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CLUBE DO LIVRO LIBERAL JOHN LOCKE SEGUNDO TRATADO SOBRE O GOVERNO CIVIL CLUBE DO LIVRO LIBERAL SEGUNDO TRATADO DO GOVERNO CIVIL John Locke Tradução Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa Publicação Editora Vozes Organização Igor César F A Gomes Distribuição Clube do Livro Liberal Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 3 ÍNDICE Introdução 4 Notas sobre o Texto 21 Resumo do Primeiro Tratado do Governo Civil 22 CAPÍTULO I 22 CAPÍTULO II DO PODER PATERNO E REAL 23 CAPÍTULO III DO TÍTULO DE ADÃO À SOBERANIA PELA CRIAÇÃO 26 CAPÍTULO IV DO TÍTULO DE ADÃO À SOBERANIA POR ADOÇÃO GN 128 29 CAPÍTULO V DO TÍTULO DE AÇÃO À SOBERANIA PELA SUJEIÇÃO DE EVA 29 CAPÍTULO VI DO TÍTULO DE ADÃO À SOBERANIA PELA PATERNIDADE 29 CAPÍTULO VII DA PATERNIDADE E DA PROPRIEDADE 30 CAPÍTULO VIII DA TRANSMISSÃO DO PODER MONÁRQUICO SOBERANO DE ADÃO 31 CAPÍTULO IX DA MONARQUIA COMO HERANÇA RECEBIDA DE ADÃO 31 CAPÍTULO X DO HERDEIRO DO PODER MONÁRQUICO DE ADÃO 32 CAPÍTULO XI QUEM É ESTE HERDEIRO 32 Segundo Tratado Sobre O Governo Civil 35 CAPÍTULO I ENSAIO SOBRE A ORIGEM OS LIMITES E OS FINS VERDADEIROS DO GOVERNO CIVIL 35 CAPÍTULO II DO ESTADO DE NATUREZA 36 CAPÍTULO III DO ESTADO DE GUERRA 39 CAPÍTULO IV DA ESCRAVIDÃO 41 CAPÍTULO V DA PROPRIEDADE 42 CAPÍTULO VI DO PODER PATERNO 49 CAPÍTULO VII DA SOCIEDADE POLÍTICA OU CIVIL 56 CAPÍTULO VIII DO INÍCIO DAS SOCIEDADES POLÍTICAS 61 CAPÍTULO IX DOS FINS DA SOCIEDADE POLÍTICA E DO GOVERNO 69 CAPÍTULO X DAS FORMAS DA COMUNIDADE CIVIL 70 CAPÍTULO XI DA EXTENSÃO DO PODER LEGISLATIVO 71 CAPÍTULO XII DOS PODERES LEGISLATIVO EXECUTIVO E FEDERATIVO DA COMUNIDADE CIVIL 74 CAPÍTULO XIII DA HIERARQUIA DOS PODERES DA COMUNIDADE CIVIL 76 CAPÍTULO XIV DA PREROGATIVA 79 CAPÍTULO XV DO PODER PATERNO POLÍTICO E DESPÓTICO CONSIDERADOS EM CONJUNTO 82 CAPÍTULO XVI DA CONQUISTA 83 CAPÍTULO XVII DA USURPAÇÃO 89 CAPÍTULO XVIII DA TIRANIA 90 CAPÍTULO XIX DA DISSOLUÇÃO DO GOVERNO 93 CLUBE DO LIVRO LIBERAL Introdução JW GOUGH O Tratado sobre o governo civil de LOCKE é freqüentemente descrito como uma defesa da Revolução de 1688 e uma justificativa dos princípios dos Whigs que se tornaram dominantes na política inglesa durante o século seguinte Em seu prefácio ele declarou explicitamente que esperava instaurar o trono de nosso grande restaurador nosso atual rei William apoiar seu título com a concordância do povo e justificar diante do mundo o povo da Inglaterra cujo amor por seus direitos justos e naturais com sua decisão de preserválos salvou a nação quando esta se encontrava à beira da escravidão e da ruína No entanto seria um erro supor que Locke tenha deliberadamente se posicionado para fundamentar os argumentos utilizados pelos políticos Whigs na Convenção pois em muitos pontos seu raciocínio diferia do deles seguindo uma linha de pensamento que desenvolveu de maneira independente Uma exposição concisa da essência de sua teoria política aparece no início do esboço de Um ensaio sobre a tolerância que ele escreveu no início de 1667 mas não o publicou1 Que toda a investidura de toda a responsabilidade poder e autoridade do magistrado tenha como único propósito o de proporcionar o bemestar a preservação e a paz dos homens na sociedade que ele está defendendo e assim apenas isso é e deve ser o padrão e a medida segundo os quais ele deve estabelecer e ajustar suas leis o modelo e a estrutura de seu governo Pois se os homens pudessem viver juntos de modo pacífico e calmo sem estarem subjugados a certas leis e desenvolvendose no interior de uma sociedade política não haveria nenhuma necessidade de magistrados ou de política que só foram criados para defender os homens deste mundo da fraude e da violência uns dos outros por conseguinte o objetivo do governo instalado deveria ser a única medida de seu procedimento Em seguida ele rejeita a idéia da monarquia absoluta por direito divino ou oriunda de uma concessão de poder outorgado pelo povo pois não se pode supor que o povo concedesse a um ou mais de seus compatriotas uma autoridade a ser exercida sobre ele por qualquer outro motivo que não o de sua própria preservação ou estender os limites de sua jurisdição além dos limites desta vida Locke era sem dúvida um Whig tendo passado grande parte de sua vida em um ambiente permeado pelas doutrinas dos Whigs mas se a publicação de seu Tratado foi inspirado pela Revolução fica evidente que ele estruturou os fundamentos de suas convicções políticas antes de 1688 Nascido em 16322 Locke era filho de um advogado de província que não gostava de acumular riquezas serviu no exército do parlamento na Guerra Civil e deu a seus filhos uma educação puritana John foi enviado à Escola de Westminster que apoiava a causa do parlamento e em 1652 passou para a Christ Church Oxford ali permanecendo com uma bolsa de estudos após sua graduação Seus estudos foram feitos dentro do espírito escolástico convencional que ainda prevalecia em Oxford e mais tarde queixouse de ter desperdiçado seu tempo mas suas leituras também abrangeram outros campos incluindo o hebraico e o árabe e desse modo ele entrou em contato com o professor dessas línguas Edward Pococke a quem muito admirava Pococke era um franco defensor da realeza e sua influência juntamente com a de outros amigos em Oxford muitos dos quais apologistas da realeza pode ter contribuído para afastar Locke das influências puritanas de sua infância O Deão da Christ Church e ViceChanceler naquela época John Owen era um teólogo independente que defendia a tolerância embora Locke simpatizasse com ele nesse aspecto e também tivesse um relacionamento amigável com Richard Baxter e outros importantes nãoconformistas na teologia ele se encontrava mais à vontade com a escola de tendência libera l representada na Inglaterra pelos platonistas de Cambridge e seus sucessores os latitudinários e na Holanda pelos arminianos Seu interesse pela filosofia foi despertado por meio dos escritos de Descartes e através da amizade com Robert Boyle ele também desenvolveu uma inclinação para as ciências naturais Como vários de seus contemporâneos impressionouse pelo sucesso de seus novos métodos empíricos e durante algum tempo a ciência particularmente a medicina tornouse seu principal interesse Foi isso que 1 Publicado por HR Fox Bourne em Life of John Locke 1876 i p 174194 2 Locke nasceu em Wrington ao norte de Somerset mas durante sua infância viveu próximo a Pensford alguns quilômetros a leste no mesmo condado Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 5 propiciou a estreita associação entre ele e Lord Ashley mais tarde Conde de Shaftesbury um dos episódios mais importantes na carreira de Locke Seu primeiro encontro com Ashley ocorreu em 1666 e houve uma imediata afinidade entre ambos resultando em 1667 no oferecimento e aceitação por parte de Locke do cargo de médico da família Ashley o que motivou sua transferência para Londres para morar na casa de Ashley Logo tornouse muito mais que conselheiro médico de Ashley e era por ele consultado em muitas das atividades políticas em que estava engajado Em 1672 quando Ashley se tornou Conde de Shaftesbury e presidente da Câmara dos Lordes Locke foi designado secretário para as nomeações eclesiásticas um ano mais tarde tornandose secretário do Conselho do Comércio e da Agricultura de que Shaftesbury era presidente Nessa qualidade Locke foi responsável pelo esboço das Constituições fundamentais do Estado da Carolina mas ainda que ele tivesse aprovado a liberdade religiosa que lá deveria ser permitida parece claro que ele não imaginou os singulares dispositivos constitucionais incorporados neste projeto A saúde de Locke era frágil e ameaçava sucumbir sob a pressão do trabalho que seus compromissos políticos envolviam Em 1675 decidiu ir para o exterior passando os quatro anos subseqüentes viajando pela França Em 1679 no auge da crise sobre a Carta de Exclusão ele mais uma vez prestou serviços a Shaftesbury por um curto período até que novamente por problemas de saúde deixou Londres e retornou à Christ Church Permaneceu em Oxford durante os dois anos seguintes fazendo apenas visitas ocasionais a Londres mas nesse meio tempo Shaftesbury apoiou o Duque de Monmouth e teve de se asilar na Holanda onde morreu em janeiro de 1683 Locke não estava implicado nas conspirações de Shaftesbury mas suas simpatias políticas e sua amizade com Shaftesbury eram bem conhecidas e conseqüentemente ficou sob suspeita Consciente de que sua conduta e suas conversas estavam sendo vigiadas decidiu que seria prudente seguir seu patrão no exílio e em setembro de 1683 chegou a Rotterdam O governo encarou isso como um reconhecimento de sua culpa e em novembro de 1684 por ordem expressa do rei ele foi privado de sua bolsa de estudos na Christ Church No ano seguinte após a derrota da rebelião de Monmouth Locke foi acusado de estar envolvido na conspiração e embora posteriormente tenhalhe sido perdoado ele decidiu permanecer na Holanda e somente em fevereiro de 1689 retornou à Inglaterra no mesmo navio que conduzia a Princesa Mary A saúde de Locke melhorou muito na Holanda além de lá ter tido tempo para estudar escrever e fazer muitos amigos A tolerância era um tema bastante discutido na Holanda nessa época sobre o qual Locke já tinha opinião formada e no inverno de 16856 ele escreveu em latim a carta a seu amigo holandês o teólogo Limborch que foi publicada em 1689 com o título Epistola de Tolerantia No mesmo ano uma versão em inglês foi publicada anonimamente por William Popple que provavelmente escreveu o famoso prefácio que a precede Durante este período Locke também fez progressos em sua maior obra o Ensaio sobre o entendimento humano a que já estava se dedicando há muitos anos Este foi publicado em 1690 no mesmo ano em que também foram publicados os Tratados sobre o governo civil Assim como a Carta sobre a tolerância os Tratados tiveram uma primeira publicação anônima embora a autoria de Locke fosse amplamente conhecida Assim sendo o período da Revolução e os anos de exílio que o precederam viram Locke no auge de sua criatividade e dedicado à produção de suas mais célebres obras Na Holanda ele encontrou em sua sede principal a teologia dos arminianos que correspondia bem de perto aos seus próprios pontos de vista religiosos e isso pode ter contribuído para fortalecer sua crença em uma igreja abrangente e tolerante baseada apenas em doutrinas que a razão aceitaria como essenciais Embora na Holanda Locke também entrou mais uma vez em contato com a política dos Whigs e se preocupou embora nos primeiros estágios com os planos para a expedição de Guilherme de Orange Ao voltar à Inglaterra ele foi muito respeitado tendolhe sido oferecido um cargo de embaixador junto ao Eleitor de Brandenburg Ele recusou o posto por motivos de saúde mas aceitou do rei uma nomeação como Comissário de Apelação em 1696 tornandose Comissário do Conselho de Comércio e Agricultura Entretanto suas condições de saúde tornaramse incompatíveis com o trabalho envolvido e ele se recolheu à casa de Sir Francis e Lady Masham filha de Ralph Cudworth platônico de Cambridge em Oates no Essex Aí passou seus últimos anos até sua morte em 1704 Continuou a estudar e a escrever produzindo uma edição revista do Ensaio e envolvendose em uma controvérsia prolongada para defender sua Carta sobre a tolerância contra um oponente Jonas Proast do Queens College de Oxford Escreveu também sobre educação e sobre questões econômicas mas seu principal interesse nos últimos anos parece ter sido a teologia Em 1695 publicou uma obra intitulada A racionalidade da cristandade envolvendose em uma controvérsia a CLUBE DO LIVRO LIBERAL respeito da Trindade com Stillingfleet Bispo de Worcester sua última obra publicada após sua morte era uma paráfrase e comentários sobre epístolas de São Paulo Na teologia assim como na política e na ciência Locke foi identificado com o movimento racionalista de sua época mas se nos reportarmos a seus escritos e perguntarmos de onde exatamente ele derivou seus pontos de vista sobre este ou aquele tema ou que influência em particular ele sofreu a resposta não é fácil No geral suas idéias políticas não eram originais seja em sua estrutura principal ou nos detalhes e podem ser encontradas semelhanças óbvias entre seus argumentos e aqueles de Milton Algernon Sidney e vários outros predecessores menos conhecidos Mas isso não significa que ele tenha derivado suas idéias das deles e de fato ele declarou mais tarde que nunca tinha lido os Discursos sobre o governo de Sidney Com exceção de algumas passagens de Barclay3 próximo ao final do Segundo tratado a única obra que Locke citou extensivamente foi Leis da política eclesiástica de Richard Hooker Hooker foi um expoente da mesma tradição no pensamento religioso e político inglês a que se vincularam depois os platônicos de Cambridge e o próprio Locke mas seria um erro considerar Hooker como a única ou mesmo a principal fonte das idéias de Locke pois escolhendoo para suas citações Locke pode bem ter sentido que ele estava apelando para uma autoridade altamente respeitada que valeria para seus oponentes anglicanos e Tories Locke foi por muitos anos um estudioso e fez leituras de maneira muito ampla como mostram seus diários e cadernos de anotações Evidentemente ele seguiu durante um extenso período as correntes de pensamento que levaram ao Ensaio sobre o entendimento humano e a tolerância foi outro tema sobre o qual ele refletiu longamente Suas idéias políticas básicas também já estavam estruturadas mas ele provavelmente não elaborou qualquer teoria política sistemática até ir para a Holanda onde se sentiu impelido a fazêlo pelo curso dos acontecimentos Sua atitude geral foi determinada pelas vinculações de sua vida sua educação puritana suas ligações com os Whigs e seu exílio Mas ao contrário de muitos escritores de sua época ele não tentava transmitir suas convicções multiplicando as citações de autoridades buscava antes demonstrar cada ponto considerandoo racionalmente sem referência ao que seus antecessores haviam dito e com freqüência suas passagens mais felizes são os exemplos mais simples e lúcidos com que ele ilustra seu pensamento Mas embora ele tentasse e conseguisse abordar cada ponto de uma forma nova sem dúvida ponderou e absorveu as idéias de uma ampla variedade de escritores anteriores A importância de seu pensamento não é ter sido original ou particularmente radical ou avançado mas ter resumido e consolidado a obra de toda uma geração ou mais de pensadores políticos O Primeiro tratado sobre o governo civil é uma refutação dos falsos princípios contidos no Patriarcha de Sir Robert Filmer Esta obra publicada em 1680 mas escrita muitos anos antes em que o direito divino da monarquia absoluta é baseado na descendência hereditária de Adão e dos patriarcas é em geral rejeitada como sem valor e tem sido comentado que apenas o ataque de Locke a ela preservoua do esquecimento Por outro lado o Sr JW Allen defendeu4 que Filmer foi um pensador importante e original sendo equivocado associálo apenas com uma teoria patriarcal e injusto recordálo somente através de sua caricatura apresentada por Locke pois em sua Anarquia de uma monarquia limitada e mista 1648 suas Observações sobre a Política de Aristóteles 1652 e outras obras ele teve o mérito com freqüência atribuído a Hobbes de claramente perceber a natureza e a necessidade da soberania Locke conhecia as obras anteriores de Filmer pois faz alusão a algumas delas no segundo capítulo do Primeiro tratado mas a razão porque escolheu Patriarcha como o objeto de seu ataque é bem clara As outras obras de Filmer provavelmente não eram tão conhecidas quando Locke estava escrevendo enquanto Patriarcha havia sido recentemente publicado e já era um motivo de controvérsia pois James Tyrrell e Algernon Sidney a contestaram e por sua vez provocaram o surgimento de outros panfletos em sua defesa além disso o direito hereditário divino era a doutrina Tory oficial e os argumentos a seu favor em Patriarcha se autodestruíram O ataque de Locke a Filmer é principalmente destrutivo e de pouco interesse intrínseco hoje em dia e seu Primeiro tratado é por isso omitido deste volume mas Locke estava bem consciente de que Hobbes embora jamais tenha encontrado apoio nos círculos da corte era o mais sério inimigo que ele teria de combater e no 3 William Barclay jurista escocês escreveu para defender o direito divino dos reis contra Buchanan e outros oponentes do absolutismo no século anterior 4 Em Social and Political Ideas of some English Thinkers of the Augustan Age ed FJC Hearnshaw 1928 p 27s cf também com SP Lamprecht The Moral and Political Philosophy of John Locke Nova Iorque 1918 p 41s Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 7 Segundo tratado que contém sua obra construtiva está claro que ele tinha Hobbes muito em mente ainda que se abstivesse de mencionálo nominalmente O Segundo tratado assim como muitos outros tratados políticos desse período começa com um relato do estado de natureza É uma condição em que os homens são livres e iguais mas não é um estado de permissividade em que eles podem pilhar um ao outro O estado de natureza tem uma lei da natureza para governálo a que todos estão sujeitos e a razão que é aquela lei ensina a todo o gênero humano que sendo todos iguais e independentes ninguém deve prejudicar o outro em sua vida saúde liberdade ou posses Isto porque todos são obra do Criador onipotente e infinitamente sábio enviados ao mundo por sua ordem e a seu serviço5 Um homem que transgride a lei da natureza declara viver sob outra regra que não aquela da razão e da eqüidade comum e assim tornase perigoso ao gênero humano Todo homem por isso pelo direito que tem de preservar o gênero humano em geral tem o direito de punir o ofensor e ser o executor da lei da natureza6 Ele tem o poder7 de matar um assassino tanto para impedir que outros cometam um delito semelhante quanto para proteger os homens dos ataques de um criminoso que havendo renunciado à razão à regra comum e à medida que Deus deu ao gênero humano através da violência injusta e da carnificina que cometeu sobre outro homem declarou guerra a todo o gênero humano e por isso pode ser destruído como um leão ou um tigre uma daquelas bestas selvagens em cuja companhia o homem não pode viver nem ter segurança8 O estado de natureza é contrastado com a sociedade civil da qual difere pela falta de um juiz comum com autoridade mas o estado de natureza não é como em Hobbes essencialmente um estado de guerra A característica de um estado de guerra é a força ou uma intenção declarada de força sobre a pessoa do outro em que não há um superior comum na terra a quem apelar por socorro9 Mas Locke não imaginou o estado de natureza como sendo uma espécie de paraíso e de fato a guerra poderia prevalecer nele Admite a inconveniência do estado de natureza em que todo homem tem o poder executivo da lei da natureza em suas próprias mãos e ele está consciente de que a natureza doentia a paixão e a vingança podem levar o homem longe demais na punição dos outros e daí em diante só advirá a confusão e a desordem10 O estabelecimento de um governo mas não de um governo absoluto é a solução adequada Além disso o homem não foi destinado a viver sozinho Deus o colocou sob fortes imposições de necessidade conveniência e inclinação para guiálo para a sociedade assim como o dotou de compreensão e de linguagem para permanecer e desfrutar dela11 Há uma sociedade natural na família mas ela está aquém da sociedade política pois o pater familias não tem poder legislativo de vida e de morte sobre os membros de sua família12 e na verdade não tem poderes além dos que uma mãe de família pode ter tanto quanto ele13 A sociedade política só existe onde os homens concordaram em desistir de seus poderes naturais e erigir uma autoridade comum para decidir disputas e punir ofensores Isso só pode ser realizado por acordo e consentimento Liberdade não significa que um homem possa fazer exatamente o que lhe agrada sem consideração a qualquer lei pois a liberdade natural do homem é ser livre de qualquer poder superior na terra e de não depender do desejo ou da autoridade legislativa do homem mas ter apenas a lei da natureza para regulamentálo enquanto sob governo um homem é livre quando tem um regulamento determinado para guiálo comum a todos daquela sociedade e criado pelo poder legislativo nela erigido A essência da liberdade política na verdade é que um homem não deverá estar sujeito à vontade inconstante incerta desconhecida e arbitrária de outro homem14A lei não é incompatível com a liberdade ao contrário é indispensável a ela pois o objetivo de uma lei não é abolir ou restringir mas preservar e ampliar a liberdade 5 Parágrafo 6 6 Parágrafo 8 7 Por poder Locke se refere aqui a poder executivo como na passagem citada algumas linhas abaixo No estado da natureza todo homem não somente tem um direito natural de punir os ofensores mas também é inevitavelmente o instrumento da lei da natureza 8 Parágrafo 11 9 Parágrafo 19 10 Parágrafo 13 11 Parágrafo 77 12 Exceto sobre os escravos cuja sujeição quando são cativos aprisionados em uma guerra justa Locke justifica pelo direito da natureza Sua discussão da escravidão é breve e superficial parágrafos 24 85 e se tivesse se dedicado mais ao tema certamente teria reconhecido sua incompatibilidade com sua doutrina fundamental da liberdade individual 13 Parágrafo 86 14 Parágrafo 57 CLUBE DO LIVRO LIBERAL Pois a liberdade deve ser livre de restrição e violência por parte dos outros o que não pode existir onde não há lei15 Antes de tratar da criação da sociedade civil Locke dedica dois longos capítulos às questões da propriedade e do poder paterno Neste último ele amplia sua doutrina sobre a igualdade natural e sobre a liberdade dos homens As crianças não nascem neste estado amplo de igualdade embora nasçam para ele Primeiro as crianças estão sujeitas ao controle e à jurisdição paternos mas apenas por algum tempo à medida que a criança cresce estes vínculos praticamente desaparecem dando lugar a um homem com sua própria disposição livre16 De fato nascemos livres assim como nascemos racionais não que tenhamos realmente o exercício dessas duas prerrogativas a idade que traz uma delas traz também a outra17 Em outras palavras a liberda de depende da razão do poder do julgamento independente que capacita um homem a orientar sua vida pela lei da natureza Considerando que o propósito do governo é salvaguardar os direitos naturais do homem Locke defende que estes direitos pertencem a ele no estado de natureza e anseia por provar que entre eles está o direito da propriedade Ele pressupõe que Deus deu a terra e tudo o que ela contém ao gênero humano em comum mas prossegue ele todo homem tem uma propriedade em sua própria pessoa A esta ninguém tem qualquer direito a não ser ele mesmo O trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos são propriedade sua Por isso seja o que for que ele tira do estado que a natureza proporcionou e ali deixou ele misturou aí o seu trabalho acrescentando algo que lhe é próprio e assim o torna sua propriedade18 As ilustrações com que ele sustenta esta doutrina são bons exemplos de seu senso comum claro e racional um homem que colhe frutos do carvalho ou apanha maçãs de uma árvore e os come certamente se apropriou deles Ninguém pode negar que o alimento é dele Pergunto então quando começaram a ser dele Quando ele os digeriu quando os comeu quando os cozinhou quando os levou para casa ou quando os colheu E é óbvio que se o primeiro ato não os tornasse sua propriedade nada mais poderia fazêlo Foi seu trabalho que colocou uma distinção entre eles e o comum e os tornou seus19 O trabalho então cria a propriedade e o mesmo princípio se aplica à terra e aos bens móveis a terra se torna propriedade de um homem quando ele a cercou e a cultivou Além disso o trabalho estabelece a diferença de valor em tudo a diferença no valor entre um acre de terra cultivada e um acre em comum e sem qualquer cultivo é devida quase inteiramente à melhoria realizada pelo trabalho 20 Locke utilizou aqui um argumento do qual os economistas socialistas posteriormente extrairiam conclusões que o teriam surpreendido21 e ele não desenvolveu plenamente as conseqüências de sua doutrina O ponto que o preocupava era a existência de um direito de propriedade no estado da natureza e há objeções óbvias a isso Um homem primitivo poderia ter adquirido possessões ou ocupado a terra da maneira que Locke descreve mas isso não estabelece um direito de propriedade Uma discussão completa deste ponto envolveria toda a questão dos direitos naturais e para isso não há espaço aqui mas mesmo que concluamos que há um sentido em que a expressão direitos naturais pode ser adequadamente usada é difícil defender um direito natural de propriedade como distinto do direito legal Mas Locke ainda foi além de um direito natural de propriedade e defendeu um direito natural de herança22 Sobre a questão da propriedade Rousseau é mais válido que Locke pois distinguiu a propriedade da posse e reconheceu que um direito de propriedade só pode existir quando é defendido e garantido pelas leis e pelo governo do estado e por isso só pode ser sustentado nas condições impostas pelo estado O mesmo princípio pode ser aplicado à pessoa de um homem sobre a qual Locke fundamentou seu direito de propriedade pois a segurança da pessoa de um homem depende tanto da eficácia das leis quanto a segurança de sua terra e de seus bens e por isso não é mais sua no sentido absoluto que suas 15 Parágrafo 22 16 Parágrafo 55 17 Parágrafo 61 18 Parágrafo 27 19 Parágrafo 28 20 Parágrafo 40 21 Levaria muito tempo delinear aqui a evolução da teoria do valor do trabalho Pode ser observado no entanto que Locke não distinguia entre trabalho capitalista e trabalho assalariado De início ele estava pensando em proprietários trabalhando em sua própria terra ou bens não em assalariados mas é evidente por suas observações sobre o sustento parágrafo 43 que ele estava consciente de que o trabalho não é um fator simples Ver M Beer History of British Socialism ed 1929 i 192 22 Parágrafo 190 Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 9 posses Locke também tem sido criticado porque insistindo em um direito natural de propriedade ele estava encorajando a ganância do egoísta às custas de seus vizinhos mais pobres do que foram com freqüência acusados os magnatas Whigs dos séculos XVIII e XIX Mas devese observar que Locke não justifica a propriedade ilimitada Um homem só podia se apropriar da terra desde que deixasse o suficiente e adequado para os outros e quanto aos bens móveis só podia monopolizálos enquanto pudesse fazer uso deles para qualquer proveito antes que deteriorassem Seja o que for que ultrapasse a isso ultrapassa a sua cota e pertence a outros23 É verdade que pela acumulação de dinheiro que não se deteriora na prática podese escapar a este limite24 e a idéia de um direito natural limitado de propriedade contém dificuldades que Locke não parece perceber ou de qualquer maneira não enfrenta mas é difícil acusálo justamente de encorajar a apropriação ilimitada Deve também ser lembrado que embora ele tenha declarado que o grande e principal objetivo dos homens se associarem em sociedades políticas e se colocarem sob a tutela do governo é a preservação de sua propriedade25 ele definiu a propriedade do homem como sua vida liberdade e propriedade em outras palavras ele próprio e seus direitos naturais como um todo não apenas sua propriedade em seu sentido habitual26 Mas deve se admitir que Locke não escapa ao risco que todo o escritor sempre corre quando dá a uma palavra um significado incomum pois com muita freqüência ele usa a palavra propriedade também em seu sentido habitual em inglês e não se deve estranhar se é isto que ele em geral entendia27 Chegamos agora à formação da sociedade política Por natureza todos os homens são livres iguais e independentes e nenhum homem pode estar sujeito ao poder político de outro sem seu próprio consentimento Qualquer número de homens pode concordar em se juntar para se constituir em um corpo político sem prejuízo dos outros pois todos aqueles que não concordarem são meramente deixados de fora na liberdade do estado da natureza28 Mas embora este pacto original seja unânime cada um dos participantes concorda daí em diante em se submeter à determinação da maioria A razão que Locke apresenta para isso é curiosamente mecânica e insatisfatória e sugere que ele não considerou suficientemente as implicações do princípio da maioria A força que faz uma comunidade observa ele é sempre o consentimento de seus indivíduos e como todo objeto que forma um só corpo deve moverse numa só direção é necessário que o corpo se mova na direção para onde a força maior o conduz que é o consentimento da maioria 29 Por propósitos práticos sem dúvida a comunidade deve moverse em uma direção mas isso é pouco compatível com o princípio do consentimento se a minoria for na verdade simplesmente neutralizada pela força maior da maioria No pacto original os homens não abrem mão de todos os seus direitos Eles só renunciam a tanto de sua liberdade natural quanto seja necessário para a preservação da sociedade abrem mão do direito que possuíam no estado de natureza de julgar e punir individualmente mas retêm o remanescente de seus direitos sob a proteção do governo que concordaram em estabelecer Certamente não estabelecem como na teoria de Hobbes um soberano absoluto e arbitrário como se então os homens ao renunciarem ao estado de natureza concordassem que todos eles com exceção de um estariam sob as exigências das leis mas que este deveria ainda manter toda a liberdade do estado de natureza aumentado com a força e tornado desregrado pela impunidade30 Será que Locke pretendia que sua consideração do pacto original fosse encarado como historicamente verdadeiro Ele está consciente de que não há exemplos a serem encontrados na história de um grupo de homens independentes e iguais uns aos outros que se reuniram e dessa maneira começaram e instituíram um governo Mas argumenta em resposta que o governo é em toda parte anterior aos registros e embora admita 23 Parágrafo 31 24 Parágrafo 50 25 Parágrafo 124 Em outra parte ele diz que o governo não tem outro objetivo a não ser a preservação da propriedade parágrafo 94 26 Parágrafos 87 123 e cf CH McIlwain The Growth of Political Theory in the West 1932 p 199 n 1 27 A contínua insistência de Locke sobre a santidade da propriedade o conduz a formular o que ele confessa que parecerá uma doutrina estranha quando declara que um conquistador em uma guerra justa adquire um poder absoluto sobre as vidas daqueles que colocandose em estado de guerra tiveram seus direitos confiscados mas ele não tem por isso o direito e o título de suas posses parágrafo 180 A justificativa que ele apresenta é que o conquistador não tem o direito de privar de seus bens a esposa e os filhos de seu inimigo derrotado parágrafo 183 28 Parágrafo 95 29 Parágrafo 96 Em outra parte parágrafo 99 ele percebe que os homens poderiam ter expressamente concordado com qualquer número maior que a maioria De fato muitas estruturas requerem mais que uma simples maioria por exemplo uma maioria de dois terços para decisões importantes mas isso vai mostrar a inadequação de explicação mecânica de Locke do princípio da maioria 30 Parágrafo 93 CLUBE DO LIVRO LIBERAL que se olharmos para trás tão longe quanto a história nos conduzir para as origens das sociedades políticas em geral deveremos encontrálas sob o governo e a administração de um homem ele sustenta que isso não destrói aquilo que eu afirmo ou seja que o início da sociedade política depende do consentimento dos indivíduos para se reunirem e comporem uma sociedade na qual assim incorporados poderiam desenvolver a forma de governo que considerassem adequada31 Alguns escritores que usaram a teoria do contrato provavelmente nunca pretenderam ser entendidos literalmente para Hobbes por exemplo realmente não foi mais que um artifício fazer com que uma doutrina intragável parecesse mais respeitável e é duvidoso que Rousseau pensasse seu contrato como um fato histórico Mas no todo sou inclinado a pensar que Locke como os Whigs de 1688 acreditava no contrato como um acontecimento real pois ele tenta encontrar alguns exemplos de sua ocorrência Mas sua inadequação não lhe parece importar seriamente e sua conclusão de que afinal a razão é clara em nossa postura de que os homens são naturalmente livres32 sugere que seu interesse primário não está situado realmente nas origens históricas mas na justificativa do governo baseado em princípios racionais Ele argumenta à forte objeção sobre se haveria ou alguma vez houve quaisquer homens em tal estado da natureza chamando a atenção para o fato de que todos os soberanos e chefes de governos independentes em todo o mundo estão em um estado da natureza assim também um suíço e um índio das florestas da América estão perfeitamente em estado de natureza um em relação ao outro Portanto o estado de natureza existe entre todos os homens que estão em contato um com o outro sem serem súditos de um governo comum e o ponto sobre o qual ele insiste é que os homens em tais circunstâncias podem fazer promessas e acordos que os vincularão pois a verdade e a manutenção da palavra pertencem aos homens enquanto homens e não enquanto membros da sociedade33 Uma consideração do estado da natureza foi a abertura habitual de uma longa sucessão de obras de teoria política e suas características variavam segundo o desejo do autor desde uma idade de ouro da paz até à sordidez e à brutalidade da guerra de todos contra todos em Hobbes Pois esse estado era essencialmente uma abstração a qual se chegou imaginando a vida despojada de todas as qualidades que se supõe serem devidas à sociedade política organizada Para Locke a característica essencial do estado de natureza era a lei natural Nisso ele era herdeiro medieval de uma antiga tradição que veio continuamente modificada durante o processo dos estóicos e dos juristas romanos Locke herdou esta tradição em parte dos publicistas europeus do século XVII como Grotius e Pufendorf 34 em parte de Hooker em parte talvez de outros escritores ingleses como Richard Cumberland que utilizou o conceito da lei da natureza numa réplica a Hobbes A mesma tradição foi incorporada no ensino dos platônicos de Cambridge como Whichcote cujos sermões Locke admirava Na Idade Média a lei da natureza era comumente identificada com a lei de Deus e era encarada como uma lei que obriga a todos os homens e a todos os governos e por isso eram nulos os decretos humanos contrários a ela Os pensadores medievais disputavam a questão se ela era correta porque Deus a comandava ou se Deus a comandava porque ela era correta Se fosse o último caso poderia Deus ter comandado tudo o mais e se não seria Ele ainda onipotente Para Locke a lei da natureza é o desejo de Deus para o gênero humano mas a faculdade da razão do homem ela em si um dom de Deus o capacita para perceber sua retidão35 Uma das dificuldades de se aplicar a idéia de uma lei da natureza à prática política é que ou ela permanece vaga e geral ou tentandose darlhe uma forma concreta o resultado é inevitavelmente dogmático Para muitos escritores europeus da escola da lei natural seu conteúdo era ainda politicamente real mas para Locke assim como para os teólogos ingleses aos quais ele seguia a lei da natureza era em sua essência mais uma lei moral que uma lei política36 Isto acho eu é realmente o princípio importante sobre o qual ele estava insistindo contra Hobbes Para Hobbes a única lei genuína era o comando de um soberano e no estado da natureza a força e a fraude eram as virtudes cardeais Locke insiste na santidade da obrigação moral e julga a política por um padrão moral para ele fundamentalmente um padrão religioso 31 Parágrafos 100106 32 Parágrafo 104 33 Parágrafo 14 Ele deveria ter dito sociedade política pois é evidente que o estado da natureza se nele subsistem os direitos e deveres é em si social e não um mero vácuo onde os indivíduos vagam na solidão 34 O valor que ele lhes atribui pode ser inferido pela recomendação que faz deles particularmente Pufendorf para a educação de um cavalheiro 35 Muitos platonistas de Cambridge encaravam a lei da natureza como uma idéia inata e defendiam que a razão poderia desenvolver seu conteúdo Locke rejeitou as idéias inatas em sua metafísica e Sir James Stephen Horae Sabbaticae 2ª série 1892 p 140156 criticou Locke por têlas adotado de forma inconsistente em sua teoria política Isso não é justo para com Locke pois ele não considerava o conhecimento moral como inato mas é verdade que ele realmente não enfrentou o problema de relacionálo a sua descrição do conhecimento pela experiência ou à dificuldade de afirmar a existência de uma lei moral que está de acordo com a razão e que não repousa apenas na vontade de Deus embora ao mesmo tempo acredite que a vontade de Deus é a fonte final da lei moral 36 Cf parágrafos 135 136 onde a lei da natureza é equiparada à vontade de Deus e é declarada como sendo não escrita e por isso não pode ser encontrada em parte alguma exceto nas mentes dos homens Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 11 Mas há objeções óbvias em estabelecer este princípio em termos de um estado de natureza e um pacto original Se como ele parece ter acreditado devem ser tomadas literalmente sucumbem imediatamente diante da crítica histórica Mesmo que fossem historicamente verdadeiras como explicariam a obrigação das gerações posteriores de cidadãos de obedecerem às leis de um estado em cuja formação eles não consentiram individualmente Se por outro lado elas devem ser encaradas não como fatos históricos mas como hipóteses abstratas cuja função é promover uma análise racional do governo por consenso falham completamente na explicação da posição do cidadão dos dias de hoje que é o ponto crucial de toda a questão Locke procura resolver este problema mas sua tentativa de resolvêlo está longe de ser satisfatória Ele argumenta que os filhos não se tornam automaticamente súditos dos governos aos quais seus pais devem obediência mas quando atingirem a idade podem escolher a que estado irão pertencer e busca provar isso referindose à prática dos governos francês e inglês em casos como o de uma criança de pais ingleses nascida na França37 Mas qualquer que possa ter sido a prática na própria época de Locke o princípio que ele estabelece não seria aceito pelos juristas modernos Ele então argumenta que o consentimento que sozinho pode tornar um homem sujeito a um governo não necessita ser um consentimento expresso mas pode ser dado tacitamente de outras maneiras Cada um afirma ele que tem qualquer posse ou desfruta de qualquer parte dos domínios de um governo dá desse modo seu consentimento tácito e é obrigado a obedecer suas leis seja esta sua posse de uma terra pertencente a ele e a seus herdeiros para sempre ou um alojamento apenas por uma semana ou esteja ela apenas passando livremente na estrada Havendo concedido tanto ele percebe que não pode logicamente traçar uma linha nesse ponto e declara por fim que um homem dá consentimento tácito a um governo simplesmente estando dentro dos limites de seu território38 É verdade que ele se esforça para atenuar isso sugerindo que um homem não é compelido a permanecer sob o domínio de um governo que lhe desagrada mas tem a liberdade de partir e se incorporar a qualquer outra sociedade política ou entrar em acordo com outros para iniciar uma nova in vacuis locis39 Hoje em dia entretanto a possibilidade de fazer isso é muito mais restrita que na época de Locke e Hume observou que mesmo então era muito fantasiosa A verdade é que supondo que cada um que esteja em um país tacitamente consentiu em seu governo o consentimento foi tão reduzido a ponto de se tornar virtualmente se não inteiramente inexistente A importância fundamental desta passagem está em sua revelação da inutilidade de se tentar tornar o consentimento individual a base da obrigação política40 mas embora não possamos basear o poder do governo no consentimento individual não necessitamos por isso chegar ao extremo oposto e permitir aos governos poderes ilimitados de opressão das consciências dos indivíduos Deve se admitir entretanto que a teoria da sociedade de Locke é demasiado artificial para ser uma resposta adequada a este problema Quando um grupo de homens concordou em formar uma sociedade política sua primeira tarefa é estabelecer o poder legislativo que será o poder supremo da sociedade política e sagrado nas mãos em que a comunidade um dia o colocou Mas embora seja o poder supremo não é nem pode ser absolutamente arbitrário sobre as vidas e os destinos do povo Sendo seu propósito proteger os homens no gozo de suas vidas e propriedade deve ser limitado ao bem público da sociedade e as leis que ele faz devem ser declaradas e aceitas não arbitrárias e caprichosas e devem estar em conformidade com a lei da natureza41 a legislatura também não pode transferir o poder que lhe foi delegado a quaisquer outras mãos42 Outro limite importante para o poder legislativo é que ele não pode tomar de nenhum homem parte alguma de sua propriedade sem seu próprio consentimento Isto se aplica aos impostos que Locke reconhece como adequados e necessários mas aqui mais uma vez sem justificativa em relação aos seus princípios ele reduz o consentimento necessário ao consentimento da maioria e até ao consentimento dos representantes43 O governo representativo assim como o princípio da maioria pode ser defendido em vários campos mas não nas bases do consentimento individual 37 Parágrafo 118 38 Parágrafo 119 39 Parágrafo 121 40 Cf JP Plamenatz Consent Freedom and Political Obligation Oxford 1938 p 7 41 Parágrafos 134 135 42 Parágrafo 141 43 Parágrafos 138 140 CLUBE DO LIVRO LIBERAL Locke não utiliza o termo de Hobbes soberano e tem sido afirmado44 que na medida em que ele limita e divide os poderes do governo seu argumento é dirigido contra a verdadeira idéia de soberania Mas é claro que embora tenha rejeitado a arbitrariedade do soberano de Hobbes ele segurou um elemento essencial no conceito de soberania a supremacia da autoridade que faz as leis Ele afirma claramente que o legislativo deve ser o poder supremo e todos os outros poderes em quaisquer membros ou partes da sociedade derivados dele e a ele subordinados45 Como observou o Professor Montague46 Locke não imaginou que o poder legislativo supremo estava limitado por lei positiva O que ele realmente pretendia era que a soberania estivesse sujeita à lei moral Sua expressão deste princípio foi obscurecida por seu uso de frases associadas à idéia da natureza e da lei natural mas na substância sua teoria não estava muito distante da teoria da soberania proposta por Bentham e elaborada por Austin47 Mas embora a legislatura seja suprema Locke não a tornará absoluta pois permanece ainda no povo um poder supremo para remover ou alterar o legislativo quando ele considerar o ato legislativo contrário à confiança nele depositada48 Ao mesmo tempo ele não vai tão longe quanto Rousseau que declarou que a soberania reside inalienavelmente na vontade geral e não pode ser delegada ou mesmo exercida através de representantes O poder supremo que Locke reserva ao povo não é tão considerado sob qualquer forma de governo é apenas uma espécie de reserva potencial de poder a ser exercido em uma emergência quando o governo que foi estabelecido deixou de usar seu poder para o bem público Outra e ainda mais estranha conseqüência da teoria de Locke é que embora com o decorrer do tempo as grandes cidades prósperas venham a se deteriorar enquanto outros locais ermos se desenvolvem em países populosos repletos de riquezas e habitantes Locke imagina que a legislatura sendo fixada e limitada não tem poder para aprovar um projeto de reforma A única solução que ele pode sugerir é que o executivo caindo no princípio salus populi suprema lex49 deve redistribuir o eleitorado na devida proporção e assim fazendo não pode ser julgado como tendo estabelecido um novo legislativo mas como tendo restaurado o antigo e verdadeiro Além disso considerando a sua idade quando o escreveu foi liberal por ter reconhecido a necessidade de uma solução Isso nos leva à questão da separação entre o executivo e o legislativo Locke considera que pode ser muito grande a tentação para a fragilidade humana pronta para alcançar o poder pois as mesmas pessoas que têm o poder de fazer as leis têm também em suas mãos o poder de executálas além disso o executivo deve estar em existência contínua enquanto que não é necessário para o legislativo e por isso os poderes legislativo e executivo freqüentemente vêm a se separar Locke pode portanto ser reconhecido como um contribuinte para a famosa doutrina da separação dos poderes que embora de modo desorientado foi amplamente aceita no século XVIII como a salvaguarda essencial da liberdade constitucional e por isso incorporada na constituição americana Entretanto deve ser observado que na forma clássica da doutrina como foi enunciada por exemplo por Montesquieu havia três poderes a serem mantidos separados legislativo executivo e judiciário Locke reconhece um terceiro poder além do legislativo e do executivo mas este que ele chama de federativo está ligado à guerra e à paz a ligas e alianças e à política externa em geral Embora ele encare este poder federativo como distinto observa que na prática ele está em geral nas mãos do executivo Ele não distingue o judiciário e parece considerálo parte do executivo50 Evidentemente com a constituição inglesa 44 JN Figgis The Divine Right of Kings Cambridge 21914 p 242 45 Parágrafo 150 46 FC Montague Introdução ao Fragment on Government de Bentham Oxford1891 p 65 47 O princípio da soberania legislativa foi claramente apreendido por Bacon que observou que ele era ilusório por um anterior decreto do Parlamento para obrigar ou frustrar um futuro pois um poder supremo e absoluto não pode concluir a si mesmo citado por AV Dicey The Law of the Constitution 8ª ed p 62 nº 1 Mas as implicações da soberania aparentemente não foram em geral compreendidas durante muitos anos Várias frases foram incorporadas ao Ato da União com a Escócia 1706 na tentativa de tornar algumas de suas cláusulas fundamentais ou inalteráveis por decretos subseqüentes Pode também ser percebida uma relutância em admitir a soberania do parlamento nos argumentos utilizados contra o Ato Septenal em 1716 cf com os Protestos dos Pares ed em C Grant Robertson Select Statutes Cases and Documents p 202 e observar seu uso da idéia de curadoria que provavelmente tomaram de Locke Como observou Dicey op c it p 45 a passagem do Ato Septenal para lei foi uma prova da soberania legal do parlamento Mas mesmo mais tarde em 1800 foi feita uma tentativa no Ato de União com a Irlanda através de fraseologia similar de perpetuar a união das igrejas inglesa e irlandesa A inutilidade disso foi demonstrada pelo Ato de Separação de Gladstone de 1869 mas como observou Bacon as coisas que não oprimem podem satisfazer durante algum tempo Sobre o desenvolvimento da soberania legislativa do parlamento ver CH Macllwain The High Court of Parliament New Haven Conn 1910 esp c 5 48 Parágrafo 149 49 Parágrafos 157 158 50 Parágrafos 143148 Tem sido observado que mesmo em Montesquieu a separação dos poderes não está traçada com absoluta clareza mas que ele tende como Locke a misturar o judiciário com o executivo Cf com J Dedieu Montesquieu et la tradition politique anglaise en France Paris 1909 p 179 Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 13 em mente ele observa que onde o legislativo não existe permanentemente e o executivo é investido numa única pessoa que também tem parte do legislativo aquela única pessoa em um sentido muito tolerável pode também ser chamada de suprema não que ele detenha em si todo o poder supremo que é aquele de fazer as leis mas porque tem em si a execução suprema a partir da qual todos os magistrados inferiores derivam todos os seus poderes subordinados ou pelo menos a maior parte deles Ele também pode ser chamado de supremo em vista do fato de que as leis não podem ser feitas sem seu consentimento Mas insiste Locke o poder executivo colocado apenas sobre uma pessoa que tem também parte do poder legislativo está claramente subordinado a este e lhe deve dar contas podendo ser perfeitamente mudado e substituído51 Neste aspecto Locke antecipa Rousseau cujo príncipe era um mero agente ou escravo da vontade geral soberana52 O pacto original de Locke como se poderá perceber era um contrato social feito entre os homens que concordavam em se unir em uma sociedade civil Não era como o contrato original da Revolução dos Whigs um contrato entre o rei e o povo Diferentemente deles e também de escritores europeus como Pufendorf Locke não determina o relacionamento entre o povo e seu governo em termos de contrato mas toma emprestado a idéia peculiarmente inglesa de curadoria Ele não foi mais original nisso que em seu uso de outros elementos em sua teoria política como o estado de natureza pois ele havia sido usado por muitos escritores anteriores às vezes como uma alternativa à teoria do contrato às vezes em combinação com ela Mas ele se adequou admiravelmente ao seu propósito pois transmitia a noção de que embora sejam dados ao governo alguns poderes ele era obrigado a usálos não em seu próprio interesse mas em prol da comunidade Locke não somente aplica esta noção ao executivo mas o utiliza também para assegurar que a legislatura não deverá abusar de seus poderes e violar os direitos do povo A comunidade observa ele coloca o poder legislativo em tais mãos enquanto as considere adequadas confiando que será governada pelas leis proclamadas53 É apenas um poder fiduciário para agir visando alguns objetivos e todo o poder conferido com confiança para se atingir um fim é limitado por aquele fim sempre que o fim for manifestamente negligenciado ou contrariado a confiança deve necessariamente ser confiscada e o poder devolvido às mãos daqueles que o conferiram que podem colocálo outra vez onde acharem melhor para sua segurança e garantia54 As várias funções do executivo estão expressas em termos semelhantes Assim seu poder de convocar e dissolver a assembléia legislativa não concede ao executivo uma superioridade sobre ela mas é uma confiança fiduciária nele colocada para a segurança do povo55 Se ele usasse a força dos controles para impedir a reunião e a atuação do legislativo sem autoridade e contrariamente à confiança nele depositada ele estaria em um estado de guerra com pessoas que têm o direito de restabelecer seu legislativo no exercício de seu poder56 Quando o executivo tem um lugar na legislatura como o rei da Inglaterra ele tem uma confiança dupla nele depositada e age contra ambos quando começa a estabelecer sua própria vontade arbitrária como a lei da sociedade57 A referência à história recente em tudo isso é óbvia mas é visível que Locke não apóia seu argumento no contrato original dos Whigs entre o rei e o povo Aplicar a idéia da curadoria à política era utilizar uma metáfora assim como a teoria do contrato era também na verdade uma metáfora de outro ramo da jurisprudência O contrato social como uma teoria política está aberto a várias objeções bem conhecidas mas estas não são tão aplicáveis à idéia da confiança e como foi popularizado por Locke desempenhou um papel valioso ao levar para casa a lição de que o governo não desfruta de poderes sem os correspondentes deveres e responsabilidades Isso agora tornouse um princípio reconhecido e inquestionável com o resultado de que em negócios domésticos os direitos do homem não são mais as reclamações dos indivíduos contra um governo arbitrário mas as reclamações garantidas aos homens pelo governo De alguns anos para cá a idéia da curadoria foi considerada moderna e o emprego mais frutífero como 51 Parágrafos 151 152 52 Sobre a separação dos poderes em Locke cf com a nota de E Barker em sua tradução de Gierke Natural Law and the Theory of Society Cambridge 1934 ii 359 Ele observa que embora Locke distinguisse entre o legislativo e os órgãos conjuntos executivo e federativo ele não determinou o que é em geral entendido pela separação dos poderes o que implica como ocorre na constituição americana que nenhum deles é superior a qualquer um dos outros Ao contrário Locke estabeleceu expressamente a supremacia do legislativo 53 Parágrafo 136 54 Parágrafo 149 55 Parágrafo 156 56 Parágrafo 155 57 Parágrafo 222 CLUBE DO LIVRO LIBERAL uma fórmula para regulamentar os relacionamentos entre os estados civilizados e suas colônias ou outros povos atrasados58 Locke reconhece que ao detentor do poder executivo deve ser permitida alguma arbitrariedade e este poder deve atuar discricionariamente em vista do bem público sem a prescrição da lei e às vezes até contra ela é o que se chama prerrogativa59 Na Inglaterra inclui o poder de convocar os parlamentos assim como determinar a época o local e a duração mas ainda com esta confiança acrescenta ele que deverá ser usada para o bem da nação à medida que assim o requererem as exigências das épocas e a variedade da ocasião60 Se é feita a pergunta Quem julgará quando este poder é utilizado corretamente ele responde Não pode haver juiz na terra Se o legislativo ou o executivo quando detêm o poder em suas mãos planejam ou começam a escravizar ou a destruir o povo este não tem outro remédio senão apelar aos céus61 Assim chegamos à famosa justificativa de Locke de um fundamental direito de revolução Hobbes defendeu que o afastamento da autoridade soberana destruiria o estado e envolveria um retorno ao caos do estado da natureza Locke ao contrário distingue entre a dissolução da sociedade e a dissolução do governo e embora admita que esta conquista de fora possa cortar os governos pela raiz e despedaçar as sociedades insiste que um governo pode ser dissolvido internamente e um novo governo ser estabelecido sem a destruição do próprio corpo político62 Esta é a conclusão que ele retira de episódios anteriores na história inglesa e em particular da bem sucedida revolução de 1688 Ele percebe que aprovando dessa forma a revolução pode ser acusado de promover um estímulo a rebeliões freqüentes Argumenta que o povo está mais propenso a ser levado à rebelião pela tirania e pela opressão enquanto um governo que sabe que pode ser deposto se abusar de sua autoridade estará menos propenso a agir errado Além disso tais revoluções não ocorrem sobre cada pequena má administração nos negócios públicos pois o povo não abandona tão facilmente suas antigas formas como alguns estão prontos a sugerir Ele dificilmente vai ser convencido a corrigir as falhas reconhecidas na estrutura a que está habituado Na verdade o conservadorismo natural e a inércia levarão o povo a suportar grandes erros por parte do governo muitas leis erradas e inconvenientes e todo o tipo de deslizes da fragilidade humana sem revolta ou queixas63 Podemos também imaginar por que Locke não encontra lugar para a melhoria do governo através de emenda constitucional e precisa defender uma solução tão drástica quanto a revolução Sem dúvida ele estava em parte preocupado em apoiar a recente revolução de 1688 afinal de contas tudo o que foi conseguido então dificilmente seria conseguido por outros meios Podemos perceber que hoje em dia em um país com um sistema de governo representativo onde as mudanças de ministro podem ser efetuadas através de um processo constitucional normal um direito de revolução não é necessário como um elemento em nossa teoria política Mas devemos nos lembrar que foi através da influência da idéia de curadoria de Locke ou da teoria do contrato dos Whigs que veio a ser reconhecido que os governos são organismos responsáveis e não são simplesmente dotados de privilégios para serem utilizados para seu próprio prazer Hoje isso nos parece um truísmo óbvio mas é a aceitação deste princípio64 tanto quanto qualquer outra coisa que faz a diferença entre nossa atitude em relação à política e à atitude digamos assim de um cortesão de Luís XV Além disso os acontecimentos recentes tornaram o direito da revolução mais uma vez uma questão ativa e na guerra contra a Alemanha percebemos isso Quem duvida perguntava Locke que os cristãos gregos possam legitimamente derrubar a tirania turca sob a qual gemeram tanto tempo quando tiverem poder para fazêlo65 Apoiamos os movimentos de resistência nos países ocupados da Europa e não duvidávamos de que teria sido direito do povo alemão se levantar e derrubar o governo nazista esperávamos que eles o fizessem e teríamos recebido com alegria a tentativa que houvesse sido feita Nossos alvos de guerra e a suposição de que nossa causa era justa implicavam que de fora e como um ato de guerra nós nos considerássemos justificados ao estimular tal revolução Estávamos 58 Para um esboço do desenvolvimento da idéia da curadoria como uma teoria política ver JW Gough Political Trusteeship in Politica iv 1939 p 220247 59 Parágrafo 160 60 Parágrafo 167 61 Parágrafo 168 62 Parágrafo 211 Locke ao contrário de Hobbes pode fazer esta distinção porque para ele o governo era estabelecido não pelo pacto original mas como uma confiança subseqüente 63 Parágrafos 223225 64 Evidentemente não é de modo algum um princípio novo e Locke estava apenas ex pondo novamente a doutrina que herdou juntamente com a lei da natureza dos pensadores medievais Mas era necessário tornar a expôla no século XVII devido aos ataques feitos da parte do governo despótico 65 Parágrafo 192 Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 15 assim reafirmando nos termos de nossas próprias circunstâncias a atitude defendida no século XVII pelos Whigs de quem herdamos uma imortal tradição política Para os filósofos absolutistas do século XIX que se inspiraram em Hegel a defesa da revolução feita por Locke parecia revoltante pois eles não queriam ouvir falar de qualquer questionamento da autoridade majestática do estado Mas pelo menos neste aspecto não cabe à nossa geração criticar Locke Um dos primeiros a aplicar os ensinamentos de Locke foi William Molyneux66 que argumentava que as relações da Inglaterra com a Irlanda no passado não constituíam uma conquista e que mesmo que o fossem a conquista não conferiria à Inglaterra os direitos que reclamava sobre a Irlanda Molyneux correspondeuse com Locke sobre este assunto e desenvolveu sua causa em linhas extraídas diretamente do Segundo tratado É desnecessário dizer que seu apelo caiu em ouvidos surdos ainda que como mais tarde observou Dean Tucker67 ele se destinasse ao benefício não da maioria católica romana irlandesa mas apenas da minoria protestante Na Inglaterra no entanto a aceitação geral da atitude de Locke em relação ao governo logo se tornou perceptível Em alguns lugares ele foi criticado durante algum tempo tanto por seus Tratados sobre o governo quanto por suas Cartas sobre a tolerância como republicano e incrédulo68 mas depois da bem sucedida Revolução os dois extremos na política republicanos e ultramonarquistas tenderam a se extinguir Os Whigs continuaram a insistir no consentimento do povo como a base necessária do governo e a impugnação do Dr Sacheverell deulhes uma oportunidade de reafirmar e enfatizar seus pontos de vista Por outro lado o Act of Settlement aprovado por uma maioria de Tories em 1701 mostrou que eles também estavam desejando limitar a autoridade real e estabelecer condições para a sucessão ao trono É verdade que os Tories ainda estavam longe de aceitar a idéia da tolerância como se pode ver por seu Ato de Concordância Ocasional e Ato do Cisma mas embora em muitos pontos os interesses e as políticas dos Whigs e dos Tories divergissem na questão constitucional concordavam agora substancialmente69 Uma rápida vista das publicações de Bolingbroke por exemplo já mostrará a extensão de seu débito a Locke Como este ele cita Hooker aprovadoramente e fala dos parlamentos como instituídos para serem os verdadeiros guardiães da liberdade em concordância com aquela grande e nobre confiança que o organismo coletivo do povo da GrãBretanha deposita no representante70 Ele também limita a soberania do parlamento pois há algo que ele acha que um parlamento não pode fazer não pode anular a constituição A legislatura é um poder supremo e pode ser chamado em um certo sentido um poder absoluto mas em nenhum sentido um poder arbitrário É limitada ao bem público da sociedade e em último recurso em caso de abuso o povo tem o direito de resistir ao poder supremo71 O Bispo Hoadly de fama bangoriana admitia que como a origem patriarcal da monarquia foi examinada há muito tempo atrás pelo Autor dos dois tratados sobre o governo a Ele eu devo por Justiça remeter o Leitor Este foi seu único reconhecimento da obra de Locke mas todo o seu argumento embora pretendesse remontar a Hooker na verdade não era mais que uma reafirmação da posição de Locke72 A referência um tanto rancorosa de Hoadly a Locke embora ele fosse um Whig pode ser uma indicação de que o nome de Locke ainda era mal visto nos círculos clericais no início do século XVIII mas o Bispo Warburton escrevendo quando os hanoverianos já reinavam seguramente há vinte anos não hesitou em adotar abertamente os princípios de Locke73a ele se referindo como a honra dessa época e o instrutor do futuro O Espectador aludia a Locke como uma glória nacional e embora ele provavelmente fosse mais conhecido e respeitado como o autor do Ensaio sobre o entendimento humano não pode haver dúvida de que no século XVIII também sua teoria política se tornou tão geralmente aceita quanto virtualmente incontestada Suas doutrinas podem ser registradas nas Characteristics 66 Em The Case of Irelands being bound by Acts of Parliament in England stated Du blin 1698 67 Josiah Tucker Decano de Gloucester A Treatise concerning Civil Government 1781 p 96s 68 Cf alguns exemplos de opinião acadêmica em Oxford citados por Ch Bastide John Locke ses théories politiques et leur influence en Angleterre Paris 1906 p 283s 69 Ver a interessante comparação entre os pontos de vista dos Whigs e dos Tories após a Revolução em H Hallam Constitutional History of England c xvi 70 Bolingbroke Dissertation on Parties 173334 Carta x 71 Ibid Carta xvii Bolingbroke também seguiu Locke em sua Idea of a Patriot King 1738 onde rejeitou o direito divino como absurdo e declarou que os reis devem governar para o bem do povo 72 B Hoadly The Original and Institution of Civil Government discussed 1710 in Works ed J Hoadly 1773 ii 182s 73 W Warburton The Alliance between Church and State 1736 e The Divine Legation of Moses Demonstrated 1738 CLUBE DO LIVRO LIBERAL do terceiro Conde de Shaftesbury nos escritos de Swift Defoe e outros escritores menos famosos e de uma forma atenuada por Bolingbroke na terceira Epístola de Pope Ensaio sobre o homem No decorrer do século escritores como Hume e Paley atacaram a teoria do contrato mas as doutrinas políticas gerais de Locke continuaram dominantes Especialmente nos círculos dissidentes é evidente que ele ainda era uma inspiração Richard Price e Joseph Priestley tinham ambos seus débitos para com ele e os compêndios políticos adotados nas academias dissidentes eram em grande parte derivados de sua obra Foinos transmitido que Todos pensam que o povo é a origem do poder o fiduciário dos responsáveis administrativos e que o gozo da vida da liberdade e da propriedade é direito de toda a espécie humana74 Com o tempo naturalmente Locke começou a ser substituído como uma influência formativa por escolas de pensamento mais recentes Por um lado o benthamismo conseguiu espaço e por outro Burke embora tenha herdado toda a tradição lockeana divergia amplamente em muitos aspectos da perspectiva geral de Locke A força de Burke como pensador político situase fundamentalmente nas direções em que Locke foi mais deficiente Ele possuía um sentido quase místico da continuidade histórica da sociedade e ainda que em seu Appeal from the New to the Old Whigs ele tenha voltado ao processo de Sacheverell como declaração clássica dos princípios Whigs implicitamente repudiou muito do individualismo de Locke Não seria necessário um longo passo para se passar da posição de Burke e também de Rousseau para a teoria orgânica do estado que veio a se tornar uma influência tão poderosa no século dezenove e o fato de Burke não ter dado este passo é uma indicação da força permanente da influência de Locke75 A Revolução Americana que evidentemente foi inspirada pelas teorias de Locke provocou entre seus oponentes na Inglaterra alguma reação contra Locke o que foi mais tarde reforçado pelo amplo alarme despertado pelo curso da Revolução na França Não obstante apesar de todas as suas imperfeições a doutrina de Locke permaneceu a base do governo constitucional inglês76 e foi a saudável e razoável moderação resultante da aceitação de seus princípios que ajudou a assegurar à vida política inglesa sua imunidade característica contra as vicissitudes e os extremismos que em alguns países tornaram inviável a democracia parlamentar Não foi somente na Inglaterra que os princípios de Locke foram o alicerce do estado democrático moderno Na Holanda onde ele era mais conhecido foi logo aceito e citado como uma autoridade em política Na França suas visões de governo foram antecipadas por Jurieu e sua crença na tolerância por Bayle mas as obras de Locke foram traduzidas para o francês e tornaramse amplamente conhecidas entre os leitores franceses Tanto Montesquieu quanto Rousseau de maneiras diferentes fizeram contribuições bastante originais à teoria política mas ambos foram influenciados por Locke e houve muitos outros pensadores franceses que participaram da disseminação de uma atitude liberal e racional em relação à política e pelo menos por insinuação criticaram o ancien régime No entanto é difícil julgar precisamente em que dimensão a difusão dessa atitude na França pode ser atribuída à obra de Locke ou de outros escritores da mesma escola de pensamento e ao estudo direto das instituições inglesas e mais tarde das americanas em que os princípios de Locke pareciam estar incorporados Em parte alguma a influência de Locke foi maior que do outro lado do Atlântico Ele pode não ter sido muito lido pelo público em geral na América mas os líderes revolucionários Otis e Jefferson Madison e Samuel Adams mergulharam em sua obra bem como nas obras de Harrington Montesquieu e outros escritores políticos A Carta de Direitos de Virginia iniciase como um eco de Locke e embora de certa forma a Declaração de Independência tenha sido um produto peculiarmente americano há pouca dúvida de que deva sua principal inspiração muito mais às doutrinas de Locke que aos princípios nativos das colônias da Nova Inglaterra que eram teocráticos e intolerantes Jefferson foi de fato acusado de ter copiado a Declaração do Tratado sobre o governo de Locke e embora tenha negado terse remontado a qualquer livro ou panfleto ao redigila não afirmou que suas idéias fossem novas Além de tudo seria inútil tentar justificar uma revolução sobre princípios de que ninguém ouvira falar antes e se tudo o que Jefferson fez foi repetir o que no século XVIII eram lugarescomuns da 74 R Robinson Lectures on Conconformity citado em A Lincoln Some Political andSocial Ideas of English Dissent Cambridge 1938 p 17 75 Ver A Cobban Edmund Burke and the Revolt against the Eighteenth Century 1929 esp c ii intitulado Burke e a herança de Locke Um esclarecimento acidental sobre a reputação de Locke é apresentado pelo processo de Sir Francis Burdett em 1820 por difamação sediciosa Burdett ao se defender referiuse a Locke e o Sr Justice Best disse aos jurados que se achassem que este papel foi escrito com o mesmo espírito e intenção puros com que foram escritas as obras valiosas e imortais daquele escritor não era difamação C Grant Robertson Select Statutes Cases and Documents p 513 76 É verdade que a soberania legal do parlamento que ele havia buscado limitar na prática veio a se tornar um fato estabelecido mas seu estabelecimento sem as qualificações de Locke foi aceitável porque os desenvolvimentos constitucionais por exemplo a evolução do ministério e a ampliação dos direitos de voto não mais o tornaram necessário Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 17 teoria política isso vem demonstrar a importância que a influência de Locke tomou Na verdade nos Estados Unidos sua influência permaneceu ativa durante algum tempo depois de ter sido amplamente substituída na Inglaterra e a freqüência com que continuou a ser citado como uma contribuição vital às controvérsias políticas até meados do século XIX e mesmo mais tarde proporciona uma interessante evidência corroborativa da persistência na América da perspectiva individualista que é particularmente associada a Locke77 Já foram mencionadas algumas falhas na obra de Locke e seria fácil apontar outras Fundamentalmente seu defeito mais sério que ele compartilha com toda a escola individualista a que pertence é a artificialidade de sua teoria Ele tem pouco conhecimento de psicologia política enfatiza muito a escolha racional pelos indivíduos e parece não ter consciência da solidariedade da sociedade ou da força de laços como raça ou nacionalidade Ele concebeu o corpo político como uma união artificial de indivíduos para propósitos limitados e um resultado prático de seus ensinamentos era uma tendência a restringir esses propósitos para proteger os direitos de propriedade e os privilégios de uma classe governante Locke escreve sobre o povo mas não há razão para se supor que ele teria aprovado o voto democrático e talvez ele não tenha considerado suficientemente os interesses da maioria da humanidade desprovida de propriedades78 Pois foi sua situação sob a pressão de um