças são aposentados e complementam a renda com a Bolsa Família Os moradores de Grota das Oliveiras relataram que a estrada aberta em 2014 pela Prefeitura de Saúde facilitou os deslocamentos para cuidar da educação escolar e tratar da saúde Anteriormente os doentes e as parturientes que não conseguiam parir com o auxílio de parteiras eram retirados da comunidade em redes e conduzidos ao hospital Atualmente as mulheres da comunidade declararam que as que não conseguem parir em casa são levadas de moto até a maternidade345 e permanecem na cidade de Saúde geralmente em casa de parentes até o recémnascido completar quinze dias O trajeto de volta para a comunidade é realizado de carro até o povoado de Paiaiá De lá seguem de moto até o pé da ladeira da comunidade onde uma tia da criança montada em um cavalo já está à espera para receber o bebê e leválo para casa em segurança346 A chegada da família é anunciada com fogos de artifício e parentes compadres e vizinhos aparecem para visitar a família e o seu bebê Segundo Seu Arquimino dos Santos a comunidade estimula os casamentos com gente de roça Tem que casar com gente de roça porque gente de rua é meio preguiçoso O povo da rua quando vem para cá é desfazeno diz que aqui é lugar de carrapato só tem carrapato só tem carrapato pausa E a gente pisa 345 O acompanhamento prénatal é uma prática recente entre as mulheres da comunidade Começou a ser realizado em 2016 346 A subida da ladeira é caracterizada por imprevistos como tombos e quedas da moto Portanto as mães preferem que o a recémnascido a seja conduzido por uma tia em lombo de cavalo já que o cavalo ao contrário do jumento não é considerado um animal imprevidente Quando chegam ao pé da ladeira os pais seguem de moto e aguardam em casa a chegada do neném Segundo as mulheres essa tia costuma passar os primeiros trintas dias do período de resguardo servindo à parida e cuidando diretamente da criança Essa rede de solidariedade feminina também percebida em Lajedo solidifica os laços de parentesco e de compadrio 256 em cima de carrapato e não vê nada disso Eles gostam de mangar de nós aqui dizendo que a gente é uns coitado Arquimino dos Santos 89 anos em 15032017 Quando entrevistei seu Aquimino sua esposa D Nina indagou eu posso ir junto também D Nina participou ativamente da entrevista realizada debaixo do pé de manga e depois revelou É assim eu tô ajudando Arquimino porque ele já tá assim meio de idade e ele é meio gago eu não sei se você notou E aí eu não quero que depois você fique pensando que ele não sabe falar direito Aí eu tô ajudando e eu penso que isso não é ignorado não Marilene Sena dos Santos 51 anos em 15032017 O casal possui oito filhos menores e uma filha casada Joseline Santos Gomes residente na cidade de Saúde Conversei algumas vezes com Joseline e ela mencionou que a sua casa é utilizada como referência para os parentes da comunidade em especial durante as sextasfeiras347 e sábados quando se realiza a feira livre A feira tanto para a população residente em Grota das Oliveiras quanto para seus parentes e compadres de Lajedo é também um ambiente de socialização O historiador Flávio dos Santos Gomes 2015 p 3233 apontou a relevância das feiras livres para a vida econômica e sociocultural das comunidades negras camponesas argumentando que esses espaços onde eram constituídos pontos de interação atraíam escravos e libertos de diversas plantações Muitos deles atravessavam longas distâncias a pé para alcançálos Nas feiras circulavam informações e culturas entre escravizados de áreas urbanas e rurais Tanto para os quilombos do período colonial quanto para as comunidades negras e quilombolas atuais a feira livre constitui um dos canais utilizados para estabelecer relações com a sociedade envolvente e um espaço no qual administram as suas identidades nas relações de troca de compra e venda no modo como são percebidos ao oferecerem os produtos de suas roças e nos papéis assumidos nas negociações comerciais 347 Algumas famílias pernoitam em Saúde para participar também da feira aos sábados Segundo D Nina a gente fica assim tudo numa casa imalado que nem rapadura 257 No mapa a seguir ofereço uma demonstração da organização espacial e proximidade existente entre as comunidades de Lajedo Grota das Oliveiras Água Fria e a cidade de Saúde circunstância que favorece as movimentações realizadas pelos quilombolas de modo especial por ocasião da feira livre Fonte Adobe Photoshop CC 2019 Ilustração da Pesquisadora 511 DE MAMANDO A CADUCANDO AQUI TODO MUNDO REZA E SAMBA Para além do aspecto econômico a autossuficiência das comunidades quilombolas sertanejas sobressai em muitos caracteres socioculturais O cotidiano da labuta diária das roças da produção da farinha da extração do coco babaçu e das feiras cede espaço às atividades lúdicas e encenações como o Samba de Palmas e Versos que praticam desde 258 quando habitavam em Lajedo subsistindo com algumas modificações e adaptações aos modos específicos de se relacionar com a arte e com a vida produzindo novos significados São realizados nas pausas durante o trabalho e após as reuniões da associação Cantando sambando e dizendo verso os habitantes de Grota das Oliveiras tecem um processo dinâmico de criação e de recriação de seus cotidianos demonstrando que não estão isolados nem são atrasados como acredita a sociedade envolvente que por vezes lhes imputa esse estigma como algo decorrente da pobreza econômica predominante nas comunidades rurais As mulheres são as guardiãs e principais responsáveis pela continuidade do Samba de Palmas e Versos Segundo relataram foram às mulheres que reinventaram essa brincadeira pois aqui as mulher reza mas também gosta de samba Quando indaguei se havia algum critério para participar do samba Eliane dos Santos nora de D Miúda respondeu Ah Minha filha De mamando a caducando aqui todo mundo reza e samba Nessa afirmativa está implícito o princípio da unidade interna que buscam enfatizar durante o trabalho nos festejos e rezas As mulheres de Grota das Oliveiras notabilizadas no contexto regional como rezadeiras são frequentemente convidadas por outras comunidades negras e quilombolas para participar das celebrações religiosas do Catolicismo Sertanejo348 Quando o Samba de Palmas e Versos é realizado na comunidade todos podem participar Todavia quando se apresenta em outras comunidades definese previamente o número de participantes se atribuem papéis e padronizam as vestimentas São geralmente dezesseis componentes dez mulheres quatro homens e duas crianças quase sempre uma menina e um menino continuadores dessa brincadeira Os participantes usam uma camisa amarela padronizada com o nome do grupo As mulheres vestem saias coloridas e os homens calças jeans As mulheres cantam os versos durante a roda e entoam os cânticos no samba competindo aos homens promover a harmonia dos instrumentos o toque do pandeiro e do triângulo As apresentações são iniciadas com a encenação da roda 348 Essas celebrações são realizadas em homenagem aos santos padroeiros e raramente contam com a presença de padres ou missionários As mulheres da comunidade convidam parentes e comadres das comunidades vizinhas para participar e auxiliar nos ritos preparatórios As celebrações ocorrem em pequenas capelas dedicadas aos santos ou na casa de moradores as específicos geralmente aquele que é designado ou que se reivindica o a cuidador a do santo São cerimônias cujos elementos guardam relações intrínsecas com a Umbanda Sertaneja No Capítulo 7 abordarei este tema mais detidamente 259 Namora moça Que não é defeito O rapaz malandro Se conhece pelo jeito As Oliveiras tá chovendo Saúde tá chuviscando Menino me dá teu lenço Que a chuva tá me molhando Namora moça Que não é defeito O rapaz malandro Se conhece pelo jeito Adeus casa de farinha Roda de puxar mandioca Não há dinheiro que pague Um beiju de tapioca Versos cantados pelas mulheres de Grota das Oliveiras Cada componente da roda canta um verso finalizando com a décima integrante Então se inicia o samba com o sapateado dos homens e as palmas das mulheres que asseguram a alegria entre os brincantes e os que observam o cadenciar dos corpos que rodopiam e saúdam o próximo a ser convidado a entrar na roda A transição entre o movimento da roda e o início do samba é caracterizada por versos cantados pelas mulheres e acompanhados pelos tocadores de pandeiro e triângulo Arriba a saia mulher Não deixa a saia molhar 260 A saia custou dinheiro Dinheiro custou ganhar Ô bemtevi Bemtevi não tem coroa Eu vim sambar Em casa de gente boa Ô bemtevi Bemtevi não tem coroa Eu vim sambar Em casa de gente boa Canto de Entrada do Samba entoado pelas mulheres de Grota das Oliveiras Os versos cantados durante a roda e o samba abordam o cotidiano desses agentes seus trabalhos e conquistas Os últimos brincantes são as crianças pois segundo D Joseline os meninos é a continuação do nosso povo aqui por isso é eles que termina a apresentação Ela costuma acompanhar as apresentações do grupo Ao abordar o universo religioso e lúdico das festividades organizadas pelas populações quilombolas a pesquisadora Glória Moura 2012 p 79 destaca que os referenciais que devem ser utilizados para se descrever uma sociedade são o contexto as mentalidades e as relações de poder que a caracterizam Segundo a autora nessas festividades se apreende as concepções de mundo das comunidades e como elas são utilizadas para afirmar as identidades Quando os quilombos contemporâneos reinventam manifestações culturais com elementos da cultura ancestral eles selecionam os sinais diacríticos que os identificam Moura 2012 ressalta também ser possível comparar as festividades organizadas pelos quilombolas ao trabalho campesino ou urbano interpretando os signos veiculados por melodias rituais e pelo modus vivendi comunitário pois nas comunidades negras as festividades são também reencontros liberdade dos corpos e expressão ancestral 261 Imagem nº 39 Grupo Samba de Palmas e Versos Fonte Foto cedida por Joseline Santos Gomes Após o samba quando fizemos um círculo de cultura349 D Maria de Lurdes afirmou Esse samba aqui a gente trouxe do Lajedo Mudamo muita coisa porque assim nós considera que a vida da gente é assim tem o trabalho mas tem a diversão e também tem nossas rezas As reza que a gente faz e aí todo mundo conhece a gente aqui Pra viver não é somente o trabalho é também nossos divertimento Se chamar pra qualquer lugar nós vai mas a brincadeira é aqui dentro mesmo Maria de Lurdes 59 anos em 28042017 349 Conceito utilizado por Paulo Freire na Pedagogia do Oprimido 262 Quando a apresentação ocorre em outras comunidades para atender a convites de pessoas ou órgãos públicos eles preparam novos versos para homenageálos Esses convites suscitam um sentimento de orgulho contentamento e de representação comunitária entre os participantes do Grupo Samba de Palmas e Versos como ressaltou D Nina de Arquimino Nós já é meio discriminado da parte de alguns porque não é também por todos Então na hora que o povo de fora convida principalmente se vier assim por parte do povo do prefeito a gente quer dar o nosso melhor Porque na vida a pessoa é que tem que fazer o seu melhor Se a pessoa não se valorizar então não é o outro que vai dar aquele valor Você tá entendendo Marilene Sena dos Santos 51 anos em 28042017 O primeiro convite que receberam de um órgão público foi o da Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola EBDA Foram convidados para se apresentar em um encontro de pequenos agricultores da região de Jacobina Durante esse evento observando os outros grupos eles perceberam a necessidade de se organizar e de padronizar as vestimentas que atualmente utilizam Além do caráter lúdico o Grupo Samba de Palmas e Versos utiliza uma linguagem na qual imprimem as marcas próprias de sua performance tendo o cuidado de preservar entre os versos cantados aqueles que definem como o seu canto de entrada e que os distingue de outros grupos 512 A FORÇA QUE VEM DA FÉ UM CRUZEIRO OFERECIDO À NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO APARECIDA A dimensão religiosa é um dos aspectos mais significativos no cotidiano dos membros da comunidade de Grota das Oliveiras As práticas religiosas350 permeiam o seu cotidiano realizam a persignação católica antes de iniciar qualquer trabalho os mais novos tomam a benção aos mais velhos antes de sair de casa Eles acreditam no poder protetivo 350 No Capítulo 1 destaquei muitos aspectos do universo mítico religioso das comunidades estudadas 263 dos banhos de folha Seu João José da Silva 88 anos é muito procurado especialmente pelas mães da comunidade que levam os as filhos as para ser rezados do quebranto que botaram na rua vento e mal no corpo351 Os adultos solicitam os trabalhos de Seu João para benzer preparar beberagens e receitar remédios Guilherme filho de Seu João enfatizou que o seu pai possui um dom de Deus Isso aí é um dom que Deus botou nele Então ele tem que ajudar as pessoa pai é muito querido aqui E você pensa que é só gente da Grota que procura ele Às vezes assim a gente tá por aqui e chega gente de outras comunidade Aí ele tem que ajudar Se você procurar assim ele não diz mas essas coisa você com pouco tempo vê Que essas coisa é assim não pode ficar de alardeio Tem gente aqui que consulta o médico mas consulta pai também Guilherme João da Silva 58 anos em 27042017 Durante a minha estadia em campo presenciei Seu João preparar remédios do mato352 para dois membros adultos da comunidade acometidos de mal de saúde Além de rezar nas pessoas Seu João costuma benzer os animais e as plantações sobretudo quando elas são atacadas por pragas Muitos indivíduos de outras comunidades vão procurálo quando há pragas nas plantações Ele ora em sua própria casa para combater a praga Segundo os moradores de Grota das Oliveiras nunca ocorreu de o senhor João rezar e não aplacar as enfermidades nas pessoas animais ou lavouras Conversei com Seu João em sua residência Ele já não se ausenta de casa É lúcido de personalidade serena e muito bem humorado Relatou o seu trabalho como vaqueiro e nas terras de fazendeiros ricos Por ter sido uma das primeiras pessoas a chegar à comunidade no início se alimentava de caça que era abundante na mata fechada Ele afirmou ser muito feliz por ter constituído família em Grota das Oliveiras A sabedoria e mansuetude do senhor João me encantaram 351 Utilizam essa expressão para designar a condição das crianças medrosas choronas e agitadas A população de Grota das Oliveiras pouco consulta psicólogos pois creem que o rezador pode combater esses males 352 Um lambedor e uma beberagem 264 Os habitantes de Grota das Oliveiras são católicos Apenas uma moradora D Quinininha se converteu a uma igreja evangélica Os padres freiras ou missionários não visitam a comunidade Os quilombolas frequentam ocasionalmente a igreja de Nossa Senhora da Saúde por ocasião de batizados casamentos e para reverenciar o dia da santa São devotos do Bom Jesus da Lapa e anualmente organizam uma romaria ao santuário para cumprir promessas diversas Alguns vão para a romaria para adquirir objetos de devoção encomendados pelos parentes como água dos milagres imagens sacras terços óleos pomadas e ervas Em uma dessas romarias D Nina realizou um sonho muito acalentado por todos as na comunidade Em 2016 ela visitou a Gruta do Bom Jesus da Lapa para iniciar o cumprimento de uma promessa As famílias de Grota das Oliveiras se reúnem semanalmente na casa de moradores para a reza do terço Eles se ressentiam por não haver capelas ou imagens sacras na comunidade D Nina relatou que em um período particular de sua vida fez um voto ao Senhor Bom Jesus da Lapa Prometeu que caso obtivesse a graça desejada além de ir ao santuário agradecer traria para casa uma imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida contribuindo para iniciar na comunidade a devoção à santa O voto foi mantido em segredo até a véspera de sua viagem Durante a nossa conversa eu me esforçava para ver o cruzeiro com a imagem de Nossa Senhora Aparecida situada na serra mais alta que circunda o território Ela então esclareceu O cruzeiro vai inteirar um ano que foi construído A associação já tava aí E aí Jorge sempre falava e aí chegou na Semana Santa e a gente tava assim reunido Aí Jorge falou quando for em agosto eu vou botar um cruzeiro em riba da serra Vai Vai Que dia ia ser Nós conversemos assim pra botar dia 05 de agosto que é dia de Nossa Senhora das Neves Aí não deu certo que era um dia de sextafeira era um dia do povo sair daqui com as carga Aí disse que era no dia de sábado dia seis Aí eu disse não Que eu fui pra Lapa que eu tenho uma promessa de rezar meu terço dia 06 de agosto e vai ser este ano Aí então vamo botar no dia 07 de agosto Ele Jorge pegou a cruz daqui botou nesse dito ônibus que saiu daqui com os menino Botou o pau igualmente tá nesse pé de manga aqui botou na serraria fez a cruz Tornou a botar o mesmo pau dentro do ônibus chegou ali naquele pé de caju botou em pé O menino lá furou chegou aqui parafusou Parece que foi em um dia de quartafeira 265 Quando foi no domingo juntou todo mundo e foi levar a cruz Aí quando chegou lá todo mundo de amigo parente quem não era parente Graças a Deus Compade e tudo O povo do prefeito nessa época também deu muito amor à gente E no dia que a gente botou o cruzeiro foi só alegria Marilene Sena dos Santos 51 anos em 27042017 O cruzeiro expressa a espiritualidade e também o orgulho coletivo bem como a satisfação íntima de cada morador Para erguêlo foram combinados a fé disposição e trabalho de equipe Os as moradores as formaram um mutirão para transportar os materiais necessários blocos cimento areia cerâmica água e a cruz de madeira A altitude da serra onde o cruzeiro foi assentado é impressionante Da comunidade não é possível visualizálo nitidamente Durante um dia e meio os moradores se dedicaram integralmente ao trabalho de erguer o pequeno oratório de bloco e cerâmica onde foi colocada a imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida Membros da comunidade que residem na cidade de Saúde também participaram da construção O esposo de Joseline que à época estava grávida ajudou a erguer o cruzeiro para pedir a proteção de Nossa Senhora para a criança Segundo Seu Jorge o cruzeiro foi à concretização de um dos maiores sonhos de sua vida Nossa Santa é assim negra como nós E todo lugar tem uma capela tem um lugar pra rezar Agora aqui nós também tem Isso é um orgulho muito grande pra nós que até o padre veio aqui abençoar Veio o pessoal do prefeito homenagear nós aqui O povo que sobe a serra fica assim pensando como é que vocês conseguiu fazer esse cruzeiro Era o maior sonho da minha vida Todo mundo aqui ajudou que nós é assim igualmente uns irmão Mas a Nina e o genro dela que foi quem construiu foi quem mais ajudou E agora nós aqui tem a nossa proteção Jorge dos Santos 56 anos em 27042017 266 Imagem nº 40 Cruzeiro de Nossa Senhora da Conceição Aparecida Fonte Foto cedida por Joseline dos Santos Terminada a construção esperaram o local secar e providenciaram a limpeza não apenas do oratório mas das suas imediações para que todo o terreno ficasse limpo e pudesse então receber a imagem da santa As mulheres da comunidade prepararam um altar debaixo do pé de manga e realizaram uma celebração com benditos e orações Finalizada a pequena cerimônia organizaram uma procissão e subiram a serra para conduzir a padroeira à sua nova casa A chegada ao cruzeiro foi celebrada com fogos e exclamações de Viva Nossa Senhora Aparecida O último rito antes de entronizála no oratório foi a reza do terço Cada morador a fez sua prece finalizando o cumprimento da promessa de D Nina Quando indaguei a D Nina por que escolheram Nossa Senhora Aparecida ela retorquiu 267 Porque toda luta nossa que a gente faz aqui a gente diz assim Ô Nossa Senhora Aparecida Ajude Ela só pode socorrer nós aqui mesmo Todo santo pode socorrer a gente aqui mas nós escolhemos ela E aí nós vamos ficar zelando ela mesmo Porque eu fui pra Lapa trouxe a santa E aí eu mesma fui de umas que peguei a cerâmica aqui pra fazer Aí veio o marido da minha filha essa que tá aí que é casada Ele é pedreiro e levantou Foi quem levantou Quem levantou foi o marido da minha filha graças a Deus E aí botemo a santa lá e nós tamo muito feliz E aí a gente já veio já rezou no dia doze O padre já veio já celebrou a missa só que ele não foi no cruzeiro mas ela Nossa Senhora Aparecida desceu do mesmo jeitinho Ficou aqui debaixo do pé de manga Aí terminou a missa e nós levamos ela de volta Tem gente que anda em riba da serra quando chega lá que descobre fica parado Já procurou pra Jorge como é que aconteceu Como é que foi nós fazer ali Por que eu não tô desfazendo do cruzeiro dos outro mas é muito bonito o nosso Marilene Sena dos Santos 51 anos em 27042017 Em um domingo de cada mês os moradores se reúnem na associação para subir a serra cuidar do cruzeiro e rezar o terço nos pés da santa exercendo a singeleza de uma fé que os cânones religiosos ortodoxos não alcançam Participam da subida a serra parentes compadres e amigos de outras comunidades Na imagem a seguir cumprindo uma devoção em frente à cruz vestida com uma blusa laranja está D Nina recitando as orações que tão bem conhece Um pouco mais atrás está Seu Alberto que veio de Lajedo para participar da devoção Conforme Moura 2012 nas comunidades quilombolas uma fé profunda marca indelevelmente a vida das pessoas que administram e reinventam tradições constituindo um universo no qual os padrões culturais e signos utilizados para traduzilos constituem informações essenciais nos grupos em que circulam e que de certa forma influenciam Por isso o desejo de Seu Jorge de erigir o cruzeiro acolhido por outros membros da comunidade demarcou um sinal diacrítico de fé singularizando a religiosidade praticada em Grota das Oliveiras de outras expressões religiosas desenvolvidas no contínuo étnico no qual se encontram inseridos 268 Imagem nº 41 Subida ao cruzeiro Fonte Foto cedida por Joseline dos Santos Para celebrar um ano da edificação do cruzeiro em seis de agosto de 2017353 os moradores promoveram um evento festivo iniciado às 09h00 da manhã com a subida da serra Os quilombolas realizaram o trajeto recitando orações como o PaiNosso e a Ave Maria intercaladas com benditos 353 Segundo os interlocutores as a escolha da data foi uma homenagem ao Bom Jesus da Lapa em louvor ao seu dia 269 Mandei varrer a estrada Com uma vassoura de prata Valeime Nossa Senhora Senhor Bom Jesus da Lapa Santa Tereza foi freira Menina de doze anos Escreveu pra Santo Inácio Que esse mundo era de engano Os anjos cantam no céu No mar responde a sereia Valeime padrinho Ciço E a mãe de Deus das Candeias Oh Mãe de Deus das Candeias Senhora da Romaria Somos romeiros de longe Não posso vir todo dia Benditos do Catolicismo Sertanejo Os benditos foram cantados com devoção e respeito iniciados pelas mulheres e complementados pelos homens e crianças Terminada a celebração religiosa com a oração do terço foi servido um almoço coletivo realizado um bingo e encenado o Samba de Palmas e Versos Participaram do evento além dos das membros as de Grota das Oliveiras moradores de comunidades vizinhas como Lajedo e ainda algumas pessoas vindas da cidade de Saúde As atividades religiosas são práticas constantes na comunidade de Grota das Oliveiras Seus moradores também participam dos festejos em homenagem a Nossa Senhora da Saúde Em outubro de 2017 eles promoveram mais um intercâmbio entre a 270 paróquia de Saúde e a sua comunidade organizando a segunda missa durante os festejos de Nossa Senhora Aparecida Nessa oportunidade coube às mulheres ornamentar o espaço e preparar o almoço coletivo Os homens viabilizaram o deslocamento do padre que não apenas celebrou a missa mas subiu à serra acompanhando a procissão cujo ápice foi a bênção ao cruzeiro 52 REPRESENTAÇÕES SOBRE SER QUILOMBOLA As primeiras informações obtidas em Grota das Oliveiras sobre a identidade quilombola provieram de diálogos informais com parentes e compadres de Lajedo quando relataram que algumas reuniões e movimentações estavam ocorrendo no contínuo étnico em que habitam e transitam Essas reuniões foram mediadas por Valmir dos Santos e algumas outras lideranças locais Uma reunião organizada posteriormente pelo prefeito de Saúde por ocasião da desativação da unidade escolar trouxe mais elementos que acrescentaram aos moradores de Grota das Oliveiras sobre a sua ancestralidade Os interlocutores as relataram que o prefeito e a sua comitiva sugeriram que eles organizassem uma associação quilombola A partir de então eles se mobilizaram em prol da certificação quilombola O maior obstáculo foi o documento sobre a história da comunidade elaborado em 2017 Antes do reconhecimento oficial pela Fundação Cultural Palmares FCP a associação já adotara a designação de Associação Quilombola de Grota das Oliveiras As representações elaboradas em torno do ser quilombola fundamentaram o autorreconhecimento de Grota das Oliveiras A predominância da epiderme negra ou cor morena entre os moradores e o sofrimento partilhado coletivamente foram associados ao cotidiano dos as antigos as escravizados as Durante a realização de um círculo de cultura indaguei a D Nina como é ser quilombola Ela esclareceu É de ser umas pessoa tudo moreninha que aqui não tem uma pessoa branca A gente se achou que podia se registrar como quilombola de pai para filho Então quando nossa agente de saúde chega aqui que ela vai botar a cor eu digo assim você vai botar é preta que eu não sou branca Como é que você vai botar no papel eu ser branca e eu vou mostrar no 271 papel eu ser preta Então nós tamos seguro de botar no papel e que vai está em nossas mão essa família quilombola daqui de dentro Se eu não souber alguma palavra é por que quem estudou é um e quem não estudou é outro Eu sou bem morena graças a Deus Eu posso tomar um dia inteiro de sol que eu não fico vermelha Eu quebrei o braço uma vez o sangue desceu mas o braço não caiu Marilene Sena dos Santos 51 anos em 27042017 Tenho observado durante cursos palestras e outras experiências com associações quilombolas que se organizam continuamente no sertão baiano de modo particular na região norte a substituição do ser moreno pelo ser negro afrodescendente e quilombola O processo de redescoberta dessa negritude epidérmica simbólica e cultural acompanha sentimentos de autoestima e de valorização entrelaçados na trajetória de sua comunidade e confere novos significados às lutas pelo território e na produção das identidades Na afirmação de D Nina sobre a sua condição quilombola foram destacadas a cor negra e os laços de parentesco De igual modo se expressou Seu Guilherme O quilombola foi criado pela classe humana pela classe negra como nós Os quilombola foi criado por causa da cor Por isso aí nós coloquemo esse nome de quilombola da associação quilombola por que nós somos negro e vivemo aqui dentro Então nós somos quilombola por isso Quilombola é um centro Guilherme João da Silva 58 anos em 27042017 Outro elemento enfatizado por Seu Guilherme foi à humanização como um contraponto à desumanização historicamente imputada aos atores sociais negros e afrodescendentes O viés construtor dessa humanização é a condição ancestral agora divisada como positiva Seu Guilherme destacou algumas transformações ensejadas pelo Barulho do Quilombo em sua comunidade como um maior conhecimento a instalação de políticas públicas a participação de reuniões em outras associações a valorização de seus modos de vida e os saberes ancestrais Seu Jorge dos Santos também externou as suas impressões sobre ser quilombola Os quilombola assim é um povo de sofrimento um povo negro assim como a gente aqui 272 Imagem nº 42 Batalhão para cascalhar a estrada em 2018 Fonte Foto cedida por Joseline Santos A produção da identidade quilombola tem fornecido novos contornos construções simbólicas práticas políticas econômicas e culturais à comunidade Os rearranjos se manifestam em diversas ações como na nomeação da Barraca Quilombola Grota das Oliveiras no anúncio de sua condição tradicional quando encenam o Samba de Palmas e Versos quando reivindicam uma educação escolar que contemple as suas especificidades quando organizam protestos reivindicando políticas públicas e quando organizaram um mutirão para cascalhar o trecho da estrada conhecido como o pé da ladeira com cerca de duzentos metros que em períodos chuvosos atolam dificultando o tráfego das motos e dos animais Eles promoveram uma vaquinha e organizaram um batalhão no qual todos participaram Após a fundação da Associação Quilombola o ativismo político foi incorporado ao cotidiano de Grota das Oliveiras Como destacou Vinícius dos Santos agora a gente 273 descobrimos muitas coisa que antes era ignorado a nós E é por isso que agora ninguém mais vai tirar o que é nosso aqui A afirmação do ser quilombola oportunizou a comunidade de Grota das Oliveiras assim como às demais comunidades estudadas a possibilidade de construir uma trajetória marcada pela autoria 274 CAPÍTULO 6 QUILOMBART O DESPERTAR DA CULTURA ATRAVÉS DAS RAMAS NOVAS A cultura não é um poder algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais os comportamentos as instituições ou os processos ela é um contexto algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível isto é descritos com densidade GEERTZ 1989 p 10 Imagem nº 43 Apresentação do Quilombart durante as comemorações do Novembro Negro na comunidade quilombola de Tijuaçu Fonte Acervo da pesquisadora 275 Eu sabia que a cultura do Cariacá um dia ia