sistema político e econômico individualista que fez com que os homens compreendessem o mais amplamente possível na época de Locke que sua concepção da esfera própria de governo é absolutamente inadequada às necessidades de uma sociedade industrial moderna Ao mesmo tempo se sua teoria é incompleta e unilateral a teoria oposta que prioriza o estado e exalta seu poder às custas do indivíduo é igualmente unilateral e a história recente tem demonstrado o quanto pode ser perigosa Também não deveríamos julgar Locke pelo uso que outros fizeram de seu nome Tem sido dito que em termos econômicos ele era um mercantilista e de forma alguma desaprovava o controle governamental do comércio e há várias outras direções em que ele achava que o governo deveria interferir79 Mas quando ele intervém o faz em prol dos indivíduos Apesar de todos os defeitos que dificilmente eram evitáveis na época em que escreveu ele lança os fundamentos para o princípio de que o estado existe para o bem da espécie humana e não a espécie humana para os propósitos do estado O que é comumente encarado como importante em Locke é sua participação na determinação do princípio do governo por consentimento Esta é uma expressão venerável mas em minha opinião uma expressão infeliz Já vimos que como o próprio Locke a utilizou ela é em si contraditória e falha Os idealistas do século XIX tentaram preservar a idéia do consentimento através de sua teoria de que as ações do governo estão de acordo com o desejo real individual mas por mais engenhosa que seja essa teoria seu efeito não chega a ser um aperfeiçoamento em relação a Locke Hoje em dia o princípio do consentimento é em geral aplicado às formas de governo representativas ou parlamentares mas não fornece a explicação real seja para seu funcionamento seja para suas vantagens O que me parece o valor persistente de Locke embora ele não o estabeleça desta forma é sua insistência sobre a responsabilidade pelo bemestar da comunidade Este princípio é agora comumente admitido e elaboramos o mecanismo político pelo qual a responsabilidade se torna efetiva isto mais que o consentimento é o ponto real das eleições e da representação A discussão agora passou para os meios através dos quais o estado pode melhor promover o bemestar e sobre isso ainda há lugar para desacordo mas atualmente mesmo a opinião mais conservadora espera muito mais controle do estado do que os Whigs consideravam necessário na época de Locke Quanto ao objetivo do estado o bemestar da espécie humana o bem público como ele coloca a posição de Locke foi fundamentalmente correta Neste aspecto ele antecipou os partidários do utilitarismo e se eliminarmos as falácias que se originam de sua abordagem contratual da política o que permanece é uma teoria essencialmente utilitarista 77 Ver um interessante artigo de Merle Curti The Great Mr Locke Americas Philosopher in Huntington Library Bulletin n 11 abril de 1937 p 107151 78 Em justiça a Locke no entanto deveria ser lembrado que ele defendeu uma regra para os ricos e os pobres para o favorito na corte e o camponês na terra parágrafo 142 79 Para um exemplo interessante ver alguns excertos do diário de Locke sob o título de Atlantis datados de 1679 publicados em Ch Bastide John Locke ses théories politiques et leur influence en Angleterre Paris 1906 Appendix I onde Locke propôs vários regulamentos para controlar a vadiagem a idade do casamento e as habitações dos pobres Uma atitude similar aparece no Relatório Sobre a Assistência e o Emprego do Pobre por ele esboçado em 1697 em seu cargo como um dos Comissários do Conselho do Comércio Um crítico desagradável poderia é claro replicar que Locke devia ter considerado as classes trabalhadoras incapazes da autodeterminação racional que ele reivindicava para os abastados CLUBE DO LIVRO LIBERAL A defesa que Locke fez da tolerância apoiouse nos mesmos princípios básicos sobre os quais ele erigiu sua teoria política e o tema ocupou sua mente por muitos anos antes dele escrever a carta a seu amigo holandês Limborch Já em 1660 ele escrevera mas não publicara um curto tratado sobre a questão Se o magistrado civil pode legalmente impor e determinar o uso de temas neutros em referência ao culto religioso80 No prefácio ele comenta que durante toda a sua vida até então ele havia vivido numa tempestade e acolhendo as perspectivas de uma calma que se avizinhava sentiuse obrigado a exortar o homem a obedecer ao governo que trouxe a bênção de um clima tranqüilo para um país que irrefletidamente havia mergulhado na confusão Por isso ele não estava inclinado a encarar com simpatia as reivindicações extremas de liberdade geral A liberdade não deveria ser uma liberdade para os homens ambiciosos deitarem abaixo constituições bem estruturadas a fim de que das ruínas eles possam construir fortunas para si próprios não uma liberdade para serem cristãos e assim não serem súditos Mas em 1660 ele estava tendendo a apoiar o governo da Restauração sete anos depois quando compôs o esboço de seu inédito Ensaio sobre a tolerância chegou ao ponto de vista que manteve com firmeza daí em diante Seu principal argumento para a tolerância é um corolário de sua teoria da natureza da sociedade civil A sociedade política existe para propósitos limitados é uma sociedade de homens constituída apenas para a busca preservação e progresso de seus próprios interesses civis o que ele considera vida liberdade saúde e lazer do corpo e a posse de coisas externas como dinheiro terras casas mobília etc Aos magistrados civis é dado poder para executar as leis que promovem esses interesses mas a salvação das almas não diz respeito a eles Na verdade isso não pode ocorrer pois a verdadeira religião consiste na persuasão interior da mente enquanto o poder do magistrado consiste apenas na força externa Locke então define a igreja como uma sociedade livre e voluntária a que os homens se filiam por vontade própria ninguém nasce membro de qualquer igreja para a veneração pública de Deus da maneira que eles julguem aceitável e eficaz para a salvação de suas almas Uma igreja portanto é semelhante a um estado ao ser formado voluntariamente para propósitos específicos81 e como qualquer outra sociedade deve ter suas próprias leis para regulamentar seus assuntos mas as leis eclesiásticas devem estar confinadas a sua esfera própria que exclui qualquer coisa relacionada à posse de bens civis e mundanos ou o uso da força em qualquer situação Uma igreja pode manter sua própria disciplina interna expulsando qualquer membro que continue obstinadamente a ofender suas leis mas tal excomunhão não deve envolver qualquer privação dos direitos civis O fato do magistrado civil poder se tornar membro de uma igreja não afeta sua condição de sociedade voluntária ou de algum modo lhe acrescenta poderes Uma igreja por isso não tem um poder próprio para perseguir nem pode solicitar ao magistrado que persiga em seu favor Mesmo que fosse certo que uma determinada igreja possuísse toda a verdade sobre a religião isso não lhe conferiria qualquer direito de destruir as igrejas que discordam dela e como na verdade não pode existir tal certeza a intolerância ainda é menos justificável Além de tudo a perseguição não pode garantir mais que uma conformidade externa visto que a fé em si e a sinceridade interna são coisas que buscam a aceitação de Deus Em toda igreja prossegue Locke deve ser feita uma distinção entre a forma exterior e os ritos de veneração e a doutrina e os artigos de fé O magistrado não tem poder para impor pela lei uma forma particular de culto em qualquer igreja seja a sua própria ou outra qualquer Isso não quer dizer que o magistrado não tenha poder sobre questões neutras ao contrário é em tais coisas e talvez apenas em tais coisas que o magistrado pode intervir mas sua intervenção é limitada ao bem público Além disso as coisas neutras em sua própria natureza quando são levadas até à igreja e ao culto a Deus são tiradas do âmbito da jurisdição do magistrado As questões neutras também não podem por qualquer autoridade humana tornarse parte do culto a Deus Como o magistrado não pode impor pela lei o uso de nenhum rito ou cerimônia também não pode proibir o uso de ritos ou cerimônias cuja prática está estabelecida em qualquer igreja Todavia aqui Locke admite uma exceção o magistrado pode proibir ritos sacrifício de bebês por exemplo que não são legais no curso ordinário da vida Os artigos da fé podem ser divididos em especulativos e práticos As opiniões especulativas e as questões a elas pertinentes supõem que elas devem ser acreditadas estão inerentemente além do alcance da lei da terra 80 Este foi publicado por Lord King em sua Life of John Locke 21830 i 13s 81 Em um artigo não publicado datado de 16734 e intitulado Sobre a diferença entre os poderes civil e eclesiástico Locke organizou um elaborado paralelo entre a sociedade civil ou o estado e a sociedade religiosa ou a igreja cada uma atuando em sua própria esfera Está publicado em Lord King Life of John Locke 2ª ed ii 108s Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 19 mas uma boa vida que também faz parte da religião e da autêntica piedade diz respeito também ao governo civil Há um risco portanto que em questões de moral o magistrado e uma consciência humana possam entrar em conflito No Tratado sobre o governo civil Locke pouco enfrentou esta questão mas embora aqui ele o discuta em maior amplitude jamais chega a uma solução verdadeira Ele acredita que se o governo e a consciência individual tiverem o cuidado de se manter dentro de suas esferas próprias o conflito será evitado e se o governo for corretamente administrado raramente ocorrerá que o magistrado concorde com alguma coisa que pareça ilegal à consciência de uma pessoa em particular No caso de ocorrer tal conflito Locke simplesmente recomenda a obediência passiva ou seja um homem deve se abster da ação que julgar ilegal e sofrer a punição que não lhe é ilegal suportar Em último caso se o magistrado acreditar que tem o direito de fazer cumprir certas leis e que elas se destinam ao bem público e seus súditos acreditarem o contrário somente Deus pode julgar entre eles Finalmente Locke menciona algumas exceções a sua regra geral de tolerância O magistrado não deve tolerar opiniões contrárias à sociedade humana ou àquelas regras morais que são necessárias à preservação da sociedade civil mas acha que exemplos deste tipo em qualquer igreja serão raros O magistrado também não deve tolerar aqueles que pregam que não se deve confiar nos hereges ou que reis excomungados tenham suas coroas confiscadas mais uma vez a igreja não deve ser tolerada se seus membros se dedicarem à proteção e ao serviço de outro príncipe O exemplo que Locke apresenta é o dos maometanos mas é evidente que ele estava na verdade pensando nos católicos romanos Finalmente não deve haver tolerância para com aqueles que negam a existência de Deus porque as promessas os acordos e os juramentos que são as garantias da sociedade humana não podem ser mantidos com um ateu Podemos achar que estas exceções são manchas que prejudicam a liberalidade da atitude de Locke mas não são inconsistentes com seu ponto de vista básico pois em todo caso em que o estado intervém ele não o faz por desaproválo em bases religiosas mas porque sua interferência é requerida para a segurança política Em sua atitude em relação à tolerância assim como em sua teoria política Locke não foi um inovador mas estava estabelecendo bases racionais para uma causa que já era quase vencedora A tolerância foi defendida por alguns independentes e outros sectários durante muitos anos e foi amplamente apoiada no exército de Cromwell e ainda que o ambiente eclesiástico na Restauração tenha sido rigidamente anglicano e as tentativas de indulgência de Carlos II tenham sido frustradas os dissidentes sobreviveram e entre os próprios anglicanos começou a se difundir uma atitude mais racionalista se não mais cética através da influência da escola latitudinária Mas para que se pudesse agir se fazia necessário um apelo ao interesse e também à razão a prosperidade do holandês por exemplo foi atribuída a sua liberdade religiosa e à presença entre eles de tantos refugiados da perseguição Na época da Revolução apesar do medo de Roma e da França que foi intensificado pela revogação de Luís XIV do Edito de Nantes e pelos acontecimentos do reinado de James II a ocasião era propícia para um relaxamento da exclusividade rígida da igreja estabelecida e para a adoção da política que por tanto tempo os Whigs proclamavam O próprio Locke ficou desapontado diante da limitada indulgência na verdade concedida aos dissidentes na Revolução e teria preferido a compreensão que ele definiu como uma ampla expansão da igreja ou seja através da abolição de várias cerimônias nocivas induzir um grande número de dissidentes a se submeter82 Estas observações revelam claramente o que na verdade está evidente por toda a Carta sobre a tolerância que a atitude de Locke para com a religião era essencialmente latitudinariana ele acreditava que a cristandade consistia essencialmente de um ou dois dogmas que era tudo em que uma igreja necessitava insistir Sua idéia de que uma igreja é uma sociedade voluntária era característica do nãoconformismo83 e mostra pouca noção do desenvolvimento histórico da cristandade católica sofre na verdade dos mesmos defeitos de abstração e artificialismo de sua teoria do estado84 82 Carta a Limborch 12 de março de 1689 in Fox Bourne Life of John Locke ii 150 83 Ele encontrou confirmação disso em Hooker se é que realmente não o extraiu dele Cf a nota sob o título de Ecclesia de seu livro de anotações datado de 1661 publicado em Lord King Life of John Locke ii 99 A descrição de Hooker da igreja é equivalente a esta ou seja uma sociedade sobrenatural mas voluntária Sua origem diz ele é a mesma das outras sociedades isto é uma tendência à vida sociável e um consentimento ao elo de associação que são a lei e a ordem nela associadas 84 Sua teoria do conhecimento no Ensino sobre o entendimento humano é defeituosa de uma maneira bem similar pois encara as idéias simples que na verdade são o resultado da análise mental como lógica e cronologicamente anteriores às idéias complexas às quais ele supõe que elas se combinarão CLUBE DO LIVRO LIBERAL Mas apesar desses defeitos talvez até devido a eles a tolerância de Locke na religião assim como seu liberalismo na política estava de acordo com o pensamento racionalista de sua época Da mesma forma que suas doutrinas políticas favoreceram a causa da liberdade constitucional também a idéia moderna da igreja livre no estado livre pode seguir o rastro de seus argumentos rumo à tolerância Seja no sistema voluntário dos Estados Unidos da América ou nos domínios britânicos ou na laicité da República Francesa a dívida para com Locke é evidente Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 21 Notas sobre o Texto Os Dois tratados sobre o governo civil foram publicados pela primeira vez anonimamente em 1690 A primeira edição é bastante rara não havendo cópia nem no Museu Britânico nem na Bodleiana Duas outras edições foram publicadas durante a vida de Locke em 1694 e em 1698 cada uma contendo várias emendas e adições Muitas alterações adicionais surgiram na edição coletada das Obras de Locke que teve sua primeira publicação em 1714 e em que uma nota introdutória contém uma transcrição de uma cláusula do testamento de Locke declarando que as edições anteriores dos Tratados sobre o governo civil eram todas muito incorretas Foi dito que uma edição separada a sexta dos Tratados publicada em 1764 não somente foi confrontada com as edições publicadas durante a vida do autor mas também tem a vantagem de suas últimas correções e aperfeiçoamentos a partir de uma cópia entregue por ele ao Sr Peter Coste transmitida ao editor e atualmente se encontra no Christs College em Cambridge Algumas dessas sucessivas adições e alterações elucidam o sentido e outras ampliam pontos que Locke estava especialmente ansioso para enfatizar Nem tudo será percebido como aperfeiçoamentos da versão original pois às vezes repetem o que ele já havia dito em outra parte tendendo assim a aumentar a impressão de prolixidade e extensão que já era um defeito do estilo de Locke em especial quando comparado à clareza e à pungência de Hobbes Não obstante este é o texto que aparentemente teria recebido a aprovação final de Locke e assim foi assumido aqui mas são fornecidas indicações onde ele parte dos textos anteriores que foram reproduzidos em uma ou duas edições populares e desse modo se tornaram familiares a muitos leitores modernos A pontuação e a linguagem foram modernizadas CLUBE DO LIVRO LIBERAL Resumo do Primeiro Tratado do Governo Civil Por Bernard Gilson DESMASCARADOS E DERRUBADOS OS FALSOS PRINCÍPIOS DE ONDE PARTEM SIR ROBERT FILMER E SEUS ADEPTOS CAPÍTULO I 1 Para o homem a escravidão é um estado tão vil tão miserável e tão diretamente contrário ao temperamento generoso e à coragem de nossa nação que é difícil imaginar como um inglês e menos ainda um cavalheiro poderia advogar em seu favor Na verdade como qualquer outro tratado que tentaria convencer os homens sem exceção de que eles são escravos e devem sêlo eu teria considerado o Patriarcha de Sir Robert Filmer uma nova exibição pretensiosa comparável ao elogio de Nero ao invés de um discurso sério concebido como tal se a gravidade do título e da introdução a imagem apresentada no cabeçalho do livro e os aplausos que o têm acompanhado não me obrigassem a acreditar na sinceridade do autor e também do editor Então o tomei nas mãos com todas as esperanças que atraem um tratado cuja aparição provocou tanto alarido e o li de um só fôlego com toda a seriedade que lhe era devida mas confesso que neste livro que devia forjar as correntes de toda a humanidade eu me surpreendi muito ao não encontrar senão uma corda de areia útil talvez àqueles cuja arte e ofício consistem em levantar nuvens de poeira para cegar o povo e fazêlo extraviarse mais facilmente mas frágil demais para arrastar na servidão aqueles que mantêm seus grandes olhos abertos e bastante bom senso para pensar que as correntes são pouco convenientes ainda que se cuidasse de limálas e polilas 2 Se alguns pensam que eu exagero quando falo de forma tão livre de um homem que é o grande campeão do poder absoluto e ídolo daqueles que o adoram eu lhes suplico apenas uma vez que não recusem esta pequena concessão a um indivíduo que mesmo após ter lido o livro de Sir Robert e assim como a lei o autoriza não pode se impedir de considerar a si mesmo um homem livre pois eu sei que isso não é uma falta a menos que se encontre alguém mais informado que eu sobre os rumos do destino e que tem alguma revelação da próxima notícia há tanto tempo adormecido desde que foi publicado este tratado consagrouse a perseguir toda a liberdade pela força de seus argumentos e de agora em diante este modelo acanhado proposto por nosso autor servirá de Decálogo e de critério perfeito da política para todas as épocas futuras Seu sistema tem pouco espaço Reduzse a isto Todo governo é uma monarquia absoluta e eis sobre o que ele se baseia Nenhum homem nasce livre 3 Desde que surgiu no mundo uma geração pronta a lisonjear os príncipes formulando a opinião de que estes são investidos de um direito divino de exercer o poder absoluto sem levar em conta leis destinadas a reger a instituição de seu cargo e o exercício de seu governo ou condições para que eles iniciem suas funções ou ainda o compromisso de respeitálas fosse este ratificado por juramentos ou promessas da maior solenidade estas pessoas negaram à humanidade seu direito à liberdade natural assim fazendo não somente expuseram todos os indivíduos à pior miséria da tirania e da opressão tanto quanto puderam mas ainda os títulos dos príncipes tornaramse duvidosos e seus tronos abalados pois segundo esta doutrina todos os príncipes com uma única exceção também eles nascem escravos e em virtude de um direito divino são herdeiros legítimos de Adão como se eles quisessem entrar em uma guerra contra todo o governo e inverter as próprias bases da sociedade humana 4 Entretanto seria preciso acreditar em sua palavra quando eles nos dizem que todos nascemos escravos e o mal não tem remédio devemos assim permanecer Para nós a vida e a servidão tiveram início no mesmo momento jamais nos libertaremos de uma sem nos separarmos da outra todavia eu ignoro onde quer na Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 23 Escritura quer na razão isto esteja assegurado apesar dos esforços destes indivíduos para nos convencer que a autoridade divina nos tenha sujeitado à vontade ilimitada de um outro admirável condição da humanidade que não tivemos inteligência para descobrir até um período muito recente Embora Sir Robert Filmer pareça condenar a opinião contrária creio que ele terá dificuldade em encontrar outro século além do nosso ou outro país que houvesse afirmado o caráter divino da monarquia Ele reconhece que Heyward Blackwood Barclay e outros que quase sobre todos os pontos lutaram com coragem em defesa ao direito dos reis jamais pensaram nisso e em comum acordo admitiram a liberdade e a igualdade naturais dos homens 5 Ao primeiro que se constituiu o iniciador desta doutrina e a expandiu entre nós com os tristes efeitos que ela arrasta consigo deixo aos historiadores o encargo de mencionálo ou à memória dos contemporâneos de Sibthorp e Manwering a tarefa de recordálo aqui eu me contentarei em examinar o que disse a este respeito Sir Robert Filmer autor conhecido por ter conduzido este argumento aos seus limites mais extremos e que consta terlhe proporcionado sua forma perfeita eis de que mestre todos aqueles que querem se comportar à moda de um francês na corte aprenderam este sistema político estreito e para se garantir o levavam no bolso a saber os homens não nascem livres está então excluído que jamais tenham tido a liberdade de escolher governantes ou formas de governo o poder dos príncipes é absoluto e de direito divino pois jamais escravos puderam reivindicar um contrato ou um consentimento Adão era monarca absoluto e da mesma forma todos os príncipes desde então CAPÍTULO II DO PODER PATERNO E REAL 6 A grande tese de Sir Robert Filmer é que os homens não são naturalmente livres eis sobre que base sua monarquia absoluta repousa e se eleva tão alto que seu poder prevalece sobre qualquer outro caput inter nubila tão acima de todas as coisas terrestres e humanas que o pensamento pode apenas tocálo que as promessas e os juramentos que a divindade obriga não são suficientes para estorválo Entretanto se este fundamento enfraquece todo o edifício desmorona com ele e é preciso deixar os governos reencontrarem seu antigo modo de constituição por meio de procedimentos voluntários e do consentimento dos homens que se utilizam de sua razão para se unirem em sociedade Na p 12 ele quer provar esta tese principal dizendo Os homens nascem dependentes de seus pais e por conseguinte não podem ser livres Esta autoridade dos pais ele chama de autoridade real p 12 14 autoridade paterna direito de paternidade p 12 20 Seria possível acreditar que ao iniciar uma obra desse gênero destinada a servir de único apoio à autoridade dos príncipes e à obediência dos súditos ele nos teria indicado explicitamente o que é esta autoridade paterna que ele a teria definido senão limitado visto que em outros tratados oriundos de sua pena ele a apresenta a nós como ilimitada e não suscetível a limitação deveria nos ter fornecido pelo menos muitas informações a seu respeito para que pudéssemos ter uma idéia completa desta paternidade ou autoridade paterna quando a encontramos em seus escritos Esta eu esperava encontrar no primeiro capítulo de seu Patriarcha Mas em vez disso de passagem 1 ele começa assegurando a obediência dos arcana imperii p 5 2 ele apresenta seus cumprimentos aos direitos e liberdades de nossa nação ou de qualquer outra p 6 o que logo em seguida vai tratar de anular e destruir e 3 após uma saudação a estes homens eruditos que não cumpriram sua missão com tanta penetração quanto ele p 7 ele se lança sobre Belarmino p 8 e graças à vitória que obtém estabelece sua autoridade paterna sem qualquer contestação Belarmino se vê derrotado por sua própria confissão p 11 a batalha está seguramente ganha não se necessita mais de tropas pois feito isso eu não o vejo mais colocar a questão ou reunir argumentos para justificar sua opinião antes de mais nada ele nos conta a sua maneira a história desta espécie estranha de fantasma chamado paternidade que só bastaria a qualquer um agarrar para obter imediatamente o império e um poder absoluto ilimitado Agora ele nos garante que esta Paternidade teve início na pessoa de Adão prosseguiu seu curso manteve a ordem no mundo durante toda a era dos Patriarcas até o dilúvio saiu da arca com Noé e seus filhos estabeleceu e sustentou todos os reis da terra até o cativeiro dos israelitas no Egito e então CLUBE DO LIVRO LIBERAL a pobre paternidade ficou no porão até o dia em que dando reis aos israelitas Deus restabeleceu o direito antigo e fundamental da sucessão ao governo paterno em linha direta Eis do que se ocupam as p 1219 e então enfrentando uma objeção e esclarecendo uma ou duas dificuldades com uma meiaverdade p 23 para confirmar o direito natural do poder real ele conclui o primeiro capítulo Espero não ofender qualificando uma meiacitação de meiaverdade pois Deus disse Honra teu pai e tua mãe mas nosso autor se contenta com a metade deixa de lado pura e simplesmente tua mãe como se fosse de pouca utilidade para o seu propósito mas voltarei a isso em outra parte 7 Não considero nosso autor tão incompetente na arte de escrever discursos dessa natureza ou tão pouco atento à questão tratada que pudesse cometer por descuido o engano que ele mesmo critica nestes termos o Sr Hunton em sua Anarquia de uma monarquia mista p 239 Em primeiro lugar declaro que o autor está errado por não nos ter apresentado nenhuma definição ou descrição da monarquia em geral pois segundo às regras do método ele deveria começar por definir De acordo com a própria regra do método Sir Robert deveria nos dizer o que é esta paternidade ou sua autoridade paterna antes de nos indicar em quem ela se encontra e antes de falar tanto dela Talvez Sir Robert temesse que esta autoridade paterna este poder dos pais e dos reis visto que ele os identifica p 24 evocasse um personagem estranho e aterrorizante muito diferente deste que os filhos imaginam de seus pais ou os súditos de seus reis se ele nos desse a dose toda de uma só vez sob a forma gigantesca que sua imaginação lhe representava também imitou o médico cauteloso que deseja que seu paciente beba alguma droga acre ou corrosiva e a mistura com uma grande quantidade de uma substância capaz de diluíla para que as partículas dispersas possam descer suscitando sensações menos fortes e causar menos repugnância 8 Tentemos ver que indicações ele nos fornece sobre esta autoridade paterna tal qual ela se encontra disseminada nas diferentes partes de seus escritos De início ele nos diz que como Adão dela estava investido não somente Adão mas os patriarcas sucessivos tinham por seu direito de paternidade uma autoridade real sobre seus filhos p 12 Este domínio sobre o mundo inteiro que Adão exercia por obediência e do qual os patriarcas desfrutavam como se o tivessem recebido dele por transmissão legítima se igualava por suas dimensões e por sua amplitude à soberania absoluta de todos os monarcas que existiram desde a criação p 13 Poder de vida e de morte de fazer a guerra e decidir a paz p 13 Adão e os patriarcas tinham um poder absoluto de vida e de morte p 35 Os reis por direitos de seus pais sucedem ao exercício do poder supremo p 19 Como o poder real é de direito divino e nenhuma lei inferior o limita Adão era o senhor de todos p 40 Um pai de família não governa em virtude de nenhuma outra lei exceto a sua própria vontade p 78 A superioridade dos príncipes está acima das leis p 79 O poder ilimitado dos reis está descrito muito extensamente por Samuel p 80 Os reis estão acima das leis p 93 e neste sentido encontramos muitas outras passagens ainda em que nosso autor se exprime na linguagem de Bodin É certo que todas as leis todos os privilégios e todas as concessões dos príncipes só têm efeito para aquele que desfruta deles a menos que o príncipe seguinte os ratifique aprovandoos ou tolerandoos sobretudo os privilégios O p 279 A razão para que os reis também fizessem leis era a seguinte quando os reis estavam empenhados nas guerras ou retidos por questões públicas de modo que nem todos os indivíduos pudessem ter acesso a sua pessoa para conhecer suas vontades e seus desejos por absoluta necessidade era preciso criar leis de tal forma que cada súdito individualmente pudesse tomar conhecimento das intenções de seu príncipe lendo as tábuas de suas leis p 92 Em uma monarquia o rei deve estar necessariamente acima das leis p 100 Um reinado perfeito é aquele onde o rei dispõe de tudo segundo sua própria vontade p 105 Nem o direito comum nem as leis escritas constituem nem podem constituir por qualquer motivo uma limitação ao poder geral que os reis têm sobre seu povo por direito de paternidade p 115 Adão era o pai o rei e o senhor de sua família no início nada distinguia entre um filho um súdito um servo ou um escravo O pai tinha o poder de alienar ou de vender seus filhos ou seus escravos o que explica que no primeiro inventário dos bens na Escritura o servo e a serva figuram entre as posses do proprietário e em seu ativo como os outros objetos O prefácio Deus também deu ao pai o direito ou a faculdade de alienar o poder que ele exerce sobre seus filhos em benefício não importa de que outra pessoa isso explica que evidenciemos que a venda e a doação dos filhos fosse tão comum no começo do mundo quando os homens tinham servos a título de posse e de herança assim como os outros bens e vejamos que o poder de castrar e produzir eunucos era muito utilizado nos tempos antigos O p 115 A lei não é senão a vontade daquele que possui o poder do pai supremo O p 223 Deus ordenou que a supremacia seja ilimitada na pessoa de Adão e se estenda a todos os atos de sua vontade e que todos aqueles que detêm o poder supremo sejam como ele O p 245 Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 25 9 Precisei importunar meu leitor com estas diversas citações dos próprios termos de que se serve nosso autor a fim de que se pudesse lá encontrar da maneira que ele próprio descreve sua autoridade paterna de tal forma ela se encontra disseminada aqui e ali em seus escritos ele supõe que antes de tudo Adão estava investido desta autoridade e que desde então ela pertence por pleno direito a todos os príncipes Esta autoridade paterna ou este direito de paternidade no sentido do nosso autor é pois um direito de soberania divino e inalterável em virtude do qual o pai ou o príncipe exercem um poder absoluto arbitrário sem limites e que não se pode limitar sobre a vida a liberdade o destino de seus filhos ou súditos de tal maneira que podia tomar ou alienar seus bens e vender castrar ou utilizar suas pessoas como bem entendesse porque todos são seus escravos enquanto ele é o senhor e o proprietário de todas as coisas e sua vontade ilimitada lhes serve de lei 10 Como nosso autor investiu Adão de um poder tão temível e fundamenta sobre esta hipótese todos os governo se o poder de todos os príncipes poderseia esperar que ele fornecesse a prova disso com argumentos claros e evidentes adequados à importância da causa Dessa maneira como teriam perdido todo o resto os homens poderiam conhecer na escravidão provas tão irrefutáveis de sua necessidade que se sentiriam convencidos em sua alma e consciência e isso os obrigaria a se submeterem pacificamente à dominação absoluta que seus governantes teriam o direito de exercer sobre eles pois se não fosse este o caso o que nosso autor podia fazer ou pretender fazer erigindo este poder ilimitado exceto adular a ambição e a vaidade dos homens tão propensa a se inflar e dilatar com a possessão de um poder qualquer Além disso fazer com que estes acreditem que o consentimento de seus irmãos humanos promoveu empregos em que detêm um poder iminente mas limitado que aquele que lhes foi dado lhes atribui tudo isto que esta dádiva não comportava como se eles pudessem fazer tudo o que lhes agradasse porque estão qualificados para fazer mais que os outros e desta maneira tentar fazer com que eles realizem atos que não se aplicam nem ao seu bem nem ao bem daqueles que estão sob sua guarda o que acarretará forçosamente grandes infelicidades 11 Como nosso autor fundamenta sua poderosa monarquia absoluta sobre a soberania de Adão como sobre uma base segura eu esperava vêlo estabelecer e provar em seu Patriarcha esta hipótese principal de que ele parte com todos os argumentos exigidos por uma tese fundamental deste gênero e que a verdade que serve de centro de gravidade para toda a questão receba provas suficientes para justificar a confiança pela qual é aceita Entretanto percorrendo o conjunto da obra não recolhi grande coisa que se dirija neste sentido o fato é supostamente aceito sem provas e eu mal podia acreditar em meus olhos quando à leitura atenta deste tratado constatei que uma construção tão poderosa se encontrava edificada sobre a simples suposição desta premissa pois é quase inacreditável que em um discurso onde ele pretende refutar o princípio errôneo da liberdade natural do homem ele o faça postulando simplesmente a autoridade de Adão sem apresentar a menor prova Ele chega mesmo a afirmar categoricamente que Adão possuía uma autoridade real p 12 um domínio e uma disposição absolutos sobre a vida e a morte p 13 uma monarquia universal p 33 um poder absoluto de vida e de morte p 35 Ele reitera freqüentemente afirmações deste tipo mas o que é estranho é o fato de que em todo o seu Patriarcha eu não encontro o simulacro de uma única razão para estabelecer estes fundamentos que ele dá ao governo nem nada que possa parecer um argumento exceto as palavras que se seguem Como confirmação deste direito natural do poder real constatamos que o Decálogo formula nestes termos a lei que obriga obediência aos reis Honra teu pai como se todo poder residisse em sua origem na pessoa do pai Assim sendo por que eu não poderia acrescentar que o Decálogo formula a lei que obriga obediência aos reinos nestes termos Honra tua mãe como se todo o poder residisse na pessoa da mãe Da forma como Sir Robert o apresenta o argumento vale tanto para uma como para a outra mas retornarei a isso mais adiante 12 Tudo o que observo é que nosso autor não se alonga muito nem em seu primeiro capítulo nem em qualquer dos seguintes para provar o poder absoluto de Adão que lhe serve de grande príncipe no entanto como se houvesse estabelecido isso por uma demonstração segura começa seu segundo capítulo com estas palavras Administrando estas provas e razões extraídas da autoridade da Escritura Confesso que não consegui ver onde se encontram estas provas e razões da soberania de Adão salvo aquela de Honra teu pai mencionada acima ou então sua afirmação Nestes termos encontramos o testemunho manifesto ou seja de Belarmino que a criação tornou o homem príncipe de sua posteridade deve ser considerada como constituinte de provas e razões extraídas da Escritura ou de qualquer prova graças a uma dedução de um novo tipo nas palavras que imediatamente se seguem e na verdade conclui ele a autoridade real de Adão está suficientemente estabelecida em sua pessoa CLUBE DO LIVRO LIBERAL 13 Se neste capítulo ou não importa onde em toda a obra ele apresentou outras provas da autoridade real de Adão além da freqüência com que ele a afirma o que passa por um argumento na opinião de alguns convido quem quiser se encarregar de me mostrar o local e a página para que eu possa me convencer de meu erro e reconhecer meu descuido Se não se encontrar qualquer argumentação deste tipo imploro àqueles que tanto exaltaram este livro que se perguntem se não estão dando ao mundo a ocasião de suspeitar que eles defendem a monarquia absoluta não pela força das razões e dos argumentos mas porque cedem àquela do interesse e estão então resolvidos a aplaudir qualquer autor que escreva a favor de uma tal doutrina dandolhe ou não uma justificativa racional Espero que mal saibam que homens providos de razão e desprovidos de preconceitos se lançam a ganhar sua confiança porque em um discurso destinado a estabelecer o poder monárquico absoluto de Adão em oposição à liberdade natural da humanidade este grande doutor que eles invocam no assunto disse tão pouco para proválo que seria mais natural concluir que não há muita coisa a ser dita 14 Contudo eu não queria me poupar nenhum esforço para conhecer plenamente o pensamento de nosso autor então consultei suas Observações sobre Aristóteles Hobbes etc a fim de ver se ele se servia de argumentos quaisquer que fossem eles para apoiar sua querida tese da soberania de Adão em suas controvérsias com os outros uma vez que foi tão parcimonioso em seu tratado sobre o Poder natural dos reis Nas observações sobre o Leviatan do Sr Hobbes creio que ele agrupou em resumo a totalidade dos argumentos dos quais o vi se servir onde quer que seja em seus escritos Se Deus criou apenas Adão e depois de uma parte de seu corpo fez a mulher e se a partir de um e de outro toda a humanidade se encontra engendrada como uma parte deles mesmos e se multiplica se Adão recebeu de Deus o domínio não somente sobre sua mulher e sobre os filhos que nasceram deles mas também sobre a terra inteira para submetêla e sobre todas as criaturas que aqui vivem de tal maneira que durante toda a vida de Adão nenhum homem pudesse reivindicar ou possuir o que quer que seja salvo em virtude de uma doação de uma cessão ou de uma autorização emanando dele eu me pergunto etc O p 165 Aqui encontramos o resumo de todos os argumentos para a soberania de Adão e contra a liberdade natural que se encontram disseminados em seus escritos Eilos a criação de Adão por Deus o poder que Ele lhe deu sobre Eva e o poder que ele possuía como pai sobre seus filhos eu os examinarei a todos um por um CAPÍTULO III DO TÍTULO DE ADÃO À SOBERANIA PELA CRIAÇÃO 15 No prefácio de suas Observações sobre a Política de Aristóteles Sir Robert nos diz não se pode supor que a humanidade seja naturalmente livre sem negar que Adão tenha sido criado assim sendo eu não vejo como a criação de Adão pôde lhe conceder um poder soberano sobre o que quer que fosse pois ela consistia apenas para ele em receber o ser diretamente da onipotência e da mão de Deus não compreendo então porque a hipótese da liberdade natural equivale à negação da criação de Adão e seria de muita ajuda se alguém me explicasse isto porque nosso autor não se dignou ele próprio de fazêlo Não experimento qualquer dificuldade em supor que a humanidade seja naturalmente livre ainda que eu sempre tenha acreditado que Adão foi criado ele foi criado ou começou a existir em virtude de uma ação direta do poder divino sem a intervenção de pais ou sem que seres da mesma espécie devessem ter existido antes dele para gerálo e isso no momento determinado por Deus e da mesma maneira antes dele o leão o rei dos animais começou a existir em virtude do poder criador de Deus em conseqüência se o único fato de um ser existir em virtude deste poder sem nada além é suficiente para lhe conferir a soberania nosso autor raciocinando desta forma vem provar que o leão pode fazer valer um direito tão bom quanto aquele de Adão e certamente mais antigo Não pois Adão extraía seu direito de Deus que o havia designado diz o autor em outra parte Neste caso não foi o fato da criação isoladamente que concedeu o poder a Adão é então possível supor que a humanidade seja livre sem negar que Adão foi criado porque foi o ato pelo qual Deus o designou que o fez rei Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 27 16 Vejamos como ele concilia sua criação e sua designação Em virtude da designação divina diz Sir Robert desde que Adão foi criado ele se tornou rei do mundo mesmo que não tivesse ainda súditos é verdade que não podia existir governo efetivo enquanto não houvesse súditos mas Adão extraía da lei da natureza o direito de governar sua posteridade Adão era então rei desde o momento de sua criação em potência mas não em ato Lamento que o autor não nos diga o que ele entende por designação divina Podese explicar por uma designação divina tudo o que a Providência determina tudo o que prescreve a lei da natureza ou tudo o que ensina a revelação direta mas suponho que não se saberia tratarse aqui do primeiro sentido ou seja da determinação da Providência pois isso equivaleria a dizer que Adão exerceu uma realeza de fato desde que foi criado porque a lei da natureza lhe concedia o direito de governar sua posteridade A Providência não podia lhe conferir uma realeza de fato sobre o mundo em uma época em que não existia nem governo nem súditos para serem governados o que nosso autor reconhece aqui Ele chega até a dar à expressão monarca do mundo um sentido diferente pois entende às vezes por isso um indivíduo que seria proprietário da totalidade do mundo com exceção do resto da humanidade como o faz em seu Prefácio à página que já citei ele diz uma vez que Adão recebeu a ordem de multiplicar sua raça de povoar a terra e dela tornarse senhor e recebeu a soberania sobre todas as criaturas tornouse por isso mesmo o monarca do mundo inteiro desde então nenhum de seus descendentes pode ter o direito de possuir o que quer que seja a menos que tenha dele este direito por meio de uma concessão uma permissão ou uma sucessão Suponhamos então que ele deixe de entender por monarca o proprietário do mundo e por designação uma verdadeira doação divina e uma cessão especial efetuada em prol de Adão sob a forma de uma revelação Gn 128 são as definições que o próprio Sir Robert sustenta na passagem que eu comento neste caso seu argumento se apresenta da seguinte maneira desde que Adão foi criado tornouse proprietário do mundo porque a lei da natureza lhe concedia o direito de governar sua posteridade Este raciocínio encerra dois erros claros Primeiro é falso que Deus tenha efetuado esta cessão em favor de Adão logo após têlo criado na verdade ainda que o texto que a isso se refere venha imediatamente em seguida àquele que relata a sua criação é evidente que Deus não podia se dirigir a Adão nestes termos antes de ter feito Eva e de têla conduzido para junto dele perguntase como ele podia ser rei em virtude de uma designação especial desde o momento de sua criação mais ainda porque o texto se não me engano qualifica de concessão original do governo as palavras que Deus pronuncia dirigindose a Eva na passagem Gn 316 este acontecimento é posterior à queda quando ocorreu algum tempo havia decorrido desde a criação de Adão e a situação deste havia mudado muito não percebo então como nosso autor pode dizer neste sentido que Adão tornouse rei do mundo em virtude de uma designação especial desde o momento de sua criação Em segundo lugar se era verdade que foi uma doação divina que constituiu a designação especial de Adão como monarca do mundo desde o momento de sua criação a razão que se enuncia aqui não bastaria para proválo seria sempre a sustentação de um raciocínio falso pois se Deus designou Adão como monarca do mundo por meio de uma doação especial é porque a lei da natureza concedia a Adão o direito de governar sua posteridade na verdade se Deus já havia concedido a Adão o direito de governar em virtude da natureza não teria por que fazerlhe uma doação especial ou pelo menos a primeira dádiva não poderia constituir prova da segunda 17 Por outro lado isto não resolve muito se por designação divina entendemos a lei da natureza ainda que seja uma maneira muito dura de designála neste contexto e por monarca do mundo o chefe político soberano do mundo pois neste caso a frase que examinamos se apresenta sob a seguinte forma em virtude da lei da natureza desde o momento de sua criação Adão foi encarregado de governar sua posteridade o que equivale dizer que ele governava em virtude da lei da natureza porque governava em virtude da lei da natureza Mesmo que se suponha que concedêssemos que o homem seja naturalmente encarregado de governar seus filhos isso não poderia provar que Adão tenha se tornado monarca desde o momento de sua criação na verdade se o homem é naturalmente encarregado em virtude de sua qualidade de pai acredito que é difícil conceber como Adão podia ser naturalmente encarregado de governar antes de ser pai ele que não podia extrair o direito de governar senão de sua qualidade de pai ou então é preciso sustentar que ele era pai antes de ser pai ou que possuía um direito antes de possuílo 18 A esta objeção fácil de prever nosso autor responde com muita lógica que Adão foi encarregado do governo em potência mas não em ato eis um meio bem elegante de governar sem governo de ser pai sem filhos e de ser rei sem súditos Da mesma maneira Sir Robert era autor antes de ter escrito seu livro não em ato é CLUBE DO LIVRO LIBERAL verdade mas em potência porque depois que ele o tivesse publicado a lei da natureza lhe teria concedido o direito de ser autor assim como Adão possuía o direito de governar seus filhos antes de têlos gerado se isso resolvia o caso de ser assim monarca do mundo ou seja monarca absoluto em potência mas não em ato Sir Robert pode conferir graciosamente este direito a qualquer um de seus amigos se ele lhe parecer conveniente e não sou eu quem o desejará todavia mesmo que estes termos ato e potência designassem outra coisa além da habilidade de nosso autor na arte da distinção não estariam em seu devido lugar aqui A questão não é saber se Adão exercia efetivamente o governo mas se estava efetivamente investido do direito de governar o direito da natureza diz nosso autor habilitava Adão a governar O que vem a ser então este direito da natureza O direito que pertence aos pais de exercer poder sobre a pessoa dos filhos porque ele os gerou geratione jus acquiritur parentibus in liberos diz nosso autor que cita Grotius O p 223 Assim o direito acompanha o fato da procriação do qual procede e segundo esta maneira de raciocinar ou de distinguir que é a de nosso autor Adão estava investido de seu direito desde o momento de sua criação mas somente em potência e não em ato ou seja em bom inglês ele não tinha direito algum 19 Para se falar em termos menos eruditos mas mais inteligíveis podese dizer que Adão tinha a possibilidade de tornarse chefe político porque era possível que tivesse filhos e adquirisse desta maneira o direito natural fosse qual fosse que resulta disso mas que relação existe entre isso e a criação de Adão que permite afirmar que ele se tornou monarca do mundo desde o momento de sua criação Visto isso poderseia também dizer que Noé se tornou monarca do mundo desde o momento de sua criação porque ele tinha a possibilidade de sobreviver à humanidade inteira com exceção de sua própria posteridade o que depois da definição de nosso autor é suficiente para fazer um monarca um monarca em potência Confesso de minha parte não perceber onde existe e como se pretende uma relação necessária entre a criação de Adão e seu direito de governar o que obrigaria a concluir que não se pode supor que a humanidade seja naturalmente livre sem negar que Adão foi criado nem como é possível reunir as palavras em virtude da designação especial etc O p 254 qualquer que seja a explicação que se dê de maneira que elas tenham um sentido um pouco mais aceitável ou pelo menos que provem a afirmação sobre a qual estão assentadas ou seja que Adão se tornou rei desde o momento de sua criação um rei diz nosso autor não em ato mas em potência ou seja na realidade rei nenhum 20 Temo ter cansado a paciência de meu leitor detendome sobre esta passagem mais tempo do que parece exigir o peso dos argumentos que ela encerra mas foi a maneira de escrever de nosso autor que me arrastou irresistivelmente ele amontoa várias suposições umas em cima das outras e o faz em termos ambíguos e gerais a mistura e a confusão que disso resulta são tais que não se pode apontar os erros que ele comete sem examinar os diferentes significados que os termos dos quais ele se serve são suscetíveis de receber e sem averiguar de que maneira se tomamos qualquer uma de suas acepções eles conseguem se entrosar entre elas e conter alguma verdade na passagem que tratamos aqui nada poderia impedir a refutação da tese do autor ou seja a afirmação de que Adão se tornou rei desde o momento de sua criação sem examinar primeiro o sentido das palavras desde o momento de sua criação devese compreender que elas se referem pois é possível ao momento em que Adão começou a governar como implica o membro de frase precedente desde o momento de sua criação ele se tornou monarca ou que se referem ao fato gerador do poder de Adão pois o texto diz p 11 a criação fez do homem o príncipe de sua descendência Como se pode julgar que é verdade que Adão seja rei de certa maneira se não se averigua primeiro em que sentido se deve interpretar a palavra rei Tratase como a redação do início desta passagem dá a entender dos direitos de prerrogativa privada de Adão que este tinha por uma concessão divina especial enquanto monarca do mundo nomeado por Deus Ou a idéia de rei evoca o poder paterno que Adão exercia sobre sua descendência e que lhe era devido em virtude do direito da natureza É preciso então dar à palavra rei um ou outro destes dois sentidos ou nem um nem outro e compreender que a criação fez de Adão um príncipe de uma maneira diferente daqueles dois Ainda que em nenhum sentido seja verdadeiro afirmar que Adão tenha se tornado rei desde o momento de sua criação esta tese nos é aqui apresentada como uma conclusão que seria deduzida daquela que a precede então na realidade não é senão uma afirmação gratuita justaposta a outras da mesma espécie que reúne ousadamente como em um raciocínio termos de senti do impreciso e duvidoso onde não existe nem prova nem encadeamento este procedimento é costumeiro em nosso autor como acabo de dar aqui um resumo ao leitor eu me absterei tanto quanto o assunto me permitir de voltar a esta questão se aqui eu toquei no assunto foi para fazer ver ao mundo como idéias incoerentes e hipóteses que não vêm acompanhadas de nenhuma prova se as reunirmos de uma bela Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 29 maneira numa linguagem bem apresentada e num estilo aceitável podem passar por raciocínios sólidos e sensatos até o dia em que alguém as examinar com atenção CAPÍTULO IV DO TÍTULO DE ADÃO À SOBERANIA POR ADOÇÃO GN 128 Parágrafos 2143 Filmer afirma que Deus deu o mundo a Adão ordenandolhe submeter a terra e povoála a doação passa aos filhos na medida em que estes possuem os direitos de seu pai mas é preciso distinguir a doação do mundo a título de propriedade daquele do poder real sobre os homens Ora o texto da Gênese 128 em primeiro lugar não tornou Adão monarca da espécie humana e em segundo concedeulhe um simples direito de copropriedade sobre as criaturas inferiores Os seres vivos dados por Deus são os animais privados de razão terrestres aquáticos ou aéreos o gado os animais selvagens e os répteis eles não incluem o homem senão a sujeição seria pior que a escravidão e o rei poderia comer seu povo A doação das espécies inferiores à espécie humana foi feita a todos os homens e não apenas a Adão A Bíblia emprega o plural porque Deus se dirigia também a Eva Se Deus falava no plural antes de ter criado Eva Ele se dirigia à humanidade coletivamente O próprio Filmer declara que Deus deu a terra aos filhos dos homens Como podia concluir que apenas Adão era o rei do mundo Procura em seguida negar a copropriedade dos filhos de Noé estes não teriam recebido o mundo senão na qualidade de subordinados ou de sucessores Entretanto a ordem de se multiplicar dada por Deus aos homens não interessava senão àqueles filhos de Noé que por sua vez se tornaram pais Noé não recebeu mais direitos que Adão sobre seus filhos mas Deus estendeu o campo de seu direito de propriedade sobre o mundo autorizandoo a se alimentar de animais selvagens Isso não confere nenhum poder sobre as pessoas Todos da mesma maneira podem se alimentar de animais selvagens e nenhum dispõe de um privilégio que lhe permitisse reduzir os outros à obediência pela fome CAPÍTULO V DO TÍTULO DE AÇÃO À SOBERANIA PELA SUJEIÇÃO DE EVA Parágrafos 4449 Filmer imagina que Deus confiou o governo a Adão quando diz a Eva Teu desejo te colocará ao lado de teu esposo e ele te comandará Entretanto Deus amaldiçoava Eva e pouco se preocupava em conferirlhe poderes Condenou Adão ao trabalho e não colocou um cetro em suas mãos A passagem citada não diz respeito senão à situação da mulher diante de seu marido CAPÍTULO VI DO TÍTULO DE ADÃO À SOBERANIA PELA PATERNIDADE Parágrafos 5072 A tese principal de Filmer é que Adão possuía um direito natural de domínio sobre seus filhos em virtude da própria paternidade tal seria a fonte de toda a autoridade real homem algum nascendo CLUBE DO LIVRO LIBERAL livre Grotius ensina que os pais adquirem um poder sobre seus filhos em virtude da geração Entretanto ele não pretende que se tratasse de um poder absoluto Filmer o faz dizer isso O argumento habitual é outro os pais dão a vida aos filhos portanto são senhores desta vida mas aquele que dá nem sempre tem o direito de retomar O pai na verdade não dá a vida de que ele não compreende sequer a natureza Deus é o autor e o doador da vida e mais ainda da alma O homem se acasala por desejo e freqüentemente perpetua a raça contra a sua vontade Se o pai tem direitos a mãe compartilha deles Os pais que abandonam seus filhos agem contra a natureza o que não fazem nem os leões nem os lobos Alguns chegam a comêlos O homem cai mais baixo que os animais selvagens se deixa de seguir a razão e sua extravagância faz crer aos outros que ele é capaz de os comandar Filmer apresenta hábitos criminosos como provas da autoridade paterna Filmer invoca o Decálogo Honra teu pai Se tivesse acrescentado e tua mãe teria visto que não se tratava de um poder monárquico A Escritura associa quase sempre a mãe ao pai Ela ordena a obediência aos pais O Quinto Mandamento não autoriza o pai a dispensar o filho de honrar sua mãe O direito natural concede aos dois um direito igual à honra Igualmente o avô paterno não pode dispensar o neto de honrar o pai A obrigação não se situa no plano da obediência política onde o soberano pode dispensar um súdito de obedecer a outro Filmer disse que o pai pode alienar seu poder em benefício de um terceiro Supondose que ele pudesse alienar seu direito ao respeito o que não é garantido uma vez admitido que o magistrado supremo é ao mesmo tempo pai nenhum súdito pode exercer autoridade sobre seus próprios filhos ou inversamente todos os súditos que são pais seriam soberanos Na realidade Deus deu a terra aos homens e lhes ordenou obedecer e honrar seus pais não conferiu aos pais nenhum poder de vida e de morte O homem possui portanto uma liberdade natural Todos aqueles que compartilham a mesma natureza as mesmas faculdades e os mesmos poderes são iguais por natureza e devem participar dos mesmos direitos e privilégios comuns até aquele que um superior pudesse reclamar para si seja uma designação divina manifesta seja consentimento de seu subordinado Isso destrói todo o raciocínio de Filmer Em outro momento Filmer se contradiz sem cessar com respeito ao ponto da respectiva autoridade dos pais e dos avós pelas razões indicadas Ele não atribui sempre a paternidade às mesmas pessoas aos pais aos filhos durante a vida de seu pai aos pais de família aos pais perpetuamente à herança de Adão à posteridade de Adão aos primeiros pais todos filhos ou netos de Noé aos primeiros pais a todos os reis a todos aqueles que detêm o poder supremo aos herdeiros destes primeiros ancestrais que eram no início os pais naturais de todo o povo a um rei eletivo àqueles em pequeno ou em grande número que governam a sociedade política a um usurpador Não importa por conseguinte quem pode ser pai CAPÍTULO VII DA PATERNIDADE E DA PROPRIEDADE Parágrafos 7377 Filmer justapõe duas proposições apenas a afirmação da propriedade privada de Adão sobre o mundo permite evitar os absurdos da teoria da liberdade natural o poder paterno é a fonte de todo poder Como conciliálos Pela morte de Adão seus bens passam ao filho mais velho supondose que a regra da primogenitura se aplique à sucessão mas o herdeiro dos bens apesar disso não se torna o pai dos filhos que não gerou Todos os filhos de Adão permanecem pais de seus próprios filhos Do ponto de vista da propriedade Caim e Abel possuíam territórios e rebanhos distintos já durante a vida de Adão Igualmente Noé dividiu o mundo entre seus três filhos Filmer nega que a vontade popular possa constituir uma fonte de poder como a paternidade pois esta dupla soberania conduziria a lutas sem fim Entretanto o resultado é o mesmo quando se invoca do mesmo modo a propriedade e a paternidade Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 31 CAPÍTULO VIII DA TRANSMISSÃO DO PODER MONÁRQUICO SOBERANO DE ADÃO Parágrafos 7880 Filmer começa por dizer que ninguém podia possuir nada exceto em virtude de uma doação ou de uma permissão de Adão ou como sucessor deste mas pouco a pouco termina por aceitar todos os procedimentos de transmissão da autoridade inclusive a usurpação CAPÍTULO IX DA MONARQUIA COMO HERANÇA RECEBIDA DE ADÃO Parágrafos 81103 Ainda que todo poder devesse ser monárquico ainda seria preciso saber quem é rei e quem não é Caso contrário não haveria diferença entre os piratas e os príncipes legítimos Somente a força garantiria a obediência Mesmo que Adão detivesse uma poderosa monarquia absoluta Filmer deveria ainda provar primeiro que este poder não cessou com Adão mas passou integralmente para algum outro segundo que os reis e governantes atuais da terra recebem dele seu título em virtude de alguma transferência regular A propriedade vinha de uma doação a paternidade do fato de gerar Se a doação não estivesse acompanhada de uma cláusula expressa de transmissibilidade não passaria aos sucessores de Adão por morte deste mas retornaria a Deus Na realidade Deus deu ao homem o desejo de autopreservação e a inteligência para utilizar para este fim as criaturas inferiores Deus deu também o desejo de perpetuar a espécie através do qual os filhos têm o direito de dividir os bens dos pais e de herdálos Os pais não são proprietários por sua própria conta mas devem prover as necessidades de sua progenitura Por sua morte esta obrigação cessa mas seus efeitos devem continuar a se estender o máximo de tempo possível de onde resulta um direito de sucessão natural em benefício dos filhos Por isso a propriedade privada não retorna ao conjunto da humanidade por morte do proprietário Por isso também o filho do morto e não seu pai é seu herdeiro Todos os filhos de Adão foram seus herdeiros sem que nenhum pudesse extrair disso o direito de comandar os outros Foi difundida a opinião de que existe um direito natural de primogenitura tanto para os bens quanto para o poder No entanto a propriedade existe no interesse do proprietário enquanto o poder existe no interesse daqueles sobre os quais ele é exercido A criança pode reclamar de seu pai os meios de viver mas não aqueles de comandar Se a soberania procede do consentimento valese da mesma regra que prevê sua transmissão Se provém de uma doação divina é preciso uma doação semelhante em benefício do novo titular Se está fundamentada sobre a procriação nenhum homem pode reivindicála diante de seus irmãos Não existe direito natural de primogenitura quer se trate do poder ou dos bens O herdeiro de Adão não podia receber de seu pai qualquer autoridade sobre Eva Os pais não podem alienar o poder que têm sobre seus filhos mas quando muito se encontrar despojados dele O pai adotivo adquire o título principal à piedade filial mas não o poder paterno que o pai natural simplesmente perdeu CLUBE DO LIVRO LIBERAL A paternidade não se transmite para o herdeiro Pelo modo que Filmer definiu a paternidade e a propriedade de Adão estes direitos eram intransmissíveis CAPÍTULO X DO HERDEIRO DO PODER MONÁRQUICO DE ADÃO Parágrafos 104105 Filmer diz que em toda multidão há um homem que por natureza tem o direito de ser o rei dos outros como herdeiro de Adão e que por natureza todo homem é rei ou súdito Suponhamos que se reúna uma multidão composta precisamente de todos os reis e príncipes da terra Logicamente o mesmo princípio deveria se aplicar Dessa maneira todos reivindicariam para si um direito igual É preciso admitir ou que os reis não recebem sua autoridade de Adão por sucessão segundo a regra da primogenitura ou que no mundo existe apenas um rei legítimo Este pode ser o chefe de qualquer casa desconhecendose que esteja ligada a outra Ao contrário se Adão tivesse mais de um herdeiro todos os homens seriam igualmente seus herdeiros sendo seus filhos ou os descendentes destes CAPÍTULO XI QUEM É ESTE HERDEIRO Parágrafos 106109 A questão que sempre desencadeou as guerras não é a de saber se há um poder no mundo nem qual é sua origem mas a de decidir quem vai exercêlo Exaltar a soberania sem mostrar o titular é provocar desordens Filmer atribui um caráter de direito divino não somente à autoridade mas a sua transmissão se bem que para ele toda usurpação seria um sacrilégio mas ele nos indica o herdeiro legítimo Ele nos fala da transferência do poder civil pela instituição divina ao pai mais velho Literalmente isso significa a pessoa mais idosa Nada precisa a idéia da instituição divina ou aquela do poder civil Não se consegue perceber bem quais são as regras sucessórias por instituição divina Filmer não define o herdeiro de Adão Afirma que a exclusão de toda outra constituição além da monarquia e a atribuição exclusiva do poder a Adão e depois ao seu herdeiro são três mandados de Deus Entretanto todos os homens descendem de Adão Ele sustenta que o irmão mais velho comanda os mais novos Deus disse a Caim sobre seu irmão Abel Seu desejo te será submetido e tu o comandarás mas Deus estabelecia como condição que Caim se conduzisse bem Além disso Caim e Abel eram proprietários de territórios distintos Adão teve outros filhos além de Caim e Abel Ele invoca a bênção de Isaac a Jacó Sê o senhor de teus irmãos e que os filhos de tua mãe se inclinem diante de ti mas esta bênção não dizia respeito ao direito de primogenitura que precisamente Jacó havia comprado de Esaú por via contratual No tempo dos patriarcas o direito de primogenitura não se estendia a toda a fortuna do pai limitavase a uma porção dupla Cada filho mais moço devia receber sua parte Jacó não era o mais velho mas o mais novo Esaú jamais se submeteu à autoridade de Jacó partiu para se estabelecer no Monte Seir Nenhum dos dois irmãos comandou o outro após a morte do pai Cada um fundou uma nação separada os Edomitas e os Israelitas Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 33 A se referir à primogenitura apenas o mais velho devia herdar Se eram necessárias regras auxiliares por exemplo quando o pai morre sem deixar filhos estas não são conhecidas de maneira precisa O importante é que eu saiba a que senhor devo obedecer Eu jamais obedeço ao poder paterno mas a qualquer um que esteja dele investido Não estabelecendo o direito Filmer se restringe à posse e termina por consagrar os direitos de um usurpador um Cade ou um Cromwell Faltam precisões Quem deve herdar o neto por uma filha ou o sobrinho por um irmão A filha ou o tio O neto por uma filha mais moça ou a filha de uma filha mais velha O filho mais velho de uma concubina ou o filho mais moço da esposa Quais são os efeitos da legitimação Quem deve herdar o mais velho deficiente mental ou o mais moço reconhecido por sua sabedoria A partir de que grau de loucura intervém a prescrição dos direitos Quem está em julgamento Será que o filho do herdeiro proscrito por sua loucura tem preferência sobre o filho daquele que reinou Todos estes problemas estão presentes na história Não faltam exemplos na Inglaterra e na Escócia Partindo de Adão não se pode saber quem é rei hoje em dia A situação seria a mesma se Adão houvesse recebido o poder de perdoar os pecados ou de curar as enfermidades O direito civil não pode servir para determinar o herdeiro pois é uma instituição divina inicial que rege a sucessão e portanto um direito anterior e superior a todo governo É pretensioso presumir que Deus impõe uma regra sucessória sem indicar quem herda A proibição do incesto é acompanhada da definição dos relacionamentos de parentesco que impedem o casa mento De modo contrário a Escritura não determina quem é o mais velho porque não estabelece em parte alguma a regra da primogenitura Filmer afirma sem provar que os patriarcas recebiam de Adão um poder soberano A condenação à morte pronunciada por Judá contra sua nora Tamar não prova que ele tenha sido soberano Não é porque ele a pronunciou que tinha o direito de fazêlo Além disso Judá era um filho mais moço de Jacó se ele detinha a autoridade paterna de Adão isso ocorreu durante a vida de seu próprio pai e de seus irmãos Abrão comandava um exército de 318 homens e Esaú um de 400 homens Para isso precisariam ser herdeiros de Adão Um fazendeiro das Índias Ocidentais pode reunir mais que isso Estes números correspondem simplesmente à autoridade que um homem exerce sobre sua família e sobre seus servidores O direito de fazer a guerra e de concluir a paz não prova a soberania os fazendeiros os capitães dos navios devem às vezes exercêlos Isto seria uma marca de soberania que não resultaria em nenhum elo com aquela de Adão Abraão não vivia como um monarca universal Ele mantinha com Lot relações de amizade baseadas na igualdade Ele enviou a grande distância seus criados para encontrar uma esposa para seu filho Não possuiu terra de sua propriedade durante muito tempo O exemplo de Esaú invocado por Filmer é ainda mais interessante Como querer insistir ao mesmo tempo que Esaú fosse rei e súdito de Jacó O poder patriarcal continuou depois do Dilúvio porque ainda havia patriarcas mas Filmer não estabelece em parte alguma que estes o tenham sido pelos direitos de Adão Os filhos de Noé dividiram a terra Ignorase de que maneira as nações modernas descendem deles A divisão efetuada entre Sem Cam e Jafé fundaram a independência mútua de todas as famílias A dispersão ocorrida depois do fracasso do empreendimento unitário da torre de Babel reforçou esta independência Entretanto nada indica que tenha havido correspondência entre a autoridade paterna e a autoridade real A língua não pode servir para identificar uma e outra A divisão lingüística e nacional da humanidade não nos ensina nada sobre os governos ou sobre as formas de governo Nessa época a Escritura sugere mais a existência de uma república que de uma monarquia absoluta O conjunto da população tomava as decisões Filmer fixa em 72 o número de povos distintos que foram formados após o episódio de Babel e supõe que Deus tenha tido o cuidado de manter a autoridade paterna no entanto pelo menos não existia mais herdeiro de Adão Filmer considera Nemrod o patriarca seguinte mas lhe censura haver procurado estender seu domínio através da conquista Ora o poder não ultrapassa os limites da família exceto por conquista ou por convenção Em seguida Filmer enumera um grande número de reinados e acrescenta que cada cidade possuía um rei A realeza não pertencia portanto apenas ao herdeiro único de Adão Os escalões intermediários da sucessão permanecem desconhecidos Não obstante eles existem e a autoridade patriarcal não experimentou interrupções durante a estada dos Israelitas no Egito Filmer conta a história dos Judeus mas não prova que os patriarcas fossem reis nem que patriarcas ou reis recebessem seu direito de Adão Fala também dos reis gregos Critica os argumentos extraídos da antigüidade helênica pagã mas se utiliza deles quando lhe é conveniente Em seguida diz que Deus escolheu Moisés e Josué como príncipes dos Judeus Sustenta que Deus restabeleceu o direito antigo e original de sucessão ao governo paterno quando concedeu reis aos Israelitas Deus CLUBE DO LIVRO LIBERAL nada declarou neste sentido Na verdade para restaurar o direito antigo seria preciso que o novo rei recebesse as mesmas atribuições que o patriarca Ora sabese que os reis de Israel detinham um poder muito superior àquele de Abraão Além disso Davi era descendente de um ramo mais jovem Se os irmãos mais moços herdarem em virtude da primogenitura todo mundo pode invocar o direito da primogenitura até Filmer Eis uma maneira estranha de consolidar os títulos das coroas Filmer diz que designando um rei Deus habilita a posteridade dele a sucedêlo mas tratase de toda a posteridade ou de um único descendente Ele evita tomar partido pois os reis são sucedidos em muitos casos sem que haja respeito à ordem sucessória em virtude de um desígnio divino não reconhecido ou que consagrava uma ordem diferente Deus nem sempre intervinha Jefté foi escolhido pelo povo De uma maneira geral os Juízes detinham apenas um poder que dizia respeito à vida que não passavam a seus filhos O final do Livro dos Juízes que contém a narrativa das lutas entre os levitas e os benjaminitas mostra que o governo dos Judeus não foi monárquico em todas as épocas É falso que Deus tenha previsto tacitamente a transmissão sucessória a um herdeiro único todas as vezes que conferia um poder Se fizermos uma estimativa o povo Judeu só teve reis hereditários em menos de um terço dos 1750 anos de sua história Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 35 SEGUNDO TRATADO SOBRE O GOVERNO CIVIL CAPÍTULO I ENSAIO SOBRE A ORIGEM OS LIMITES E OS FINS VERDADEIROS DO GOVERNO CIVIL 1 O ensaio anterior mostrou que 1º Adão não tinha nem por direito natural de paternidade nem por específica doação de Deus tal autoridade sobre seus filhos ou domínio sobre o mundo como se pretendeu 2º Se ele os tivesse ainda assim seus herdeiros não teriam direito a eles 3º Se seus herdeiros tivessem na ausência de uma lei da natureza ou lei específica de Deus que permita identificar qual o herdeiro legítimo em cada caso particular o direito de sucessão e conseqüentemente o de governar não poderia ser determinado com certeza 4º Mesmo se ele tivesse sido determinado não se sabe mais qual a linhagem mais antiga da posteridade de Adão e depois de tanto tempo entre as raças humanas e as famílias do mundo nenhuma está acima das outras para pretender ser a mais antiga e portanto aspirar ao direito de herança Creio que uma vez estabelecidas todas essas premissas é impossível aos governantes que vivem atualmente sobre a terra tirar qualquer proveito ou derivar a menor sombra de qualquer autoridade daquela que se supõe a fonte de todo o poder os direitos de prerrogativa privada de Adão e sua autoridade paterna Assim a menos que se queira fornecer argumentos àqueles que acreditam que todo governo terrestre é produto apenas da força e da violência e que em sua vida em comum os homens não seguem outras regras senão as dos animais selvagens em que o mais forte é quem manda e assim justificando para sempre a desordem e a maldade o tumulto a sedição e a rebelião coisas contra as quais protestam tão veementemente os seguidores dessa hipótese será preciso necessariamente descobrir uma outra gênese para o governo outra origem para o poder político e outra maneira para designar e conhecer as pessoas que dele estão investidas além daquelas que Sir Robert Filmer nos ensinou 2 Com este fim creio que não é fora de propósito indicar o que eu entendo por poder político e devese distinguir o poder de um magistrado sobre um súdito daquele de um pai sobre seus filhos de um patrão sobre seu empregado de um marido sobre sua esposa e de um senhor sobre seu escravo Considerandose que uma mesma pessoa levandose em conta todos os seus relacionamentos exercesse simultaneamente todos esses poderes distintos isso pode nos ajudar a distinguir uns dos outros e mostrar a diferença entre o dirigente de uma sociedade política um pai de família e o capitão de uma galera 3 Por poder político então eu entendo o direito de fazer leis aplicando a pena de morte ou por via de conseqüência qualquer pena menos severa a fim de regulamentar e de preservar a propriedade assim como de empregar a força da comunidade para a execução de tais leis e a defesa da república contra as depredações do estrangeiro tudo isso tendo em vista apenas o bem público CAPÍTULO II CLUBE DO LIVRO LIBERAL DO ESTADO DE NATUREZA 4 Para compreender corretamente o poder político e traçar o curso de sua primeira instituição é preciso que examinemos a condição natural dos homens ou seja um estado em que eles sejam absolutamente livres para decidir suas ações dispor de seus bens e de suas pessoas como bem entenderem dentro dos limites do direito natural sem pedir a autorização de nenhum outro homem nem depender de sua vontade Um estado também de igualdade onde a reciprocidade determina todo o poder e toda a competência ninguém tendo mais que os outros evidentemente seres criados da mesma espécie e da mesma condição que desde seu nascimento desfrutam juntos de todas as vantagens comuns da natureza e do uso das mesmas faculdades devem ainda ser iguais entre si sem subordinação ou sujeição a menos que seu senhor e amo de todos por alguma declaração manifesta de sua vontade tivesse destacado um acima dos outros e lhe houvesse conferido sem equívoco por uma designação evidente e clara os direitos de um amo e de um soberano 5 O judicioso Hooker considera esta igualdade natural dos homens como tão evidente em si mesma e fora de dúvida que fundamenta sobre ela a obrigação que têm de se amarem mutuamente sobre a qual ele baseia os deveres que uns têm para com os outros e de onde ele extrai os grandes preceitos da justiça e da caridade Ele diz O mesmo convite da natureza levou os homens a reconhecer seu dever tanto no amor ao próximo quanto no amor a si mesmo pois deve ser aplicada uma medida comum a todas as coisas iguais Se não posso me impedir de desejar que me façam o bem se espero mesmo que todos ajam assim para comigo na medida dos desejos mais exigentes que um homem possa formular para si mesmo como pretenderia obter satisfação ainda que em parte sem buscar por meu lado tentar satisfazer nos outros o mesmo desejo por que eles compartilham sem dúvida da mesma fraqueza e da mesma natureza Tudo o que lhes fosse oferecido desprezando este desejo forçosamente iria ferilos tanto quanto a mim Portanto se pratico o mal devo esperar sofrer pois os outros não têm motivo para me dedicar um amor maior que aquele que lhes demonstro Meu desejo de ser amado em toda a dimensão do possível por meus iguais naturais me impõe a obrigação natural de lhes dedicar plenamente a mesma afeição Ninguém ignora os diferentes preceitos e cânones para a direção da vida que a razão natural extraiu desta relação de igualdade que existe entre nós mesmos e aqueles que são como nós Eccl Pol liv 1 6 Entretanto ainda que se tratasse de um estado de liberdade este não é um estado de permissividade o homem desfruta de uma liberdade total de dispor de si mesmo ou de seus bens mas não de destruir sua própria pessoa nem qualquer criatura que se encontre sob sua posse salvo se assim o exigisse um objetivo mais nobre que a sua própria conservação O estado de Natureza é regido por um direito natural que se impõe a todos e com respeito à razão que é este direito toda a humanidade aprende que sendo todos iguais e independentes ninguém deve lesar o outro em sua vida sua saúde sua liberdade ou seus bens todos os homens são obra de um único Criador todopoderoso e infinitamente sábio todos servindo a um único senhor soberano enviados ao mundo por sua ordem e a seu serviço são portanto sua propriedade daquele que os fez e que os destinou a durar segundo sua vontade e de mais ninguém Dotados de faculdades similares dividindo tudo em uma única comunidade da natureza não se pode conceber que exista entre nós uma hierarquia que nos autorizaria a nos destruir uns aos outros como se tivéssemos sido feitos para servir de instrumento às necessidades uns dos outros da mesma maneira que as ordens inferiores da criação são destinadas a servir de instrumento às nossas Cada um é obrigado não apenas a conservar sua própria vida e não abandonar voluntariamente o ambiente onde vive mas também na medida do possível e todas as vezes que sua própria conservação não está em jogo velar pela conservação do restante da humanidade ou seja salvo para fazer justiça a um delinqüente não destruir ou debilitar a vida de outra pessoa nem o que tende a preservála nem sua liberdade sua saúde seu corpo ou seus bens Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 37 7 Para que se possa impedir todos os homens de violar os direitos do outro e de se prejudicar entre si e para fazer respeitar o direito natural que ordena a paz e a conservação da humanidade cabe a cada um neste estado assegurar a execução da lei da natureza o que implica que cada um esteja habilitado a punir aqueles que a transgridem com penas suficientes para punir as violações Pois de nada valeria a lei da natureza assim como todas as outras leis que dizem respeito aos homens neste mundo se não houvesse ninguém que no estado de natureza tivesse poder para executar essa lei e assim preservar o inocente e refrear os transgressores E se qualquer um no estado de natureza pode punir o outro por qualquer mal que ele tenha cometido todos podem fazer o mesmo Pois nesse estado de perfeita igualdade onde naturalmente não há superioridade ou jurisdição de um sobre o outro o que um pode fazer para garantir essa lei todos de vem ter o direito de fazêlo 8 Assim no estado de natureza um homem adquire um poder sobre o outro mas não um poder absoluto ou arbitrário para tratar um criminoso segundo as exaltações apaixonadas ou a extravagância ilimitada de sua própria vontade quando está em seu poder mas apenas para infringirlhe na medida em que a tranqüilidade e a consciência o exigem a pena proporcional a sua transgressão que seja bastante para assegurar a reparação e a prevenção Pois estas são as únicas duas razões por que um homem pode legalmente ferir outro o que chamamos de punição Ao transgredir a lei da natureza o ofensor declara estar vivendo sob outra lei diferente daquela da razão e eqüidade comuns que é a medida que Deus determinou para as ações dos homens para sua segurança mútua e assim tornandose perigoso para a humanidade ele enfraqueceu e rompeu o elo que os protege do dano e da violência Tratandose de uma violação dos direitos de toda a espécie de sua paz e de sua segurança garantidas pela lei da natureza todo homem pode reivindicar seu direito de preservar a humanidade punindo ou se necessário destruindo as coisas que lhe são nocivas dessa maneira pode reprimir qualquer um que tenha transgredido essa lei fazendo com que se arrependa de têlo feito e o impedindo de continuar a fazêlo e através de seu exemplo evitando que outros cometam o mesmo erro E neste caso e por este motivo todo homem tem o direito de punir o transgressor e ser executor da lei da natureza 9 Não duvido que esta doutrina vá parecer muito estranha a alguns homens mas antes que a condenem desejo que me respondam com que direito um príncipe ou um estado podem matar ou punir um estrangeiro por qualquer crime que ele tenha cometido em seu país É certo que suas leis mesmo em virtude de qualquer sanção que recebam da vontade promulgada do legislativo não se aplicam a um estrangeiro não se dirigem a ele e mesmo que assim fosse ele não seria obrigado a respeitálas A autoridade legislativa pela qual elas vigoram sobre os súditos daquela sociedade política não tem poder sobre ele Aqueles que detêm o poder supremo de fazer leis na Inglaterra na França ou na Holanda são para um indígena como qualquer um no restante do mundo homens sem autoridade Por isso se pela lei da natureza cada homem não tem o poder de punir as ações que a transgridem ainda que sensatamente ele julgue que a situação o requeira não vejo como os magistrados de qualquer comunidade podem punir um estrangeiro de outro país pois diante dele não têm mais poder que aquele que cada homem pode naturalmente ter sobre outro 10 Além do crime que consiste em violar a lei e se eximir da obediência à reta razão pelo qual um homem degenera e declara que rompeu com os princípios da natureza humana tornandose uma criatura nociva há em geral um dano injusto causado a uma ou outra pessoa isto é algum outro homem é prejudicado por aquela transgressão neste caso além do direito de punir que ela compartilha com os outros homens a pessoa lesada possui um direito próprio de buscar a reparação por parte do autor da infração E qualquer outra pessoa que ache isso justo pode também juntarse à vítima e ajudála a recuperar do ofensor o quanto ela considere suficiente para reparar o dano sofrido 11 Diante destes dois direitos distintos o primeiro de punir o crime a título de prevenção e para impedir que ele se reproduza direito de punição que pertence a todos o segundo de obter a reparação que pertence apenas à vítima o magistrado a quem foi conferido o direito comum de punir em virtude de suas próprias funções pode freqüentemente perdoar a punição das infrações criminais por sua própria autoridade se CLUBE DO LIVRO LIBERAL o bem público não exige a aplicação da lei mas não pode perdoar a reparação devida à vítima pelo dano sofrido Aquele que sofreu o dano tem o direito próprio de exigir a reparação e somente ele pode a ela renunciar Pertence à vítima o poder de se apropriar dos bens ou dos serviços do ofensor pelo direito de autopreservação assim como todo homem tem o poder de punir o crime e evitar que ele seja novamente cometido pelo direito que tem de proteger toda a humanidade realizando todo ato razoável a seu alcance para atingir este objetivo Por isso todo homem no estado de natureza tem o poder de matar um assassino tanto para impedir outros de fazer o mesmo dano que nenhuma reparação pode compensar pelo exemplo da punição que atinge a todos mas também para proteger os homens dos ataques de um criminoso que havendo renunciado à razão ao regulamento comum e à medida que Deus deu ao gênero humano através da violência injusta e da carnificina que cometeu a outro homem declarou guerra a todo o gênero humano e por isso pode ser destruído como um leão ou um tigre uma daquelas bestas selvagens em cuja companhia o homem não pode conviver ou ter segurança A grande lei da natureza está fundamentada nisso Quem derramar o sangue humano pela mão humana perderá o seu E Caim estava tão plenamente convencido de que todo homem tinha o direito de destruir um tal criminoso que após assassinar seu irmão gritou Quem me encontrar me matará tão claramente isso estava inscrito nos corações de toda a humanidade 12 Pela mesma razão no estado de natureza um homem pode punir as violações menos graves desta lei Talvez seja perguntado com a morte Eu responderei toda transgressão pode ser punida a esse ponto e com a mesma severidade tanto quanto for suficiente para infligir um dano proporcional ao ofensor darlhe motivo de arrependimento e infundir nos outros um terror que os impeça de imitálo Toda ofensa suscetível de ser cometida no estado de natureza pode no estado de natureza sofrer uma punição tão grande e no mesmo grau que o é em uma sociedade política Embora esteja além de meu presente propósito entrar aqui em detalhes sobre a lei da natureza ou suas medidas de punição é certo que esta lei existe absolutamente inteligível e clara para uma criatura racional dedicada a seu estudo como o são as leis positivas da comunidade civil ou melhor possivelmente mais claras pois a razão é mais fácil de ser compreendida que os sonhos e as maquinações intrincadas dos homens buscando traduzir em palavras interesses contrários e ocultos pois assim realmente se constitui grande parte das leis civis dos países que só são justas na medida em que se baseiam na lei da natureza pela qual devem ser regulamentadas e interpretadas 13 A esta estranha doutrina ou seja que no estado de natureza cada um tem o poder executivo da lei da natureza espero que seja objetado o fato de que não é razoável que os homens sejam juízes em causa própria pois a autoestima os tornará parciais em relação a si e a seus amigos e por outro lado que a sua má natureza a paixão e a vingança os levem longe demais ao punir os outros e nesse caso só advirá a confusão e a desordem e certamente foi por isso que Deus instituiu o governo para conter a parcialidade e a violência dos homens Eu asseguro tranqüilamente que o governo civil é a solução adequada para as inconveniências do estado de natureza que devem certamente ser grandes quando os homens podem ser juízes em causa própria pois é fácil imaginar que um homem tão injusto a ponto de lesar o irmão dificilmente será justo para condenar a si mesmo pela mesma ofensa Mas eu gostaria que aqueles que fizeram esta objeção lembremse de que os monarcas absolutos são apenas homens e admitindose que o governo é a única solução para estes males que necessariamente advêm dos homens julgarem em causa própria e por isso o estado de natureza não deve ser tolerado eu gostaria de saber que tipo de governo será esse e quanto melhor ele é que o estado de natureza onde um homem que comanda uma multidão tem a liberdade de julgar em causa própria e pode fazer com todos os seus súditos o que lhe aprouver sem o menor questionamento ou controle daqueles que executam a sua vontade e o que quer que ele faça quer seja levado pela razão quer pelo erro ou pela paixão devese obedecêlo É muito melhor o estado de natureza onde os homens não são obrigados a se submeter à vontade injusta de outro homem e onde aquele que julga se julga mal em causa própria ou em qualquer outro caso tem de responder por isso diante do resto da humanidade 14 Muitas vezes se pergunta como uma poderosa objeção Há ou algum dia houve homens em tal estado de natureza A isto pode bastar responder no momento que todos os príncipes e chefes de governos independentes em todo o mundo encontramse no estado de natureza e que assim sobre a terra jamais faltou ou jamais faltará uma multidão de homens nesse estado Citei todos os governantes de comunidades Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 39 independentes estejam ou não vinculadas a outras Pois não é toda convenção que põe fim ao estado de natureza entre os homens mas apenas aquela pela qual todos se obrigam juntos e mutuamente a formar uma comunidade única e constituir um único corpo político quanto às outras promessas e convenções os homens podem fazêlas entre eles sem sair do estado de natureza As promessas e os intercâmbios etc realizados entre dois homens numa ilha ou entre um suíço e um índio nas florestas da América os obriga embora eles estejam entre eles em um perfeito estado de natureza Pois a verdade e o respeito à palavra dada pertencem aos homens enquanto homens e não como membros da sociedade 15 Aos que argumentam que nunca houve homem algum no estado de natureza não me contentarei em contradizer opondo a autoridade do judicioso Hooker Eccl Pol liv 1 sec 10 quando ele diz as leis aqui mencionadas ou seja as leis da natureza obrigam os homens de maneira absoluta porque eles são homens ainda que na ausência de relações estabelecidas ao acordo solene entre eles sobre o que farão ou não farão mas como somos incapazes por nós mesmos de buscar uma quantidade suficiente de objetos necessários ao gênero de vida que nossa natureza deseja uma vida à medida da dignidade do homem e assim suprir os defeitos e as imperfeições que nos são inerentes quando vivemos sozinhos e solitários somos naturalmente induzidos a buscar a comunhão com outros e sua companhia esta foi a causa dos homens terem se unido em sociedades políticas Mas além disso eu afirmo que todos os homens se encontram naturalmente nesse estado e ali permanecem até o dia em que por seu próprio consentimento eles se tornem membros de alguma sociedade política e não duvido que no decorrer deste discurso eu possa esclarecer bem este ponto CAPÍTULO III DO ESTADO DE GUERRA 16 O estado de guerra é um estado de inimizade e de destruição por isso se alguém explicitamente ou por seu modo de agir declara fomentar contra a vida de outro homem projetos não apaixonados e prematuros mas calmos e firmes isto o coloca em um estado de guerra diante daquele a quem ele declarou tal intenção e assim expõe sua vida ao poder do outro que pode ele mesmo retirála ou ao de qualquer outro que se una a ele em sua defesa e abrace sua causa é razoável e justo que eu tenha o direito de destruir aquele que me ameaça com a destruição Segundo a lei fundamental da natureza que o ser humano deve ser preservado na medida do possível se nem todos podem ser preservados devese dar preferência à segurança do inocente você pode destruir o homem que lhe faz guerra ou que se revelou inimigo de sua existência pela mesma razão que se pode matar um lobo ou um leão porque homens deste tipo escapam aos laços da lei comum da razão não seguem outra lei senão aquela da força e da violência e assim podem ser tratados como animais selvagens criaturas perigosas e nocivas que certamente o destruirão sempre que o tiverem em seu poder 17 Por isso aquele que tenta colocar outro homem sob seu poder absoluto entra em um estado de guerra com ele esta atitude pode ser compreendida como a declaração de uma intenção contra sua vida Assim sendo tenho razão em concluir que aquele que me colocasse sob seu poder sem meu consentimento me usaria como lhe aprouvesse quando me visse naquela situação e prosseguiria até me destruir pois ninguém pode desejar terme em seu poder absoluto a não ser para me obrigar à força a algo que vem contra meu direito de liberdade ou seja fazer de mim um escravo Escapar de tal violência é a única garantia de minha preservação e a razão me leva a encarálo como um inimigo à minha preservação que me privaria daquela liberdade que a protege de forma que aquele que tenta me escravizar colocase por conseguinte em um estado de guerra comigo Aquele que no estado de natureza retirasse a liberdade que pertence a qualquer um naquele estado necessariamente se supõe que tem intenção de retirar tudo o mais pois a liberdade é a base de todo o resto assim como aquele que no estado de sociedade retirasse a liberdade pertencente aos membros daquela sociedade ou da comunidade política seria suspeito de tencionar retirar deles tudo o mais e portanto seria tratado como em estado de guerra CLUBE DO LIVRO LIBERAL 18 Isso autoriza todo homem a matar um ladrão que não lhe fez nenhum mal e não declarou outra intenção contra sua vida exceto a de mantêlo sob seu poder pela força para roubarlhe seu dinheiro ou o que quiser dele porque ao usar a força onde não tem este direito para me ter sob seu poder explicando sua atitude segundo sua vontade não tenho razão alguma para pensar que este indivíduo tendome sob seu poder e pronto a me privar de minha liberdade renunciaria a me privar de todo o resto E por isso me é lícito tratálo como alguém que se colocou em um estado de guerra para comigo ou seja matálo se eu puder pois qualquer pessoa que se introduz em um estado de guerra e se torna agressor está justamente se expondo a este risco 19 E temos aqui a clara diferença entre o estado de natureza e o estado de guerra que embora alguns homens confundam são tão distintos um do outro quanto um estado de paz boavontade assistência mútua e preservação de um estado de inimizade maldade violência e destruição mútua Homens vivendo juntos segundo a razão sem um superior comum na terra com autoridade para julgar entre eles eis efetivamente o estado de natureza Mas a força ou uma intenção declarada de força sobre a pessoa de outro onde não há superior comum na terra para chamar por socorro é estado de guerra e é a inexistência de um recurso deste gênero que dá ao homem o direito de guerra ao agressor mesmo que ele viva em sociedade e se trate de um concidadão Assim este ladrão a quem não posso fazer nenhum mal exceto apelar para a lei se ele me roubar tudo o que possuo seja meu cavalo ou meu casaco eu posso matálo para me defender quando ele me ataca à mão armada porque a lei estabelecida para garantir minha preservação contra os atos de violência quando não pode agir de imediato para proteger minha vida cuja perda é irreparável me dá o direito de me defender e assim o direito de guerra ou seja a liberdade de matar o agressor porque este não me deixa tempo para apelar para nosso juiz comum e torna impossível qualquer decisão que permita uma solução legal para remediar um caso em que o mal pode ser irreparável A vontade de se ter um juiz comum com autoridade coloca todos os homens em um estado de natureza o uso da força sem direito sobre a pessoa de um homem provoca um estado de guerra haja ou não um juiz comum 20 Quando a força deixa de existir cessa o estado de guerra entre aqueles que vivem em sociedade e ambos os lados são igualmente submetidos à justa determinação da lei porque agora eles têm acesso a um recurso tanto para reparar o mal sofrido quanto para prevenir todo o mal futuro Mas onde não existe tal recurso como no estado de natureza devido à inexistência de leis positivas e de juízes competentes com autoridade para julgar uma vez iniciado o estado de guerra ele continua e a parte inocente tem o direito de destruir a outra quando puder até que o agressor proponha a paz e deseje a reconciliação em tais termos que possa reparar quaisquer erros que já tenha cometido e assegurar o futuro da vítima E mesmo onde exista um recurso legal e juízes estabelecidos se por uma perversão manifesta da justiça ou clara distorção das leis sua solução é negada com a finalidade de proteger ou de garantir a violência ou o dano de alguns homens ou de um partido é difícil imaginar outra situação além de um estado de guerra Pois onde entra em jogo a violência e danos são causados ainda que por mãos daqueles que deveriam administrar a justiça continua se tratando de violência e danos apesar do nome das aparências ou das formas de lei pois a lei tem por finalidade proteger e reparar os inocentes através de sua aplicação justa a tudo o que está sob sua tutela quando isso não é realizado de boafé é o mesmo que entrar em guerra contra as vítimas às quais não tendo ninguém a quem recorrer na terra só resta apelar ao céu 21 Evitar este estado de guerra que exclui todo apelo exceto ao céu e onde até a menor diferença corre o risco de chegar por não haver autoridade para decidir entre os contendores é uma das razões principais porque os homens abandonaram o estado de natureza e se reuniram em sociedade Pois onde há uma autoridade um poder sobre a terra onde se pode obter reparação através de recurso está excluída a continuidade do estado de guerra e a controvérsia é decidida por aquele poder Se houvesse sobre a terra qualquer tribunal deste tipo qualquer jurisdição superior para determinar o direito entre Jefté e os Amonitas eles jamais chegariam a um estado de guerra mas vemos que ele foi obrigado a apelar ao céu O Senhor é Juiz disse ele julgue hoje entre os filhos de Israel e os filhos de Amon Juízes 1127 e depois prosseguiu e confiando em seu apelo conduziu seu exército para a batalha E por isso em tais controvérsias quando surge a pergunta Quem será o juiz ela não Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 41 pode significar Quem decidirá a controvérsia Todos sabem que Jefté aqui nos diz que o Senhor é Juiz e deverá julgar Quando não há juiz na terra o apelo é dirigido a Deus no céu Essa pergunta não pode então significar Quem será o juiz se alguém se coloca em estado de guerra para comigo Poderia eu como Jetfé apelar ao céu Disso só eu mesmo posso ser o juiz em minha própria consciência até o dia do Juízo Final quando responderei perante o juiz supremo de todos os homens CAPÍTULO IV DA ESCRAVIDÃO 22 A liberdade natural do homem deve estar livre de qualquer poder superior na terra e não depender da vontade ou da autoridade legislativa do homem desconhecendo outra regra além da lei da natureza A liberdade do homem na sociedade não deve estar edificada sob qualquer poder legislativo exceto aquele estabelecido por consentimento na comunidade civil nem sob o domínio de qualquer vontade ou constrangimento por qualquer lei salvo o que o legislativo decretar de acordo com a confiança nele depositada Portanto a liberdade não é o que Sir Robert Filmer nos diz OA 55 Observations on Aristotle uma liberdade para cada um fazer o que quer viver como lhe agradar e não ser contido por nenhuma lei Mas a liberdade dos homens submetidos a um governo consiste em possuir uma regra permanente à qual deve obedecer comum a todos os membros daquela sociedade e instituída pelo poder legislativo nela estabelecido É a liberdade de seguir minha própria vontade em todas as coisas não prescritas por esta regra e não estar sujeito à vontade inconstante incerta desconhecida e arbitrária de outro homem como a liberdade natural consiste na não submissão a qualquer obrigação exceto a da lei da natureza 23 Esta liberdade diante do poder arbitrário absoluto é tão necessária e está tão estreitamente ligada à preservação do homem que não pode ser perdida exceto por aquilo que ao mesmo tempo destrói sua preservação e sua vida Pois o homem incapaz de dispor de sua própria vida não poderia por convenção ou por seu próprio consentimento se transformar em escravo de outro nem reconhecer em quem quer que seja um poder arbitrário absoluto para dispor de sua vida quando lhe aprouver Ninguém pode conceder mais poder do que ele próprio tem e aquele que não pode tirar sua própria vida não pode conceder a outro tal poder Mesmo que ele incorra na pena capital por sua própria falta por qualquer ação que mereça a morte aquele por quem ele perdeu a vida quando o tem em seu poder pode retardar o cumprimento de sua pena e utilizálo a seu próprio serviço e isso não lhe causa qualquer dano Mas quando ele considera que a pena imposta pela escravidão ultrapassa o valor de sua vida tem o direito de resistir à vontade de seu senhor e provocar para si a morte que ele deseja 24 Esta é a perfeita condição da escravidão que nada mais é que o estado de guerra continuado entre um conquistador legítimo e seu prisioneiro Desde que façam um pacto entre eles se concordam que um deles exercerá um poder limitado que o outro obedecerá o estado de guerra e a escravidão deixam de existir enquanto este pacto durar Pois como foi dito ninguém pode concordar em conceder a outro um poder que não tem sobre si mesmo ou seja o poder de dispor de sua própria vida Admito que encontramos entre os judeus assim como em outras nações homens que se venderam mas evidentemente isto só ocorreu em relação ao trabalho servil não à escravidão Porque é certo que a pessoa vendida não estava sob um poder absoluto arbitrário e despótico e o senhor não tinha poder para matálo qualquer que fosse a situação porque em uma data determinada ele era obrigado a deixálo abandonar livremente o seu serviço longe de poder dispor arbitrariamente da vida de um tal servidor o senhor não podia sequer mutilálo propositalmente pois a perda de um olho ou de um dente implicaria no retorno de sua liberdade Êxodo 21 CLUBE DO LIVRO LIBERAL CAPÍTULO V DA PROPRIEDADE 25 Quando consideramos a razão natural segundo a qual os homens desde o momento do seu nascimento têm o direito a sua preservação e conseqüentemente a comer a beber e a todas as outras coisas que a natureza proporciona para sua subsistência ou a Revelação que nos relata que Deus deu o mundo a Adão a Noé e a seus filhos fica muito claro que Deus como diz o Rei Davi Salmo 11516 Deu a terra aos filhos dos homens a toda a humanidade Mas supondose isso alguns parecem ter grande dificuldade em perceber como alguém pôde se tornar proprietário de alguma coisa Não vou me contentar em responder que se é difícil explicar a propriedade partindose de uma suposição de que Deus deu o mundo a Adão e a sua posteridade em comum é impossível que qualquer homem exceto um monarca universal tenha qualquer propriedade partindose de uma suposição de que Deus deu o mundo a Adão e a seus herdeiros na sucessão excluindose todo o resto de sua descendência Irei mais longe para mostrar como os homens podem ter adquirido uma propriedade em porções distintas do que Deus deu à humanidade em comum mesmo sem o acordo expresso de todos os coproprietários 26 Deus que deu o mundo aos homens em comum deulhes também a razão para que se servissem dele para o maior benefício de sua vida e de suas conveniências A terra e tudo o que ela contém foi dada aos homens para o sustento e o conforto de sua existência Todas as frutas que ela naturalmente produz assim como os animais selvagens que alimenta pertencem à humanidade em comum pois são produção espontânea da natureza e ninguém possui originalmente o domínio privado de uma parte qualquer excluindo o resto da humanidade quando estes bens se apresentam em seu estado natural entretanto como foram dispostos para a utilização dos homens é preciso necessariamente que haja um meio qualquer de se apropriar deles antes que se tornem úteis ou de alguma forma proveitosos para algum homem em particular Os frutos ou a caça que alimenta o índio selvagem que não conhece as cercas e é ainda proprietário em comum devem lhe pertencer e lhe pertencer de tal forma ou seja fazer parte dele que ninguém mais possa ter direito sobre eles antes que ele possa usufruílos para o sustento de sua vida 27 Ainda que a terra e todas as criaturas inferiores pertençam em comum a todos os homens cada um guarda a propriedade de sua própria pessoa sobre esta ninguém tem qualquer direito exceto ela Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua Sempre que ele tira um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence por isso o tornando sua propriedade Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o colocou através do seu trabalho adicionalhe algo que excluiu o direito comum dos outros homens Sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador nenhum homem exceto ele pode ter o direito ao que o trabalho lhe acrescentou pelo menos quando o que resta é suficiente aos outros em quantidade e em qualidade 28 Aquele que se alimentou com bolotas que colheu sob um carvalho ou das maçãs que retirou das árvores na floresta certamente se apropriou deles para si Ninguém pode negar que a alimentação é sua Pergunto então Quando começaram a lhe pertencer Quando os digeriu Quando os comeu Quando os cozinhou Quando os levou para casa ou Quando os apanhou E é evidente que se o primeiro ato de apanhar não os tornasse sua propriedade nada mais poderia fazêlo Aquele trabalho estabeleceu uma distinção entre eles e o bem comum ele lhes acrescentou algo além do que a natureza a mãe de tudo havia feito e assim eles se tornaram seu direito privado Será que alguém pode dizer que ele não tem direito àquelas bolotas do carvalho ou àquelas maçãs de que se apropriou porque não tinha o consentimento de toda a humanidade para agir dessa forma Poderia ser chamado de roubo a apropriação de algo que pertencia a todos em comum Se tal consentimento fosse necessário Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 43 o homem teria morrido de fome apesar da abundância que Deus lhe proporcionou Sobre as terras comuns que assim permanecem por convenção vemos que o fato gerador do direito de propriedade sem o qual essas terras não servem para nada é o ato de tomar uma parte qualquer dos bens e retirála do estado em que a natureza a deixou E este ato de tomar esta ou aquela parte não depende do consentimento expresso de todos Assim a grama que meu cavalo pastou a relva que meu criado cortou e o ouro que eu extraí em qualquer lugar onde eu tinha direito a eles em comum com outros tornaramse minha propriedade sem a cessão ou o consentimento de ninguém O trabalho de removêlos daquele estado comum em que estavam fixou meu direito de propriedade sobre eles 29 Se fosse exigido o consentimento expresso de todos para que alguém se apropriasse individualmente de qualquer parte do que é considerado bem comum os filhos ou os criados não poderiam cortar a carne que seu pai ou seu senhor lhes forneceu em comum sem determinar a cada um sua porção particular Ainda que a água que corre na fonte pertença a todo mundo quem duvida que no cântaro ela pertence apenas a quem a tirou Seu trabalho a tirou das mãos da natureza onde ela era um bem comum e pertencia igualmente a todos os seus filhos e a transformou em sua propriedade 30 Assim esta lei da razão dá ao índio o veado que ele matou admitese que a coisa pertence àquele que lhe consagrou seu trabalho mesmo que antes ela fosse direito comum de todos E entre aqueles que contam como a parte civilizada da humanidade que fizeram e multiplicaram leis positivas para a determinação da propriedade a lei original da natureza que autoriza o início da apropriação dos bens antes comuns permanece sempre em vigor graças a ela os peixes que alguém pesca no oceano esta grandeza comum a toda a humanidade ou aquele âmbar cinzento que se recolheu tornamse propriedade daquele que lhes consagraram tantos cuidados através do trabalho que os removeu daquele estado comum em que a natureza os deixou E mesmo entre nós a lebre que alguém está caçando pertence àquele que a persegue durante a caça Pois tratandose de um animal considerado sempre um bem comum não pertencendo individualmente a ninguém quem consagrou tanto trabalho para encontrálo ou perseguilo e assim o removendo do estado de natureza em que ele era um bem comum criou sobre ele um direito de propriedade 31 Talvez surja uma objeção que se a colheita das bolotas ou de outros frutos da terra etc estabelece um direito a eles então qualquer um pode tomar tudo para si se esta for a sua vontade A isto eu respondo que não é bem assim A mesma lei da natureza que nos concede dessa maneira a propriedade também lhe impõe limites Deus nos deu tudo em abundância 1Tm 617 e a inspiração confirma a voz da razão Mas até que ponto ele nos fez a doação Para usufruirmos dela Tudo o que um homem pode utilizar de maneira a retirar uma vantagem qualquer para sua existência sem desperdício eis o que seu trabalho pode fixar como sua propriedade Tudo o que excede a este limite é mais que a sua parte e pertence aos outros Deus não criou nada para que os homens desperdiçassem ou destruíssem Considerandose então a abundância das provisões naturais que há tanto tempo existem no mundo o número restrito dos consumidores e a pequena parte daquela provisão que a indústria de um único homem pode estender e aumentar em detrimento dos outros especialmente conservando dentro dos limites estabelecidos pela razão aquilo que pode servir ao seu uso é preciso admitir que a propriedade adquirida dessa maneira corria pouco risco naquela época de suscitar querelas ou discórdias 32 Mas visto que a principal questão da propriedade atualmente não são os frutos da terra e os animais selvagens que nela subsistem mas a terra em si na medida em que ela inclui e comporta todo o resto pareceme claro que esta propriedade também ela será adquirida como a precedente A superfície da terra que um homem trabalha planta melhora cultiva e da qual pode utilizar os produtos pode ser considerada sua propriedade Por meio do seu trabalho ele a limita e a separa do bem comum Não bastará para provar a nulidade de seu direito dizer que todos os outros podem fazer valer um título igual e que em conseqüência disso ele não pode se apropriar de nada nada cercar sem o consentimento do conjunto de seus coproprietários ou seja de toda a humanidade Quando Deus deu o mundo em comum a toda a humanidade também ordenou que o homem trabalhasse e a penúria de sua condição exigia isso dele Deus e sua razão ordenaramlhe que submetesse a terra isto é que a melhorasse para beneficiar sua vida e assim fazendo ele estava investindo uma coisa que lhe CLUBE DO LIVRO LIBERAL pertencia seu trabalho Aquele que em obediência a este comando divino se tornava senhor de uma parcela de terra a cultivava e a semeava acrescentavalhe algo que era sua propriedade que ninguém podia reivindicar nem tomar dele sem injustiça 33 Nenhum outro homem podia se sentir lesado por esta apropriação de uma parcela de terra com o intuito de melhorála desde que ainda restasse bastante de tão boa qualidade e até mais que indivíduos ainda desprovidos pudessem utilizar Se bem que na realidade a cerca que um homem colocasse em seu benefício não reduziria nunca a parte dos outros Deixar uma quantidade igual que outro homem fosse capaz de utilizar equivaleria a não tomar nada Ninguém pode se sentir lesado por outra pessoa beber ainda que em uma quantidade exagerada se lhe é deixado todo um rio da mesma água para matar sua sede O que vale para a água vale da mesma forma para a terra se há quantidade suficiente de ambas 34 Deus deu o mundo aos homens em comum mas desde que lhos deu para seu benefício e para que dele retirassem as comodidades da vida de que fossem capazes não se poderia supor que Ele pretendesse que ela permanecesse sempre comum e inculta Ele a deu para o uso industrioso e racional e o trabalho deveria ser o título não para satisfazer o capricho ou a ambição daquele que se mete em querelas e disputas Aquele que tinha a sua disposição para fazer frutificar um lote tão bom quanto aqueles que já haviam sido tomados não tinha o direito de se queixar nem devia se imiscuir no trabalho que o outro já havia posto em funcionamento se assim o fizesse é claro que desejava o benefício do sacrifício do outro a que não tinha direito nem à terra que Deus lhe havia dado em comum com os outros para nela trabalhar pois os espaços disponíveis eram iguais à superfície já tomada e às vezes até superavam os meios de utilização do interessado e o campo de sua indústria 35 É verdade que quando se trata de terra comum na Inglaterra ou em qualquer outro país onde o governo estende sua competência a um grande número de pessoas a quem não falta dinheiro nem emprego ninguém pode cercar ou se apropriar de qualquer parcela sem o consentimento de todos os seus coproprietários porque a terra permanece comum por convenção ou seja pela lei da terra que não deve ser violada E embora ela seja comum em relação a alguns homens isso não ocorre em relação à toda a humanidade mas constitui a propriedade conjunta deste país ou desta região Além disso para o restante dos coproprietários o que subsistiria após uma divisão não teria o mesmo valor que tinha área quando todos podiam se servir dela visto que no início era bem diferente quando foi povoada pela primeira vez a vasta terra comum que era o mundo O direito que regia os homens favorecia a apropriação Deus lhes ordenava trabalhar e a necessidade os forçava a isso O trabalho constituía a propriedade não se podia priválos dela uma vez que fixassem este trabalho em algum lugar Assim sendo percebemos que existe um elo entre o fato de subjugar e cultivar a terra e adquirir o domínio sobre ela Um garantia o título do outro Da mesma forma que Deus ao dar a ordem para subjugar as coisas habilitou o homem a se apropriar delas A condição da vida humana que necessita de trabalho e de materiais para serem trabalhados introduz forçosamente as posses privadas 36 A medida da propriedade natural foi bem estabelecida pela extensão do trabalho do homem e pela conveniência da vida Nenhum trabalho humano podia subjugar ou se apropriar de tudo seu prazer só podia consumir uma pequena parte dessa maneira era impossível para qualquer homem usurpar o direito de outro ou adquirir para uso próprio uma propriedade em prejuízo de seus vizinhos que ainda podiam se apropriar de um domínio tão vasto e produtivo depois do outro ter tomado o seu quanto antes de ter sido apropriado Esta medida restringia a posse de todo homem a uma proporção bastante moderada pois no início do mundo ele só podia tomar para si o que não prejudicasse ninguém e nesses primórdios do mundo os homens se arriscavam mais a se perder vagando sozinho pelos imensos espaços virgens da terra do que restritos por vontade própria em uma terra a ser cultivada E ainda podemos nos servir da mesma medida sem causar prejuízo a ninguém por mais povoado que pareça o mundo Suponhamos que um homem ou uma família no estado em que se achavam no início quando os filhos de Adão ou de Noé povoaram o mundo cultivassem terras sem dono situadas no interior da América Veremos que as posses que ele poderia conseguir tendo em base os procedimentos de medida que indicamos não seriam muito extensas nem nos dias de hoje a ponto de prejudicar o resto da humanidade ou darlhe razão de queixa ou se considerar prejudicada pelo abuso deste homem ainda que a raça Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 45 humana tenha se espalhado por todos os cantos do mundo e exceda infinitamente o seu pequeno número inicial Sem o trabalho a superfície do solo tem tão pouco valor que me afirmaram que na Espanha chegase ao ponto de permitir que um homem are a terra semeie e colha sem ser perturbado em uma terra sobre a qual ele não tem qualquer título exceto o uso que faz dela Melhor ainda os habitantes consideramse devedores dele pois com seu trabalho em uma terra negligenciada e conseqüentemente desperdiçada aumentou a reserva de grãos que eles precisavam Mas seja o que for e eu não vou mais insistir nisso ouso corajosamente afirmar que a mesma regra de propriedade ou seja que cada homem deve ter tanto quanto pode utilizar ainda permaneceria válida no mundo sem prejudicar ninguém visto haver terra bastante para o dobro dos habitantes se a invenção do dinheiro e o acordo tácito entre os homens para estabelecer um valor para ele não tivesse introduzido por consentimento posses maiores e um direito a elas como isso se deu irei aos poucos mostrando mais amplamente 37 O certo é que no início do mundo antes do desejo do homem de possuir mais que o necessário ter alterado o valor intrínseco das coisas o que depende apenas de sua utilidade para a vida do homem ou ter concordado que um pedaço pequeno de metal amarelo que podia ser guardado sem que se deteriorasse ou apodrecesse devia valer uma grande peça de carne ou um monte de trigo mesmo que cada homem tivesse o direito de se apropriar por seu trabalho de todos os bens naturais de que pudesse se servir não havia o risco de ir longe demais nem causar dano aos outros pois a mesma abundância permanecia à disposição de qualquer um que utilizasse a mesma indústria A isto eu acrescentaria que aquele que se apropria da terra por meio de seu trabalho não diminui mas aumenta a reserva comum da humanidade Pois as provisões que servem para o sustento da vida humana produzidas por um acre de terra cercado e cultivado são dez vezes maiores que aquelas produzidas por um acre de terra de igual riqueza mas inculta e comum Por isso podese dizer que aquele que cerca a terra e retira de dez acres uma abundância muito maior de produtos para o conforto de sua vida do que retiraria de cem acres incultos dá na verdade noventa acres à humanidade Pois graças ao seu trabalho dez acres lhe dão tantos frutos quanto cem acres de terras comuns Eu aqui estimo o rendimento da terra cultivada a uma cifra muito baixa avaliando seu produto em dez para um quando está muito mais próximo de cem para um Porque eu gostaria que me respondessem se nas florestas selvagens e nas terras incultas da América abandonadas à natureza sem qualquer aproveitamento agricultura ou criação mil acres de terra forneceriam a seus habitantes miseráveis uma colheita tão abundante de produtos necessários à vida quanto dez acres de terra igualmente fértil o fazem em Devonshire onde são bem cultivadas Antes da apropriação da terra aquele que colhia todos os frutos silvestres que matava caçava ou domesticava todos os animais selvagens que podia aquele que aplicava sua atividade aos produtos espontâneos da natureza e modificava de uma maneira qualquer o estado em que ela os havia criado colocando neles o seu trabalho adquiria assim a propriedade sobre eles Mas se esses bens viessem a perecer em sua propriedade sem o devido uso se os frutos apodrecessem ou a caça ficasse putrefata antes de poder ser consumida ele infringia a lei comum da natureza e era passível de punição ele estaria invadindo a terra de seu vizinho pois seu direito cessava com a necessidade de utilizar estes bens e a possibilidade de deles retirar os bens para sua vida 38 As mesmas delimitações quantitativas regiam também a posse da terra Tudo o que o homem plantava colhia armazenava e consumia antes de se deteriorar pertencialhe por direito todo o gado e os produtos que podia cercar alimentar e utilizar também eram seus Mas se a grama apodrecesse no solo de seu cercado ou os frutos de sua plantação perecessem antes de serem colhidos e consumidos esta parte da terra não importa se estivesse ou não cercada podia ser considerada como inculta e podia se tornar posse de qualquer outro Assim no início Caim podia tomar e se apropriar de tanta terra quanto ele pudesse cultivar e ainda deixava o bastante para Abel alimentar seus carneiros poucos acres eram suficientes para as posses de ambos Mas à medida que as famílias aumentavam e a indústria ampliava suas reservas suas posses se ampliaram segundo suas necessidades mas isto não vinha acompanhado em geral da propriedade permanente das terras de que se serviam os interessados até que um dia eles se uniram estabeleceramse em conjunto e construíram cidades então por consentimento pouco a pouco começaram a fixar as fronteiras de seus diferentes territórios entraram em acordo sobre os limites entre eles e seus vizinhos e através de leis internas estabeleceram as propriedades dos membros daquela sociedade Vemos então que naquela parte do mundo que foi primeiro habitada e por isso provavelmente a melhor povoada mesmo em uma época tão distante quanto aquela de CLUBE DO LIVRO LIBERAL Abraão os homens perambulavam livremente de um lado a outro com seu gado e seus rebanhos que eram a fonte de seu sustento e isso Abraão fazia em um país onde era um estrangeiro evidência de que grande parte da terra era comum Os habitantes não lhe atribuíam um valor nem reclamavam a propriedade de uma quantidade de terra maior que aquela por eles utilizada Mas quando não houve mais espaço suficiente no mesmo lugar para que seus rebanhos se alimentassem juntos eles por consentimento como o fizeram Abraão e Lot Gn 135 separaram e ampliaram suas pastagens nas regiões que mais lhes apraziam E pela mesma razão Esaú separouse de seu pai e de seu irmão e se fixou no Monte Seir Gn 366 39 E assim sem supor qualquer dominação e propriedade privada de Adão sobre todo o mundo exclusiva de todos os outros homens pois isso não pode ser de forma alguma provado nem qualquer propriedade de outra pessoa foi dessa maneira estabelecida mas supondose que o mundo tenha sido dado aos filhos dos homens em comum percebemos como o trabalho poderia proporcionar aos homens direitos distintos a várias parcelas dele para seu uso particular quando não houvesse dúvida quanto ao seu direito nem espaço para disputas 40 Também não é tão estranho como talvez pudesse parecer antes da consideração que a propriedade do trabalho fosse capaz de desenvolver uma importância maior que a comunidade da terra Pois na verdade é o trabalho que estabelece em tudo a diferença de valor basta considerar a diferença entre um acre de terra plantada com fumo ou cana semeada com trigo ou cevada e um acre da mesma terra deixado ao bem comum sem qualquer cultivo e perceberemos que a melhora realizada pelo trabalho é responsável por grandíssima parte do seu valor Creio estar propondo uma avaliação moderada se disser que dentre os produtos da terra úteis à vida do homem nove décimos provêm do trabalho da mesma forma se quisermos avaliar corretamente os bens segundo o uso que deles fazemos e dividir as várias despesas decorrentes deste uso o que se deve apenas à natureza e o que se deve ao trabalho veremos que na maior parte delas noventa e nove por cento correm exclusivamente por conta do trabalho 41 Não há demonstração mais clara deste fato que as várias nações americanas que são ricas em terra e pobres em todos os confortos da vida a natureza lhes proviu tão generosamente quanto a qualquer outro povo com os elementos básicos da abundância ou seja um solo fértil capaz de produzir abundantemente o que pode servir de alimento vestuário e prazer mas na falta de trabalho para melhorar a terra não tem um centésimo das vantagens de que desfrutamos E um rei de um território tão vasto e produtivo se alimenta se aloja e se veste pior que um diarista na Inglaterra 42 Para tornar isso um pouco mais claro basta traçar os caminhos sucessivos de alguns produtos que servem em geral à vida antes de chegarem a ser utilizados por nós e ver quanto de seu valor eles recebem da indústria humana O pão o vinho e os tecidos são coisas de uso diário e encontradas em abundância entretanto as bolotas a água as folhas ou as peles poderiam nos servir de alimento bebida e roupas se o trabalho não nos fornecesse aqueles produtos mais úteis O que faz o pão valer mais que as bolotas o vinho mais que a água e os tecidos ou a seda mais que as folhas as peles ou o musgo devese inteiramente ao trabalho e à indústria De um lado temos aqui os alimentos e as roupas que a natureza por si só nos fornece de outro os bens que nossa indústria e nosso esforço nos prepara quem quiser estimar o quanto eles excedem o outro em valor quando qualquer um deles for avaliado verá que o trabalho é responsável pela maior parte do valor das coisas de que desfrutamos neste mundo E o solo que produz as matériasprimas raramente entra na avaliação ou entra com uma parte muito pequena tão pequena que mesmo entre nós a terra abandonada que não recebe os melhoramentos do pasto da agricultura ou do plantio é chamada de baldia o que na verdade ela é e veremos que o proveito que tiramos dela é pouco mais que nada Isto demonstra a que ponto se prefere uma quantidade de homens a extensões de domínios e que a grande arte do governo consiste em melhorar as terras e utilizálas corretamente Assim o príncipe sábio o semideus que estabelecerá leis de liberdade para proteger e encorajar a indústria honesta da humanidade diante Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 47 da opressão do poder e da estreiteza partidária rapidamente se tornará forte demais para seus vizinhos mas sobre isso falaremos depois Voltemos ao nosso propósito 43 Um acre de terra que produz aqui vinte alqueires de trigo e outro na América que com a mesma plantação daria o mesmo possuem sem dúvida o mesmo valor intrínseco Entretanto em um ano a humanidade tira talvez de um deles cinco libras de lucro e do outro menos de um centavo se todo o produto que um índio retirou dele fosse avaliado e vendido aqui posso realmente dizer que não chegaria a um milésimo Assim sendo é o trabalho que dá à terra a maior parte de seu valor sem o qual ela não valeria quase nada é a ele que devemos a maior parte de todos os seus produtos úteis pois toda aquela palha o farelo e o pão daquele acre de trigo vale mais que o produto de um acre de uma terra boa que permanece inculta e é tudo efeito do trabalho Não são somente o esforço do trabalhador a labuta do ceifador e do debulhador o suor do padeiro que devem ser levados em conta no pão que comemos o trabalho daqueles que domesticaram os bois que forjaram o ferro e lavraram as pedras que abateram as árvores e serraram a madeira empregada no arado no moinho no forno e em quaisquer outros utensílios que são em grande número requisitados para este grão desde a semente a ser semeada até sua transformação em pão devem ser considerados na avaliação do trabalho e tomados como um efeito dele A natureza e a terra forneceram apenas a matériaprima intrinsecamente menos valiosa Se fosse possível identificálos poderia ser feito um estranho catálogo com os objetos produzidos pela indústria e utilizados para se fazer cada fatia de pão antes de ela chegar ao nosso consumo ferro madeira couro casca de árvore vigas pedra tijolos carvão cal tecidos tintas piche alcatrão mastros cordas e todos os materiais utilizados no navio que trouxe qualquer um dos produtos usados por qualquer dos operários para uma fase qualquer do trabalho o que seria impossível pelo menos longo demais relacionar 44 Tudo isso evidencia que embora as coisas da natureza sejam dadas em comum o homem sendo senhor de si mesmo e proprietário de sua própria pessoa e das ações de seu trabalho tem ainda em si a justificação principal da propriedade e aquilo que compôs a maior parte do que ele aplicou para o sustento ou o conforto de sua existência à medida que as invenções e as artes aperfeiçoaram as condições de vida era absolutamente sua propriedade não pertencendo em comum aos outros 45 Assim no começo por pouco que se servisse dele o trabalho conferia um direito de propriedade sobre os bens comuns que permaneceram por muito tempo os mais numerosos e até hoje é mais do que a humanidade utiliza No início a maior parte dos homens contentavase com o que a natureza oferecia para as suas necessidades e embora depois em algumas partes do mundo onde o aumento do número de pessoas e das reservas com o uso do dinheiro tornaram a terra escassa e por isso de algum valor as várias comunidades tenham estabelecido os limites de seus distintos territórios e por leis internas tenham regulamentado as propriedades particulares de sua sociedade e desta forma por convenção e acordo determinado a propriedade iniciada pelo trabalho e pela indústriae os tratados que foram feitos entre vários estados e reinados seja expressa ou tacitamente renunciando a toda reivindicação e direito sobre a terra em posse do outro puseram de lado por consentimento comum todas as suas pretensões a seu direito comum natural que originalmente tinham em relação àqueles países e assim por um acordo positivo estabeleceram um direito de propriedade entre eles em partes e parcelas distintas da terra embora ainda existam vastas extensões de terra cujos habitantes não se juntaram ao resto da humanidade para concordar com o uso da moeda comum elas permanecem baldias e são mais do que as pessoas que ali habitam utilizam ou podem utilizar e assim ainda continuam sendo terra comum mas isso ocorre raramente naquela parte da humanidade que consentiu no uso do dinheiro 46 A maior parte das coisas realmente úteis à vida do homem aquelas que a necessidade de sobreviver incitou os primeiros camponeses do mundo a explorar como fazem agora os americanos são em geral coisas de duração efêmera que se não forem consumidas pelo uso deterioram e perecem por si mesmas o ouro a prata e os diamantes são coisas às quais o capricho ou a convenção atribuem um valor maior que a sua utilidade real e sua necessidade para o sustento da vida Agora de todas as coisas boas que a natureza proveu em comum cada CLUBE DO LIVRO LIBERAL um tem o direito como foi dito de tomar tanto quanto possa utilizar cada um se tornaria proprietário de tudo o que seu trabalho viesse a produzir tudo pertenceria a ele desde que sua indústria pudesse atingilo e transformá lo a partir de seu estado natural Aquele que colhesse cem alqueires de bolotas ou de maçãs adquiriria assim uma propriedade sobre eles a mercadoria era sua desde o momento em que a havia colhido Ele só tinha de se preocupar em consumila antes que estragasse senão isto significaria que ele havia colhido mais que a sua parte e portanto roubado dos outros e na verdade era uma coisa tola além de desonesta acumular mais do que ele poderia utilizar Se ele distribuísse a outras pessoas uma parte desses frutos para que não perecessem inutilmente em suas mãos esta parte ele também estaria utilizando e se ele também trocasse ameixas que iriam perecer em uma semana por nozes que durariam um ano para serem comidas não estaria lesando ninguém ele não estaria desperdiçando a reserva comum nem destruindo parte dos bens que pertenciam aos outros enquanto nada se estragasse inutilmente em suas mãos Se ele trocasse suas nozes por um pedaço de metal cuja cor lhe agradara ou trocasse seus carneiros por conchas ou a lã por uma pedra brilhante ou por um diamante e os guardasse com ele durante toda a sua vida não estaria violando os direitos dos outros podia guardar com ele a quantidade que quisesse desses bens duráveis pois o excesso dos limites de sua justa propriedade não estava na dimensão de suas posses mas na destruição inútil de qualquer coisa entre elas 47 Assim foi estabelecido o uso do dinheiro alguma coisa duradoura que o homem podia guardar sem que se deteriorasse e que por consentimento mútuo os homens utilizariam na troca por coisas necessárias à vida realmente úteis mas perecíveis 48 Como os diferentes graus de indústria dos homens podiam fazêlos adquirir posses em proporções diferentes esta invenção do dinheiro deulhes a oportunidade de continuar a aumentálas Imaginemos uma ilha isolada de todo o comércio possível com o resto do mundo onde só houvesse cem famílias mas houvesse carneiros cavalos e vacas além de outros animais úteis frutos comestíveis e terra suficiente para dar milho para cem mil vezes mais mas nada na ilha que não fosse tão comum ou tão perecível que pudesse tomar o lugar do dinheiro que razão alguém poderia ter para aumentar suas posses além das necessidades de sua família e para um suprimento abundante para seu consumo seja no que sua própria indústria produzisse ou que eles pudessem trocar por outros produtos igualmente perecíveis e úteis No lugar onde não existe nada durável e raro que tenha bastante valor para ser guardado nada incita os homens a estender suas posses sobre terras mais vastas mesmo que estas sejam férteis e estejam disponíveis para ele Eu pergunto quem atribuiria um valor a dez mil ou a cem mil acres de uma terra excelente fácil de cultivar e além disso bem provida de gado mas situada no coração da América se lá não existe nenhuma possibilidade de comerciar com outras partes do mundo e extrair dinheiro da venda dos produtos Não teria valido a pena cercar essa terra e nós veríamos retornar ao estado natural selvagem e comum tudo aquilo que fosse mais do que o estritamente necessário para fornecer para ele e sua família os bens vitais 49 Assim no início toda a terra era uma América e mais ainda que hoje pois em parte alguma se conhecia o dinheiro Encontre qualquer coisa que tenha o uso e o valor de dinheiro entre seus vizinhos e você verá que o mesmo homem começará a aumentar suas posses 50 Mas uma vez que o ouro e a prata sendo de pouca utilidade para a vida do homem em relação ao alimento ao vestuário e aos meios de transporte retira seu valor apenas da concordância dos homens de que o trabalho ainda proporciona em grande parte a medida é evidente que o consentimento dos homens concordou com uma posse desproporcional e desigual da terra através de um consentimento tácito e voluntário eles descobriram e concordaram em uma maneira pela qual um homem pode honestamente possuir mais terra do que ele próprio pode utilizar seu produto recebendo ouro e prata em troca do excesso que podem ser guardados sem causar dano a ninguém estes metais não se deterioram nem perecem nas mãos de seu proprietário Esta divisão das coisas em uma igualdade de posses particulares os homens tornaram praticável fora dos limites da sociedade e sem acordo apenas atribuindo um valor ao ouro e à prata e tacitamente concordando com o uso do dinheiro Pois nos governos as leis regulam o direito de propriedade e a posse da terra é determinada por constituições positivas Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 49 51 Assim eu acho que é muito fácil conceber sem qual quer dificuldade como o trabalho pôde constituir no início a origem de um título de propriedade sobre os bens comuns da natureza e como o uso que se fazia dele lhe servia de limite Então não podia existir qualquer motivo para se disputar um título nem qualquer dúvida a respeito da dimensão da posse que ele autorizava O direito e a conveniência andavam juntos Como cada homem tinha o direito a tudo em que podia aplicar o seu trabalho não tinha a tentação de trabalhar mais do que para o que pudesse usar Isso não deixava espaço para controvérsia quanto ao título nem para usurpação do direito dos outros A parte que cada um talhava para si era facilmente reconhecível era tão inútil quanto desonesto talhar uma parte grande demais ou tomar mais que o necessário CAPÍTULO VI DO PODER PATERNO 52 Talvez possa ser censurado criticado como fora de propósito em um discurso desta natureza o fato de eu divulgar palavras e denominações que circulam no mundo e talvez não seja impróprio oferecer novas acepções quando as velhas podem induzir os homens a erros como é provável ter ocorrido com este do pátrio poder que parece situar o poder dos pais sobre seus filhos inteiramente sobre o pai como se a mãe não o compartilhasse Ora se consultarmos a razão ou a revelação veremos que ela tem um igual direito Isto justificaria perguntar se não seria mais exato chamálo de poder dos pais Pois sejam quais forem os deveres que a natureza e o direito de geração impõem às crianças certamente as obriga da mesma forma sobre as suas duas causas concorrentes Então vemos que a lei positiva de Deus sempre os reúne sem distinção quando ordena a obediência aos filhos Honra teu pai e tua mãe Ex 2012 Quem almaldiçoar o pai ou a mãe Lv 209 Respeite cada um de vós o pai e a mãe Lv 193 Filhos obedecei vossos pais Ef 61 é como se exprimem o Antigo e o Novo Testamento 53 Se este simples fato tivesse sido devidamente considerado mesmo sem que se aprofundasse muito na questão isso talvez pudesse ter evitado que os homens incorressem em erros tão crassos quando delegaram este poder dos pais que embora pudesse sem forçar seu sentido tomar o nome de dominação absoluta e autoridade real quando sob o título de poder paterno parecia reservado ao pai no entanto soou um pouco estranho e seu próprio nome trai o absurdo se este poder supostamente absoluto sobre as crianças fosse chamado poder dos pais e além disso descobriuse que ele pertence também à mãe Pois convirá muito pouco aos propósitos daqueles homens que defendem o absoluto poder e autoridade da paternidade como o chamam que a mãe tenha qualquer participação nele E seria de muito pouca serventia à monarquia que tanto defendem se pelo próprio nome parecesse que aquela autoridade fundamental de cuja origem eles derivariam seu governo de apenas uma pessoa não estivesse colocada em uma mas em duas pessoas ao mesmo tempo Mas deixemos de lado esta questão de nomes 54 Embora eu tenha dito anteriormente Capítulo II que por natureza todos os homens são iguais não se pode supor que eu me referisse a todos os tipos de igualdade A idade ou a virtude podem dar aos homens uma precedência justa A excelência dos talentos e dos méritos pode colocar alguns acima do nível comum O nascimento pode sujeitar alguns e a aliança ou os benefícios podem sujeitar outros reconhecendose aqueles a quem a natureza a gratidão ou outros aspectos possam obrigar E no entanto tudo isso coincide com a igualdade de todos os homens com respeito à jurisdição ou ao domínio de um sobre o outro ou seja a igualdade que apresentei como característica disso que se está tratando e que consiste para cada homem em ser igualmente o senhor de sua liberdade natural sem depender da vontade nem da autoridade de outro homem CLUBE DO LIVRO LIBERAL 55 Admito que as crianças não nascem neste estado de plena igualdade embora tenham nascido para isso Seus pais têm uma espécie de governo e jurisdição sobre eles quando eles vêm ao mundo e durante algum tempo depois mas é apenas temporário Os laços desta sujeição são como as fraldas que eles vestem e protegem a fragilidade de sua infância A idade e a razão à medida que elas crescem pouco a pouco as liberta delas até o dia em que caem completamente e deixam o homem absolutamente livre 56 Adão foi criado como um homem perfeito seu corpo e sua mente em completa posse de sua força e de sua razão e assim foi capaz desde o primeiro instante de promover seu próprio sustento e preservação e governar suas ações de acordo com os ditames da lei da razão nele implantada por Deus A partir dele o mundo foi povoado com seus descendentes que nasceram todos bebês frágeis e desamparados sem conhecimento ou compreensão Mas para suprir os defeitos deste estado imperfeito até o momento em que o progresso do crescimento e a idade o tivessem removido Adão e Eva e depois deles todos os pais estavam sujeitos pela lei da natureza a uma obrigação de preservar alimentar e educar as crianças que tivessem gerado não como criaturas produzidas por eles mas pela obra de seu próprio Criador o TodoPoderoso a quem deviam delas prestar contas 57 Uma mesma lei devia reger Adão e toda a sua posteridade a lei da razão Mas como sua descendência veio ao mundo de uma maneira diferente da dele por um nascimento natural que a produzia ignorante e desprovida do uso da razão ela não se encontrou imediatamente sob essa lei Pois ninguém pode estar sujeito a uma lei que não é promulgada para ele e como apenas a razão promulga e faz conhecer a lei não se pode admitir que ela se aplique a quem não chegou à idade da razão Os filhos de Adão que não eram regidos por esta lei da razão desde o seu nascimento não eram de início livres A lei em sua verdadeira noção não é tanto a limitação mas a direção de um agente livre e inteligente em seu próprio interesse e só prescreve visando o bem comum daqueles que lhe são submetidos Se eles pudessem ser mais felizes sem ela a lei desapareceria como um objeto inútil não é confinando alguém que lhe tornamos inacessíveis os lodaçais e os precipícios De forma que mesmo que possa ser errada a finalidade da lei não é abolir ou conter mas preservar e ampliar a liberdade Em todas as situações de seres criados aptos à lei onde não há lei não há liberdade A liberdade consiste em não se estar sujeito à restrição e à violência por parte de outras pessoas o que não pode ocorrer onde não há lei e não é como nos foi dito uma liberdade para todo homem agir como lhe apraz Quem poderia ser livre se outras pessoas pudessem lhe impor seus caprichos Ela se define como a liberdade para cada um de dispor e ordenar sobre sua própria pessoa ações possessões e tudo aquilo que lhe pertence dentro da permissão das leis às quais está submetida e por isso não estar sujeito à vontade arbitrária de outra pessoa mas seguir livremente a sua própria vontade 58 Portanto o poder que os pais exercem sobre seus filhos procede daquele dever que lhes é imposto de cuidar de sua descendência durante a condição imperfeita da infância Deve formar sua mente e governar as ações de sua ainda ignorante imaturidade até que a razão assuma seu lugar e os liberte dessa preocupação É isso que as crianças desejam e é essa a obrigação dos pais Deus que dotou o homem do entendimento para dirigir suas ações deulhe também como um atributo a ele vinculado uma liberdade de vontade e uma liberdade de agir dentro dos limites fixados pela lei que o rege Mas enquanto ele estiver em um estado em que não tem entendimento de sua própria pessoa para dirigir sua vontade não tem qualquer vontade própria para seguir Aquele que compreende por ele deve também desejar por ele comandar sua vontade e dirigir suas ações mas quando chega ao estado que tornou seu pai um homem livre o filho também se torna um homem livre 59 Isto está presente em todas as leis a que o homem está