viver exclamou D Luci quando assistiu pela primeira vez em 2004 a uma apresentação do grupo de dança recém constituído pelas filhas da Raquel na Escola Municipal de Cariacá O convite para que realizassem uma apresentação de dança com a temática afro para o dia da Consciência Negra chegou até Glícia Milena através da filha de uma professora da escola e moradora da comunidade Segundo D Ninha o convite motivou a comunidade a reviver a cultura que estava morta Elas ensaiaram a coreografia e dançaram para as mães dos alunos as professoras es para as mulheres da igreja e para outros membros da comunidade A apresentação das meninas da Raquel superou as expectativas despertou aplausos e elogios e resultou em um convite do diretor da escola para que Milena coordenasse os ensaios do grupo para futuras apresentações Em pequenas comunidades rurais do sertão baiano assim como em alguns distritos as escolas promovem eventos culturais com a parceria das comunidades Contudo o mérito pela realização desses eventos recai apenas para a equipe gestora da escola Os demais participantes não recebem os créditos pelo trabalho realizado Todavia Milena se sentiu valorizada como professora de dança das meninas e os membros da comunidade ficaram orgulhosos com a reativação das atividades culturais Seu Eduardo D Luci e D Ivone dentre outros comentaram que as ramas novas iam agora levantar a cultura de Cariacá As motivações de Milena e dos demais membros da comunidade diferia das da administração da escola Enquanto para os primeiros a perspectiva de criação de um grupo de dança representava a possibilidade de retomar a prática de atividades culturais para a escola as apresentações do grupo de dança constituíam parte de uma agenda de atividades planejada pela Secretaria Municipal de Educação Em todo caso a escola disponibilizou o espaço para os ensaios do grupo de dança O grupo foi designado inicialmente Arte Dance pois à época a identidade quilombola ainda estava começando a se constituir em Cariacá Segundo Milena Arte Dance enfatizava dois elementos culturais relevantes a arte e a dança Ela relatou que para se aprimorar frequentou aulas de balé em Senhor do Bonfim A partir de então o grupo Arte Dance passou a se apresentar regularmente tanto na comunidade quanto na Escola Municipal de Cariacá em ocasiões festivas a exemplo do aniversário da cidade no Natal quando o grupo dançava em um palco montado em frente à prefeitura e na abertura de eventos promovidos pela Secretaria de Educação SEC A SEC disponibilizava o tecido 276 para confeccionar o figurino das integrantes mas o pagamento pela costura das roupas era custeado pelas mães das brincantes A parceria entre o Arte Dance e a Escola Municipal de Cariacá foi descontinuada porque os integrantes do grupo que queriam divulgar a sua comunidade perceberam que a escola estava interessada apenas em promover o trabalho pedagógico De acordo com o relato de membros do então Arte Dance a Associação Quilombola de Cariacá e Adjacências enfatizou que o grupo pertencia à comunidade e não à escola que estava crescendo em cima do trabalho das meninas observou Tânia Há uma tensão entre a direção da AQCA e a Associação de Moradores de Cariacá administrada dentre outros por dois professores da escola residentes na comunidade e que à época da pesquisa não se identificavam como quilombolas Aí os diretores gostaram aí pediu pra mim fazer uma apresentação pra se apresentar no aniversário da cidade Eu fiz com a música O Caderno Aí o pessoal gostou e eles começou a chamar a gente pra se apresentar aí foi quando a gente foi tendo acesso a outros lugares a Bonfim Mas aí eu não sabia e comecei a perceber que a gente foi perdendo por que a gente não tava mais sendo visto como o grupo Era só escola Agora era só escola Os convites chegavam para o diretor e aí o diretor ia chamando e a gente ia levando Ia a gente ia Mas aí todas as vezes que a gente ia se apresentar eu pedia que divulgasse o nome do grupo e que falasse o nome da comunidade só que eles nunca falavam Ai foi foi Aí há quatro anos atrás a gente começou a perceber que não tava certo Aí foi quando a gente colocou grupo Quilombart Aí Arte Dance ficou dois anos mas ninguém sabia quem era Arte Dance O pessoal sabia que era escola A ideia de colocar Quilombart veio mesmo quando a gente percebeu que era quilombola O Valmir que deu essa ideia pra gente Quilombo e Arte porque não é só uma arte misturou Na verdade foi há oito anos que a gente mudou de Arte Dance pra Quilombart Só que Arte Dance só existiu aqui porque não era divulgado Pra fora da comunidade já existiu Quilombart Glícia Milena Gomes da Silva 32 anos em 26082015 As solicitações para que durante as apresentações o nome do grupo de dança fosse anunciado destacando a comunidade de Cariacá não foram bem recebidos pela direção da 277 escola e pelas os professoras es Eles retrucaram que estavam ajudando as meninas que não eram nada antes Os integrantes do Arte Dance354 perceberam então que a colocação da AQCA tinha fundamento Milena fundadora e integrante mais velha do grupo começou a se sentir pressionada A minha parte de filha do Cariacá de ser da Família dos Congo e da pessoa que queria dançar e mostrar seu trabalho Foi um momento muito difícil na minha vida Eu sofri Eu sofri muito Paula Minha mãe minha tia e outros aqui da comunidade falava direto Aí e também por mim mesma Aí eu senti que tinha que tomar uma decisão e também tem aquilo que eu já lhe falei do Mais Educação Aí eu acho assim que aquilo me humilhou demais Não foi fácil tomar aquela decisão ali no meio de todo mundo Você tava lá e viu o que a gente passou né Aí eles nem olhavam mais na nossa cara Parecia assim que a gente não era mais nada Doeu Foi muita humilhação Aí falaram umas coisa pra gente no ônibus teve uns até que chorou nesse dia Mas aí eu vi e todo mundo viu também que as pessoa aqui da comunidade que ficava conversando assim com a gente que eles tava certo E agora que tudo passou eu agradeço muito e sou muito feliz por que o Quilombart assim somos nós mesmo Glícia Milena Gomes da Silva 32 anos em 19032018 O grupo de dança rompeu definitivamente com a Escola Municipal de Cariacá após uma apresentação no prédio do Centro Cultural Doutor Ceciliano de Carvalho em Senhor do Bonfim355 Os professores da escola se sentiram afrontados e desrespeitados publicamente O rompimento com a escola repercutiu na comunidade como uma tomada de consciência uma afirmação da autonomia do grupo Como declarou Valmir dos Santos Uma decretação de liberdade Por que aí eles disseram que não são mais dominados Mostraram que são independentes que têm capacidade de conduzir suas atitudes sem ser orientados pela cabeça dos outros por pessoas que não querem o bem da comunidade que não estão dispostos a colaborar com o crescimento da comunidade Muito pelo contrário que quer é se aproveitar Então foi um ato de coragem que a gente já 354 À época o grupo já contava com a participação de alguns rapazes 355 Conforme episódio relatado no Capítulo 3 278 vinha conversando incentivando mostrando o que era certo e na hora certa aconteceu Isso foi um orgulho no Cariacá Por que eles mostraram que não estão mais dispostos a abaixar a cabeça e deixar que pessoa que não tem trabalho prestado na comunidade venha aqui querer aparecer e dizer que é o pai da criança Valmir dos Santos 43 anos em 20042018 Desde então o Quilombart passou a ser identificado em Cariacá como articulador autorizado da cultura produzida na comunidade que expressa a sua identidade As apresentações do Quilombart estão em consonância com a luta da comunidade e são orientadas e supervisionadas pelos líderes Assim se expressou D Maria José Eu acho bonita a dança das menina e tudo mas acho que precisa elas se organizarem mais Elas vão pros lugar e se apresentam e ficam caladas Não querem falar nada e tem que falar pro povo saber que é do Cariacá e mais delas mesmo Que foi a Milena que criou esse grupo depois foi que apareceu esse aí da escola Mas elas ficam idiota e todo mundo quer ser o dono deles Maria José Nascimento 65 anos em 17122015 D Maria José se refere ao cuidado com a delimitação da pertença do Quilombart que ao contrário do grupo de dança da escola é patrimônio da comunidade quilombola de Cariacá Embora a escola se situe no território quilombola ela não é percebida como parte da comunidade mas como uma instituição distante fechada e alheia aos ideais comunitários Em maio de 2015 os integrantes do Quilombart estavam confiantes pois haviam sido convidados para participar da programação oficial do São João bonfinense O convite foi percebido como uma premiação pela disciplina nos ensaios e pela possibilidade de Cariacá retornar ao circuito dos festejos juninos de Senhor do Bonfim conhecidos regionalmente Segundo Ítala Raiane integrante do Quilombart desde a sua fundação só o fato de ouvir o nosso nome ser anunciado no rádio escrito nos cartazes da festa isso pra gente é uma grande realização É uma recompensa pelo nosso esforço Além disso pela primeira vez lhes foi oferecido um cachê pela apresentação O Secretário de Cultura propôs que o grupo escolhesse entre fazer uma viagem ou receber o pagamento em dinheiro R 40000 reais 279 Eles optaram pelo dinheiro pois precisavam adquirir novos figurinos A notícia se espalhou por toda VilaCentro e se tornou o principal assunto comentado pela população local de modo especial pelos membros da Família Congo O contentamento não foi compartilhado pela direção e pelos professores da Escola Municipal de Cariacá que se sentiram preteridos pois o grupo do projeto Mais Educação não recebera uma proposta semelhante Segundo relatos dos moradores a direção e as os professoras es da escola espalharam que o convite havia sido dirigido ao grupo Mais Educação e remetido ao Quilombart por engano pois a Secretaria de Cultura desconhecia que o grupo não mais representava a escola Foi estabelecido um novo conflito com ofensas verbais e disseminação de boatos De acordo com Joice Milene eles não chegavam pra falar assim na nossa cara mas ficavam dando risada e mandando recado Querendo abater a moral nossa As tensões se intensificaram quando o Quilombart foi homenageado por uma rádio local e convidado para uma entrevista A equipe escolar se reuniu com o Secretário de Cultura e criticou as performances realizadas pelo Quilombart O Secretário solicitou a Milena que enviasse um vídeo com apresentações do grupo O vídeo foi suficiente para anular as críticas e assegurar o convite No dia agendado para a apresentação a Secretaria de Cultura enviou o transporte para conduzir os integrantes para a festa Conforme os relatos de Ítala Raiane e Joice Milene uma das monitoras do projeto do grupo Mais Educação tentou impedir a saída do ônibus A mulher do Mais Educação ela pegou e queria levar a gente para a Cooper Para dar um lanche à gente para dar um suco à gente e a gente dormir E ela ir se apresentar no nosso lugar porque ela não estava na programação O que tinha na programação era grupo Quilombart Duas irmãs dela foram na rádio e falaram lá O homem o locutor viu e como ele já sabe o nosso grupo deu apoio à gente e deixou aberto para ela ir lá só que ela não foi Aí o professor do grupo da escola entrou dentro do ônibus e falou um monte de desaforo à gente e foi muita confusão para esse ônibus sair daqui Quem contou para a gente a intenção dela foi uma aluna dela que é amiga da gente que disse que a intenção dela era levar a gente pra lá dar esse lanche e depois que a gente dormisse levar o grupo dela para fazer a apresentação Antes disso ela foi lá no Ary funcionário da Secretaria de Cultura e disse que nós não sabia dançar Aí o Ary pediu um vídeo da nossa apresentação Foi uma confusão Eu acho assim Paula que a gente não tem que abaixar a nossa cabeça pra eles porque se você conversar com os mais velho daqui incluindo 280 meu avô que já morreu Eles vão dizer que o povo do Cariacá já foi muito humilhado aqui dentro e eu não tenho medo e não abaixo minha cabeça pra esse povo não Eu acho assim que a gente que é do Congo tem que se dar o nosso valor Que a gente já sofremos já fomos muito rebaixados e agora como quilombola que a gente sabemos disso assim através do Valmir A gente tem mesmo que mostrar que a gente quer respeito e eu falo Eu falo mesmo o que eu acho que tá no meu direito Joice Milene Nascimento de Oliveira 25 anos em 14032016 Esse episódio provocou um maior distanciamento da comunidade da instituição escolar Inclusive muitos pais dos integrantes do grupo de dança Mais Educação ao tomarem conhecimento do ocorrido reprovaram o comportamento da monitora Em novembro de 2016 a escola organizou uma série de atividades para celebrar a Semana da Consciência Negra Os integrantes do Quilombart e da AQCA não foram convidados para os eventos Apresentouse o Samba de Lata atividade cultural das mulheres da comunidade quilombola de Tijuaçu Apesar do relacionamento amistoso e dos vínculos de parentesco e compadrio com essa comunidade a população de Cariacá se sentiu desprestigiada A escola é percebida em Cariacá como um veículo fiscalizador manipulado pelos políticos de Senhor do Bonfim Nas últimas eleições municipais ocorridas em outubro de 2016 o então prefeito da cidade e os vereadores do seu partido não obtiveram a quantidade de votos esperada em Cariacá O Quilombart prossegue atuando expressando os valores e reivindicações de sua comunidade À época da pesquisa o grupo era constituído por dez integrantes dois rapazes e oito moças Laíse Raiane Gilmara Giovane Maiara Giovana Lara Joice Davi e Graziele À exceção de Graziele ainda criança a faixa etária dos componentes variava de quinze a trinta e dois anos O número de participantes oscila Alguns deixam o grupo quando migram com suas famílias para São Paulo para cidades do sul da Bahia ou quando se casam com pessoas de fora Além de participarem do Quilombart alguns de seus integrantes trabalham como professoras es de dança em distritos de Senhor do Bonfim e em escolas dessa cidade outros são estudantes universitários ou alunos as da Escola Municipal de Cariacá 281 Imagem nº 44 Milena contando a história do grupo após uma apresentação na sede da AQCA Fonte Acervo da pesquisadora O Quilombart foi originalmente concebido como uma forma de brincadeira organizada para colaborar com a escola local Atualmente constitui uma das maiores expressões culturais de Cariacá e os seus integrantes se percebem como mediadores da história das memórias conquistas e anseios de sua comunidade Durante as apresentações compartilham e celebram a sua identidade quilombola É portanto um instrumento dialógico e de construção identitária da comunidade de Cariacá Porque a nossa condição tá sendo muito procurada hoje em dia Antigamente a gente entrava numa loja e não podia entrar por causa da nossa cor Hoje as pessoas já recebe a gente com outra cara e eu acho que ser uma quilombola é participar da cultura da raça da cor O dia a dia de uma menina quilombola é trabalhando muito Eu trabalho muito mas é em casa com mãe e mãe diz que no passado era tudo muito 282 difícil que pra conseguir alguma coisa era trabalhando muito era catando mamona pra conseguir comprar alguma coisa Joice Milene Nascimento de Oliveira 25 anos em 14122015 Além de estudar Joice auxilia a mãe que trabalha como empregada doméstica em Senhor do Bonfim na fabricação de doces e salgados cuida da casa e dos irmãos menores A assunção da identidade quilombola incentivou a autoestima da comunidade e visibilizou Cariacá no contexto regional mais amplo em especial na cidade de Bonfim Conforme ressaltou Glícia Milena É gratificante Eu tenho orgulho porque toda a minha família é quilombola Então eu gosto muito de ser por que isso mudou toda a nossa vida aqui no Cariacá e não só aqui dentro Antes era assim as pessoa não dava tanto valor quanto dão agora principalmente quando a gente vai dançar Quando é o Cariacá eles já reconhecem e já sabe Então eles dão mais valor tá evoluindo mais através desses projetos que chega através da associação mesmo Antes quando eu falava sou do Cariacá as pessoa nem sabia onde era e hoje quando eu falo que sou do Cariacá as pessoa sabe onde fica Antes quando eu estudava as pessoa não sabia onde ficava o Cariacá então hoje tá mudando as pessoa sabe onde fica Glícia Milena Gomes da Silva 32 anos em 26082017 A reativação das atividades culturais pelo Quilombart promoveu o reconhecimento tanto da comunidade quanto do grupo Segundo Laíse irmã de Milena o Quilombart atua como uma bandeira aqui do Cariacá O Quilombart é uma bandeira e a associação é outra bandeira O grupo de dança é concebido como uma linguagem que suscita visibilidade e respeito coletivo Desde pequena mainha sempre disse assim que a gente era da etnia Congo Aí por isso eu sempre soube que era uma quilombola Eu já nasci sabendo que era descendente de Congo Me considero e tenho orgulho de ser Congo Pra mim assim é a nossa dança porque é mostrar a cultura de nosso povo Então pra mim isso é o mais importante de se fazer e a gente evoluiu muito 283 No começo a gente não era tão conhecido como é No começo a gente só se apresentava na escola Hoje a gente se apresenta em outros lugares por aqui pela região mesmo mas já é um ganho muito grande Eu queria que melhorasse mudar não Assim eu queria que mudasse a sede que tivesse a nossa sede porque assim é uma dificuldade muito grande A gente já ensaiou debaixo de pé de pau no meio da rua na terra ralando o joelho mas ensaiou A gente gosta do que a gente faz e quer mostrar o nosso trabalho Se for pra ensaiar debaixo de chuva a gente ensaia Hoje a gente ensaia na associação só não quando está ocupada Então se tivesse nossa sede era muito bom Laíse de Oliveira Souza Juvino 23 anos 21112016 Para os seus integrantes o Quilombart é uma conquista Para a comunidade o grupo é concebido como um símbolo de resistência dos mais jovens e deve ser aplaudido e incentivado como afirmou D Tânia essas meninas na hora certa não abaixaram a cabeça não e provaram que são dos Congo O Quilombart é mais um ato de autonomia empreendido pela Família Congo pois o gosto pela arte e o compromisso com a comunidade lhes foi legado pelos troncos velhos As apresentações do Quilombart em Cariacá são geralmente realizadas na sede da AQCA ou em frente à capela de Santa Rita Quando se apresentam em encontros com outras comunidades quilombolas da região norte da Bahia os mais velhos costumam afirmar que esses meninos levam a alma da comunidade com eles Após uma apresentação do Quilombart na sede da Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências AAQTA durante o Seminário Protagonismo Quilombola Giovane da Silva Oliveira 23 anos um dos poucos rapazes que integram o grupo destacou A gente tem uma responsabilidade de estar levando o nome da comunidade pra onde a gente vai Então tem que pensar bem no tipo de música de coreografia porque a gente tá em uma comunidade quilombola e quem convida sabe disso também Então eu acho que a gente tem que fazer nosso papel de não envergonhar nossos pais e aqueles que acreditam em nós A gente tem uma responsabilidade que é nossa e que é do nome da comunidade também Giovane da Silva Oliveira 23 anos em 30112016 284 Para Giovane a participação no Quilombart é uma vitória de cunho pessoal Ele derrubou uma barreira muito grande um preconceito social direcionado aos homens que se dedicam à dança principalmente no sertão baiano para um homem fazer isso é um ato de coragem É uma meta muito grande e eu sei que vou ajudar muita gente que tem vontade e se prende pelos outros por medo dos outros das risadas das conversinhas Ele relatou que em algumas circunstâncias sobretudo durante as primeiras apresentações do grupo foi alvo de olhares sorrisos maliciosos e ironias Giovane se sente orgulhoso por participar de uma manifestação cultural da comunidade depois do Quilombart voltaram a existir aqui no Cariacá porque todo mundo diz que a comunidade já teve muitas culturas bonitas e que agora tava tudo parado Então a gente voltou a dar vida a essa parte Ele precisou romper preconceitos para ser contratado como professor de dança em alguns distritos da região Desde quando eu era pequeno eu gostava muito de dançar e na escola sempre tinha essas coisas de dança Apresentava os ensaios nas festas de São João e eu sempre tava dançando Fazendo peça e eu sempre tava dançando Eu nunca desisti porque ficava muita gente mangando da minha cara por ser o único homem dançando no meio das meninas Eu fui indo eu gostava gosto muito da dança Hoje graças a Deus eu sou professor Trabalho na dança Sou professor de dança e eu tô muito feliz Eu me chateei mas eu não levei pro meu pessoal Eu guardei pra mim eu sonhei e hoje graças a Deus eu tô trabalhando como professor de dança e tô muito feliz Eu trabalho em Lajes Passagem Velha e Altamira e eu penso em fazer faculdade de Educação Física ou Pedagogia Giovane da Silva Oliveira 23 anos em 15122015 Giovane ingressou no curso de Pedagogia em 2016 e tem se dedicado a promover uma aproximação entre os saberes pedagógicos e o universo lúdico aspectos que têm influenciado o seu trabalho no Quilombart e nas escolas onde leciona O grupo de dança Quilombart tem também um caráter educativo pois estimula a comunidade a refletir sobre a identidade quilombola 285 Imagem nº 45 Apresentação do Quilombart durante a Primeira Etapa do Curso de Formação para Lideranças Quilombolas Fonte Acervo da pesquisadora Durante as performances o Quilombart utiliza dois trajes o primeiro todo branco foi inspirado nas indumentárias das religiões de matriz africana nas vestimentas das mulheres integrantes do Samba de Lata e além disso simboliza a paz Na segunda parte do espetáculo os integrantes do grupo portam camisetas azuis ou pretas e calças coloridas também inspiradas nos figurinos afros O Quilombart se mantém com recursos dos próprios integrantes ou de seus pais e com as contribuições de Valmir dos Santos que geralmente patrocina os tecidos utilizados para a confecção dos figurinos As roupas são confeccionadas por D Tânia que também disponibiliza o pátio de sua residência para a realização dos ensaios quando a sede da AQCA está ocupada O Quilombart é de fato um símbolo cultural de Cariacá Nos momentos de crise a comunidade organiza uma vaquinha para renovar o figurino do grupo Reitero pois que tanto o Quilombart quanto a AQCA fomentam o processo de conversão simbólica de uma comunidade negra rural 286 antes relegada a uma situação de invisibilidade e abandono para uma comunidade quilombola Os momentos que antecedem às apresentações do Quilombart são caracterizados por uma atmosfera de expectativa por parte de seus membros e familiares que costumam acompanhálos em alguns eventos principalmente os realizados em Senhor do Bonfim pois acreditam que nesses eventos há uma exposição maior dos integrantes e da própria comunidade O cuidado é mais intenso quando a identidade quilombola é acionada de maneira contrastiva pois os diálogos entre o Quilombart e a sociedade inclusiva são um pouco tensos Os integrantes do grupo sabem que serão observados e avaliados não apenas por suas performances mas como membros de uma comunidade tradicional Como já exaustivamente destacado há por parte dos órgãos públicos de Senhor do Bonfim apenas uma tolerância camuflada de aceitação com relação às comunidades tradicionais provocada pelo Barulho do Quilombo e não uma vontade sincera de dialogar e conviver com essas comunidades Indaguei aos integrantes do Quilombart como se sentem nos dias que antecedem às apresentações Tenso Por que a gente ensaia bastante O ensaio geral peço pra estar lá em casa antes de fazer a maquiagem Dou algumas instruções Peço pra eles se alimentarem direitinho E sempre antes da apresentação a gente faz uma oração a gente reza o PaiNosso e pede a Deus pra nos abençoar pra que dê tudo certo Aí nós ficamos aqui em casa esperando o transporte Glícia Milena Gomes da Silva 32 anos em 26082015 Assim a gente fica ansiosa Fica na expectativa pra não errar pra fazer tudo bonito Tendo o carro a gente vai pra todo lugar Um exemplo vai ter uma apresentação hoje então à gente ensaia a semana todinha Se a apresentação for à noite então a gente ensaia a semana durante a tarde A gente ensaia mais é à noite porque as meninas todas estudam ou pela manhã ou pela tarde Joice Milene Nascimento de Oliveira 25 anos em 14122015 Fico muito nervosa Reúne todo mundo e vai logo ensaiando ensaia a semana toda No São João por exemplo ensaia o mês todo Laíse de Oliveira Souza Juvino 23 anos 21122015 287 Muito bom Eu fico muito ansioso porque a gente ensaiou a semana toda pra mostrar Então quando chega no dia a gente quer dar o melhor Giovane da Silva Oliveira 23 anos em 15122015 Muito nervoso e trabalho porque a gente tem que ensaiar em cima da hora mas sempre dá tudo certo Ítala Raiane de Oliveira Juvino 20 anos em 15122016 Em março de 2016 Milena me convidou para uma conversa na sede da AQCA Ela observara que durante as apresentações o Samba de Lata de Tijuaçu abre e mostra duas bandeiras e mencionou que gostaria de fazer o mesmo nas apresentações do Quilombart Marcamos uma reunião com os integrantes do grupo para conceber a bandeira Segundo Milena o pano de fundo representa a luz e a sombra e enfoca a trajetória do grupo a representação das mulheres que constituem majoritariamente o Quilombart foi sugerida por Ítala Raiane Foram retratadas mulheres negras porque como destacou Joice Milene elas representam as mulheres da Família Congo são Congo quilombola A música e a capoeira também foram estampadas na bandeira pois desde 2014 as integrantes capoeiristas inseriram alguns movimentos da capoeira nas apresentações Como já enfatizado o Quilombart é mais um instrumento no processo de luta da comunidade quilombola de Cariacá Para os seus integrantes o grupo simboliza Conquista Glícia Milena Gomes da Silva 32 anos em 26082015 O Quilombart é especial Porque tira muito os meninos da rua e é muito bom a pessoa se dedicar a alguma coisa Joice Milene Nascimento de Oliveira 25 anos em 14122015 O Quilombart é minha vida Laíse de Oliveira Souza Juvino 23 anos 21122015 288 O Quilombart é tudo Giovane da Silva Oliveira 23 anos em 15122015 O Quilombart é o nosso orgulho Porque é uma coisa que a gente tá desde o início Ítala Raiane de Oliveira Juvino 23 anos em 15122016 Imagem nº 46 Bandeira do grupo Quilombart Fonte Acervo da pesquisadora No encenar da cultura reside o orgulho dos membros da comunidade de Cariacá que contribuem com suas visões de mundo e necessidades geracionais As raízes velhas são semeadas nas novas gerações Essas seguindo o exemplo dos mais velhos também cumprirão o seu papel na comunidade No Quilombart os jovens fortalecem e remodelam a cultura Como afirmou Hobsbawm 1987 a tradição para continuar existindo necessita 289 ser renovada e não permanecer estática residindo talvez neste princípio a sua persistência através das gerações 61 AQUI A GENTE NÃO TEM BRINCADEIRA NENHUMA NÃO Aqui a gente não tem brincadeira nenhuma não Essa foi à resposta que escutei dos moradores de Lajedo em um tom que revelava constrangimento quando indaguei sobre as suas atividades culturais Eles costumavam se expressar desse modo quando não queriam ou não se sentiam à vontade para conversar sobre determinados temas D Mariene comentou inclusive que eu estava ficando com fama de perguntadeira na comunidade Eu tinha a nítida impressão de que eles também me observavam e que queriam falar contar suas histórias Me esforcei para compreender o que os desconcertava pois as atividades culturais são geralmente caracterizadas por descontração e irreverência Desconfiei dessa propalada ausência de práticas culturais em Lajedo pois as populações sertanejas rurais mantêm o hábito de celebrar seja com o propósito de atenuar as dores seja com o objetivo de partilhar com os afetos mais caros parentes compadres comadres e amigos tanto as suas conquistas quanto as suas desventuras O ato de partilhar considerado do ponto de vista simbólico e ou material congrega os habitantes das pequenas comunidades rurais É nesses momentos que as felicitações e os dissabores são socializados e a cultura enquanto produção coletiva de agentes que se estimam se manifesta É algo singelo um encontro entre pessoas que se conhecem e se respeitam Em Lajedo todas as famílias possuem laços de parentesco e de proximidade As brincadeiras que encenam traduzidas nesta pesquisa pelo viés da cultura são genuínas valorizadas pelas contribuições dos atores sociais Por esse motivo continuei observando na expectativa de encontrar referências às formas de festejar Já havia constatado que em Lajedo todos as são festeiros frequentam as festas populares das cidades de Saúde Mirangaba e Caém356 e participam dos festejos promovidos em Coqueiros e Palmeira Durante uma conversa com Seu Armando eu havia mencionado ter um tio que cantava 356 Como já destacado entre os meses de junho e julho muitas famílias de Lajedo viajam para participar dos festejos de São João e de São Pedro À exceção de D Idália que é evangélica todos as vão às festas e retornam renovados com muita disposição para trabalhar e para colocar as novidades em dia Como ressaltou Seu Alberto a gente proseia assim Paula comentando das festa que é pra melhor alegrar a vida daqui da roça que é meio paradona 290 xulas enfatizei quanto o estimava ao que ele colocou pois é aqui até que tinha um samba menina mas aí depois se acabou Indaguei como era o samba e por que se acabou sei não acho que a turma aí se desgostaram sei que acabou respondeu Seu Armando e mudou