sujeito sejam naturais ou civis O homem está sujeito à lei da natureza O que o torna livre dessa lei O que lhe dá a livre disposição de sua propriedade segundo seu próprio desejo dentro do âmbito daquela lei Eu respondo Um estado de maturidade em que se supõe que ele seja capaz de conhecer aquela lei e assim manter suas ações dentro de seus limites Quando adquiriu esse estado supõese que ele tem conhecimento de até que ponto aquela lei será seu guia e até onde ele pode fazer uso de sua liberdade e assim a atinge até então deve ser guiado por outra pessoa que se presume conhecer até que ponto a Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 51 lei permite uma liberdade Se um tal estado racional e uma tal idade de discernimento o tornam livre o mesmo deve tornar livre também seu filho Um homem está sujeito à lei da Inglaterra O que o torna isento dessa lei Ou seja ter a liberdade de dispor de suas ações e posses segundo sua própria vontade dentro da permissão dessa lei A capacidade para conhecer essa lei o que se supõe que ocorre aos vinte e um anos de idade e em alguns casos antes Se isto tornou o pai livre tornará o filho também livre Até agora vimos que a lei não permite que o filho tenha vontade mas deve ser orientado pela vontade de seu pai ou guardião que deve entender por ele E se o pai morre sem apontar um substituto de sua confiança se não designou um tutor para orientar seu filho durante sua minoridade enquanto ele carece de entendimento a lei se encarrega disso Outra pessoa deve orientálo e ter vontade por ele até que ele atinja um estado de liberdade e sua inteligência tenha captado a arte de reger a sua vontade Mas depois disso pai e filho são igualmente livres tanto quanto tutor e pupilo após a minoridade igualmente sujeitos à mesma lei sem que o pai tenha qualquer domínio sobre a vida a liberdade ou os bens de seu filho e não faz nenhuma diferença se eles vivem simplesmente no estado de natureza e submissos ao direito natural ou sob as leis positivas de um governo estabelecido 60 Mas se por defeitos que podem surgir no curso normal da natureza uma pessoa não atinge tal grau de razão em que se poderia supor que ela fosse capaz de conhecer a lei e viver dentro de suas regras ela jamais será capaz de ser um homem livre jamais poderá dispor de sua própria vontade porque desconhece os limites dela e não tem o entendimento que deve guiála e deverá ser mantida sob a tutela e a orientação de outros durante todo o tempo que seu próprio entendimento for incapaz desse encargo Por isso os loucos e os idiotas jamais se libertam da tutela de seus pais as crianças que ainda não atingiram a idade de possuíla e os deficientes que são excluídos por um defeito natural que os impede para sempre de possuíla em terceiro lugar os loucos que de imediato são incapazes de se guiar segundo a razão normal têm por seu guia a reta razão que orienta outros homens que exercem sobre eles uma tutela e que vão buscar e descobrir o bem para eles diz Hooker Eccl Pol liv i sec 7 Tudo isso parece se reduzir à obrigação que Deus e a natureza impuseram aos homens e também às outras criaturas para proteger sua descendência até que ela seja capaz de arranjarse por si mesma e quase nunca importará em um exemplo ou prova da autoridade real dos pais 61 Assim nascemos livres como nascemos dotados de razão mas isso não significa que possamos dispor do exercício de nenhuma dessas duas faculdades a idade que traz a primeira traz consigo também a segunda Vemos então como a liberdade natural e a sujeição aos pais podem caminhar juntas e são ambas baseadas no mesmo princípio Uma criança é livre em virtude do direito de seu pai pelo entendimento de seu pai que deverá orientála até que ela adquira o seu A liberdade que um homem atinge na idade do discernimento assim como a sujeição de uma criança a seus pais enquanto não atinge aquela idade são tão consistentes e tão discerníveis que a maior parte dos defensores mais cegos da monarquia pelo direito de paternidade não poderia ignorar essa distinção nem os mais obstinados negar esta compatibilidade Se sua doutrina fosse absolutamente verdadeira se mesmo hoje se conhecesse o herdeiro legítimo de Adão e se ele reinasse sobre seu trono investido de todo o poder ilimitado de que fala Sir Robert Filmer se ele morresse logo após o nascimento de seu herdeiro será que a criança não deveria por mais livre e por mais soberana que pudesse ser ficar submetido a sua mãe e a sua ama a tutores e orientadores até que a idade e a educação lhe trouxesse a razão e a capacidade de governar a si própria e aos outros As necessidades de sua vida a saúde de seu corpo e a informação de sua mente exigiriam que ela fosse dirigida pela vontade de outros e não pela sua própria e embora se possa pensar que essa contenção e sujeição sejam prejudiciais ou inconsistentes com aquela liberdade ou soberania a que ela tem direito não deixariam seu império nas mãos daqueles que têm a tutela de sua minoridade Esta tutela sobre ela só a prepararia melhor e mais cedo para o cargo Se alguém me perguntasse quando meu filho terá idade para ser livre eu responderei na mesma idade em que seu monarca tiver idade para governar Como diz o judicioso Hooker Eccl Pol liv 1 sec 6 É muito mais fácil discernir em que momento se pode dizer que um homem progrediu suficientemente no uso da razão para ser capaz de se comportar segundo as leis que devem guiar suas ações do que para qualquer um determinálo pela habilidade ou pelos conhecimentos 62 As próprias sociedades políticas se apercebem e reconhecem que há um momento em que os homens estão prontos para começar a agir como homens livres e por isso até chegar este momento elas não exigem CLUBE DO LIVRO LIBERAL nenhum juramento de fidelidade ou de obediência ou nenhum outro ato público de homenagem ou de submissão ao governo de seu país 63 Assim a liberdade de um homem e sua faculdade de agir segundo sua própria vontade estão fundamentadas no fato dele possuir uma razão capaz de instruílo naquela lei pela qual ele vai ser regido e fazer com que saiba a que distância ele está da liberdade de sua própria vontade Deixálo entregue a uma liberdade desenfreada antes que tenha a razão para guiálo não é concederlhe o privilégio de ter sua natureza livre mas lançálo no meio de selvagens e abandonálo em um estado miserável e inferior ao dos homens como sendo o seu É isso que coloca nas mãos dos pais a autoridade de governar a minoridade de seus filhos Deus lhes confiou a tarefa de cuidar dessa maneira de sua descendência e depositou neles pendores de ternura e de solicitude apropriados para equilibrar este poder e para aplicálo na medida em que sua sabedoria o designar pelo bem das crianças enquanto elas dele necessitarem 64 Mas que razão pode provocar a transformação deste cuidado que os pais devem a sua descendência em uma dominação arbitrária absoluta por parte do pai O poder do pai não deve ultrapassar aquela disciplina que ele considera mais eficaz para proporcionar força e saúde ao corpo dos filhos vigor e retidão às suas mentes o que melhor prepara seus filhos para serem mais úteis a si mesmos e aos outros e se a condição assim o exigir fazer com que trabalhem quando forem capazes para prover seu próprio sustento Mas neste poder também a mãe juntamente com o pai tem sua parte 65 O pai não detém este poder em virtude de um direito natural particular mas somente por ser guardião de seus filhos e quando ele abandona este cuidado perde seu poder sobre eles o que segue paralelo a sua alimentação e educação às quais está inseparavelmente ligado e pertence tanto ao pai adotivo de uma criança abandonada quanto ao pai natural de outra A isso se reduz o poder que o simples fato da procriação proporciona ao homem sobre sua descendência quando o cuidado termina também se extingue o poder e este é todo o direito que ele tem ao nome e à autoridade de pai E o que acontece com este poder paterno naquela parte do mundo em que a mulher tem mais de um marido ao mesmo tempo Ou naquelas partes da América onde quando o marido e a mulher se separam o que acontece freqüentemente as crianças são entregues à mãe a seguem e estão completamente sob seus cuidados e sob seu encargo Se o pai morre enquanto os filhos são pequenos em toda parte eles não devem naturalmente à mãe durante sua minoridade a mesma obediência que deviam a seu pai quando ele estava vivo Quem pretenderá que a mãe tenha um poder legislativo sobre seus filhos Que ela possa estabelecer regras que os obriga perpetuamente pelas quais eles devem orientar todos os interesses de sua propriedade e limitar sua liberdade durante todo o curso de suas vidas Ou que ela possa fazer cumprir a observação dessas regras com penas capitais Este é o poder próprio do magistrado de que o pai não tem nem mesmo a sombra A autoridade que exerce sobre seus filhos é apenas temporária e não atinge sua vida ou sua propriedade é apenas uma ajuda à fragilidade e à imperfeição de sua minoridade uma disciplina necessária a sua educação e embora um pai possa dispor de suas próprias possessões como lhe apraz quando seus filhos estão em risco de morrer pela miséria seu poder não se estende às vidas ou aos bens que sua própria indústria ou a generosidade de outra pessoa tornou seus nem também a sua liberdade uma vez que chegaram à libertação da idade do discernimento Então o império do pai cessa e daí em diante ele não pode dispor da liberdade do seu filho mais do que pode dispor daquela de qualquer outro homem e ficase bem distante de uma jurisdição absoluta ou perpétua pois um homem pode se subtrair a ela com licença da autoridade divina deixando o pai e a mãe para se ligar a sua mulher 66 Mas embora haja um momento em que a criança se torna tão livre da sujeição à vontade e à autoridade de seu pai quanto seu próprio pai é livre da sujeição à vontade de qualquer outra pessoa e ambos não estão sob outra restrição exceto aquela comum aos dois seja ela a lei da natureza ou a lei civil de seu país esta liberdade não isenta um filho da honra que ele pela lei de Deus e da natureza deve prestar a seus pais Quando Deus tornou os pais instrumentos em seu grande desígnio de continuidade do gênero humano e ensejo da vida de seus filhos assim como impôs sobre eles a obrigação de alimentar preservar e criar sua descendência também colocou sobre as crianças uma obrigação perpétua de honrar seus pais que contendo em si uma estima e Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 53 reverência íntimas que devem ser demonstradas através de todas as expressões exteriores que afasta o filho de qualquer coisa que possa prejudicar ou afrontar perturbar ou implicar em risco à felicidade ou à vida daqueles de quem ele recebeu a sua e os engaja em todas as ações de defesa alívio assistência e conforto daqueles através dos quais ele veio à vida e tornouse capaz de desfrutála Nenhum estado e nenhuma liberdade pode isentar os filhos desta obrigação Mas isto está muito longe de conceder aos pais um poder de comando sobre seus filhos ou uma autoridade para fazer leis e dispor como lhes aprouver de suas vidas ou liberdades Uma coisa é dever honra respeito gratidão e assistência outra é exigir uma obediência e uma submissão absolutas A honra devida aos pais um monarca em seu trono deve a sua mãe e isto não diminui sua autoridade nem o sujeita ao seu domínio 67 A sujeição de um menor investe o pai de uma autoridade temporária que termina com a minoridade da criança e a honra que a criança deve aos pais lhes proporciona um direito perpétuo a um respeito reverência apoio e obediência maiores ou menores segundo o pai colocou mais ou menos cuidado gastos e bondade em sua educação Isto não termina com a minoridade mas permanece em todas as obrigações e condições da vida de um homem O fato de não distinguir estes dois poderes que o pai possui o direito de instrução durante a minoridade e o direito à honra durante toda a sua vida talvez seja responsável por grande parte dos erros nesta questão Falando estritamente o primeiro deles é um privilégio para os filhos e dever dos pais mais que uma prerrogativa de poder paterno A alimentação e a educação dos filhos é uma incumbência tão forçosa dos pais para o bem de seus filhos que nada pode eximilos de cuidar disso Embora o poder de comandar e punir siga ao lado disso Deus urdiu nos princípios da natureza humana uma tal ternura por sua descendência que há pouco receio de que os pais possam usar seu poder com muito rigor o excesso raramente ocorre no lado da severidade a forte tendência da natureza inclinandose para o outro lado Por isso Deus TodoPoderoso ao expressar sua atitude amável para com os Israelitas dizlhes que não obstante os haja punido puniuos como um pai pune seu filho Dt 85 isto é com ternura e afeição e não os manteve sob disciplina mais severa do que aquela que seria absolutamente a melhor para eles e mais doçura teria manifestado menos bondade Este é o poder a qual os filhos são mandados obedecer a fim de não aumentarem ou mal recompensarem os esforços e os cuidados de seus pais 68 Por outro lado a honra e o apoio material tudo a que a gratidão obriga em contrapartida aos benefícios recebidos os filhos o devem sem dispensa possível e isso é privilégio próprio dos pais Tratase aqui da vantagem dos pais como antes se tratava daquele do filho mas a educação que cabe aos pais é acompanhada por um poder quase universal devido à ignorância e às fragilidades da infância que requerem a restrição e a correção ou seja o exercício de um governo e uma espécie de dominação O dever que está contido na palavra honra requer menos obediência ainda que se imponha menos obediência aos filhos menores que aos maiores Quem pode acreditar na ordem Filhos obedecei a vossos pais que exige de um homem que tem filhos a mesma submissão a seus pais que seus filhos devem a ele ou que em virtude deste preceito ele deveria obedecer a todas as ordens de seu pai se este abusando da autoridade comete a indelicadeza de tratálo ainda como a um menino 69 Assim a primeira parte do poder ou melhor do dever do pai que é a educação lhe pertence até que termine na época determinada Quando a tarefa da educação está completa ela termina por si mesma e é também previamente alienável Pois um homem pode colocar em outras mãos a instrução de seu filho e aquele que fez de seu filho aprendiz de outro homem desobrigouo durante aquele período de grande parte de sua obediência tanto a ele quanto a sua mãe No entanto a segunda parte toda a obrigação de honra permanece intacta nada pode cancelar este dever Ele é tão inseparável de ambos pai e mãe que a autoridade do pai não pode despojar a mãe desse direito nem qualquer homem pode dispensar seu filho de honrar aquela que o gerou Mas ambos estão muito distantes de um poder de fazer leis e obrigálos de penalidades que podem atingir os bens a liberdade a integridade física e a própria vida O poder de comandar termina com a minoridade e ainda que depois disso o filho continue a dever aos pais honra e respeito apoio material e proteção e tudo o mais que a gratidão possa obrigar um homem em contrapartida aos benefícios que ele seja naturalmente suscetível de receber isso não coloca nenhum cetro nas mãos do pai nenhum poder soberano de comando Ele não tem domínio sobre os bens ou os atos de seu filho e nenhum direito de lhe impor toda a sua vontade entretanto em algumas situações que não sejam inconvenientes ao filho ou a sua família o filho pode esperar ser tratado respeitosamente CLUBE DO LIVRO LIBERAL 70 Um homem deve honra e respeito a outro mais velho ou a um sábio proteção a seu filho ou ao seu amigo alívio e ajuda aos infelizes e gratidão a um benfeitor em tal grau que tudo o que ele tem e tudo o que pode fazer não pode pagar suficientemente por isso mas nada disso lhe dá autoridade ou direito de fazer leis para as pessoas que lhe são devedoras E é claro que isso não se deve apenas ao simples título de pai não somente porque como foi dito é devido também à mãe mas porque também estas obrigações aos pais e a gradação do que se impõe aos filhos podem variar segundo os cuidados e a bondade os problemas e os custos que são dispensados em maior ou menor extensão em benefício de um ou outro dos filhos 71 Compreendese assim de que maneira os pais podem conservar um poder sobre seus filhos e exigir sua submissão nas sociedades em que eles mesmos são súditos da mesma forma que aqueles que estão no estado de natureza Isso não seria possível se todo o poder fosse apenas paterno e se se tratasse de uma única e mesma coisa neste caso toda a autoridade paterna pertenceria ao príncipe e nenhum súdito poderia detêla naturalmente Mas esses dois poderes político e pátrio são tão diferentes e tendem a fins tão pouco semelhantes que todo súdito que é um pai tem tanto poder sobre seus filhos quanto o príncipe tem sobre os seus e todo príncipe que tem pais deve a eles tanto respeito e obediência filiais quanto o mais humilde de seus súditos deve aos seus por isso não contém nenhuma parcela ou grau daquele tipo de dominação que um príncipe ou um magistrado tem sobre seus súditos 72 Embora a obrigação dos pais de educar seus filhos e a obrigação dos filhos de honrar seus pais contenham de um lado todo o poder e de outro toda a submissão que caracterizam esta relação o pai em geral detém um outro poder que lhe proporciona um poder sobre a obediência de seus filhos ele o divide com o resto dos homens mas passa no mundo como um aspecto da jurisdição paterna pois os pais têm quase sempre a ocasião de exercêlo na intimidade de sua família enquanto fora os exemplos são mais raros e despertam menos atenção Eu me refiro ao poder que em geral os homens têm de transmitir seus bens a quem lhes aprouver Normalmente em uma proporção determinada pela lei e pelos costumes de cada país os bens do pai representam para os filhos a esperança de uma herança mas é costume que o pai tenha a faculdade de distribuí los de forma mais parcimoniosa ou generosa segundo o comportamento deste ou daquele filho se adaptou a sua vontade ou ao seu humor 73 Este não é um vínculo pequeno sobre a obediência dos filhos E estando sempre vinculada à posse da terra uma submissão ao governo do país do qual essa terra é parte admitese comumente que um pai poderia obrigar sua posteridade àquele governo do qual ele mesmo era um súdito e a que seu contrato os obriga então tratandose apenas uma condição necessária anexada à terra que se encontra submissa a este governo atinge apenas aqueles que aceitam tomar a terra naquela condição e este não é um elo ou um compromisso natural mas uma submissão voluntária A natureza dá aos filhos de todo homem a mesma liberdade que proporciona a ele próprio ou a qualquer de seus ancestrais e enquanto permanecerem neste estado de liberdade podem escolher a que sociedade vão se juntar a que comunidade civil vão se submeter Mas se eles quiserem desfrutar da herança de seus ancestrais devem ficar sujeitos às mesmas cláusulas e termos a que eles se submeteram e satisfazer a todas as condições vinculadas a tal posse Na verdade através deste poder os pais obrigam seus filhos a lhes prestar obediência mesmo depois de ultrapassarem a minoridade e também é muito comum sujeitálos a este ou aquele poder político Mas a nenhum desses por qualquer direito peculiar de paternidade exceto pelo prêmio que têm em suas mãos para obrigar e recompensar tal submissão e não é mais poder que um francês tem sobre um inglês que na expectativa de um bem que lhe deixará certamente terá uma forte influência sobre sua obediência é certo que se o inglês quiser desfrutar da herança quando a receber é preciso que aceite as condições que regem a posse da terra em questão no país em que ela está situada seja ele a França ou a Inglaterra 74 Concluindo Mesmo se o poder do pai de comandar não ultrapasse a minoridade de seus filhos e isso em um grau apenas determinado pela disciplina e a orientação daquela idade e mesmo que aquela honra e respeito e tudo o que os latinos chamam de piedade que eles indispensavelmente devem a seus pais durante toda a sua vida e em todos os estados com todo aquele apoio e proteção que lhes são devidos isso não dá ao pai o Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 55 poder de governar ou seja de fazer leis e infligir punições a seus filhos entretanto ainda que ele não adquira assim nenhum domínio sobre seus bens nem sobre a atividade de seu filho basta que nos reportemos em espírito ao início do mundo ou mesmo em nosso tempo às regiões em que a população é muito dispersa o que permite às famílias se instalarem separadamente em locais mais afastados sem dono transferiremse e irem habitar em outros locais desocupados para imaginar a que ponto é fácil passar do papel de pai àquele de príncipe da casa85 O pai detém a autoridade em sua família desde o início da infância de seus filhos quando estes crescem como dificilmente podem viver juntos sem algum governo não é surpreendente que expressa ou tacitamente eles encarreguem disso o pai que parece permanecer simplesmente em suas funções sem qualquer mudança Nada mais é requerido para isso senão permitir que o pai exerça sozinho em sua família aquele poder executivo da lei da natureza de que todo homem livre naturalmente dispõe e através dessa permissão conceder lhe um poder monárquico sobre a família enquanto os filhos ali permanecerem Não obstante o pai só tem este poder por causa do consentimento de seus filhos e não por qualquer direito paterno como evidencia um fato indubitável se ocorresse por acaso ou por questões de negócios que um estrangeiro penetrasse na família e matasse um dos filhos ou cometesse qualquer outro delito o pai podia condenálo e matálo ou infligirlhe qualquer outra punição como o faria a qualquer um de seus filhos ora ele não podia tratar assim qualquer um que não fosse seu filho em virtude de uma autoridade paterna qualquer mas somente em virtude do poder executivo da lei da natureza que todo homem possuía por direito e apenas ele podia punir o estrangeiro em sua família onde os filhos estavam destituídos do exercício do mesmo poder para dar lugar à dignidade e à autoridade que desejavam que ele mantivesse sobre o restante da família 75 Era então fácil e quase natural para os filhos por um consentimento tácito e dificilmente evitável consentir em abrir caminho para a autoridade e o governo do pai Durante toda a sua infância eles se acostumaram a seguir sua orientação e a submeterlhe suas pequenas diferenças uma vez homens quem melhor que ele para dirigilos Suas pequenas propriedades e sua cobiça ainda mais limitada raramente suscitavam maiores controvérsias e quando crescessem onde poderiam encontrar um árbitro mais qualificado que o homem cujo cuidado havia assegurado no passado seu sustento e sua educação e que experimentava ternura por todos eles Não surpreende que eles não tivessem feito distinção entre minoridade e maioridade nem ansiassem por seus vinte e um anos ou por qualquer outra idade para se tornarem aptos para dispor livremente de seus bens e de sua vida quando não desejassem sair de sua tutela O governo a que permaneciam submetidos enquanto durasse continuava mais a protegêlos que a restringilos e em parte alguma eles poderiam encontrar maior segurança para a sua paz liberdades e bens que sob o governo de um pai 76 Assim por uma imperceptível transformação os pais naturais das famílias tornaramse também seus monarcas políticos e se tivessem a oportunidade de viver muito e deixar herdeiros capazes e dignos para várias gerações teriam podido estabelecer as fundações de reinados hereditários ou eletivos regidos por diversas constituições ou autoridades senhoriais e conformar segundo o acaso as idéias ou as situações Entretanto se os príncipes têm seus títulos em seu direito de paternidade se o fato dos pais terem em geral nas mãos o governo bastava para provar que estão naturalmente investidos da autoridade política se este argumento é válido ele prova suficientemente que todos os príncipes e apenas os príncipes deviam ser sacerdotes porque no início o pai de família era tanto sacerdote quanto governante em sua própria casa CAPÍTULO VII 85 Por isso não é improvável a opinião expressada pelo arquifilósofo de que a principal pessoa em toda família sempre foi uma espécie de rei assim quando um certo número de famílias se juntaram em sociedades civis os reis foram o primeiro tipo de governadores isso parece explicar igualmente porque o nome de pai subsistiu entre aqueles que de pais foram promovidos a governantes da mesma forma o antigo costume dos governa dores como Melquisedec talvez tenha se desenvolvido no início pelo mesmo motivo ou seja uma vez reis exercer funções sacerdotais o que era anteriormente realizado pelos pais Seja como for este não foi o único tipo de regime desenvolvido no mundo Suas in conveniências levaram a imaginar diversas outras de forma que resumindo todo regime público seja de que tipo for parece evidentemente terse originado de acordos deliberados da consulta e da composição entre os homens para julgar suas conveniências e vantagens pois nada na natureza considerada em si mesma proibia o homem de viver sem qualquer regime público Hooker Eccl Pol liv i sec 10 CLUBE DO LIVRO LIBERAL DA SOCIEDADE POLÍTICA OU CIVIL 77 Tendo Deus feito do homem uma criatura tal que segundo seu julgamento não era bom para ele ficar sozinho submeteuo a fortes obrigações de necessidade comodidade inclinação para leválo a viver em sociedade assim como o dotou de entendimento e linguagem para mantêla e desfrutála A primeira sociedade existiu entre marido e mulher e serviu de ponto de partida para aquela entre pais e filhos à qual com o tempo foi acrescentada aquela entre patrão e servidor Embora todas estas sociedades possam se reunir o que em geral elas fazem para constituir uma única família cujo senhor ou senhora detêm alguma autoridade conveniente a uma família cada uma delas ou todas reunidas não equivalem a uma sociedade política como veremos ao examinar os diversos objetivos vínculos e limites de cada uma 78 A sociedade conjugal resulta de um pacto voluntário entre o homem e a mulher e embora consista principalmente em uma comunhão dos corpos fundamentada sobre um direito recíproco como o exige seu objetivo principal a procriação esta sociedade se acompanha de uma ajuda e de uma assistência mútuas e além disso também de uma comunhão de interesses necessária não somente para unir seu cuidado e sua afeição mas também a sua descendência comum que tem o direito de ser alimentada e mantida por eles até ser capaz de prover suas próprias necessidades 79 Como a união entre o homem e a mulher tem por fim não somente a procriação mas a perpetuação da espécie esta relação entre o homem e a mulher deve continuar mesmo depois da procriação quanto tempo for necessário para a alimentação e o sustento dos jovens que devem ser mantidos por aqueles que os geraram até que sejam capazes de se deslocar e de se prover por si mesmos Esta regra que o Criador infinitamente sábio impôs à obra de suas mãos percebemos ser obedecida prontamente pelas criaturas inferiores Entre os animais vivíparos que se alimentam de erva a união do macho e da fêmea não dura muito mais que o próprio ato da copulação porque a teta da fêmea é suficiente para alimentar seus filhotes até que eles sejam capazes de pastar o macho apenas gera mas não se ocupa nem da fêmea nem dos filhotes para cujo sustento ele não contribui em nada Entre os animais selvagens a união dura um pouco mais pois a mãe não saberia garantir sua subsistência e alimentar sua numerosa prole de maneira satisfatória graças apenas ao produto de sua própria caça um modo de vida mais laborioso e também mais perigoso do que se alimentar da erva a ajuda do macho é necessária à manutenção de sua família que não pode sobreviver até ser capaz de caçar sozinha a não ser pelo cuidado conjunto do macho e da fêmea O mesmo pode ser observado em todas as aves exceto algumas aves domésticas cuja abundância de alimentos excusa o macho de alimentar e cuidar da jovem ninhada entre eles os filhotes têm de se alimentar dentro do ninho e até serem capazes de se servirem de suas próprias asas para garantirem por si sós sua subsistência o macho e a fêmea continuam a viver juntos 80 Aqui reside a razão principal senão a única pela qual o homem e a mulher são vinculados em uma união mais longa que as outras criaturas ou seja porque a mulher é capaz de conceber e de fato em geral ainda está atendendo a um filho e fica grávida de outro bem antes da criança precedente deixar de depender da ajuda de seus pais para sobreviver e poder conseguir se arranjar sozinha assim o pai que é responsável pelo cuidado daqueles que gerou tem por obrigação continuar em sociedade conjugal com a mesma mulher durante mais tempo que as outras criaturas cujos filhotes são capazes de sobreviverem sozinhos antes do próximo período da procriação e assim têm seus elos conjugais dissolvidos por si e ficam em liberdade até que o himeneu em sua época anual habitual as convoque novamente para escolher novos parceiros Não se pode deixar de admirar aí a sabedoria do grande Criador que tendo dotado o homem de uma capacidade de armazenar para o futuro e também de suprir a necessidade presente tornou necessário que a sociedade do homem e da mulher fosse mais duradoura que aquela do macho e da fêmea entre as outras criaturas de forma que assim sua indústria podia ser estimulada e seus interesses melhor unidos para acumular provisões e mercadorias para sua descendência comum tarefa a que muito tumultuariam as associações incertas ou a facilidade e a freqüência das dissoluções da sociedade conjugal Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 57 81 Mas embora estes sejam para a humanidade entraves que tornam o elo conjugal mais sólido e mais durável entre o homem do que entre as outras espécies animais seria o caso de perguntar o que impede tornar este contrato em que a procriação e a educação estão asseguradas e a herança regulamentada suscetível de dissolução por consentimento mútuo ou a um prazo determinado ou sob certas condições assim como qualquer outro trato voluntário pois nem a natureza da situação nem sua finalidade exigem que ela dure toda a vida falo aqui daqueles que não estão submetidos a qualquer lei positiva que ordena que todos os contratos deste gênero sejam perpétuos 82 Marido e mulher embora tenham um interesse comum possuem entendimentos diferentes e não podem evitar às vezes de terem também vontades diferentes é preciso então que uma determinação final isto é a regra seja colocada em algum lugar e esta cai naturalmente sobre o homem como sendo o mais capaz e o mais forte Mas isso só vale para as questões de seus interesses e bens comuns a mulher mantém a posse livre e completa de tudo aquilo que por contrato é seu direito peculiar e seu marido não tem sobre sua vida mais poder do que ela possui sobre a dele O poder do marido está tão distante daquele de um monarca absoluto que a mulher em muitos casos é livre para se separar dele se assim o autoriza o direito natural ou o contrato entre eles seja este contrato feito por eles próprios em um estado de natureza ou pelos costumes ou leis do país em que vivem e as crianças após uma tal separação ficam com o pai ou com a mãe segundo determina tal contrato 83 Todos os fins do casamento devem ser atingíveis sob um governo político assim como no estado de natureza o magistrado civil não limita o direito ou o poder dos esposos necessários a esses objetivos ou seja procriação e ajuda e assistência mútuas enquanto estão juntos decidindo apenas qualquer controvérsia sobre a questão que possa ocorrer entre o homem e a mulher Caso contrário se este poder de vida e de morte e esta soberania absolutos pertencessem naturalmente ao marido jamais poderia existir casamento em nenhum país em que o marido não esteja investido de uma autoridade absoluta deste tipo Entretanto os fins do casamento não exigem a atribuição de um tal poder ao marido O estado característico da sociedade conjugal não lhe confere este poder mesmo a comunidade dos bens o poder exercido sobre eles a assistência recíproca a obrigação mútua do sustento e os outros aspectos da sociedade matrimonial podem ser suscetíveis de modificações e regulados por aquele contrato que inicialmente os uniu naquela sociedade nada sendo necessário a qualquer sociedade que não seja necessário aos fins para os quais foi feita 84 A sociedade entre pais e filhos e os diferentes direitos e poderes que lhes pertencem respectivamente eu já considerei tão extensamente no capítulo anterior que não há necessidade de mais comentários aqui Creio ter ficado claro que é bem diferente de uma sociedade política 85 Senhor e servo são nomes tão antigos quanto a história mas dados a indivíduos de condições bem diferentes um homem livre tornase servidor de outro quando lhe vende um certo tempo de serviço que realiza em troca de um salário que deve receber e embora isso em geral o coloque dentro da família de seu senhor e recaia sob o jugo da disciplina geral que a comanda isso proporciona ao senhor um poder temporário sobre ele mas não maior que aquele contido no contrato entre eles Mas há uma outra categoria de servidores a que damos o nome particular de escravos que sendo cativos aprisionados em uma guerra justa estão pelo direito de natureza sujeitos à dominação absoluta e ao poder absoluto de seus senhores Como eu disse estes homens tiveram suas vidas capturadas e com elas suas liberdades perderam seus bens e estão no estado de escravidão privados de qualquer propriedade e não podem nesse estado não poder ser considerados parte da sociedade civil cujo principal fim é a preservação da propriedade 86 Consideremos então um chefe de família cercado de todos aqueles que ocupam um lugar subordinado em sua casa esposa filhos empregados e escravos unidos sob o governo doméstico de uma família apesar de toda a semelhança que esta possa apresentar com uma pequena comunidade civil pela ordem ali reinante os CLUBE DO LIVRO LIBERAL empregos e mesmo o número dos participantes ainda permanece muito diferente por sua constituição seu poder e suas finalidades ora a se pensar em uma monarquia cujo pater familias seria o monarca esta monarquia absoluta não exerceria senão um poder muito fragmentado e efêmero pois está evidente como já vimos antes que o chefe da família tem um poder muito distinto e diferentemente limitado tanto no tempo quanto na extensão sobre aquelas várias pessoas que fazem parte dela com exceção dos escravos e haja ou não escravos isto não muda em nada a natureza da família e a extensão de sua autoridade paterna não tem poder legislativo de vida e morte sobre qualquer um de seus membros nem nenhum poder do qual não compartilhe também a mãe de família E ele certamente não tem poder absoluto sobre o conjunto da família uma vez que tem um poder muito limitado sobre cada indivíduo em particular Mas como uma família ou qualquer outro agrupamento humano difere daquele que constitui propriamente a sociedade política é preciso examinar sobretudo em que consiste a sociedade política em si 87 O homem nasceu como já foi provado com um direito à liberdade perfeita e em pleno gozo de todos os direitos e privilégios da lei da natureza assim como qualquer outro homem ou grupo de homens na terra a natureza lhe proporciona então não somente o poder de preservar aquilo que lhe pertence ou seja sua vida sua liberdade seus bens contra as depredações e as tentativas de outros homens mas de julgar e punir as infrações daquela lei em outros quando ele está convencido que a ofensa merece e até com a morte em crimes em que ele considera que a atrocidade a justifica Mas como nenhuma sociedade política pode existir ou subsistir sem ter em si o poder de preservar a propriedade e para isso punir as ofensas de todos os membros daquela sociedade só existe uma sociedade política onde cada um dos membros renunciou ao seu poder natural e o depositou nas mãos da comunidade em todos os casos que os excluem de apelar por proteção à lei por ela estabelecida e assim excluído todo julgamento particular de cada membro particular a comunidade se torna um árbitro e compreendendo regras imparciais e homens autorizados pela comunidade para fazêlas cumprir ela decide todas as diferenças que podem ocorrer entre quaisquer membros daquela sociedade com respeito a qualquer questão de direito e pune aquelas ofensas que qualquer membro tenha cometido contra a sociedade com aquelas penalidades estabelecidas pela lei deste modo é fácil discernir aqueles que vivem daqueles que não vivem em uma sociedade política Aqueles que estão reunidos de modo a formar um único corpo com um sistema jurídico e judiciário com autoridade para decidir controvérsias entre eles e punir os ofensores estão em sociedade civil uns com os outros mas aqueles que não têm em comum nenhum direito de recurso ou seja sobre a terra estão ainda no estado de natureza onde cada um serve a si mesmo de juiz e de executor o que é como mostrei antes o perfeito estado de natureza 88 E assim a comunidade social adquire o poder de estabelecer a punição merecida em correspondência a cada infração cometida entre os membros daquela sociedade que é o poder de fazer leis assim como também o poder de punir qualquer dano praticado a um de seus membros por qualquer um que a ela não pertença que é o poder de guerra e de paz ela o exerce para preservar na medida do possível os bens de todos aqueles que fazem parte daquela sociedade Cada vez que um homem entra na sociedade civil e se torna membro de uma comunidade civil renuncia a seu poder de punir ofensas contra a lei da natureza na realização de seu próprio julgamento particular mas tendo delegado ao legislativo o julgamento de todas as ofensas que podem apelar ao magistrado delegou também à comunidade civil o direito de requerer sua força pessoal sempre que quiser para a execução dos julgamentos da comunidade civil que na verdade são seus próprios julgamentos pois são feitos por ele ou por seu representante Descobrimos aqui a origem dos poderes legislativo e executivo da sociedade civil que é julgar através de leis estabelecidas a que ponto as ofensas devem ser punidas quando cometidas na comunidade social e também determinar por meio de julgamentos ocasionais fundamentados nas presentes circunstâncias do fato a que ponto as injustiças de fora devem ser vingadas em ambos os casos empregando toda a força de todos os membros sempre que for necessário 89 Por isso todas as vezes que um número qualquer de homens se unir em uma sociedade ainda que cada um renuncie ao seu poder executivo da lei da natureza e o confie ao público lá e somente lá existe uma sociedade política ou civil E isso acontece todas as vezes que homens que estão no estado de natureza em qualquer número entram em sociedade para fazerem de um mesmo povo um corpo político único sob um único governo supremo ou todas as vezes que um indivíduo se une e se incorpora a qualquer governo já estabelecido Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 59 Esta sua atitude autoriza a sociedade ou seu corpo legislativo que é a mesma coisa a fazer leis por sua conta quando o bem público o exigir e requerer sua assistência para fazêlas executar assim como decretos dos quais ele mesmo seria o autor Os homens passam assim do estado de natureza para aquele da comunidade civil instituindo um juiz na terra com autoridade para dirimir todas as controvérsias e reparar as injúrias que possam ocorrer a qualquer membro da sociedade civil este juiz é o legislativo ou os magistrados por ele nomeados E onde houver homens seja qual for seu número e sejam quais forem os elos que os unem que não possam recorrer à decisão de um tal poder eles ainda estão no estado de natureza 90 Isto revela de maneira evidente que a monarquia absoluta que alguns homens consideram como a única forma de governo do mundo é na verdade inconsistente com a sociedade civil e por isso não poderia constituir de forma alguma um governo civil Porque a sociedade civil tem por finalidade evitar e remediar aquelas inconveniências do estado de natureza que se tornam inevitáveis sempre que cada homem julga em causa própria instituindo uma autoridade conhecida a que todos daquela sociedade podem apelar sobre qualquer injúria recebida ou controvérsia que possa surgir e que todos da sociedade devem obedecer86 em todo lugar em que há pessoas que não têm a possibilidade de apelar a uma autoridade e decidir qualquer diferença entre eles essas pessoas ainda estão no estado de natureza Tal é também a condição do príncipe absoluto diante daqueles que estão sob sua dominação 91 Pois supondose que o príncipe detenha nele próprio a totalidade do poder legislativo e executivo quando se busca obter a reparação e a indenização de injúrias ou inconveniências das quais o príncipe é o autor ou que foram causadas por sua ordem não se pode conseguir nenhum juiz nem quem quer que seja que possa julgar com autoridade sem injustiça ou parcialidade Tal homem seja qual for seu título Czar ou Grande Senhor ou qualquer outro que se queira permanece no estado de natureza com todos sob sua dominação assim como o resto da humanidade Onde existam dois homens que não possuem uma regra permanente e um juiz comum para apelar na terra para que sejam dirimidas as controvérsias de direito entre eles estes ainda estão no estado de natureza e sujeitos a todas as suas inconveniências com apenas esta lamentável diferença que distingue o súdito ou antes o escravo do príncipe absoluto87 aquele que na condição ordinária de sua natureza permanece livre para julgar seu direito e defendêlo com o máximo de suas forças sempre que sua propriedade for invadida pela vontade e por ordem de seu monarca não somente ele não tem a quem apelar como aqueles que vivem na sociedade devem ter mas se fosse degradado do estado comum das criaturas racionais serlheia negada liberdade de julgar ou defender seu direito assim sendo está exposto a toda a miséria e inconveniências que um homem pode temer daquele que além de estar no desenfreado estado de natureza está também corrompido pela lisonja e armado de poder 92 Aquele que acha que o poder absoluto purifica o sangue do homem e corrige a baixeza da natureza humana precisa ler a história de nosso século ou de qualquer outro para se convencer do contrário Aquele que fosse insolente e nocivo nas florestas da América provavelmente não estaria melhor em um trono onde talvez a ciência e a religião seriam consultados para justificar tudo o que ele quisesse fazer a seus súditos e a espada silenciaria todos aqueles que ousassem questionála Para saber de que vale a proteção proporcionada pela monarquia absoluta que pais de seus povos ele transforma em príncipes e que extremos de felicidade e de 86 O poder público de toda sociedade está acima de qualquer indivíduo que vive na mesma sociedade e o principal uso daquele poder é proporcionar leis a todos que estão sob seu governo a cujas leis em tais casos devemos obedecer a menos que a razão demonstre que a lei da razão ou a lei de Deus ordenam o contrário Hooker Eccl Pol liv i sec 16 87 Para afastar todas essas ofensas mútuas injúrias e erros isto é aquelas que atingem o homem no estado de natureza não havia outro caminho senão promover entre si o acordo e o compromisso estabelecendo algum tipo de governo público e submetendose como súditos daquele a quem concederam autoridade para legislar e governar e através disso proporcionar a paz a tranqüilidade e o bemestar que o restante podia estar buscando Os homens sempre souberam que onde se impõem a força e a injúria eles devem ser defensores de si mesmos Sabem que apesar da faculdade que cada um tem de buscar sua própria comodidade se esta busca for acompanhada de danos causados em prejuízo dos outros não se deve tolerála mas oporse a ela servindose de todos os homens e de todos os meios permitidos Finalmente sabiam que nenhum homem podia racionalmente pretender determinar seus direitos para assegurar sua manutenção segundo a determinação estabelecida por ele pois todo homem é parcial em relação a si próprio e àqueles por quem tem uma afeição particular e por isso esses conflitos e problemas seriam infinitos a menos que consentissem de comum acordo em ser governados em conjunto por alguém de sua escolha pois sem este consentimento nenhum homem teria razão para se investir de autoridade e julgar os outros Hooker ibid sec 10 CLUBE DO LIVRO LIBERAL segurança esta forma de governo permite à sociedade civil quando chega ao máximo da perfeição basta consultar o último relato sobre o Ceilão para vêlo com facilidade 93 Certamente nas monarquias absolutas assim como nas outras formas de governo do mundo os súditos podem invocar a lei e solicitar juízes para a decisão de quaisquer controvérsias e a contenção de qualquer violência que pudesse ocorrer entre os próprios súditos um contra o outro Todos acham isso necessário e acreditam que aquele que tenta abolir este recurso merece ser considerado inimigo declarado da sociedade e da humanidade Mas se este provém de um verdadeiro amor pela humanidade e pela sociedade e essa caridade que todos devemos uns aos outros há razão para duvidar Todo homem que preza seu próprio poder seu lucro ou sua grandeza não apenas pode mas naturalmente deve impedir os animais de ferir ou destruir um outro que trabalha e se esforça apenas para seu prazer e sua vantagem se o senhor cuida deles não é porque os ama mas porque ama a si mesmo e por causa do lucro que eles lhe trazem Por isso se for perguntado que segurança que barreira existe em tal estado contra a violência e a opressão deste chefe absoluto a verdadeira questão dificilmente aparece Estão prontos a lhe dizer que o simples fato de reclamar por segurança merece a morte Eles admitem que devem existir critérios leis e juízes entre os súditos para lhes garantir a paz e a segurança mútua mas quanto ao chefe ele deve ser absoluto e está acima de todas as contingências porque tem o poder de causar mais sofrimento e mais injustiça e tem razão em se servir dele Questionar como se pode estar protegido do agravo ou da injúria naquele lado onde se encontra a mão mais forte é dar ouvidos à voz do faccioso e do rebelde Como se no dia em que os homens deixaram o estado de natureza para entrar na sociedade tivessem concordado em ficar todos submissos à contenção das leis exceto um que ainda conservaria toda a liberdade do estado de natureza ampliada pelo poder e se tornaria desregrado devido à impunidade Isto equivale a acreditar que os homens são tolos o bastante para se protegerem cuidadosamente contra os danos que podem sofrer por parte das doninhas ou das raposas mas ficam contentes e tranqüilos em serem devorados por leões 94 Mas seja o que for que os aduladores possam dizer para divertir os espíritos isso nunca impede os homens de experimentar os sentimentos e quando percebem que um homem não importa sua condição está fora dos limites da sociedade civil a que eles pertencem e que não têm a quem apelar na terra contra qualquer dano que possam receber de sua parte estão inclinados a considerar que estão no estado de natureza em relação a ele e logo que possam cuidarão de se beneficiar daquela proteção e segurança da sociedade civil que se propunha ser sua instituição oficial e visando apenas aqueles que nela entraram Por isso embora talvez no início como será visto mais extensamente na seqüência deste discurso algum homem dotado de grandes qualidades tenha se destacado dos outros e em uma homenagem tácita a sua bondade e às suas virtudes como uma espécie de autoridade natural aceitou o encargo de exercer a autoridade suprema e de arbitrar suas diferenças sem outra proteção além da certeza de sua integridade e sabedoria mas quando o tempo confirmou e como alguns homens nos convenceriam até consagrou os costumes que tiveram sua fonte na inocência negligente e imprevidente das primeiras épocas pondo em cena sucessores de outra têmpera o povo percebendo que seus bens não estavam em segurança sob o governo que existia então88 quando o governo não tem outra finalidade além da preservação da propriedade jamais poderia se sentir seguro quanto ao resto nem se considerar em sociedade civil até que a legislatura fosse depositada em órgãos coletivos chamados Senado Parlamento ou o nome que se quiser Por este meio cada pessoa considerada individualmente igual às outras mesmo às mais humildes ficou sujeita a leis que ela mesma estabelecia como parte integrante do legislativo e ninguém por sua própria autoridade podia escapar à força da lei estabelecida ou por qualquer pretensão de superioridade solicitar isenção de seus próprios erros ou daqueles de seus dependentes Nenhum homem na sociedade civil pode ser imune às suas leis Se houver um homem que se veja no direito de fazer o que lhe apraz sem que se possa evocar qualquer recurso sobre a terra para reparar ou limitar todo o mal que ele fará gostaria que me dissessem se não é verdade que ele permanece no estado de natureza sob sua forma perfeita e que portanto não pode se integrar de maneira 88 No início quando pela primeira vez foi aprovado um certo tipo de regime pode ser que não se tenha pensado melhor na maneira de governar mas que tudo tenha sido deixado a cargo da sabedoria e do discernimento daqueles que deveriam comandar até o dia em que pela experiência perceberam que este regime se revelava em todos os sentidos muito inconveniente e que aquilo que eles imaginaram como uma solução só havia agravado o mal que eles queriam combater Viram que viver segundo a vontade de um único homem resultaria na miséria de todos os outros Isso os obrigou a estabelecer leis que fizessem com que cada um conhecesse de antemão seu dever e as penas previstas para sua transgressão Hooker Eccl Pol liv i sec 10 Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 61 nenhuma à sociedade civil a menos que alguém me diga que estado de natureza e sociedade civil são uma única e mesma coisa mas ainda não encontrei ninguém tão defensor da anarquia para afirmálo89 CAPÍTULO VIII DO INÍCIO DAS SOCIEDADES POLÍTICAS 95 Se todos os homens são como se tem dito livres iguais e independentes por natureza ninguém pode ser retirado deste estado e se sujeitar ao poder político de outro sem o seu próprio consentimento A única maneira pela qual alguém se despoja de sua liberdade natural e se coloca dentro das limitações da sociedade civil é através de acordo com outros homens para se associarem e se unirem em uma comunidade para uma vida confortável segura e pacífica uns com os outros desfrutando com segurança de suas propriedades e melhor protegidos contra aqueles que não são daquela comunidade Esses homens podem agir desta forma porque isso não prejudica a liberdade dos outros que permanecem como antes na liberdade do estado de natureza Quando qualquer número de homens decide constituir uma comunidade ou um governo isto os associa e eles formam um corpo político em que a maioria tem o direito de agir e decidir pelo restante 96 Quando qualquer número de homens através do consentimento de cada indivíduo forma uma comunidade dão a esta comunidade uma característica de um corpo único com o poder de agir como um corpo único o que significa agir somente segundo a vontade e a determinação da maioria Pois o que move uma comunidade é sempre o consentimento dos indivíduos que a compõem e como todo objeto que forma um único corpo deve se mover em uma única direção este deve se mover na direção em que o puxa a força maior ou seja o consentimento da maioria do contrário é impossível ele atuar ou subsistir como um corpo como uma comunidade como assim decidiu o consentimento individual de cada um por isso cada um é obrigado a se submeter às decisões da maioria E por isso naquelas assembléias cujo poder é extraído de leis positivas em que a lei positiva que os habilita a agir não fixa o número estabelecido vemos que a escolha da maioria passa por aquela do conjunto e importa na decisão sem contestação porque tem atrás de si o poder do conjunto em virtude da lei da natureza e da razão 97 E assim cada homem consentindo com os outros em instituir um corpo político submetido a um único governo se obriga diante de todos os membros daquela sociedade a se submeter à decisão da maioria e a concordar com ela do contrário se ele permanecesse livre e regido como antes pelo estado de natureza este pacto inicial em que ele e os outros se incorporaram em uma sociedade não significaria nada e não seria um pacto Será que ele teria a aparência de um pacto Que novo compromisso seria este se o interessado não estava vinculado a outros decretos da sociedade além daqueles que ele achava que lhe convinha e nos quais realmente consentiu Esta seria uma liberdade tão completa quanto a que ele ou qualquer outro possuía antes do pacto no estado de natureza em que nada o impede de consentir em uma decisão qualquer e de se submeter a ela se lhe parecer conveniente 98 Se racionalmente o consentimento da maioria não deve ser encarado como um ato do conjunto e a decisão de cada indivíduo nada exceto o consentimento de cada indivíduo pode transformar qualquer coisa em ato do conjunto pois os problemas de saúde e os impedimentos dos negócios apesar de em número serem muito inferiores ao total de uma comunidade civil necessariamente deixará muitos ausentes da assembléia pública Se acrescentarmos a isso a variedade de opiniões e a diversidade dos interesses que inevitavelmente ocorrem em 89 A lei civil sendo o ato de todo o corpo político tem a primazia sobre cada parte do mesmo corpo Hooker ibid CLUBE DO LIVRO LIBERAL todos os grupos humanos a inserção na sociedade em tais condições seria apenas como a entrada de Catão no teatro tantum ut exiret Uma constituição deste gênero tornaria o poderoso Leviatã mais efêmero que as criaturas mais frágeis e ele seria incapaz de sobreviver ao dia de seu nascimento e isto seria inadmissível e menos ainda que criaturas racionais só desejassem e constituíssem sociedades para depois dissolvêlas Pois quando a maioria não pode decidir pelo resto as pessoas não podem agir como um único corpo e este imediatamente entra em dissolução 99 Por isso é preciso admitir que todos aqueles que saem de um estado de natureza para se unir em uma comunidade abdiquem de todo o poder necessário à realização dos objetivos pelos quais eles se uniram na sociedade em favor da maioria da comunidade a menos que uma estipulação expressa não exija o acordo de um número superior à maioria Para isso basta um acordo que preveja a união de todos em uma mesma sociedade política e os indivíduos que se inserem em uma comunidade política não necessitam de outro pacto Assim o ponto de partida e a verdadeira constituição de qualquer sociedade política não é nada mais que o consentimento de um número qualquer de homens livres cuja maioria é capaz de se unir e se incorporar em uma tal sociedade Esta é a única origem possível de todos os governos legais do mundo 100 A isto eu encontro duas objeções Primeira A história não conhece exemplos de um grupo de homens independentes e iguais entre si que tenham se reunido e desta forma fundado e instituído um governo Segunda Juridicamente é impossível aos homens têlo feito porque todos os homens nasceram sob um governo e por isso devem a ele submeterse e não têm a liberdade de fundar um novo 101 Para a primeira existe uma resposta Não há por que se admirar da história nos fornecer poucas informações sobre os homens que viviam juntos no estado de natureza As inconveniências dessa condição e o amor e a necessidade da sociedade aproximaram em um número qualquer todos aqueles que desejavam ficar juntos mas eles necessariamente teriam de se unir e se associar se desejavam continuar juntos E se não pudermos supor que os homens jamais tenham se encontrado no estado de natureza por não termos ouvido falar de muitos em tal estado podemos também supor que os soldados de Salmanasar ou de Xerxes jamais tenham sido crianças porque pouco sabemos deles até se tornarem homens e se incorporarem aos exércitos Em toda parte o governo antecede aos registros e é raro aparecerem constituições em um povo até que a sociedade civil tenha durado tempo bastante para proporcionar por meio de outras artes mais necessárias sua segurança bemestar e abundância É então que se começa a procurar a história de seus fundadores e a estudar suas origens pois sua memória perdeuse As sociedades civis assim como os indivíduos em geral não têm lembrança de seu nascimento e de sua infância E se sabem qualquer coisa sobre sua origem devem isso a documentos conservados casualmente por outras pessoas E aqueles que temos do início de qualquer política no mundo excetuandose aquela dos judeus em que o próprio Deus se interpôs diretamente e que não defende de forma alguma a dominação paterna são todos exemplos evidentes de que tal início se processou como eu mencionei ou pelo menos sugerem pegadas manifestas neste sentido 102 Demonstra uma forte tendência a negar a evidência dos fatos aquele que não concorda com esta hipótese e não admite que o início de Roma e Veneza tenha ocorrido pela união de vários homens livres e independentes uns dos outros entre os quais não havia superioridade ou sujeição natural E a se acreditar nas palavras de José Acosta ele nos diz que em muitas partes da América não havia qualquer governo Há manifestamente grandes razões para se supor que esses homens diz ele referindose aos habitantes do Peru durante muito tempo não tiveram nem reis nem comunidades civis mas viviam em bandos como atualmente os habitantes da Flórida os Cheriquanas os povos do Brasil e de muitas outras nações mas quando a ocasião lhes surgiu na paz ou na guerra escolheram seus capitães como melhor lhes pareceu l i c 25 E mesmo lá cada homem nasce súdito de seu pai ou do chefe de sua família e já provamos que a obrigação que uma criança tem de se submeter a seu pai não tira dela a liberdade de se unir à sociedade política de sua escolha Mas seja como for é evidente que esses homens eram realmente livres e seja qual for a superioridade que alguns políticos queiram reconhecer hoje em dia em um ou outro dentre eles eles próprios não a reivindicaram eles eram todos iguais Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 63 porque assim o decidiram e assim permaneceram até o dia em que decidiram ter governantes Assim sendo todas as suas sociedades políticas começaram a partir de uma união voluntária e do acordo mútuo de homens que escolhiam livremente seus governantes e suas formas de governo 103 Espero que se admita que aqueles que partiram de Esparta com Palanto mencionados por Justino liv iii c 4 tenham sido homens livres independentes uns dos outros e tenham concordado livremente em instituir um governo e a ele se submeter Assim apresentei vários exemplos da história de povos que viviam livres no estado de natureza e que se reuniram se associaram e iniciaram uma comunidade civil Se fosse possível invocar a insuficiência dos exemplos históricos para provar que os governos não foram nem poderiam ter sido fundados dessa maneira creio que seria melhor os partidários do império paterno pararem de argumentar contra a liberdade natural Pois se eles podem extrair da história tantos exemplos de governos fundamentados sobre o direito paterno embora na melhor das hipóteses os argumentos que concluem o que foi e o que de direito deveria ser não provem muita coisa creio que se pode sem qualquer grande risco darlhes razão Mas se eu pudesse lhes dar um conselho neste caso seria preferível que eles não insistissem tanto em sua busca da origem dos governos como iniciaram de fato pois poderiam constatar que a maior parte deles se fundamenta sobre uma base pouco propícia às intenções que eles promovem e ao tipo de poder que eles defendem 104 Para concluir temos a razão do nosso lado quando afirmamos que os homens são naturalmente livres e os exemplos da história mostram que todos os governos do mundo que tiveram uma origem pacífica foram edificados sobre esta base e devem sua existência ao consentimento do povo Assim há pouco espaço para a dúvida seja sobre qual o lado certo ou sobre a opinião ou a prática da humanidade na fundação inicial dos governos 105 Admito que se olharmos retrospectivamente tão distante quanto a história possa nos conduzir para a origem das comunidades sociais em geral as encontraremos sob o governo e a administração de um homem Também estou pronto a acreditar que nas famílias bastante numerosas para subsistir por si mesmas e conservar sua unidade sem se misturar a outras como freqüentemente ocorre onde há muita terra e poucas pessoas o governo em geral começava na figura do pai Pela lei da natureza o pai tinha o mesmo poder que qualquer outro homem para punir como lhe aprouvesse as transgressões de seus filhos mesmo quando eles já fossem homens e estivessem fora de sua tutela e era muito provável que eles se submetessem a essa punição e por turnos todos se juntassem a ele contra o ofensor dandolhe assim poder para executar sua sentença contra qualquer transgressão e desse modo transformandoo no legislador e governante sobre tudo o que se relacionava a sua família Ninguém merecia mais que ele sua confiança sob sua guarda a afeição paterna garantia seus bens e seus interesses e o hábito de obedecêlo em sua infância tornava mais fácil obedecerlhe que a qualquer outro Portanto se fosse para ter alguém para comandálos uma vez que homens que vivem juntos dificilmente podem passar sem governo quem melhor que o homem que era o pai de todos a menos que a negligência a crueldade ou qualquer outro defeito mental ou físico o tornasse incapaz para a função Entretanto quando o pai morria e deixava um herdeiro que por insuficiência de idade de sabedoria ou de qualquer outra qualidade fosse menos capaz de governar ou então quando várias famílias se reuniam e decidiam continuar juntas não há dúvida que usavam sua liberdade natural para escolher aquele que lhes parecia mais capaz e mais apto a governálos bem Assim encontramos os povos da América que vivendo fora do alcance das guerras de conquista e da dominação invasora dos dois grandes impérios do Peru e do México desfrutavam de sua liberdade natural embora coeteris paribus em geral preferissem o herdeiro de seu rei morto mas se de alguma maneira o considerassem fraco ou incapaz eles o depunham e escolhiam para seu governante o mais forte e o mais corajoso 106 Se nos reportamos o mais longe que os registros nos permitam encontrar um relato do povoamento do mundo e da história das nações veremos que em geral o governo está nas mãos de um só homem mas isso não anula o que eu afirmo ou seja que o início da sociedade política depende do consentimento dos indivíduos de se unir e compor uma sociedade e que quando estão assim associados podem instituir a forma de governo que melhor lhes convier Mas como isso tem induzido os homens a erros e a pensar que por natureza todo governo CLUBE DO LIVRO LIBERAL era monárquico e pertencia ao pai pode não ser fora de propósito considerar aqui por que os povos no início em geral determinaram este regime que embora a superioridade do pai talvez pudesse ter suscitado a primeira instituição de algumas comunidades sociais e ter colocado no início o poder nas mãos de uma só pessoa porém é evidente que a razão que manteve a forma de governo sobre uma só pessoa não foi qualquer estima ou respeito à autoridade paterna pois todas as pequenas monarquias ou seja quase todas as monarquias que ainda estão em seu início permanecem em geral pelo menos em certas circunstâncias eletivas 107 No começo então na origem do mundo a autoridade do pai durante a infância dos seus descendentes habituouos ao comando de um só homem e ensinoulhes que quando este era exercido com solicitude e habilidade com afeição e amor para com aqueles que lhe eram submissos isso bastava para proporcionar aos homens toda a felicidade política que eles buscavam em sociedade Não admira que eles se estabelecessem e prosseguissem naquela forma de governo a que desde sua infância estavam acostumados e que por experiência consideravam tranqüila e segura Se a isso acrescentarmos que a monarquia se apresentou simples e clara a homens que nunca haviam sido instruídos em formas de governo e a quem jamais a ambição ou a insolência do poder havia ensinado a se precaver contra as usurpações da prerrogativa ou as inconveniências do poder absoluto que este regime sucessivamente se arriscava a reivindicar e lhes impor não é de se estranhar que eles não se preocupassem em descobrir procedimentos que contivessem quaisquer exorbitâncias por parte daqueles a quem escolheram para seus chefes e equilibrassem o poder do governo repartindoo entre diferentes mãos Eles não haviam conhecido a opressão de uma dominação tirânica e o espírito da época suas possessões ou seu modo de vida que proporcionavam pouca substância para a cobiça ou para a ambição também não lhes dava razão para temêla ou prevenila por isso não surpreende que eles tenham se submetido a um governo cuja estrutura não somente era a mais simples e a mais clara mas também a mais adequada a seu atual estado e condição que os instava muito mais a se defender contra as invasões e as depredações do estrangeiro que a multiplicar as leis A igualdade de um modo de vida simples e modesto confinando seus desejos dentro dos limites da pequena propriedade de cada homem despertava poucas controvérsias e por isso não havia necessidade de muitas leis para decidilas ou uma variedade de funcionários para dirigir o processo ou cuidar da execução da justiça visto não haver delitos ou delinqüentes Pois devese supor que naquela época aqueles que se quisessem bem o bastante para se reunir em sociedade deviam ter alguma familiaridade e amizade uns pelos outros alguma confiança mútua e não deveriam ter apreensões a não ser a respeito de estranhos não um do outro por isso imaginase que sua principal preocupação fosse como se colocarem ao abrigo de forças estrangeiras Era natural que se submetessem a uma estrutura de governo que melhor atingisse este resultado e escolhessem o homem mais sábio e mais corajoso para comandálos em suas guerras protegêlos contra seus inimigos e sobretudo dessa maneira se tornar seu chefe 108 Vemos assim que os reis dos índios da América que é o modelo das primeiras épocas na Ásia e na Europa quando havia muito poucos habitantes para o território e a ausência de pessoas e de dinheiro não davam aos homens a tentação de ampliar sua posse de terra ou de lutar por uma extensão maior são pouco mais que generais de seus exércitos e embora tenham o comando absoluto na guerra no interior de seu país e em tempo de paz exercem uma dominação muito pequena e têm uma soberania muito moderada as decisões sobre paz e guerra em geral cabem ao povo ou a um conselho Somente a guerra que não admite pluralidade de dirigentes devolve naturalmente o comando à autoridade única do rei 109 Mesmo em Israel a principal função de seus juízes e de seus primeiros reis parece ter sido a de capitães de guerra e comandantes de seus exércitos isto além do que significa estar ou não à frente do povo que era marchar para a guerra e voltar para casa na liderança de seus exércitos aparece claramente na história de Jefté Quando os amonitas lutavam contra Israel os galaditas atemorizados enviaram uma delegação a Jefté um bastardo de sua família que eles haviam expulso e fizeram com ele um acordo em que se comprometiam a fazer dele seu chefe se ele os ajudasse contra os amonitas Cumpriram o acordo com as seguintes palavras E o povo o nomeou chefe e comandante Juízes 1111 o que ao que parece era função do juiz Ele foi juiz de Israel Juízes 127 ou seja foi seu comandantegeral durante seis anos Quando Jotão censura os siquemitas e lhes recorda sua Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 65 dívida para com Gedeão que foi seu juiz e seu chefe ele lhes diz que Ele lutou por vós arriscou sua vida por vós e vos salvou das mãos de Madiã Juízes 917 Nenhuma palavra a seu respeito exceto sobre o que fez como general e na verdade isso é tudo o que existe em sua história ou naquela do restante dos juízes Abimelec em particular é chamado de rei embora ele tivesse sido no máximo seu general E quando o povo de Israel cansado da má conduta dos filhos de Samuel desejou um rei como todas as nações para julgálos e para marchar à sua frente e travar as suas batalhas 1Sm 820 Deus concordou com seu desejo e disse a Samuel Eu te mandarei um homem e tu o ungirás como chefe do meu povo de Israel para que ele o salve das mãos dos filisteus 916 Como se a única tarefa de um rei fosse conduzir seus exércitos e lutar em sua defesa em conformidade com isso na coroação de Saul Samuel verte sobre ele um frasco de óleo e lhe declara que o Senhor te ungiu como chefe de sua herança 101 Por isso depois de Saul ter sido solenemente escolhido e aclamado rei pelas tribos em Masfa aqueles que não o queriam como rei não fizeram outra objeção senão esta Como este homem vai nos salvar versículo 27 isto significava dizer Este homem não é capaz de reinar sobre nós pois lhe falta competência e firmeza na guerra para poder nos defender E quando Deus resolveu transferir o governo a Davi usou as seguintes palavras Mas agora o teu reinado não se manterá O Senhor buscou nele um homem segundo o seu próprio coração e o Senhor lhe mandou que fosse o capitão de Seu povo 1314 como se toda a autoridade real consistisse em lhe servir de general por isso quando as tribos que haviam permanecido fiéis à família de Saul e se opunham ao reino de Davi foram até Hebron para lhe oferecer sua submissão afirmaram entre outras justificativas que deviam se submeter a ele porque ele já era seu rei de fato na época de Saul e portanto não havia motivo para não reconhecerem sua realeza agora Disseram Já há tempo quando Saul reinava sobre nós foste tu o iniciador e o executor dos grandes feitos de Israel e o Senhor te disse Tu alimentarás meu povo de Israel e tu serás o capitão de Israel 2Sm 52 110 Assim se uma família se desenvolveu por graus até se tornar uma comunidade civil e a autoridade paterna foi mantida na pessoa do filho mais velho tendo cada um por sua vez crescido sob ela tacitamente a ela se submeteu este sistema simples e justo não ofendia ninguém e todos concordaram até que o tempo parece tê lo confirmado em instituir um direito de sucessão por preceito ou quando várias famílias ou os descendentes de várias famílias que o acaso a vizinhança ou os negócios juntaram e uniram em uma sociedade viu surgir a necessidade de um general cuja conduta pudesse defendêlos contra seus inimigos na guerra e a grande confiança que a inocência e sinceridade dessa época pobre mas virtuosa como são quase todas aquelas que iniciam governos destinados a uma existência durável neste mundo depositava em seus semelhantes incitaram os primeiros fundadores das comunidades civis a geralmente depositar o poder nas mãos de um só homem sem qualquer outra limitação ou restrição expressas exceto o exigido pela natureza da coisa e pelo objetivo do governo Seja por qual dessas duas razões for que inicialmente o poder foi confiado a uma só pessoa o certo é que isso só ocorreu tendo em vista o bemestar e a segurança públicos e aqueles que detinha m o poder no início das comunidades civis serviam habitualmente a este propósito Se eles não tivessem agido assim as jovens sociedades não teriam subsistido Sem tais pais carinhosos e preocupados com o bemestar público todos os governos teriam afundado na fragilidade e nas fraquezas de sua infância e príncipe e povo teriam logo perecido juntos 111 Mas a idade do ouro antes que a vã ambição e o amor sceleratus habendi a concupiscência maldosa corrompesse os espíritos dos homens em uma ilusão de poder e honra verdadeiros possuía mais virtudes e conseqüentemente melhores governantes e também súditos menos viciosos por um lado não se forçava a prerrogativa para oprimir o povo por outro conseqüentemente não se contestava qualquer privilégio seja para diminuir ou para restringir o poder do magistrado e portanto nenhuma disputa havia entre os chefes e o povo sobre os governantes ou o governo90 Nas épocas seguintes a ambição e o luxo iriam manter e aumentar o poder sem executar a tarefa que lhe havia sido destinada e auxiliados pela lisonja esses vícios ensinaram os príncipes a ter interesses distintos e separados daqueles de seus povos e os homens acharam necessário examinar mais 90 No início após a aprovação desta ou daquela forma particular de regime pode ser que nada mais tenha sido considerado com respeito à maneira de governar mas que tudo tenha sido deixado a cargo da sabedoria e do discernimento daqueles que deviam comandar até o dia em que por experiência descobriram que esse sistema era muito inconveniente para todas as partes pois a coisa que eles haviam imaginado como uma solução na verdade apenas aumentou o ferimento que ela devia ter curado Perceberam que a causa de toda a miséria dos homens foi terem vivido segundo a vontade de um só homem Isso os obrigou a estabelecer leis que fazem com que cada um conheça previamente seu dever e as penas previstas para sua transgressão Hooker Eccl Pol liv i sec 10 CLUBE DO LIVRO LIBERAL cuidadosamente a origem e os direitos do governo e descobrir maneiras de conter as exorbitâncias e evitar os abusos daquele poder que tendo confiado às mãos de outro apenas pensando em seu próprio interesse perceberam que era utilizado para lhes causar mal 112 Vemos assim como é provável que o povo naturalmente livre e por seu próprio consentimento submetido ao comando de seu pai ou reunido a partir de diferentes famílias para instituir um governo tenha em geral depositado o poder nas mãos de um só homem e optado por ficar submisso à vontade de uma única pessoa sem ao menos estabelecer condições expressas que limitassem ou regulassem seu poder pois consideravamse seguros sob a guarda de sua prudência e de sua honestidade Apesar disso as pessoas jamais sonharam que a monarquia fosse jure divino o que a humanidade só começou a ouvir falar quando nos foi revelado pela divindade da época contemporânea nem jamais permitiram que o poder paterno tivesse um direito de dominação ou ser a base de todo governo Isso deve bastar para mostrar que tanto quanto a história esclarece temos razão para concluir que todos os governos iniciados pacificamente foram fundamentados no consentimento do povo Eu digo pacificamente porque adiante terei ocasião de falar em conquista que alguns consideram como uma maneira de iniciar os governos A outra objeção que alguns insistem em fazer contra a maneira como explico o início da política é a seguinte 113 Todos os homens nasceram sob um ou outro tipo de governo portanto é impossível que jamais tenham sido livres e tenham tido a liberdade de se unir e fundar um novo governo ou tenham sido capazes de instituir um governo legítimo Se este argumento é válido eu pergunto como tantas monarquias legítimas se formaram no mundo Partindose desta hipótese se alguém puder me mostrar um único homem em qualquer época da história do mundo livre para iniciar uma monarquia legítima eu me junto a ele para mostrar na mesma época dez outros homens livres para se unirem e iniciarem um novo governo sob a forma real ou sob qualquer outra Isto demonstra que a partir do momento em que se encontra um único homem que nascido sob a autoridade de outro suficientemente livre para adquirir o direito de comandar outros em um império novo e distinto todos os homens que nasceram sob a autoridade de outro podem da mesma forma ser livres e se tornarem um governante ou um súdito em um governo distinto e separado Assim segundo seu próprio princípio todos os homens são livres não importa sua condição de nascimento ou só existiria no mundo um único príncipe legítimo um único governo legítimo Então só lhes resta nos mostrar qual é ele e quando o fizerem não duvido que toda a humanidade facilmente concordará em obedecerlhe 114 Embora bastasse responder a sua objeção para mostrar que ela os envolve nas mesmas dificuldades em que se perderam aqueles contra os quais eles a utilizaram eu me esforçarei para revelar um pouco mais da fragilidade deste argumento Todos os homens dizem eles nasceram sob governo e por isso não podem ter a liberdade de iniciar um novo Cada um nasce súdito de seu pai ou de seu príncipe e está por isso sob o vínculo perpétuo da submissão e da obediência Os homens jamais admitiram nem reconheceram que uma submissão natural deste gênero que os obrigasse a este ou aquele desde o nascimento fosse suscetível de se perpetuar sem o seu consentimento como uma submissão a eles e a seus herdeiros 115 A história sacra e profana está repleta de exemplos de homens que se afastaram e retiraram sua obediência da jurisdição sob a qual nasceram e da família ou comunidade onde foram criados e instituíram novos governos em outros locais isso explica o surgimento daquelas inúmeras pequenas comunidades sociais no início dos tempos e que sempre se multiplicaram enquanto havia espaço bastante até que os mais fortes ou os mais afortunados absorvessem os mais fracos depois aquelas que eram grandes se fragmentaram e se desagregaram em domínios menores todos eles testemunhando contra a soberania paterna e provando claramente que não foi sobre o direito natural do pai a seus herdeiros que os governos no início se fundamentaram pois seria impossível que partindose daí houvessem tantos pequenos reinados só haveria uma monarquia universal se os homens não Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 67 tivessem tido a liberdade de se separar de suas famílias e de seu governo fosse o que fosse que estivesse estabelecido para constituir comunidades civis distintas e outros governos como melhor lhes aprouvesse 116 Esta foi a prática do mundo desde suas origens até os dias de hoje quando os homens nascem sob sistemas constituídos e antigos que possuem leis estabelecidas e formas definidas de governo isso não coloca mais obstáculo a sua liberdade do que se tivessem nascido nas florestas entre os habitantes que as percorrem sem territórios proibidos ou caminhos traçados Aqueles que quisessem nos convencer de que por termos nascido sob qualquer governo estamos naturalmente submetidos a ele e não temos mais qualquer direito ou pretensão à liberdade do estado de natureza não têm outra razão com exceção daquela do poder paterno que já refutamos para apresentar exceto aquela de que nossos pais ou nossos ancestrais renunciaram a sua liberdade natural e se comprometeram e a sua família a uma sujeição perpétua ao governo a que se submeteram É verdade que todos os compromissos e todas as promessas que alguém faz por sua própria conta não obrigam nem poderiam obrigar por nenhum contrato a seus filhos ou sua posteridade Pois seu filho ao atingir a maioridade é tão livre quanto seu pai e nenhum ato do pai pode tirar a liberdade do filho o mesmo valendo para qualquer outra pessoa Ele pode vincular à terra que ele desfruta como súdito de uma comunidade civil condições que obriguem seu filho a se juntar à mesma comunidade se quiser desfrutar daquelas posses que eram de seu pai pois como aquele bem é propriedade de seu pai ele pode dispor dele ou doálo como bem entender 117 E isso normalmente tem ocasionado erro na questão pois como as comunidades civis não permitem que qualquer parte de seus domínios seja desmembrada ou desfrutada por ninguém que não pertença àquela comunidade o filho em geral não pode desfrutar das posses de seu pai exceto nas condições em que este o fez ou seja tornandose um membro da sociedade assim fazendo submetese imediatamente ao governo que ali encontra estabelecido da mesma forma que qualquer outro súdito daquela comunidade Assim os homens livres que nascem sob um governo não podem se tornar membros da comunidade a menos que consintam nisso mas o fazem em separado cada um por sua vez à medida que atingem a maioridade e não em conjunto mas como as pessoas não têm conhecimento disso acreditando que o consentimento está implícito ou não é necessário concluem que são súditos por natureza assim como são homens 118 Entretanto é evidente que os governos entendem isso de outra maneira não reivindicam nenhum poder sobre o filho em virtude daquele que exercem sobre o pai não consideram os filhos como seus súditos porque os pais o eram Se um súdito da Inglaterra tem um filho com uma mulher inglesa na França de quem ele é súdito Não do rei da Inglaterra porque ele deve obter uma autorização que lhe confere o privilégio nem do rei da França senão como seu pai pode ter a liberdade de leválo embora e criálo onde quiser E quem jamais será julgado como traidor ou desertor se ele deixou um país ou lutou contra ele ape nas por ter nascido nele de pais que ali eram estrangeiros A prática dos próprios governos e a lei da razão plena estabelecem então claramente que uma criança não nasce súdito de nenhum país ou governo Permanece sob a tutela e a autoridade de seu pai até que atinja a idade do discernimento e só a partir daí ele é um homem livre com liberdade para escolher o governo ao qual vai se submeter o corpo político ao qual vai se unir Se o filho de um homem inglês nascido na França pode fazêlo com toda a liberdade é evidente que a circunstância de seu pai ser súdito do reino da Inglaterra absolutamente não o vincula a este país nem ele está obrigado por qualquer pacto realizado por seus ancestrais Perguntase então por que seu filho não teria direito à mesma liberdade nascesse onde nascesse O poder que o pai exerce naturalmente sobre seus filhos é o mesmo independente do lugar de seu nascimento e os vínculos das obrigações naturais não são determinados pelos limites jurídicos dos reinados e das comunidades civis 119 Como já foi mostrado todo homem é naturalmente livre e nada pode submetêlo a qualquer poder sobre a terra salvo por seu próprio consentimento é preciso portanto considerar em que condições a declaração pela qual um indivíduo faz conhecer seu consentimento será considerada como suficiente para sujeitálo às leis de um governo qualquer Há uma distinção comum entre consentimento expresso e consentimento tácito que nos interessa no momento Ninguém duvida que o consentimento expresso manifestado por qualquer homem ao entrar em qualquer sociedade faz dele um membro perfeito daquela sociedade um súdito daquele governo A CLUBE DO LIVRO LIBERAL dificuldade é saber em que caso é preciso admitir a existência de um consentimento tácito e até que ponto obriga isto é em que medida se pode considerar que um indivíduo consentiu em um governo qualquer e assim está a ele submetido se ele não prestou qualquer declaração nesse sentido A isto eu respondo que qualquer homem que tenha qualquer posse ou desfrute de qualquer parte dos domínios de qualquer governo manifesta assim seu consentimento tácito e enquanto permanecer nesta situação é obrigado a obedecer as leis daquele governo como todos os outros que lhe estão submetidos pouco importa se ele possui terras em plena propriedade transmissíveis para sempre a seus herdeiros ou se ele ocupa somente um alojamento por uma semana ou se desfruta simplesmente da liberdade de ir e vir nas estradas e na verdade isso acontece ainda que ele seja apenas qualquer um dentro dos territórios daquele governo 120 Para melhor entender esta questão uma consideração se impõe cada vez que um homem se incorpora a qualquer comunidade civil pelo simples fato dele se associar também anexou e submete à comunidade aquelas posses que ele tem ou vai adquirir que ainda não pertencem a qualquer governo pois seria uma contradição direta que alguém entrasse em sociedade com outros para assegurar e regulamentar a propriedade mas que suas terras cuja propriedade deve ser regida pelas leis da sociedade estejam fora da jurisdição daquele governo do qual ele próprio o proprietário da terra é um súdito Pelo mesmo ato portanto pelo qual alguém une sua pessoa que antes era livre a qualquer comunidade social ele une também a ela suas posses que antes eram livres e ambos pessoa e posse tornamse sujeitos ao governo e ao domínio daquela comunidade social enquanto ela durar Quem quer que por herança aquisição autorização ou qualquer outra maneira desfrutar de qualquer parte da terra anexada e sob a jurisdição do governo daquela comunidade deve assumila nas condições em que ela está apoiada ou seja deve submeterse ao governo da comunidade social sob cuja jurisdição ela se encontra como qualquer outro súdito 121 Mas como o governo tem uma jurisdição direta apenas sobre a terra e só atinge seu dono antes dele se incorporar à sociedade quando ele reside nela e dela desfruta a obrigação que qualquer indivíduo tem de se submeter ao governo em virtude deste uso da terra começa e termina com ele de forma que quando o dono seja por doação venda ou outro modo qualquer deixa a terra em questão tem liberdade de partir e se incorporar a qualquer outra comunidade social ou se unir a outras pessoas para iniciar uma nova comunidade in vacuis locis em qualquer parte do mundo onde encontrem um local livre e sem dono Entretanto aquele que por um acordo propriamente dito e qualquer declaração expressa deu seu consentimento para fazer parte de qualquer comunidade social está perpétua e indispensavelmente obrigado a ser e permanecer seu súdito e nunca poderá ficar de novo na liberdade do estado de natureza a menos que alguma calamidade provoque a dissolução do governo a que ele estava submetido ou que qualquer ato público o impeça de continuar sendo um de seus membros 122 A submissão às leis de qualquer país e a vida pacífica ao abrigo dos privilégios e da proteção que elas asseguram não fazem de um homem membro daquela sociedade Isto é apenas uma proteção que deve ser prestada àquele que penetra fora do estado de guerra nos territórios que pertencem a qualquer governo e em toda a extensão onde vigoram suas leis Mas isso não torna um homem membro daquela sociedade súdito perpétuo daquela comunidade social assim como não tornaria um homem súdito de outro em cuja família ele achou conveniente permanecer algum tempo entretanto durante a duração dessa temporada seria obrigado a se comportar de acordo com as leis vigentes e se submeter ao governo ali encontrado Podemos ver que os estrangeiros que passam sua vida inteira sob um outro governo e gozam de seus privilégios e de sua proteção são obrigados ainda que por uma questão de consciência a se submeter a sua administração como qualquer outro cidadão mas nem por isso se tornam súditos ou membros daquela comunidade social Nada poderia tornálo a menos que ele entrasse efetivamente nela por meio de um compromisso especial e de uma promessa e um acordo explícitos Esta é a minha opinião sobre o início das sociedades políticas e sobre o consentimento que torna qualquer um membro de uma comunidade social seja ela qual for Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 69 CAPÍTULO IX DOS FINS DA SOCIEDADE POLÍTICA E DO GOVERNO 123 Se o homem é tão livre no estado de natureza como se tem dito se ele é o senhor absoluto de sua própria pessoa e de seus bens igual aos maiores e súdito de ninguém por que renunciaria a sua liberdade a este império para sujeitarse à dominação e ao controle de qualquer outro poder A resposta é evidente ainda que no estado de natureza ele tenha tantos direitos o gozo deles é muito precário e constantemente exposto às invasões de outros Todos são tão reis quanto ele todos são iguais mas a maior parte não respeita estritamente nem a igualdade nem a justiça o que torna o gozo da propriedade que ele possui neste estado muito perigoso e muito inseguro Isso faz com que ele deseje abandonar esta condição que embora livre está repleta de medos e perigos contínuos e não é sem razão que ele solicita e deseja se unir em sociedade com outros que já estão reunidos ou que planeja m se unir visando a salvaguarda mútua de suas vidas liberdades e bens o que designo pelo nome geral de propriedade 124 Por isso o objetivo capital e principal da união dos homens em comunidades sociais e de sua submissão a governos é a preservação de sua propriedade O estado de natureza é carente de muitas condições Em primeiro lugar ele carece de uma lei estabelecida fixada conhecida aceita e reconhecida pelo consentimento geral para ser o padrão do certo e do errado e também a medida comum para decidir todas as controvérsias entre os homens Embora a lei da natureza seja clara e inteligível para todas as criaturas racionais como os homens são tendenciosos em seus interesses além de ignorantes pela falta de conhecimento deles não estão aptos a reconhecer o valor de uma lei que eles seriam obrigados a aplicar em seus casos particulares 125 Em segundo lugar falta no estado de natureza um juiz conhecido e imparcial com autoridade para dirimir todas as diferenças segundo a lei estabelecida Como todos naquele estado são ao mesmo tempo juízes e executores da lei da natureza e os homens são parciais no julgamento de causa própria a paixão e a vingança se arriscam a conduzilos a muitos excessos e violência assim como a negligência e a indiferença podem também diminuir seu zelo nos casos de outros homens 126 Em terceiro lugar no estado de natureza freqüentemente falta poder para apoiar e manter a sentença quando ela é justa assim como para impor sua devida execução Aqueles que são ofendidos por uma injustiça dificilmente se absterão de remediála pela força se puderem esta resistência muitas vezes torna o castigo perigoso e fatal para aqueles que o experimentam 127 Assim apesar de todos os privilégios do estado de natureza a humanidade desfruta de uma condição ruim enquanto nele permanece procurando rapidamente entrar em sociedade É muito raro encontrarmos homens em qualquer número permanecendo um tempo apreciável nesse estado As inconveniências a que estão expostos pelo exercício irregular e incerto do poder que cada homem possui de punir as transgressões dos outros faz com que eles busquem abrigo sob as leis estabelecidas do governo e tentem assim salvaguardar sua propriedade É isso que dispõe cada um a renunciar tão facilmente a seu poder de punir porque ele fica inteiramente a cargo de titulares nomeados entre eles que deverão exercêlo conforme as regras que a comunidade ou aquelas pessoas por ela autorizadas adotaram de comum acordo Aí encontramos a base jurídica inicial e a gênese dos poderes legislativo e executivo assim como dos governos e das próprias sociedades 128 No estado de natureza sem falar da liberdade que tem de desfrutar prazeres inocentes o homem detém dois poderes O primeiro é fazer o que ele acha conveniente para sua própria preservação e para aquela dos outros dentro dos limites autorizados pela lei da natureza em virtude desta lei comum a todos cada homem forma com o resto da humanidade uma única comunidade uma única sociedade distinta de todas as outras CLUBE DO LIVRO LIBERAL criaturas E não fosse a corrupção e os vícios de indivíduos degenerados não haveria nenhuma necessidade dos homens se separarem desta grande comunidade natural nem fazerem acordos particulares para se associarem em associações menores e divididas O outro poder que o homem tem no estado de natureza é o poder de punir os crimes cometidos contra aquela lei A ambos ele renuncia quando se associa a uma sociedade política privada se posso chamála assim ou particular para se incorporar a uma comunidade civil separada do resto da humanidade 129 O primeiro poder ou seja aquele de fazer o que julga conveniente para a sua própria preservação e a do resto da humanidade ele deixa a cargo da sociedade para que ela o regulamente através de leis na medida em que isto se faça necessário para a sua preservação e a do restante daquela sociedade estas leis da sociedade em muitos pontos restringem a liberdade que ele possuía pela lei da natureza 130 Ao segundo o poder de punir ele renuncia inteiramente e empenha sua força natural que antes podia empregar como bem entendesse por sua própria autoridade para fazer respeitar a lei da natureza para ajudar o poder executivo da sociedade conforme a lei deste exigir Ele se encontra agora em um novo estado onde vai desfrutar de muitas vantagens graças ao trabalho a assistência e à companhia de outros na mesma comunidade assim como a proteção da força coletiva ele também tem de renunciar a grande parte de sua liberdade natural de prover suas necessidades em toda a medida em que o bem a prosperidade e a segurança da sociedade o exigir o que não somente é necessário mas justo visto que os outros membros da sociedade fazem o mesmo 131 Mas embora os homens ao entrarem na sociedade renunciem à igualdade à liberdade e ao poder executivo que possuíam no estado de natureza que é então depositado nas mãos da sociedade para que o legislativo deles disponha na medida em que o bem da sociedade assim o requeira cada um age dessa forma apenas com o objetivo de melhor proteger sua liberdade e sua propriedade pois não se pode supor que nenhuma criatura racional mude suas condições de vida para ficar pior e não se pode jamais presumir que o poder da sociedade ou o poder legislativo por ela instituído se estenda além do bem comum ele tem a obrigação de garantir a cada um sua propriedade remediando aqueles três defeitos acima mencionados que tornam o estado de natureza tão inseguro e inquietante Seja quem for que detenha o poder legislativo ou o poder supremo de uma comunidade civil deve governar através de leis estabelecidas e permanentes promulgadas e conhecidas do povo e não por meio de decretos improvisados por juízes imparciais e íntegros que irão decidir as controvérsias conforme estas leis e só deve empregar a força da comunidade em seu interior para assegurar a aplicação destas leis e no exterior para prevenir ou reparar as agressões do estrangeiro pondo a comunidade ao abrigo das usurpações e da invasão E tudo isso não deve visar outro objetivo senão a paz a segurança e o bem público do povo CAPÍTULO X DAS FORMAS DA COMUNIDADE CIVIL 132 Já foi mostrado que quando os homens se unem pela primeira vez em sociedade a maioria detém naturalmente todo o poder comunitário que ela pode utilizar para de tempos em tempos fazer leis para a comunidade e para providenciar o cumprimento destas leis por funcionários por ela nomeados neste caso a forma de governo é uma democracia perfeita mas ela pode também colocar o poder de fazer as leis nas mãos de um grupo selecionado de homens e de seus herdeiros ou sucessores e então tratase de uma oligarquia pode também colocálo nas mãos de um só homem o que vem a ser uma monarquia se ela o entrega a este homem e a seus herdeiros é uma monarquia hereditária se o entrega a ele apenas em vida e após sua morte retorna a ela o Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 71 poder exclusivo de nomear um sucessor é uma monarquia eletiva A partir desses elementos a comunidade pode combinar e misturar formas de governo como melhor lhe parecer Se a maioria começa por confiar o poder legislativo a uma só pessoa ou a várias mas apenas durante sua vida ou por um período determinado após o qual o poder supremo a ela retorna uma vez que a comunidade o recuperou pode dispor dele de novo e colocálo nas mãos que lhe aprouverem e assim constituir uma nova forma de governo Como a forma de governo depende da atribuição do poder supremo ou seja do legislativo é impossível conceber que um poder inferior possa prescrever a um superior ou que um outro além do poder supremo faça as leis a maneira de dispor o poder de fazer as leis determina a forma da comunidade civil 133 Deve estar sempre claro que o que eu entendo por comunidade social não é uma democracia ou qualquer forma de governo mas uma comunidade independente que os latinos qualificam pela palavra civitas à qual a expressão que melhor corresponde em nossa língua é comunidade social commonwealth que designa da forma mais adequada este tipo de sociedade humana o que não acontece em inglês com as palavras comunidade ou cidade pois pode haver comunidades subordinadas em um governo e cidade entre nós tem um significado completamente diferente de comunidade civil Por isso para evitar ambigüidade solicito a permissão de empregar a expressão comunidade civil nesse sentido a qual constato ter sido utilizada pelo Rei James I e que eu penso ser a acepção exata se alguém discordar consinto que a substitua por um termo melhor CAPÍTULO XI DA EXTENSÃO DO PODER LEGISLATIVO 134 O grande objetivo dos homens quando entram em sociedade é desfrutar de sua propriedade pacificamente e sem riscos e o principal instrumento e os meios de que se servem são as leis estabelecidas nesta sociedade a primeira lei positiva fundamental de todas as comunidades políticas é o estabelecimento do poder legislativo como a primeira lei natural fundamental que deve reger até mesmo o próprio legislativo é a preservação da sociedade e na medida em que assim o autorize o poder público de todas as pessoas que nela se encontram O legislativo não é o único poder supremo da comunidade social mas ele permanece sagrado e inalterável nas mãos em que a comunidade um dia o colocou nenhum edito seja de quem for sua autoria a forma como tenha sido concebido ou o poder que o subsidie tem a força e a obrigação de uma lei a menos que tenha sido sancionado pelo poder legislativo que o público escolheu e nomeou Pois sem isso faltaria a esta lei aquilo que é absolutamente indispensável para que ela seja uma lei ou seja o consentimento da sociedade acima do qual ninguém tem o poder de fazer leis91 exceto por meio do seu próprio consentimento e pela autoridade que dele emana Por isso toda a obediência que pode ser exigida de alguém mesmo em virtude dos vínculos mais solenes termina afinal neste poder supremo e é dirigida por aquelas leis que ele adota jamais um membro da sociedade pelo efeito de um juramento que o ligaria a qualquer poder estrangeiro ou a qualquer poder subordinado na ordem interna pode ser dispensado de sua obediência ao legislativo e agir por sua própria conta da mesma forma também não é obrigado a qualquer obediência contrária às leis adotadas ou que ultrapasse seus termos seria ridículo imaginar que um poder que não é o poder supremo na sociedade possa se impor a quem quer que seja 91 Como o poder legítimo de legislar para comandar sociedades humanas inteiras pertence como propriedade particular a estas mesmas sociedades em sua totalidade cada vez que um príncipe ou um potentado da terra seja de que espécie for o exerce por sua própria iniciativa e não por delegação expressa imediata e pessoalmente recebida de Deus ou por qualquer mandato que emana desde o início do consentimento daqueles sobre os quais ele legisla isso não é melhor que uma mera tirania Portanto as leis não têm valor se não recebem a aprovação pública Hooker Eccl Pol liv i sec 10 Sobre este ponto então devemos observar que tais homens não têm por natureza o poder completo e perfeito para comandar multidões humanas inteiras e por isso não poderemos depender das ordens de ninguém se de alguma maneira não consentirmos nisso Nós aceitamos ser comandados quando a sociedade de que fazemos parte consentiu ela própria em qualquer época passada sem revogar depois este consentimento através do mesmo acordo universal As leis humanas sejam de que tipo forem podem portanto ser adotadas através do consentimento Hooker ibid CLUBE DO LIVRO LIBERAL 135 O poder legislativo é o poder supremo em toda comunidade civil quer seja ele confiado a uma ou mais pessoas quer seja permanente ou intermitente Entretanto Primeiro ele não é exercido e é impossível que seja exercido de maneira absolutamente arbitrária sobre as vidas e sobre as fortunas das pessoas Sendo ele apenas a fusão dos poderes que cada membro da sociedade delega à pessoa ou à assembléia que tem a função do legislador permanece forçosamente circunscrito dentro dos mesmos limites que o poder que estas pessoas detinham no estado de natureza antes de se associarem em sociedade e a ele renunciaram em prol da comunidade social Ninguém pode transferir para outra pessoa mais poder do que ele mesmo possui e ninguém tem um poder arbitrário absoluto sobre si mesmo ou sobre qualquer outro para destruir sua própria vida ou privar um terceiro de sua vida ou de sua propriedade Foi provado que um homem não pode se submeter ao poder arbitrário de outra pessoa por outro lado no estado de natureza o poder que um homem pode exercer sobre a vida a liberdade ou a posse de outro jamais é arbitrário reduzindose àquele a ele investido pela lei da natureza para a preservação de si próprio e do resto da humanidade esta é a medida do poder que ele confia e que pode confiar à comunidade civil e através dela ao poder legislativo que portanto não pode ter um poder maior que esse Mesmo considerado em suas maiores dimensões o poder que ela detém se limita ao bem público da sociedade92 136 Segundo O legislativo ou autoridade suprema não pode arrogar para si um poder de governar por decretos arbitrários improvisados mas se limitar a dispensar a justiça e decidir os direitos do súdito através de leis permanentes já promulgadas93 e juízes autorizados e conhecidos Como a lei da natureza não é uma lei escrita e não pode ser encontrada em lugar algum exceto nas mentes dos homens aqueles que a paixão ou o interesse incitam a mal citála ou a mal empregála não podem ser tão facilmente convencidos de seu erro na ausência de um juiz estabelecido Por isso ela não serve como deveria para determinar os direitos e delimitar as propriedades daqueles que vivem sob sua submissão especialmente onde cada um é também seu juiz intérprete e executor e além disso em causa própria aquele que tem o direito do seu lado não dispõe em geral senão de sua energia pessoal que não tem força suficiente para defendêlo das injustiças ou para punir os delinqüentes Para evitar esses inconvenientes que desorganizam suas posses no estado de natureza os homens reuniramse em sociedades em que eles dispõem da força conjunta de toda a sociedade para proteger e defender suas propriedades e que eles podem delimitar segundo regras permanentes que permitem a cada um saber o que lhe pertence Foi com esta finalidade que os homens renunciaram a todo o seu poder natural e o depuseram nas mãos da sociedade em que se inseriram e a comunidade social colocou o poder legislativo nas mãos que lhe pareceram as mais adequadas ela o encarregou também de governálos segundo leis promulgadas sem as quais sua paz sua tranqüilidade e seus bens permaneceriam na mesma precariedade que no estado de natureza 137 O poder absoluto arbitrário ou governo sem leis estabelecidas e permanentes é absolutamente incompatível com as finalidades da sociedade e do governo aos quais os homens não se submeteriam à custa da liberdade do estado de natureza senão para preservar suas vidas liberdades e bens e graças a regras que definissem expressamente o direito e a propriedade Não se pode supor que eles pretendessem caso tivessem um poder para isso conceder a uma ou mais pessoas um poder arbitrário absoluto sobre suas pessoas e bens ou colocar as forças nas mãos do magistrado 92 As sociedades públicas repousam sobre duas fundações a primeira é uma inclinação natural pela qual todo homem deseja a vida social e a companhia a segunda é uma ordem estabelecida em termos expressos ou secretos que regulamenta as modalidades de sua união na vida comumEsta última constitui o que chamamos de direito de uma comunidade social a verdadeira alma de um corpo político do qual este direito anima e mantém unidos os elementos e os coloca em funcionamento em todas as atividades requeridas pelo bem público As leis políticas regidas por uma ordem e uma organização externas entre os homens nunca são estruturadas como deveriam a menos que se presumisse que a vontade do homem fosse intimamente obstinada rebelde e adversa a qualquer obediência às leis sagradas de sua natureza em resumo a menos que se presumisse que o homem considerado por seu espírito depravado não valesse mais que um animal selvagem apesar disso as leis prevêem disposições próprias para orientar externamente os atos humanos a fim de que eles não prejudiquem o bem comum em vista do qual as sociedades são instituídas Do contrário elas não seriam perfeitas Hooker Eccl Pol liv i sec 10 93 As leis humanas desempenham o papel de critérios com respeito aos homens cujas ações elas regulamentam mas estes critérios não são submetidos a regulamentos mais altos que regem sua apreciação estas leis são duas a lei de Deus e a lei da natureza portanto as leis humanas devem estar de acordo com as leis gerais da natureza e não contradizer nenhuma lei positiva da Escritura senão elas estão mal feitas Hooker Eccl Pol liv iii sec 9 Constranger os homens a atos inconvenientes parece irracional ibid liv i sec 10 Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 73 para que ele arbitrariamente fizesse valer sua vontade sobre eles Isto significaria colocaremse em uma situação pior que no estado de natureza onde tinham a liberdade de defender seus direitos contra as injustiças dos outros e se encontravam em igualdade de forças para mantêlos contra as tentativas de indivíduos isolados ou de grupos numerosos Pois supondose que eles houvessem se entregado ao poder e à vontade arbitrários e absolutos de um legislador estariam eles próprios desarmados e o teriam armado para que ele fizesse deles sua presa quando assim o quisesse O indivíduo exposto ao poder arbitrário de um único homem que tem cem mil sob suas ordens encontrase em uma situação muito pior que aquele exposto ao poder arbitrário de cem mil homens isolados ninguém pode garantir que a vontade daquele que detém tal comando é melhor que aquela de outros homens embora sua força seja cem mil vezes mais forte Por isso seja qual for a forma de comunidade civil a que se submetam o poder que comanda deve governar por leis declaradas e aceitas e não por ordens extemporâneas e resoluções imprecisas A humanidade estará em uma condição muito pior do que no estado de natureza se armar um ou vários homens com o poder conjunto de uma multidão para forçálos a obedecer os decretos exorbitantes e ilimitados de suas idéias repentinas ou a sua vontade desenfreada e manifestada no último momento sem que algum critério tenha sido estabelecido para guiálos em suas ações e justificálas Pois todo o poder que o governo detém visando apenas o bem da sociedade não deve seguir o arbitrário ou a sua vontade mas leis estabelecidas e promulgadas deste modo tanto o povo pode conhecer seu dever e fica seguro e protegido dentro dos limites da lei quanto os governantes mantidos dentro dos seus devidos limites não ficarão tentados pelo poder que detêm em suas mãos e não o utilizarão para tais propósitos nem por medidas desconhecidas do povo e contrárias a sua vontade 138 Terceiro O poder supremo não pode tirar de nenhum homem qualquer parte de sua propriedade sem seu próprio consentimento Como a preservação da propriedade é o objetivo do governo e a razão por que o homem entrou em sociedade ela necessariamente supõe e requer que as pessoas devem ter propriedade senão isto faria supor que a perderam ao entrar em sociedade aquilo que era seu objetivo que as fez se unirem em sociedade ou seja um absurdo grosseiro demais que ninguém ousaria sustentar Visto que os homens que vivem em sociedade são proprietários têm o direito de possuir todos os bens que lhe pertencem em virtude da lei da comunidade social dos quais ninguém tem o direito de priválos ou de qualquer parte deles sem seu próprio consentimento sem isso eles não são proprietários de nada Eu realmente não tenho nenhum direito de propriedade sobre aquilo que outra pessoa pode por direito tomar de mim quando lhe aprouver sem o meu consentimento Por isso é um erro acreditar que o poder supremo ou legislativo de qualquer comunidade social possa fazer o que ele desejar e dispor arbitrariamente dos bens dos súditos ou tomar qualquer parte delas como bem entender Isso não deve ser muito temido em governos em que o legislativo consiste inteiramente ou em parte de assembléias de composição variável e cujos membros quando elas são dissolvidas retornam à condição de súditos e estão sujeitos da mesma forma que o restante das pessoas às leis comuns de seu país Mas em governos em que o poder legislativo reside em uma assembléia permanente ou em um único homem como nas monarquias podese sempre recear que eles creiam ter um interesse distinto do resto da comunidade e então sejam capazes de aumentar suas próprias riquezas e seu poder tomando do povo o que mais lhes convier Pois a propriedade do homem só está absolutamente segura se houver leis boas e justas que estabeleçam os limites entre ela e aquelas de seus vizinhos e se aquele que comanda estes súditos não tiver poder para tomar de qualquer indivíduo a parte que lhe aprouver de sua propriedade usandoa e dela dispondo a seu belprazer 139 Como já foi mostrado seja quem for a pessoa em cujas mãos está depositado o governo como este só lhe foi confiado sob condição e para um fim preciso ou seja que todos os homens podem continuar donos de seus bens com toda segurança o príncipe o senado ou seja quem for que tenha o poder de fazer as leis para a regulamentação da propriedade entre os súditos jamais tem o poder de tomar para si o conjunto ou qualquer parte da propriedade dos súditos sem seu próprio consentimento Isto equivaleria a priválos de toda propriedade E para nos garantirmos que mesmo o poder absoluto quando é necessário não é arbitrário apesar de absoluto mas há sempre razões que o limitam e finalidades que os circunscrevem as mesmas que requereram que em alguns casos ele fosse absoluto não temos de considerar senão a prática usual da disciplina militar A preservação do exército que deve garantir aquela de toda a comunidade social requer uma absoluta obediência às ordens de todo oficial superior e quem desobedecer ou contestar os mais perigosos ou os mais imoderados dentre eles merece a morte entretanto o sargento que poderia ordenar um soldado a marchar até à boca de um canhão ou a ficar em uma brecha onde sua morte é quase certa não pode ordenar que aquele soldado lhe dê um CLUBE DO LIVRO LIBERAL centavo de seu dinheiro nem o general que o condena à morte por desertar de seu posto ou por desobedecer as ordens mais desesperadas pode com todo o seu poder absoluto de vida e de morte dispor de um níquel dos bens daquele soldado ou se apoderar do mais insignificante dos objetos que lhe pertence entretanto poderia lhe dar qualquer ordem e mandar prendêlo à menor desobediência Porque tal obediência cega é necessária aos objetivos para os quais o chefe militar tem seu poder ou seja a preservação do restante das pessoas mas o direito de dispor de seus bens se situa em outro plano completamente diferente 140 É verdade que os governos não poderiam subsistir sem grandes encargos e é justo que todo aquele que desfruta de uma parcela de sua proteção contribua para a sua manutenção com uma parte correspondente de seus bens Entretanto mais uma vez é preciso que ela mesma dê seu consentimento ou seja que a maioria consinta seja por manifestação direta ou pela intermediação de representantes de sua escolha se qualquer um reivindicar o poder de estabelecer impostos e impôlos ao povo por sua própria autoridade e sem tal consentimento do povo está assim invadindo a lei fundamental da propriedade e subvertendo a finalidade do governo Como posso me dizer proprietário de algo que outra pessoa possa por direito tomar quando bem entender 141 Quarto O poder legislativo não pode transferir para quaisquer outras mãos o poder de legislar ele detém apenas um poder que o povo lhe delegou e não pode transmitilo para outros Só o povo pode estabelecer a forma de comunidade social o que faz instituindo o poder legislativo e designando aqueles que devem exercêlo E quando o povo disse que queremos nos submeter a regras e ser governados por leis feitas por tais pessoas seguindo tais formas ninguém pode dizer que outras pessoas diferentes legislarão por elas nem o povo pode ser obrigado a obedecer quaisquer leis exceto aquelas promulgadas por aqueles a quem ele escolheu e autorizou para fazer as leis em seu nome 142 Eis os limites que impõe ao poder legislativo de toda sociedade civil sob todas as formas de governo a missão de confiança da qual ele foi encarregado pela sociedade e pela lei de Deus e da natureza Primeiro Ele deve governar por meio de leis estabelecidas e promulgadas e se abster de modificálas em casos particulares a fim de que haja uma única regra para ricos e pobres para o favorito da corte e o camponês que conduz o arado Segundo Estas leis só devem ter uma finalidade o bem do povo Terceiro O poder legislativo não deve impor impostos sobre a propriedade do povo sem que este expresse seu consentimento individualmente ou através de seus representantes E isso diz respeito estritamente falando só àqueles governos em que o legislativo é permanente ou pelo menos em que o povo não tenha reservado uma parte do legislativo a representantes que eles mesmos elegem periodicamente Quarto O legislativo não deve nem pode transferir para outros o poder de legislar e nem também depositálo em outras mãos que não aquelas a que o povo o confiou CAPÍTULO XII DOS PODERES LEGISLATIVO EXECUTIVO E FEDERATIVO DA COMUNIDADE CIVIL 143 O poder legislativo é aquele que tem competência para prescrever segundo que procedimentos a força da comunidade civil deve ser empregada para preservar a comunidade e seus membros Entretanto como Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 75 basta pouco tempo para fazer aquelas leis que serão executadas de maneira contínua e que permanecerão indefinidamente em vigor não é necessário que o legislativo esteja sempre em funcionamento se não há trabalho a fazer e como pode ser muito grande para a fragilidade humana a tentação de ascender ao poder não convém que as mesmas pessoas que detêm o poder de legislar tenham também em suas mãos o poder de executar as leis pois elas poderiam se isentar da obediência às leis que fizeram e adequar a lei a sua vontade tanto no momento de fazêla quanto no ato de sua execução e ela teria interesses distintos daqueles do resto da comunidade contrários à finalidade da sociedade e do governo Por isso nas comunidades civis bem organizadas onde se atribui ao bem comum a importância que ele merece confiase o poder legislativo a várias pessoas que se reúnem como se deve e estão habilitadas para legislar seja exclusivamente seja em conjunto com outras mas em seguida se separam uma vez realizada a sua tarefa ficando elas mesmas sujeitas às leis que fizeram isto estabelece um vínculo novo e próximo entre elas o que garante que elas façam as leis visando o bem público 144 Mas como as leis que são feitas num instante e um tempo muito breve permanecem em vigor de maneira permanente e durável e é indispensável que se assegure sua execução sem descontinuidade ou pelo menos que ela esteja pronta para ser executada é necessário que haja um poder que tenha uma existência contínua e que garanta a execução das leis à medida em que são feitas e durante o tempo em que permanecerem em vigor Por isso freqüentemente o poder legislativo e o executivo ficam separados 145 Em toda comunidade civil existe um outro poder que se pode chamar de natural porque corresponde ao que cada homem possuía naturalmente antes de entrar em sociedade Mesmo que os membros de uma comunidade civil permaneçam pessoas distintas em suas referências mútuas e como tais sejam governados pelas leis da sociedade em referência ao resto da humanidade eles formam um corpo único e este corpo permanece no estado de natureza em referência ao resto da humanidade como cada um de seus membros estava anteriormente Isso explica que as controvérsias que surgirem entre qualquer homem da sociedade e aqueles que a ela não pertencem sejam administradas pelo público e que um dano causado a um membro daquela comunidade implica em que todo o conjunto seja obrigado a reparar Assim sob este ponto de vista a comunidade toda é um corpo único no estado da natureza com respeito a todos os outros estados ou a todas as outras pessoas que não pertençam a sua comunidade 146 Este poder tem então a competência para fazer a guerra e a paz ligas e alianças e todas as transações com todas as pessoas e todas as comunidades que estão fora da comunidade civil se quisermos podemos chamá lo de federativo Uma vez que se compreenda do que se trata pouco me importa o nome que receba 147 Estes dois poderes executivo e federativo embora sejam realmente distintos em si o primeiro compreendendo a execução das leis internas da sociedade sobre todos aqueles que dela fazem parte e o segundo implicando na administração da segurança e do interesse do público externo com todos aqueles que podem lhe trazer benefícios ou prejuízos estão quase sempre unidos E ainda que este poder federativo faça ele uma boa ou má administração apresente uma importância muito grande para a comunidade civil ele se curva com muito menos facilidade à direção de leis preexistentes permanentes e positivas por isso é necessário que ele seja deixado a cargo da prudência e da sabedoria daqueles que o detêm e que devem exercêlo visando o bem público As leis que dizem respeito aos súditos entre eles uma vez destinadas a reger seus atos é melhor que os precedam Mas a atitude adotada diante dos estrangeiros depende em grande parte de seus atos e da flutuação de seus projetos e interesses portanto devem ser deixados em grande parte à prudência daqueles a quem foi confiado este poder a fim de que eles o exerçam com o melhor de sua habilidade para o benefício da comunidade civil 148 Embora como eu disse os poderes executivo e federativo de cada comunidade sejam realmente distintos em si dificilmente devem ser separados e colocados ao mesmo tempo nas mãos de pessoas distintas e como ambos requerem a força da sociedade para o seu exercício é quase impraticável situar a força da comunidade civil em mãos distintas e sem elo hierárquico ou que os poderes executivo e federativo sejam CLUBE DO LIVRO LIBERAL confiados a pessoas que possam agir separadamente isto equivaleria a submeter a força pública a comandos diferentes e resultaria um dia ou outro em desordem e ruína CAPÍTULO XIII DA HIERARQUIA DOS PODERES DA COMUNIDADE CIVIL 149 Em uma sociedade política organizada que se apresenta como um conjunto independente e que age segundo sua própria natureza ou seja que age para a preservação da comunidade só pode existir um poder supremo que é o legislativo ao qual todos os outros estão e devem estar subordinados não obstante como o legislativo é apenas um poder fiduciário e se limita a certos fins determinados permanece ainda no povo um poder supremo para destituir ou alterar o legislativo quando considerar o ato legislativo contrário à confiança que nele depositou pois todo poder confiado como um instrumento para se atingir um fim é limitado a esse fim e sempre que esse fim for manifestamente negligenciado ou contrariado isto implica necessariamente na retirada da confiança voltando assim o poder para as mãos daqueles que o confiaram que podem depositálo de novo onde considerarem melhor para sua proteção e segurança Deste modo a comunidade permanece perpetuamente investida do poder supremo de se salvaguardar contra as tentativas e as intenções de quem quer que seja mesmo aquelas de seus próprios legisladores sempre que eles forem tão tolos ou tão perversos para preparar e desenvolver projetos contra as liberdades e as propriedades dos súditos Nenhum homem nenhuma sociedade humana tem o poder de abandonar sua preservação e conseqüentemente os meios de garantila à vontade absoluta de um terceiro e a sua dominação arbitrária e sempre que algum indivíduo pretender reduzilos a uma condição de escravidão devem ter o direito de preservar este bem inalienável e de se livrarem daquele que invade esta lei fundamental sagrada e inalterável de autopreservação que foi a causa de sua associação Partindo se deste princípio podese dizer que a comunidade tem sempre o poder supremo mas contanto que não seja considerada submissa a qualquer forma de governo porque o povo jamais pode exercer este poder antes do governo ser dissolvido 150 Em todo caso enquanto o governo subsistir o legislativo é o poder supremo pois aquele que pode legislar para um outro lhe é forçosamente superior e como esta qualidade de legislatura da sociedade só existe em virtude de seu direito de impor a todas as partes da sociedade e a cada um de seus membros leis que lhes prescrevem regras de conduta e que autorizam sua execução em caso de transgressão o legislativo é forçosamente supremo e todos os outros poderes pertençam eles a uma subdivisão da sociedade ou a qualquer um de seus membros derivam dele e lhe são subordinados 151 Em algumas comunidades civis em que o legislativo nem sempre existe e o executivo está investido em uma única pessoa que tem também uma participação no legislativo aquele personagem único em um sentido bem tolerável pode ser também chamado de supremo Isto não significa que ele detenha em si todo o poder supremo que é aquele de legislar mas porque detém em si a execução suprema de onde todos os magistrados inferiores derivam todos os seus vários poderes subordinados ou pelo menos grande parte deles além disso não existindo poder legislativo que lhe seja superior porque não se pode fazer nenhuma lei sem seu consentimento e ele jamais concordaria em se submeter a outra parte do legislativo neste sentido ele é realmente supremo Não obstante devese observar que embora lhes sejam prestados juramentos de obediência e fidelidade estes não lhe são dirigidos como legislador supremo mas na sua qualidade de executor supremo de uma lei que é obra de um poder que ele detêm em conjunto com outros como a submissão consiste na obediência conforme as leis quando ele as infringe não tem direito à obediência nem pode reivindicála a não ser em razão de sua qualidade de personagem público investido da autoridade da lei e que se apresenta como a imagem da comunidade civil como seu fantasma ou como seu representante impulsionado pela vontade da sociedade declarada em suas leis ele não tem qualquer vontade ou qualquer poder exceto aquele da lei Mas quando ele deixa de lado esta Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 77 representação esta vontade pública e age por vontade própria ele se degrada e não passa de um indivíduo isolado sem poder e sem vontade e a partir daí os membros só devem obediência à vontade pública da sociedade 152 Quando o poder executivo é depositado nas mãos de uma única pessoa que também tem uma participação no legislativo está visivelmente subordinado a este e dele depende podendo ser à vontade substituído ou alterado não é então o poder executivo supremo que está isento de subordinação mas o poder executivo supremo investido em uma só pessoa que tendo uma participação no legislativo não está subordinado a nenhum legislativo distinto e superior nem tem de lhe prestar contas salvo na medida em que ele mesmo o aceite e consinta neste caso podese então concluir que ele só está subordinado ao que julga bom o que será muito pouco Quanto aos outros poderes ministeriais e subordinados de uma comunidade civil nem precisamos falar a respeito pois eles se multiplicam com uma variedade tão infinita nos diferentes costumes e constituições de comunidades civis distintas que é impossível a referência individual a todos eles No que lhes diz respeito basta destacar uma única característica essencial para o nosso propósito ou seja que nenhuma dentre elas se estenda além da competência que lhe foi delegada em virtude de uma concessão e um mandato expressos e todas devem prestar contas a algum outro poder na comunidade civil 153 Não é necessário nem mesmo conveniente que o poder legislativo seja permanente Mas a existência do poder executivo é absolutamente necessária pois nem sempre há a necessidade de serem feitas novas leis mas é sempre necessária a aplicação das leis existentes Mesmo que o poder legislativo deposite em outras mãos a execução das leis por ele feitas ainda mantém o poder de retomálo em caso de necessidade e de punir uma administração ilegal O mesmo ocorre com o poder federativo que juntamente com o executivo é auxiliar e subordinado ao legislativo este como já mostramos é o poder supremo em uma comunidade civil organizada Supõese também neste caso que o legislativo é composto de várias pessoas pois se fosse uma única pessoa não podia ser permanente e por isso sendo supremo teria naturalmente o poder executivo supremo e também o legislativo que podem se reunir e legislar nas ocasiões determinadas por sua constituição fundamental na data que elas isoladamente fixarem ou ainda quando melhor lhes parecer no caso de não haver uma data predeterminada para isso ou outra forma prescrita de convocálo Como o povo confiou o poder supremo a estas pessoas elas sempre permanecem investidas dele e podem exercêlo quando assim o desejarem a menos que por sua constituição fundamental estejam limitadas a determinadas ocasiões ou elas não tenham fixado uma data por um ato de seu poder supremo em qualquer dos casos quando chega a data marcada elas têm o direito de se reunir e retomar sua atividade 154 Se o poder legislativo ou qualquer de seus elementos se compuser de representantes que o povo escolheu por um período determinado e que depois deste retornam para o estado original de súditos e só têm participação no legislativo se forem escolhidos outra vez é preciso também que o povo proceda a essa escolha seja em ocasiões predeterminadas ou quando for para isso convocado neste último caso o poder de convocar o legislativo está ordinariamente depositado nas mãos do executivo e tem uma destas duas limitações com respeito à ocasião que a constituição fundamental requeira sua reunião e atuação a intervalos determinados e o poder executivo então se contenta apenas com um papel auxiliar que consiste em dar as diretrizes para sua eleição e reunião nas devidas formas ou que se deixe a cargo de seu bomsenso requisitálo por novas eleições quando as ocasiões ou as exigências do público requererem a emenda de antigas leis ou a criação de novas ou ainda quando forem exigidas soluções ou formas de prevenir de quaisquer inconvenientes de sua responsabilidade ou que ameacem o povo 155 Podese questionar aqui o que acontecerá se o poder executivo que detém a força da comunidade civil se utilizar dessa força para impedir que o poder legislativo se reúna e atue quando a constituição fundamental ou as necessidades da vida pública o requererem Eu respondo que o fato de se servir da força contra o povo sem autoridade e indo de encontro à confiança depositada no autor de ato equivale por si só a entrar em guerra contra o povo que tem o direito de restaurar seu poder legislativo no exercício de seu poder Se o povo instituiu um legislativo é porque ele exerce o poder de fazer leis seja a uma data precisa e fixada de antemão seja em caso de necessidade cada vez que uma força qualquer impede o poder legislativo de prestar à CLUBE DO LIVRO LIBERAL sociedade um serviço assim necessário o povo cuja segurança e preservação estão em jogo tem o direito de destituílo pela força Em todos os estados e em todas as condições o verdadeiro recurso contra a força exercida sem autoridade é oporse a ela pela força O uso da força sem autoridade sempre coloca quem a usa em um estado de guerra como o agressor o que lhe permite receber como resposta o mesmo tratamento 156 O poder de reunir e destituir o legislativo confiado ao executivo não concede a este nenhuma superioridade mas define uma missão de confiança da qual ele é encarregado para garantir a segurança das pessoas em um caso em que a incerteza e a mutabilidade dos problemas humanos não podem se acomodar dentro de uma regra fixada Era impossível aos primeiros arquitetos dos governos mesmo que tentassem prever o futuro exercer sobre os acontecimentos futuros um controle suficiente para serem capazes de fixar de antemão e definitivamente o momento da eleição periódica e a duração das reuniões do legislativo de uma maneira judiciosa e correspondendo exatamente a todas as necessidades da comunidade civil a melhor solução que se conseguiu encontrar para este mal foi confiar no bomsenso de um personagem que estaria sempre presente e cuja tarefa seria velar pelo bem público Se o poder legislativo se reunisse a breves intervalos e prolongasse suas sessões sem necessidade isso não podia ser senão oneroso para o povo e necessariamente provocaria inconvenientes mais perigosos por outro lado os acontecimentos por vezes sofriam bruscamente uma tal alteração que era preciso apelar para a sua ajuda Qualquer atraso em sua convocação podia comprometer a segurança pública e às vezes também havia tanto a fazer que o tempo limitado de suas sessões corria o risco de ser muito curto para a execução da tarefa e privar o povo do benefício que somente uma deliberação madura poderia proporcionar Nesse caso o que poderia ser feito para impedir que a regularidade dos intervalos que separam as sessões do legislativo e a fixação da duração de seus trabalhos não expusessem a comunidade cedo ou tarde a algum perigo iminente aqui ou ali senão confiando na prudência de um personagem cuja presença constante e seu conhecimento dos negócios públicos tornasse capaz do uso desta prerrogativa para o bem público E que melhor escolha que a de confiála a quem já estava encarregado da execução das leis para o mesmo fim Assim supondose que a regulamentação das ocasiões para as reuniões e sessões do legislativo não seria estabelecida pela constituição fundamental ela recairia naturalmente nas mãos do executivo não como um poder arbitrário e dependente do seu belprazer mas com o encargo de sempre exercer esta função visando o interesse do público segundo as exigências do momento e a evolução dos acontecimentos Quanto a determinar que métodos apresentam menos inconveniências se a periodicidade das sessões do legislativo a liberdade deixada ao príncipe de convocálo ou talvez uma mistura de ambos não cabe a mim aqui inquirir mas apenas mostrar que embora o poder executivo possa ter a prerrogativa de convocar e dissolver tais convenções do legislativo ainda assim não lhe é superior 157 As coisas do mundo seguem um fluxo tão constante que nada permanece muito tempo no mesmo estado Assim o povo as riquezas o comércio o poder mudam suas estações cidades poderosas e prósperas se transformam em ruínas e se transformam em locais abandonados e desolados enquanto outros locais ermos se transformam em países populosos repletos de riquezas e habitantes Entretanto nem sempre a evolução segue um ritmo igual e o interesse privado freqüentemente mantém costumes e privilégios depois de desaparecida a sua razão de ser e em seguida em governos em que o poder legislativo se compõe em parte de representantes escolhidos pelo povo esta representação se torna muito desigual e desproporcional às razões que a haviam de início instituído Para ver a que absurdos grosseiros nos arriscamos a chegar ao permanecermos fiéis ao costume basta constatar que o simples nome de uma cidade da qual não restam nem mesmo as ruínas e onde no máximo encontramos um redil como habitação e no máximo um pastor como habitante pode enviar tantos representantes à grande assembléia dos legisladores quanto um condado inteiro que possui uma numerosa população e inúmeras riquezas Diante disso os estrangeiros ficam estupefatos e todo mundo admite que é preciso encontrar uma solução mas a maioria acha difícil encontrar uma pois como a constituição do legislativo é o ato fundamental e supremo da sociedade antecedente em si a todas as leis positivas e inteiramente dependente do povo nenhum poder inferior pode modificálo Em um governo como este de que falamos em que o povo após ter estabelecido o legislativo não tem mais o poder de agir enquanto o governo subsistir o mal parece sem solução Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 79 158 A regra salus populi suprema lex é certamente tão justa e fundamental que aquele que a segue com sinceridade não corre um risco grande de errar Por isso se o executivo que tem o poder de convocar o legislativo considerar a representação em suas proporções verdadeiras e não suas modalidades acidentais e se regulamentar pela razão objetiva e não pelos antigos costumes para determinar o número dos eleitos de cada uma das localidades que enviam representantes privilégio ao qual uma parte do povo mesmo associado não poderia pretender senão na medida de sua contribuição ao bem público esta decisão não tem de modo algum por efeito a instauração de um poder legislativo novo ao contrário ela restaura o poder legislativo antigo o verdadeiro e corrige os defeitos que com o passar do tempo vão sendo introduzidos de maneira insensível mas inevitável Como é interesse e intenção do povo ter uma representação honesta e justa aquele que realiza melhor este ideal se conduz certamente como o fundador do governo e como seu amigo e não poderia deixar de obter o consentimento e a aprovação da comunidade Uma vez que a prerrogativa não é senão um poder nas mãos do príncipe para promover o bem público naqueles casos que dependendo de acontecimentos imprevistos e incertos teria sido muito perigoso submeter a leis imperativas e imutáveis Todo ato que tem manifestamente por objetivo o bem do povo e o estabelecimento do governo sobre suas verdadeiras bases é e sempre será uma prerrogativa justa O poder de criar novas coletividades e por conseguinte novos representantes supõe que o número de representantes pode variar com o tempo que localidades que não tinham o direito de se fazer representar podem adquirilo e outros que o possuíam podem perdêlo se vêm a se tornar muito insignificantes para merecer esse privilégio Não é a transformação da situação atual provocada talvez pela corrupção ou pelo declínio que causa um dano sério ao governo mas sua tendência para prejudicar ou oprimir o povo e de isolar uma parte ou uma facção dele para discriminála e sujeitála injustamente ao resto Tudo o que não pode ser reconhecido como vantajoso para a sociedade e para o povo em geral segundo critérios justos e duradouros encontrará sempre em si próprio sua justificativa e sempre que o povo escolher seus representantes por meio de medidas justas e inegavelmente eqüitativas convenientes à estrutura original do governo não se pode duvidar de que foram a vontade e o ato da sociedade que o permitiram ou propuseram fazêlo CAPÍTULO XIV DA PREROGATIVA 159 Quando os poderes legislativo e executivo se encontram em mãos distintas assim como em todas as monarquias moderadas e governos bem estruturados o bem da sociedade exige que várias coisas fiquem a cargo do discernimento daquele que detêm o poder executivo Como os legisladores são incapazes de prever e prover leis para tudo o que pode ser útil à comunidade o executor das leis possuindo o poder em suas mãos tem pela lei comum da natureza o direito de utilizálo para o bem da sociedade em casos em que a lei civil nada prescreve até que o legislativo possa convenientemente se reunir para preencher esta lacuna Há muitas coisas em que a lei não tem meios de desempenhar um papel útil é preciso então necessariamente deixálas a cargo do bomsenso daquele que detêm nas mãos o poder executivo para que ele as regulamente segundo o exigirem o bem público e suas vantagens Mais que isso convém às vezes que as próprias leis se retraiam diante do poder executivo ou antes diante da lei fundamental da natureza e do governo ou seja que tanto quanto possível todos os membros da sociedade devem ser preservados Muitos acidentes podem ocorrer quando a aplicação estrita e rígida da lei pode prejudicar como por exemplo absterse de demolir a casa de um homem que nada fez de mal para deter um incêndio quando a casa do vizinho está queimando às vezes por uma ação que pode merecer absolvição e recompensa um homem pode tombar sob o golpe da lei que não faz distinção das pessoas convém então que os governantes tenham o poder de atenuar a severidade da lei e perdoar alguns contraventores pois o governo tem por finalidade garantir a preservação de todos na medida do possível ainda que se poupem os culpados quando se pode provar que os inocentes não foram prejudicados 160 Este poder de agir discricionariamente em vista do bem público na ausência de um dispositivo legal e às vezes mesmo contra ele é o que se chama de prerrogativa Em alguns governos o poder encarregado de CLUBE DO LIVRO LIBERAL legislar não existe permanentemente e em geral é exercido por muitos e é muito lento em vista da celeridade exigida na execução além disso como também é impossível prever e portanto ter um provimento de leis para atender a todos os acidentes e todas as urgências que podem dizer respeito aos negócios públicos ou fazer leis que jamais se arrisquem a ser nefastas se aplicadas com um rigor inflexível em todas as circunstâncias a todas as pessoas que entram em seu campo de aplicação o poder executivo guarda por isso uma certa liberdade para realizar muitos atos discricionários que não estão previstos na lei 161 Quando este poder é exercido no interesse da comunidade e de modo adequado às responsabilidades e objetivos do governo tratase sem dúvida de prerrogativa e jamais é questionado É muito raro se é que chega a ocorrer que o povo manifeste escrúpulos ou rigor sobre este ponto ou chegue a questionar a prerrogativa quando ela é empregada de uma maneira mais ou menos aceitável em vista do fim a que é destinada ou seja o bem comum e não vise manifestamente prejudicálo Mas se houver uma contestação entre o poder executivo e o povo a propósito de qualquer coisa reivindicada como prerrogativa a tendência do exercício de tal prerrogativa para o bem ou o mal do povo decidirá facilmente a questão 162 É fácil imaginar que no início dos governos quando as comunidades civis pouco diferiam das famílias quanto ao número de pessoas também pouco diferiam delas quanto ao número de leis e como os governantes atuavam quase como pais e velavam pelo seu bemestar o governo se identificava quase inteiramente com a prerrogativa Poucas leis estabelecidas serviam aos seus propósitos e o discernimento e a cautela do governante supriam o resto Mas quando o erro ou a lisonja persuadiu alguns príncipes a utilizar este poder para fins privados que só interessavam a eles mesmos e não ao bem público o povo reclamou leis expressas para circunscrever a prerrogativa naqueles pontos onde a considerava desvantajosa proclamou então os limites da prerrogativa nos casos em que considerou necessário que ele e seus ancestrais haviam deixado em toda a amplitude a cargo da sabedoria daqueles príncipes que dela não fizeram um uso correto ou seja visando o bem público 163 As pessoas que dizem que o povo abusou da prerrogativa quando a fez definir sobre um ponto qualquer por leis positivas têm uma idéia muito falsa de governo Pois agindo assim ele não tirou do príncipe nada que lhe pertencesse por direito mas apenas declarou que aquele poder que havia deixado indefinidamente em suas mãos ou nas de seus ancestrais para ser exercido para o bem do povo deixava de lhe ser destinado uma vez que o estava utilizando de outra maneira Como o objetivo do governo é o bem da comunidade as modificações feitas visando este objetivo não podem ser um atentado aos direitos de ninguém em um governo ninguém pode invocar um direito que se incline a um outro fim Os únicos abusos são aqueles que prejudicam ou entravam