de assunto Em um final de manhã quando eu estava de passagem pela residência de Seu Joaquim abordei novamente o tema comentando o que ouvira de Seu Armando e Joaquim ajudado por sua esposa Juce resolveu quebrar o silêncio a esse respeito quando esclareceu Você não ignore não Paula Aqui tinha um samba que a gente reunia assim de vez em quando tipo brincadeira mesmo sabe Mas aí aconteceu que nós foi convidado pelo pessoal do Coqueiro que eles comemora o dia de Santos Reis você sabe como é É assim eles faz assim uma representação tipo reisado sabe como é Lá tem umas festa bonita de Reis e aí o povo todo da região sempre vai nem precisa essas coisa de convite que a gente é parente tem conhecido e a gente gostamo de ir pausa Mas aí uma vez as mulher convidou assim o povo daqui pra fazer uma representação de samba e disse que ia as comunidade tudo a Dionísia Santa Cruz do Coqueiro o Carrasco e a gente também ia Aí a gente sabe que os povo são tudo organizado e aí a gente daqui quis se organizar também pausa A gente mandemo fazer umas camisa pra botar o nome da associação e botemo uma santa Nossa Senhora da Glória e fizemo tudo ajeitadinho que a gente ia apresentar nosso samba Umas pessoa ensaiou mas aí na hora de representar lá quando chamou o povo daqui assim ninguém sabe o que aconteceu que chamou de novo e ninguém foi Umas mulher queria ir e outros ficaro com vergonha aí eu penso assim que o povo não disse nada uns os outro mas se desgostou Que ninguém mais quis ir nem fazer o samba não Aí não fez mais o samba não Joaquim Santana de Azevedo 42 anos em 18062016 O relato de Seu Joaquim foi entrecortado por pausas ele parecia estar procurando as palavras adequadas para abordar um tema delicado para toda a comunidade Na reunião da associação realizada em três de julho D Rosa me segredou que Seu Alberto tem uma surpresa pra você D Mariene complementou ele vai falar do samba minha fia Me 291 sentei ao lado de D Narcisa e me concentrei nas anotações357 Seu Alberto abriu a reunião e indagou se eu desejava falar alguma coisa Como eu havia notado que os quilombolas de Lajedo apreciavam e apreciam estórias e casos apresentei um texto do livro Estórias Quilombolas de Glória Moura Era uma narrativa sobre fatos do tempo em que Deus andava no mundo Utilizamos o texto para refletir sobre as transformações ocorridas em Lajedo Finda a atividade Seu Alberto tomou a palavra É Paula a gente pensamo e decidimo aqui entre nós que a gente vai fazer uma surpresa aqui pra você botar aí no seu livro Que a gente decidiu assim que as comunidade tudo por aqui tem suas brincadeira suas manifestação e a gente vai fazer o nosso samba pra você ver como é Por que aqui a gente sempre teve um samba mas aí aconteceu que a gente fomos convidado por o povo do Coqueiro pra se apresentar no dia das festa deles de Santos Reis A gente se aprontemo mas aí na hora umas pessoa ficou assim eu não sei se foi descabriado o que foi que eu não tô na cabeça de ninguém Que na hora que o homem chamou nós aqui da comunidade chamou no microfone duas vez e ninguém foi Ficou tipo assim se amarrano Uns queria outros ficaro se escondeno E aí teve assim tipo de um desgosto e aí a gente não fez mais brincadeira aqui não É por isso que você andou por aí perguntano quereno saber e ninguém disse nada desse samba Que isso aqui pra nós é tipo assim de um desgosto Que a gente se desgostemo e não fizemo mais não por que ficou uma coisa assim meio vergonhoso Alberto Santana de Azevedo 48 anos em 03072016 Seu Alberto estava visivelmente nervoso e transpirava pois o seu relato concernia às pessoas presentes principalmente àquelas que ficaram inibidas e não se apresentaram em Coqueiros O ambiente ficou um pouco tenso até que Seu Alberto indagou é isso mesmo Vocês tudo concorda Vocês quer mostrar o samba De por mim tudo bem mas agora depende de vocês tudo Seu Heranga retorquiu pelo menos da minha parte tudo bem Aos poucos todos se comprometeram a fazer o samba Agradeci Estava sendo acordada coletivamente a incumbência de resgatar uma atividade cultural de grande relevância em Lajedo herdada dos seus ancestrais 357 A princípio os interlocutores as achavam engraçado e até perguntavam o que eu vivia escrevendo Certa feita pedi a Rose que lesse meus escritos em voz alta para a comunidade Consideraram o texto divertido e pareceram se sentir valorizados 292 Em 31 de julho último domingo do mês a comunidade promoveu um grande evento que contou com a participação de parentes compadres e amigos que se deslocaram de Palmeira Coqueiros Grota das Oliveiras Santa Cruz do Coqueiro e Dionísia para prestigiálos O evento foi planejado durante todo o mês de julho358 e organizado para acontecer em dois momentos de manhã na sede da associação e à tarde quando contou com a participação dos citados visitantes que além de convidados se dirigiram ao espaço da associação com o objetivo de apoiálos No período da manhã parecia que toda a população de Lajedo estava na sede da associação A notícia de que gravaríamos um vídeo contando a história da comunidade havia se espalhado e muitos estavam curiosos sobre o que seria dito Os narradores capricharam no figurino a gente quer fazer bonito Alguns enfatizaram que estavam ali para estuciar Seu João Colado afirmou ter aparecido para ver o que o povo ia dizer A possibilidade de participar de um vídeo atraiu os anciãos adultos jovens e crianças Seu Gilberto destacou porque é nossa história que vai ser contada aí todo mundo quer ouvir e quer falar Quem sabe vai dizer e os outros que às vezes sabe mas não quer falar nada por que é meio vergonhoso vai ajudar E os mais novo vai aprender que é pra contar melhor Os atores sociais de Lajedo envidaram esforços estuciaram para reconstituir as suas memórias queriam contribuir com a minha pesquisa mas aquele momento era um dia histórico para eles e no final das atividades batizaram o evento de Prosa do Quilombo do Lajedo O evento foi iniciado às nove horas e quarenta e cinco minutos com um círculo de oração D Rosa fez uma prece Em seguida Seu Alberto agradeceu à presença das pessoas e pediu que eu explanasse as atividades que seriam realizadas durante o dia Enfatizei a importância do evento e parabenizei a comunidade pelas conquistas realizadas Problematizamos as labutas insurgências e resistências de Lajedo comparandoas com as dos quilombos coloniais Construímos uma linha de tempo destacando a trajetória da comunidade Busquei demonstrar a importância do vídeo agradeci a colaboração de todos as e saudei à memória dos ausentes Iniciei então os trabalhos de escuta das narrativas e a gravação do vídeo Penduraram uma faixa com o nome da associação para ilustrar a atividade que estava sendo desenvolvida Os as voluntários as para as narrativas se organizaram em um círculo alguns permaneceram sentados outros se levantaram A princípio eles ficaram levemente constrangidos com a filmagem Aos poucos todos as 358 Foi decidido pela comunidade que essa seria a primeira atividade do Julho das Pretas em Lajedo 293 foram se manifestando homens e mulheres Os relatos evocavam lembranças e a história da comunidade a chegada dos primeiros habitantes como o senhor Paulo Quitero o fundador Enfatizaram o cotidiano de lutas a ausência de infraestutura o abandono por parte do poder público Terminadas as narrativas almoçamos A refeição coletiva foi preparada na casa de D Mariene359 A sesta tradicionalmente realizada após o almoço foi substituída por atividades lúdicas que incluíram o samba os visitantes das outras comunidades não quiseram descansar o almoço pois estavam na expectativa de ajudar fazer o samba Imagem nº 47 Almoço Coletivo Fonte Acervo da Pesquisadora A comunidade de Lajedo geralmente tranquila estava movimentada A sanfona a zabumba o triângulo e o pandeiro foram levados para a associação Os três últimos 359 As mulheres da comunidade realizaram um mutirão para preparar a refeição e lavar a louça Não foram utilizados pratos nem talheres descartáveis pois isso tira o gosto da comida 294 instrumentos foram emprestados pelos parentes e compadres de Palmeira Coqueiros e Grota das Oliveiras Seu Armando estava emocionado pois além de ser um dos poucos sanfoneiros da região há muito tempo não tocava na comunidade Ele tinha ajeitado à sanfona durante a semana Imagem nº 48 Início das Atividades Seu Armando dedilhando a sanfona ao lado tocando a zabumba está Seu Gilberto os pandeiristas que estão auxiliando são da comunidade de Palmeira e um deles é irmão de Juce Fonte Acervo da Pesquisadora A um chamado de Seu Alberto360 aos poucos a sede da associação começou a ficar repleta de pessoas novamente visto que o convite também fora revestido por uma perspectiva de intimação O interlocutor conclamou em voz alta imperativa e fazendo muitos gestos com os braços agora quem for fazer o nosso samba pode vim pra cá Os tocadores foram os primeiros a se aproximar eles foram sucedidos nessa atitude pelas mulheres que apareceram vestindo saias coloridas e algumas também estavam usando a 360 A partir daqui são transcritos trechos do Diário de Campo com algumas adaptações 295 blusa que fora confeccionada na ocasião anterior quando o samba não foi apresentado Os homens se aproximaram mais timidamente e demonstrando uma menor propensão para participar da atividade que estava sendo proposta naquele momento À proporção que as pessoas foram chegando e se dispersando por extremidades diferentes do local Seu Alberto começou a organizar o ambiente retirando os bancos as cadeiras e posicionando aqueles as que pareciam se colocar como participantes da atividade que seria ali iniciada as pessoas foram posicionadas de modo a formar uma grande roda Após terminar a distribuição Alberto falou para os presentes da seguinte forma Bom agora eu vou explicar pra vocês tudo que tão aqui desde cedo mais nós Dando apoio a nós e estuciando o que tá aconteceno aqui dentro A gente disse aqui a Paula e aos conhecido nosso que tão aqui no nosso meio que hoje nós ia aqui botar o nosso samba O samba do Lajedo Então primeiramente nós tivemo nossa conversa que ela queria gravar o vídeo dela e nós achemo que isso era importante pra nós aqui pra os filho da gente mais tarde e também pra nós mesmo não é verdade Que teve muitas coisa que a gente lembremo junto aqui hoje coisa que as vez a gente sabia mas que não tá assim falano e foi muito bom É mais agora o momento é de diversão que nós reuniu todo mundo Chamou os amigo que veio dar apoio que é pra nós fazer o nosso samba E aí agora depende não é só de mim mas é de vocês tudo também Alberto Santana de Azevedo361 48 anos em 310716 Seu Alberto estava um pouco nervoso e as pessoas se entreolhavam algumas mulheres começaram a se movimentar Os pandeiristas passaram a agitar os instrumentos ouviamse algumas risadas e palmas desconexas entretanto nada acontecia no que se refere a qualquer tipo de sapateado ou movimentar da roda Até que as mulheres passaram a conversar entre si como se ensaiassem baixinho uma cantiga que devido ao alarido de vozes não era possível escutar com exatidão Percebi que ainda não havia qualquer consenso entre eles as362 ninguém se propunha a iniciar a atividade e houve certa 361 Essas palavras proferidas por Seu Alberto foram transcritas da filmagem 362 Observei que os interlocutores as aparentavam estar divididos entre a vontade de apresentar o samba que havia ficado esquecido após uma contrariedade coletiva na qual ficaram expostos publicamente e a 296 impaciência que fez Seu Alberto perguntar sim vocês vão ficar aí A indagação ficou sem resposta e ele se distanciou dos possíveis brincantes Todos as olhavam emudecidos e alguns meneavam a cabeça quando de repente uma roda tímida composta por algumas senhoras começou a se movimentar Seu Armando com a sua sanfona procurou acompanhar a cantiga das mulheres que assim começou a ser entoada Leva eu meu bem Leva eu pra lá Leva eu meu bem Leva eu pra passear Versos pertencentes ao cancioneiro popular e cantado pelas mulheres de Lajedo A pequena roda foi aos poucos se avolumando outras mulheres mais jovens começaram a entrar até que tomasse todos os espaços do pequeno salão Além da sanfona a zabumba pandeiro e triângulo também começaram a ser ouvidos e a roda continuou na mesma proporção por exatos seis minutos até que ocorreu outra chateação agora envolvendo apenas as mulheres D Juce parou e junto com ela toda a roda ao que a interlocutora questionou e agora vocês vão ficar só assim Leva eu meu bem363 Algumas abaixaram a cabeça sorrindo outras olharam para os lados demonstrando certa irritação e D Rosa se voltou para suas vizinhas e comadres explicando agora nós tem que dizer os versos canta e cada uma diz seu verso364 D Rosa segurou nas mãos das companheiras que estavam ao lado e iniciou mais uma vez a roda pronunciando o citado refrão Os tocadores acompanharam e D Rosa declamou o primeiro verso sendo esse comportamento continuado por todas as brincantes permitindo que aos poucos a sisudez inibição demonstrada nessa situação atual provavelmente angustiante de repetir o fato agora em seu próprio território Foi um momento delicado talvez um dos mais significativos vivenciado em campo procurei apenas acompanhar o desenrolar dos fatos na expectativa que o desfecho fosse positivo para todos as afinal seria um desconcerto posterior caso o samba não fosse ali encenado 363 Enquanto falava D Juce ironizou os versos demonstrando sua insatisfação Outro momento tenso se estabeleceu entre as brincantes 364 As mulheres naquele momento olhavam D Rosa expressando certo rancor parecia que cada uma desejava responsabilizar a outra pelas dificuldades para a continuidade da apresentação Chamoume atenção a solidariedade das pessoas que vieram das comunidades vizinhas pois nenhuma delas desdenhou dos possíveis insucessos ali presenciados 297 cedesse lugar para a descontração no rosto das mulheres que fizeram a roda e daqueles as que assistiram acompanhando através de palmas que procuraram sincronizar com a entonação das vozes Quando o último verso rimado foi pronunciado por D Maria do Rosário as palmas dos presentes foram escutadas Seu Armando com a sanfona deu a volta no salão de maneira a reverenciar todos as ali e a roda aos poucos se desfez dando a impressão que iria dar início a um arrastapé que não aconteceu O arrastapé foi substituído por uma marcação de compasso mais firme aonde se escutava o som produzido pelos pés das mulheres que continuavam protagonizando a encenação Imagem nº 49 Roda de Lajedo Fonte Acervo da pesquisadora Os tocadores de pandeiro aceleraram o ritmo dos instrumentos e as pessoas começaram a se aproximar umas das outras como se quisessem estuciar melhor o que 298 estava acontecendo Compreendi que algo diferente estava se estruturando pois as palmas demonstravam uma sincronia de modo a evidenciar que um samba estava se formando A um sinal de Seu Alberto os instrumentos pararam facultando um curto período de silêncio ele então pediu a palavra informando agora que já tá tudo aqui não é para olhar umas pras outra viu É só começar Enquanto falava com as mulheres Alberto mostrou um pacote que tinha entre as mãos retirou o conteúdo e acrescentou aqui tem um rega bofe quem interessar Dito isso colocou um litro de cachaça no meio do salão e deixou o espaço livre para as mulheres que passaram a cantar É palmeira É palmeira Tem palmeira de gosto Tem palmeira É palmeira É palmeira Tem palmeira de gosto Tem palmeira Ô jumeira você é amigo meu Você tá la na cozinha Entra na roda mais eu Ô jumeira você é amigo meu Você tá la na cozinha Entra na roda mais eu Versos cantados pelas mulheres de Lajedo A primeira a entrar na roda e ensaiar um sapateado foi D Rosa a partir daí as mulheres de forma sequenciada passaram de uma a uma demonstrar que a ciranda exibida no momento anterior ganhava outra conotação caracterizada pela marcação dos passos cobrados no miudinho do pé conforme enfatizou D Narcisa Quando alguma 299 participante demonstrava estar encabulada era apontada por Alberto ou Joaquim precipitando sua participação Eles esclareceram que o samba começado tem que correr senão atrapalha posteriormente passaram a sambar em dupla apenas de mulheres sem distinção de faixa etária em uma apresentação muito democrática aonde muitas mães com bebês no colo participaram O protagonismo das mulheres aos poucos passou a dividir o espaço com alguns homens que também começaram a participar Todavia notei que estes apenas sambavam entre si ou com mulheres que fossem suas esposas mães ou irmãs Seu Alberto embora procurasse supervisionar a brincadeira não participou durante a roda nem no momento dedicado ao samba Além dos membros de Lajedo duas moças da comunidade de Palmeira e que são parentes de D Juce integraram a atividade elas destacaram que vieram com o propósito de ajudar e para atender a um convite feito pelas mulheres e pela associação Algumas crianças ensaiaram uma participação sucedendo seus pais quando estes deixavam a roda e a cada contribuição dos brincantes o salão da associação se transformou em palco de um espetáculo cuja memória coletiva talvez não possa desconsiderar Imagem nº 50 Samba de Lajedo Fonte Acervo da pesquisadora 300 É possível supor que transcorreu naquele começo de tarde animada e confusa caracterizada pela tentativa assim como pelo conflito o reaparecimento de uma atividade cultural que os atores sociais do grupo relataram que não pretendem deixar esquecida As primeiras estrelas da noite encontraram aquela comunidade em festa o sorriso aparecia com facilidade no rosto dos moradores as que não aparentavam cansaço nem disposição para terminar a brincadeira Aos poucos Seu Armando e Seu Gilberto que tocavam os instrumentos começaram a lembrar e a pontuar entre os presentes que amanhã é dia de trabalho ou ainda que amanhã é outro dia eles foram auxiliados nessa tarefa por Joaquim e Alberto Seu Alberto que à época conforme já foi mencionado exercia a função de presidente da associação e se colocara desde o início como anfitrião do evento fez uso da palavra e agradeceu a presença bem como o apoio de todos as Ele pediu a cada pessoa que se deslocasse para sua casa no entanto manteve o cuidado em afirmar isso que aconteceu aqui hoje vai continuar outras vez e nós aqui conta com o apoio dos amigo todos de novo Foram ouvidos alguns aplausos acompanhados pelo som dos pandeiros e aos poucos pequenas comitivas foram se formando constituídas por pessoas que em grupos haviam chegado ali ainda pela manhã e que também juntas pretendiam regressar às suas residências365 O evento encerrado com o samba fez história na comunidade do Lajedo Os participantes passaram da posição de narradores as no período matutino para a de sambadores as e encenadores da cultura Os moradores de Lajedo reativaram o samba que sempre constituiu um sinal diacrítico de sua identidade apontando novos caminhos para a comunidade como ressaltou D Rosa hoje aqui a gente tá fazendo nossa história A gente tá vendo que igual às outras comunidade a gente também faz uma história mas pra isso a gente tem que ficar junto Se unir muito mais 365 Informo ao leitor a que até aqui foram utilizados trechos extraídos do Diário de Campo aos quais foram acrescentadas pequenas adaptações 301 CAPÍTULO 7 FÉ ESPIRITUALIDADE E DEVOÇÃO CONVERSAS COM OS ENTRELAÇARES DA UMBANDA SERTANEJA A religião de um povo a par de suas motivações psicológicas mostra em suas instituições a influência de causas de natureza histórica e social Eduardo Galvão 1955 p 11 Imagem nº 51 Primeira festa realizada em Lajedo em homenagem a São Benedito Fonte Acervo da pesquisadora 302 Jesus quando andou no mundo rezou e curou de todo mal e aliviou toda dor com poderes de Deus e da Virgem Maria Se tem força enviada macumba açoitada mal de vento inveja inibição e todo mal que tiver no corpo e na alma Jesus Cristo açoite as ondas do mar por que Ele é forte pode com o bom e má em teu corpo Não pode apoderar pois é benta e consagrada com os poderes de Deus e da Virgem Maria Pois todo mal que tiver no teu corpo é de ser curado e aliviado porque Jesus disse se tiver fé em mim e em minha mãe Maria Santíssima todo mal vai ser rebatado para as ondas do mar sagrado AveMaria Estrela do Mar AveMaria Estrela do Mar Ave Maria Estrela do Mar Toda inveja toda maldição que tiver em mim ou em meus familiares Jesus Cristo tem o poder de curar Amém Eu te entrego a Jesus a Santa Cruz o Santíssimo Sacramento às três relíquias que tem dentro as três missas do Natal que a ti não aconteça mal A Virgem Maria seja a tua guia Te livre e defenda de todo o mal pelo amor de Deus Essa oração segundo D Roxa possui o poder de curar todas as mazelas do espírito e do corpo as moléstias adquiridas pelo corpo aberto366 por meio de coisa que tenha sido mandada367 encante gerado por cobiça e energia de ambição368 atrapalho de 366 Conforme referido no Capítulo 1 367 Nas palavras de D Roxa algum tipo de porcaria isto é de um trabalho espiritual encomendado contra algum desafeto 368 Na perspectiva das comunidades enfocadas nesta tese a inveja é a energia mais negativa que existe capaz de comprometer sobremaneira a vida do invejado lhe ocasionando prejuízos pessoais espirituais e materiais De acordo com D Roxa a inveja é botada até na feiúra D Luci complementou inveja minha filha é coisa que atrasa a vida do outro Quando você olhar e ver uma pessoa assim secando a vida dela desandando e a pessoa assim como que não tá vendo nada como que tá abobalhada ela tá com influência de inveja Aí tem que tirar procura um rezador forte mais velho que é pra benzer aquela pessoa três sextafeira antes de meiodia viu Que depois não serve tomar assim uns banhos acender uma luz pra o guia da pessoa que o problema hoje das pessoa é que vive assim desprezando a Deus desprezando o espiritual Você tá falando e a pessoa nem ligando como que tá bestando com a vida atrasada de corpo aberto aquebrantado É o que tem muito nesse Cariacá 303 cabeça369 e ou qualquer tipo de aflição que esteja deixando o cristão atormentado amofinado pede com fé e acredita na proteção Acredita em Deus que sem Deus ninguém anda Confia que Ele te alevanta D Roxa relatou que aprendeu essa oração com D Valvínia É uma invocação utilizada para benzer as enfermidades Tratase de uma oração especial que D Valvínia aprendeu com a mãe já falecida Os versos apareceram em um sonho foram revelados D Valvínia sucedeu a mãe na atividade de benzer e incorporou a oração enviada pelo Sagrado Segundo D Roxa ela é revestida de força e tem o poder de cura a cura você recebe teve licença diante de Deus aí você agradece O rezador só passa o ramo ou o que for que cada qual reza de seu jeito O ato de curar está subordinado à obtenção do dom cuja propriedade é remetida a Deus A quem Deus der o dom de benzer se puder curar a pessoa tem que aceitar e fazer o bem Só fazer o bem a quem lhe procurar num tá escolhendo pessoa Que num pode Essas coisa num escolhe A reza eu vou lhe dizer porque você veio aqui me perguntar A reza serve É boa pra quem pede e é boa pra quem dá Então a pessoa vem aqui e me pede eu faço o bem à pessoa e fico em paz Quanto mais eu rezar naquele dia melhor também eu vou ficar que é assim Eulina Carmelina de Santana 75 anos em 18052018 D Roxa destacou que quando a pessoa que pede a reza possui fé a oração é capaz de curar Quando a reza é solicitada por um descrente por gente que desfaz aí ele é quem fica desfeiteado se veio pedir tem que respeitar e acreditar370 A desfeita não provoca qualquer malefício à rezadeira D Roxa pressente se a pessoa que vai receber a reza tem fé ou carrega má intenção A pessoa que desfaz voltará uma segunda vez com uma necessidade real que será identificada pela rezadeira D Roxa não nutre rancor pelos descrentes Ela se apieda e por isso ajuda se Deus perdoa minha fia quem sou eu pra num perdoar A fé na perspectiva de D Roxa é o elemento subjacente que precede o poder curativo da oração algumas pessoa que vêm e pede pra benzer num fica boa nunca Porque pede a reza mas num acredita Então a reza num ajuda que a pessoa tem que se ajudar 369 Os quilombolas associam essa expressão a comportamentos súbitos e inexplicáveis Em Cariacá eles atribuem esse mal à perseguição invisível recorrendo frequentemente a curadores da cidade de Ponto Novo 370 Entrevista concedida em sua residência em 18 de maio de 2018 304 primeiro D Roxa classifica aqueles que frequentemente a procuram para benzimentos e orações como gente fraca por incorrer em atitudes que ao invés de praticar deveriam abdicar As crianças são inocentes são que nem malíce por tudo se aquebranta e aquelas que nem as mãe sabe ajudar coitadinhas Que tem mãe que num sabe ajeitar os fio Ajeitar os fio consiste em evitar que as crianças de modo especial os bebês tenham contato com pessoas consideradas pesadas e portadoras de olho ruim que podem transmitir afecções negativas potencialmente capazes de destruir a defesa do corpo D Roxa evita conversar sobre as práticas de benzimentos num se deve falar dessas coisa Não há nada em sua residência que identifique que é rezadeira Ela aparenta serenidade e possui um tom de voz manso Seu olhar é firme e penetrante parece auscultar a alma dos as que lhe procuram Reside em uma casa cercada por plantas Algumas delas são utilizadas para benzer outras na preparação de chás e de beberagens ou na decoração da casa as planta dá vida ao ambiente D Roxa é católica e devota de Nossa Senhora da Saúde Aprendeu a rezar com os mais velhos as Quando indaguei se ela era rezadeira ou benzedeira respondeu eu rezo mas esse negócio de rezadeira É quem reza é rezador Talvez a postura reticente em se afirmar rezadeira esteja relacionada às atitudes discriminatórias contra rezadeiras que em tempos pretéritos com maior intensidade eram vítimas de comentários pejorativos em decorrência da prática de rezar e ou benzer371 acusadas de charlatanismo D Roxa não gosta de rezar adulto mas se for para curar dor de cabeça não se nega pois conhece essa reza e é sabedora da necessidade de aliviar o sofrimento do dono da dor Realiza com satisfação a reza contra o quebranto porque o espírito do inocente precisa ser aliviado Indaguei se poderia revelar uma das orações realizadas nos benzimentos Com um sorriso que lhe é habitual ela consentiu é se você já é amiga de minha neta então eu acho que posso lhe dizer que a reza tem que passar pras pessoa Eu já passei pra Nice Valvínia agora tô dizendo também a você 371 Rezadores as ou benzedores as são diferentes de curadores Os as primeiros as são geralmente identificados como alguém que recebeu de Deus esse dom devendo praticálo Todavia nem todos os as rezadoresbenzedores assumem a prática abertamente São em sua maioria pessoas de certa idade Nas comunidades de Cariacá e Lajedo não há rezadores as jovens 305 Em nome do Pai do Filho e do Espírito Santo fulano diz o nome da pessoa Eu te benzo da dor de cabeça que tem ou dos maus olhos que para ti olharam ou o vento ou o sol ou o mal do tempo que por ti passou Repete três vezes Reza o PaiNosso e a AveMaria Oferece a Nossa Senhora das Cabeças E pede paz e proteção para a pessoa que foi benzida Eulina Carmelina de Santana 75 anos em 18052018 Ela explicou que essa invocação deve ser feita com três ramos verdes pois eles puxa a dor Por isso quando termina a reza o ramo tá caidinho muxano Pode ser rezada em qualquer dia da semana sempre antes do pôr do sol pois não se reza no truvo D Luci também mencionou que não se reza à noite isso é preceito que a gente tem Indaguei o porquê Ela respondeu É porque Paula se a pessoa já tá no escuro como é que vai rezar ela sem a luz do dia Então se for coisa de precisão caso que você tá vendo que a pessoa precisa tá assim padecendo Eu chamo por Deus e rezo Mas gostar não gosto não E peço pra vim de novo Luciana de Freitas Silva 75 anos em 10082018 Durante a pesquisa em Cariacá presenciei crianças e adultos sendo encaminhados para ser rezados por D Luci para curar quebranto agonia no juízo choro sem sentido peso no corpo dor de cabeça medos e dor de dente Algumas pessoas inclusive retornavam para agradecer Em uma manhã de sextafeira D Luci estava particularmente feliz por ter trocado os óculos ocupada com os afazeres domésticos e entretida com a música alta que escutava e cantava eu me aproximei de sua janela e perguntei se ela podia dar uma palavrinha comigo Ela sorriu e retrucou que também queria me ver para mostrar uma poesia que escrevera em homenagem ao dia dos pais e que recitaria naquela noite na escola e no domingo na capela de Santa Rita Após conversarmos sobre as suas poesias e repentes eu afirmei que desejava entender um pouco 306 mais sobre o seu dom de rezar Nas ocasiões em que a vi rezar ela já havia comentado que sofreu muito antes de aceitar essa responsabilidade adoeceu perdeu os cabelos e quase foi a óbito pois não gostava dessas coisas Ela respondeu bom a você eu conto mas se eu também não puder contar eu não digo Sentamos no sofá da sala e indaguei por que ela rezava Eu rezo a motivo da minha saúde Porque essa seita que eu tenho é de nascimento porque minha aldeia era de índio por parte de pai e de mãe Então parece que eu herdei alguma coisa minha filha Que eu não queria aceitar Aí eu fiquei doente que até meu cabelo caiu E eu tinha aquela visão assim me dizendo ou eu aceitava ou eu ficava louca por que eu já fiquei ou prostrada em cima de uma cama Fiquei tomando remédio controlado oito anos porque eu não queria aceitar a seita de rezar Aí quando eu vi que eu ia morrer mesmo porque eu só fiquei o couro e o osso Aí eu me assujeitei Rezo nas pessoas rezo nas crianças e