o bem público Aqueles que dizem o contrário falam como se o príncipe tivesse um interesse distinto e separado do bem da comunidade eis a razão e a fonte de onde procedem quase todos os males e as desordens que acompanham os governos monárquicos Realmente se fosse assim o povo sob seu governo não seria uma sociedade de criaturas racionais que entraram em uma comunidade visando o bem comum mas deveria ser encarado como um rebanho de criaturas inferiores sob a dominação de um dono que os mantém e os faz trabalhar para ele para seu próprio prazer ou proveito Se os homens fossem tão desprovidos de razão e tão selvagens para entrar em sociedade em tais termos talvez como alguns o desejariam a prerrogativa pudesse na verdade ser um poder arbitrário para realizar atos que prejudicassem o povo 164 Mas desde que não se pode imaginar que uma criatura livre se submeta a outra para ser prejudicada embora quando ela encontrar um governante bom e sábio talvez possa não considerar necessário determinar limites precisos ao seu poder sobre todas as coisas a prerrogativa pode significar apenas a permissão que o povo concede a seus governantes para fazer várias coisas de sua própria livre escolha nas situações em que a lei for omissa e às vezes mesmo em contrário ao que reza o seu texto visando o bem público e com a consagração popular dos atos realizados nestas condições Um bom príncipe consciente da missão que lhe foi confiada e preocupado com o bem público não precisaria ter muita prerrogativa ou seja poder para fazer o bem enquanto um príncipe mau e fraco desejaria invocar o poder que seus antecessores exerciam sem a orientação da lei como uma prerrogativa pertencente a ele pelo direito do seu cargo que ele exerceria ao belprazer para atingir ou Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 81 promover um interesse distinto daquele do povo dando a este uma ocasião para fazer valer o seu direito e impor um limite a esse poder que ele aceitava autorizar tacitamente enquanto foi utilizado para o seu bem 165 Quem examinar a história da Inglaterra verá que a prerrogativa foi sempre maior nas mãos dos príncipes mais sábios e melhores porque o povo observando que a tendência geral de suas ações era o bem público não contestava o que era feito sem o respaldo legal ou se alguns desvios mínimos visando o bemestar público manifestavam alguma sombra de fragilidade ou erro humano uma vez que os príncipes são homens como todos os outros quando percebia que a principal intenção de sua conduta era a preocupação com o bem público Por isso como o povo tinha motivos para estar satisfeito com esses príncipes quando eles agiam sem o respaldo da lei ou mesmo contra ela aquiescia ao que faziam e sem qualquer queixa permitialhes ampliar sua prerrogativa o quanto quisessem julgando corretamente que eles nada fariam em prejuízo de suas leis desde que agissem em conformidade com a base e o objetivo de todas as leis que é o bem público 166 Na verdade quase deuses estes príncipes tinham algum direito de exercer um poder arbitrário invocando o argumento que quer provar que a monarquia absoluta é a melhor forma de governo pela qual Deus governa o universo porque esses reis participam de sua sabedoria e de sua bondade Sobre isso está baseado o ditado que diz que os reinados dos bons príncipes sempre têm sido mais perigosos para as liberdades de seu povo mas quando seus sucessores administrando o governo com idéias diferentes transformaram as ações daqueles bons governantes em precedentes e fizeram deles o padrão de sua prerrogativa como se aquilo que tivesse sido feito apenas visando o bem público fosse um direito implícito para prejudicar o povo se assim o desejassem isso freqüentemente ocasionou contestações e às vezes desordens públicas até que o povo pudesse recuperar seu direito original e declarar que aquilo não era uma prerrogativa e realmente nunca foi pois é impossível que alguém na sociedade possa ter o direito de prejudicar o povo mas é perfeitamente possível e razoável que o povo se abstenha de delimitar a prerrogativa daqueles reis ou governantes que não ultrapassaram os limites do bem público pois a prerrogativa nada mais é que o poder de realizar o bem público sem se basear em nenhuma regra 167 Na Inglaterra o poder de convocar os parlamentos assim como determinar sua data local e duração é certamente uma prerrogativa do rei mas ainda com esta confiança de que ele será exercido para o bem da nação como assim o requererem as exigências do momento e a diversidade das circunstâncias como é impossível prever quais seriam o local e a época mais adequados para reunilos sua escolha foi deixada a cargo do poder executivo do modo mais proveitoso ao bem público e mais conveniente aos objetivos dos parlamentos 168 No domínio da prerrogativa surge sempre a velha questão Quem julgará se este poder está sendo utilizado de modo legítimo Eu respondo Entre um poder executivo constituído detentor desta prerrogativa e um legislativo que depende da vontade daquele para se reunir não pode haver juiz na terra Como não pode existir ninguém entre o legislativo e o povo quando o executivo ou o legislativo que têm o poder em suas mãos planejam ou começam a escravizálo ou a destruílo Neste caso assim como em todos os outros casos em que não houver juiz na terra o povo não teria outro remédio senão apelar para o céu assim quando os governantes exercem um poder que o povo jamais lhes confiou pois nunca pensou em consentir que alguém pudesse governá lo visando o seu mal agem sem direito Quando o conjunto do povo ou um indivíduo isolado são privados de seu direito ou são submetidos ao exercício de um poder ilegal não dispondo de qualquer juiz para apelar na terra têm a liberdade de apelar ao céu quando acharem que a causa merece Por isso embora o povo não possa ser juiz por não possuir pela constituição daquela sociedade qualquer poder superior para dirimir e dar uma sentença efetiva no caso ele tem o direito concedido por uma lei antecedente e soberana a todas as leis positivas dos homens que lhe reserva a decisão final que pertence a todo homem quando ele não dispõe de nenhum recurso sobre a terra de julgar se tem justa causa para fazer seu apelo ao céu E ele não poderia renunciar a este julgamento pois nenhum homem tem o poder de se submeter a outro ao ponto de dar a este outro a liberdade de destruílo nem Deus nem a natureza jamais permitiram que um homem se abandonasse ao ponto de negligenciar sua própria preservação e assim como ele não pode destruir sua própria vida também não pode dar a ninguém o poder de fazêlo Ninguém deve pensar que isso vai servir como base perpétua para a desordem pois só entra em CLUBE DO LIVRO LIBERAL ação quando a situação estiver tão ruim que a maioria a perceba se canse e julgue necessário providenciar uma solução Mas o poder executivo ou os príncipes sábios jamais correrão este risco e é preciso que todos evitem isso ao máximo pois não existe nada no mundo mais perigoso CAPÍTULO XV DO PODER PATERNO POLÍTICO E DESPÓTICO CONSIDERADOS EM CONJUNTO 169 Embora eu já tenha tido a ocasião de falar desses poderes separadamente os grandes erros que há algum tempo têm sido cometidos a respeito do governo me parecem provir daqueles que os têm confundido entre si por isso talvez não seja fora de propósito aqui examinálos em conjunto 170 Em primeiro lugar o poder paterno ou parental nada mais é que aquele que os pais têm sobre seus filhos para governálos visando o seu bem até que eles atinjam o uso da razão ou um estado de entendimento em que possam ser considerados capazes de compreender a regra que deve reger sua atividade seja ela a lei da natureza ou a lei civil de seu país capazes quero dizer de compreendêla assim como a compreendem os outros homens livres que vivem submetidos a essa lei O afeto e a ternura que Deus implantou no coração dos homens em relação a seus filhos tornam evidente que este não pretende ser um governo arbitrário e severo mas apenas visando o auxílio a instrução e a preservação de sua descendência Mas aconteça o que acontecer como eu já provei nada autoriza a crer que ele conceda aos pais um direito de vida e de morte sobre seu filho ou sobre quem quer que seja nem que ele mantenha o filho quando crescer e já for um homem em um estado de dependência diante da vontade de seus pais salvo na medida em que a doação da vida e da educação que deles recebeu o obriga até à morte a respeitar seu pai e sua mãe a honrálos agradecerlhes assistilos e prover suas necessidades O governo paterno é portanto um governo natural mas não se estende aos mesmos objetivos e às mesmas competências do governo político o poder do pai não atinge toda a propriedade do filho da qual só ele próprio pode dispor 171 Em segundo lugar o poder político é aquele poder que todo homem detém no estado de natureza e abre mão em favor da sociedade e ali aos governantes que a sociedade colocou à sua frente impondolhes o encargo expresso ou tácito de exercer este poder para seu bem e para a preservação de sua propriedade Então este poder que todo homem tem no estado de natureza e que remete à sociedade em todos os casos em que a sociedade pode assegurálo é para que eles utilizem os meios que considerarem bons e que a natureza permitir para preservar sua propriedade e para infligir aos outros quando eles infringem a lei da natureza a punição que sua razão considerar mais adequada para garantir sua preservação e a de toda a humanidade Como a finalidade e a medida deste poder quando está nas mãos de cada homem no estado de natureza é a preservação de toda a sua sociedade ou seja de toda a humanidade em geral não pode ter outra finalidade ou medida quando está nas mãos dos magistrados senão preservar os membros daquela sociedade em suas vidas liberdades e posses e por isso não pode ser um poder absoluto e arbitrário sobre suas vidas e bens que devem ser preservados tanto quanto possível mas um poder de fazer leis e completálas por penalidades que sejam de natureza a assegurar a preservação do todo amputando aquelas partes e apenas aquelas cuja corrupção se torne uma ameaça para as partes saudáveis e idôneas pois a severidade só é legítima neste sentido E este poder procede apenas do pacto do acordo e do consentimento mútuo daqueles que compõem a comunidade 172 Em terceiro lugar o poder despótico é um poder absoluto e arbitrário que um homem tem sobre outro de lhe tirar a vida quando bem entender Este poder não é um dom da natureza pois ela não estabeleceu esta discriminação entre os homens e nem efeito de um contrato pois o homem não possuindo tal poder Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 83 arbitrário sobre sua própria vida não poderia conceder a outro homem tal poder mas é o efeito apenas do confisco que o agressor faz de sua própria vida quando se coloca em estado de guerra com qualquer outro Por este gesto põe de lado a razão que Deus deu aos homens para lhes servir de regra e de elo comum na unidade de uma mesma companhia e de uma mesma sociedade e tendo renunciado às vias pacíficas que a razão ensina e feito uso da força da guerra para atingir seus injustos objetivos às custas de um outro e sem direito a isso e assim insurgindose contra sua própria espécie e abraçando a condição dos animais selvagens pois como princípio de direito ele erige a força que lhes serve de regra tornase sujeito a ser destruído pela pessoa injuriada e pelo resto da humanidade que a ela se unirá na execução da justiça como qualquer outro animal selvagem ou besta nociva com quem a humanidade não pode conviver nem ter segurança Assim os prisioneiros capturados em uma guerra justa e legítima mas somente estes são submetidos a um poder despótico que não tem sua fonte em uma convenção nem é capaz de nenhuma exceto a continuação do estado de guerra Que contrato pode ser feito com um homem que não é dono de sua própria vida Que obrigação ele pode executar Entretanto desde que lhe seja permitido tornar a ser dono de sua vida o poder despótico e arbitrário de seu senhor cessa Aquele que é senhor de si mesmo e de sua própria vida tem também o direito aos meios de preservála assim uma vez que há contrato a escravidão cessa e aquele que faz um acordo com seu prisioneiro renuncia assim ao seu poder absoluto e põe fim ao estado de guerra 173 A natureza dá o primeiro destes poderes ou seja o pátrio poder aos pais no interesse de seus filhos durante a sua minoridade para suprir sua ausência de habilidades e sua falta de entendimento sobre como administrar sua propriedade É preciso que se saiba que aqui como em qualquer outra parte por propriedade eu entendo aquela que o homem tem sobre sua pessoa e não somente sobre seus bens Um acordo voluntário concede o segundo ou seja o poder político aos governantes para o benefício de seus súditos para garantilos na posse e no uso de suas propriedades E o confisco proporciona o terceiro o poder despótico aos senhores para seu próprio benefício sobre aqueles que são desprovidos de toda propriedade 174 Quem quer que examinar a gênese e a extensão características de cada um desses poderes assim como seus diferentes fins respectivos facilmente constata que o pátrio poder está longe de se igualar àquele do magistrado assim como o poder despótico os ultrapassa e que a dominação absoluta esteja onde estiver jamais poderia constituir uma categoria de sociedade civil pois exclui sua própria existência assim como a escravidão exclui aquela da propriedade O pátrio poder só existe quando a minoridade torna a criança incapaz de administrar sua propriedade o poder político quando os homens dispõem de sua propriedade e o poder despótico sobre aqueles que não possuem nenhuma propriedade CAPÍTULO XVI DA CONQUISTA 175 Embora os governos em sua origem não possam jamais se estabelecer de outra maneira que não aquela acima mencionada nem as sociedades políticas serem fundamentadas sobre outra coisa além do consentimento do povo a ambição provocou no mundo tantas desordens que no tumulto da guerra que compõe uma parte tão grande da história da humanidade este consentimento passa quase despercebido e por isso muitos têm confundido a força das armas com o consentimento do povo e consideram a conquista como uma das origens do governo Mas a conquista está longe de estabelecer qualquer governo assim como a demolição de uma casa está longe da construção de outra nova em seu lugar Na verdade ela freqüentemente abre caminho para a nova estrutura de uma comunidade civil ao destruir a antiga mas sem o consentimento do povo jamais poderá edificar uma nova CLUBE DO LIVRO LIBERAL 176 O agressor que se coloca em estado de guerra com outro homem injustamente invadindo o direito deste jamais extrairá de uma guerra injusta nenhum direito sobre sua conquista Facilmente concordarão com isso todos os homens que não acham que os ladrões e os piratas têm um direito de soberania sobre quem quer que seja que tenham dominado pela força ou que os homens sejam obrigados por promessas que o uso ilegal da força lhes extorquiu Se um ladrão invadir minha casa e com um punhal em minha garganta me obrigar a escrever um documento cedendolhe os meus bens isto lhe dá qualquer direito É justamente um direito deste gênero que possui o conquistador injusto que força a minha submissão com o poder da espada A injúria e o crime são iguais sejam eles cometidos por uma cabeça coroada ou por algum pequeno vilão Nem o título do ofensor nem o número de seus seguidores fazem diferença na infração a menos que seja para agravála A única diferença é que os grandes ladrões punem os pequenos para mantêlos em sua obediência enquanto os grandes são recompensados com lauréis e triunfos por serem grandes demais para as mãos frágeis da justiça deste mundo e são eles que têm nas mãos o poder que poderia punir os ofensores Que recurso posso ter contra um ladrão que invadiu a minha casa Apelar para a lei para obter justiça Mas talvez a justiça seja negada ou eu esteja ferido incapaz de me mover roubado e sem os meios para poder agir Se Deus retirou todos os meios de buscar recursos só resta a paciência Mas meu filho quando for capaz pode buscar o amparo da lei que me foi negado ele ou seu filho podem renovar seu apelo até que ele recupere seu direito Mas o conquistado ou seus filhos não têm tribunal ou árbitro na terra a quem apelar Então podem apelar ao céu como fez Jefté e repetir seu apelo até recuperarem o direito nativo de seus ancestrais ou seja o direito de colocar sobre eles um poder legislativo que a maioria aprove e aceite livremente Poderá ser objetado que isso provocaria um tumulto sem fim mas eu digo que bastaria que a justiça estivesse acessível a todos que apelam para ela Aquele que perturba sem motivo o repouso do seu vizinho é punido pelo tribunal a que este se dirige Aquele que apela ao céu deve estar certo de que tem o direito do seu lado e um direito também que vale o trabalho e o custo do processo pois ele vai responder diante de um tribunal que não pode ser enganado e sempre punirá cada um segundo os danos que tenham causado aos seus semelhantes ou seja uma parte qualquer da humanidade De onde se conclui evidentemente que aquele que conquista em uma guerra injusta não pode desse modo ter direito à submissão e à obediência do conquistado 177 Mas supondose que a vitória favoreça o lado certo consideremos o conquistador em uma guerra legal e vejamos que poder ele adquire e sobre quem Primeiro É evidente que por sua conquista ele não adquire poder sobre aqueles que conquistaram junto com ele Aqueles que lutaram a seu lado não podem sofrer pela conquista mas de vem no mínimo continuar homens tão livres quanto eram antes Muito freqüentemente eles servem sob contrato e com a condição de dividir com seu chefe a fim de desfrutar de uma parcela do saque e outras vantagens que acompanham a espada vencedora ou pelo menos ver atribuída a ele uma parte do país subjugado E espero que o povo vitorioso não se torne escravo da conquista e use seus lauréis apenas para mostrar que são sacrifícios ao triunfo de seu líder Aqueles que fundamentam a monarquia absoluta sobre o direito da espada transformam seus heróis que são os fundadores de tais monarquias em valentões consumados e se esquecem que eles tiveram oficiais e soldados que combateram a seu lado nas batalhas que venceram ou os auxiliaram na conquista ou repartiram a posse dos países que dominaram Alguns nos dizem que a monarquia inglesa deriva da conquista normanda e que nossos príncipes adquiriram dessa forma um direito à dominação absoluta o que se for verdade o que a história desmente e se Guilherme tinha justa causa de fazer guerra à nossa ilha sua dominação pela conquista só poderia se estender aos saxões e aos bretões que eram então os habitantes deste país Os normandos que vieram com ele e o ajudaram na conquista são juntamente com todos os seus descendentes homens livres e não súditos conquistados seja qual for o gênero de soberania que tenha resultado E se eu ou qualquer outro indivíduo reivindicarmos nossa liberdade argumentando que a derivamos deles será muito difícil provar o contrário É evidente que as leis que não estabelecem nenhuma distinção entre estas categorias de indivíduos não têm por objetivo instituir qualquer discriminação em sua liberdade e privilégios 178 Mas suponhamos o que raramente ocorre que os conquistadores e os conquistados nunca se associaram formando um povo sob as mesmas leis e liberdade Vamos ver agora que poder um conquistador legal tem sobre aqueles que conquistou eu digo que este poder é puramente despótico Ele tem um poder absoluto Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 85 sobre as vidas daqueles que por uma guerra injusta ficaram privados de mantêlas mas não tem poder sobre as vidas e os bens daqueles que não participaram da guerra e nem também sobre os bens daqueles que dela participaram ativamente 179 Segundo Eu digo neste caso que o conquistador só adquire o poder sobre aqueles que realmente ajudaram concorreram ou consentiram naquela força injusta que foi usada contra ele O povo jamais habilita seus governantes a cometer uma injustiça como por exemplo empreender uma guerra injusta pois o poder de realizar atos desse gênero jamais lhe pertenceu portanto não deve ser considerado culpado da violência e da injustiça que são cometidas em uma guerra injusta senão na medida em que ele realmente participou dela e não pode ser considerado culpado de qualquer violência ou opressão que seus governantes usassem sobre o próprio povo ou sobre uma parte de seus súditos uma vez que não autorizaram este abuso É verdade que os conquistadores raramente se dão ao trabalho de fazer a distinção mas eles de bom grado permitem que a confusão que acompanha a guerra arraste tudo com ela mas isso não altera em nada o direito pois a única razão pela qual o conquistador tem poder sobre as vidas daqueles que conquistou é ter utilizado a força para perpetrar uma injustiça e só poderá exercer tal poder sobre aqueles que participaram dessa utilização da força o restante é inocente e como o povo daquele país não lhe causou nenhum mal e não constituiu ameaça a sua vida ele não tem mais direitos sobre o povo daquele país do que tem sobre qualquer outro entre aqueles que viveram em bons termos com ele sem injúrias ou provocações 180 Terceiro O poder que um conquistador adquire sobre aqueles que ele venceu em uma guerra justa é perfeitamente despótico ele tem um poder absoluto sobre as vidas daqueles que colocandose em um estado de guerra tiveram este poder confiscado mas não tem por isso direito nem título sobre seus bens Eu não duvido que à primeira vista esta possa parecer uma doutrina estranha uma vez que contradiz completamente a prática do mundo nada mais familiar quando se fala da dominação de países do que dizer que alguém o conquistou como se a conquista por si só concedesse um direito de posse Mas quando consideramos que a prática daqueles que detêm a força e o poder por mais universal que ela possa ser raramente é a regra do direito embora faça parte da sujeição do conquistado não discutir as condições a ele impostas pela espada da conquista 181 Embora em toda guerra haja em geral uma complicação de força e prejuízos e raramente o agressor deixe de causar danos às propriedades quando ele usa a força contra as pessoas daqueles contra os quais ele luta é apenas o emprego dessa força que coloca um homem em estado de guerra Pouco importa se foi pela violência que ele deu início ao ato injusto ou se este foi perpetrado em silêncio e através da fraude se ele se recusa a qualquer reparação e o perpetua pela violência o que vem a ser a mesma coisa que utilizar a força desde o início é o uso injusto da força que faz uma guerra Aquele que invade a minha casa e violentamente me expulsa porta afora ou tendo entrado pacificamente em seguida me obriga a ficar do lado de fora na realidade faz a mesma coisa supondose que estamos em tal estado que não tenhamos um juiz comum na terra a quem possamos apelar e a cujas decisões ambos tenhamos de nos submeter é disso que falo agora deste uso injusto da força que coloca um homem contra outro em um estado de guerra e por isso é culpado do confisco de sua vida Como ele se afasta da razão ou seja da regra que rege os relacionamentos entre os homens e utiliza a violência à maneira dos animais selvagens fica sujeito a ser destruído por aquele contra o qual ele emprega a força como um animal selvagem que é perigoso para sua existência 182 Apesar dos erros dos pais não serem culpa dos filhos e eles poderem ser racionais e pacíficos não obstante a brutalidade e a injustiça do pai este com seus erros e sua violência pode confiscar apenas sua própria vida não envolvendo seus filhos em sua culpa ou destruição Seus bens de que a natureza tornou seus filhos proprietários para os impedir de perecer uma vez que ele deseja que a humanidade seja preservada em toda a medida do possível continuam a pertencer a seus filhos Supondose que eles não tenham participado da guerra seja pela pouca idade ou por uma questão de escolha nada fizeram que mereça o confisco desses bens e o conquistador não tem qualquer direito de se apossar deles pela simples invocação da vitória que obteve sobre aquele que tentou destruílo pela força embora ele talvez tenha algum direito a eles para reparar os danos causados pela guerra e na proteção de seus próprios direitos Em que medida isso atinge os bens do conquistado CLUBE DO LIVRO LIBERAL nós veremos a seguir Assim aquele que pela conquista tem o direito sobre a pessoa de um homem para destruí lo se assim o quiser não tem por isso um direito sobre seus bens para se apossar e desfrutar deles É a força brutal utilizada pelo agressor que dá ao seu adversário o direito de tirar sua vida e destruílo se quiser como se fosse uma criatura nociva mas só o dano continuado lhe dá o direito de se apossar dos bens do outro homem Embora eu possa matar um ladrão que me assalta na estrada não tenho o direito que parece menor de tirar seu dinheiro e deixálo ir embora isto me tornaria um ladrão Sua força e o estado de guerra em que se colocou fizeram com que ele perdesse o direito a sua vida mas não deu a mim o direito de assumir seus bens Então o direito de conquista se estende apenas às vidas daqueles que se associaram na guerra não a seus bens exceto para reparar os danos causados e os encargos da guerra e isso também sob reserva dos direitos da esposa e dos filhos inocentes 183 Mesmo que o conquistador tenha a justiça do seu lado como se poderia supor ele não tem o direito de se apoderar de mais do que o conquistado poderia ser confiscado sua vida está à sua mercê assim como seu serviço e os bens de que ele pode se apropriar para reparar os danos causados mas não pode se apropriar dos bens de sua esposa e dos seus filhos eles também têm direito aos bens de que ele desfrutava e à partilha da propriedade que possuía Por exemplo se eu causei um dano a outro homem no estado de natureza e todas as comunidades civis estão entre si no estado de natureza e como eu me recuso a reparar o mal ele se coloca no estado de guerra em que defendo pela força minhas aquisições injustas o que faz de mim o agressor Eu sou conquistado certamente minha vida está à mercê do conquistador mas não a de minha esposa e as de meus filhos Eles não fizeram a guerra nem ajudaram nela Eu não poderia confiscar suas vidas que não me pertencem Minha esposa tem uma parte em meus bens que eu também não poderia confiscar O mesmo ocorre com meus filhos que tendo nascido de mim têm o direito de ser sustentados com o produto do meu trabalho ou do meu capital Resumindo o conquistador tem um direito à reparação pelos danos recebidos e os filhos têm direito aos bens de seu pai para o seu sustento Quanto à parte da esposa seja ela fruto do seu trabalho ou de um pacto que lhe proporcionou esse direito é evidente que seu marido não poderia confiscar o que era dela O que deve ser feito nesse caso Eu respondo Como a lei fundamental da natureza exige que todos sejam preservados na medida do possível em conseqüência disso se não existe o bastante para satisfazer a ambos ou seja para as perdas do conquistador e para o sustento dos filhos aquele que está provido até com excesso deve renunciar a uma parte de sua indenização plena e ceder o lugar àqueles que correm o risco de perecer sem ela 184 Mas vamos supor que os encargos e os prejuízos da guerra devam ser recuperados pelo conquistador até o último centavo e que os filhos do conquistado sejam espoliados de todos os bens de seu pai e sejam deixados para morrer de fome embora nessa dívida a satisfação seja devida ao conquistador isso dificilmente lhe dá um título a qualquer país que ele conquiste É pouco provável que o montante dos prejuízos de guerra possa se igualar ao valor das terras de uma superfície considerável em qualquer parte do mundo em que não reste mais espaço sem dono ou inculto E como eu não me apossei das terras do conquistador uma vez que isso me era impossível sendo eu o vencido parece pouco provável que eu lhe tenha causado qualquer outro prejuízo que possa equivaler ao valor de minhas próprias terras supondose que elas sejam mais ou menos tão vastas e tão bem cultivadas quanto a sua parte que eu invadi A destruição de um produto de um ou dois anos pois raramente atinge quatro ou cinco representa o prejuízo mais grave que em geral poderia ser causado Quanto ao dinheiro e às riquezas e ao tesouro desse tipo que puderam ser tomados estes não são bens da natureza e possuem apenas um valor ilusório a natureza jamais lhes atribuiu um valor real Por seu padrão eles não têm mais valor que o wampompeke dos americanos para um príncipe europeu ou a moeda de prata da Europa teria tido antigamente para um americano O produto de cinco anos não vale a propriedade perpétua da terra lá onde não existem terras sem dono nem áreas baldias que pudessem ser tomadas por aquele que foi desapossado isto será facilmente admitido despojandose o dinheiro de seu valor imaginário pois a desproporção ultrapassa a relação de cinco para cinco mil embora ao mesmo tempo o produto de meio ano tenha mais valor que a herança onde havendo mais terra do que os habitantes possuem e fazem uso qualquer um tem a liberdade de utilizar a área baldia Mas lá raramente os conquistadores se preocupam em se apossar das terras dos vencidos Assim no estado de natureza no qual todos os príncipes e todos os governantes permanecem em referência um ao outro os prejuízos que os homens se causam podem dar a um conquistador poder para desapropriar a posteridade do vencido e privála daquela herança que devia ser perpetuamente posse dela e de seus descendentes Na verdade o conquistador será levado a se considerar o dono e é condição própria dos vencidos não poder disputar seus Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 87 direitos Mas se tudo se reduz a este fato o único direito que ele concede é aquele que o mais forte opõe ao mais fraco em nome da força bruta Segundo este critério o indivíduo mais forte tem o direito de se apossar de tudo o que quiser 185 O conquistador mesmo em uma guerra justa não tem por sua conquista nenhum direito de dominação sobre aqueles que a ele se juntaram no combate nem também sobre os habitantes do país subjugado que não tenham se oposto a ele ou sobre os descendentes daqueles que lutaram contra ele estes estão livres de qualquer sujeição a ele e se seu governo precedente for dissolvido permanecem em liberdade para começar e construir outro para si 186 É verdade que o conquistador por meio da força que tem sobre ele em geral os impele com uma espada no peito a se curvarem às suas condições e a se submeterem ao governo que ele quiser lhes dar mas a pergunta é a seguinte Que direito tem ele de fazer isso Responder que estes homens se submetem por seu próprio consentimento é admitir que seu próprio consentimento seria necessário para conceder ao conquistador um título para governar sobre eles Falta apenas considerar se as promessas extorquidas pela força sem direito podem ser consideradas consentimento e até que ponto elas obrigam ao que eu respondo que elas não obrigam a absolutamente nada porque seja o que for que alguém toma de mim à força eu ainda mantenho o direito de posse e ele é obrigado no mesmo momento a me restituir Aquele que tira de mim o meu cavalo deve imediatamente devolvêlo e eu ainda tenho o direito de retomálo Pela mesma razão aquele que me obrigou a uma promessa deve imediatamente devolvêla isto é liberarme da obrigação de cumprila ou posso eu mesmo retomála ou seja decidir se vou cumprila Pois a lei da natureza só me impõe obrigações em virtude das regras que ela prescreve não podendo me obrigar pela violação de suas regras como extorquindo qualquer coisa de mim pela força Isso não altera nada o fato de dizer Eu dei minha palavra assim como meu gesto não tem por efeito desculpar o emprego da força e transmitir meus direitos quando enfio a mão em meu bolso e entrego eu mesmo minha carteira ao ladrão que a exige com uma pistola no meu peito 187 De tudo isso resulta que o governo de um conquistador imposto pela força ao vencido contra quem ele não tinha o direito de guerra ou que não se aliou aos seus inimigos embora a isso tivesse direito não é legítimo 188 Mas suponhamos que todos os homens daquela comunidade sendo todos membros do mesmo corpo político tivessem se associado naquela guerra injusta na qual eles são vencidos e que em conseqüência disso suas vidas estejam à mercê do conquistador 189 Eu afirmo que isso não diz respeito a seus filhos que estão em sua minoridade pois um pai não tem em si um poder sobre a vida e a liberdade de seu filho e nenhum ato seu pode produzir a perda de uma ou de outra Assim os filhos aconteça o que acontecer com seus pais são homens livres e o poder absoluto do conquistador não se estende além das pessoas dos homens que lhes estão subjugados e morre com eles e ainda que ele possa governálos como escravos sujeitos a seu poder arbitrário absoluto não tem tal direito de dominação sobre seus filhos Ele não pode ter poder sobre eles exceto por seu próprio consentimento seja o que for que ele possa induzilos a dizer ou fazer e não tem autoridade legal pois o que os compele à submissão é a força não a escolha 190 Todo homem nasce com um direito duplo primeiro um direito de liberdade sobre sua pessoa sobre a qual nenhum outro homem tem poder e só ele próprio pode dispor livremente a ela segundo o direito de preferência a qualquer outro homem de dividir com seus irmãos os bens de seu pai CLUBE DO LIVRO LIBERAL 191 Pelo primeiro deles um homem está naturalmente livre de sujeição a qualquer governo embora ele tenha nascido em um lugar sob sua jurisdição mas se ele rejeitar o governo legal do país em que nasceu deve também renunciar ao direito que lhe pertencia por suas leis e às posses ali situadas que lhe cabem por herança de seus ancestrais no caso destes últimos terem participado da fundação do governo 192 Pelo segundo os habitantes de qualquer país que são descendentes e derivam um título a seus bens daqueles a que estão submetidos e têm um governo imposto sobre eles contra seu livre consentimento mantêm o direito à posse de seus ancestrais embora eles não tenham consentido livremente no governo cujas duras condições foram impostas pela força sobre os proprietários daquele país Como o primeiro conquistador jamais tem direito à terra daquele país o povo que é constituído pelos descendentes daqueles que foram constrangidos pela violência a se curvar ao jugo de um governo de força tem sempre o direito de sacudir este jugo e se libertar da usurpação ou da tirania que a espada lhe impôs até obter de seus chefes uma forma de governo na qual ele consinta voluntariamente e por escolha Jamais se poderia presumir que ele pudesse fazer isso até que estivesse em um pleno estado de liberdade para escolher seu governo e seus governantes ou pelo menos até que tivesse leis positivas às quais ele próprio ou seus representantes tivessem dado seu livre consentimento e também até que lhe fosse reconhecido o direito de propriedade legítimo ou seja o direito que cada indivíduo possui de ser proprietário daquilo que lhe pertence em condições que interditam qualquer outra pessoa a lhe subtrair uma parte qualquer sem seu próprio consentimento sem isso quem quer que esteja sob qualquer governo não tem o estatuto de homem livre mas de escravo sob o qual a força da guerra se exerce sem intermediário Quem duvida que os cristãos gregos descendentes dos antigos proprietários daquele país possam legitimamente sacudir o jugo turco sob o qual generam por tanto tempo quando tiverem poder para isso 193 Se concordamos que o conquistador em uma guerra justa tem tanto direito aos bens quanto poder sobre as pessoas do conquistado o que evidentemente é falso nada indica que este governo se transforme em um poder absoluto se se prolongar porque como os descendentes destes são todos homens livres se ele lhes outorga bens e posses para habitar em seu país sem o que ele não valeria nada eles adquirem a propriedade de tudo o que ele lhes transfere na medida em que se trata de uma transferência A natureza da propriedade é que sem o próprio consentimento do homem ela não pode ser dele tomada 194 Suas pessoas são livres por direito de nascença e suas propriedades não importa a sua extensão são propriedades próprias e estão à sua própria disposição não àquela do conquistador caso contrário não haveria propriedade Supondose que o conquistador dá mil acres a um homem e a seus herdeiros para sempre mas a outro ceda mil acres durante a sua vida sob um aluguel de cinqüenta ou cem libras por ano O primeiro não tem direito a seus mil acres perpetuamente e o segundo aos seus durante sua vida se pagar o aluguel fixado O locatário vitalício não tem a propriedade de tudo aquilo que pode extrair da terra por seu trabalho e sua indústria durante o período fixado supondo que isso atinja a um montante equivalente ao dobro do aluguel Podese sustentar que o rei ou o conquistador após ter feito essa cessão possa invocar o poder que lhe confere a conquista para retomar as terras em sua totalidade ou em parte dos herdeiros do primeiro destes dois homens ou do segundo durante sua vida quando ele está pagando seu aluguel Ou ele pode retomar de um ou de outro os bens ou o dinheiro que obtiveram da terra como bem entender Se pode isso então significa o fim de todos os contratos livres e voluntários do mundo Basta existir poder suficiente para anulálos a qualquer momento E todas as doações e promessas dos homens que estão no poder não passam de escárnio e conluio pois pode haver algo mais ridículo que dizer Eu lhe dou isso para sempre a você e aos seus utilizando para isso o modo de comunicação mais confiável e solene que se possa imaginar embora o que tenha de ser compreendido é que eu tenho o direito se quiser de retomálo de você amanhã 195 Eu não vou discutir agora se os príncipes estão isentos das leis de seu país mas estou certo de que devem submissão às leis de Deus e da natureza Nenhum indivíduo nenhum poder pode se isentar das obrigações que essa lei eterna lhes impõe Elas são tão grandes e tão fortes no caso das promessas que a própria onipotência pode estar a elas vinculadas As cessões as promessas e os juramentos são compromissos julgados pelo TodoPoderoso Seja o que for que alguns bajuladores digam aos príncipes do mundo estes juntamente com Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 89 todas as pessoas que a eles se juntarem não representam diante da grandeza divina senão uma gota do oceano ou um grão de poeira na balança absolutamente nada 196 O resumo da questão referente à conquista é o seguinte o conquistador se tiver uma causa justa tem um direito despótico sobre as pessoas de todos aqueles que realmente ajudaram e concorreram na guerra contra ele e um direito de recuperar seu prejuízo e sua despesa à custa do trabalho e dos bens dos vencidos contanto que com isso não prejudique terceiros Sobre o restante do povo se há alguns que não concordaram com a guerra e sobre os filhos dos próprios prisioneiros ou as posses de ambos ele não tem poder algum e assim não pode retirar da conquista nenhum título legítimo para exercer sobre eles sua dominação nem para transmitir algum à sua posteridade mas se é um agressor e se coloca em um estado de guerra contra eles nem ele nem seus sucessores têm qualquer direito de principado maior que Hingar ou Hubba os dinamarqueses tiveram aqui na Inglaterra ou Spartacus teria se tivesse conquistado a Itália ou seja o direito que alguém tem de se livrar de seu jugo assim que Deus proporcionar àqueles que estão sob sua sujeição a coragem e a oportunidade para fazêlo Assim Deus não levou em conta os direitos fossem quais fossem que os reis da Assíria podiam reivindicar sobre Judá pela força da espada e ajudou Ezequias a se libertar da dominação deste império conquistador E o Senhor estava com Ezequias e ele prosperou por isso ele progrediu rebelouse contra o rei da Assíria e se recusou a servilo 2Reis 187 Fica evidente então que se alguém abala um poder ao qual foi submetido pela força e não pelo direito esta ação recebe o nome de rebelião mas não constitui um pecado diante de Deus que ao contrário a aprova e autoriza sem dar qualquer importância aos acordos e aos pactos que intervêm uma vez que foram extorquidos pela força Para qualquer um que tenha lido atentamente a história de Acaz e Ezequias parece muito provável que os assírios tenham vencido Acaz e o deposto tenham feito de Ezequias rei durante a vida de seu pai e que Ezequias em virtude de um acordo durante todo esse tempo tenhalhe prestado homenagem e pago tributo CAPÍTULO XVII DA USURPAÇÃO 197 Assim como a conquista pode ser chamada de usurpação do estrangeiro a usurpação também é uma espécie de conquista doméstica com a diferença de que jamais um usurpador pode ter o direito do seu lado só havendo usurpação quando alguém toma posse daquilo que pertence por direito a outra pessoa Isto embora também constitua uma usurpação é apenas uma troca de pessoas mas não das formas e regras do governo mas se o usurpador estende seu poder além daquele por direito pertencente aos príncipes ou governadores legítimos da comunidade civil tratase de tirania adicionada à usurpação 198 Em todos os governos legítimos a designação das pessoas que devem comandar é um elemento tão natural e necessário quanto a forma do governo em si e dela o povo originalmente retirou seu estabelecimento Por isso todas as comunidades civis com a forma de governo estabelecida prevêem regras também para designar aqueles que terão qualquer participação na autoridade pública assim como métodos estabelecidos para investi los de suas funções A anarquia é um tanto semelhante seja ela desprovida de qualquer forma de governo ou regida por uma monarquia escolhida mas sem que se tenha previsto o meio de se designar ou nomear a pessoa que exercerá o poder e será o monarca Quem quer que exerça qualquer parcela do poder por outros meios que não aqueles prescritos pelas leis da comunidade civil não tem o direito de exigir obediência mesmo que a forma da comunidade civil seja ainda preservada pois não se trata de uma pessoa que as leis tenham designado e conseqüentemente não é a pessoa a quem o povo deu seu consentimento Nem este usurpador nem qualquer de seus sucessores jamais poderão ter um título até que o povo esteja ao mesmo tempo em liberdade de consentir e tenha realmente consentido em reconhecêlo e permitirlhe a autoridade que eles até então lhes usurparam CLUBE DO LIVRO LIBERAL CAPÍTULO XVIII DA TIRANIA 199 Assim como a usurpação consiste em exercer um poder a que um outro tem direito a tirania consiste em exercer o poder além do direito legítimo o que a ninguém poderia ser permitido É isto que ocorre cada vez que alguém faz uso do poder que detém não para o bem daqueles sobre os quais ele o exerce mas para sua vantagem pessoal e particular quando o governante mesmo autorizado governa segundo sua vontade e não segundo as leis e suas ordens e ações não são dirigidas à preservação das propriedades de seu povo mas à satisfação de sua própria ambição vingança cobiça ou qualquer outra paixão irregular 200 Se alguém duvidar da verdade desta proposição ou de sua fundamentação por ela vir da mão obscura de um súdito espero que a autoridade de um rei saiba fazer com que seja aceita O rei James em seu discurso no parlamento em 1603 nos declara Eu vou sempre preferir o bem do público e o de toda a comunidade civil fazendo boas leis e boas constituições a qualquer objetivo meu privado e pessoal Pensarei sempre na riqueza e no bem da comunidade civil como meu maior bem e minha grande felicidade no mundo nisso o rei legítimo se situa em oposição ao tirano Eu reconheço que a principal e específica diferença entre um rei legítimo e um tirano usurpador é a seguinte o tirano orgulhoso e ambicioso acredita que seu reinado e seu povo estão destinados apenas à satisfação de seus desejos e de suas aspirações exorbitantes ao contrário o rei legítimo e justo reconhece que sua própria existência deve ser destinada à busca da riqueza e da propriedade de seu povo E novamente em seu discurso ao parlamento em 1609 ele diz as seguintes palavras O rei obriga a si próprio um duplo juramento para observar as leis fundamentais de seu reino Tacitamente em virtude de sua qualidade de rei comprometendose a proteger o bem do povo e as leis de seu reinado e expressamente pelo juramento que pronunciou quando foi coroado assim todo rei justo em num reino estabelecido comprometese a observar o pacto feito com seu povo quando ele fez as leis proporcionando ao seu governo uma organização que se harmonize com ele seguindo o modelo do pacto que Deus fez com Noé após o dilúvio Daí em diante seja tempo de semeadura ou de colheita frio ou quente verão ou inverno dia ou noite ele não terminará enquanto a terra existir Por isso um rei que governa um reino estabelecido deixa de ser um rei e degenera em um tirano no momento em que ele põe de lado as leis estabelecidas e passa a governar de acordo com suas próprias leis E um pouco depois Por isso todos os reis que não são tiranos ou perjuros ficarão felizes em se restringir aos limites de suas leis E aqueles que os convencem do contrário são víboras pestes e estão tanto contra eles quanto contra toda a comunidade civil Assim este monarca ilustrado que compreendia bem as noções das coisas estabelece que a diferença entre um rei e um tirano consiste apenas em que o primeiro faz das leis o limite de seu poder e do bem público o objetivo de seu governo o outro subordina tudo a sua vontade e ambição pessoais 201 É um erro acreditar que este defeito é exclusivo apenas das monarquias outras formas de governo também podem estar propensas a possuílo Cada vez que um poder colocado nas mãos de alguém que deve governar o povo e preservar suas propriedades é aplicado para outros objetivos e é utilizado para empobrecer perseguir ou subjugar o povo às ordens irregulares e arbitrárias daqueles que o detêm imediatamente se transforma em uma tirania seja este abuso cometido por um ou mais homens Por exemplo podemos ler a história dos trinta tiranos de Atenas ou aquela de um tirano único em Siracusa e a intolerável dominação dos decênviros em Roma não foi nada melhor 202 Onde termina a lei começa a tirania desde que a lei seja transgredida em prejuízo de alguém Toda pessoa investida de uma autoridade que excede o poder a ele conferido pela lei e faz uso da força que tem sob seu comando para atingir o súdito com aquilo que a lei não permite deixa de ser um magistrado e Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 91 como age sem autoridade qualquer um tem o direito de lhe resistir como a qualquer homem que pela força invada o direito de outro Isto é admitido nos magistrados subalternos Aquele que tem autoridade para me dominar na rua pode encontrar uma resistência como aquela que demonstro a um gatuno ou a um ladrão se tentar invadir minha casa para executar um mandato judicial não importa se eu sei que ele é portador deste mandato e que tem competência para proceder legalmente a minha prisão E por que este princípio não se aplica ao magistrado de escalão mais elevado assim como àquele que ocupa o escalão mais baixo Eu gostaria de saber É razoável que o irmão mais velho que recebe a maior parte da herança do pai deveria ter o direito de se apropriar das partes de seus irmãos mais moços Ou aquele homem rico que possuía uma região inteira por este fato teria o direito de se apoderar quando quisesse do casebre e do jardim de seu vizinho pobre A posse legítima de um poder e de uma riqueza consideráveis que ultrapassam excessivamente a maior parte daquilo que os filhos de Adão puderam recolher está longe de ser uma desculpa e muito menos uma razão para a rapina e a opressão pois devem ser assim qualificados todos os danos causados ao outro sem autoridade ao contrário é uma provocação Exceder os limites da autoridade não é um direito maior em um agente superior que em um agente subalterno não mais justificável em um rei do que em um policial mas é muito pior se seu autor está encarregado de uma missão de confiança e se a vantagem da educação que recebeu de suas funções e dos conselheiros que o auxiliam o favorece em relação a seus irmãos e permite supôlo melhor informado dos critérios do bem e do mal 203 Podese resistir às ordens de um príncipe A resistência é legítima todas as vezes que um indivíduo se percebe lesado ou imagina que não lhe foi feito justiça Isto vai perturbar e transtornar todos os regimes políticos e em vez de governo e ordem não se terá senão anarquia e confusão 204 A isso eu respondo Não se deve opor a força senão à força injusta e ilegal quem quer que resista em qualquer outra circunstância atrai para si uma condenação justa tanto de Deus quanto dos homens e em conseqüência só virão perigos e tumultos como freqüentemente é sugerido Porque 205 Primeiro Como em alguns países a pessoa do príncipe pela lei é sagrada seja o que for que ele ordene ou faça sua pessoa ainda permanece livre de qualquer questionamento ou violência e escapa ao uso da força ou a qualquer censura ou condenação judicial Mas podese fazer oposição aos atos ilegais de qualquer agente inferior ou outro indivíduo por ele nomeado a menos que ele realmente se coloque em estado de guerra contra seu povo dissolva o governo e deixe o povo entregue àquela defesa que pertence a todos no estado de natureza Quem poderia prever como podem terminar situações desse tipo Um reino vizinho mostrou ao mundo um exemplo estranho Em todos os outros casos a inviolabilidade da pessoa a exime de todas as inconveniências o que o situa ao abrigo de toda violência e de todo mal enquanto o governo subsistir e nesse sentido não poderia haver uma constituição mais sábia O mal que ele pode fazer pessoalmente não se arrisca a se renovar com freqüência e não estende muito seus efeitos porque sua força individual não lhe dá os meios para subverter as leis nem para oprimir o conjunto do povo supondose um príncipe tão fraco e de uma natureza tão ruim para querer agir deste modo O inconveniente de determinadas más ações que podem às vezes ocorrer quando um príncipe impetuoso sobe ao trono são bem recompensadas pela paz do público e tranqüilidade do governo na pessoa do magistrado supremo colocado fora do alcance do perigo é mais seguro para o conjunto que um pequeno número de homens corra às vezes o risco de sofrer do que expor desnecessariamente o chefe da república 206 Segundo Este privilégio pertence somente à pessoa exclusiva do rei e não impede questionar se opor e resistir àqueles que usam a força injusta embora eles pretendam dele um comissionamento que a lei não autoriza Isto está evidente no caso daquele que tem um mandato do rei para prender um homem um comissionamento pleno do rei e no entanto ele não pode invadir a casa de um homem para fazêlo nem executar a ordem do rei em determinados dias ou em determinados locais embora este comissionamento não contenha exceções em si mas são limitações da lei que se alguém transgredir o comissionamento CLUBE DO LIVRO LIBERAL do rei não o justifica Como a autoridade do rei lhe é outorgada pela lei ele não pode conferir a ninguém o poder de agir contra a lei ou justificar seu ato por seu comissionamento O comissionamento ou a ordem de qualquer magistrado onde ele não tem autoridade são tão nulos e insignificantes quanto aqueles de um homem qualquer A diferença entre um e outro é que o magistrado tem alguma autoridade dentro de limites e fins determinados enquanto o homem comum não tem nenhuma Não é o comissionamento mas a autoridade que dá o direito de agir e contra as leis não pode haver autoridade mas apesar de tal resistência a pessoa e a autoridade do rei ainda estão ambas asseguradas e assim não há riscos nem para o governante nem para o governo 207 Terceiro Supondose um governo em que a pessoa do magistrado supremo não é sagrada esta doutrina que autoriza a resistência cada vez que ele exerce ilegalmente seu poder tem por efeito criar situações inúteis que o exporiam a riscos ou colocariam o governo em má situação Quando a parte prejudicada pode ser aliviada e seus danos reparados pelo apelo à lei não pode haver pretexto para a força que só deve ser utilizada quando um homem é interceptado em seu apelo à lei Nada justifica a força hostil exceto quando é negado a alguém o recurso legal Apenas esta força coloca quem a usa em estado de guerra e torna legal a resistência a ele Um homem com uma espada em suas mãos exige minha carteira na estrada quando talvez eu não possua nem doze cêntimos em meu bolso legalmente eu posso matar este homem A outro eu entreguei cem libras para guardar apenas enquanto eu desmonto e ele se recusa a me devolver o dinheiro quando eu torno a montar e tira a sua espada para defender a posse pela força tento retomálo Este homem me causa um prejuízo cem vezes talvez mil vezes maior que o outro talvez tencionasse me fazer a quem eu matei antes que realmente me tivesse feito alguma coisa entretanto eu podia legalmente matar o primeiro enquanto legalmente eu não podia nem sequer ferir o segundo A razão é clara O primeiro utilizou a força e minha vida ficou ameaçada eu podia não ter tempo de utilizar as vias legais para protegêla e se viesse a perdêla seria muito tarde para qualquer recurso A lei não poderia ressuscitar minha carcaça sem vida A perda seria irreparável e para evitála a lei da natureza me dá o direito de destruir o indivíduo que se colocou em estado de guerra contra mim e ameaçou minha destruição Mas no outro caso minha vida não estando em perigo eu posso ter o benefício de apelar para a lei e ter dessa forma a reparação para minhas cem libras 208 Quarto Se os atos ilegais cometidos pelo magistrado foram confirmados pelo poder que ele detém e se o mesmo poder obstrui a reparação que a lei obriga o direito de resistir não perturbará o governo de maneira intempestiva nem sem razão grave mesmo diante de atos de tirania assim manifestos Se a questão não interessa senão a alguns particulares ainda que eles tenham o direito de se defender e de recuperar pela força aquilo que lhes foi tomado ilegalmente pela força o direito de agir dessa forma não corre o risco de facilmente engajálos em um conflito em que certamente eles perecerão sendo impossível para um ou poucos homens oprimidos perturbarem o governo se o conjunto do povo não se encontra interessado assim como um louco furioso ou um descontente exaltado derrubarem um estado firmemente estabelecido pois o povo também está pouco inclinado a seguir um ou outro 209 Mas se estes atos ilegais estendem seus efeitos à maioria do povo ou se a má ação e a opressão só atingem uma minoria mas em condições tais que todo mundo parece ameaçado pelo precedente assim criado e por suas conseqüências e se todos estão convencidos em suas consciências que suas leis estão em perigo e com elas seus bens liberdades e vidas e talvez até sua religião eu não sei como eles poderiam ser impedidos de resistir à força ilegal usada contra eles Admito que esta é uma inconveniência que espera todos o governos sejam quais forem quando os governantes deixam as coisas chegarem a um ponto em que a grande massa de seu povo os trata como suspeitos é a situação mais perigosa em que eles podem se colocar e eles são os que merecem menos piedade pois isso é muito fácil de ser evitado É impossível para um governante se ele realmente pretende o bem do seu povo e ao mesmo tempo sua preservação e a de suas leis não conseguir que eles enxerguem e sintam isso como para um pai de família não deixar seus filhos perceberem que ele os ama e cuida deles 210 Mas se todo mundo constata que se pretende agir de uma maneira e se age na verdade de outra se são usados ar tifícios para escapar da lei e se utiliza a confiança da prerrogativa que é um poder arbitrário em Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 93 algumas coisas deixadas nas mãos do príncipe para fazer o bem e não o mal ao povo empregada contrariamente aos objetivos para os quais foi confiada se o povo perceber que os ministros e os magistrados subalternos foram escolhidos em função de tais fins e que são retribuídos pelo favorecimento ou pela desgraça segundo seu apoio ou sua oposição se vê aplicada repetidamente a experiência do poder arbitrário e se percebe que se favorece a religião clandestina embora a condenando em público que está prestes a se estabelecer com seus membros recebendo todo o apoio possível e quando a coisa não pode ser feita ainda assim é aprovada como sendo a melhor se enfim toda uma seqüência de ações mostra todos os concílios tendendo para aquela direção como um homem poderia se impedir mais tempo de interpretar o rumo dos acontecimentos e procurar um meio de se salvar além de acreditar que o capitão do navio em que ele estava levava a ele e o resto dos passageiros para a Argélia quando o encontrava sempre seguindo este curso embora ventos contrários fendas em seu casco e falta de homens e provisões freqüentemente o forçassem a mudar seu curso para outra direção durante algum tempo à qual ele prontamente retornava logo que o vento o tempo e outras circunstâncias o permitiam CAPÍTULO XIX DA DISSOLUÇÃO DO GOVERNO 211 Quando se deseja falar da dissolução do governo com alguma clareza é preciso começar por distinguir entre a dissolução da sociedade e a dissolução do governo Aquilo que constitui a comunidade e tira os homens do estado livre da natureza e os coloca em uma sociedade política é o acordo que cada um estabelece com o restante para se associar e agir como um único corpo e assim se tornar uma comunidade civil distinta A maneira usual e praticamente a única pela qual esta união é dissolvida é a invasão de uma força estrangeira realizando uma conquista Neste caso não sendo possível subsistir nem sobreviver como um único organismo intacto e independente necessariamente cessa a união que caracterizava este organismo e que o constituía e assim cada um retorna a sua condição anterior ao estado em que estava antes com uma liberdade de se arranjar sozinho e prover sua própria segurança como julgar adequado em alguma outra sociedade Quando a sociedade é dissolvida é certo que o governo dessa sociedade deve desaparecer Assim as espadas dos conquistadores freqüentemente cortam os governos pela base e pulverizam a sociedade pois põem fim às relações mútuas de obediência e proteção que uniam as massas que ela subjugou ou dispersou e à ordem social que deveria conserválas ao abrigo da violência O mundo está bastante bem informado sobre este modo de dissolução dos governos e bastante disposto a se acomodar para que seja necessário insistir mais e é fácil provar que o governo não pode subsistir quando a sociedade é dissolvida é tão impossível a estrutura de uma casa sobreviver quando seu revestimento é espalhado e deslocado por um furacão ou quando misturado em uma pilha confusa por um terremoto 212 Além desta derrocada de fora os governos são dissolvidos a partir de dentro Primeiro Quando o legislativo é alterado Sendo a sociedade civil definida como um estado de paz onde os associados excluíram o estado de guerra confiando o papel de árbitro ao poder legislativo para que este ponha fim a todas as diferenças que podem surgir entre eles é no legislativo que os membros de uma comunidade civil estão unidos e combinados em conjunto para formar um único organismo vivo e homogêneo Esta é a alma que dá à comunidade civil sua forma sua vida e sua unidade Daí procedem a influência a simpatia e a conexão mútua entre seus vários membros Por isso quando o legislativo é rompido ou dissolvido seguemse a dissolução e a morte Como a essência e a união da sociedade consistem em se ter uma vontade o legislativo uma vez estabelecido é encarregado de declarar esta vontade e por assim dizer guardála A constituição do legislativo é o ato primeiro e fundamental da sociedade em virtude desse ato os associados prevêem a manutenção de sua união remetendose ao consentimento do povo e a sua escolha para designar as pessoas que os governarão e para habilitar as pessoas que farão as leis que regerão seus atos de maneira que nenhum indivíduo nenhum CLUBE DO LIVRO LIBERAL grupo entre eles tenha o poder de legislar por outros procedimentos Quando um ou mais indivíduos assumem a tarefa de legislar sem que o povo os tenha autorizado a fazêlo eles fazem leis sem autoridade e por isso o povo não é obrigado a obedecêlas Em conseqüência disso o povo se vê novamente desobrigado de qualquer sujeição e pode constituir para si um novo legislativo como achar melhor estando em ampla liberdade para resistir à força daqueles que sem autoridade iriam lhes impor qualquer coisa Cada um recupera a disposição de toda a sua vontade quando aqueles que uma delegação da sociedade encarregou de declarar a vontade do público não pode mais fazêla e outros usurpam o lugar sem qualquer autoridade ou delegação 213 Isto em geral é provocado por pessoas da comunidade civil que fazem mau uso do poder que detêm e é difícil considerar o fato com justiça e determinar o responsável sem saber a forma de governo em que isso se produziu Vamos supor então que o legislativo tenha sido confiado à decisão de três pessoas distintas 1 Um personagem hereditário único detentor do poder executivo permanente e supremo e também com o poder de convocar e dissolver os outros dois em momentos determinados 2 Uma assembléia da nobreza hereditária 3 Uma assembléia de representantes escolhidos pro tempore pelo povo Supondose tal forma de governo é evidente 214 Primeiro Que quando tal personagem única ou tal príncipe estabelece sua própria vontade arbitrária em lugar das leis que são a vontade da sociedade declaradas pelo legislativo então o legislativo é alterado Como o poder legislativo é aquele que executa os regulamentos e as leis e ao qual se deve obediência quando outras leis são estabelecidas e outras regras invocadas e impostas sem ter sido adotados pela legislatura que a sociedade instaurou é evidente que o poder legislativo se encontra modificado Quem quer que introduza novas leis ou subverta as leis antigas sem ter sido para isso autorizado pela designação fundamental da sociedade renega e derruba o poder pelo qual foi constituído e estabelece assim um novo legislativo 215 Segundo Quando o príncipe proíbe o legislativo de se reunir em seu devido tempo ou de agir livremente em busca daqueles objetivos para os quais foi constituído o legislativo é alterado Não é um certo número de homens nem o fato deles se reunirem que constituem o poder legislativo se falta a esses homens a liberdade de debater entre eles e a calma para aperfeiçoar o que visa o bem da sociedade Quando se suprimem ou se alteram estes atributos para privar a sociedade do devido exercício de seu poder o legislativo é realmente alterado Pois não são as denominações que constituem os governos mas o uso e o exercício daqueles poderes que foram designados para acompanhálos assim quem tira a liberdade ou impede a ação do legislativo nas temporadas fixadas para suas reuniões na verdade derruba o legislativo e põe fim ao governo 216 Terceiro Quando o príncipe se serve de seu poder arbitrário para mudar a designação dos eleitores ou o modo de eleição sem o consentimento do povo e contra ao seu interesse comum então também o legislativo é alterado Se vem a ser designado por outros indivíduos que não aqueles que a sociedade habilitou para este efeito ou por outros procedimentos que não aqueles prescritos por ela os escolhidos não são o poder legislativo designado pelo povo 217 Quarto Quando o príncipe ou o poder legislativo libertam o povo da dominação de um poder estrangeiro isto certamente constitui uma mudança do poder legislativo e por conseguinte uma dissolução do governo Como as pessoas se associaram a fim de assegurar sua proteção na integridade liberdade e independência de uma única sociedade regida por suas próprias leis isto se torna impossível quando é deixado em poder de qualquer outro 218 Compreendese facilmente por que razão sob uma constituição deste gênero devese imputar ao príncipe a dissolução do governo porque ele tendo a força o tesouro e os encargos do Estado à sua disposição freqüentemente se convence ou se deixa convencer por bajuladores que sua qualidade de magistrado supremo o Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 95 coloca ao abrigo de qualquer controle somente ele está em condições de preparar eficazmente tais mudanças sob a cobertura do exercício de uma autoridade legítima tendo em suas mãos os meios para aterrorizar ou suprimir os opositores alegando serem facciosos sediciosos e inimigos do governo Nenhum outro setor do legislativo ou do povo está apto a tentar qualquer alteração do legislativo sem uma rebelião manifesta e visível e é suficientemente capaz de perceber que quando ela prevalece produz efeitos muito pouco diferentes da conquista estrangeira Em tal forma de governo além do príncipe possuir o poder de dissolver as outras partes do legislativo e reverter seus membros à vida privada estes nunca podem em oposição a ele ou sem seu acordo modificar o poder legislativo por uma lei sendo necessário seu consentimento para sancionar qualquer decreto deles Mas ainda que as outras partes do legislativo não contribuam de qualquer modo para qualquer atentado contra o governo favorecendo estes desígnios ou se abstendo de a eles se opor são culpadas e se tornam cúmplices deste crime certamente o maior que os homens podem cometer entre si 219 Existe ainda mais um modo pelo qual um governo desse tipo pode ser dissolvido ou seja quando aquele que tem o poder executivo supremo negligencia e abandona o seu cargo impedindo assim a execução das leis já existentes Isto equivale é claro a reduzir tudo à anarquia e assim efetivamente dissolver o governo Pois as leis não são feitas para si mesmas mas para serem executadas dentro dos limites da sociedade para manter cada parte do organismo político em seu lugar e função determinados e se isso vem a desaparecer o governo evidentemente também desaparece e o povo se torna uma multidão confusa sem ordem ou coesão Quando não há mais a administração da justiça para assegurar os direitos dos homens nem qualquer poder remanescente no interior da comunidade para dirigir a força ou prover as necessidades do público certamente não há mais governo Quando as leis não podem ser executadas tudo se passa como se não houvesse leis e um governo sem leis é imagino eu um mistério político inconcebível para as faculdades do homem e incompatível com toda sociedade humana 220 Nestes casos citados e em casos semelhantes quando o governo é dissolvido o povo está em liberdade para proteger seus interesses instaurando um novo legislativo diferente do outro pela mudança das pessoas ou da forma ou de ambas como considerar mais vantajoso e mais de acordo com as exigências da segurança pública A sociedade jamais pode perder por culpa de quem quer que seja o direito inato e original que possui de se preservar que só pode ser cumprido por um legislativo estabelecido e uma execução eqüitativa e imparcial das leis feitas por ele Mas a condição da humanidade não é tão miserável que lhe seja impossível servir se deste remédio antes que seja tarde demais para procurar outro Informar a um povo que ele pode proteger seus interesses instaurando um novo legislativo quando perdeu o antigo devido à opressão ou em seguida a maquinações ou ainda por ter se libertado de um poder estrangeiro é apenas dizerlhe que pode esperar alívio quando já é muito tarde e o mal se tornou incurável Isto na verdade não é mais do que convidálo primeiro para ser escravo e depois para cuidar de sua liberdade e dizerlhes que podem agir como homens livres depois de estarem acorrentados Isto seria antes o meio de se zombar dele do que de aliviálo e os homens jamais estarão ao abrigo da tirania se não tiverem os meios de escapar antes que ela os tenha dominado completamente Por isso não somente têm o direito de sair dela mas de impedila 221 Existe então em segundo lugar outra maneira pela qual os governos são dissolvidos ou seja quando o legislativo ou o príncipe um dos dois age em desacordo com a confiança nele depositada Primeiro O legislativo age contra a confiança nele depositada quando tenta invadir a propriedade do súdito e transformar a si ou qualquer parte da comunidade em senhores que dispõem arbitrariamente da vida liberdade ou bens do povo 222 A razão por que os homens entram em sociedade é a preservação de sua propriedade e o fim a que se propõem quando escolhem e autorizam um legislativo é que haja leis e regulamentos estabelecidos que sirvam de proteção e defesa para as propriedades de todos os membros da sociedade para limitar o poder e moderar a dominação de cada parte e de cada membro da sociedade Por isso nunca se poderia imaginar que a sociedade quisesse habilitar o legislativo a destruir o próprio objeto que cada um se propunha a proteger quando a ela se juntou e que o povo teve em vista quando cuidou de escolher seus legisladores cada vez que os legisladores CLUBE DO LIVRO LIBERAL tentam tomar ou destruir a propriedade do povo ou reduzilo à escravidão sob um poder arbitrário estão se colocando em um estado de guerra contra o povo que fica portanto dispensado de qualquer obediência e é então deixado ao refúgio comum que Deus deu a todos os homens contra a força e a violência Sempre que o legislativo transgredir esta regra fundamental da sociedade e seja por ambição por medo por tolice ou por corrupção tentar dominar a si mesmo ou pôr as mãos em qualquer outro poder absoluto sobre as vidas as liberdades e os bens do povo por este abuso de confiança ele confisca o poder que o povo depositou em suas mãos para fins absolutamente contrários e o devolve ao povo que tem o direito de retomar sua liberdade original e pelo estabelecimento de um novo legislativo o que ele considerar adequado promover sua própria segurança e tranqüilidade que é o objetivo pelo qual estão em sociedade O que eu disse aqui com respeito ao legislativo em geral se aplica também ao executor supremo que tendo uma dupla confiança nele depositada tanto uma participação no legislativo quanto a suprema execução da lei age contra ambas quando começa a estabelecer sua própria vontade arbitrária como a lei da sociedade Ele age também contrário a sua confiança quando emprega a força os recursos do Tesouro e os cargos públicos da sociedade para corromper os representantes e obter sua conivência com seus propósitos ou se abertamente ele alicia os eleitores e lhes prescreve escolher indivíduos que por solicitações ameaças promessas ou quaisquer outros meios já concordaram com suas intenções e emprega esses eleitores para enviar às assembléias homens que se sentissem obrigados no futuro a votar de uma certa maneira e fazer adotar leis determinadas Assim sendo o que é este controle sobre candidatos e eleitores este novo modelo de procedimento eleitoral senão cortar o governo pela base e envenenar a verdadeira fonte da segurança pública O povo que reservou a si mesmo a escolha de seus representantes como a defesa de suas propriedades não poderia proceder a isso por nenhuma outra razão senão aquela de eles poderem sempre ser livremente escolhidos e assim sendo poderem agir e aconselhar com a mesma liberdade baseandose nas necessidades da comunidade civil e no bem público como a reflexão e uma discussão racional lhes julgasse requerer Isso aqueles que votam sem ter ouvido os debates e considerado a razão de todos os lados não são capazes de fazer Preparar uma assembléia deste gênero e tentar fazer passar os cúmplices declarados de sua própria vontade pelos verdadeiros representantes do povo e legisladores da sociedade é certamente um abuso de confiança da maior gravidade e a mais perfeita declaração de uma intenção de subverter o governo Se acrescentarmos a isso as recompensas e punições visivelmente empregadas para o mesmo fim e todos os artifícios de uma lei pervertida utilizados para tomar e destruir todos que se interpõem no caminho de tal intenção e não concordam em trair as liberdades de seu país não haverá mais dúvida sobre o que está ocorrendo Quanto ao poder que merecem os membros da sociedade que o empregam contrariamente à confiança que acompanha sua missão em sua primeira instituição é fácil determinar evidentemente é impossível confiar no futuro em alguém que tenha se comprometido uma vez que seja em uma tentativa deste gênero 223 A isso talvez se possa objetar que o povo é ignorante e está sempre descontente e portanto estabelecer as bases do governo na opinião insegura e no humor incerto do povo é expôlo à ruína certa e nenhum governo será capaz de subsistir muito tempo se o povo puder instaurar um novo legislativo sempre que desconfiar do antigo A isto eu responderei É exatamente o contrário O povo não está tão facilmente pronto a se afastar de suas formas antigas como alguns pretendem sugerir Dificilmente se consegue convencêlo a corrigir os defeitos reconhecidos da estrutura a que está acostumado Se há quaisquer defeitos originais ou outros introduzidos pelo tempo ou pela corrupção não é uma tarefa fácil conseguir que sejam mudados mesmo quando todo mundo vê que há uma oportunidade para isso Esta lentidão e aversão que o povo tem de abandonar suas antigas constituições nas muitas revoluções que foram vistas neste reino nesta época e em épocas anteriores perpetuaram nossa fidelidade diante de nosso antigo poder legislativo composto do rei de lordes e de homens do povo ou nos faz todas as vezes voltar a ele quando várias tentativas estéreis o derrubaram Sejam quais tenham sido as provocações que impeliram o povo a retirar a coroa das cabeças de alguns de nossos príncipes jamais o levaram tão longe a ponto de colocála em uma outra linhagem 224 Mas podese argumentar que esta hipótese se arrisca a incitar a freqüente rebelião A isto eu respondo Primeiro Não mais que qualquer outra hipótese Pois quando se lança o povo na miséria e ele se vê exposto ao mau uso do poder arbitrário proclame quanto quiser que seus governantes são filhos de Júpiter considereos sagrados e divinos descidos ou autorizados pelo céu faça com que pareçam com aquilo que você quiser a mesma coisa irá acontecer O povo maltratado governado de maneira ilegal estará pronto na primeira ocasião para se libertar de uma carga que lhe pesa demais sobre os ombros Ele deseja e busca a oportunidade Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 97 que nas flutuações fraquezas e acidentes das questões humanas raramente tarda a se apresentar A menos que tenha vivido muito pouco tempo no mundo todo homem foi em sua época testemunha de exemplos deste gênero e deve ter lido muito pouco aquele que não é capaz de encontrar exemplos em todo tipo de governos do mundo 225 Segundo Eu respondo que tais revoluções não ocorrem devido a cada pequena falta cometida na administração dos negócios públicos Erros graves por parte do governo muitas leis injustas e inoportunas e todos os deslizes da fraqueza humana são suportados pelo povo sem revolta ou queixa Mas se uma longa sucessão de abusos prevaricações e fraudes todas tendendo na mesma direção torna a intenção visível ao povo e ele não pode deixar de perceber o que o oprime nem de ver o que o espera não é de se espantar então que ele se rebele e tente colocar as rédeas nas mãos de quem possa lhe garantir o fim em si do governo sem isso as denominações antigas e as formas enganadoras longe de representar um progresso em relação ao estado de natureza e à anarquia pura e simples são bem piores pois o mal permanece tão grave e tão próximo mas o remédio mais distante e mais difícil 226 Terceiro Eu respondo que este poder que o povo detém de restaurar sua segurança instaurando um novo legislativo quando seus legisladores agem contra a sua missão invadindo sua propriedade é a melhor defesa contra a rebelião e o meio mais eficaz para impedila Se a rebelião é uma oposição não às pessoas mas à autoridade que se fundamenta unicamente nas constituições e leis do governo aqueles que invadem pela força e justificam pela força sua violação são verdadeira e propriamente rebeldes Quando os homens se uniram em sociedade sob um governo civil excluíram o uso da força e introduziram leis para a preservação da propriedade da paz e da unidade entre eles e aqueles que contrariamente às leis fazem reviver o uso da força agem realmente de maneira a rebellare ou seja restabelecer o estado de guerra e são propriamente rebeldes aqueles que estão no poder sob o pretexto de que têm autoridade a tentação da força de que dispõem e a bajulação dos outros sobre eles são os mais prováveis de agir desse modo e a melhor maneira de prevenir o mal é mostrar o perigo e a injustiça àqueles que estão mais expostos a se deixar tentar 227 Nos dois casos já mencionados quando o legislativo é modificado ou quando os legisladores agem contra da finalidade para a qual foram instituídos os responsáveis são culpados de rebelião Quem quer que suprima pela força o legislativo estabelecido de uma sociedade e as leis por ele feitas conforme a confiança nele depositada suprime também a arbitragem em que todos consentiram visando uma decisão pacífica de todas as suas controvérsias e um obstáculo ao estado de guerra entre eles Aquele que remove ou altera o legislativo suprime este poder decisivo que ninguém pode possuir exceto pela designação e o consentimento do povo e assim destrói a autoridade que o povo estabeleceu e que só ele pode estabelecer e introduzindo um poder que o povo não autorizou na verdade introduz um estado de guerra que é aquele da força sem autoridade Assim removendo o legislativo estabelecido pela sociedade em cujas decisões o povo aquiesceu unanimemente como se ele mesmo a houvesse tomado eles desatam o nó e expõem o povo novamente ao estado de guerra Se aqueles que suprimem o legislativo pela força são rebeldes os próprios legisladores como foi mostrado não merecem menos este nome quando em lugar de proteger e preservar o povo suas liberdades e propriedades o que lhe foi confiado fazer eles pela força invadem e tentam suprimilas como se colocam em um estado de guerra contra aqueles que fizeram deles protetores e guardiães de sua paz são no sentido próprio e com a mais terrível das circunstâncias agravantes rebellantes rebeldes 228 Mas se aqueles que dizem que nosso argumento lança uma base para a rebelião entendem que assim se está arriscado a provocar uma guerra civil e disputas internas ao se dizer ao povo que ele está dispensado da obediência quando tentativas ilegais são feitas contra suas liberdades ou propriedades e pode se opor à violência ilegal daqueles que eram seus magistrados quando invadiram suas propriedades contrariamente à confiança neles depositada e que por isso esta doutrina não deve ser permitida sendo também perigosa à paz do mundo eles podem do mesmo modo sustentar que os homens honestos não podem se opor aos ladrões ou aos piratas porque isso pode ocasionar desordem ou derramamento de sangue Se qualquer malfeito ocorre nesses casos não se deve responsabilizar aquele que defende seu próprio direito mas aquele que invade o de seu vizinho Se o CLUBE DO LIVRO LIBERAL homem honesto deve abandonar tudo o que possui pela paz em prol daquele que porá suas mãos violentas sobre a sua propriedade eu quero que seja considerado que tipo de paz haverá no mundo que consiste apenas na violência e na rapina e que deve ser mantida apenas em benefício dos ladrões e dos opressores Quem não admiraria o tratado de paz que os poderosos concluem com os humildes quando o carneiro sem resistência ofereceu sua garganta ao lobo imperioso para que este a dilacerasse O antro de Polifemo nos fornece um perfeito padrão de tal governo em que Ulisses e seus companheiros não têm nada mais a fazer senão se deixar devorarem sem reclamar E sem dúvida Ulisses que era um homem prudente recomendou a seus companheiros obediência passiva e os exortou a se submeter em silêncio expondolhes a importância da paz para a humanidade e mostrandolhes as inconveniências a que se arriscariam se oferecessem resistência a Polifemo que agora detinha o poder sobre eles 229 O objetivo do governo é o bem da humanidade e o que é melhor para a humanidade que o povo deva estar sempre exposto à vontade desenfreada da tirania ou que os governantes às vezes enfrentem a oposição quando exorbitam de seus direitos no uso do poder e o empregam para a destruição e não para a preservação das propriedades de seu povo 230 Que ninguém diga que partindo deste princípio haverá malfeitos a cada vez que um indivíduo impetuoso ou de espírito turbulento desejar a mudança do governo É verdade que tal homem pode se agitar sempre que quiser mas com isso só conseguirá se arruinar e se perder como bem o merece Enquanto o mal não se torna geral e as intenções nefastas dos dirigentes não se tornem visíveis assim como suas tentativas perceptíveis para a maioria o povo que prefere sofrer a resistir para fazer valer seus direitos não se arrisca a se rebelar Alguns exemplos de injustiça ou opressão particulares aqui ou ali não bastam para inquietálo Mas se universalmente se convencer baseado na evidência manifesta que as intenções o está colocando contra as suas liberdades e o curso e a tendência geral das coisas não pode deixar de lhe despertar suspeitas da má intenção de seus governantes a quem deve se queixar Quem pode ajudálo se aquele que podia evitálo se colocou sob suspeita E o povo poderá ser censurado por ter o entendimento que todas as criaturas racionais possuem e não conceber os fatos senão como os constata e os percebe Os verdadeiros responsáveis não são antes aqueles que criaram uma tal situação que não permite que eles enxerguem de outra forma Eu admito que o orgulho a ambição e a violência de determinados homens às vezes causaram grandes desordens nas comunidades civis e as facções têm sido fatais a alguns estados e reinos Mas se a causa mais freqüente desses males começou na irreflexão dos homens e em um desejo de rejeitar a autoridade legal de seus governantes ou na insolência e nas tentativas dos governadores para adquirir e exercer um poder arbitrário sobre seu povo se foi a opressão ou a desobediência que deu o primeiro passo para a desordem deixo a cargo da história imparcial determinar Estou certo de uma coisa seja quem for governante ou súdito que tente pela força invadir os direitos do príncipe ou do povo e determinar a base para a derrubada da constituição e da estrutura de qual quer governo justo ele é altamente culpado do maior crime de que um homem é capaz e deve responder por todos os males do sangue derramado da rapina e da desolação que o destroçamento de um governo traz para um país Aquele que age assim merece que a humanidade o considere como um inimigo comum e como uma peste e como tal deve ser tratado 231 Todos concordam que é permitido resistir pela força aos súditos ou aos estrangeiros que utilizam da força para se apossar dos bens de quem quer que seja Mas temse negado nos últimos tempos que se possa resistir aos magistrados que agem da mesma forma Como se aqueles que têm os maiores privilégios e vantagens propiciados pela lei tivessem assim o poder de infringir essas leis sem as quais eles não seriam em nada superiores aos seus semelhantes Sua ofensa é muito maior tanto porque não sabem agradecer a parte mais vantajosa que a lei lhes dá quanto porque falharam na missão que o povo lhes outorgou 232 Qualquer pessoa que usar a força ilegalmente como todos fazem em uma sociedade em que não existe lei colocase em estado de guerra contra aqueles contra quem ele a usa e nesse estado todos os vínculos anteriores são cancelados todos os outros direitos cessam e cada um tem o direito de se defender e resistir ao Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 99 agressor Isto é tão evidente que o próprio Barclay94 o grande defensor do poder e da santidade dos reis é forçado a admitir que em alguns casos é legal o povo resistir a seu rei também em um capítulo em que ele pretende mostrar que a lei divina proíbe ao povo todas as formas de rebelião Fica então evidente mesmo por sua própria doutrina que desde que em alguns casos a resistência é permitida nem toda resistência aos príncipes é uma rebelião São estas as suas palavras Quod siquis dicat Ergone populus tyrannicae crudelitati et furori jugulum sempre praebebit Ergone multitudo civitates suas fame ferro et flamma vastari seque conjuges et liberos fortunae ludibrio et tyranni libidini exponi inque omnia vitae pericula omnesque miserias et molestias à rege deduci patientur Num illis quod omni animantium generi est a natura tributum denegari debet ut scilicet vim vi repellant seseque ab injuria tueantur Huic breviter responsum sit populo universo negari defensionem quae juris naturalis est neque ultionem quae praeter naturam est adversus regem concedi debere Quapropter si rex non in singulares tantum personas aliquot privatum odium exerceat sed corpus etiam reipublicae cujus ipse caput est ie totum populum vel insignem aliquam ejus partem immani et intoleranda saevitia seu tyrannide divexet populo quidem hoc casu resistendi ac tuendi se ab injuria potestas competit sed tuendi se tantum non enim in principem invadendi et restituendae injuriae illatae non recedendi a debita reverentia propter acceptam injuriam Praesentem denique impetum propulsandi non vim praeteritam ulciscendi jus habet Horum enim alterum a natura est ut vitam scilicet corpusque tueamur Alterum vero contra naturam ut inferior de superiori supplicium sumat Quod itaque populus malum antequam factum sit impedire potest ne fiat id postquam factum est in regem authorem sceleris vindicare non potest populus igitur hoc amplius quam privatus quispiam habet Quod huic vel ipsis adversariis judicibus excepto Buchanano nullum nisi patientia remedium superest Cum ille si intolerabilis tyrannis est modicum enim ferre omnino debet resistere cum reverentia possit Barclay Contra Monarchomachos lib iii c 8 Isto significa 233 Mas se alguém perguntar Então as pessoas devem sempre se expor à crueldade e à ira da tirania Devem ver suas cidades pilhadas e reduzidas a cinzas suas esposas e filhos expostos à luxúria e à fúria dos tiranos e eles mesmos e suas famílias reduzidos por seu rei à ruína e todas as misérias da privação e da opressão e ficar impassíveis Devem apenas os homens ser privados do privilégio comum de opor força com força que a natureza permite tão livremente a todas as outras criaturas para se protegerem Eu respondo A autodefesa é uma parte da lei da natureza não pode ser negada à comunidade nem mesmo contra o próprio rei Mas não se deve deixar que ela se vingue sobre ele pois isso não está de acordo com a lei da natureza Por isso se o rei demonstrar um sentimento de ódio não apenas a determinadas pessoas mas se colocar contra todo o conjunto da comunidade civil de que ele é o chefe e com um mau uso intolerável do poder cruelmente tiranizar todo o povo ou uma considerável parte dele neste caso o povo tem o direito de resistir e se defender da injúria Mas isso deve ser feito com cautela pois ele só tem o direito de se defender não de atacar seu príncipe O povo pode reparar os danos causados mas não deve por nenhuma provocação exceder os limites da reverência e do respeito devidos Pode rejeitar a presente tentativa mas não deve vingar violências passadas Para nós é natural defender a vida e uma parte do corpo mas um inferior punir um superior é contra a natureza O malfeito dirigido ao povo deve ser evitado por ele antes que seja cometido mas se for cometido ele não deve se vingar sobre a pessoa do rei ainda que ele seja o autor da vilania Eis então o privilégio do povo em geral acima do ódio de qualquer pessoa individualmente segundo nossos próprios adversários exceto apenas Buchanan aquelas pessoas individualmente não têm outro recurso senão a paciência mas o conjunto do povo pode com respeito resistir à tirania intolerável mas quando ela for apenas moderada devem suportála 94 William Barclay 15461608 escocês filósofo do direito e da política autor de De regno et regali potestate adversus buchananum Brutum Boucherium et reliquos monarchomacos Paris 1600 e De potestate papae N da T CLUBE DO LIVRO LIBERAL 234 Eis dentro de que limites esse grande defensor do poder monárquico autoriza a resistência 235 É verdade que ele acrescentou duas limitações a isso sem qualquer propósito Primeira Segundo ele deve ser exercida com respeito Segunda Não deve ser acompanhada de sanções ou de punições e a razão que ele apresenta é que um inferior não pode punir um superior Primeiro Como resistir à força sem revidar os golpes ou como combater com reverência Seria preciso uma certa habilidade para tornar isso inteligível Aquele que se opõe a um assalto somente com um escudo para receber os golpes ou em uma postura mais respeitosa sem uma espada em sua mão para deter a confiança e a força do assaltante rapidamente estará no fim de sua resistência e descobrirá que uma defesa desse tipo só serve para atrair sobre si o pior uso Esta é uma maneira ridícula de resistir como mostrou Juvenal que estava nessa situação na luta ubi tu pulsas ego vapulo tantum você bate e eu só apanho E o resultado do combate será inevitavelmente o mesmo que ele descreve aqui Libertas pauperis haec est Pulsatus rogat et pugnis concisus adorat Ut liceat paucis cum dentibus inde reverti95 Assim terminará sempre a resistência imaginária dos homens que não têm o direito de revidar os golpes Por isso aquele que pode resistir deve ter o direito de lutar Então nosso autor ou qualquer outra pessoa concilie um golpe na cabeça ou uma cutilada na face com toda a reverência e o respeito que quiserem Aquele que é capaz de conciliar os golpes e a reverência pelo que eu saiba merece por suas penas uma paulada civil e respeitosa no primeiro momento propício Segundo Em sua opinião um inferior nunca pode punir um superior isto é verdadeiro de uma maneira geral desde que ele seja o superior Mas resistir à força com a força não é senão o estado de guerra que coloca as partes em uma situação de igualdade cancelando todas as relações anteriores de reverência respeito e superioridade então o que permanece estranho é que aquele que se opõe ao agressor injusto tem esta superioridade sobre ele pois ele tem o direito em caso de vitória de punir o ofensor tanto para romper a paz quanto para todos os males resultantes Por isso em outra passagem Barclay mais coerente consigo mesmo nega ser legal resistir a um rei em qualquer caso Mas lá ele aponta dois casos em que um rei pode destronar a si mesmo Vejamos o que ele diz Quid ergo nulline casus incidere possunt quibus populo sese erigere atque in regem impotentius dominantem arma capere et invadere jure suo suaque authoritate liceat Nulli certe quamdiu rex manet Semper enim ex divinis id obstat Regem honorificato et qui potestati resistit Dei ordinationi resistit non alias igitur in eum populo potestas est quam si id committat propter quod ipso jure rex esse desinat Tunc enim se ipse principatu exuit atque in privatis constituit liber hoc modo populus et superior efficitur reverso ad eum scilicet jure illo quod ante regem inauguratumin interregno habuit At sunt paucorum generum commissa ejusmodi quae hunc effectum pariunt At ego cum plurima animo perlustrem duo tantum invenio duos inquam casus quibus rex ipso facto ex rege non regem se facit et omni Honoré et dignitate regali atque in subditos potestate destituit quorum etiam meminit Winzerus Horum unus est si regnum disperdat quemadmodum de Nerone fertur quod is nempe senatum populumque Romanum atque adeo urbem ipsam ferro flammaque vastare ac novas sibi sedes quaerere 95 Tal é a liberdade do pobre Agredido ele suplica e golpeado a socos ele implora que o deixem sem lhe arrancar os dentes Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 101 decrevisset Et de Caligula quod palam denunciarit se neque civem neque principem senatui amplium fore inque animo habuerit interempto utriusque ordinis electissimo quoque Alexandriam commigrare ac ut populum uno ictu interimerit unam ei cervicem optavit Talia cum rex aliquis meditatur et molitur serio omnem regnandi curam et animum ilico abjicit ac proinde imperium in subditos amittit ut dominus servi pro derelicto habiti dominium 236 Alter casus est si rex in alicujus clientelam se contulit ac regnum quod liberum a majoribus et populo traditum accepit alienae ditioni mancipavit Nam tunc qumvis forte non ea mente id agit populo plane ut incommodet tamem quia quod praecipuum est regiae dignitatis amisit ut summus scilicet in regno secundum Deum sit et solo Deo inferior atque populum etiam totum ignorantem vel invitum cujus libertatem sartam et tectam conservare debuit in alterius gentis ditionem et potestatem dedidit hac velut quadam regni abalienatione effecit ut nec quod ipse in regno imperium habuit retineat nec in eum cui collatum voluit juris quicquam transferat atque ita eo facto liberum jam et suae potestatis populum relinquit cujus rei exemplum unum annales Scotici suppeditant Barclay Contra Monarchomachos 1ib iii c 16 Que vem a significar 237 Então não há nenhum caso em que o povo possa ter o direito e por sua própria iniciativa pegar em armas e atacar seu rei que lhe impõe uma dominação imperiosa Não nenhum enquanto ele continuar sendo rei Honra o rei e Aquele que resiste ao poder resiste à ordem de Deus são oráculos divinos que jamais o permitiriam Por isso é impossível que o povo adquira jamais algum poder sobre a pessoa do rei a menos que ele cometa alguma ação que lhe faça perder a qualidade de rei Então ele mesmo se despoja de sua coroa e de sua dignidade retorna à condição de um homem comum e o povo se torna livre e superior sendolhe devolvido novamente o poder que ele detinha no interregno antes de coroálo rei Mas as coisas não chegam a este ponto senão após algumas prevaricações que permanecem excepcionais Depois de considerar bem todos os lados só encontro dois exemplos Dois casos se apresentam quero dizer quando um rei ipso facto deixa de ser rei e pára de exercer qualquer poder e qualquer autoridade sobre seu povo que também foram citados por Winzerus O primeiro é quando ele tenta derrubar o governo ou seja se tem um propósito e uma intenção de arruinar o reino e a comunidade civil como nos contam que Nero resolveu derrubar o senado e o povo de Roma deixou a cidade arrasada com fogo e sangue e depois transferiuse para outro lugar e Calígula que abertamente declarou que não ficaria mais à frente do povo ou do senado e que ele pretendia suprimir com estas duas ordens o pior homem de ambos os cargos e depois se retirou para Alexandria e desejava que o povo tivesse um só pescoço para poder acabar com ele de um só golpe Quando um rei seja ele qual for abriga tais intenções em seu espírito e busca seriamente realizálas imediatamente abandona todo o cuidado e preocupação com a comunidade civil e conseqüentemente renuncia ao poder de governar seus súditos da mesma forma que um senhor renuncia à propriedade de seus escravos quando os abandona 238 O outro caso é quando um rei se coloca em uma situação de dependência diante de outro rei e submete seu reinado que seus ancestrais lhe legaram e que o povo livremente lhe confiou ao domínio de outro mesmo que não haja a intenção de prejudicar o povo perdeu assim o elemento essencial da dignidade real ou seja ser imediatamente depois de Deus supremo em seu reino e também porque traiu ou forçou seu povo cuja liberdade ele devia ter cuidadosamente preservado ao poder e ao domínio de uma nação estrangeira e por essa digamos assim alienação de seu reino ele perde o poder que possuía antes sem transferir qualquer direito por menor que seja àqueles que ele busca entregálo e por este ato deixa o povo livre à mercê de seu destino Pode se encontrar um exemplo disso nos anais escoceses 239 Nestes casos Barclay o grande defensor da monarquia absoluta é forçado a admitir que se tem o direito de resistir a um rei e que este deixa de ser rei ou seja resumindo para não multiplicar os exemplos em todos os domínios que escapam a sua competência ele não possui a qualidade de rei e temse o direito de a ele CLUBE DO LIVRO LIBERAL resistir quando a autoridade termina o rei também desaparece e se torna um homem como qualquer outro sem autoridade e estes dois casos que ele cita diferem pouco daqueles acima mencionados como sendo destrutivos aos governos mas ele omitiu o princípio de onde deriva a sua doutrina o abuso da confiança que consiste em não preservar a forma de governo fixada em comum acordo e a falta de intenção de cumprir os objetivos próprios do governo que são o bem público e a preservação da propriedade Quando um rei se destrona e se coloca em estado de guerra com seu povo o que os impede de perseguilo agora que ele não é mais rei como a qualquer outro homem que se colocasse em estado de guerra com ele Barclay e aqueles que compartilham de sua opinião fariam bem em nos dizer E eu gostaria de chamar a atenção sobre a passagem onde Barclay diz que os malfeitos que se projetam contra ele o povo tem o direito de impedir previamente ele autoriza assim a resistência ainda que a tirania só exista na intenção Ele diz que desde que um rei seja qual for abrigue em seus pensamentos e busque seriamente pôr em prática tais intenções imediatamente renuncia a todo o cuidado e preocupação com a comunidade social assim segundo ele a negligência do bem público deve ser encarada como uma evidência de tal intenção ou pelo menos uma causa suficiente para a resistência A razão que o autor apresenta é a seguinte ele traiu ou oprimiu seu povo cuja liberdade ele devia cuidadosamente ter preservado O que ele acrescenta sobre a dominação de uma nação estrangeira não significa nada a culpa e o confisco permanecendo na perda de sua liberdade que devia ter sido preservada e não em qualquer distinção das pessoas a cujo domínio ele estava sujeito O direito do povo é igualmente invadido e sua liberdade perdida quer eles sejam tornados escravos de um senhor dentro de seu país quer de uma nação estrangeira e aí reside a injustiça e contra ela o povo só tem o direito de defesa E há exemplos a serem encontrados em todos os países que mostram que a ofensa não está na mudança de nações nas pessoas de seus governantes mas na mudança de governo Salvo engano de minha parte em uma passagem de seu tratado sobre a Sujeição Cristã Bilson um bispo de nossa igreja e grande defensor do poder e da prerrogativa dos príncipes reconhece que os príncipes podem renunciar ao seu poder e ao seu direito à obediência de seus súditos e se houver necessidade de argumentos de autoridade em um caso onde a razão é tão clara eu posso recomendar ao meu leitor Bracton Fortescue o autor de The Mirror96 e outros escritores que não podem ser suspeitos de conhecer mal nosso governo ou de lhe serem hostis Mas achei que apenas Hooker bastava para satisfazer àqueles homens que confiando nele para sua política eclesiástica são por um destino estranho levados a negar aqueles princípios sobre os quais ele a edificou Eles seriam melhor vistos se tomassem cuidado para que operários mais habilidosos que eles não os utilizassem para demolir o edifício que eles estão prestes a construir estou certo de que sua política civil é tão nova tão perigosa e tão destrutiva tanto para os governantes quanto para o povo que assim como as gerações anteriores jamais poderiam suportar o início dessa discussão podese esperar que aquelas que estão por vir salvas das imposições destes subcapatazes egípcios terão horror à memória de tais bajuladores servis que enquanto isso pareceu servir aos seus propósitos converteram todos os governos em tirania absoluta e gostariam de ter todos os homens nascidos na única condição que corresponde à baixeza de suas almas a escravidão 240 É provável que se coloque aqui a indagação habitual Quem vai julgar se o príncipe ou o legislativo agiram contra a missão que lhes foi confiada Isso talvez homens maldispostos e facciosos possam espalhar entre o povo quando o príncipe só faz uso de sua devida prerrogativa Eu respondo O povo será o juiz quem vai julgar se o comissionado ou o mandatário age bem e de acordo com a confiança nele depositada senão aquele que o comissionou e deve por havêlo comissionado ter ainda o poder de destituílo quando falha em sua confiança Se isso é razoável em casos particulares de homens comuns por que deveria ser diferente na questão que é a mais considerável de todas que diz respeito ao bemestar de milhões de pessoas e onde o mal se não for evitado fica mais grave e não pode ser curado sem muitas dificuldades ônus e perigos 241 Além disso quem deve julgar esta questão Não pode significar que não há absolutamente juiz pois onde não há magistratura na terra para decidir as controvérsias entre os homens Deus no céu é o juiz Somente Ele na verdade é o juiz dos direitos do homem mas neste caso como em todos os outros cada homem é juiz de si mesmo ao decidir quando outro se colocou em estado de guerra com ele e quando ele deve apelar para o Juiz Supremo como fez Jefté 96 O Espelho dos Juízes obra anônima de 1640 N da T Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 103 242 Quando surge uma controvérsia entre um príncipe e uma parte do povo em uma questão em que a lei é silenciosa ou duvidosa e a questão é de muita importância eu acho que o árbitro apropriado em tal caso deveria ser o conjunto do povo pois em casos em que o príncipe tem uma confiança depositada nele e está dispensado das regras ordinárias comuns da lei se alguns homens se consideram lesados e acham que o príncipe agiu de encontro ou além dessa confiança quem mais apropria do para julgar que o conjunto do povo que primeiro depositou nele essa confiança até que ponto ela deve se estender Mas se o príncipe ou seja quem for que esteja na administração declinar dessa forma de determinação não resta outra solução senão apelar ao céu O emprego da força entre pessoas que não têm superior conhecido na terra ou em condições tais que não se possa buscar nenhum juiz na terra constitui propriamente o estado de guerra o único recurso então é apelar ao céu e a parte lesada deve decidir por ela mesma se julga adequado fazer uso desse apelo e utilizálo 243 Para concluir o poder que cada indivíduo deu à sociedade quando nela entrou jamais pode reverter novamente aos indivíduos enquanto durar aquela sociedade sempre permanecendo na comunidade pois sem isso não haveria nenhuma comunidade nenhuma comunidade civil o que seria contrário ao acordo inicial da mesma forma quando a sociedade confiou o legislativo a uma assembléia seja qual for para que seus membros e seus sucessores o exerçam no futuro e se encarreguem de providenciar sua própria sucessão o legislativo não pode reverter ao povo enquanto aquele governo durar tendo habilitado o legislativo com um poder perpétuo o povo renunciou ao seu poder político em prol do legislativo e não pode reassumilo Mas se tiverem estabelecido limites para a duração de seu legislativo e tornado temporário este poder supremo confiado a qualquer pessoa ou assembléia ou ainda quando por malfeitos daquele detentores da autoridade o poder é confiscado pelo confisco ou por determinação do tempo estabelecido ele reverte à sociedade e o povo tem o direito de agir como supremo e exercer ele próprio o poder legislativo ou ainda colocálo sob uma nova forma ou em outras mãos como achar melhor
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CLUBE DO LIVRO LIBERAL JOHN LOCKE SEGUNDO TRATADO SOBRE O GOVERNO CIVIL CLUBE DO LIVRO LIBERAL SEGUNDO TRATADO DO GOVERNO CIVIL John Locke Tradução Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa Publicação Editora Vozes Organização Igor César F A Gomes Distribuição Clube do Livro Liberal Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 3 ÍNDICE Introdução 4 Notas sobre o Texto 21 Resumo do Primeiro Tratado do Governo Civil 22 CAPÍTULO I 22 CAPÍTULO II DO PODER PATERNO E REAL 23 CAPÍTULO III DO TÍTULO DE ADÃO À SOBERANIA PELA CRIAÇÃO 26 CAPÍTULO IV DO TÍTULO DE ADÃO À SOBERANIA POR ADOÇÃO GN 128 29 CAPÍTULO V DO TÍTULO DE AÇÃO À SOBERANIA PELA SUJEIÇÃO DE EVA 29 CAPÍTULO VI DO TÍTULO DE ADÃO À SOBERANIA PELA PATERNIDADE 29 CAPÍTULO VII DA PATERNIDADE E DA PROPRIEDADE 30 CAPÍTULO VIII DA TRANSMISSÃO DO PODER MONÁRQUICO SOBERANO DE ADÃO 31 CAPÍTULO IX DA MONARQUIA COMO HERANÇA RECEBIDA DE ADÃO 31 CAPÍTULO X DO HERDEIRO DO PODER MONÁRQUICO DE ADÃO 32 CAPÍTULO XI QUEM É ESTE HERDEIRO 32 Segundo Tratado Sobre O Governo Civil 35 CAPÍTULO I ENSAIO SOBRE A ORIGEM OS LIMITES E OS FINS VERDADEIROS DO GOVERNO CIVIL 35 CAPÍTULO II DO ESTADO DE NATUREZA 36 CAPÍTULO III DO ESTADO DE GUERRA 39 CAPÍTULO IV DA ESCRAVIDÃO 41 CAPÍTULO V DA PROPRIEDADE 42 CAPÍTULO VI DO PODER PATERNO 49 CAPÍTULO VII DA SOCIEDADE POLÍTICA OU CIVIL 56 CAPÍTULO VIII DO INÍCIO DAS SOCIEDADES POLÍTICAS 61 CAPÍTULO IX DOS FINS DA SOCIEDADE POLÍTICA E DO GOVERNO 69 CAPÍTULO X DAS FORMAS DA COMUNIDADE CIVIL 70 CAPÍTULO XI DA EXTENSÃO DO PODER LEGISLATIVO 71 CAPÍTULO XII DOS PODERES LEGISLATIVO EXECUTIVO E FEDERATIVO DA COMUNIDADE CIVIL 74 CAPÍTULO XIII DA HIERARQUIA DOS PODERES DA COMUNIDADE CIVIL 76 CAPÍTULO XIV DA PREROGATIVA 79 CAPÍTULO XV DO PODER PATERNO POLÍTICO E DESPÓTICO CONSIDERADOS EM CONJUNTO 82 CAPÍTULO XVI DA CONQUISTA 83 CAPÍTULO XVII DA USURPAÇÃO 89 CAPÍTULO XVIII DA TIRANIA 90 CAPÍTULO XIX DA DISSOLUÇÃO DO GOVERNO 93 CLUBE DO LIVRO LIBERAL Introdução JW GOUGH O Tratado sobre o governo civil de LOCKE é freqüentemente descrito como uma defesa da Revolução de 1688 e uma justificativa dos princípios dos Whigs que se tornaram dominantes na política inglesa durante o século seguinte Em seu prefácio ele declarou explicitamente que esperava instaurar o trono de nosso grande restaurador nosso atual rei William apoiar seu título com a concordância do povo e justificar diante do mundo o povo da Inglaterra cujo amor por seus direitos justos e naturais com sua decisão de preserválos salvou a nação quando esta se encontrava à beira da escravidão e da ruína No entanto seria um erro supor que Locke tenha deliberadamente se posicionado para fundamentar os argumentos utilizados pelos políticos Whigs na Convenção pois em muitos pontos seu raciocínio diferia do deles seguindo uma linha de pensamento que desenvolveu de maneira independente Uma exposição concisa da essência de sua teoria política aparece no início do esboço de Um ensaio sobre a tolerância que ele escreveu no início de 1667 mas não o publicou1 Que toda a investidura de toda a responsabilidade poder e autoridade do magistrado tenha como único propósito o de proporcionar o bemestar a preservação e a paz dos homens na sociedade que ele está defendendo e assim apenas isso é e deve ser o padrão e a medida segundo os quais ele deve estabelecer e ajustar suas leis o modelo e a estrutura de seu governo Pois se os homens pudessem viver juntos de modo pacífico e calmo sem estarem subjugados a certas leis e desenvolvendose no interior de uma sociedade política não haveria nenhuma necessidade de magistrados ou de política que só foram criados para defender os homens deste mundo da fraude e da violência uns dos outros por conseguinte o objetivo do governo instalado deveria ser a única medida de seu procedimento Em seguida ele rejeita a idéia da monarquia absoluta por direito divino ou oriunda de uma concessão de poder outorgado pelo povo pois não se pode supor que o povo concedesse a um ou mais de seus compatriotas uma autoridade a ser exercida sobre ele por qualquer outro motivo que não o de sua própria preservação ou estender os limites de sua jurisdição além dos limites desta vida Locke era sem dúvida um Whig tendo passado grande parte de sua vida em um ambiente permeado pelas doutrinas dos Whigs mas se a publicação de seu Tratado foi inspirado pela Revolução fica evidente que ele estruturou os fundamentos de suas convicções políticas antes de 1688 Nascido em 16322 Locke era filho de um advogado de província que não gostava de acumular riquezas serviu no exército do parlamento na Guerra Civil e deu a seus filhos uma educação puritana John foi enviado à Escola de Westminster que apoiava a causa do parlamento e em 1652 passou para a Christ Church Oxford ali permanecendo com uma bolsa de estudos após sua graduação Seus estudos foram feitos dentro do espírito escolástico convencional que ainda prevalecia em Oxford e mais tarde queixouse de ter desperdiçado seu tempo mas suas leituras também abrangeram outros campos incluindo o hebraico e o árabe e desse modo ele entrou em contato com o professor dessas línguas Edward Pococke a quem muito admirava Pococke era um franco defensor da realeza e sua influência juntamente com a de outros amigos em Oxford muitos dos quais apologistas da realeza pode ter contribuído para afastar Locke das influências puritanas de sua infância O Deão da Christ Church e ViceChanceler naquela época John Owen era um teólogo independente que defendia a tolerância embora Locke simpatizasse com ele nesse aspecto e também tivesse um relacionamento amigável com Richard Baxter e outros importantes nãoconformistas na teologia ele se encontrava mais à vontade com a escola de tendência libera l representada na Inglaterra pelos platonistas de Cambridge e seus sucessores os latitudinários e na Holanda pelos arminianos Seu interesse pela filosofia foi despertado por meio dos escritos de Descartes e através da amizade com Robert Boyle ele também desenvolveu uma inclinação para as ciências naturais Como vários de seus contemporâneos impressionouse pelo sucesso de seus novos métodos empíricos e durante algum tempo a ciência particularmente a medicina tornouse seu principal interesse Foi isso que 1 Publicado por HR Fox Bourne em Life of John Locke 1876 i p 174194 2 Locke nasceu em Wrington ao norte de Somerset mas durante sua infância viveu próximo a Pensford alguns quilômetros a leste no mesmo condado Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 5 propiciou a estreita associação entre ele e Lord Ashley mais tarde Conde de Shaftesbury um dos episódios mais importantes na carreira de Locke Seu primeiro encontro com Ashley ocorreu em 1666 e houve uma imediata afinidade entre ambos resultando em 1667 no oferecimento e aceitação por parte de Locke do cargo de médico da família Ashley o que motivou sua transferência para Londres para morar na casa de Ashley Logo tornouse muito mais que conselheiro médico de Ashley e era por ele consultado em muitas das atividades políticas em que estava engajado Em 1672 quando Ashley se tornou Conde de Shaftesbury e presidente da Câmara dos Lordes Locke foi designado secretário para as nomeações eclesiásticas um ano mais tarde tornandose secretário do Conselho do Comércio e da Agricultura de que Shaftesbury era presidente Nessa qualidade Locke foi responsável pelo esboço das Constituições fundamentais do Estado da Carolina mas ainda que ele tivesse aprovado a liberdade religiosa que lá deveria ser permitida parece claro que ele não imaginou os singulares dispositivos constitucionais incorporados neste projeto A saúde de Locke era frágil e ameaçava sucumbir sob a pressão do trabalho que seus compromissos políticos envolviam Em 1675 decidiu ir para o exterior passando os quatro anos subseqüentes viajando pela França Em 1679 no auge da crise sobre a Carta de Exclusão ele mais uma vez prestou serviços a Shaftesbury por um curto período até que novamente por problemas de saúde deixou Londres e retornou à Christ Church Permaneceu em Oxford durante os dois anos seguintes fazendo apenas visitas ocasionais a Londres mas nesse meio tempo Shaftesbury apoiou o Duque de Monmouth e teve de se asilar na Holanda onde morreu em janeiro de 1683 Locke não estava implicado nas conspirações de Shaftesbury mas suas simpatias políticas e sua amizade com Shaftesbury eram bem conhecidas e conseqüentemente ficou sob suspeita Consciente de que sua conduta e suas conversas estavam sendo vigiadas decidiu que seria prudente seguir seu patrão no exílio e em setembro de 1683 chegou a Rotterdam O governo encarou isso como um reconhecimento de sua culpa e em novembro de 1684 por ordem expressa do rei ele foi privado de sua bolsa de estudos na Christ Church No ano seguinte após a derrota da rebelião de Monmouth Locke foi acusado de estar envolvido na conspiração e embora posteriormente tenhalhe sido perdoado ele decidiu permanecer na Holanda e somente em fevereiro de 1689 retornou à Inglaterra no mesmo navio que conduzia a Princesa Mary A saúde de Locke melhorou muito na Holanda além de lá ter tido tempo para estudar escrever e fazer muitos amigos A tolerância era um tema bastante discutido na Holanda nessa época sobre o qual Locke já tinha opinião formada e no inverno de 16856 ele escreveu em latim a carta a seu amigo holandês o teólogo Limborch que foi publicada em 1689 com o título Epistola de Tolerantia No mesmo ano uma versão em inglês foi publicada anonimamente por William Popple que provavelmente escreveu o famoso prefácio que a precede Durante este período Locke também fez progressos em sua maior obra o Ensaio sobre o entendimento humano a que já estava se dedicando há muitos anos Este foi publicado em 1690 no mesmo ano em que também foram publicados os Tratados sobre o governo civil Assim como a Carta sobre a tolerância os Tratados tiveram uma primeira publicação anônima embora a autoria de Locke fosse amplamente conhecida Assim sendo o período da Revolução e os anos de exílio que o precederam viram Locke no auge de sua criatividade e dedicado à produção de suas mais célebres obras Na Holanda ele encontrou em sua sede principal a teologia dos arminianos que correspondia bem de perto aos seus próprios pontos de vista religiosos e isso pode ter contribuído para fortalecer sua crença em uma igreja abrangente e tolerante baseada apenas em doutrinas que a razão aceitaria como essenciais Embora na Holanda Locke também entrou mais uma vez em contato com a política dos Whigs e se preocupou embora nos primeiros estágios com os planos para a expedição de Guilherme de Orange Ao voltar à Inglaterra ele foi muito respeitado tendolhe sido oferecido um cargo de embaixador junto ao Eleitor de Brandenburg Ele recusou o posto por motivos de saúde mas aceitou do rei uma nomeação como Comissário de Apelação em 1696 tornandose Comissário do Conselho de Comércio e Agricultura Entretanto suas condições de saúde tornaramse incompatíveis com o trabalho envolvido e ele se recolheu à casa de Sir Francis e Lady Masham filha de Ralph Cudworth platônico de Cambridge em Oates no Essex Aí passou seus últimos anos até sua morte em 1704 Continuou a estudar e a escrever produzindo uma edição revista do Ensaio e envolvendose em uma controvérsia prolongada para defender sua Carta sobre a tolerância contra um oponente Jonas Proast do Queens College de Oxford Escreveu também sobre educação e sobre questões econômicas mas seu principal interesse nos últimos anos parece ter sido a teologia Em 1695 publicou uma obra intitulada A racionalidade da cristandade envolvendose em uma controvérsia a CLUBE DO LIVRO LIBERAL respeito da Trindade com Stillingfleet Bispo de Worcester sua última obra publicada após sua morte era uma paráfrase e comentários sobre epístolas de São Paulo Na teologia assim como na política e na ciência Locke foi identificado com o movimento racionalista de sua época mas se nos reportarmos a seus escritos e perguntarmos de onde exatamente ele derivou seus pontos de vista sobre este ou aquele tema ou que influência em particular ele sofreu a resposta não é fácil No geral suas idéias políticas não eram originais seja em sua estrutura principal ou nos detalhes e podem ser encontradas semelhanças óbvias entre seus argumentos e aqueles de Milton Algernon Sidney e vários outros predecessores menos conhecidos Mas isso não significa que ele tenha derivado suas idéias das deles e de fato ele declarou mais tarde que nunca tinha lido os Discursos sobre o governo de Sidney Com exceção de algumas passagens de Barclay3 próximo ao final do Segundo tratado a única obra que Locke citou extensivamente foi Leis da política eclesiástica de Richard Hooker Hooker foi um expoente da mesma tradição no pensamento religioso e político inglês a que se vincularam depois os platônicos de Cambridge e o próprio Locke mas seria um erro considerar Hooker como a única ou mesmo a principal fonte das idéias de Locke pois escolhendoo para suas citações Locke pode bem ter sentido que ele estava apelando para uma autoridade altamente respeitada que valeria para seus oponentes anglicanos e Tories Locke foi por muitos anos um estudioso e fez leituras de maneira muito ampla como mostram seus diários e cadernos de anotações Evidentemente ele seguiu durante um extenso período as correntes de pensamento que levaram ao Ensaio sobre o entendimento humano e a tolerância foi outro tema sobre o qual ele refletiu longamente Suas idéias políticas básicas também já estavam estruturadas mas ele provavelmente não elaborou qualquer teoria política sistemática até ir para a Holanda onde se sentiu impelido a fazêlo pelo curso dos acontecimentos Sua atitude geral foi determinada pelas vinculações de sua vida sua educação puritana suas ligações com os Whigs e seu exílio Mas ao contrário de muitos escritores de sua época ele não tentava transmitir suas convicções multiplicando as citações de autoridades buscava antes demonstrar cada ponto considerandoo racionalmente sem referência ao que seus antecessores haviam dito e com freqüência suas passagens mais felizes são os exemplos mais simples e lúcidos com que ele ilustra seu pensamento Mas embora ele tentasse e conseguisse abordar cada ponto de uma forma nova sem dúvida ponderou e absorveu as idéias de uma ampla variedade de escritores anteriores A importância de seu pensamento não é ter sido original ou particularmente radical ou avançado mas ter resumido e consolidado a obra de toda uma geração ou mais de pensadores políticos O Primeiro tratado sobre o governo civil é uma refutação dos falsos princípios contidos no Patriarcha de Sir Robert Filmer Esta obra publicada em 1680 mas escrita muitos anos antes em que o direito divino da monarquia absoluta é baseado na descendência hereditária de Adão e dos patriarcas é em geral rejeitada como sem valor e tem sido comentado que apenas o ataque de Locke a ela preservoua do esquecimento Por outro lado o Sr JW Allen defendeu4 que Filmer foi um pensador importante e original sendo equivocado associálo apenas com uma teoria patriarcal e injusto recordálo somente através de sua caricatura apresentada por Locke pois em sua Anarquia de uma monarquia limitada e mista 1648 suas Observações sobre a Política de Aristóteles 1652 e outras obras ele teve o mérito com freqüência atribuído a Hobbes de claramente perceber a natureza e a necessidade da soberania Locke conhecia as obras anteriores de Filmer pois faz alusão a algumas delas no segundo capítulo do Primeiro tratado mas a razão porque escolheu Patriarcha como o objeto de seu ataque é bem clara As outras obras de Filmer provavelmente não eram tão conhecidas quando Locke estava escrevendo enquanto Patriarcha havia sido recentemente publicado e já era um motivo de controvérsia pois James Tyrrell e Algernon Sidney a contestaram e por sua vez provocaram o surgimento de outros panfletos em sua defesa além disso o direito hereditário divino era a doutrina Tory oficial e os argumentos a seu favor em Patriarcha se autodestruíram O ataque de Locke a Filmer é principalmente destrutivo e de pouco interesse intrínseco hoje em dia e seu Primeiro tratado é por isso omitido deste volume mas Locke estava bem consciente de que Hobbes embora jamais tenha encontrado apoio nos círculos da corte era o mais sério inimigo que ele teria de combater e no 3 William Barclay jurista escocês escreveu para defender o direito divino dos reis contra Buchanan e outros oponentes do absolutismo no século anterior 4 Em Social and Political Ideas of some English Thinkers of the Augustan Age ed FJC Hearnshaw 1928 p 27s cf também com SP Lamprecht The Moral and Political Philosophy of John Locke Nova Iorque 1918 p 41s Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 7 Segundo tratado que contém sua obra construtiva está claro que ele tinha Hobbes muito em mente ainda que se abstivesse de mencionálo nominalmente O Segundo tratado assim como muitos outros tratados políticos desse período começa com um relato do estado de natureza É uma condição em que os homens são livres e iguais mas não é um estado de permissividade em que eles podem pilhar um ao outro O estado de natureza tem uma lei da natureza para governálo a que todos estão sujeitos e a razão que é aquela lei ensina a todo o gênero humano que sendo todos iguais e independentes ninguém deve prejudicar o outro em sua vida saúde liberdade ou posses Isto porque todos são obra do Criador onipotente e infinitamente sábio enviados ao mundo por sua ordem e a seu serviço5 Um homem que transgride a lei da natureza declara viver sob outra regra que não aquela da razão e da eqüidade comum e assim tornase perigoso ao gênero humano Todo homem por isso pelo direito que tem de preservar o gênero humano em geral tem o direito de punir o ofensor e ser o executor da lei da natureza6 Ele tem o poder7 de matar um assassino tanto para impedir que outros cometam um delito semelhante quanto para proteger os homens dos ataques de um criminoso que havendo renunciado à razão à regra comum e à medida que Deus deu ao gênero humano através da violência injusta e da carnificina que cometeu sobre outro homem declarou guerra a todo o gênero humano e por isso pode ser destruído como um leão ou um tigre uma daquelas bestas selvagens em cuja companhia o homem não pode viver nem ter segurança8 O estado de natureza é contrastado com a sociedade civil da qual difere pela falta de um juiz comum com autoridade mas o estado de natureza não é como em Hobbes essencialmente um estado de guerra A característica de um estado de guerra é a força ou uma intenção declarada de força sobre a pessoa do outro em que não há um superior comum na terra a quem apelar por socorro9 Mas Locke não imaginou o estado de natureza como sendo uma espécie de paraíso e de fato a guerra poderia prevalecer nele Admite a inconveniência do estado de natureza em que todo homem tem o poder executivo da lei da natureza em suas próprias mãos e ele está consciente de que a natureza doentia a paixão e a vingança podem levar o homem longe demais na punição dos outros e daí em diante só advirá a confusão e a desordem10 O estabelecimento de um governo mas não de um governo absoluto é a solução adequada Além disso o homem não foi destinado a viver sozinho Deus o colocou sob fortes imposições de necessidade conveniência e inclinação para guiálo para a sociedade assim como o dotou de compreensão e de linguagem para permanecer e desfrutar dela11 Há uma sociedade natural na família mas ela está aquém da sociedade política pois o pater familias não tem poder legislativo de vida e de morte sobre os membros de sua família12 e na verdade não tem poderes além dos que uma mãe de família pode ter tanto quanto ele13 A sociedade política só existe onde os homens concordaram em desistir de seus poderes naturais e erigir uma autoridade comum para decidir disputas e punir ofensores Isso só pode ser realizado por acordo e consentimento Liberdade não significa que um homem possa fazer exatamente o que lhe agrada sem consideração a qualquer lei pois a liberdade natural do homem é ser livre de qualquer poder superior na terra e de não depender do desejo ou da autoridade legislativa do homem mas ter apenas a lei da natureza para regulamentálo enquanto sob governo um homem é livre quando tem um regulamento determinado para guiálo comum a todos daquela sociedade e criado pelo poder legislativo nela erigido A essência da liberdade política na verdade é que um homem não deverá estar sujeito à vontade inconstante incerta desconhecida e arbitrária de outro homem14A lei não é incompatível com a liberdade ao contrário é indispensável a ela pois o objetivo de uma lei não é abolir ou restringir mas preservar e ampliar a liberdade 5 Parágrafo 6 6 Parágrafo 8 7 Por poder Locke se refere aqui a poder executivo como na passagem citada algumas linhas abaixo No estado da natureza todo homem não somente tem um direito natural de punir os ofensores mas também é inevitavelmente o instrumento da lei da natureza 8 Parágrafo 11 9 Parágrafo 19 10 Parágrafo 13 11 Parágrafo 77 12 Exceto sobre os escravos cuja sujeição quando são cativos aprisionados em uma guerra justa Locke justifica pelo direito da natureza Sua discussão da escravidão é breve e superficial parágrafos 24 85 e se tivesse se dedicado mais ao tema certamente teria reconhecido sua incompatibilidade com sua doutrina fundamental da liberdade individual 13 Parágrafo 86 14 Parágrafo 57 CLUBE DO LIVRO LIBERAL Pois a liberdade deve ser livre de restrição e violência por parte dos outros o que não pode existir onde não há lei15 Antes de tratar da criação da sociedade civil Locke dedica dois longos capítulos às questões da propriedade e do poder paterno Neste último ele amplia sua doutrina sobre a igualdade natural e sobre a liberdade dos homens As crianças não nascem neste estado amplo de igualdade embora nasçam para ele Primeiro as crianças estão sujeitas ao controle e à jurisdição paternos mas apenas por algum tempo à medida que a criança cresce estes vínculos praticamente desaparecem dando lugar a um homem com sua própria disposição livre16 De fato nascemos livres assim como nascemos racionais não que tenhamos realmente o exercício dessas duas prerrogativas a idade que traz uma delas traz também a outra17 Em outras palavras a liberda de depende da razão do poder do julgamento independente que capacita um homem a orientar sua vida pela lei da natureza Considerando que o propósito do governo é salvaguardar os direitos naturais do homem Locke defende que estes direitos pertencem a ele no estado de natureza e anseia por provar que entre eles está o direito da propriedade Ele pressupõe que Deus deu a terra e tudo o que ela contém ao gênero humano em comum mas prossegue ele todo homem tem uma propriedade em sua própria pessoa A esta ninguém tem qualquer direito a não ser ele mesmo O trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos são propriedade sua Por isso seja o que for que ele tira do estado que a natureza proporcionou e ali deixou ele misturou aí o seu trabalho acrescentando algo que lhe é próprio e assim o torna sua propriedade18 As ilustrações com que ele sustenta esta doutrina são bons exemplos de seu senso comum claro e racional um homem que colhe frutos do carvalho ou apanha maçãs de uma árvore e os come certamente se apropriou deles Ninguém pode negar que o alimento é dele Pergunto então quando começaram a ser dele Quando ele os digeriu quando os comeu quando os cozinhou quando os levou para casa ou quando os colheu E é óbvio que se o primeiro ato não os tornasse sua propriedade nada mais poderia fazêlo Foi seu trabalho que colocou uma distinção entre eles e o comum e os tornou seus19 O trabalho então cria a propriedade e o mesmo princípio se aplica à terra e aos bens móveis a terra se torna propriedade de um homem quando ele a cercou e a cultivou Além disso o trabalho estabelece a diferença de valor em tudo a diferença no valor entre um acre de terra cultivada e um acre em comum e sem qualquer cultivo é devida quase inteiramente à melhoria realizada pelo trabalho 20 Locke utilizou aqui um argumento do qual os economistas socialistas posteriormente extrairiam conclusões que o teriam surpreendido21 e ele não desenvolveu plenamente as conseqüências de sua doutrina O ponto que o preocupava era a existência de um direito de propriedade no estado da natureza e há objeções óbvias a isso Um homem primitivo poderia ter adquirido possessões ou ocupado a terra da maneira que Locke descreve mas isso não estabelece um direito de propriedade Uma discussão completa deste ponto envolveria toda a questão dos direitos naturais e para isso não há espaço aqui mas mesmo que concluamos que há um sentido em que a expressão direitos naturais pode ser adequadamente usada é difícil defender um direito natural de propriedade como distinto do direito legal Mas Locke ainda foi além de um direito natural de propriedade e defendeu um direito natural de herança22 Sobre a questão da propriedade Rousseau é mais válido que Locke pois distinguiu a propriedade da posse e reconheceu que um direito de propriedade só pode existir quando é defendido e garantido pelas leis e pelo governo do estado e por isso só pode ser sustentado nas condições impostas pelo estado O mesmo princípio pode ser aplicado à pessoa de um homem sobre a qual Locke fundamentou seu direito de propriedade pois a segurança da pessoa de um homem depende tanto da eficácia das leis quanto a segurança de sua terra e de seus bens e por isso não é mais sua no sentido absoluto que suas 15 Parágrafo 22 16 Parágrafo 55 17 Parágrafo 61 18 Parágrafo 27 19 Parágrafo 28 20 Parágrafo 40 21 Levaria muito tempo delinear aqui a evolução da teoria do valor do trabalho Pode ser observado no entanto que Locke não distinguia entre trabalho capitalista e trabalho assalariado De início ele estava pensando em proprietários trabalhando em sua própria terra ou bens não em assalariados mas é evidente por suas observações sobre o sustento parágrafo 43 que ele estava consciente de que o trabalho não é um fator simples Ver M Beer History of British Socialism ed 1929 i 192 22 Parágrafo 190 Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 9 posses Locke também tem sido criticado porque insistindo em um direito natural de propriedade ele estava encorajando a ganância do egoísta às custas de seus vizinhos mais pobres do que foram com freqüência acusados os magnatas Whigs dos séculos XVIII e XIX Mas devese observar que Locke não justifica a propriedade ilimitada Um homem só podia se apropriar da terra desde que deixasse o suficiente e adequado para os outros e quanto aos bens móveis só podia monopolizálos enquanto pudesse fazer uso deles para qualquer proveito antes que deteriorassem Seja o que for que ultrapasse a isso ultrapassa a sua cota e pertence a outros23 É verdade que pela acumulação de dinheiro que não se deteriora na prática podese escapar a este limite24 e a idéia de um direito natural limitado de propriedade contém dificuldades que Locke não parece perceber ou de qualquer maneira não enfrenta mas é difícil acusálo justamente de encorajar a apropriação ilimitada Deve também ser lembrado que embora ele tenha declarado que o grande e principal objetivo dos homens se associarem em sociedades políticas e se colocarem sob a tutela do governo é a preservação de sua propriedade25 ele definiu a propriedade do homem como sua vida liberdade e propriedade em outras palavras ele próprio e seus direitos naturais como um todo não apenas sua propriedade em seu sentido habitual26 Mas deve se admitir que Locke não escapa ao risco que todo o escritor sempre corre quando dá a uma palavra um significado incomum pois com muita freqüência ele usa a palavra propriedade também em seu sentido habitual em inglês e não se deve estranhar se é isto que ele em geral entendia27 Chegamos agora à formação da sociedade política Por natureza todos os homens são livres iguais e independentes e nenhum homem pode estar sujeito ao poder político de outro sem seu próprio consentimento Qualquer número de homens pode concordar em se juntar para se constituir em um corpo político sem prejuízo dos outros pois todos aqueles que não concordarem são meramente deixados de fora na liberdade do estado da natureza28 Mas embora este pacto original seja unânime cada um dos participantes concorda daí em diante em se submeter à determinação da maioria A razão que Locke apresenta para isso é curiosamente mecânica e insatisfatória e sugere que ele não considerou suficientemente as implicações do princípio da maioria A força que faz uma comunidade observa ele é sempre o consentimento de seus indivíduos e como todo objeto que forma um só corpo deve moverse numa só direção é necessário que o corpo se mova na direção para onde a força maior o conduz que é o consentimento da maioria 29 Por propósitos práticos sem dúvida a comunidade deve moverse em uma direção mas isso é pouco compatível com o princípio do consentimento se a minoria for na verdade simplesmente neutralizada pela força maior da maioria No pacto original os homens não abrem mão de todos os seus direitos Eles só renunciam a tanto de sua liberdade natural quanto seja necessário para a preservação da sociedade abrem mão do direito que possuíam no estado de natureza de julgar e punir individualmente mas retêm o remanescente de seus direitos sob a proteção do governo que concordaram em estabelecer Certamente não estabelecem como na teoria de Hobbes um soberano absoluto e arbitrário como se então os homens ao renunciarem ao estado de natureza concordassem que todos eles com exceção de um estariam sob as exigências das leis mas que este deveria ainda manter toda a liberdade do estado de natureza aumentado com a força e tornado desregrado pela impunidade30 Será que Locke pretendia que sua consideração do pacto original fosse encarado como historicamente verdadeiro Ele está consciente de que não há exemplos a serem encontrados na história de um grupo de homens independentes e iguais uns aos outros que se reuniram e dessa maneira começaram e instituíram um governo Mas argumenta em resposta que o governo é em toda parte anterior aos registros e embora admita 23 Parágrafo 31 24 Parágrafo 50 25 Parágrafo 124 Em outra parte ele diz que o governo não tem outro objetivo a não ser a preservação da propriedade parágrafo 94 26 Parágrafos 87 123 e cf CH McIlwain The Growth of Political Theory in the West 1932 p 199 n 1 27 A contínua insistência de Locke sobre a santidade da propriedade o conduz a formular o que ele confessa que parecerá uma doutrina estranha quando declara que um conquistador em uma guerra justa adquire um poder absoluto sobre as vidas daqueles que colocandose em estado de guerra tiveram seus direitos confiscados mas ele não tem por isso o direito e o título de suas posses parágrafo 180 A justificativa que ele apresenta é que o conquistador não tem o direito de privar de seus bens a esposa e os filhos de seu inimigo derrotado parágrafo 183 28 Parágrafo 95 29 Parágrafo 96 Em outra parte parágrafo 99 ele percebe que os homens poderiam ter expressamente concordado com qualquer número maior que a maioria De fato muitas estruturas requerem mais que uma simples maioria por exemplo uma maioria de dois terços para decisões importantes mas isso vai mostrar a inadequação de explicação mecânica de Locke do princípio da maioria 30 Parágrafo 93 CLUBE DO LIVRO LIBERAL que se olharmos para trás tão longe quanto a história nos conduzir para as origens das sociedades políticas em geral deveremos encontrálas sob o governo e a administração de um homem ele sustenta que isso não destrói aquilo que eu afirmo ou seja que o início da sociedade política depende do consentimento dos indivíduos para se reunirem e comporem uma sociedade na qual assim incorporados poderiam desenvolver a forma de governo que considerassem adequada31 Alguns escritores que usaram a teoria do contrato provavelmente nunca pretenderam ser entendidos literalmente para Hobbes por exemplo realmente não foi mais que um artifício fazer com que uma doutrina intragável parecesse mais respeitável e é duvidoso que Rousseau pensasse seu contrato como um fato histórico Mas no todo sou inclinado a pensar que Locke como os Whigs de 1688 acreditava no contrato como um acontecimento real pois ele tenta encontrar alguns exemplos de sua ocorrência Mas sua inadequação não lhe parece importar seriamente e sua conclusão de que afinal a razão é clara em nossa postura de que os homens são naturalmente livres32 sugere que seu interesse primário não está situado realmente nas origens históricas mas na justificativa do governo baseado em princípios racionais Ele argumenta à forte objeção sobre se haveria ou alguma vez houve quaisquer homens em tal estado da natureza chamando a atenção para o fato de que todos os soberanos e chefes de governos independentes em todo o mundo estão em um estado da natureza assim também um suíço e um índio das florestas da América estão perfeitamente em estado de natureza um em relação ao outro Portanto o estado de natureza existe entre todos os homens que estão em contato um com o outro sem serem súditos de um governo comum e o ponto sobre o qual ele insiste é que os homens em tais circunstâncias podem fazer promessas e acordos que os vincularão pois a verdade e a manutenção da palavra pertencem aos homens enquanto homens e não enquanto membros da sociedade33 Uma consideração do estado da natureza foi a abertura habitual de uma longa sucessão de obras de teoria política e suas características variavam segundo o desejo do autor desde uma idade de ouro da paz até à sordidez e à brutalidade da guerra de todos contra todos em Hobbes Pois esse estado era essencialmente uma abstração a qual se chegou imaginando a vida despojada de todas as qualidades que se supõe serem devidas à sociedade política organizada Para Locke a característica essencial do estado de natureza era a lei natural Nisso ele era herdeiro medieval de uma antiga tradição que veio continuamente modificada durante o processo dos estóicos e dos juristas romanos Locke herdou esta tradição em parte dos publicistas europeus do século XVII como Grotius e Pufendorf 34 em parte de Hooker em parte talvez de outros escritores ingleses como Richard Cumberland que utilizou o conceito da lei da natureza numa réplica a Hobbes A mesma tradição foi incorporada no ensino dos platônicos de Cambridge como Whichcote cujos sermões Locke admirava Na Idade Média a lei da natureza era comumente identificada com a lei de Deus e era encarada como uma lei que obriga a todos os homens e a todos os governos e por isso eram nulos os decretos humanos contrários a ela Os pensadores medievais disputavam a questão se ela era correta porque Deus a comandava ou se Deus a comandava porque ela era correta Se fosse o último caso poderia Deus ter comandado tudo o mais e se não seria Ele ainda onipotente Para Locke a lei da natureza é o desejo de Deus para o gênero humano mas a faculdade da razão do homem ela em si um dom de Deus o capacita para perceber sua retidão35 Uma das dificuldades de se aplicar a idéia de uma lei da natureza à prática política é que ou ela permanece vaga e geral ou tentandose darlhe uma forma concreta o resultado é inevitavelmente dogmático Para muitos escritores europeus da escola da lei natural seu conteúdo era ainda politicamente real mas para Locke assim como para os teólogos ingleses aos quais ele seguia a lei da natureza era em sua essência mais uma lei moral que uma lei política36 Isto acho eu é realmente o princípio importante sobre o qual ele estava insistindo contra Hobbes Para Hobbes a única lei genuína era o comando de um soberano e no estado da natureza a força e a fraude eram as virtudes cardeais Locke insiste na santidade da obrigação moral e julga a política por um padrão moral para ele fundamentalmente um padrão religioso 31 Parágrafos 100106 32 Parágrafo 104 33 Parágrafo 14 Ele deveria ter dito sociedade política pois é evidente que o estado da natureza se nele subsistem os direitos e deveres é em si social e não um mero vácuo onde os indivíduos vagam na solidão 34 O valor que ele lhes