aí eu me sinto bem Luciana de Freitas Silva 75 anos em 10082018 A seita é um dom que eu recebi de Deus aí eu tenho essa seita que me acompanha afirmou D Luci Ela é rezadeira há mais de vinte anos já estava casada quando começou Embora tenha declarado que o dom de rezar constitui uma herança de família ela reza a partir de uma intuição que por vezes também qualifica como uma visão Essa intuiçãovisão lhe possibilita recordar as palavras que pronuncia quando reza os as que lhe procuram porém não lhe faculta a lembrança do que diz antes ou após cada benzimento realizado Ela relatou que começou a ter visões insistindo para que rezasse as pessoas e que quando reza se sente muito bem é guiada por uma intuição que lhe permite perceber se o problema carregado por outrem é de natureza espiritual se é caso de médico ou se trata de um problema a ser resolvido por alguém mais forte isto é por um a rezador a mais velho a ou um a curador a Quando está diante da pessoa que solicita a reza D Luci recebe a determinação para rezar a criatura a ordem que eu tenho na hora me chamando com o objeto indicado que pode ser um terço uma folha de pião roxo uma folhinha verde ou um galho de arruda Ao analisar os símbolos 307 utilizados pelos rezadores em suas práticas Douglas 2010 destacou que os objetos utilizados no ritual promovem a interação entre o corpo e a mente dos rezadores Após aceitar o dom de rezar as pessoas D Luci revisou algumas ações que lhe traziam malestar Atualmente ela não utiliza expressões depreciativas como xingamentos falar da vida dos outros inventar da vida da pessoa me intrigar Eu não posso fazer dessas coisas que eu é que me dou mal Então eu tenho que atender Ela também evita desenvolver atitudes egoístas Então quando eu cometo assim qualquer falta eu sinto E tomo uma queda terrível Queda Queda Como eu já caí aí na porta sem ninguém empurrar sem tropeçar sem nada Então eu vou levando Eu tenho obrigação de dar merenda às crianças Eu compro bala eu compro pipoca eu faço arrozdoce e dou às crianças Então as crianças me cercam muito e eu me sinto bem Se chegar uma pessoa com uma criança pra eu rezar eu sinto aquele alívio no meu coração Quanto mais eu rezo nas pessoas mais eu me sinto bem Eu rezo e assim se vai acontecer algo assim numa pessoa eu tenho o dom de dizer fulano assim assim assim E as pessoas ficam bem Luciana de Freitas Silva 75 anos em 10082018 Antes de rezar D Luci realiza um rito a minha oração que Deus me deu Ela explicou que essas coisas aí minha filha são particular Não são de ficar dizendo Para D Luci rezar é uma virtude sagrada uma obrigação cuja força reside na inspiração de Deus na fé depositada no sagrado e na crença que há no coração daquele a que vem lhe pedir a caridade A oração possui uma energia invisível do plano do sentimento Conforme relatado no capítulo dois D Luci tem a sua mesa de santo onde mensalmente oferece comida aos seus meninos São Cosme e São Damião É a festa das crianças quando ela faz pipoca salgada e arrozdoce e compra um saco de balas para distribuir para as crianças372 da vilacentro Durante as atividades em campo presenciei duas rezas muito significativas realizadas por D Luci A primeira foi em uma mulher residente em um distrito de Senhor do Bonfim que procurou D Luci devido às dificuldades que estava 372 Ela faz um revezamento para assegurar que nenhum menino fique de fora que a festa é pra eles mesmos 308 enfrentando para se aposentar O benefício foi liberado quinze dias após o benzimento A segunda reza foi em uma sobrinha que ficou viúva no primeiro semestre de 2017 e estava muito triste Por esse motivo recorreu aos cuidados da tia Terminado o rito D Luci anunciou que a sobrinha estava grávida daria luz a uma menina e teria um parto muito feliz E assim de fato ocorreu A fé Paula é um recurso dado por Deus que sustenta a teia da vida mas pra isso a pessoa tem que se ajudar Você não vê aqui esse lugar O que tem sustentado esse Cariacá aqui de pé são as orações das pessoas que têm fé que faz diminuir as brigas a ambição que não tem nada pior que a ambição na vida da pessoa Se a pessoa vem aqui e me pede pra eu rezar eu rezo que é uma obrigação que eu tenho Mas aí se a pessoa não quer se ajudar vai ficar assim pedindo pra rezar toda vida Não é feliz Tem que ter a fé em Deus porque tem o invisível Tem o que é de Deus e o que não serve pra ninguém Então aí minha filha a pessoa é que tem que se apegar ao que é bom e fazer o bem Que raiva essas coisas não leva ninguém pra frente A pessoa que tem ódio no coração dá um passo pra frente e dois pra trás a vida toda Luciana de Freitas Silva 75 anos em 10082018 D Luci se define como rezadeira eu sou católica Vou pra igreja e não é só aqui no Cariacá não Vou na igreja em todo lugar O padre sabe que eu rezo que esse é um dom que Deus me deu Se disser assim a Luci é rezadeira Sou e me orgulho disso D Luci e D Roxa não costumam cobrar por seus benzimentos A prática de rezar coloca em diálogo essas duas mulheres que possuem trajetórias distintas mas dividem a missão que receberam para aliviar a dor das pessoas Certa ocasião enquanto eu contemplava algumas plantas no quintal de sua casa D Luci mencionou Você tá vendo aqui Tudo tem vida tudo é energia protege quem cultiva Esses gatos que eu tenho aqui que eu dou comida é energia Então a pessoa tem que se doar não adianta querer o bem pra si e não ajudar ninguém Que esse bem não chega que esse bem não vem Luciana de Freitas Silva 75 anos em 13082018 309 D Luci costuma presentear as pessoas que a procuram em busca de benzimentos partilhando orações católicas impressas terços e medalhas Desde que a conheci recebi diversos presentes dessa natureza Eu rezo mas também ajudo a pessoa a aprender a falar com Deus Que eu minha filha não sei de nada Quem sabe é Deus D Luci também prepara beberagens receita chás e alguns banhos para tirar o peso do corpo as pessoas se preocupam com o corpo mas às vezes quem tá carecido é o espírito As ervas são geralmente colhidas nos dias da Semana Santa Ela se levanta durante a madrugada para escolher as melhores folhas que serão utilizadas durante o ano a erva tirada na Semana Santa é erva benta Então você tem em casa pra usar quando é preciso Os habitantes de Cariacá e Lajedo procuram rezadores e curadores com frequência A cada quinze dias e ou no intervalo de um mês pais e avós costumam levar as crianças para ser rezadas para fortalecer o espirito do inocente Os adultos normalmente atribuem qualquer eventual desgosto ou circunstância inusitada na vida pessoal à ação de coisa feita se economicamente a situação desanda e começam a sofrer atribulação no diadia procuram um rezador ou consultam um curador Percebem o a rezador a como alguém que recebeu permissão de Deus para ajudar geralmente falam dos as rezadores as com muito carinho e lhe nutrem certo apreço Já o curador é alguém que deve ser temido Quando procuram curadores evitam conversar sobre o que viram ou ouviram durante a consulta temendo ser descobertos e punidos Assim afirmou D Naide não se brinca com curador tem que ter respeito porque é uma pessoa de força Eu acredito Alguns evangélicos também recorrem ao benzedor pois a reza é considerada sinônimo de bondade Porém não frequentam nem acreditam nas casas de curador Em ambas as comunidades enfocadas nesta tese as visitas aos curadores ocorrem discretamente Como afirmou D Raquel você não tem como saber quem é que tá impatano sua vida às vezes você tá aqui com toda fé com a pessoa e ela tá lhe destruindo Por isso quando vão em casa de curador costumam sair muito cedo para evitar que alguém bote ambição no que vão procurar e ou realizar Os as rezadores as também visitam os as curadores as ainda que com menor frequência e lhe solicitam auxílio pois são pessoas que têm mais força como destacou D Roxa se precisar é claro que eu vou Que eu não vou é ficar sofrendo sem dar providência D Luci também ressaltou a humildade é tudo na vida se eu preciso eu procuro A pessoa tem que se ajudar na vida tem que ter fé e humildade Ela só recorre a curadores em última instância pois costuma se benzer sozinha fazendo uso de 310 expressões que aprendeu com a avó e a mãe acionadas para fechar o corpo ao sair de casa ou para aquebrantar o inimigo São palavras de levantar Em algumas circunstâncias situações que a pessoa tem de passar porque aquilo faz parte da vida dela o silêncio é o recurso mais apropriado Em outros casos se deve evitar o uso de palavras de derrubar principalmente nas horas sagradas como na hora do Ângelo às seis da tarde e em determinados locais como em casa na casa de parentes muito queridos próximo a crianças de colo pois a criança fica assim toda vida com a sorte amarrada o inocente Aí é aquela pessoa que tudo que faz dá errado não tem sorte no emprego tudo que bota a mão não vai pra frente e aquilo começou pequenininho e o pobre não sabe A hora do Ângelo é também considerada especial para a população de Lajedo em observância aos preceitos dos antigos Seu Gilberto mencionou que pai mais mãe dizia que a hora do Anjo é uma hora sagrada que se a pessoa bem soubesse recanteava assim e rezava e a gente que anda no mato tem que saber e considerar essas ciência do povo véio A reza é percebida como um atributo constituinte dessa ciência todos precisam conhecer algumas palavras de reza para utilizar oportunamente seja para entrar no mato para espantar visagem do mato para repreender lobisomem e cobra para cortar olho ruim botado na barraca nos dias de feira A reza em Lajedo é ensinada aos de dentro e utilizada contra os de fora pois como esclareceu Seu Gilberto um parente aqui não vai rezar nas costa do outro Rezar nas costas tanto em Lajedo quanto em Cariacá é um recurso que se utiliza para afastar os desafetos aquebrantar as suas intenções e ações e promover o fechamento de seus caminhos A palavra lançada é um prognóstico ela pode abençoar ou amaldiçoar os seres humanos ou como destacado em Cariacá os caminhos da vida Através da reza a palavra adquire o sentido de uma evocação de força acionada pelos rezadores e curadores em diferentes proporções Algumas mulheres que são madrinhas em Lajedo no ato de botar a bença no a afilhado a pronunciam expressões próprias Quando os as filhos as viajam ou deixam a casa após o casamento ou em busca de trabalho nos grandes centros urbanos as bençãos são botadas com maior intensidade D Luci afirmou que abençoa os filhos todos os dias ainda quando ausentes e que nos dias de SextaFeira da Paixão para cada afilhado a utiliza uma palavra de abençoar que vai ao encontro de suas necessidades São palavras de abençoar filho e palavras de abençoar afilhado Os 311 quilombolas de ambas as comunidades também acreditam no poder das palavras utilizadas para esconjurar porcarias Os habitantes de Lajedo e Cariacá consultam concomitantemente médicos e curadores Em certos casos eles creem mais no poder do curador que adivinha o problema O médico não consegue diagnosticar imediatamente o mal que aflige o paciente Por esse motivo esses quilombolas sertanejos muitas vezes não adquirem os remédios prescritos pelos médicos mas sempre seguem à risca o tratamento receitado pelo curador Além de recorrerem aos benzedores e curadores eles acreditam na força de amuletos principalmente quando saem de casa ou vão para o mato Mulheres e homens costumam portar crucifixos e terços no pescoço fitas amarradas no braço ou tornozelo geralmente vermelhas e pequenas capangas confeccionadas por um curador de responsabilidade As mulheres colocam as capangas nos sutiãs e os homens no bolso Assim destacou D Luci a capanguinha assim é pra ninguém ver só sabe dela Deus e você Tem que ter cuidado para não perder pra outra pessoa não achar e você também não pode abrir pra ver o que tem dentro que aí tira o poder dela Muitas moradoras de Cariacá colocam plantas nas salas de suas residências para anular a energia negativa de certos visitantes Comigoninguémpode arruda e espada de Ogum por exemplo combatem olho ruim e inveja Elas também confeccionam arranjos com sal grosso e alho para as estantes ou mesas pois o sal e o alho absorvem a energia densa propagada no ambiente Segundo D Maria José toda casa se a pessoa bem soubesse criava uma tartaruga porque tudo quanto é ruim fica no casco da tartaruga Ela protege o dono da casa Durante os trabalhos em campo os as moradores as de Cariacá comentavam que a Luci sabe muita coisa ou ainda a Luci tem muita ciência D Luci se comunica com facilidade com o universo visível e invisível A necessidade de proteger o corpo o espírito e a casa é constante Ninguém vive bem se não tiver proteção afirmou D Luci e a reza é fundamental para obter proteção não importa se em casa ou na igreja Ela também recomendou acender uma luz de vez em quando pra o guia da pessoa pra o anjo da guarda porque é a gente quem precisa da companhia do guia Cada pessoa possui a sua companhia e deve zelar e agradecer os seus cuidados Esse universo místico invisível é constituinte do cotidiano dos moradores de Cariacá que com ele interagem e por ele são afetados Os mais velhos as ensinam os mais jovens a criar maldade para se defender Certa ocasião 312 quando escutava a narrativa de um caso sobre alguém que sofria perseguição invisível D Ivone destacou que não se deve dormir pro inimigo Os quilombolas de Cariacá acreditam que quando alguém está dormindo se torna vulnerável a orações específicas e a algumas práticas como por exemplo ter as sandálias emborcadas ou o seu nome escrito em um papel e lançado em um formigueiro Talvez essa preocupação esteja em parte relacionada aos já mencionados conflitos entre as famílias Congo Muricy e Tobodí que residem na vilacentro As práticas de rezarbenzer de manipular ervas para preparar chás beberagens e banhos o uso de amuletos e os cuidados diários com as afecções atribuídas ao mundo visível e invisível constituem um conjunto de preceitos observados no cotidiano de ambas as comunidades pesquisadas que coexistem com devoções a santos protetores igrejas e casas de curadores modelando uma espiritualidade que designo como Umbanda Sertaneja Como afirmou Resende 2018 p 64 a Umbanda ultrapassa os limites do religioso sendo concebida como uma rede para a obtenção de auxílio e suporte nos planos físico espiritual e emocional A Umbanda Sertaneja pode ser pensada como um conjunto de ritos entrelaçados pelos viveres e fazeres cotidianos que influenciam os caminhos da vida ou teia da vida dos quilombolas Cada ponto é tecido e ligado com esteio nas crenças que amparam ou expandem o sentido dessa espiritualidade A Umbanda Sertaneja fornece sentido ao ato de existir e de resistir Relato a seguir como essas práticas coexistem com o catolicismo sertanejo Concebo esse catolicismo como um intrincado sistema de práticas significados rituais e personagens que ultrapassam as fronteiras da Igreja e das ortodoxias católicas Steil 2001 p 10 71 QUANDO SÃO SEBASTIÃO PROTEGE O CARIACÁ DA FOME DA PESTE E DA GUERRA A população da VilaCentro de Cariacá venera e celebra os seus três santos padroeiros São Sebastião Santa Rita e Santo Antônio A devoção aos dois primeiros santos é mais expressiva pois ambos possuem capelas e são invocados com maior frequência no devocionário dos quilombolas 313 Imagem nº 52 Altar da Missa de Santo Antônio em 2019 Fonte Acervo da pesquisadora A imagem de Santo Antônio foi levada há cerca de dez anos para a capela de Santa Rita após a capela original situada em Morrinhos ter desabado em decorrência dos abalos provocados pelas atividades da construtora Irmãos Pelegrini373 373 Os atores sociais que residem nessa parte do território e que são devotos do santo explicaram que à época o empresário Aparício Pelegrini apareceu para se desculpar e reparar os danos ocasionados se propondo a reconstruir a capela No entanto como os moradores estivessem bastante chateados por que os abalos eram constantes em suas residências e segundo disseram em muitos momentos relativos ao dia sentiam o chão tremer assim como alguns objetos no interior de suas casas Eles não desejaram conversar com o dono da construtora tampouco aceitaram sua ajuda observei que especificamente em Morrinhos o senhor Aparício Pelegrini não é muito querido ao contrário do que ocorre na Vilacentro aonde o estimam bastante Na atualidade a antiga capela erigida em homenagem a Santo Antônio permanece em ruínas e a imagem do santo recebeu um altar na capela de Santa Rita de Cássia não obstante esse cuidado a devoção ao padroeiro diminuiu de intensidade Em 2018 depois de um vasto período sem receber homenagens Santo Antônio foi celebrado por seus fiéis que na tarde de treze de junho percorreram em procissão com o andor do santo o trajeto referente à capela de Santa Rita na vilacentro de Cariacá até o local onde antes se encontrava a antiga capela em Morrinhos Após a procissão aconteceu a celebração organizada por uma equipe de mulheres e a noite ocorreu à fogueira de Santo Antônio fato que emocionou sobremaneira os 314 A primeira vez que visitei Cariacá em 2014 me impressionou a quantidade de capelas e igrejas evangélicas especialmente a capela de São Sebastião situada em uma das áreas mais elevadas do território quilombola defronte ao cemitério local374 A devoção a São Sebastião está associada à vertente de cura à preocupação com a saúde do corpo e da alma Os quilombolas relataram que em 1925 a comunidade foi assolada por um surto de febre amarela que dizimou mais da metade de seus habitantes Abandonada à própria sorte a população vivenciou dias de medo e desespero sem qualquer tipo de assistência e sem recursos para se curar da enfermidade À época uma cearense que residia em Cariacá de Cima fez uma promessa para São Sebastião um voto perante o qual se comprometia caso a comunidade se livrasse do surto de febre a erguer uma capela em frente ao cemitério e iniciar a devoção ao santo Assim narrou D Luci A igreja de São Sebastião foi construída aqui por uma cearense Disse que houve uma epidemia que morria gente Disse que o coveiro não saía mais do cemitério cavando cova pra enterrar o pessoal Uma febre terrível O pessoal adoecia em um dia no outro morria onde eu perdi até uma tia que deixou cinco filhos ela adoeceu de uma febre amarela Ela adoeceu hoje aquela febre tão forte no outro dia o cabelo soltou todo e ela faleceu E essa cearense fez uma promessa com São Sebastião Que São Sebastião é o defensor da peste da guerra e da fome Então quem se pegar com ele essas doenças contagiosas não atinge a pessoa Até um bicho que você criar então se você se pega com ele então com fé você é atendida E ela construiu essa igreja de taipa Uma cearense que não era daqui mas tava aqui Então ela fez essa promessa de joelhos Se São Sebastião ajudasse que acabasse essa epidemia que ela construía essa igrejinha e não era para aumentar nunca Era para ser bem pequenininha que ainda hoje existe que é perto do cemitério Quem quisesse reformar podia reformar mas não pode tirar nem aumentar anciãos da comunidade que receberam um lugar de destaque ao redor da fogueira e mantiveram a oportunidade de reavivar sua fé Em 2019 o dia do padroeiro foi celebrado com uma missa solene que contou com a presença do padre e de uma equipe de mulheres vindas da cidade de Senhor do Bonfim Essa atividade na concepção dos devotos as atuou como um marco na retomada dos festejos que se encontravam adormecidos Existe muita expectativa para a reconstrução da capela que de acordo com os quilombolas se constitui a morada do santo 374 Nas pequenas comunidades rurais do sertão quilombolas ou não geralmente as capelas estão situadas em locais de fácil acesso 315 Aí ficou minha filha ela fez essa promessa Deus ajudou que acabou Acabou aquela peste e o pessoal ficaram bom Nunca mais atacou que é difícil acontecer essas meningite essas coisas aqui na nossa região Só acontece com quem não tem fé mas é difícil Aí ela fez Aí com o tempo derrubaram essa igreja fizeram de adobo Fizeram de adobo Aí com o tempo passou pra mão de uma Conga que é a Maria Aí o marido dela era pedreiro e trabalhava no Derba e fez a igreja de bloco A igrejinha tá aí bem bonitinha Outro rapaz que tá aí com as pernas amputadas que é dos Congos o Eduardo deu a cerâmica colocaram a cerâmica E tá aí Tem missa tem tudo aí na igreja Graças a Deus Luciana de Freitas Silva 75 anos em 23102015 A capela de São Sebastião já foi reconstruída três vezes Reformada em janeiro de 2017 e mais recentemente em janeiro de 2020 Na primeira ocasião as cores da fachada anteriormente branca e azul foram modificadas Isso desagradou a alguns devotos Todavia eles justificaram que a mudança de cores atendeu a um pedido feito pelo padre que realiza mensalmente as missas na capela A capela é arrumada três vezes por semana permanecendo aberta durante esse período Alguns moradores visitam o pequeno templo para rezar e acender velas A população católica da VilaCentro mantém uma cuidadora a serviço da capela de São Sebastião que vela por eles e os protege contra os malefícios da fome da peste e da guerra A primeira cuidadora do santo foi à própria cearense que realizou a promessa Ela passou a obrigação de zelar da igreja para uma tia de D Luci que por sua vez confiou a incumbência à irmã Maria Ferreira de Freitas sucedida na tarefa por D Maria da Silva Neris D Maria Neris declarou que quando era guardiã da imagem e da capela intensificou a veneração dedicada ao santo organizando novenas quermesses leilões e procissões Manteve essa tradição até adoecer e se mudar para a casa de sua filha em Senhor do Bonfim D Luzia Gomes conhecida como Lúcia é a atual cuidadora da capela Segundo D Luci A igreja de São Sebastião tem mais de 90 anos muitos anos Quando eu me entendi já existia Quem tomava conta era minha tia uma índia também irmã da minha mãe Ela ficou velha aí minha mãe foi quem ficou de conta da igreja Minha mãe era quem zelava Aí minha mãe 316 também ficou velha cansada aí passou pra mão dessa Conga Dona Maria Mas agora a Maria adoeceu e a chave fica na mão da Lúcia uma moça que zela que arruma Quando precisa a comunidade ajuda Sei que a igreja continua firme A imagem foi também essa cearense quem trouxe São Sebastião é bem pequenininho de madeira A primeira imagem ainda existe e é de madeira Tem a grande que colocaram depois mas São Sebastião antigo é bem pequenininho Luciana de Freitas Silva 75 anos em 23102015 Imagem nº 53 Capela de São Sebastião Fonte Acervo da pesquisadora 317 Em Cariacá os festejos de São Sebastião são realizados em 20 de janeiro A devoção ao padroeiro não inclui a puxada do mastro Defronte à capela há um cruzeiro375 e ao seu lado um pé de cedro cuja sombra favorece as atividades religiosas A árvore foi plantada quando a capela foi construída Couto 1994 apud Couto 2008 p 102 destacou que entre as antigas sociedades europeias era comum se erguer uma árvore mastro estaca poste ou coluna no centro de uma povoação para consagrar o espaço e invocar a atenção de divindades O mastro simbolizava o ponto de integração entre os três níveis cósmicos o céu a terra e o mundo dos mortos ou mundo de baixo O espaço no qual o mastro fosse fincado era sacralizado e tido como o centro do mundo o cosmo Cascudo 1979 sublinhou que muitas comunidades europeias durante a Idade Média representavam o mundo invisível por intermédio do abate e plantio de árvores cujo rito era acompanhado por cânticos de fertilidade Para Couto 2008 o hábito de fincar árvores como prática religiosa não é exclusividade europeia Em sua pesquisa sobre os indígenas Tupinambá da Serra do Padeiro no sul da Bahia ela sinalizou que nas culturas indígenas há rituais semelhantes a exemplo das corridas de toras dos indígenas Camacã A capela de São Sebastião possui dois ventrículos para ventilação e o piso foi recentemente revestido com cerâmica Há apenas um altarmor constituído por dois pilares de cimento e seis bancos de madeira envernizados O teto não é forrado No altar há uma estátua pequena de São Sebastião376 e outras imagens maiores um quadro uma pequena estátua de gesso e as imagens de Bom Jesus do Bonfim Senhor dos Passos Nossa Senhora da Conceição Aparecida e São José Esposo377 Na parede que sustenta o altar há quadros de Nossa Senhora do Desterro Santa Luzia e São José Operário No segundo pilar há um oratório antigo de madeira com algumas imagens e fotografias de devotos que fizeram promessas e que alcançaram graças Frequentemente são depositados três jarros de flores no altar pois segundo D Luzia São Sebastião assiste nós aqui do Cariacá diante de Deus E se a gente somos valido a gente cuida dele Eu agradeço a Deus hoje eu cuidar de São Sebastião que esse sempre foi um sonho assim na minha vida 375 Anteriormente os as devotos as utilizavam esse espaço para acender velas A prática foi abolida para não comprometer a base do cruzeiro que começara a ficar desgastada 376 Essa estátua de madeira foi doada pela primeira cuidadora e fundadora da capela É a imagem milagrosa e deve ser reverenciada por todas as gerações do Cariacá 377 Os católicos de Cariacá se relacionam com a paróquia de São José Esposo em Senhor do Bonfim Eles se valem da proteção do santo durante as estiagens 318 Imagem nº 54 Altar da celebração do dia de São Sebastião em janeiro de 2018 Fonte Acervo da pesquisadora Como já referido São Sebastião é festejado em Cariacá em 20 de janeiro Nesse dia a capela é aberta às seis horas da manhã e fechada após o retorno da procissão Há dez anos não é celebrada a missa D Regina se ressente da falta da missa mas faz o possível para que a procissão e a celebração ou a reza do terço em louvor ao santo não deixem de ocorrer Nas celebrações de 2015 e 2016 houve apenas a reza do terço à noite e em 2017 2018 e 2019 a procissão que contou com a participação de um pequeno número de fiéis em sua maioria residentes na VilaCentro Em 2020 não houve procissão e como a capela se encontrava em reforma a celebração em honra do padroeiro aconteceu no templo de Santa Rita de Cássia A retomada da procissão foi incentivada por Seu Bira e D Luci em reconhecimento à proteção do santo Como esclareceu Seu Bira 319 Porque você tá vendo como é que tá esse surto de zica e da chicungunha no mundo todo e o povo se acabando dessas doença E aqui no Cariacá você quase não vê essas doença mesmo com todo abandono dos político Que esse posto aqui não tem nada tem vez que nem abrir abre se você precisa de um remédio não acha Diz que não tem Um posto que não tem nada Mas aqui a gente não sofre dessas epidemia Por quê Porque abaixo de Deus aqui São Sebastião que vale todo mundo Que sustenta esse lugar A gente somos tudo validos Que ele é um guerreiro forte São Sebastião protege o Cariacá da fome da peste e da guerra Ubirajara de Jesus 51 anos em 09012018 Para os residentes na VilaCentro inclusive entre a população evangélica São Sebastião é associado a um guerreiro cuja atitude intercessora os favorece Os devotos retratam São Sebastião como um soldado que assiste o Cariacá diante de Cristo e afirmaram que em algumas circunstâncias entregam as demandas e agravos sofridos aos cuidados do santo Em Cariacá os mortos antes de ser sepultados passam pela capela de São Sebastião onde se realiza o rito de celebração do corpo378 Cunha 1979 afirmou que o santo católico São Sebastião tem como símile o orixá Obaluaye tido como o médico dos atores sociais negros e afrodescendentes Reginaldo Prandi 2001 também ressaltou que os valores atribuídos ao encantado tupinambá dialogam com as virtudes de bravura e força imputadas ao caboclo São Sebastião Seguem representações de habitantes de Cariacá sobre São Sebastião Um protetor da fome da peste e da guerra O povo acredita muito em São Sebastião e eu mesmo acredito muito nele Não só eu mas a família toda A gente aqui antigamente rezava antes de chegar o dia Quando chegava o dia mesmo a gente assim fazia muitas palhoça de palha e em cada palhoça de palha tinha uma representação Aí tinha assim a cigana cada uma palhoça dessas barraca tinha uma coisa diferente Rosângela Gomes de Oliveira 48 anos em 25112015 378 Até 2016 o rito fúnebre de recomendação das almas nas igrejas e capelas era frequente nas pequenas comunidades e cidades sertanejas Foi abolido oficialmente por determinação da Igreja Católica Em Cariacá entretanto o rito permanece a despeito das admoestações do pároco local 320 A mulher que toma conta da imagem dele também já fez muita festa bonita Só que agora a mulher adoeceu tá em cima da cama Então só reza e faz novena Essa devoção a São Sebastião eu ouvir falar que começou porque aqui tinha uma família e morreram tudo esse povo de uma febre que deu nas pessoa Aí fizeram uma promessa pra botar São Sebastião aqui por causa de uma febre a febre amarela Aí fizeram a igrejinha e colocaram ele lá A igreja é a mesma ela teve ruim derrubaram e aí fizeram do mesmo tamanho Fizeram do mesmo tamanho porque é promessa Não podia mudar Maria José do Nascimento 65 anos em 17122015 São Sebastião olha ele é um santo protetor Ele protege muito as pessoas Dele eu já ouvi falar de um milagre que aconteceu há muitos anos atrás Tinha uma pessoa doente eu não sei se era um filho que tinha pegado sarampo A pessoa ficou muito doente a família se apegou e ele ajudou Tânia Maria da Silva 54 anos em 28122015 Imagem nº 55 Velas em intenção às almas na capela de São Sebastião Fonte Acervo da pesquisadora 321 Durante a pesquisa de campo acompanhei as procissões realizadas em homenagem a São Sebastião organizadas pelos moradores da VilaCentro em 2017 2018 e 2019 A procissão é percebida como o ponto alto da festa A partir das quatorze horas as mulheres da comunidade começam a chegar à capela seja para auxiliar na arrumação ou para fazer preces e acender velas na intenção de seus entes queridos já falecidos guardados no cemitério sob a proteção do santo As mulheres acendem uma vela para cada membro da família sepultado para que eles encontrem a luz na eternidade Segundo Cascudo 2002 p 343 a representação da vida humana em velas e lâmpadas é um hábito universal As mulheres especialmente as de mais idade ou idosas esperam na capela a concentração dos demais devotos As últimas a chegar são as mulheres que coordenam a celebração D Regina e Adelmária conhecida como Sorriso se encarregaram dos ritos nos anos em que participei Fogos de artifício avisam à comunidade que a procissão está de saída Embora haja um andor a imagem de São Sebastião é conduzida pelo filho de Sorriso e pela neta de Regina Imagem nº 56 Procissão de São Sebastião em 2018 Fonte Acervo da pesquisadora 322 Um pequeno aglomerado de mulheres acompanha o cortejo que percorre as ruas de terra enfrentando o sol a pino e cantando Mártir São Sebastião Ele é nosso defensor Nos queira livrar da peste Meu amoroso senhor Nos queira livrar da peste Meu amoroso senhor Abrandai esses castigos Que andam sobre os pecadores Que anda sobre os pecadores Um castigo rigoroso Nos acode Senhor Com seu sangue precioso Livrainos com teu poder Da peste guerra e fome E também de todos os males Que os tristes homens consomem Jesus Cristo e São José Abençoe o nosso dia Mártir São Sebastião E a Virgem Santa Maria Oferecemos esse bendito Ao Mártir São Sebastião 323 Nos queira livrar da peste E nos dê a nossa salvação Benditos de São Sebastião entoado pelas mulheres de Cariacá À medida que a procissão passa muitas portas e janelas são abertas alguns moradores vão para as calçadas e traçam o sinal da cruz outros invocam com preces a proteção do santo Imagem nº 57 Altar da celebração do dia de São Sebastião em 2020 Fonte Acervo da pesquisadora Durante o trajeto ocorrem três paradas denominadas estações A primeira é em frente à capela de Santa Rita sinalizada por fogos de artifício Algumas mulheres residentes nas proximidades se juntam ao cortejo Os participantes se reúnem em círculo e 324 D Regina lê sobre algumas etapas da vida de São Sebastião destacando que o padroeiro os livrou da fome da peste e da guerra As pessoas rezam um PaiNosso e uma AveMaria e seguem adiante A segunda parada é em frente ao cruzeiro na entrada da comunidade É também sinalizada por fogos As mulheres formam um círculo ao redor do cruzeiro Adelmária lê mais alguns trechos sobre a vida de São Sebastião e todos realizam uma prece A terceira e última estação é embaixo do pé de cedro Revigorada com a sombra da árvore Regina lê os últimos episódios sobre a vida do padroeiro e o exalta São Sebastião como soldado de Cristo assiste o Cariacá em suas necessidades e na angústia de seu povo aflito as mulheres dão vivas ao santo e entram na capela para participar do rito final É realizada uma breve reflexão e todos na capela contribuem lendo evocando preces ou tirando benditos Todas as etapas da celebração são coordenadas por D Regina Tratase de uma devoção singela uma manifestação da fé depositada no santo protetor 72 UMA ROSA PARA SANTA RITA NOS VALER DAS CAUSAS IMPOSSÍVEIS A veneração a Santa Rita é a expressão de fé mais proeminente em Cariacá A padroeira possui inúmeros devotos em todo o território quilombola também em comunidades vizinhas e em alguns distritos de Senhor do Bonfim A santa é concebida como medianeira pelas viúvas idosos casais mães enfim por todos as os as que sofrem e necessitam da obtenção de graças impossíveis É uma crença tradicional na comunidade alicerçada em uma força moral e social e mantida por formas simbólicas e arranjos sociais Cf Geertz 2004 De acordo com os depoimentos de habitantes de Cariacá os tradicionais festejos de Santa Rita são realizados anualmente com novenas leilões bazar e confecção de camisas As comunidades vizinhas são convidadas especiais da novena Como enfatizou Nivaldo Osvaldo Dutra 2018 p 184 que pesquisou as comunidades negras de Mangal e Barro Vermelho situadas em Bom Jesus da Lapa os festejos em comunidades negras reforçam os laços de solidariedade ampliam as relações internas e externas e seus rituais extrapolam o campo religioso Em 2016 pela primeira vez um dos temas do novenário dialogou com a identidade quilombola A celebração foi conduzida por Valmir dos Santos 325 auxiliado pelos jovens Geovane Milena e Manuela relacionadas à AQCA Nesse mesmo ano a comunidade remanescente de quilombo de Tijuaçu foi à convidada especial da sétima noite da novena Santa Rita é celebrada durante todo o ano por seus fiéis nas atividades promovidas pelo grupo de oração379 que às terçasfeiras se reúne para rezar o terço O estandarte da santa é conduzido periodicamente para as casas das madrinhas do cruzeiro de pessoas doentes e dos devotos mais assíduos que participam das atividades religiosas na capela e contribuem para divulgar a devoção Durante o segundo semestre de 2015 o estandarte permaneceu a maior parte do tempo na casa de D Maria José Além de madrinha do cruzeiro ela carrega o andor durante a procissão A capela de Santa Rita foi edificada por uma mulher retratada como muito católica que residiu em Cariacá e foi sepultada na antiga capela de adobe A igreja de Santa Rita foi também gente de fora que fundou essa igreja aqui não sei o motivo Mas sei que foi uma mulher muito católica que construiu a igreja aqui também desses adobo crú construiu essa igreja tanto que ela faleceu e é enterrada dentro da igreja Eu não conheci essa mulher Depois ficou dona Maria Romana que é uma senhora de idade que tomava conta da igreja O sino da igreja é o sino melhor que tem na nossa região foi da Leste de Alagoinhas Um senhor que casou com uma moça daqui dos Muricy ele era agente da estação Aí ela pediu o sino se era fácil ele conseguir Ele disse que era que tinha bastante em Alagoinhas e trouxe o sino que ainda hoje existe aí Um sino muito bacana Luciana de Freitas Silva 75 anos em 23102015 Os quilombolas de Cariacá relataram que após a primeira capela ruir D Maria Romana envidou esforços para reconstruíla A capela atual é constituída por bloco e cimento Durante a minha primeira visita a Cariacá a capela de Santa Rita estava pintada de laranja a pedido do pároco local essa mudança desagradou alguns devotos Em 2018 a capela foi pintada de branco sua cor original 379 Grupo constituído por mulheres e homens que rezam o terço nas casas dos as devotos as ou de enfermos as Aos sábados o grupo reza o terço da Libertação e o Ofício da Imaculada Conceição na capela de Santa Rita 326 A presença ocasional de padres e bispos nas comunidades rurais é apenas tolerada pelos fieis pois eles costumam reprovar as práticas religiosas locais e introduzir inovações que não são acolhidas pelas comunidades Muitos devotos de Cariacá não frequentam as missas esparsas celebradas pelos padres pois o discurso canônico não dialoga com as visões de mundo e o universo religioso da comunidade Nos anos de 2015 e 2016 as relações dos moradores de Cariacá com o padre estavam estremecidas Apenas meia dúzia de fiéis compareciam às missas Desgostoso com a ausência dos devotos o padre passou a manter uma alternância maior entre suas visitas e presença na capela com a ausência do religioso a população devota de Santa Rita São Sebastião e Santo Antônio voltou a comparecer e retomar suas atividades habituais O que mais desagradou esses quilombolas sertanejos foram às modificações sugeridas pelo padre nos ritos da Semana Santa sobretudo nas vigílias e no cântico dos benditos Como destacou Dutra 2018 por vezes a religiosidade local tensiona quando confrontada com a cultura dominante A primeira imagem de Santa Rita foi roubada da capela Algumas moradoras de Cariacá suspeitam de uma mulher desconhecida que visitou a capela pretextando o cumprimento de uma promessa feita à santa Quando retornaram para fechar o templo a mulher e a imagem de Santa Rita haviam desaparecido D Maria Romana conseguiu trocar380 outra imagem na região O retorno de Santa Rita à capela foi celebrado com festa e procissão Outro episódio com a imagem da padroeira ocorreu no início de 2017 O padre levou a imagem em maio para restaurála Ela foi reconduzida ao altar apenas no dia da festa poucos minutos antes da procissão Na ocasião os as fiéis estavam alvoroçados as todos as desejavam ver a santa pois ansiavam o seu regresso Muitos as se emocionaram quando a imagem de Santa Rita foi depositada no andor A restauração da imagem da santa contribuiu para que o padre recuperasse a estima dos habitantes de Cariacá Em 2018 eles convidaram o pároco para a procissão e lhe pediram que presidisse a missa o rito final e mais importante dos festejos 380 Comprar 327 Imagem nº 58 Andor de Santa Rita de Cássia em 2017 Fonte Acervo da pesquisadora Acompanhei os festejos realizados em homenagem a Santa Rita de Cássia em Cariacá no período de 2015 a 2019 e percebi que nos anos de 2017 2018 e 2019 houve uma expansão das atividades desenvolvidas no novenário que passaram a agregar um número maior de fiéis inclusive àqueles que antes compareciam apenas à procissão D Regina forneceu uma explicação para o incremento da devoção à Santa Assim Paula a devoção de Santa Rita é um preceito das mulheres aqui do lugar desde os mais antigo Eu já cresci vendo a festa dela aqui porque todo mundo é valido por ela aqui no Cariacá e você sabe que devido às dificuldade da vida a pessoa se volta mais pra Deus e para a Mãe de Deus E assim o povo tá mais junto que a gente é uma comunidade quilomba e o povo do quilombo sempre teve junto Agora na capela na comunidade a gente tá tendo esse sentimento muito forte que é um sentimento de amor e você sabe que o amor é tudo Então hoje eu tô aqui mostrando aos meus neto amanhã eles tão no 328 meu lugar e a devoção a Santa Rita só aumenta Pras mulher pras mães pras viúva pra esse povo que é de idade e pros casais Então eu quero lhe dizer que Santa Rita protege todo mundo e o povo que antes era mais recanteado tá entendendo isso Que a casa de Deus cabe todo mundo Regina dos Santos Araújo 48 anos em 19052018 Em 2018 o prefeito indagou aos moradores de Cariacá se eles preferiam que a Prefeitura patrocinasse a festa junina local ou os festejos da padroeira Eles optaram pelos festejos de Santa Rita Com os recursos repassados pela Prefeitura anunciaram o evento em carros de som em todas as localidades do território quilombola e também nas comunidades de Terreirinho e Cachoeirinha divulgaram a programação do novenário nas rádios locais e confeccionaram convites impressos livro de cânticos e folhetos com a programação da festa A capela foi enfeitada com flores vela e água As flores foram oferecidas para agradecer a intercessão da padroeira nas causas impossíveis a vela simboliza a luz de Cristo sobre os membros de Cariacá e a água é a fonte da vida desde a barriga da mulher até os rios da terra Turner 2005 enfatizou que a finalidade dos símbolos é promover uma ligação entre o desconhecido e o conhecido Na perspectiva do autor os símbolos culturais constituem origem e sustentáculo de processos que envolvem transformações nas relações sociais As novenas foram mais animadas À noite havia quermesses e durante as tardes um bazar Fui convidada para celebrar uma das noites da novena que homenageava os idosos381 Interpretei o convite como uma demonstração de confiança fato que me deixou particularmente emocionada e agradecida Pedi permissão às mulheres para convidar D Ilca dos Santos moradora da comunidade quilombola de Tijuaçu e bastante conhecida em Cariacá D Ilca vende acarajé na VilaCentro aos domingos 381 Em 2019 fui novamente convidada Dessa vez para celebrar a noite de homenagem aos casais 329 Imagem nº 59 Novenário de Santa Rita de Cássia em 2018 Fonte Acervo da pesquisadora As atividades desenvolvidas no novenário tiveram como ápice a procissão em vinte e dois de maio Nesse dia a capela foi aberta às seis horas da manhã quando repicaram o sino e estouraram fogos de artificio Ao meiodia ela foi fechada e reaberta apenas para a missa campal A imagem da santa foi retirada da capela e depositada no andor D Regina é a responsável pela ornamentação do andor Ela é geralmente auxiliada por Gilmara Mônica Adelaide e Adelmária As outras mulheres se responsabilizam pela ornamentação da igreja e do cenário da missa campal Os homens colaboram movimentando os bancos para os locais apropriados as mesas para a composição do altar na iluminação e na armação dos dois toldos O período que antecede a procissão é caracterizado pelo vai e vem das pessoas que se esforçam para que tudo ocorra como planejado Em 2018 quando o padre participou do evento os devotos se esmeraram na decoração O trabalho de organização é concluído até às quinze horas quando os moradores vão para as suas casas se preparar para o evento Alguns vestem a camisa da festa outros usam roupas novas 330 compradas para o evento Como relatou D Maria José isso é um costume nosso Coisa que foi ensinada pelos nossos pai Ninguém vai de roupa velha no dia de Santa Rita Se a roupa não for toda nova tem que botar pelo menos uma pecinha diferente que é o dia da santa À tarde há uma maior circulação das pessoas que não estão envolvidas nos preparativos da procissão e da missa mas participam dessas atividades Às quinze e trinta os devotos ocupam os bancos da capela ou se espalham nas imediações Por volta das dezesseis horas chegam os ônibus com fiéis residentes nas outras localidades do território quilombola Moradores de comunidades e distritos vizinhos chegam em carros próprios para participar da festa e ou cumprir promessas Os quilombolas se sentem valorizados com a presença de amigos parentes e visitantes que contribuem para abrilhantar a festa Assim destacou D Lúcia quanto mais pessoas mais o dia de Santa Rita fica bonito As pessoa vêm aqui e veem tudo que nós fez pra ela Santa Rita Que ela merece tudo isso Há pessoas que só se reencontram no dia da Santa e aproveitam o momento para conversar indagar sobre os as afilhados as comadrescompadres e amigos as que não estão no evento Normalmente registram a festa com fotos e vídeos O cenário da missa campal é um dos mais registrados pelos fiéis Eles fotografam o altar e posam para fotos ao lado de afilhados as netos as e bisnetos as Alguns as fazem selfs O altar principal decorado pela manhã é constituído por uma mesa de madeira e duas de plástico forradas com toalhas de seda e renda brancas O altar principal é montado sobre a mesa de madeira coberta com uma toalha pintada com símbolos pascais São dispostas no altar uma imagem de Jesus Crucificado a Bíblia Sagrada e duas velas brancas O segundo altar é preenchido por duas jarras de água benta que serão aspergidas nos fiéis nos momentos finais da missa No terceiro altar são colocados os arranjos com flores Os sete bancos de madeira e as cinquenta cadeiras de plástico já estão totalmente ocupadas às dezessete horas quando chega o grupo musical de Senhor do Bonfim contratado para acompanhar a procissão e tocar o hino de Santa Rita ao longo do percurso As organizadoras da festa também chegam por volta desse horário 331 Imagem nº 60 Saída da Procissão de Santa Rita Fonte Acervo da pesquisadora A chegada do andor com a imagem da padroeira é saudada com palmas fogos e gritos de Viva Santa Rita de Cássia Esse é um dos momentos mais sublimes da festa caracterizado pela realização de preces e agradecimentos pessoais A capela que até então estava fechada é aberta e algumas mulheres entram para retirar o estandarte da Santa D Regina e D Gilmara se aproximam dos músicos para explicar o trajeto e fornecer instruções sobre os hinos D Maria José toca o sino repetidas vezes para anunciar a saída da procissão D Luci começa a distribuir água para os presentes advertindoos que não devem deixar o cortejo até que a procissão retorne D Adelaide conduz o estandarte à frente da procissão e D Maria José carrega o andor D Gilmara e D Regina solicitam que todos as fiquem de pé rezem um PaiNosso e uma AveMaria Após orarem elas anunciam o percurso da procissão Seu José Nunes solta fogos de artifício e a imagem de Santa Rita é conduzida através das ruas areentas da VilaCentro em meio a cânticos 332 orações e paradas para reflexões sobre a vida religiosa da Santa e os seus exemplos de humildade O percurso realizado pela procissão de Santa Rita é um pouco mais extenso do que o da procissão de São Sebastião O número das paradas é também mais longo são cinco Quando a procissão retorna para a capela já é noite A procissão é recebida pelas pessoas de mais idade que aguardam a realização da missa No período de 2015 a 2017 a festividade foi conduzida por religiosos da paróquia de São José Esposo ou por moradores da comunidade Em 2018 e 2019 como já referido o padre celebrou a missa Imagem nº 61 Andor de Santa Rita de Cássia durante o novenário de 2019 Fonte Acervo da pesquisadora 333 73 EM LAJEDO SÃO BENEDITO VEIO DO RIO A ligação da vida com o sagrado não é esporádica mas cotidiana e estreita As entidades são invocadas a qualquer hora do dia ou da noite com o propósito de bendizer e ou de requerer a maldição por qualquer desagravo ocasionado Além de preces orações benditos e cantigas os habitantes de Lajedo utilizam simpatias para assegurar a família e aqueles as que apreciam Quando invocam os seres reverenciados se emocionam e se exaltam modificando o timbre da voz e o gestual Afirmam sua fé em Deus nos santos e em parentes já falecidos Só frequentam igrejas por ocasião das homenagens a Nossa Senhora da Saúde Santa Luzia e São João Batista Por vezes organizam romarias para o santuário do Senhor Bom Jesus da Lapa Rezam com frequência e gostam de acender velas durante as preces pois a luz alumeia a vida Eles recebem muita proteção para viver naquele espaço afirmam que tudo que tem nome tem dono382 por isso precisam zelar pela terra na qual labutam pelas águas que correm nos regatos e pelas cachoeiras que os cercam Apesar de tecerem habilidosamente um universo místico para apoiar o seu cotidiano observei já nos primeiros dias em campo que os moradores de Lajedo não possuem um santo padroeiro Não há capelas na comunidade Antigamente durante a Semana Santa eles se reuniam para rezar na casa de D Maria Joaquina conhecida como Dita Além de rezadeira e parteira ela mantinha em sua residência um oratório com imagens sacras Seu Armando e Seu Timóteo se emocionaram ao falar sobre Dita Teve casa de reza mas igreja não A casa de reza era da minha tia e da minha avó Tanto rezava a criança quanto rezava em tempo de Semana Santa Ela rezava Ela chamava Maria Joaquina e Amanzinha Ela chamava Maria de Francisco mas o popular era Amanzinha Ela era muito querida dos mais velho fazia o bem a todos Timóteo Joaquim Santos 40 anos em 15072016 382 Essa expressão se refere tanto às entidades boas a exemplo de santos parentes falecidos espíritos da mata quanto às visagens do mato 334 Para os quilombolas de Lajedo as pessoas que rezam são sábias dominam a ciência para conectar os mundos visível e invisível Dita é reconhecida e respeitada pelos seus parentes pois manteve viva a prática de devoções e orações e zelou pelo desenvolvimento da espiritualidade nativa Ela ensinou orações aos parentes Eles se recordam da invocação ao Ofício de Nossa Senhora uma oração poderosa que deve ser rezada durante a Semana Santa e diante de qualquer dificuldade como parto difícil de mulher ou para espantar visagem que apareça em casa ou no mato Seu Timóteo relatou que nos dias de quarta quinta e sextafeira da Semana Santa os moradores da comunidade independente da faixa etária se dirigiam após as dezoito horas para a casa de Dita para tirar ladainhas cantar benditos e rezar ofícios Permaneciam rezando até a meianoite não podiam retornar antes para casa sob pena de se deparar com o lobisomem ou outras visagens do mato Durante a Sextafeira da Paixão Dita recebia muitos convidados para o almoço Os mais velhos jejuavam e segundo Seu Timóteo iam para a casa de sua tia para rezar antes de ingerir a primeira refeição do dia Entre os participantes do almoço muitos as ficavam para a reza da noite Seu Armando destacou Na Semana Santa juntava de oitenta a noventa pessoas pra rezar na casa de uma tia minha que era moça velha principalmente na Sexta Feira Santa Começava a rezar às oito horas da noite e ninguém ia embora não Enquanto não amanhecia o dia não ia ninguém Que ela mesmo dizia assim enquanto a gente não rezar o Ofício de Nossa Senhora não pode sair ninguém daqui porque corre o risco de vocês encontrar no caminho alguma coisa aí na estrada lobisomem visagem Aí o pessoal ficava com medo né Ficava a noite todinha ali O Ofício rezava perto de amanhecer o dia Armando João dos Santos 68 anos em 16072016 Quando dava a hora sagrada383 isto é a meianoite as mulheres que sabiam rezar o Ofício de Nossa Senhora384 se ajoelhavam diante do oratório cujas imagens sacras eram 383 A expressão hora sagrada foi também utilizada por Seu José Preto em Cariacá 384 O Ofício de Nossa Senhora é uma oração forte e poderosa que deve ser realizada de joelhos postos Eles afirmaram e afirmam que Nossa Senhora se ajoelha no céu sempre que o ofício é rezado na terra As mulheres da comunidade relataram que durante os partos difíceis as pessoas que entravam no quarto se ajoelhavam e rezavam o Ofício de Nossa Senhora em pouco tempo o inocente vinha ao mundo 335 cobertas com tecidos na cor roxa385 os homens se ajoelhavam atrás das mulheres pois nem todos sabiam a oração apenas acompanhavam As crianças ajoelhavam ao lado das mães ou das avós a hierarquia da penitência efetuada era estruturada em função do conhecimento da reza Quando entrevistei D Dejanira mãe de Seu Armando na cidade de Saúde ela rememorou que durante a reza eles acendiam um pacote de velas pois como afirmava Dita estavam velando a Paixão de Jesus Cristo e não podiam rezar para Nossa Senhora no escuro Quando terminavam de orar as mulheres cantavam benditos que faziam doer o coração Além do Ofício de Nossa Senhora as mulheres rezavam o Ofício das Almas após uma hora da madrugada para pedir pelas almas dos familiares falecidos D Dejanira relatou que Dita incitava a todos as a rezar com fé pedindo pelas almas dos fiéis defuntos Ninguém ousava levantar até que o rito estivesse finalizado Na acepção de Asad 1986 a tradição é constituída por discursos e práticas que se relacionam a um passado e a um futuro Após o falecimento de Dita alguns parentes que residiam em Saúde levaram o oratório e as imagens Atualmente as famílias de Lajedo almoçam na casa do parente mais velho da Quartafeira Maior até a Sextafeira da Paixão Todavia não mais tiram ladainhas e rezam diversos ofícios mas apenas o PaiNosso e a AveMaria O Sábado de Aleluia era investido de uma mística particular Em todos os lares os habitantes colocavam por volta de meiodia uma bacia no terreiro para ver a aleluia passar386 Nas comunidades quilombolas situadas na região em estudo às práticas religiosas observadas durante a Semana Santa expressam os ensinamentos daqueles as que fazem de sua fé a base para as lutas e labutas cotidianas Nas entrevistas realizadas durante a pesquisa etnográfica os moradores de Lajedo afirmaram que não havia um padroeiro em sua comunidade e que depois do falecimento de Dita ninguém mais trocou uma imagem sagrada Percebi que eu havia provocado uma recordação positiva na comunidade pois tanto as mulheres quanto os homens passaram a aventar a possibilidade de ter um santo advogado Assim argumentou D Rosa 385 Durante a Semana Santa as imagens sacras devem ser cobertas no primeiro dia da quaresma e descobertas após a meianoite do Sábado de Aleluia para reverenciar o luto pela morte de Jesus Cristo 386 Tratase de mais um rito que compõe a ciência denominada de sabedoria dos mais velhos O sol por vezes brinca ou briga com a lua e no Sábado de Aleluia ocorre um encontro entre os dois astros Os quilombolas colocavam uma bacia de esmalte no quintal e ou no terreiro da casa para enxergar no interior do vasilhame o sol passar pela lua 336 É eu acho que é preciso aqui ter alguém que vele por nós diante de Deus que todo lugar tem Então eu acho que a gente devia ter também que nós aqui também carece de bença Como todo mundo carece ser valido Rosália Matias dos Santos 65 anos 26052017 D Rosa associa a bênção à proteção que um santo padroeiro pode oferecer Os moradores de Lajedo começaram a discutir sobre qual santo padroeiro deveriam escolher pois também precisavam de um advogado para proteger e representar a comunidade destacou Seu Gilberto Um pouco antes da abertura da reunião da associação Seu Armando me chamou reservadamente e colocou Eu tive pensando Paula daquela pergunta que você fez lá na minha casa sobre a gente aqui ter um santo e eu acho assim que a gente aqui também devia ter o nosso santo Que isso é bom pra o lugar que a comunidade fica protegida fica com a proteção de Deus e do santo Aí eu mais os colegas as mulher também a gente teve assim a compreensão que o santo devia ser São Benedito Armando João dos Santos 68 anos em 28052017 Quando Seu Alberto finalizou a reunião e me perguntou se eu desejava dizer alguma coisa Eu me levantei e compartilhei o comentário de Seu Armando sobre São Benedito Os participantes se entreolharam D Idália se manifestou eu não tenho nada contra sobre isso não Indaguei se desejavam que eu trocasse a imagem Seria um presente meu para a comunidade Rose que estava debruçada sobre a pequena murada perguntou sim e onde é que vai botar São Benedito D Rosa propôs que colocassem a imagem na sede da associação Argumentei que a imagem de São Benedito deveria ser assentada em um local mais tranquilo onde pudessem rezar e acender velas Seu Alberto sugeriu a escola desativada situada na região dos Aprígio Todos concordaram Propus que fizéssemos um pequeno oratório com base de bloco e cimento para assentar a imagem de São Bendito Seu Gilberto afirmou que a imagem poderia ser colocada no terreiro em frente à sua casa Seu Heranga sugeriu que o oratório fosse erigido ao lado da associação próximo ao tanque Assim São Benedito abençoaria a comunidade a associação e a água Foi feita uma rápida 337 votação e a localidade sugerida por Seu Heranga foi acatada A escolha de São Benedito obedeceu a alguns critérios dentre os quais a cor negra da imagem e a trajetória de sofrimentos pessoais do Santo Ademais a população de Lajedo se identificou com a resiliência de São Benedito Quando realizei pesquisa de mestrado em Tijuaçu comunidade que também adota como intercessor São Benedito observei que de igual modo os quilombolas dessa comunidade se identificam com a trajetória e a personalidade do Santo Sobre a veneração a São Benedito em Tijuaçu a pesquisadora Carmélia Miranda 2009 p 129 destacou em suas mãos estão todas as agruras de seus devotos que aguardam com ansiedade o recebimento de suas graças e zelam com grande fervor o seu altar pondo flores trocando toalhas e acendendo velas Quando a comunidade de Lajedo começou a cultuar São Benedito o fez de um modo singular e portanto essa devoção se transformou em mais um sinal diacrítico do grupo Deixei o campo decidida a encontrar a mais bonita imagem de São Benedito em Senhor do Bonfim Mas não existem muitas imagens do Santo nessa cidade e as disponíveis são muito pequenas Queria uma imagem de tamanho razoável esculpida em resina Gostaria de levar um presente delicado pois a imagem concretizaria o início de uma devoção na comunidade de Lajedo Finalmente encontrei uma imagem com as características que almejava em uma loja de produtos católicos Quando cheguei em casa na cidade de Ponto Novo havia uma mensagem de Rose em meu celular informando que eles não desejavam receber São Benedito naquela semana Quando retornei ao campo Seu Alberto me explicou que eles haviam pensado melhor e perceberam que precisavam se organizar para receber o padroeiro Queriam convidar as comunidades vizinhas e fazer uma festa Os moradores de Lajedo apreciam celebrações e há tempos não confraternizavam com parentes comadres compadres e amigos em seu próprio território Após a construção do oratório compra de fogos e organização do lanche para os participantes em 30 de julho de 2017 a imagem de São Benedito foi recebida em Lajedo Participaram do evento membros das comunidades de Palmeira Coqueiros Dionísia Santa Cruz do Coqueiro Carrasco e Grota das Oliveiras A imagem foi recebida às margens do rio pois assim o Santo abençoaria as águas as cachoeiras e suas plantações e em seguida foi transportada para o oratório A veneração a São Benedito e a outros santos negros como Nossa Senhora do Rosário e Santa Efigênia durante o período colonial foi introduzida pelos missionários e 338 acolhida pelos as escravizados as Cf Miranda 2009 p 131 Eles reinterpretaram os rituais de devoção ao rosário de Nossa Senhora pois se emocionaram com a sua vida Sobre as práticas de devoção a São Benedito a autora enunciou O santo mais popular entre os negros São Benedito tem como atributo a humildade docilidade subserviência e submissão Dessa forma é apresentado como modelo a ser seguido Os referidos santos tiveram um grande número de devotos negros cativos e forros na América portuguesa em decorrência de suas histórias de vida e da cor de sua pele Os cativos negros e forros identificavamse com tais características apresentadas por esses santos MIRANDA 2009 p 132 A comunidade de Lajedo organizou uma carreata com quatorze automóveis A imagem do santo seguiu no carro principal Foi também realizada uma procissão Os participantes carregavam flores ou ramos verdes Não houve missa porque o padre não estava presente Uma celebração foi conduzida pelas rezadeiras387 da comunidade de Dionísia Elas recomendaram que o oratório fosse arrumado toda semana que os habitantes de Lajedo zelassem pelo santo e realizassem anualmente a procissão para receber bênçãos e proteção para a comunidade Terminada a celebração os participantes rezaram o terço e em meio ao estouro de fogos de artifício deram Vivas a São Benedito Viva o nosso padroeiro Seu Alberto fez uma louvação ao protetor agradecendo a sua presença na comunidade constituída por um povo negro e muito sofrido São Benedito seja advogado nosso diante de Deus Que aqui São Benedito todo mundo é muito sofrido Abandonado pelas autoridade aqui nós só tem Deus e agora o senhor que vai velar por nós e ajudar a gente E em nossa humildade que aqui São Benedito a gente é tudo fraco O senhor é muito querido e bem vindo por nós Alberto Santana de Azevedo 48 anos em 30072017 387 Grupo de mulheres que reza o terço e cuida das celebrações religiosas em sua comunidade Quando solicitadas auxiliam também as atividades religiosas das comunidades vizinhas 339 Imagem nº 62 Louvação de Seu Alberto a São Benedito Fonte Acervo da pesquisadora Finalizada a louvação Alberto agradeceu aos presentes pediu uma salva de palmas para o Santo e sugeriu que fosse servido o lanche preparado por D Mariene 731 CELEBRANDO O DIA DE SÃO BENEDITO A última semana do mês de setembro de 2018 foi movimentada na comunidade de Lajedo Todos as se mobilizaram para realizar a missa e a procissão em homenagem a São Benedito Em um primeiro momento a associação decidiu que organizaria apenas a procissão haja vista a dificuldade de conseguir um padre Porém Seu Joaquim anunciou que o pároco de Mirangaba se comprometeu a abençoar a imagem do santo e celebrar uma missa em Lajedo 340 O dia 30 de setembro foi escolhido para sediar os festejos dedicados a São Benedito uma data posterior à festa em homenagem a São Miguel celebrada na igreja das Figuras388 e frequentada por moradores de Lajedo Assim durante todo o mês de setembro a comunidade se envolveu nos preparativos dos festejos de São Benedito D Idália não permaneceu em Lajedo para acompanhar as atividades mas enfatizou que desejava que tudo ocorresse como esperado Que os povo convidado venha porque tá todo mundo trabalhando muito Todas comunidade que tem santo faz festa Então se o povo daqui agora já tem tem que fazer a festa também Eu não vou que eu conheço a palavra mas eu quero o bem deles aqui que é tudo meus irmão meus parente conhecido que nós mora tudo junto Então eu quero ver eles contente que eu acho que o povo daqui também merece ter uma festa pra o santo Idália Santana de Azevedo 45 anos em 25092018 Em 26 de setembro Seu Joaquim percorreu as localidades da Grota Quilombola para formalizar o convite para a festa de São Benedito nas associações e capelas Quando chegou em casa confidenciou à esposa Juce o Lajedo vai ficar lotado se o povo todo que disse que vinha aparecer no dia Ele confirmou com o padre a realização da missa Seu Joaquim e Seu Alberto providenciaram a bebida que seria comercializada pela associação durante os festejos e conseguiram um freezer para armazenála Providenciaram lâmpadas para melhorar a iluminação nas imediações da APACQL pois haveria dança após a missa Seu Armando que passara a semana consertando a sanfona e um tecladista de Senhor do Bonfim animariam a festa O evento foi integralmente organizado e patrocinado pela associação Eles as recusaram o auxílio de políticos Como observou Seu Heranga o Lajedo é forte não carece desse povo não A gente tem nossa capacidade 388 Igreja de São Miguel das Figuras construída em 1755 no alto da serra das Figuras em cumprimento a uma promessa pelo garimpeiro Romão Gramacho Atualmente a igreja está em ruínas mas a devoção ao santo permanece viva entre a população sertaneja inclusive a de Lajedo 341 Imagem nº 63 Oratório de São Benedito ao lado da Associação Fonte Acervo da pesquisadora Na véspera eles adquiriram pães e outros ingredientes para o cachorroquente que pretendiam comercializar durante os festejos para levantar recursos para a associação Se certificaram do comparecimento de parentes e compadres da Grota das Oliveiras principalmente de D Eliane Ela sabe rezar porque você sabe Paula que os povo daqui não tem muito esse costume das reza Assim das reza pra o santo Então a gente quer a ajuda das mulher da Dionísia e das Oliveira Que um dia com fé em Deus as mulher daqui vão saber ajudar também Alberto Santana de Azevedo 48 anos em 29092018 342 No dia dos festejos a população de Lajedo estava muito animada Alguns homens levantaram às quatro da manhã para retirar palha verde com o propósito de enfeitar a entrada e a saída da festa outros foram buscar o freezer e armar a barraca das bebidas Imagem nº 64 Entrada para a Festa de São Benedito Fonte Acervo da Pesquisadora As mulheres ornamentaram o altar e o andor e prepararam o almoço dos visitantes assim como o cachorroquente Os moradores de Lajedo recepcionaram os parentes das outras comunidades procurando acomodálos da melhor forma possível Para agilizar o serviço da cozinha as mulheres agregaram aos fogões a lenha pequenas trempes nos terreiros das casas pois precisavam finalizar todo o trabalho até o meiodia já que a procissão estava marcada para as catorze horas e a missa para as quinze horas D Juce comentou agora a gente também vai celebrar nosso padroeiro As rezas nós vai aprender com as mulher da Dionísia Às 12h30 o fluxo de pessoas era intenso sobretudo na região dos Félix e dos Inocêncio Todas as residências estavam lotadas de parentes comadres 343 compadres afilhados e amigos Segundo D Roxa que se hospedou na casa de sua filha Idália Os povo tudo veio pra prestigiar São Benedito Eu trouxe três caixa de fogos que eu vou soltar na procissão E agora o povo do Lajedo tá feliz com essa festa É pena que os mais véios nem tudo vem mas eu vou ficar aqui até terminar tudinho Eulina Carmelina de Santana 75 anos em 30092018 Faltavam vinte minutos para as catorze horas quando D Juce sua mãe duas sobrinhas e seus três filhos nos encontraram na casa de Seu João Colado Seguimos para o entroncamento389 e nos reunimos com visitantes e moradores de Lajedo esperando a chegada do andor com a imagem de São Benedito para iniciar a procissão Quando chegamos ao entroncamento D Juce explicou que teríamos que descer um pouco pois colocar o Santo numa encruzilhada é desrespeitoso A alegria do encontro atenuou a espera havia muita expectativa ante a chegada das rezadeiras da Dionísia principalmente D Aparecida muito querida na comunidade e adjacências Como destacou D Roxa nos assuntos de reza a palavra da senhora Aparecida possui um valor inconteste Ela costuma substituir os padres nas celebrações do território quilombola Quando o automóvel chegou trazendo D Aparecida e as demais rezadeiras da Dionísia o número de pessoas que esperavam o andor havia se multiplicado Eliane nora de D Miúda solicitou a D Roxa que soltasse fogos de artifício para sinalizar o começo da procissão Alguns sugeriram que os fogos deveriam ficar sob a responsabilidade dos homens mas D Roxa retorquiu eu mesma solto que foi eu que soltei meus fogos quando eu cheguei da Lapa Eu mesma sei soltar Ela disparou a primeira caixa despertando a admiração e o respeito dos presentes As mulheres quilombolas sertanejas constroem suas autonomias nas labutas cotidianas quando reafirmam por meio de atitudes diversas o valor da santa ousadia com a qual conduzem as suas vidas 389 O entroncamento é uma encruzilhada que limita a região dos Félix com a região dos Inocêncio lá estão colocadas as únicas placas da comunidade uma indica o caminho para a cachoeira do Gelo e a outra sinaliza a chegada da energia elétrica no território quilombola 344 Embora passasse das quinze horas e o sol reivindicasse uma resistência maior por parte dos presentes todos esperaram o andor e o ônibus da cidade de Mirangaba com os fiéis do grupo do terço das igrejas de Santa Luzia e de São João Batista Havia muita expectativa com relação à ida do padre Quando Seu Joaquim apontou na larga estrada de terra trazendo junto ao peito a imagem de São Benedito acompanhado por outras pessoas que carregavam o andor D Roxa soltou mais fogos e o Santo foi efusivamente saudado Viva São Benedito Viva o nosso padroeiro Viva todas comunidades Viva o povo do Lajedo Houve muitos aplausos alguns se emocionaram e D Juce acomodou a imagem no andor Imagem nº 65 Entronização da imagem de São Benedito no andor Fonte Acervo da pesquisadora 345 Houve certo tumulto pois todos as queriam tocar o padroeiro se persignar fazer uma prece ou agradecimento Findo o ato de receber São Benedito D Aparecida conduziu a procissão Ela cumprimentou a todos as e agradeceu as presenças ressaltando a relevância do momento para a comunidade de Lajedo Povo de Deus Atenção aqui pra um esclarecimento eu expliquei ao Alberto que não era para deixar São Benedito na associação que era pra ele levar o Santo e deixar na casa dele Pra gente fazer um percurso diferente do ano passado mas ele acho que esqueceu Que isso é ciência dos povo antigo O Santo não pode fazer o mesmo trajeto Eu tô dizendo isso pros mais novo não esquecer mas São Benedito perdoa Maria Aparecida dos Santos em 30092018 Seu Joaquim me pediu que proferisse algumas palavras antes da saída da procissão Falei um pouco sobre a vida de São Benedito e parabenizei a comunidade pelo carinho e esforço coletivo para comemorar o dia do padroeiro Destaquei que a partir daquela data os festejos de São Benedito seriam incorporados ao calendário religioso de Lajedo e de toda a Grota Quilombola Em seguida D Aparecida pediu a todos que rezassem o PaiNosso e a AveMaria de mãos dadas para iniciar a procissão As rezadeiras da Dionísia e as mulheres de Grota das Oliveiras390 se posicionaram de modo que quando um grupo de mulheres tirasse o bendito o outro grupo pudesse responder D Aparecida cantou Meu São Benedito Sua casa cheira Cheira a cravo cheira a rosa Cheira a flor da laranjeira 390 Os quilombolas de Grota das Oliveiras compareceram ao evento com uma camisa em homenagem a Nossa Senhora das Grotas Considerei o fato curioso pois quando da minha estadia nessa comunidade eles elas informaram que a sua padroeira é Nossa Senhora da Conceição Aparecida Indaguei a Seu Jorge por quê eles vestiram a camisa com a imagem de Nossa Senhora das Grotas Ele informou que o padre presenteou a comunidade com a imagem da Santa e pediu a eles que mantivessem no cruzeiro a imagem de Nossa Senhora Aparecida e na sede ao lado da associação a de Nossa Senhora das Grotas 346 Cheira cravo cheira a rosa Cheira a flor da laranjeira Meu São Benedito É um santo preto Que fala na boca E responde no peito Que fala na boca E responde no peito Meu São Benedito Com Jesus Menino Ele é um santo forte Do amor divino Ele é um santo forte Do amor divino Trechos do bendito de São Benedito entoado pelas mulheres da comunidade de Dionísia A procissão conduziu o andor para a associação onde ocorreria a missa Descemos a ladeira de terra com guardachuvas nas mãos e atravessamos um pequeno olho dágua A chegada da procissão na sede suscitou novas homenagens ao Santo foram ouvidos aplausos e fogos de artifícios Orientados por D Aparecida os fiéis circularam três vezes o oratório O andor foi disposto sobre a mesa e as pessoas se dispersaram A festa teve dois momentos seu Armando se apresentou com a sanfona e na sequência houve a dança animada por um tecladista especialmente contratado para a ocasião Foi à primeira festa ocorrida em Lajedo após a instalação da energia elétrica 347 A demora na chegada do pároco começou a inquietar as mulheres algumas cogitaram a possibilidade de ele não aparecer ou ter errado o caminho Finalmente ele chegou no carro da paróquia D Aparecida se adiantou para recebêlo e aos três coroinhas que o acompanhavam As pessoas que estavam no salão da associação aplaudiram e pediram a bênção ao sacerdote Com a chegada do religioso o fluxo de pessoas no salão aumentou Seu Heranga acendeu as luzes D Juce se aproximou cumprimentou o padre e providenciou quatro cadeiras colocandoas ao lado da mesa O padre solicitou vamos ajustar o altar Alguns homens retiraram o andor e ficaram com a imagem na mão e o padre ajudou a reorganizar o altar para a cerimônia Durante a celebração o padre não mencionou a história de São Benedito nem enfatizou a relevância dessa primeira missa celebrada em homenagem ao padroeiro Ele também não cumprimentou os moradores pelo esforço empreendido para realizar a festa Finalizada a missa o padre olhou para os presentes e colocou o padre quer dizer uma coisa para vocês Quando eu cheguei aqui o padre só celebrou a missa porque eu olhei e vi aqui vocês que são as minhas ovelhas Em seguida ele repreendeu os participantes esclarecendo a diferença entre ritos religiosos e eventos considerados profanos Todos ficaram constrangidos sobretudo as mulheres que permaneceram de cabeça baixa evidenciando sentimentos de vergonha e de contrariedade Solicitei a D Juce que localizasse Seu Joaquim para agradecer ao pároco em nome da associação e da comunidade391 A ausência do sacerdote deixou os participantes mais à vontade para externar a alegria D Mariene descreveu a ocasião como um sonho de todos nós aqui Pena que não deu pra fazer batizado dos menino Foi tudo muito rápido mas ano que vem nós se prepara melhor Seu Joaquim Seu Gilberto e Seu Alberto arrumaram o caminhão que serviria de palco para os artistas da festa As casas da comunidade repletas de parentes que já residiram no território permaneceram com as portas e janelas abertas durante a festa O sorriso aparecia com facilidade no rosto de todos as crianças corriam e brincavam serelepes fazendo algazarra os idosos riam alto enquanto aproveitavam para conhecer as ramas mais novas e provar de todas as iguarias oferecidas nas barracas alguns adultos bebiam ou se abraçavam e ensaiavam passos de samba outros trabalhavam procurando 391 Após a saída do padre da sede da associação tentei encontrálo para argumentar sobre a relevância do evento para a comunidade mas ele já havia partido 348 vender quitutes e bebidas Os adolescentes namoravam e teciam novas relações de amizade Quando a noite caiu sob o céu do Lajedo as mulheres de forma reverente e contrita se persignaram diante da imagem de São Benedito devolvendo o padroeiro para o oratório sob aplausos dos fiéis Quando as luzes da gambiarra foram acesas e a sanfona de Seu Armando começou a tocar todos se aproximaram do palco com um brilho especial no olhar Imagem nº 66 Segunda procissão realizada em homenagem a São Benedito em Lajedo em 2019 Fonte Acervo da Pesquisadora 349 As comunidades quilombolas enfocadas nesta tese se pensam amparam seus saberes e expandem as suas existências com esteio na espiritualidade A espiritualidade precede os processos de afirmação étnicoidentitária ela é constituída por saberes ancestrais que sempre nortearam as suas trajetórias de vida Ressignificados no contexto da luta eles são percebidos como saberes da resistência ou emancipatórios Cf Gomes 2017 visto que lhes possibilitaram migrar do terreno da marginalidade e tomar as rédeas do seu próprio destino 350 CONSIDERAÇÕES FINAIS OU A DIFÍCIL TAREFA DE COLOCAR UM PONTO SEM INTENÇÃO DE FINALIZAR Onde se dizia ou se pensava não existir milhares de homens e mulheres em comunidades rurais populações ribeirinhas povos da floresta ou populações tradicionais passaram a reivindicar a terra territórios e políticas públicas Ao longo dos anos 1980 e 1990 em vários encontros com destaque ao pioneirismo do Maranhão comunidades negras rurais remanescentes de quilombo começaram a se organizar nas reivindicações de seus direitos sobre as terras que ocupavam Quilombos e mocambos do presente e do passado se encontram aí Tratase de uma história secular de luta pela terra articulada às experiências da escravidão e da pósabolição GOMES 2015 p 128129 As comunidades negras rurais situadas na região norte do sertão baiano reorganizaram suas relações de parentesco entrelaçadas por laços do compadrio e vizinhança e reforçadas na luta pelo território Foram estigmatizadas durante séculos devido à cor e à condição socioeconômica dos seus habitantes Foram expropriados de suas terras e submetidas a um isolamento sem acesso a meios de comunicação educação escolar assistência à saúde e às demais políticas públicas No final da década de 1990 essas comunidades protagonizaram e permanecem protagonizando o Barulho do Quilombo cujos ecos promoveram o despertar de seus membros para a percepção de sua ancestralidade A Negritude Sertaneja tanto durante a escravidão quanto no período pós escravocrata permaneceu adormecida misturada à população camponesa Essa foi uma estratégia de resistência Ela silenciou memórias e omitiu o heroísmo de seus ancestrais Não obstante as comunidades negras se agruparam em contínuos étnicos sobreviveram e proliferaram contestando a autoridade excludente da sociedade inclusiva O despertar dessas comunidades foi caracterizado por uma tomada de consciência sobre ser negro a pressuposto básico para a construção identitária do ser quilombola A etnicidade foi impulsionada na ação política O Barulho do Quilombo é interpretado nesta tese não apenas como um movimento de natureza política mas também pedagógico um lugar compartilhado para discussões sobre existências insurgências e resistências de recuperação da história e dos saberes tradicionais das comunidades As famílias negras organizadas em pequenas médias e grandes comunidades ao estuciarem o Barulho do 351 Quilombo atentam para o valor das tradições ressignificam simbologias e reivindicam autorias enquanto netos e bisnetos de mocambeiros que se descobriram quilombolas O contato com comunidades tradicionais determinou a escrita desta tese que objetivou compreender como as comunidades quilombolas de Cariacá e Lajedo constroem as suas identidades A convivência com os membros dessas comunidades as interações em campo viabilizadas pela técnica da participação observante foram os fios condutores deste trabalho que enfocou as cosmovisões saberes tradicionais rearranjos políticos econômicos sociais e culturais que conferem sentidos e produzem significados Foi necessário entender o caminhar desses sujeitos antes e após a descoberta de sua ancestralidade seus ritos simbólicos de passagem e suas implicações em ambas as comunidades Como destacou Clifford Geertz 1989 o etnógrafo deve ter a habilidade necessária para construir reconstruir signos e analisar os discursos A convivência com os membros de Cariacá e Lajedo ampliou os meus conhecimentos problematizados ao final do curso Como observa James Clifford 2014 o trabalho de campo antropológico é tanto um laboratório científico quanto um rito de passagem pessoal Enfatizo que deve ser tomado em conta o impacto do agenciamento etnográfico tanto para o pesquisador quanto para os seus interlocutores uma vez que ambos constituem sujeitos cuja participação ativa é determinante durante a pesquisa e a construção do texto Foi difícil colocar um ponto final nesta tese pois temi fragilizar o pacto etnográfico que pressupõe uma relação de confiança entre pesquisadores as e pesquisados as e que não se dilui com a finalização do trabalho de campo e a elaboração do texto Compartilho a perspectiva de Geertz 1989 de que o trabalho de campo é uma experiência maravilhosa difícil é a tarefa de decidir o que foi aprendido Entre os aprendizados na convivência com os quilombolas destaco uma fala de D Luci sobre a natureza dos pontos que ligam a teia da vida Partilho pois da concepção nativa que modela um pensamento sistêmico caracterizado pela comunhão entre os seres saberes e vivências no escopo dos ideais projetados para uma sociedade planetária como propôs Edgar Morin 2015 Não me interessam a frieza e a suposta neutralidade da ciência hegemônica que ao não se permitir ser tocada se aprisiona Definome como uma pesquisadora itinerante sensibilizada pelas lutas e resistências tecidas pelos quilombolas sertanejos que em suas trajetórias cotidianas produzem epistemologias É a sabedoria do povo do mato cunhada nas artes de estuciar e prestar assunto para orientar a 352 caminhada confrontar os obstáculos e inimigos externos a exemplo das lentes estreitas da burocracia estatal Para pensar a produção identitária pesquisei os modos de ser e de se perceber quilombola nas comunidades de Cariacá e Lajedo e percebi que tão importante quanto à identidade modelada como linguagem é aquela produzida de maneira intimista isto é o fluxo cotidiano que norteia comportamentos viés que sustenta e impulsiona as labutas As cosmovisões entrelaçam fé conhecimentos e espiritualidades invocando proteção para si para a família e estendendo essa condição à parentagem ou acionando os efeitos da proteção contra os de fora Esses saberes tradicionais norteiam a relação com o território concebido como um lugar sagrado que precisa se identificar com seu dono como informou D Maria do Rosário A relação com a terra é caracterizada por afeto e zelo evidenciados quando trazem uma garrafa com a água dos milagres de Bom Jesus da Lapa para utilizála quando realizam o primeiro plantio do ano ou guardam as cinzas da fogueira de São João para espalhálas sobre o solo em atitude de reverência esperando receber a retribuição na colheita e na prosperidade As orações preceitos experiências e saberes que compõem a sabedoria do povo do mato nem sempre se revelam ao olhar externo pois sua força reside parcialmente no segredo Esses conhecimentos foram historicamente percebidos como subalternos e passíveis de reproches Como argumentou Boaventura de Souza Santos 2002 a ciência moderna promovida a racionalizador de primeira ordem da vida social assume o extraordinário privilégio epistemológico de se apresentar como a única forma de conhecimento válido Em muitos momentos da pesquisa essa ciência foi contestada pelos meus interlocutores as As epistemologias produzidas distintamente e com zonas de confluências em ambas as comunidades enfocadas nesta tese não me passaram despercebidas Interpretei as vivências como processos educacionais Na concepção de Nilma Lino Gomes 2017 p 91 na medida em que se afirmam como sujeitos da história do conhecimento e da cultura os as atores sociais negros as têm a oportunidade de afirmar e reafirmar modos alternativos de humanidade e de se perceber como sujeitos de direitos e de conhecimento ainda não reconhecidos pelas concepções hegemônicas de cidadania e ciência Em ambos os grupos a descoberta da tradicionalidade ensejou a reconstrução da etnicidade agenciada como uma costura interna e um canal de comunicação com a 353 sociedade envolvente A condição que em tempos pretéritos fora utilizada para destituir seus ancestrais de humanidade para inferiorizálos passa a ser utilizada para construir a cidadania de todo um coletivo possibilitando que mulheres homens jovens e crianças descubram a beleza de seus corpos cabelos e estilos de vida antes divisados como inadequados diante do fenótipo branco e eurocentrado percebido como majoritário Os quilombolas de Cariacá e Lajedo se reinventam continuamente Destaco como parte importante dessa costura identitária os esforços mobilizados para recuperar o mito fundador A história dessas comunidades foi sufocada também por uma questão de preservação pessoal O senhor Paulo Quitero por exemplo chegou ao Lajedo fugido para se livrar da perseguição do coronel Joaquim Malta Também a Família Congo esteve exposta ao preconceito xingamentos e cerceamentos por parte de membros da família Muricy As memórias eram relegadas ao esquecimento pelos descendentes porque as lembranças provocavam sofrimento psicológico e vexame social D Ninha e D Maria José em Cariacá e Seu Gilberto Seu Alberto e Seu Joaquim em Lajedo afirmaram a gente não dava importância não ligava não sabia que essas histórias tinha valor É o despertar da ancestralidade quilombola que estimula a recuperação das histórias coletivas utilizadas para legitimar a condição de comunidades tradicionais O ativismo político fomenta as ressemantizações sobretudo o da Associação Quilombola cujo trabalho tanto em Cariacá quanto em Lajedo é de fundamental importância para a compreensão do rito de passagem dessas comunidades Essas comunidades construíram uma identidade contrastiva identificada pela sociedade inclusiva e pelo Estado como identidade quilombola O ser quilombola dialoga com muitas outras identidades tecidas pelos atores sociais A emancipação e a costura identitária foram perpassadas pela retomada das atividades culturais que no caso de Cariacá foi facilitada pela criação do Quilombart e em Lajedo pelo reaparecimento do samba Assim a cultura assume o lugar da tensão contínua fluida e muitas vezes incoerente de relacionamentos influências e antagonismos com a cultura dominante Cf Hall 2005 p 257 Outro elemento relevante para pensar a tessitura da identidade e a função de linguagem é o papel da religiosidade nessas comunidades Ressalto os critérios que orientaram a escolha do padroeiro em Lajedo Ao elegerem São Benedito como protetor seus membros evidenciaram uma identificação com a vida do Santo e a devoção passou a ser utilizada como sinal diacrítico da comunidade única naquele contínuo étnico que apoia 354 a sua caminhada de fé na intercessão de um advogado negro como São Benedito passou a ser conhecido Os quilombolas não são mais tidos como seres genéricos e abstratos São percebidos pelo Estadonação como sujeitos políticos de direito e historicamente situados A identidade das comunidades quilombolas se constrói na interseção com a sociedade envolvente De maneira análoga aos elementos acionados nas comunidades quilombolas para orientar os processos de construção identitária a escrita do texto etnográfico é composta com esteio em traduções dos recortes da realidade trabalhada sob a perspectiva da plausibilidade Como destacou Geertz 1989 a prática da etnografia pressupõe o estabelecimento de relações a seleção de informantes a transcrição de textos a elaboração de genealogias entre outros Isto é a sistematização do risco elaborado para uma construção densa É também percebida como uma análise que envolve aprender e depois apresentar Nesta tese o pacto etnográfico agenciou o encontro com as emergências lutas e resistências protagonizadas pelos as interlocutores as aqui apresentados sob a ótica da criatividade do Barulho do Quilombo atividade que prossegue pulsante no contexto dos sertões baianos driblando obstáculos negociando com as instituições estimulando a produção de saberes e vivências em contínua reinvenção pois ainda há muito a ser dito sobre as insurgências assim como sobre as tessituras inscritas e escritas pelas comunidades de Cariacá e Lajedo 355 REFERÊNCIAS ABREU José Capistrano Caminhos antigos e povoamento no Brasil São Paulo Edusp 1988 ALMEIDA Alfredo Wagner Terras Tradicionalmente ocupadas processos de territorialização e movimentos sociais Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais v 06 nº 1 maio de 2004 Os quilombos e as novas etnias é necessário que nos libertemos da definição arqueológica In LEITÃO Sérgio org Direitos Territoriais das Comunidades Negras Rurais Documento do Isa n 5 1999 pp 4379 Terras de Preto Terras de santo Terras de índio uso comum e conflito In Habette Castro org Na Trilha dos grandes Projetos Belém NAEAUFPA 1999 ARANTES NETO Antônio A Sagrada Família uma análise estrutural do compadrio Caderno 5 Campinaas BrasilienseIFCH Unicamp 1975 ARRUTÍ José Maurício Mocambo Antropologia e História do processo de formação quilombola São Paulo Edusc 2006 O Quilombo Conceitual para uma Sociologia do artigo 68 Rio de Janeiro Mímeo 2003 A emergência dos remanescentes notas para o diálogo entre indígenas e quilombolas Mana Rio de Janeiro V 03 nº 2 1997 ANDERSON Benedict Nação e Consciência Nacional São Paulo Ática 1989 356 ANJOS Rafael Sanzio Araújo Territórios das Comunidades Remanescentes de Antigos Quilombos no Brasil primeira configuração espacial Brasília Mapas Editora Consultoria 2000 BAIOCCHI Mari de Nazaré Kalunga povo da terra Brasília Ministério da Justiça Secretaria do Estado dos Direitos Humanos 1999 BHABHA Homi O Local da Cultura Tradução de Myriam Ávila Eliana Lourenço de Lima Reis Gláucia Renate Gonçalves Belo Horizonte UFMG 2003 BANDEIRA Maria de Lourdes Terras Negras invisibilidade expropriadora Textos e debates Florianópolis NUERUFSC ano I nº 2 1991 BARTH Frederik Grupos Étnicos e suas Fronteiras In POUTIGNAT Philippe e STREIFF Jocelyne Teorias da Etnicidade São Paulo Unesp 1997 BARTOLOMÉ Miguel Alberto As etnogêneses velhos atores e novos papéis no cenário cultural e político Mana online 2006 vol 12 n 1 pp 3968 BAUMAN Zygmunt Identidade Rio de Janeiro Zahar 2005 O Malestar da Pósmodernidade Rio de Janeiro Zahar 1998 BELTRÃO Maria O Alto Sertão Anotações Rio de Janeiro Casa da Palavra 2010 BENTO Maria aparecida Silva Cidadania em Preto e Branco discutindo relações raciais São Paulo Ática 2000 BERND Zilá O que é Negritude São Paulo Brasiliense 1988 357 BOSI Ecléa Memória e Sociedade lembranças de velhos São Paulo Companhia das Letras 1994 BRASIL Constituição Federal de 1988 Artigos 68 215 216 Brasília Senado Federal 1988 BRASIL Presidência da República Decreto nº 6040 de 7 de Fevereiro de 2007 Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais Disponível em httwwwplanaltogovbrcivil 03Ato 2007 20102007DecretoD6040htm Acesso em 20 de outubro de 2010 BRASIL SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL Parâmetros Curriculares Nacionais Pluralidade Cultural Secretaria de Educação Fundamental Brasília MECSEF 1997 BRASIL SECRETARIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA ALFABETIZAÇÃO E DIVERSIDADE Dimensões da Inclusão no Ensino Médio mercado de trabalho religiosidade e educação quilombola Brasília MECSEPPIR 2006 BRASIL SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana Brasília MECSEPPIR 2004 BULTEAU Veronique Para uma Antropologia do Sertão Ecologia e Sociologia do Cotidiano Petrolina Edupe 2016 CARVALHO Maria Rosário CARVALHO Ana Magda org Índios e Caboclos a história recontada Salvador EDUFBA 2012 CARVALHO José Jorge org O Quilombo do Rio das Rãs Histórias tradições e lutas Salvador CEAO EDUFBA 1996 358 CASCUDO Luís da Câmara Antologia do Folclore Brasileiro Vol1 São Paulo Global 2014 Dicionário do Folclore Brasileiro São Paulo Global 2002 A vaquejada nordestina e sua origem Recife Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais 1969 CASTRO HENRIQUES Isabel Percursos da Modernidade em Angola Lisboa Instituto de Investigação Científica Tropical 1997 CESAR América Lúcia Silva Lições de Abril a construção da autoria entre os Pataxó de Coroa Vermelha Salvador EDUFBA 2011 CHAGAS Míriam de Fátima A Política de Reconhecimento dos remanescentes das comunidades dos quilombos Horizontes Antropológicos V 07 nº 15 2001 CHAUÌ Marilena Cultura e Democracia Salvador Secretaria de Cultura 2007 CLIFFORD James A Experiência Etnográfica Antropologia e Literatura no século XX Rio de Janeiro UFRJ 2014 COUTO Patrícia Navarro de Almeida Morada dos Encantados Identidade e Religiosidade entre os Tupinambá da Serra do Padeiro Buerarema Ba 2008 169 f Dissertação Mestrado em Ciências Sociais Programa de Pósgraduação em Ciências Sociais UFBA Salvador 2008 CRESHAW Kimberlé Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial relativos ao Gênero Estudos Feministas 12002 Ano 10 p 171 188 359 CUNHA Euclides Os Sertões a campanha de Canudos São Paulo Martin Clairet 2005 CUNHA Manuela Carneiro Antropologia do Brasil mito história etnicidade São Paulo Brasiliense 1987 FANON Frantz Pele Negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 FREIRE Paulo Pedagogia da Esperança Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido 6ª ed São Paulo Paz e Terra 1999 Pedagogia do Oprimido Rio de janeiro Paz e Terra 1975 FILHO Wilson Trajano Por uma Etnografia da Resistência o caso das Tabancas de Cabo Verde Brasília Série Antropológica vol 408 2006 FOUCAULT Michel Microfísica do Poder Graal Rio de Janeiro 1979 FUNES Eurípedes Nasci nas matas nunca tive senhor história e memória dos mocambos do Baixo Amazonas In REIS João e GOMES Flávio Liberdade por um Fio história dos quilombos no Brasil GALVÃO Eduardo Santos e Visagens um estudo da vida religiosa de Itá Amazonas São Paulo Companhia Editorial Nacional 1955 GEERTZ Clifford A Interpretação das Culturas Rio de Janeiro LTC 1989 GENNEP A V Os ritos de passagem Petrópolis Vozes 2011 GILROY Paul O Atlântico Negro 34ª ed São Paulo Cultura 2001 360 GODOI Emília Pietrafesa de Mobilidades Encantamentos e Pertença o mundo ainda está rogando porque ainda não acabou Revista de Antropologia São Paulo USP 2014 v 57 nº 2 p 143167 GOLDMAN Márcio Contradiscursos Afroindígenas sobre Mistura Sincretismo e Mestiçagem Estudos Etnográficos RAU v 9 n2 juldez de 2017 pp 1128 A Relação Afroindígena Cadernos de Campo n 23 UFRJ 2014 História Devires e Fetiches das Religiões Afrobrasileiras ensaio de simetrização antropológica Análise Social Vol XLIV nº 190 pp 105137 2009 Os Tambores do Antropólogo Antropologia PósSocial e Etnografia Ponto Urbe Ano 02 versão 30 julho de 2008 Experiência em Lienhardt uma teoria etnográfica da religião Religião e Sociedade v19 nº 02 outubro 1999 pp 930 GOMES Flávio dos Santos Mocambos e Quilombos uma história do Campesinato negro no Brasil São Paulo Claro Enigma 2015 De Olho em Zumbi dos Palmares São Paulo Claro Enigma 2011 Histórias de Quilombolas mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro século XIX Rio de Janeiro Arquivo Nacional 1995 GOMES Nilma Lino O Movimento Negro Educador saberes construídos nas lutas por emancipação Petrópolis RJ Vozes 2017 361 HALL Stuart Da Diáspora Identidades e Mediações Culturais 2ª ed Belo Horizonte UFMG 2008 LIMA Vivaldo da Costa O Conceito de Nação nos Candomblés da Bahia AfroÁsia n 12 p 6590 1976 LOSONCZY A Marie A sabedoria e o umbigo Ritos de nascimento entre Parteiras entre os Embera e AfroColombianos do Alto Choco Colômbia In CARVALHO Maria Rosário REESINK Edwin CAVIGNAC Julie Orgs Negros no Mundo dos Índios imagens reflexos alteridades Natal RN EDUFRN 2011 p 427447 MACÊDO Ulla A Dona do Corpo um olhar sobre a reprodução entre os Tupinambá da SerraBA Dissertação Mestrado em Ciências Sociais Universidade Federal da Bahia PPGCSUFBA Salvador 2007 MARTINEZ Paulo África e Brasil uma ponte sobre o Atlântico São Paulo Moderna 1992 MARQUES Carlos Eduardo De Quilombos a quilombolas notas sobre um processo históricoetnográfico Revista de Antropologia São Paulo v 52 nº 1 pp 340374 2009 MAUSS Marcel Ensaio sobre a Dádiva In Sociologia e Antropologia São Paulo Cosac Naify 2003 Parentescos de Gracejos Ensaios de Sociologia São Paulo Perspectiva 2005 Ensaio sobre a Dádiva Forma e Razão da Troca nas Sociedades Arcaicas Sociologia e Antropologia Vol II São Paulo EPU 1974 p 37185 MIRANDA Carmélia Aparecida Vestígios Recuperados experiências da comunidade negra rural de Tijuaçu Ba São Paulo Annablume 2009 362 MOREIRA Gislene Sertões Contemporâneos rupturas e continuidades no semiárido Salvador EdunebEdufba 2018 MOURA Glória Festas dos Quilombos Brasília Unb 2012 MOURA Clóvis Os Quilombos e a Rebelião Negra 6ª ed São Paulo Brasiliense 1986 Rebeliões da Senzala quilombos insurreições e guerrilhas Rio de Janeiro Conquista 1972 MUNANGA Kabengelê GOMES Nilma Lino O Negro no Brasil de Hoje São Paulo Global 2006 MUNANGA Kabengelê Org Superando o Racismo na Escola 2ª ed Brasília 2005 Redescutindo a Mestiçagem no Brasil São Paulo Autêntica 2004 Negritude usos e sentidos 2ª ed São Paulo Ática 1988 NASCIMENTO Abdias O Quilombismo Petrópolis Vozes 1980 ODWYER Eliane Catarino org Terras de Quilombo Rio de Janeiro ABAUFRJ 1995 PARÉS Luis Nicolau REVISTA ESBOÇOS Volume 17 Nº 23 pp 165185 UFSC PIRES Maria de Fátima Novaes SANTANA Napolitana Pereira SANTOS Paulo Henrique Duque org Bahia Escravidão PósAbolição e Comunidades Quilombolas Estudos Interdisciplinares Salvador EDUFBA 2018 363 PIRES Maria de Fátima Fios da Vida tráfego interprovincial e alforrias nos Sertoins de SimaBA 18601920 São Paulo Annablume 2009 O crime na Cor escravos e forros no Alto Sertão da Bahia 18301888 São Paulo Annablume FAPESP 2003 PIRES Pedro Stoeckli Sobre Mestres e Encantados a Jurema como expressão sentimental 2010 177 f Mestrado em Antropologia Programa de Pósgraduação em Antropologia Social Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 REIS João José GOMES Flávio dos Santos Liberdade por um Fio história dos quilombos no Brasil São Paulo Companhia das Letras 1996 RODRIGUES Nina Os Africanos no Brasil São Paulo Companhia Editora Nacional 1977 SANTOS Boaventura de Souza A Difícil Democracia Reinventar as esquerdas São Paulo Boitempo 2016 Para além do Pensamento Abissal das linhas globais a uma ecologia de saberes In SANTOS Boaventura Souza MENESES Maria Paula orgs Epistemologias do Sul São Paulo Cortez 2010 p 3183 SANTOS Paula Odilon Ser Quilombola no Sertão Tijuaçu lutas e resistências no processo de construção identitária 2013 208 f Dissertação Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos Programa de Pósgraduação Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos Universidade Federal da Bahia UFBA Salvador 2013 SANTOS Paula Odilon Educação e Cultura Negra o caso de Tijuaçu Senhor do Bonfim 2001 Monografia de Graduação Universidade do Estado da Bahia UNEB 364 Educação e Cultura Negra o caso da comunidade quilombola de Tijuaçu Senhor do Bonfim 2004 Monografia de Pósgraduação Latusenso em Psicopedagogia Escolar Universidade do Estado da Bahia UNEB SERRA Ordep No Caminho de Aruanda a Umbanda Candanga revisitada Afro Ásia 2526 2001 pp 215256 SILVA Eduardo A Função Ideológica da Brecha Camponesa In REIS João José SILVA Eduardo Negociação e Conflito A Resistência Negra no Brasil Escravista São Paulo Companhia das Letras 1989 pp 6278 SILVA Jônatas Conceição Vozes Quilombolas uma poética brasileira Salvador EDUFBA 2006 SILVA Mônica C A M Emponderamento e Potencialidades para o desenvolvimento local na tradicional comunidade negra São João Batista de Campo Grande MS Campo Grande 2010 Dissertação de Mestrado Universidade Católica Dom Bosco SILVA Tomaz Tadeu Org Identidade e Diferença a perspectiva dos Estudos Culturais Rio de Janeiro Vozes 2009 SILVA Valdélio Santos Rio das Rãs e Mangal Feitiçaria e Poder em Territórios Quilombolas do Médio São Francisco 2010 354 f Tese Doutorado em Estudos Étnicos e Africanos Programa de Pósgraduação Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos Universidade Federal da Bahia UFBA Salvador 2010 SOARES Mariana Pettersen Almas e Encantados uma cosmologia sobre o mundo dos mortos na região do Baixo Amazonas 2013 278 f Tese Doutorado em Antropologia Programa de Pósgraduação em Antropologia Universidade Federal Fluminense UFF Niterói 2013 365 TADDEI Renzo Serestar no Sertão capítulos da vida como filosofia visceral Interface Botucatu online 2014 vol 18 nº 50 pp 597607 VASCONCELOS Cláudia Pereira Sertão Baiano o lugar da sertanidade na configuração da identidade baiana Salvador Edufba 2012 VIEIRA Filho Raphael Rodrigues Os Negros em Jacobina Bahia no século XIX São Paulo Annablume 2009 VIEIRA Suzane de Alencar Resistência e Pirraça na Malhada cosmopolíticas quilombolas no Alto Sertão de Caitité 2015 425 f Tese Doutorado em Antropologia Social Programa de Pósgraduação em Antropologia Social Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ Rio de Janeiro 2015 WEBER Max Sociologia da dominação In WEBER Max Economia e sociedade Brasília UnB 1991p 187223 367 ANEXO 1 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM OS ANCIÃOS DE CARIACÁ Identificação 1 Nome 2 Idade 3 Nome dos pais 4 Onde nasceu Sobre a vida na Comunidade 1 Me conte a história de Cariacá quando o senhorsenhora era menino a 2 O senhorsenhora sabe por que o Cariacá tem esse nome 3 Quem botou esse nome aqui 4 Eu ouvi falar que aqui já foi Passagem de Boiada O senhorsenhora sabe disso Me conte essa história 5 Me falaram que no passado o Cariacá era uma fazenda O senhor senhora sabe disso 6 De quem era essa fazenda 7 O senhorsenhora sabe como foi construída essa ferrovia 8 Me disseram que aqui antigamente teve muito índio O senhorsenhora sabe algo sobre isso Teve índio aqui 9 Para onde os índios foram ANEXOS 368 10 Me disseram que aqui tem uma família Congo O senhorsenhora conhece alguém dessa família 11 Quem são esses Congos 12 Me contaram que a dona desse casarão era D Trindade O senhorsenhora já ouviu falar dela 13 Falaram que aqui o Cariacá é um quilombo O senhor senhora sabe disso 14 Para o senhorsenhora o que é um quilombo 15 O senhorsenhora é quilombola 16 Como é ser um quilombola 369 ANEXO 2 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM OS MEMBROS DA DIREÇÃO DA ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA DE CARIACÁ E ADJACÊNCIAS AQCA Identificação 1 Nome 2 Idade 3 Nome dos pais 4 Onde nasceu O sentido de ser quilombola 1 Você é quilombola 2 Como é ser quilombola 3 Como ficou sabendo que Cariacá é uma comunidade remanescente de quilombo 4 O que mudou em você depois desta informação 5 Como era a vida aqui em Cariacá antes da comunidade ser considerada quilombola 6 Para você o que é mais importante na comunidade 7 Houve mudança na comunidade depois que ela foi reconhecida como quilombola 8 O que ainda não aconteceu aqui na comunidade e que você gostaria que acontecesse 9 Como você acha que a região principalmente a cidade de Senhor do Bonfim trata a comunidade de Cariacá O trabalho da Associação Quilombola de Cariacá 1 Como é o trabalho realizado pela Associação Quilombola de Cariacá 2 Como são escolhidos os membros da direção da Associação Quilombola de Cariacá 3 Quanto tempo dura o mandato dos membros da direção 4 Há quanto tempo você participa da direção da Associação Quilombola 370 5 Se não existisse a Associação Quilombola de Cariacá como a comunidade estaria 6 O que mudou na comunidade a partir do trabalho realizado pela Associação Quilombola 7 O que é mais importante no trabalho da Associação Quilombola 8 Quais as principais conquistas alcançadas até agora pela Associação 9 O que a Associação Quilombola ainda não conseguiu fazer e que você gostaria de ver realizado 10 Se você fosse definir a comunidade de Cariacá em uma frase o que diria 11 O poder político de Senhor do Bonfim colabora com o trabalho realizado pela Associação Quilombola Por quê A festa de Santa Rita 1 Como você vê Santa Rita 2 Como começou a festa de Santa Rita na comunidade 3 Quem trouxe a primeira imagem de Santa Rita para Cariacá 4 O que você sente no dia da festa de Santa Rita 5 Você acredita que Santa Rita protege a comunidade Por quê 6 Você já ouviu falar de algum milagre de Santa Rita aqui na comunidade Qual 7 Como você se sentiria se em algum ano a festa de Santa Rita não acontecesse A festa de São Sebastião 1 Como você vê São Sebastião 2 Como começou a festa de São Sebastião na comunidade 3 Quem trouxe a primeira imagem de São Sebastião para Cariacá 4 O que você sente no dia da festa de São Sebastião 5 Você acredita que São Sebastião protege a comunidade Por quê 6 Você já ouviu falar de algum milagre de São Sebastião aqui na comunidade Qual 7 Como você se sentiria caso em algum ano a festa de São Sebastião não acontecesse 371 Sobre as atividades culturais da comunidade 1 Como você vê o Quilombart aqui na comunidade 2 Como você se sente quando o Quilombart está se apresentando 3 Se o Quilombart fosse ficando esquecido na comunidade o que você sentiria Sobre as instituições que existem na comunidade 1 Como você vê a igreja Católica aqui em Cariacá 2 Como você vê a igreja Assembleia de Deus na comunidade 3 E a igreja Adventista do Sétimo Dia como ela age aqui em Cariacá 4 Você acredita que as igrejas que existem em Cariacá valorizam a causa quilombola da comunidade Por quê 5 Qual a importância da escola aqui em Cariacá 7 Você concorda com o tratamento que a escola dá a comunidade 8 Esse tratamento sempre foi assim 9 O que você gostaria de ver a escola fazer na comunidade 10 Se você pudesse mudar alguma coisa no trabalho da escola o que mudaria 372 ANEXO 3 ROTEIRO DA ENTREVISTA COM LIDERANÇAS QUILOMBOLAS DE CARIACÁ Identificação 1 Nome 2 Idade 3 Nome dos pais 4 Onde nasceu O sentido de ser quilombola 1 Você é quilombola 2 Como é ser quilombola 3 Como ficou sabendo que Cariacá é uma comunidade remanescente de quilombo 4 O que mudou em você depois dessa informação 5 Como era a vida aqui em Cariacá antes da comunidade ser considerada quilombola 6 Para você o que é mais importante na comunidade 7 Na sua opinião houve mudança na comunidade depois que ela passou a utilizar o título de comunidade quilombola 8 O que ainda não aconteceu aqui na comunidade e que você gostaria que acontecesse 9 Como você acha que a região principalmente a cidade de Senhor do Bonfim trata a comunidade de Cariacá Atividade de uma liderança quilombola 1 Como é ser uma liderança quilombola 2 Como você foi escolhido a para ser uma liderança 3 Qual é o trabalho de uma liderança quilombola 373 4 Como você se sente atuando como liderança em Cariacá A festa de Santa Rita 1 Como você vê Santa Rita 2 Como começou a festa de Santa Rita na comunidade 3 Quem trouxe a primeira imagem de Santa Rita para Cariacá 4 O que você sente no dia da festa de Santa Rita 5 Você acredita que Santa Rita protege a comunidade Por quê 6 Você já ouviu falar de algum milagre de Santa Rita aqui na comunidade Qual 7 Como você se sentiria se em algum ano a festa de Santa Rita não acontecesse A festa de São Sebastião 1 Como você vê São Sebastião 2 Como começou a festa de São Sebastião na comunidade 3 Quem trouxe a primeira imagem de São Sebastião para Cariacá 4 O que você sente no dia da festa de São Sebastião 5 Você acredita que São Sebastião protege a comunidade Por quê 6 Você já ouviu falar de algum milagre de São Sebastião aqui na comunidade Qual 7 Como você se sentiria caso em algum ano a festa de São Sebastião não acontecesse Sobre as atividades culturais da comunidade 1 Como você vê o Quilombart aqui na comunidade 2 Quando o Quilombart está se apresentando como é esse momento para você 3 Se o Quilombart fosse ficando esquecido na comunidade o que você sentiria Sobre as instituições que existem na comunidade 1 Como você vê a igreja Católica aqui em Cariacá 374 2 Como você vê a igreja Assembleia de Deus na comunidade 3 E a igreja Adventista do Sétimo Dia como ela age aqui em Cariacá 4 Você acredita que as igrejas que existem em Cariacá valorizam a causa quilombola da comunidade Por quê 5 Qual a importância da escola aqui em Cariacá 7 Você concorda com o tratamento que a escola dá à comunidade 8 Esse tratamento sempre foi assim 9 O que você gostaria de ver a escola fazer na comunidade 10 Se você pudesse mudar alguma coisa no trabalho da escola o que mudaria 375 ANEXO 4 ROTEIRO DA ENTREVISTA COM OS PARTICIPANTES DO GRUPO QUILOMBART Identificação 1 Nome 2 Idade 3 Nome dos pais 4 Onde você nasceu O sentido de ser quilombola 1 Você é quilombola 2 Como é ser quilombola 3 Como ficou sabendo que Cariacá é uma comunidade remanescente de quilombo 4 O que mudou em você depois dessa informação 5 Como era a vida aqui em Cariacá antes da comunidade ser considerada quilombola 6 Para você o que é mais importante na comunidade 7 Em sua opinião houve mudança na comunidade depois que ela passou a utilizar o título de comunidade quilombola 8 O que ainda não aconteceu aqui na comunidade e que você gostaria que acontecesse 9 Como você acha que a região principalmente a cidade de Senhor do Bonfim trata a comunidade de Cariacá A importância do Quilombart 1 Como o Quilombart começou 2 Quando iniciou suas atividades no Quilombart 3 Como isso aconteceu 4 Como as pessoas são escolhidas para participar do Quilombart 376 5 Você já se afastou do grupo alguma vez 6 Em caso afirmativo como se sentiu nesse período 7 O que você sente quando está se apresentando 8 Qual a sua função no grupo 9 Quem lhe ensinou 10 Como o grupo se mantém 11 Você acredita que existe alguma diferença de quando o Quilombart começou para o que é hoje 12 Quando o Quilombart vai se apresentar como é esse dia para você 13 Tem alguma coisa no grupo que você gostaria de mudar 14 O que você gostaria que ocorresse para melhorar as atividades do Quilombart 15 Você se sente valorizado pela comunidade como participante do Quilombart Por quê 16 Como a cidade de Senhor do Bonfim trata o Quilombart 17 Este tratamento sempre foi assim 18 Se você fosse definir o Quilombart em uma palavra o que diria A Festa de Santa Rita 1 Como você vê Santa Rita 2 Como começou a festa de Santa Rita na comunidade 3 Quem trouxe a primeira imagem de Santa Rita para Cariacá 4 O que você sente no dia da festa de Santa Rita 5 Você acredita que Santa Rita protege a comunidade Por quê 6 Você já ouviu falar de algum milagre de Santa Rita aqui na comunidade Qual 7 Como você se sentiria se em algum ano a festa de Santa Rita não acontecesse A Festa de São Sebastião 1 Como você vê São Sebastião 2 Como começou a festa de São Sebastião na comunidade 377 3 Quem trouxe a primeira imagem de São Sebastião para Cariacá 4 O que você sente no dia da festa de São Sebastião 5 Você acredita que São Sebastião protege a comunidade Por quê 6 Você já ouviu falar de algum milagre de São Sebastião aqui na comunidade Qual 7 Como você se sentiria caso em algum ano a festa de São Sebastião não acontecesse Sobre as instituições da comunidade 1 Como você vê a igreja Católica aqui em Cariacá 2 Como você vê a igreja Assembleia de Deus na comunidade 3 E a igreja Adventista do Sétimo Dia como ela age aqui em Cariacá 4 Você acredita que as igrejas que existem em Cariacá valorizam a causa quilombola da comunidade Por quê 5 Qual é a importância da escola aqui em Cariacá 7 Você concorda com o tratamento que a escola dá à comunidade 8 Esse tratamento sempre foi assim 9 O que você gostaria de ver a escola fazer na comunidade 10 Se você pudesse mudar alguma coisa no trabalho da escola o que mudaria 378 ANEXO 5 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM OS AS MORADORES AS DAS LOCALIDADES QUE CONSTITUEM O TERRITÓRIO QUILOMBOLA DE CARIACÁ Identificação 1 Nome 2 Idade 3 Nome dos pais 4 O senhorsenhora nasceu aqui Sobre a vida na Comunidade 1 Me conte como era a vida na comunidade quando o senhorsenhora era menino a 2 Por quê a comunidade tem esse nome 3 Quem botou esse nome 4 Todo mundo que mora aqui é nascido no lugar mesmo 5 Alguém veio de fora Quem 6 As pessoas casam com gente daqui mesmo 7 Aqui tem igreja Qual 8 Sabe como foi construída a igreja 9 Aqui tem padroeiro 10 Tem escola Já teve 11 Aqui tem algum samba ou alguma brincadeira 379 Relação da comunidade com a VilaCentro de Cariacá 1 Quem é mais velho aqui ou Cariacá 2 O senhorsenhora costumava ir a Cariacá no seu tempo de criança 3 Lembra como era 4 Pode me contar 5 O senhorsenhora sabe quem botou o nome do Cariacá 6 Eu ouvi falar que teve índio no Cariacá O senhorsenhora sabe disso 7 O senhor senhora conhece uma família Congo no Cariacá 8 Quem são esses Congos Pode me contar 9 Aqui tem Congo 10 Ouvi falar de uma fazendeira do Cariacá a Trindade Muricy Já ouviu falar dela 11 Pode me contar quem era D Trindade Muricy Sobre o Sentido de Ser Quilombola 1 O senhorsenhora é quilombola 2 Como é ser quilombola 3 Como ficou sabendo que sua comunidade é quilombola 4 O que mudou em sua vida depois dessa informação 5 Como era a vida aqui antes da comunidade ser considerada quilombola 6 O que ainda não aconteceu aqui na comunidade e que o senhorsenhora gostaria que acontecesse 7 Como o senhorsenhora acha que a região principalmente a cidade de Senhor do Bonfim trata sua comunidade 8 O senhorsenhora participa da Associação Quilombola 9 O que acha do trabalho da Associação 380 10 Se não fosse esse trabalho da associação como é que a comunidade aqui estaria hoje 381 ANEXO 6 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM OS ANCIÃOS DE LAJEDO QUE FORAM RESIDIR NA CIDADE DE SAÚDE Identificação 1 Nome 2 Idade 3 Nome dos pais 4 Nasceu em Lajedo Sobre a vida na comunidade 1 Como era a comunidade quando o senhorsenhora era menino a 2 Ouviu falar quem foram os primeiros moradores 3 Já ouviu falar de um homem chamado Quitero 4 Sabe me contar quem foi Quitero 5 Por que a comunidade se chama Lajedo 6 Todo mundo que mora no Lajedo é nascido lá mesmo 7 Alguém veio de fora 8 As pessoas casam com gente de lá mesmo 9 Onde as crianças são batizadas 10 Onde acontecem os casamentos 11 Os padrinhos são escolhidos entre o pessoal da comunidade 12 Quantas famílias moram no Lajedo 13 Do que as pessoas vivem na comunidade 14 No seu tempo de menino a o que mais gostava lá no Lajedo 15 Já teve igreja na comunidade 16 Quem é o santo padroeiro 17 Como é a festa do Santo 18 Na comunidade tem outras festas Quais 19 Quando acontecia das pessoas adoecerem no Lajedo onde se tratavam 20 Onde ocorriam os partos 21 Tinha parteira Quem era 22 Na comunidade tem alguém que reza nas pessoas 23 No Lajedo tem algum samba ou algum tipo de brincadeira 24 Por que o senhorsenhora foi embora da comunidade 25 Sente falta do Lajedo Por quê 26 Costuma visitar o Lajedo 27 Como faz isso 28 Para o senhorsenhora o que é mais importante na comunidade 382 O Sentido de ser quilombola 1 Me contaram que o Lajedo é uma comunidade quilombola Isso é verdade 2 O senhorsenhora é quilombola 3 Como é ser quilombola 4 Como o senhorsenhora ficou sabendo dessa informação 5 Teve alguma mudança em sua vida depois que soube que é quilombola 6 E no Lajedo sabe se teve alguma mudança 7 Em sua opinião a cidade de Saúde dá um bom tratamento às pessoas do Lajedo Por quê 8 Para o senhorsenhora o que é um quilombo Sobre a Associação Quilombola 1 Tem associação no Lajedo 2 Qual é a associação 3 Como ela trabalha 4 O senhor senhora concorda com o trabalho da associação Por quê 5 Já foi beneficiado por ela 6 Pode me contar como isso aconteceu 7 Teve mudança no Lajedo depois do trabalho da associação Qual 8 Se não tivesse o trabalho da associação em sua opinião como a comunidade de Lajedo estaria hoje 383 ANEXO 7 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM OS MORADORES DE LAJEDO Identificação 1 Nome 2 Idade 3 Nome dos pais 4 Nasceu aqui mesmo na comunidade Sobre a vida na comunidade 1 Me conte como era a vida aqui no Lajedo quando o senhorsenhora era menino a 2 Ouviu falar quem foram os primeiros moradores daqui 3 Já ouviu falar de um homem chamado Quitero 4 Sabe me contar quem foi Quitero 5 Por que a comunidade tem esse nome 6 Quem botou esse nome no lugar 7 Todo mundo que mora aqui no Lajedo é nascido no lugar mesmo 8 Alguém veio de fora 9 As pessoas se casam com gente daqui mesmo 10 O casamento acontece aonde 11 As crianças são batizadas aqui na comunidade 12 Os padrinhos são escolhidos entre o pessoal daqui 13 Quantas famílias moram no Lajedo hoje 14 Do que as pessoas vivem aqui na comunidade 15 No seu tempo de menino a o que mais gostava na comunidade 16 Já teve igreja aqui 17 Quem é o santo padroeiro 18 Como é a festa do Santo 19 Na comunidade tem outras festas Quais 20 Quando acontece das pessoas adoecerem aqui no Lajedo onde se tratam 21 Sempre foi assim 22 Onde ocorrem os partos 23 Sempre foi assim 24 Tinha parteira aqui na comunidade Quem era 25 Aqui na comunidade tem alguém que reza nas pessoas 26 Aqui na comunidade vocês fazem samba ou algum tipo de brincadeira 27 Eu ouvi falar que já teve gente que foi embora da comunidade Em sua opinião por que algumas pessoas vão embora daqui 384 28 Quando acontece das pessoas irem embora daqui vão morar aonde 29 Já teve vontade de ir embora Por que 30 Do que você mais gosta aqui no Lajedo O Sentido de ser quilombola 1 Me contaram que aqui é uma comunidade quilombola Isso é verdade 2 O senhorsenhora é quilombola 3 Como é ser quilombola 4 Como o senhorsenhora ficou sabendo que aqui é uma comunidade quilombola 5 Teve alguma mudança em sua vida depois que soube que é quilombola 6 E na comunidade teve alguma mudança Qual 7 Em sua opinião a cidade de Saúde dá um bom tratamento às pessoas do Lajedo Por que 8 E a cidade de Mirangaba 9 O senhorsenhora se considera morador da cidade de Saúde ou de Mirangaba 10 Para o senhorsenhora o que é um quilombo Sobre a Associação Quilombola 1 Tem associação no Lajedo 2 Qual é a associação 3 Como ela trabalha 4 O senhor senhora concorda com o trabalho da associação Por que 5 Já foi beneficiado por ela 6 Pode me contar como isso aconteceu 7 Teve alguma mudança no Lajedo depois do trabalho da associação Qual 8 Se não tivesse o trabalho da associação como a comunidade de Lajedo estaria hoje 385 ANEXO 8 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM OS MEMBROS DA DIREÇÃO DA ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA DOS PEQUENOS AGRICULTORES DE LAJEDO AQPAL Identificação 1 Nome 2 Idade 3 Nome dos pais 4 Nasceu aqui mesmo na comunidade Sobre a vida na comunidade 1 Me conte como era a vida aqui no Lajedo quando o senhorsenhora era menino a 2 Ouviu falar quem foram os primeiros moradores do lugar 3 Já ouviu falar de um homem chamado Quitero 4 Sabe me contar quem foi Quitero 5 Por que a comunidade tem esse nome de Lajedo 6 Todo mundo que mora aqui no Lajedo é nascido no lugar mesmo 7 Alguém veio de fora 8 As pessoas se casam com gente daqui mesmo 9 Onde os casamentos são realizados 10 As crianças são batizadas aqui na comunidade 11 Os padrinhos são escolhidos entre o pessoal daqui 12 Quantas famílias moram em Lajedo 13 Do que as pessoas vivem aqui na comunidade 14 No seu tempo de menino a o que mais gostava na comunidade 15 Já teve igreja aqui 16 Quem é o santo padroeiro 17 Como é a festa do santo 18 Na comunidade tem outras festas Quais 19 Quando acontece das pessoas adoecerem aqui no Lajedo onde se tratam Sempre foi assim 20 Onde ocorrem os partos 21 Sempre foi assim 22 Tinha parteira aqui na comunidade Quem era 23 Na comunidade tem alguém que reza nas pessoas 24 Aqui na comunidade vocês fazem samba ou algum tipo de brincadeira 25 Eu ouvi falar que algumas pessoas foram embora daqui Em sua opinião por que essas pessoas foram embora da comunidade 386 26 Quando acontece das pessoas irem embora daqui onde vão morar 27 Já teve vontade de ir embora Por quê 28 Do que mais gosta aqui no lugar O Sentido de ser quilombola 1 Me contaram que aqui é uma comunidade quilombola Isso é verdade 2 O senhorsenhora é quilombola 3 Como é ser quilombola 4 Como o senhorsenhora ficou sabendo que aqui é uma comunidade quilombola 5 Teve alguma mudança em sua vida depois que soube que é quilombola 6 E na comunidade teve alguma mudança Qual 7 Em sua opinião a cidade de Saúde dá um bom tratamento às pessoas do Lajedo Por quê 8 E a cidade de Mirangaba 9 O senhorsenhora se considera morador da cidade de Saúde ou de Mirangaba 10 Para o senhorsenhora o que é um quilombo Sobre o trabalho da Associação 1 Como é o trabalho realizado pela Associação Quilombola 2 Me conte como é no dia da reunião 3 Como são escolhidos os membros da direção da Associação 4 Quanto tempo dura o mandato dos membros da direção 5 Tem quantos sócios 6 Já teve mais 7 Há quanto tempo o senhorsenhora participa da direção da Associação Quilombola 8 Em sua opinião a Associação já trouxe algum benefício para a comunidade Qual 9 Para o senhorsenhora o que é mais importante no trabalho da Associação Quilombola 10 Quais as principais conquistas alcançadas até agora pela Associação 11 O que a Associação Quilombola ainda não conseguiu fazer e que o senhorsenhora gostaria de ver realizado 387 ANEXO 9 RELAÇÃO DOS ENTREVISTADOS AS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CARIACÁ Agripino Pedro dos Santos Anaíde Anária Nascimento do Monte Antônia de Freitas Silva Célia Marli Menezes Araújo Elvira Gomes Damasceno Epifânio Ferreira Damasceno Ermínia Gonçalves de Souza Eurides Pereira Brito Fernando do Monte Geovani da Silva Oliveira Glícia Milena Gomes da Silva Isabel Vítor de Souza Ivone Gonçalves de Souza Ítala Raiane de Oliveira Juvino Jéssica Saldanha dos Santos Joice Milene Nascimento de Oliveira José Pedro dos Santos Laíze de Oliveira Souza Juvino Luciana de Freitas Silva Luzia Gomes 388 Manuel Julião Dias Maria da Silva Dias Maria da Silva Neris Maria José de Ermínio Maria José do Nascimento Mônica França Dias Regina dos Santos Araújo Rosângela Gomes de Oliveira Tânia Maria da Silva Dias Ubirajara de Jesus 389 ANEXO 10 RELAÇÃO DOS ENTREVISTADOS AS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE LAJEDO Alberto Santana de Azevedo Antônio José Clementino dos Santos Armando João dos Santos Dejanira Maria de Jesus Domingas Rosalina dos Santos Eulina Carmelina de Santana Euvira Passos de Sena Francisco João dos Santos Gilberto Inocêncio dos Santos Gisele Juracy Santos de Jesus Idália Santana de Azevedo João Aceno Gabriel Pereira Joaquim dos Santos Joaquim Santana de Azevedo José Santana de Azevedo Judite Lauzira de Jesus Maria do Rosário de Jesus Narcisa Inocêncio dos Santos Mariene Isautina dos Santos Rosália Matias dos Santos 390 Roseane Santana de Azevedo Timóteo Joaquim Santos 391 ANEXO 11 RELAÇÃO DOS ENTREVISTADOS AS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA GROTA DA OLIVEIRAS Arquimino dos Santos Eliane dos Santos Guilherme João da Silva João José da Silva Jorge dos Santos Joseline Santos Gomes Maria de Lurdes dos Santos Marilene Sena dos Santos Roseni Sena dos Santos Vinícius dos Santos 392 ANEXO 12 PERFIS INDIVIDUAIS DOS SUJEITOS DA PESQUISA MORADORES DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CARIACÁ Agripino Pedro dos Santos É um dos anciãos mais velhos do grupo Melhor conhecido na comunidade como Seu Nino Ele nasceu na VilaCentro de Cariacá onde passou a maior parte de sua vida Durante a juventude trabalhou na cidade do Salvador e retornou para Cariacá É filho do senhor Frugêncio Pedro dos Santos e da senhora Maria Dias dos Santos Seu Nino é irmão de Seu José Preto e se percebe como um Congo da gema Ele é casado tem filhos as e netos as é alfabetizado e atualmente é lavrador aposentado Anaíde Anária Nascimento do Monte É presidente da Associação Quilombola de Cariacá e Adjacências AQCA e participa dessa entidade desde o ato de sua fundação Possui uma trajetória de ativismo na comunidade que remonta aos primórdios das movimentações realizadas para a certificação do grupo como remanescente de quilombo Anaíde é casada com o senhor Valmir dos Santos possui dois filhos e está concluindo o curso de Pedagogia Atualmente trabalha na cidade de Senhor do Bonfim e ainda possui uma pequena mercearia em sua residência Antônia de Freitas Silva Anciã bastante conhecida na comunidade Nasceu na VilaCentro de Cariacá e já empreendeu algumas migrações para o Rio de Janeiro onde viveu e trabalhou em períodos específicos de sua vida Dona Antônia concluiu o curso de magistério todavia nunca exerceu a profissão No momento presente é aposentada e se reconhece como afroindígena 393 Célia Marli Menezes Araújo É moradora da comunidade de Limões Filha do senhor Flávio Mendes de Menezes e da senhora Eponina Almeida de Menezes Célia nasceu e foi criada na comunidade de Limões é casada possui filhos as e netos as Ela concluiu o Ensino Médio é lavradora e liderança quilombola promovendo constantemente articulações entre sua comunidade e a VilaCentro Elvira Gomes Damasceno Uma das anciãs mais idosas do grupo Nasceu e foi criada em Cariacá É filha do senhor Alfredo de Jesus e da senhora Eucinda Gomes Damasceno Dona Elvira possui muitos parentes em Tijuaçu de modo especial entre os atores sociais oriundos do núcleo dos Damasceno Ela se define como Congo legítima A anciã se encontra aposentada e é reconhecida na comunidade como contadora das histórias do Cariacá Epifânio Ferreira Damasceno Ancião muito conhecido e querido na comunidade Seu Epifânio é apontado em Cariacá como contador da história do grupo Ele nasceu e foi criado na comunidade onde também constituiu família o ancião é casado tem filhos as e netos as Filho do senhor José Gomes Damasceno e da senhora Fermina Ferreira Damasceno Seu Epifânio é lavrador aposentado e tem parentes no quilombo contemporâneo de Tijuaçu mais precisamente entre o núcleo dos Damasceno Ermínia Gonçalves de Souza É moradora da comunidade de Teiú e a pessoa mais idosa do grupo Filha do senhor João Gonçalves da Silva e da senhora Adelaide Pereira Brito Dona Ermínia assim como os seus pais nasceu e foi criada na comunidade onde também constituiu família possuindo filhos as netos as e bisnetos as A anciã é lavradora aposentada 394 Eurides Pereira Brito O ancião nasceu em Cariacá de Cima e mora na comunidade de Teiú desde os dois anos de idade O pai de seu Eurides iniciou o povoamento da comunidade de Teiú Eurídes é mais conhecido como Seu Nem e é o morador mais velho da comunidade Filho do senhor Galdino Pereira Brito e da senhora Noêmia Pereira Brito O ancião é lavrador aposentado e articulador da causa quilombola em sua comunidade participando ativamente das reuniões da AQCA Fernando do Monte Ancião muito apreciado e conhecido na comunidade É liderança quilombola A casa de Seu Fernando foi utilizada como espaço para muitas rodas de conversa durante as primeiras movimentações para a certificação da comunidade Ele é sogro de Valmir dos Santos e pai da atual presidente da Associação Quilombola Geovane da Silva Oliveira Liderança quilombola na Vilacentro e participante do Quilombart No momento presente ele atua como organizador de quadrilhas juninas e performances de dança ao longo do território quilombola Geovane concluiu o curso de Pedagogia e é professor de dança Glícia Milena Gomes da Silva Liderança quilombola na VilaCentro capoeirista desenhista criadora e organizadora do grupo Quilombart Filha da senhora Raquel Gomes da Silva que é liderança quilombola e do senhor Eduardo Freire da Silva Glícia Milena é sobrinha de Rosângela Gomes que é reconhecida como uma das lideranças mais ativas da comunidade Milena é estudante do curso de Pedagogia e exerce suas funções de trabalho como professora de dança em uma escola da rede privada de Senhor do Bonfim 395 Isabel Vítor de Souza É moradora da comunidade de Cariacá de Baixo onde nasceu e foi criada Filha do senhor Antônio Vítor de Souza e da senhora Ermenegilda de Almeida O pai de D Isabel também nasceu em Cariacá de Baixo D Isabel é lavradora e liderança quilombola Ela promove articulações políticas entre sua localidade e a comunidade de Cariacá de Cima Ivone Gonçalves de Souza Moradora da comunidade de Limões para onde se mudou após o casamento com um rapaz dessa comunidade Ela nasceu em Cariacá de Baixo e é filha do senhor Isaías Gonçalves de Santana e da senhora Edite Delmira da Silva D Ivone é liderança quilombola Trabalha como agente de saúde nas localidades do perímetro quilombola de Cariacá Ela fundou a capela de Nossa Senhora da Conceição Aparecida em Limões e organiza as atividades religiosas promovendo interações entre a capela de Nossa Senhora Aparecida e a capela de Santa Rita na Vilacentro D Ivone se reconhece como afroindígena Ítala Raiane de Oliveira Juvino Integrante do grupo Quilombart é capoeirista e liderança quilombola na VilaCentro Filha da senhora Raquel Gomes de Oliveira e do senhor Francisco Souza Juvino É estudante do Ensino Médio e pretende cursar Universidade Jéssica Saldanha dos Santos É vicepresidente da Associação Quilombola de Cariacá e Adjacências AQCA e participa dessa entidade desde o ato de sua fundação Uma das lideranças mais conhecidas do grupo devido ao trabalho comprometido que realiza Concluiu o curso de Pedagogia é Técnica em Enfermagem e trabalha em Senhor do Bonfim especificamente na área de Saúde Jéssica é casada e mãe de uma menina 396 Joice Milene Nascimento de Oliveira Joice é neta do senhor Manuel Julião Dias identificado na comunidade como o pai dos Congos Joice Milene é liderança quilombola e participante do grupo Quilombart Concluiu o Ensino Médio e pretende cursar Universidade José Pedro dos Santos O ancião faleceu no segundo semestre de 2017 aos 104 anos de idade Seu José Pedro era mais conhecido em Cariacá pelo seu apelido de José Preto e ocupava o lugar de pessoa mais velha do grupo Ele fixou residência em Cariacá de Cima e também morou muitas vezes em Cariacá de Baixo empreendeu algumas migrações ao longo de sua vida para cidades do sul da Bahia em busca de trabalho Considerado um repositório de sabedoria contador de casos e narrador da história da comunidade O ancião trabalhou como tropeiro agricultor vendedor e antes de falecer ainda fabricava tijolos Laíse de Oliveira Souza Juvino Integrante do grupo Quilombart liderança quilombola capoeirista e estudante de Ciências da Natureza na Universidade Federal do Vale do São Francisco UNIVASF Filha da senhora Raquel Gomes de Oliveira e do senhor Francisco Souza Juvino Laíse organiza seu tempo procurando conciliar as atividades da vida acadêmica e as atividades que desenvolve na comunidade mais precisamente aquelas que se referem ao ativismo na causa quilombola Luciana de Freitas Silva É liderança quilombola repentista poetisa organizadora de atividades culturais e professora aposentada D Luci é uma das anciãs mais conhecidas e procuradas de Cariacá Além de quilombola ela se reconhece como afroindígena 397 D Luci exerce um papel importante no que se refere à espiritualidade do grupo pois é rezadeira prepara beberagens receita banhos de folha e é cuidadora de Santo Ela se declara católica e participa ativamente da reza do terço assim como das atividades desenvolvidas nas capelas de Santa Rita de Cássia e de São Sebastião Luzia Gomes É a cuidadora da capela de São Sebastião Seu nome é uma homenagem a Santa Luzia devido ao fato de D Luzia ter nascido no dia da Santa de quem se declara devota A interlocutora é mais conhecida na comunidade pelo apelido de Lúcia Para D Lúcia sua vida possui uma relação direta com as práticas religiosas que adota haja vista que quase todos os membros de sua família nasceram em dias considerados santos e assim como ela possuem seus nomes próprios associados ao dia do Santo padroeiro Filha do senhor José Gomes de Souza e da senhora Maria Calixta Gomes D Lúcia mora na VilaCentro e tem muitos parentes na comunidade de Limões Manuel Julião Dias O ancião é considerado o pai dos Congos e faleceu em 2015 Conhecido como Seu Menininho ele nasceu e morreu em Cariacá Se afastou algumas vezes da comunidade sobretudo em períodos de seca Fez isso em busca de trabalho nas muitas frentes de serviço que existiam no sul da Bahia Além de narrar à história do grupo Seu Menininho afirmava a existência da escritura de compra da Fazenda Cariacá por seus antepassados Antes de falecer o ancião concedeu duas entrevistas muito significativas para a construção desta tese Maria da Silva Dias A anciã reside na VilaCentro É muito querida e conhecida na comunidade Ela organiza e participa das atividades religiosas na capela de Santa Rita de Cássia D Maria é mãe de Tânia Dias 398 Maria da Silva Neris A anciã foi cuidadora da capela de São Sebastião e durante muito tempo participou de atividades contribuindo para o ativismo na causa quilombola D Maria Neris conforme é conhecida se mudou para a cidade de Senhor do Bonfim devido a um problema de saúde O sentimento de pertença que a anciã mantém em relação ao grupo e mais precisamente à Família Congo é o que lhe faz voltar sempre uma vez por mês para passar um final de semana ou ainda alguns dias em sua antiga casa na comunidade e em companhia de seus parentes e amigos Maria José de Ermínio É liderança quilombola e moradora da comunidade de Cruzeiro Filha do senhor Silvério de Lima e da senhora Luzia Chagas Dias Ela é casada tem filhos as e netos as Dona Maria promove articulações entre a Associação Quilombola de Cruzeiro e a AQCA Maria José do Nascimento Liderança quilombola e participante da AQCA desde o ato de sua fundação As primeiras movimentações para a formação da Associação Quilombola foram iniciadas em muitos momentos na casa de D Maria e com a participação direta de membros da sua família Filha do senhor Ermilton Ermenegildo Nascimento e da senhora Djanira Brito Nascimento que foi professora na comunidade Dona Maria nasceu e foi criada em Cariacá Ela trabalhou ao longo de sua vida como lavradora e também desenvolvendo a função de zeladora na Escola Municipal de Cariacá Na atualidade D Maria se encontra aposentada e passa a maior parte do dia cuidando dos seus netos as Mônica França Dias É liderança quilombola e organizadora das atividades religiosas na capela de Santa Rita de Cássia Mônica é casada mãe de dois filhos Concluiu o Ensino Médio e deseja cursar Universidade 399 Regina dos Santos Araújo Uma das principais organizadoras das atividades religiosas que são praticadas nas capelas de Santa Rita de Cássia e de São Sebastião Regina trabalha com a organização de festas infantis principalmente festas de aniversário Além disso costuma entregar semanalmente encomendas de doces e salgados Ela é casada possui filhos as e netos as Rosângela Gomes de Oliveira Uma das lideranças mais conhecidas da comunidade e membrofundadora da Associação Quilombola Filha do senhor Januário Batista de Oliveira e da senhora Rosa Gomes de Oliveira Ela é tia de Glícia Milena Participante das atividades religiosas nas capelas de Santa Rita de Cássia e de São Sebastião A interlocutora é mais conhecida em Cariacá pelo apelido de Ninha Rosângela é armadora de Judas trabalhou como lavradora e está aposentada Tânia Maria da Silva Dias Liderança quilombola e membrofundadora da AQCA Filha do senhor Pedro Julião Dias e da senhora Maria da Silva Dias Tânia nasceu e viveu a maior parte de sua vida em Cariacá se afastou algumas vezes da comunidade quando esteve trabalhando em São Paulo Ela é costureira técnica em enfermagem cuidadora de idosos e cursa faculdade de Pedagogia Ubirajara de Jesus Liderança quilombola membrofundador da AQCA e participante das atividades religiosas na capela de São Sebastião Seu Ubirajara concluiu o Ensino Médio deseja cursar Universidade e é funcionário concursado na Prefeitura Municipal de Senhor do Bonfim Ele exerce suas atividades de trabalho na VilaCentro de Cariacá atuando no setor de limpeza 400 ANEXO 13 PERFIS INDIVIDUAIS DOS SUJEITOS DA PESQUISA MORADORES DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE LAJEDO Alberto Santana de Azevedo É membrofundador da Associação dos Pequenos Agricultores da Comunidade Quilombola de Lajedo APACQL Já foi presidente da Associação Possui uma participação ativa na comunidade mantendo uma atitude de liderança Morador da região dos Félix Alberto é irmão de D Idália e filho de D Roxa Seu Alberto é agricultor Além de praticar a agricultura de subsistência ele comercializa os produtos de sua roça em feiras livres da região de modo particular na feira livre da cidade de Saúde Antônio José Clementino dos Santos Conhecido na comunidade pelo apelido de Heranga O interlocutor mantém uma participação ativa na Associação Quilombola Ele é filho do senhor Albino Clementino dos Santos e da senhora Valdevina Rosalina dos Santos É casado pai de dois filhos e sobrinho de D Miúda Seu Heranga além de ser agricultor monta barraca na feira livre onde comercializa principalmente a farinha Armando João dos Santos Morador da região dos Aprígio filho do senhor João Joaquim dos Santos e da senhora Dejanira Maria de Jesus Seu Armando é casado com D Rosa e suas filhas atualmente moram em São Paulo O interlocutor nasceu e foi criado em Lajedo se afastou da comunidade em alguns períodos de sua vida quando esteve trabalhando em São Paulo Minas Gerais e Goiás Na atualidade ele se encontra aposentado trabalha em sua roça e por vezes monta barraca na feira livre do município de Saúde Seu Armando é sanfoneiro e por vezes anima os festejos em sua comunidade e em comunidades vizinhas 401 Dejanira Maria de Jesus É a anciã mais idosa da comunidade No momento presente ela reside na cidade de Saúde Quando residiu em Lajedo foi moradora da região dos Aprígio D Deja conforme é conhecida é viúva mãe dos senhores Armando e Arnaldo A interlocutora além de ter sido agricultora é costureira Domingas Rosalina dos Santos A única parteira viva da comunidade D Domingas é mais conhecida em Lajedo e em toda a região do contínuo étnico que circunda a comunidade pelo apelido de D Miúda Ela é filha do senhor João Pedro dos Santos e da senhora Rosalina Antônia de Jesus Dona Miúda nasceu na comunidade quilombola de Coqueiro e se mudou para a comunidade de Lajedo em companhia de seus pais Ela é moradora da região de Várzea Comprida Dona Miúda relatou que começou suas atividades de parteira acompanhando sua mãe e que além de ter aprendido a partir dos ensinamentos maternos ela afirma que aprendeu ser parteira com as necessidades da vida Muito estimada por todos na comunidade D Miúda é uma das poucas idosas que permanece no território Eulina Carmelina de Santana A anciã é conhecida entre seus parentes e amigos pelo apelido de D Roxa No momento presente ela reside em Saúde Em Lajedo foi moradora da região dos Félix D Roxa é mãe de D Idália e dos senhores Joaquim e Alberto que residem em Lajedo e são moradores da região dos Félix A anciã que trabalhou toda a sua vida nos cuidados com a terra está aposentada e se dedica principalmente aos cuidados com os netos e a prática de atividades religiosas D Roxa é rezadeira se declara católica e devota de Nossa Senhora da Saúde 402 Euvira Passos de Sena D Euvira é uma das anciãs que migrou de Lajedo para a cidade de Saúde É filha do senhor Firmino e da senhora Raimunda que também nasceram em Lajedo D Euvira não se recorda o sobrenome dos seus pais Ela trabalhou na agricultura na extração do coco babaçu e afirmou que encontrou pequenas pepitas de ouro no rio que atravessa a comunidade Entre os anciãos que deixaram o grupo D Euvira não mais retornou ao território devido às dificuldades de locomoção que ela enfrenta A anciã anda com bastante dificuldade Afirma que sente muita falta da comunidade e das vivências que lá estabeleceu Ela foi moradora da região dos Félix Francisco João dos Santos O ancião é mais conhecido pelo apelido de Sariabo Ele é contador de casos de piadas gosta de cantar xulas e de tocar violão Foi morador da região dos Aprígio e atualmente também reside na cidade de Saúde Seu Sariabo é filho do senhor João dos Santos e da senhora Rosalina Antônia de Jesus que também nasceram e viveram em Lajedo Na atualidade todos os filhos de Seu Sariabo residem fora da comunidade alguns moram em Saúde e outros estão em São Paulo O ancião está aposentado e mora sozinho em sua residência Ele espera com certa ansiedade a chegada do dia de sábado quando vai à feira principalmente com o objetivo de rever seus parentes e amigos de Lajedo que montam barracas para comercializar os produtos cultivados em suas roças Gilberto Inocêncio dos Santos É membrofundador da Associação Quilombola Foi o primeiro presidente dessa entidade e mobilizou esforços para organizála e registrála Mantém uma postura de ativismo na comunidade colaborando para que todos os assuntos referentes à causa quilombola sejam bem resolvidos Ele é filho do senhor José Maurício de Jesus e da senhora Judite Lauzira de Jesus Seu Gilberto é também conhecido na comunidade pelo apelido de Beto ele mora na região dos Inocêncio e é casado com a senhora Mariene 403 Gisele Juracy Santos de Jesus A anciã reside em Saúde É filha do senhor Manoel Picinino de Jesus e da senhora Francisca Maria de Jesus Seus pais eram moradores da comunidade de Coqueiro e migraram para o Lajedo onde D Gisele nasceu foi criada e constituiu família A anciã trabalhou na agricultura em casas de farinha e na procura do ouro de aluvião no leito dos rios que banham a comunidade Na atualidade ela se encontra aposentada está viúva e se dedica aos cuidados e educação dos netos Idália Santana de Azevedo É membrofundadora da Associação Quilombola e liderança na comunidade Dona Idália é esposa de Seu João Colado mãe de Rose e de Zé Moradora da região dos Félix ela nasceu e foi criada em Lajedo A interlocutora é filha de D Roxa e irmã dos senhores Alberto e Joaquim Dona Idália trabalha como agricultora em sua roça onde desenvolve a técnica de irrigação por gravidade além disso comercializa os produtos que cultiva ao lado da família em diversas feiras livres da região a saber Mirangaba Saúde Quixabeira e Jacobina João Aceno Gabriel Pereira É mais conhecido na comunidade pelo seu apelido de João Colado e uma das lideranças mais respeitadas em perspectiva interna e no entorno do contínuo étnico no qual reside em companhia de sua família Filho do senhor Aceno Gabriel Pereira e da senhora Adeltina Martins Pereira os pais de Seu João são oriundos da comunidade quilombola de Palmeira O interlocutor nasceu em São Paulo e veio morar na comunidade quilombola de Palmeira quando contava doze anos de idade Ele reside em Lajedo há trinta anos desde que se casou com D Idália Seu João Colado é agricultor trabalha em sua casa de farinha e comercializa seus produtos nas feiras livres da região Sua personalidade e carisma permite que seja uma das pessoas mais procuradas do grupo Sua residência serve como referência para os principais assuntos discutidos na comunidade 404 Joaquim dos Santos Um dos poucos anciãos do grupo que ainda reside na comunidade Ele é morador da região dos Aprígio Filho do senhor João Joaquim dos Santos e da senhora Maria Helena dos Santos Seu Joaquim é casado possui filhos e netos Ele nasceu e cresceu em Lajedo apenas se afastou da comunidade quando esteve trabalhando em São Paulo e ao regressar não saiu mais da comunidade Seu Joaquim permanece trabalhando em sua roça cuidando dos cavalos e de seu galináceo Joaquim Santana de Azevedo É o atual presidente da Associação Quilombola e participa dessa entidade desde o ato de sua fundação Seu Joaquim é casado com Juce tem filhos e reside na região dos Félix Ele é irmão de D Idália e de Seu Alberto Filho do senhor Joel Bispo de Azevedo e da senhora Eulina Carmelina de Santana D Roxa O interlocutor nasceu e cresceu em Lajedo nunca se afastou da comunidade Seu Joaquim é agricultor e comercializa seus produtos em feiras livres da região José Santana de Azevedo Filho do senhor João Colado e da senhora Idália Ele é mais conhecido em Lajedo pelo apelido de Zé O interlocutor além de agricultor é estudante e se casou recentemente com uma moça da comunidade de Palmeira ele é pai de uma menina Judite Lauzira de Jesus A anciã reside atualmente em Saúde Filha do senhor Avelino Ferreira da Cruz e da senhora Leomira Pastora Rosa de Jesus Dona Judite nasceu e foi criada em Lajedo Saiu da comunidade após ter ficado viúva e ainda por causa da idade Ela era moradora da região dos Inocêncio e é mãe de Seu Gilberto 405 Maria do Rosário de Jesus Dona Maria do Rosário é uma das poucas anciãs que ainda reside em Lajedo Mora na região dos Aprígio vizinha ao senhor Timóteo que é seu filho D Maria é filha da senhora Maria das Dores e do senhor Francisco de Jesus Ela nasceu na região de Várzea Comprida e se mudou para a região dos Aprígio quando se casou A interlocutora é viúva e se dedica a trabalhar em sua roça e na casa de farinha Mariene Isautina dos Santos Dona Mariene é liderança quilombola e participa da associação desde o ato de sua fundação Filha do senhor Joelino Davino dos Santos e da senhora Isautina Maria de Jesus ela nasceu e foi criada em Lajedo onde também constituiu a sua família D Mariene é esposa de Seu Gilberto tem filhos e netos Ela é moradora da região dos Inocêncio Narcisa Inocêncio dos Santos É liderança quilombola e participa ativamente de todas as reuniões da associação assim como de todas as pautas de luta da causa quilombola D Narcisa é moradora da região dos Inocêncio Ela divide seu tempo se dedicando à criação dos filhos e ao desenvolvimento de atividades agrícolas lavrando suas roças Rosália Matias dos Santos Dona Rosa conforme é conhecida na comunidade é filha do senhor Avelino Barbosa de Almeida e da senhora Francisca Matilde de Almeida Ela nasceu em Mirangaba e mora em Lajedo há quarenta e três anos desde que se casou com Seu Armando A interlocutora foi professora do grupo até se aposentar Atualmente dedicase à agricultora cuidando de sua roça ao lado do marido na região dos Aprígio 406 Roseane Santana de Azevedo Rose como é chamada por seus parentes e amigos nasceu e foi criada em Lajedo Atualmente ela se movimenta entre sua comunidade de origem e a comunidade quilombola de Palmeira onde foi morar após o casamento com Moisés Rose é a secretária da Associação Quilombola de Lajedo Ela concluiu o Ensino Médio estudando em Mirangaba e deseja cursar faculdade de Assistência Social Filha do senhor João Colado e de D Idália Rose é bastante conhecida e querida em todo o contínuo étnico da Grota Quilombola Rose é agricultora e comercializa os produtos que cultiva na roça ao lado dos seus pais e do esposo em feiras livres da região Timóteo Joaquim Santos Seu Timóteo é morador da região dos Aprígio Ele é filho do senhor Manoel Joaquim Santos e da senhora Maria do Rosário de Jesus Santos Atua como liderança quilombola Seu Timóteo é agricultor e comercializa os produtos cultivados em sua roça principalmente na feira livre da cidade de Saúde 407 ANEXO 14 PERFIS INDIVIDUAIS DOS SUJEITOS DA PESQUISA MORADORES DA COMUNIDADE QUILOMBOLA GROTA DAS OLIVEIRAS Arquimino dos Santos Ancião muito conhecido e querido na comunidade Filho do senhor Siriaco dos Santos e da senhora Isaura dos Santos Ele foi uma das primeiras pessoas a chegar a Grota das Oliveiras Seu Arquimino é casado com D Nina e é pai de Joseline Na atualidade o ancião que além de agricultor também já foi vaqueiro se encontra aposentado Ele se dedica aos cultivos agrícolas em sua roça assim como ao trabalho na casa de farinha da comunidade Eliane dos Santos É liderança quilombola organizadora e participante do Samba de Palmas e Versos e se dedica as atividades religiosas realizadas em sua comunidade D Eliane é nora de Dona Miúda Ela concluiu o Ensino Fundamental I é agricultora e comercializa os produtos de sua roça na feira livre da cidade de Saúde Guilherme João da Silva O senhor Guilherme é a primeira pessoa entre os adultos que nasceu na comunidade Filho do senhor João José da Silva e da senhora Judite Francisca de Jesus Seu Guilherme é alfabetizado é agricultor comercializa os produtos de suas roças em feiras livres da região e é liderança quilombola 408 João José da Silva Seu João foi a primeira pessoa a chegar à comunidade Ele é pai de Seu Guilherme O interlocutor é um dos anciãos mais conhecidos principalmente devido as suas práticas de benzer e dar remédios Seu João é rezador e prepara beberagens fato que faz dele uma pessoa muito procurada inclusive por sujeitos de comunidades vizinhas Na atualidade ele se encontra aposentado e permanece trabalhando em sua roça Jorge dos Santos É presidente da Associação Quilombola e participante do Samba de Palmas e Versos Seu Jorge é casado e tem filhos Ele é alfabetizado é agricultor comercializa os produtos de sua roça em feiras livres da região e possui um bar ao lado de sua residência Geralmente é na casa de Seu Jorge que acontecem boa parte das reuniões e comemorações da comunidade Joseline Santos Gomes Filha de D Nina de Arquimino Joseline é liderança quilombola e está sempre na comunidade Ela mora na cidade de Saúde desde que se casou Sua residência às sextas feiras funciona como local de apoio e estadia para as pessoas da comunidade que colocam barracas na feira livre de Saúde que acontece aos sábados Joseline concluiu o Ensino Médio e deseja cursar universidade Maria de Lurdes dos Santos É liderança quilombola participante dos Samba de Palmas e Versos e organizadora das atividades religiosas da comunidade D Maria de Lurdes é casada e tem filhos Ela concluiu o Ensino Fundamental I é agricultora e comercializa os produtos de sua roça na feira livre da cidade de Saúde 409 Marilene Sena dos Santos Liderança quilombola organizadora e participante do Samba de Palmas e Versos Dona Nina de Arquimino conforme é conhecida organiza as atividades religiosas da comunidade e ao lado de Seu Jorge foi uma das principais responsáveis pela construção do cruzeiro de Nossa Senhora Aparecida que se encontra assentado na serra mais elevada que cerca a comunidade D Nina é mãe de Joseline e de mais oito filhos Ela veio de Lajedo para a Grota das Oliveiras quando ficou viúva Em Grota das Oliveiras ela se casou com Seu Arquimino Roseni Sena dos Santos É liderança quilombola participante do Samba de Palmas e Versos e organizadora das atividades religiosas da comunidade Dona Rosa é casada tem filhos e é agricultora