atribui pode ser inferido pela recomendação que faz deles particularmente Pufendorf para a educação de um cavalheiro 35 Muitos platonistas de Cambridge encaravam a lei da natureza como uma idéia inata e defendiam que a razão poderia desenvolver seu conteúdo Locke rejeitou as idéias inatas em sua metafísica e Sir James Stephen Horae Sabbaticae 2ª série 1892 p 140156 criticou Locke por têlas adotado de forma inconsistente em sua teoria política Isso não é justo para com Locke pois ele não considerava o conhecimento moral como inato mas é verdade que ele realmente não enfrentou o problema de relacionálo a sua descrição do conhecimento pela experiência ou à dificuldade de afirmar a existência de uma lei moral que está de acordo com a razão e que não repousa apenas na vontade de Deus embora ao mesmo tempo acredite que a vontade de Deus é a fonte final da lei moral 36 Cf parágrafos 135 136 onde a lei da natureza é equiparada à vontade de Deus e é declarada como sendo não escrita e por isso não pode ser encontrada em parte alguma exceto nas mentes dos homens Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 11 Mas há objeções óbvias em estabelecer este princípio em termos de um estado de natureza e um pacto original Se como ele parece ter acreditado devem ser tomadas literalmente sucumbem imediatamente diante da crítica histórica Mesmo que fossem historicamente verdadeiras como explicariam a obrigação das gerações posteriores de cidadãos de obedecerem às leis de um estado em cuja formação eles não consentiram individualmente Se por outro lado elas devem ser encaradas não como fatos históricos mas como hipóteses abstratas cuja função é promover uma análise racional do governo por consenso falham completamente na explicação da posição do cidadão dos dias de hoje que é o ponto crucial de toda a questão Locke procura resolver este problema mas sua tentativa de resolvêlo está longe de ser satisfatória Ele argumenta que os filhos não se tornam automaticamente súditos dos governos aos quais seus pais devem obediência mas quando atingirem a idade podem escolher a que estado irão pertencer e busca provar isso referindose à prática dos governos francês e inglês em casos como o de uma criança de pais ingleses nascida na França37 Mas qualquer que possa ter sido a prática na própria época de Locke o princípio que ele estabelece não seria aceito pelos juristas modernos Ele então argumenta que o consentimento que sozinho pode tornar um homem sujeito a um governo não necessita ser um consentimento expresso mas pode ser dado tacitamente de outras maneiras Cada um afirma ele que tem qualquer posse ou desfruta de qualquer parte dos domínios de um governo dá desse modo seu consentimento tácito e é obrigado a obedecer suas leis seja esta sua posse de uma terra pertencente a ele e a seus herdeiros para sempre ou um alojamento apenas por uma semana ou esteja ela apenas passando livremente na estrada Havendo concedido tanto ele percebe que não pode logicamente traçar uma linha nesse ponto e declara por fim que um homem dá consentimento tácito a um governo simplesmente estando dentro dos limites de seu território38 É verdade que ele se esforça para atenuar isso sugerindo que um homem não é compelido a permanecer sob o domínio de um governo que lhe desagrada mas tem a liberdade de partir e se incorporar a qualquer outra sociedade política ou entrar em acordo com outros para iniciar uma nova in vacuis locis39 Hoje em dia entretanto a possibilidade de fazer isso é muito mais restrita que na época de Locke e Hume observou que mesmo então era muito fantasiosa A verdade é que supondo que cada um que esteja em um país tacitamente consentiu em seu governo o consentimento foi tão reduzido a ponto de se tornar virtualmente se não inteiramente inexistente A importância fundamental desta passagem está em sua revelação da inutilidade de se tentar tornar o consentimento individual a base da obrigação política40 mas embora não possamos basear o poder do governo no consentimento individual não necessitamos por isso chegar ao extremo oposto e permitir aos governos poderes ilimitados de opressão das consciências dos indivíduos Deve se admitir entretanto que a teoria da sociedade de Locke é demasiado artificial para ser uma resposta adequada a este problema Quando um grupo de homens concordou em formar uma sociedade política sua primeira tarefa é estabelecer o poder legislativo que será o poder supremo da sociedade política e sagrado nas mãos em que a comunidade um dia o colocou Mas embora seja o poder supremo não é nem pode ser absolutamente arbitrário sobre as vidas e os destinos do povo Sendo seu propósito proteger os homens no gozo de suas vidas e propriedade deve ser limitado ao bem público da sociedade e as leis que ele faz devem ser declaradas e aceitas não arbitrárias e caprichosas e devem estar em conformidade com a lei da natureza41 a legislatura também não pode transferir o poder que lhe foi delegado a quaisquer outras mãos42 Outro limite importante para o poder legislativo é que ele não pode tomar de nenhum homem parte alguma de sua propriedade sem seu próprio consentimento Isto se aplica aos impostos que Locke reconhece como adequados e necessários mas aqui mais uma vez sem justificativa em relação aos seus princípios ele reduz o consentimento necessário ao consentimento da maioria e até ao consentimento dos representantes43 O governo representativo assim como o princípio da maioria pode ser defendido em vários campos mas não nas bases do consentimento individual 37 Parágrafo 118 38 Parágrafo 119 39 Parágrafo 121 40 Cf JP Plamenatz Consent Freedom and Political Obligation Oxford 1938 p 7 41 Parágrafos 134 135 42 Parágrafo 141 43 Parágrafos 138 140 CLUBE DO LIVRO LIBERAL Locke não utiliza o termo de Hobbes soberano e tem sido afirmado44 que na medida em que ele limita e divide os poderes do governo seu argumento é dirigido contra a verdadeira idéia de soberania Mas é claro que embora tenha rejeitado a arbitrariedade do soberano de Hobbes ele segurou um elemento essencial no conceito de soberania a supremacia da autoridade que faz as leis Ele afirma claramente que o legislativo deve ser o poder supremo e todos os outros poderes em quaisquer membros ou partes da sociedade derivados dele e a ele subordinados45 Como observou o Professor Montague46 Locke não imaginou que o poder legislativo supremo estava limitado por lei positiva O que ele realmente pretendia era que a soberania estivesse sujeita à lei moral Sua expressão deste princípio foi obscurecida por seu uso de frases associadas à idéia da natureza e da lei natural mas na substância sua teoria não estava muito distante da teoria da soberania proposta por Bentham e elaborada por Austin47 Mas embora a legislatura seja suprema Locke não a tornará absoluta pois permanece ainda no povo um poder supremo para remover ou alterar o legislativo quando ele considerar o ato legislativo contrário à confiança nele depositada48 Ao mesmo tempo ele não vai tão longe quanto Rousseau que declarou que a soberania reside inalienavelmente na vontade geral e não pode ser delegada ou mesmo exercida através de representantes O poder supremo que Locke reserva ao povo não é tão considerado sob qualquer forma de governo é apenas uma espécie de reserva potencial de poder a ser exercido em uma emergência quando o governo que foi estabelecido deixou de usar seu poder para o bem público Outra e ainda mais estranha conseqüência da teoria de Locke é que embora com o decorrer do tempo as grandes cidades prósperas venham a se deteriorar enquanto outros locais ermos se desenvolvem em países populosos repletos de riquezas e habitantes Locke imagina que a legislatura sendo fixada e limitada não tem poder para aprovar um projeto de reforma A única solução que ele pode sugerir é que o executivo caindo no princípio salus populi suprema lex49 deve redistribuir o eleitorado na devida proporção e assim fazendo não pode ser julgado como tendo estabelecido um novo legislativo mas como tendo restaurado o antigo e verdadeiro Além disso considerando a sua idade quando o escreveu foi liberal por ter reconhecido a necessidade de uma solução Isso nos leva à questão da separação entre o executivo e o legislativo Locke considera que pode ser muito grande a tentação para a fragilidade humana pronta para alcançar o poder pois as mesmas pessoas que têm o poder de fazer as leis têm também em suas mãos o poder de executálas além disso o executivo deve estar em existência contínua enquanto que não é necessário para o legislativo e por isso os poderes legislativo e executivo freqüentemente vêm a se separar Locke pode portanto ser reconhecido como um contribuinte para a famosa doutrina da separação dos poderes que embora de modo desorientado foi amplamente aceita no século XVIII como a salvaguarda essencial da liberdade constitucional e por isso incorporada na constituição americana Entretanto deve ser observado que na forma clássica da doutrina como foi enunciada por exemplo por Montesquieu havia três poderes a serem mantidos separados legislativo executivo e judiciário Locke reconhece um terceiro poder além do legislativo e do executivo mas este que ele chama de federativo está ligado à guerra e à paz a ligas e alianças e à política externa em geral Embora ele encare este poder federativo como distinto observa que na prática ele está em geral nas mãos do executivo Ele não distingue o judiciário e parece considerálo parte do executivo50 Evidentemente com a constituição inglesa 44 JN Figgis The Divine Right of Kings Cambridge 21914 p 242 45 Parágrafo 150 46 FC Montague Introdução ao Fragment on Government de Bentham Oxford1891 p 65 47 O princípio da soberania legislativa foi claramente apreendido por Bacon que observou que ele era ilusório por um anterior decreto do Parlamento para obrigar ou frustrar um futuro pois um poder supremo e absoluto não pode concluir a si mesmo citado por AV Dicey The Law of the Constitution 8ª ed p 62 nº 1 Mas as implicações da soberania aparentemente não foram em geral compreendidas durante muitos anos Várias frases foram incorporadas ao Ato da União com a Escócia 1706 na tentativa de tornar algumas de suas cláusulas fundamentais ou inalteráveis por decretos subseqüentes Pode também ser percebida uma relutância em admitir a soberania do parlamento nos argumentos utilizados contra o Ato Septenal em 1716 cf com os Protestos dos Pares ed em C Grant Robertson Select Statutes Cases and Documents p 202 e observar seu uso da idéia de curadoria que provavelmente tomaram de Locke Como observou Dicey op c it p 45 a passagem do Ato Septenal para lei foi uma prova da soberania legal do parlamento Mas mesmo mais tarde em 1800 foi feita uma tentativa no Ato de União com a Irlanda através de fraseologia similar de perpetuar a união das igrejas inglesa e irlandesa A inutilidade disso foi demonstrada pelo Ato de Separação de Gladstone de 1869 mas como observou Bacon as coisas que não oprimem podem satisfazer durante algum tempo Sobre o desenvolvimento da soberania legislativa do parlamento ver CH Macllwain The High Court of Parliament New Haven Conn 1910 esp c 5 48 Parágrafo 149 49 Parágrafos 157 158 50 Parágrafos 143148 Tem sido observado que mesmo em Montesquieu a separação dos poderes não está traçada com absoluta clareza mas que ele tende como Locke a misturar o judiciário com o executivo Cf com J Dedieu Montesquieu et la tradition politique anglaise en France Paris 1909 p 179 Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 13 em mente ele observa que onde o legislativo não existe permanentemente e o executivo é investido numa única pessoa que também tem parte do legislativo aquela única pessoa em um sentido muito tolerável pode também ser chamada de suprema não que ele detenha em si todo o poder supremo que é aquele de fazer as leis mas porque tem em si a execução suprema a partir da qual todos os magistrados inferiores derivam todos os seus poderes subordinados ou pelo menos a maior parte deles Ele também pode ser chamado de supremo em vista do fato de que as leis não podem ser feitas sem seu consentimento Mas insiste Locke o poder executivo colocado apenas sobre uma pessoa que tem também parte do poder legislativo está claramente subordinado a este e lhe deve dar contas podendo ser perfeitamente mudado e substituído51 Neste aspecto Locke antecipa Rousseau cujo príncipe era um mero agente ou escravo da vontade geral soberana52 O pacto original de Locke como se poderá perceber era um contrato social feito entre os homens que concordavam em se unir em uma sociedade civil Não era como o contrato original da Revolução dos Whigs um contrato entre o rei e o povo Diferentemente deles e também de escritores europeus como Pufendorf Locke não determina o relacionamento entre o povo e seu governo em termos de contrato mas toma emprestado a idéia peculiarmente inglesa de curadoria Ele não foi mais original nisso que em seu uso de outros elementos em sua teoria política como o estado de natureza pois ele havia sido usado por muitos escritores anteriores às vezes como uma alternativa à teoria do contrato às vezes em combinação com ela Mas ele se adequou admiravelmente ao seu propósito pois transmitia a noção de que embora sejam dados ao governo alguns poderes ele era obrigado a usálos não em seu próprio interesse mas em prol da comunidade Locke não somente aplica esta noção ao executivo mas o utiliza também para assegurar que a legislatura não deverá abusar de seus poderes e violar os direitos do povo A comunidade observa ele coloca o poder legislativo em tais mãos enquanto as considere adequadas confiando que será governada pelas leis proclamadas53 É apenas um poder fiduciário para agir visando alguns objetivos e todo o poder conferido com confiança para se atingir um fim é limitado por aquele fim sempre que o fim for manifestamente negligenciado ou contrariado a confiança deve necessariamente ser confiscada e o poder devolvido às mãos daqueles que o conferiram que podem colocálo outra vez onde acharem melhor para sua segurança e garantia54 As várias funções do executivo estão expressas em termos semelhantes Assim seu poder de convocar e dissolver a assembléia legislativa não concede ao executivo uma superioridade sobre ela mas é uma confiança fiduciária nele colocada para a segurança do povo55 Se ele usasse a força dos controles para impedir a reunião e a atuação do legislativo sem autoridade e contrariamente à confiança nele depositada ele estaria em um estado de guerra com pessoas que têm o direito de restabelecer seu legislativo no exercício de seu poder56 Quando o executivo tem um lugar na legislatura como o rei da Inglaterra ele tem uma confiança dupla nele depositada e age contra ambos quando começa a estabelecer sua própria vontade arbitrária como a lei da sociedade57 A referência à história recente em tudo isso é óbvia mas é visível que Locke não apóia seu argumento no contrato original dos Whigs entre o rei e o povo Aplicar a idéia da curadoria à política era utilizar uma metáfora assim como a teoria do contrato era também na verdade uma metáfora de outro ramo da jurisprudência O contrato social como uma teoria política está aberto a várias objeções bem conhecidas mas estas não são tão aplicáveis à idéia da confiança e como foi popularizado por Locke desempenhou um papel valioso ao levar para casa a lição de que o governo não desfruta de poderes sem os correspondentes deveres e responsabilidades Isso agora tornouse um princípio reconhecido e inquestionável com o resultado de que em negócios domésticos os direitos do homem não são mais as reclamações dos indivíduos contra um governo arbitrário mas as reclamações garantidas aos homens pelo governo De alguns anos para cá a idéia da curadoria foi considerada moderna e o emprego mais frutífero como 51 Parágrafos 151 152 52 Sobre a separação dos poderes em Locke cf com a nota de E Barker em sua tradução de Gierke Natural Law and the Theory of Society Cambridge 1934 ii 359 Ele observa que embora Locke distinguisse entre o legislativo e os órgãos conjuntos executivo e federativo ele não determinou o que é em geral entendido pela separação dos poderes o que implica como ocorre na constituição americana que nenhum deles é superior a qualquer um dos outros Ao contrário Locke estabeleceu expressamente a supremacia do legislativo 53 Parágrafo 136 54 Parágrafo 149 55 Parágrafo 156 56 Parágrafo 155 57 Parágrafo 222 CLUBE DO LIVRO LIBERAL uma fórmula para regulamentar os relacionamentos entre os estados civilizados e suas colônias ou outros povos atrasados58 Locke reconhece que ao detentor do poder executivo deve ser permitida alguma arbitrariedade e este poder deve atuar discricionariamente em vista do bem público sem a prescrição da lei e às vezes até contra ela é o que se chama prerrogativa59 Na Inglaterra inclui o poder de convocar os parlamentos assim como determinar a época o local e a duração mas ainda com esta confiança acrescenta ele que deverá ser usada para o bem da nação à medida que assim o requererem as exigências das épocas e a variedade da ocasião60 Se é feita a pergunta Quem julgará quando este poder é utilizado corretamente ele responde Não pode haver juiz na terra Se o legislativo ou o executivo quando detêm o poder em suas mãos planejam ou começam a escravizar ou a destruir o povo este não tem outro remédio senão apelar aos céus61 Assim chegamos à famosa justificativa de Locke de um fundamental direito de revolução Hobbes defendeu que o afastamento da autoridade soberana destruiria o estado e envolveria um retorno ao caos do estado da natureza Locke ao contrário distingue entre a dissolução da sociedade e a dissolução do governo e embora admita que esta conquista de fora possa cortar os governos pela raiz e despedaçar as sociedades insiste que um governo pode ser dissolvido internamente e um novo governo ser estabelecido sem a destruição do próprio corpo político62 Esta é a conclusão que ele retira de episódios anteriores na história inglesa e em particular da bem sucedida revolução de 1688 Ele percebe que aprovando dessa forma a revolução pode ser acusado de promover um estímulo a rebeliões freqüentes Argumenta que o povo está mais propenso a ser levado à rebelião pela tirania e pela opressão enquanto um governo que sabe que pode ser deposto se abusar de sua autoridade estará menos propenso a agir errado Além disso tais revoluções não ocorrem sobre cada pequena má administração nos negócios públicos pois o povo não abandona tão facilmente suas antigas formas como alguns estão prontos a sugerir Ele dificilmente vai ser convencido a corrigir as falhas reconhecidas na estrutura a que está habituado Na verdade o conservadorismo natural e a inércia levarão o povo a suportar grandes erros por parte do governo muitas leis erradas e inconvenientes e todo o tipo de deslizes da fragilidade humana sem revolta ou queixas63 Podemos também imaginar por que Locke não encontra lugar para a melhoria do governo através de emenda constitucional e precisa defender uma solução tão drástica quanto a revolução Sem dúvida ele estava em parte preocupado em apoiar a recente revolução de 1688 afinal de contas tudo o que foi conseguido então dificilmente seria conseguido por outros meios Podemos perceber que hoje em dia em um país com um sistema de governo representativo onde as mudanças de ministro podem ser efetuadas através de um processo constitucional normal um direito de revolução não é necessário como um elemento em nossa teoria política Mas devemos nos lembrar que foi através da influência da idéia de curadoria de Locke ou da teoria do contrato dos Whigs que veio a ser reconhecido que os governos são organismos responsáveis e não são simplesmente dotados de privilégios para serem utilizados para seu próprio prazer Hoje isso nos parece um truísmo óbvio mas é a aceitação deste princípio64 tanto quanto qualquer outra coisa que faz a diferença entre nossa atitude em relação à política e à atitude digamos assim de um cortesão de Luís XV Além disso os acontecimentos recentes tornaram o direito da revolução mais uma vez uma questão ativa e na guerra contra a Alemanha percebemos isso Quem duvida perguntava Locke que os cristãos gregos possam legitimamente derrubar a tirania turca sob a qual gemeram tanto tempo quando tiverem poder para fazêlo65 Apoiamos os movimentos de resistência nos países ocupados da Europa e não duvidávamos de que teria sido direito do povo alemão se levantar e derrubar o governo nazista esperávamos que eles o fizessem e teríamos recebido com alegria a tentativa que houvesse sido feita Nossos alvos de guerra e a suposição de que nossa causa era justa implicavam que de fora e como um ato de guerra nós nos considerássemos justificados ao estimular tal revolução Estávamos 58 Para um esboço do desenvolvimento da idéia da curadoria como uma teoria política ver JW Gough Political Trusteeship in Politica iv 1939 p 220247 59 Parágrafo 160 60 Parágrafo 167 61 Parágrafo 168 62 Parágrafo 211 Locke ao contrário de Hobbes pode fazer esta distinção porque para ele o governo era estabelecido não pelo pacto original mas como uma confiança subseqüente 63 Parágrafos 223225 64 Evidentemente não é de modo algum um princípio novo e Locke estava apenas ex pondo novamente a doutrina que herdou juntamente com a lei da natureza dos pensadores medievais Mas era necessário tornar a expôla no século XVII devido aos ataques feitos da parte do governo despótico 65 Parágrafo 192 Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 15 assim reafirmando nos termos de nossas próprias circunstâncias a atitude defendida no século XVII pelos Whigs de quem herdamos uma imortal tradição política Para os filósofos absolutistas do século XIX que se inspiraram em Hegel a defesa da revolução feita por Locke parecia revoltante pois eles não queriam ouvir falar de qualquer questionamento da autoridade majestática do estado Mas pelo menos neste aspecto não cabe à nossa geração criticar Locke Um dos primeiros a aplicar os ensinamentos de Locke foi William Molyneux66 que argumentava que as relações da Inglaterra com a Irlanda no passado não constituíam uma conquista e que mesmo que o fossem a conquista não conferiria à Inglaterra os direitos que reclamava sobre a Irlanda Molyneux correspondeuse com Locke sobre este assunto e desenvolveu sua causa em linhas extraídas diretamente do Segundo tratado É desnecessário dizer que seu apelo caiu em ouvidos surdos ainda que como mais tarde observou Dean Tucker67 ele se destinasse ao benefício não da maioria católica romana irlandesa mas apenas da minoria protestante Na Inglaterra no entanto a aceitação geral da atitude de Locke em relação ao governo logo se tornou perceptível Em alguns lugares ele foi criticado durante algum tempo tanto por seus Tratados sobre o governo quanto por suas Cartas sobre a tolerância como republicano e incrédulo68 mas depois da bem sucedida Revolução os dois extremos na política republicanos e ultramonarquistas tenderam a se extinguir Os Whigs continuaram a insistir no consentimento do povo como a base necessária do governo e a impugnação do Dr Sacheverell deulhes uma oportunidade de reafirmar e enfatizar seus pontos de vista Por outro lado o Act of Settlement aprovado por uma maioria de Tories em 1701 mostrou que eles também estavam desejando limitar a autoridade real e estabelecer condições para a sucessão ao trono É verdade que os Tories ainda estavam longe de aceitar a idéia da tolerância como se pode ver por seu Ato de Concordância Ocasional e Ato do Cisma mas embora em muitos pontos os interesses e as políticas dos Whigs e dos Tories divergissem na questão constitucional concordavam agora substancialmente69 Uma rápida vista das publicações de Bolingbroke por exemplo já mostrará a extensão de seu débito a Locke Como este ele cita Hooker aprovadoramente e fala dos parlamentos como instituídos para serem os verdadeiros guardiães da liberdade em concordância com aquela grande e nobre confiança que o organismo coletivo do povo da GrãBretanha deposita no representante70 Ele também limita a soberania do parlamento pois há algo que ele acha que um parlamento não pode fazer não pode anular a constituição A legislatura é um poder supremo e pode ser chamado em um certo sentido um poder absoluto mas em nenhum sentido um poder arbitrário É limitada ao bem público da sociedade e em último recurso em caso de abuso o povo tem o direito de resistir ao poder supremo71 O Bispo Hoadly de fama bangoriana admitia que como a origem patriarcal da monarquia foi examinada há muito tempo atrás pelo Autor dos dois tratados sobre o governo a Ele eu devo por Justiça remeter o Leitor Este foi seu único reconhecimento da obra de Locke mas todo o seu argumento embora pretendesse remontar a Hooker na verdade não era mais que uma reafirmação da posição de Locke72 A referência um tanto rancorosa de Hoadly a Locke embora ele fosse um Whig pode ser uma indicação de que o nome de Locke ainda era mal visto nos círculos clericais no início do século XVIII mas o Bispo Warburton escrevendo quando os hanoverianos já reinavam seguramente há vinte anos não hesitou em adotar abertamente os princípios de Locke73a ele se referindo como a honra dessa época e o instrutor do futuro O Espectador aludia a Locke como uma glória nacional e embora ele provavelmente fosse mais conhecido e respeitado como o autor do Ensaio sobre o entendimento humano não pode haver dúvida de que no século XVIII também sua teoria política se tornou tão geralmente aceita quanto virtualmente incontestada Suas doutrinas podem ser registradas nas Characteristics 66 Em The Case of Irelands being bound by Acts of Parliament in England stated Du blin 1698 67 Josiah Tucker Decano de Gloucester A Treatise concerning Civil Government 1781 p 96s 68 Cf alguns exemplos de opinião acadêmica em Oxford citados por Ch Bastide John Locke ses théories politiques et leur influence en Angleterre Paris 1906 p 283s 69 Ver a interessante comparação entre os pontos de vista dos Whigs e dos Tories após a Revolução em H Hallam Constitutional History of England c xvi 70 Bolingbroke Dissertation on Parties 173334 Carta x 71 Ibid Carta xvii Bolingbroke também seguiu Locke em sua Idea of a Patriot King 1738 onde rejeitou o direito divino como absurdo e declarou que os reis devem governar para o bem do povo 72 B Hoadly The Original and Institution of Civil Government discussed 1710 in Works ed J Hoadly 1773 ii 182s 73 W Warburton The Alliance between Church and State 1736 e The Divine Legation of Moses Demonstrated 1738 CLUBE DO LIVRO LIBERAL do terceiro Conde de Shaftesbury nos escritos de Swift Defoe e outros escritores menos famosos e de uma forma atenuada por Bolingbroke na terceira Epístola de Pope Ensaio sobre o homem No decorrer do século escritores como Hume e Paley atacaram a teoria do contrato mas as doutrinas políticas gerais de Locke continuaram dominantes Especialmente nos círculos dissidentes é evidente que ele ainda era uma inspiração Richard Price e Joseph Priestley tinham ambos seus débitos para com ele e os compêndios políticos adotados nas academias dissidentes eram em grande parte derivados de sua obra Foinos transmitido que Todos pensam que o povo é a origem do poder o fiduciário dos responsáveis administrativos e que o gozo da vida da liberdade e da propriedade é direito de toda a espécie humana74 Com o tempo naturalmente Locke começou a ser substituído como uma influência formativa por escolas de pensamento mais recentes Por um lado o benthamismo conseguiu espaço e por outro Burke embora tenha herdado toda a tradição lockeana divergia amplamente em muitos aspectos da perspectiva geral de Locke A força de Burke como pensador político situase fundamentalmente nas direções em que Locke foi mais deficiente Ele possuía um sentido quase místico da continuidade histórica da sociedade e ainda que em seu Appeal from the New to the Old Whigs ele tenha voltado ao processo de Sacheverell como declaração clássica dos princípios Whigs implicitamente repudiou muito do individualismo de Locke Não seria necessário um longo passo para se passar da posição de Burke e também de Rousseau para a teoria orgânica do estado que veio a se tornar uma influência tão poderosa no século dezenove e o fato de Burke não ter dado este passo é uma indicação da força permanente da influência de Locke75 A Revolução Americana que evidentemente foi inspirada pelas teorias de Locke provocou entre seus oponentes na Inglaterra alguma reação contra Locke o que foi mais tarde reforçado pelo amplo alarme despertado pelo curso da Revolução na França Não obstante apesar de todas as suas imperfeições a doutrina de Locke permaneceu a base do governo constitucional inglês76 e foi a saudável e razoável moderação resultante da aceitação de seus princípios que ajudou a assegurar à vida política inglesa sua imunidade característica contra as vicissitudes e os extremismos que em alguns países tornaram inviável a democracia parlamentar Não foi somente na Inglaterra que os princípios de Locke foram o alicerce do estado democrático moderno Na Holanda onde ele era mais conhecido foi logo aceito e citado como uma autoridade em política Na França suas visões de governo foram antecipadas por Jurieu e sua crença na tolerância por Bayle mas as obras de Locke foram traduzidas para o francês e tornaramse amplamente conhecidas entre os leitores franceses Tanto Montesquieu quanto Rousseau de maneiras diferentes fizeram contribuições bastante originais à teoria política mas ambos foram influenciados por Locke e houve muitos outros pensadores franceses que participaram da disseminação de uma atitude liberal e racional em relação à política e pelo menos por insinuação criticaram o ancien régime No entanto é difícil julgar precisamente em que dimensão a difusão dessa atitude na França pode ser atribuída à obra de Locke ou de outros escritores da mesma escola de pensamento e ao estudo direto das instituições inglesas e mais tarde das americanas em que os princípios de Locke pareciam estar incorporados Em parte alguma a influência de Locke foi maior que do outro lado do Atlântico Ele pode não ter sido muito lido pelo público em geral na América mas os líderes revolucionários Otis e Jefferson Madison e Samuel Adams mergulharam em sua obra bem como nas obras de Harrington Montesquieu e outros escritores políticos A Carta de Direitos de Virginia iniciase como um eco de Locke e embora de certa forma a Declaração de Independência tenha sido um produto peculiarmente americano há pouca dúvida de que deva sua principal inspiração muito mais às doutrinas de Locke que aos princípios nativos das colônias da Nova Inglaterra que eram teocráticos e intolerantes Jefferson foi de fato acusado de ter copiado a Declaração do Tratado sobre o governo de Locke e embora tenha negado terse remontado a qualquer livro ou panfleto ao redigila não afirmou que suas idéias fossem novas Além de tudo seria inútil tentar justificar uma revolução sobre princípios de que ninguém ouvira falar antes e se tudo o que Jefferson fez foi repetir o que no século XVIII eram lugarescomuns da 74 R Robinson Lectures on Conconformity citado em A Lincoln Some Political andSocial Ideas of English Dissent Cambridge 1938 p 17 75 Ver A Cobban Edmund Burke and the Revolt against the Eighteenth Century 1929 esp c ii intitulado Burke e a herança de Locke Um esclarecimento acidental sobre a reputação de Locke é apresentado pelo processo de Sir Francis Burdett em 1820 por difamação sediciosa Burdett ao se defender referiuse a Locke e o Sr Justice Best disse aos jurados que se achassem que este papel foi escrito com o mesmo espírito e intenção puros com que foram escritas as obras valiosas e imortais daquele escritor não era difamação C Grant Robertson Select Statutes Cases and Documents p 513 76 É verdade que a soberania legal do parlamento que ele havia buscado limitar na prática veio a se tornar um fato estabelecido mas seu estabelecimento sem as qualificações de Locke foi aceitável porque os desenvolvimentos constitucionais por exemplo a evolução do ministério e a ampliação dos direitos de voto não mais o tornaram necessário Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 17 teoria política isso vem demonstrar a importância que a influência de Locke tomou Na verdade nos Estados Unidos sua influência permaneceu ativa durante algum tempo depois de ter sido amplamente substituída na Inglaterra e a freqüência com que continuou a ser citado como uma contribuição vital às controvérsias políticas até meados do século XIX e mesmo mais tarde proporciona uma interessante evidência corroborativa da persistência na América da perspectiva individualista que é particularmente associada a Locke77 Já foram mencionadas algumas falhas na obra de Locke e seria fácil apontar outras Fundamentalmente seu defeito mais sério que ele compartilha com toda a escola individualista a que pertence é a artificialidade de sua teoria Ele tem pouco conhecimento de psicologia política enfatiza muito a escolha racional pelos indivíduos e parece não ter consciência da solidariedade da sociedade ou da força de laços como raça ou nacionalidade Ele concebeu o corpo político como uma união artificial de indivíduos para propósitos limitados e um resultado prático de seus ensinamentos era uma tendência a restringir esses propósitos para proteger os direitos de propriedade e os privilégios de uma classe governante Locke escreve sobre o povo mas não há razão para se supor que ele teria aprovado o voto democrático e talvez ele não tenha considerado suficientemente os interesses da maioria da humanidade desprovida de propriedades78 Pois foi sua situação sob a pressão de um sistema político e econômico individualista que fez com que os homens compreendessem o mais amplamente possível na época de Locke que sua concepção da esfera própria de governo é absolutamente inadequada às necessidades de uma sociedade industrial moderna Ao mesmo tempo se sua teoria é incompleta e unilateral a teoria oposta que prioriza o estado e exalta seu poder às custas do indivíduo é igualmente unilateral e a história recente tem demonstrado o quanto pode ser perigosa Também não deveríamos julgar Locke pelo uso que outros fizeram de seu nome Tem sido dito que em termos econômicos ele era um mercantilista e de forma alguma desaprovava o controle governamental do comércio e há várias outras direções em que ele achava que o governo deveria interferir79 Mas quando ele intervém o faz em prol dos indivíduos Apesar de todos os defeitos que dificilmente eram evitáveis na época em que escreveu ele lança os fundamentos para o princípio de que o estado existe para o bem da espécie humana e não a espécie humana para os propósitos do estado O que é comumente encarado como importante em Locke é sua participação na determinação do princípio do governo por consentimento Esta é uma expressão venerável mas em minha opinião uma expressão infeliz Já vimos que como o próprio Locke a utilizou ela é em si contraditória e falha Os idealistas do século XIX tentaram preservar a idéia do consentimento através de sua teoria de que as ações do governo estão de acordo com o desejo real individual mas por mais engenhosa que seja essa teoria seu efeito não chega a ser um aperfeiçoamento em relação a Locke Hoje em dia o princípio do consentimento é em geral aplicado às formas de governo representativas ou parlamentares mas não fornece a explicação real seja para seu funcionamento seja para suas vantagens O que me parece o valor persistente de Locke embora ele não o estabeleça desta forma é sua insistência sobre a responsabilidade pelo bemestar da comunidade Este princípio é agora comumente admitido e elaboramos o mecanismo político pelo qual a responsabilidade se torna efetiva isto mais que o consentimento é o ponto real das eleições e da representação A discussão agora passou para os meios através dos quais o estado pode melhor promover o bemestar e sobre isso ainda há lugar para desacordo mas atualmente mesmo a opinião mais conservadora espera muito mais controle do estado do que os Whigs consideravam necessário na época de Locke Quanto ao objetivo do estado o bemestar da espécie humana o bem público como ele coloca a posição de Locke foi fundamentalmente correta Neste aspecto ele antecipou os partidários do utilitarismo e se eliminarmos as falácias que se originam de sua abordagem contratual da política o que permanece é uma teoria essencialmente utilitarista 77 Ver um interessante artigo de Merle Curti The Great Mr Locke Americas Philosopher in Huntington Library Bulletin n 11 abril de 1937 p 107151 78 Em justiça a Locke no entanto deveria ser lembrado que ele defendeu uma regra para os ricos e os pobres para o favorito na corte e o camponês na terra parágrafo 142 79 Para um exemplo interessante ver alguns excertos do diário de Locke sob o título de Atlantis datados de 1679 publicados em Ch Bastide John Locke ses théories politiques et leur influence en Angleterre Paris 1906 Appendix I onde Locke propôs vários regulamentos para controlar a vadiagem a idade do casamento e as habitações dos pobres Uma atitude similar aparece no Relatório Sobre a Assistência e o Emprego do Pobre por ele esboçado em 1697 em seu cargo como um dos Comissários do Conselho do Comércio Um crítico desagradável poderia é claro replicar que Locke devia ter considerado as classes trabalhadoras incapazes da autodeterminação racional que ele reivindicava para os abastados CLUBE DO LIVRO LIBERAL A defesa que Locke fez da tolerância apoiouse nos mesmos princípios básicos sobre os quais ele erigiu sua teoria política e o tema ocupou sua mente por muitos anos antes dele escrever a carta a seu amigo holandês Limborch Já em 1660 ele escrevera mas não publicara um curto tratado sobre a questão Se o magistrado civil pode legalmente impor e determinar o uso de temas neutros em referência ao culto religioso80 No prefácio ele comenta que durante toda a sua vida até então ele havia vivido numa tempestade e acolhendo as perspectivas de uma calma que se avizinhava sentiuse obrigado a exortar o homem a obedecer ao governo que trouxe a bênção de um clima tranqüilo para um país que irrefletidamente havia mergulhado na confusão Por isso ele não estava inclinado a encarar com simpatia as reivindicações extremas de liberdade geral A liberdade não deveria ser uma liberdade para os homens ambiciosos deitarem abaixo constituições bem estruturadas a fim de que das ruínas eles possam construir fortunas para si próprios não uma liberdade para serem cristãos e assim não serem súditos Mas em 1660 ele estava tendendo a apoiar o governo da Restauração sete anos depois quando compôs o esboço de seu inédito Ensaio sobre a tolerância chegou ao ponto de vista que manteve com firmeza daí em diante Seu principal argumento para a tolerância é um corolário de sua teoria da natureza da sociedade civil A sociedade política existe para propósitos limitados é uma sociedade de homens constituída apenas para a busca preservação e progresso de seus próprios interesses civis o que ele considera vida liberdade saúde e lazer do corpo e a posse de coisas externas como dinheiro terras casas mobília etc Aos magistrados civis é dado poder para executar as leis que promovem esses interesses mas a salvação das almas não diz respeito a eles Na verdade isso não pode ocorrer pois a verdadeira religião consiste na persuasão interior da mente enquanto o poder do magistrado consiste apenas na força externa Locke então define a igreja como uma sociedade livre e voluntária a que os homens se filiam por vontade própria ninguém nasce membro de qualquer igreja para a veneração pública de Deus da maneira que eles julguem aceitável e eficaz para a salvação de suas almas Uma igreja portanto é semelhante a um estado ao ser formado voluntariamente para propósitos específicos81 e como qualquer outra sociedade deve ter suas próprias leis para regulamentar seus assuntos mas as leis eclesiásticas devem estar confinadas a sua esfera própria que exclui qualquer coisa relacionada à posse de bens civis e mundanos ou o uso da força em qualquer situação Uma igreja pode manter sua própria disciplina interna expulsando qualquer membro que continue obstinadamente a ofender suas leis mas tal excomunhão não deve envolver qualquer privação dos direitos civis O fato do magistrado civil poder se tornar membro de uma igreja não afeta sua condição de sociedade voluntária ou de algum modo lhe acrescenta poderes Uma igreja por isso não tem um poder próprio para perseguir nem pode solicitar ao magistrado que persiga em seu favor Mesmo que fosse certo que uma determinada igreja possuísse toda a verdade sobre a religião isso não lhe conferiria qualquer direito de destruir as igrejas que discordam dela e como na verdade não pode existir tal certeza a intolerância ainda é menos justificável Além de tudo a perseguição não pode garantir mais que uma conformidade externa visto que a fé em si e a sinceridade interna são coisas que buscam a aceitação de Deus Em toda igreja prossegue Locke deve ser feita uma distinção entre a forma exterior e os ritos de veneração e a doutrina e os artigos de fé O magistrado não tem poder para impor pela lei uma forma particular de culto em qualquer igreja seja a sua própria ou outra qualquer Isso não quer dizer que o magistrado não tenha poder sobre questões neutras ao contrário é em tais coisas e talvez apenas em tais coisas que o magistrado pode intervir mas sua intervenção é limitada ao bem público Além disso as coisas neutras em sua própria natureza quando são levadas até à igreja e ao culto a Deus são tiradas do âmbito da jurisdição do magistrado As questões neutras também não podem por qualquer autoridade humana tornarse parte do culto a Deus Como o magistrado não pode impor pela lei o uso de nenhum rito ou cerimônia também não pode proibir o uso de ritos ou cerimônias cuja prática está estabelecida em qualquer igreja Todavia aqui Locke admite uma exceção o magistrado pode proibir ritos sacrifício de bebês por exemplo que não são legais no curso ordinário da vida Os artigos da fé podem ser divididos em especulativos e práticos As opiniões especulativas e as questões a elas pertinentes supõem que elas devem ser acreditadas estão inerentemente além do alcance da lei da terra 80 Este foi publicado por Lord King em sua Life of John Locke 21830 i 13s 81 Em um artigo não publicado datado de 16734 e intitulado Sobre a diferença entre os poderes civil e eclesiástico Locke organizou um elaborado paralelo entre a sociedade civil ou o estado e a sociedade religiosa ou a igreja cada uma atuando em sua própria esfera Está publicado em Lord King Life of John Locke 2ª ed ii 108s Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 19 mas uma boa vida que também faz parte da religião e da autêntica piedade diz respeito também ao governo civil Há um risco portanto que em questões de moral o magistrado e uma consciência humana possam entrar em conflito No Tratado sobre o governo civil Locke pouco enfrentou esta questão mas embora aqui ele o discuta em maior amplitude jamais chega a uma solução verdadeira Ele acredita que se o governo e a consciência individual tiverem o cuidado de se manter dentro de suas esferas próprias o conflito será evitado e se o governo for corretamente administrado raramente ocorrerá que o magistrado concorde com alguma coisa que pareça ilegal à consciência de uma pessoa em particular No caso de ocorrer tal conflito Locke simplesmente recomenda a obediência passiva ou seja um homem deve se abster da ação que julgar ilegal e sofrer a punição que não lhe é ilegal suportar Em último caso se o magistrado acreditar que tem o direito de fazer cumprir certas leis e que elas se destinam ao bem público e seus súditos acreditarem o contrário somente Deus pode julgar entre eles Finalmente Locke menciona algumas exceções a sua regra geral de tolerância O magistrado não deve tolerar opiniões contrárias à sociedade humana ou àquelas regras morais que são necessárias à preservação da sociedade civil mas acha que exemplos deste tipo em qualquer igreja serão raros O magistrado também não deve tolerar aqueles que pregam que não se deve confiar nos hereges ou que reis excomungados tenham suas coroas confiscadas mais uma vez a igreja não deve ser tolerada se seus membros se dedicarem à proteção e ao serviço de outro príncipe O exemplo que Locke apresenta é o dos maometanos mas é evidente que ele estava na verdade pensando nos católicos romanos Finalmente não deve haver tolerância para com aqueles que negam a existência de Deus porque as promessas os acordos e os juramentos que são as garantias da sociedade humana não podem ser mantidos com um ateu Podemos achar que estas exceções são manchas que prejudicam a liberalidade da atitude de Locke mas não são inconsistentes com seu ponto de vista básico pois em todo caso em que o estado intervém ele não o faz por desaproválo em bases religiosas mas porque sua interferência é requerida para a segurança política Em sua atitude em relação à tolerância assim como em sua teoria política Locke não foi um inovador mas estava estabelecendo bases racionais para uma causa que já era quase vencedora A tolerância foi defendida por alguns independentes e outros sectários durante muitos anos e foi amplamente apoiada no exército de Cromwell e ainda que o ambiente eclesiástico na Restauração tenha sido rigidamente anglicano e as tentativas de indulgência de Carlos II tenham sido frustradas os dissidentes sobreviveram e entre os próprios anglicanos começou a se difundir uma atitude mais racionalista se não mais cética através da influência da escola latitudinária Mas para que se pudesse agir se fazia necessário um apelo ao interesse e também à razão a prosperidade do holandês por exemplo foi atribuída a sua liberdade religiosa e à presença entre eles de tantos refugiados da perseguição Na época da Revolução apesar do medo de Roma e da França que foi intensificado pela revogação de Luís XIV do Edito de Nantes e pelos acontecimentos do reinado de James II a ocasião era propícia para um relaxamento da exclusividade rígida da igreja estabelecida e para a adoção da política que por tanto tempo os Whigs proclamavam O próprio Locke ficou desapontado diante da limitada indulgência na verdade concedida aos dissidentes na Revolução e teria preferido a compreensão que ele definiu como uma ampla expansão da igreja ou seja através da abolição de várias cerimônias nocivas induzir um grande número de dissidentes a se submeter82 Estas observações revelam claramente o que na verdade está evidente por toda a Carta sobre a tolerância que a atitude de Locke para com a religião era essencialmente latitudinariana ele acreditava que a cristandade consistia essencialmente de um ou dois dogmas que era tudo em que uma igreja necessitava insistir Sua idéia de que uma igreja é uma sociedade voluntária era característica do nãoconformismo83 e mostra pouca noção do desenvolvimento histórico da cristandade católica sofre na verdade dos mesmos defeitos de abstração e artificialismo de sua teoria do estado84 82 Carta a Limborch 12 de março de 1689 in Fox Bourne Life of John Locke ii 150 83 Ele encontrou confirmação disso em Hooker se é que realmente não o extraiu dele Cf a nota sob o título de Ecclesia de seu livro de anotações datado de 1661 publicado em Lord King Life of John Locke ii 99 A descrição de Hooker da igreja é equivalente a esta ou seja uma sociedade sobrenatural mas voluntária Sua origem diz ele é a mesma das outras sociedades isto é uma tendência à vida sociável e um consentimento ao elo de associação que são a lei e a ordem nela associadas 84 Sua teoria do conhecimento no Ensino sobre o entendimento humano é defeituosa de uma maneira bem similar pois encara as idéias simples que na verdade são o resultado da análise mental como lógica e cronologicamente anteriores às idéias complexas às quais ele supõe que elas se combinarão CLUBE DO LIVRO LIBERAL Mas apesar desses defeitos talvez até devido a eles a tolerância de Locke na religião assim como seu liberalismo na política estava de acordo com o pensamento racionalista de sua época Da mesma forma que suas doutrinas políticas favoreceram a causa da liberdade constitucional também a idéia moderna da igreja livre no estado livre pode seguir o rastro de seus argumentos rumo à tolerância Seja no sistema voluntário dos Estados Unidos da América ou nos domínios britânicos ou na laicité da República Francesa a dívida para com Locke é evidente Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 21 Notas sobre o Texto Os Dois tratados sobre o governo civil foram publicados pela primeira vez anonimamente em 1690 A primeira edição é bastante rara não havendo cópia nem no Museu Britânico nem na Bodleiana Duas outras edições foram publicadas durante a vida de Locke em 1694 e em 1698 cada uma contendo várias emendas e adições Muitas alterações adicionais surgiram na edição coletada das Obras de Locke que teve sua primeira publicação em 1714 e em que uma nota introdutória contém uma transcrição de uma cláusula do testamento de Locke declarando que as edições anteriores dos Tratados sobre o governo civil eram todas muito incorretas Foi dito que uma edição separada a sexta dos Tratados publicada em 1764 não somente foi confrontada com as edições publicadas durante a vida do autor mas também tem a vantagem de suas últimas correções e aperfeiçoamentos a partir de uma cópia entregue por ele ao Sr Peter Coste transmitida ao editor e atualmente se encontra no Christs College em Cambridge Algumas dessas sucessivas adições e alterações elucidam o sentido e outras ampliam pontos que Locke estava especialmente ansioso para enfatizar Nem tudo será percebido como aperfeiçoamentos da versão original pois às vezes repetem o que ele já havia dito em outra parte tendendo assim a aumentar a impressão de prolixidade e extensão que já era um defeito do estilo de Locke em especial quando comparado à clareza e à pungência de Hobbes Não obstante este é o texto que aparentemente teria recebido a aprovação final de Locke e assim foi assumido aqui mas são fornecidas indicações onde ele parte dos textos anteriores que foram reproduzidos em uma ou duas edições populares e desse modo se tornaram familiares a muitos leitores modernos A pontuação e a linguagem foram modernizadas CLUBE DO LIVRO LIBERAL Resumo do Primeiro Tratado do Governo Civil Por Bernard Gilson DESMASCARADOS E DERRUBADOS OS FALSOS PRINCÍPIOS DE ONDE PARTEM SIR ROBERT FILMER E SEUS ADEPTOS CAPÍTULO I 1 Para o homem a escravidão é um estado tão vil tão miserável e tão diretamente contrário ao temperamento generoso e à coragem de nossa nação que é difícil imaginar como um inglês e menos ainda um cavalheiro poderia advogar em seu favor Na verdade como qualquer outro tratado que tentaria convencer os homens sem exceção de que eles são escravos e devem sêlo eu teria considerado o Patriarcha de Sir Robert Filmer uma nova exibição pretensiosa comparável ao elogio de Nero ao invés de um discurso sério concebido como tal se a gravidade do título e da introdução a imagem apresentada no cabeçalho do livro e os aplausos que o têm acompanhado não me obrigassem a acreditar na sinceridade do autor e também do editor Então o tomei nas mãos com todas as esperanças que atraem um tratado cuja aparição provocou tanto alarido e o li de um só fôlego com toda a seriedade que lhe era devida mas confesso que neste livro que devia forjar as correntes de toda a humanidade eu me surpreendi muito ao não encontrar senão uma corda de areia útil talvez àqueles cuja arte e ofício consistem em levantar nuvens de poeira para cegar o povo e fazêlo extraviarse mais facilmente mas frágil demais para arrastar na servidão aqueles que mantêm seus grandes olhos abertos e bastante bom senso para pensar que as correntes são pouco convenientes ainda que se cuidasse de limálas e polilas 2 Se alguns pensam que eu exagero quando falo de forma tão livre de um homem que é o grande campeão do poder absoluto e ídolo daqueles que o adoram eu lhes suplico apenas uma vez que não recusem esta pequena concessão a um indivíduo que mesmo após ter lido o livro de Sir Robert e assim como a lei o autoriza não pode se impedir de considerar a si mesmo um homem livre pois eu sei que isso não é uma falta a menos que se encontre alguém mais informado que eu sobre os rumos do destino e que tem alguma revelação da próxima notícia há tanto tempo adormecido desde que foi publicado este tratado consagrouse a perseguir toda a liberdade pela força de seus argumentos e de agora em diante este modelo acanhado proposto por nosso autor servirá de Decálogo e de critério perfeito da política para todas as épocas futuras Seu sistema tem pouco espaço Reduzse a isto Todo governo é uma monarquia absoluta e eis sobre o que ele se baseia Nenhum homem nasce livre 3 Desde que surgiu no mundo uma geração pronta a lisonjear os príncipes formulando a opinião de que estes são investidos de um direito divino de exercer o poder absoluto sem levar em conta leis destinadas a reger a instituição de seu cargo e o exercício de seu governo ou condições para que eles iniciem suas funções ou ainda o compromisso de respeitálas fosse este ratificado por juramentos ou promessas da maior solenidade estas pessoas negaram à humanidade seu direito à liberdade natural assim fazendo não somente expuseram todos os indivíduos à pior miséria da tirania e da opressão tanto quanto puderam mas ainda os títulos dos príncipes tornaramse duvidosos e seus tronos abalados pois segundo esta doutrina todos os príncipes com uma única exceção também eles nascem escravos e em virtude de um direito divino são herdeiros legítimos de Adão como se eles quisessem entrar em uma guerra contra todo o governo e inverter as próprias bases da sociedade humana 4 Entretanto seria preciso acreditar em sua palavra quando eles nos dizem que todos nascemos escravos e o mal não tem remédio devemos assim permanecer Para nós a vida e a servidão tiveram início no mesmo momento jamais nos libertaremos de uma sem nos separarmos da outra todavia eu ignoro onde quer na Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 23 Escritura quer na razão isto esteja assegurado apesar dos esforços destes indivíduos para nos convencer que a autoridade divina nos tenha sujeitado à vontade ilimitada de um outro admirável condição da humanidade que não tivemos inteligência para descobrir até um período muito recente Embora Sir Robert Filmer pareça condenar a opinião contrária creio que ele terá dificuldade em encontrar outro século além do nosso ou outro país que houvesse afirmado o caráter divino da monarquia Ele reconhece que Heyward Blackwood Barclay e outros que quase sobre todos os pontos lutaram com coragem em defesa ao direito dos reis jamais pensaram nisso e em comum acordo admitiram a liberdade e a igualdade naturais dos homens 5 Ao primeiro que se constituiu o iniciador desta doutrina e a expandiu entre nós com os tristes efeitos que ela arrasta consigo deixo aos historiadores o encargo de mencionálo ou à memória dos contemporâneos de Sibthorp e Manwering a tarefa de recordálo aqui eu me contentarei em examinar o que disse a este respeito Sir Robert Filmer autor conhecido por ter conduzido este argumento aos seus limites mais extremos e que consta terlhe proporcionado sua forma perfeita eis de que mestre todos aqueles que querem se comportar à moda de um francês na corte aprenderam este sistema político estreito e para se garantir o levavam no bolso a saber os homens não nascem livres está então excluído que jamais tenham tido a liberdade de escolher governantes ou formas de governo o poder dos príncipes é absoluto e de direito divino pois jamais escravos puderam reivindicar um contrato ou um consentimento Adão era monarca absoluto e da mesma forma todos os príncipes desde então CAPÍTULO II DO PODER PATERNO E REAL 6 A grande tese de Sir Robert Filmer é que os homens não são naturalmente livres eis sobre que base sua monarquia absoluta repousa e se eleva tão alto que seu poder prevalece sobre qualquer outro caput inter nubila tão acima de todas as coisas terrestres e humanas que o pensamento pode apenas tocálo que as promessas e os juramentos que a divindade obriga não são suficientes para estorválo Entretanto se este fundamento enfraquece todo o edifício desmorona com ele e é preciso deixar os governos reencontrarem seu antigo modo de constituição por meio de procedimentos voluntários e do consentimento dos homens que se utilizam de sua razão para se unirem em sociedade Na p 12 ele quer provar esta tese principal dizendo Os homens nascem dependentes de seus pais e por conseguinte não podem ser livres Esta autoridade dos pais ele chama de autoridade real p 12 14 autoridade paterna direito de paternidade p 12 20 Seria possível acreditar que ao iniciar uma obra desse gênero destinada a servir de único apoio à autoridade dos príncipes e à obediência dos súditos ele nos teria indicado explicitamente o que é esta autoridade paterna que ele a teria definido senão limitado visto que em outros tratados oriundos de sua pena ele a apresenta a nós como ilimitada e não suscetível a limitação deveria nos ter fornecido pelo menos muitas informações a seu respeito para que pudéssemos ter uma idéia completa desta paternidade ou autoridade paterna quando a encontramos em seus escritos Esta eu esperava encontrar no primeiro capítulo de seu Patriarcha Mas em vez disso de passagem 1 ele começa assegurando a obediência dos arcana imperii p 5 2 ele apresenta seus cumprimentos aos direitos e liberdades de nossa nação ou de qualquer outra p 6 o que logo em seguida vai tratar de anular e destruir e 3 após uma saudação a estes homens eruditos que não cumpriram sua missão com tanta penetração quanto ele p 7 ele se lança sobre Belarmino p 8 e graças à vitória que obtém estabelece sua autoridade paterna sem qualquer contestação Belarmino se vê derrotado por sua própria confissão p 11 a batalha está seguramente ganha não se necessita mais de tropas pois feito isso eu não o vejo mais colocar a questão ou reunir argumentos para justificar sua opinião antes de mais nada ele nos conta a sua maneira a história desta espécie estranha de fantasma chamado paternidade que só bastaria a qualquer um agarrar para obter imediatamente o império e um poder absoluto ilimitado Agora ele nos garante que esta Paternidade teve início na pessoa de Adão prosseguiu seu curso manteve a ordem no mundo durante toda a era dos Patriarcas até o dilúvio saiu da arca com Noé e seus filhos estabeleceu e sustentou todos os reis da terra até o cativeiro dos israelitas no Egito e então CLUBE DO LIVRO LIBERAL a pobre paternidade ficou no porão até o dia em que dando reis aos israelitas Deus restabeleceu o direito antigo e fundamental da sucessão ao governo paterno em linha direta Eis do que se ocupam as p 1219 e então enfrentando uma objeção e esclarecendo uma ou duas dificuldades com uma meiaverdade p 23 para confirmar o direito natural do poder real ele conclui o primeiro capítulo Espero não ofender qualificando uma meiacitação de meiaverdade pois Deus disse Honra teu pai e tua mãe mas nosso autor se contenta com a metade deixa de lado pura e simplesmente tua mãe como se fosse de pouca utilidade para o seu propósito mas voltarei a isso em outra parte 7 Não considero nosso autor tão incompetente na arte de escrever discursos dessa natureza ou tão pouco atento à questão tratada que pudesse cometer por descuido o engano que ele mesmo critica nestes termos o Sr Hunton em sua Anarquia de uma monarquia mista p 239 Em primeiro lugar declaro que o autor está errado por não nos ter apresentado nenhuma definição ou descrição da monarquia em geral pois segundo às regras do método ele deveria começar por definir De acordo com a própria regra do método Sir Robert deveria nos dizer o que é esta paternidade ou sua autoridade paterna antes de nos indicar em quem ela se encontra e antes de falar tanto dela Talvez Sir Robert temesse que esta autoridade paterna este poder dos pais e dos reis visto que ele os identifica p 24 evocasse um personagem estranho e aterrorizante muito diferente deste que os filhos imaginam de seus pais ou os súditos de seus reis se ele nos desse a dose toda de uma só vez sob a forma gigantesca que sua imaginação lhe representava também imitou o médico cauteloso que deseja que seu paciente beba alguma droga acre ou corrosiva e a mistura com uma grande quantidade de uma substância capaz de diluíla para que as partículas dispersas possam descer suscitando sensações menos fortes e causar menos repugnância 8 Tentemos ver que indicações ele nos fornece sobre esta autoridade paterna tal qual ela se encontra disseminada nas diferentes partes de seus escritos De início ele nos diz que como Adão dela estava investido não somente Adão mas os patriarcas sucessivos tinham por seu direito de paternidade uma autoridade real sobre seus filhos p 12 Este domínio sobre o mundo inteiro que Adão exercia por obediência e do qual os patriarcas desfrutavam como se o tivessem recebido dele por transmissão legítima se igualava por suas dimensões e por sua amplitude à soberania absoluta de todos os monarcas que existiram desde a criação p 13 Poder de vida e de morte de fazer a guerra e decidir a paz p 13 Adão e os patriarcas tinham um poder absoluto de vida e de morte p 35 Os reis por direitos de seus pais sucedem ao exercício do poder supremo p 19 Como o poder real é de direito divino e nenhuma lei inferior o limita Adão era o senhor de todos p 40 Um pai de família não governa em virtude de nenhuma outra lei exceto a sua própria vontade p 78 A superioridade dos príncipes está acima das leis p 79 O poder ilimitado dos reis está descrito muito extensamente por Samuel p 80 Os reis estão acima das leis p 93 e neste sentido encontramos muitas outras passagens ainda em que nosso autor se exprime na linguagem de Bodin É certo que todas as leis todos os privilégios e todas as concessões dos príncipes só têm efeito para aquele que desfruta deles a menos que o príncipe seguinte os ratifique aprovandoos ou tolerandoos sobretudo os privilégios O p 279 A razão para que os reis também fizessem leis era a seguinte quando os reis estavam empenhados nas guerras ou retidos por questões públicas de modo que nem todos os indivíduos pudessem ter acesso a sua pessoa para conhecer suas vontades e seus desejos por absoluta necessidade era preciso criar leis de tal forma que cada súdito individualmente pudesse tomar conhecimento das intenções de seu príncipe lendo as tábuas de suas leis p 92 Em uma monarquia o rei deve estar necessariamente acima das leis p 100 Um reinado perfeito é aquele onde o rei dispõe de tudo segundo sua própria vontade p 105 Nem o direito comum nem as leis escritas constituem nem podem constituir por qualquer motivo uma limitação ao poder geral que os reis têm sobre seu povo por direito de paternidade p 115 Adão era o pai o rei e o senhor de sua família no início nada distinguia entre um filho um súdito um servo ou um escravo O pai tinha o poder de alienar ou de vender seus filhos ou seus escravos o que explica que no primeiro inventário dos bens na Escritura o servo e a serva figuram entre as posses do proprietário e em seu ativo como os outros objetos O prefácio Deus também deu ao pai o direito ou a faculdade de alienar o poder que ele exerce sobre seus filhos em benefício não importa de que outra pessoa isso explica que evidenciemos que a venda e a doação dos filhos fosse tão comum no começo do mundo quando os homens tinham servos a título de posse e de herança assim como os outros bens e vejamos que o poder de castrar e produzir eunucos era muito utilizado nos tempos antigos O p 115 A lei não é senão a vontade daquele que possui o poder do pai supremo O p 223 Deus ordenou que a supremacia seja ilimitada na pessoa de Adão e se estenda a todos os atos de sua vontade e que todos aqueles que detêm o poder supremo sejam como ele O p 245 Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 25 9 Precisei importunar meu leitor com estas diversas citações dos próprios termos de que se serve nosso autor a fim de que se pudesse lá encontrar da maneira que ele próprio descreve sua autoridade paterna de tal forma ela se encontra disseminada aqui e ali em seus escritos ele supõe que antes de tudo Adão estava investido desta autoridade e que desde então ela pertence por pleno direito a todos os príncipes Esta autoridade paterna ou este direito de paternidade no sentido do nosso autor é pois um direito de soberania divino e inalterável em virtude do qual o pai ou o príncipe exercem um poder absoluto arbitrário sem limites e que não se pode limitar sobre a vida a liberdade o destino de seus filhos ou súditos de tal maneira que podia tomar ou alienar seus bens e vender castrar ou utilizar suas pessoas como bem entendesse porque todos são seus escravos enquanto ele é o senhor e o proprietário de todas as coisas e sua vontade ilimitada lhes serve de lei 10 Como nosso autor investiu Adão de um poder tão temível e fundamenta sobre esta hipótese todos os governo se o poder de todos os príncipes poderseia esperar que ele fornecesse a prova disso com argumentos claros e evidentes adequados à importância da causa Dessa maneira como teriam perdido todo o resto os homens poderiam conhecer na escravidão provas tão irrefutáveis de sua necessidade que se sentiriam convencidos em sua alma e consciência e isso os obrigaria a se submeterem pacificamente à dominação absoluta que seus governantes teriam o direito de exercer sobre eles pois se não fosse este o caso o que nosso autor podia fazer ou pretender fazer erigindo este poder ilimitado exceto adular a ambição e a vaidade dos homens tão propensa a se inflar e dilatar com a possessão de um poder qualquer Além disso fazer com que estes acreditem que o consentimento de seus irmãos humanos promoveu empregos em que detêm um poder iminente mas limitado que aquele que lhes foi dado lhes atribui tudo isto que esta dádiva não comportava como se eles pudessem fazer tudo o que lhes agradasse porque estão qualificados para fazer mais que os outros e desta maneira tentar fazer com que eles realizem atos que não se aplicam nem ao seu bem nem ao bem daqueles que estão sob sua guarda o que acarretará forçosamente grandes infelicidades 11 Como nosso autor fundamenta sua poderosa monarquia absoluta sobre a soberania de Adão como sobre uma base segura eu esperava vêlo estabelecer e provar em seu Patriarcha esta hipótese principal de que ele parte com todos os argumentos exigidos por uma tese fundamental deste gênero e que a verdade que serve de centro de gravidade para toda a questão receba provas suficientes para justificar a confiança pela qual é aceita Entretanto percorrendo o conjunto da obra não recolhi grande coisa que se dirija neste sentido o fato é supostamente aceito sem provas e eu mal podia acreditar em meus olhos quando à leitura atenta deste tratado constatei que uma construção tão poderosa se encontrava edificada sobre a simples suposição desta premissa pois é quase inacreditável que em um discurso onde ele pretende refutar o princípio errôneo da liberdade natural do homem ele o faça postulando simplesmente a autoridade de Adão sem apresentar a menor prova Ele chega mesmo a afirmar categoricamente que Adão possuía uma autoridade real p 12 um domínio e uma disposição absolutos sobre a vida e a morte p 13 uma monarquia universal p 33 um poder absoluto de vida e de morte p 35 Ele reitera freqüentemente afirmações deste tipo mas o que é estranho é o fato de que em todo o seu Patriarcha eu não encontro o simulacro de uma única razão para estabelecer estes fundamentos que ele dá ao governo nem nada que possa parecer um argumento exceto as palavras que se seguem Como confirmação deste direito natural do poder real constatamos que o Decálogo formula nestes termos a lei que obriga obediência aos reis Honra teu pai como se todo poder residisse em sua origem na pessoa do pai Assim sendo por que eu não poderia acrescentar que o Decálogo formula a lei que obriga obediência aos reinos nestes termos Honra tua mãe como se todo o poder residisse na pessoa da mãe Da forma como Sir Robert o apresenta o argumento vale tanto para uma como para a outra mas retornarei a isso mais adiante 12 Tudo o que observo é que nosso autor não se alonga muito nem em seu primeiro capítulo nem em qualquer dos seguintes para provar o poder absoluto de Adão que lhe serve de grande príncipe no entanto como se houvesse estabelecido isso por uma demonstração segura começa seu segundo capítulo com estas palavras Administrando estas provas e razões extraídas da autoridade da Escritura Confesso que não consegui ver onde se encontram estas provas e razões da soberania de Adão salvo aquela de Honra teu pai mencionada acima ou então sua afirmação Nestes termos encontramos o testemunho manifesto ou seja de Belarmino que a criação tornou o homem príncipe de sua posteridade deve ser considerada como constituinte de provas e razões extraídas da Escritura ou de qualquer prova graças a uma dedução de um novo tipo nas palavras que imediatamente se seguem e na verdade conclui ele a autoridade real de Adão está suficientemente estabelecida em sua pessoa CLUBE DO LIVRO LIBERAL 13 Se neste capítulo ou não importa onde em toda a obra ele apresentou outras provas da autoridade real de Adão além da freqüência com que ele a afirma o que passa por um argumento na opinião de alguns convido quem quiser se encarregar de me mostrar o local e a página para que eu possa me convencer de meu erro e reconhecer meu descuido Se não se encontrar qualquer argumentação deste tipo imploro àqueles que tanto exaltaram este livro que se perguntem se não estão dando ao mundo a ocasião de suspeitar que eles defendem a monarquia absoluta não pela força das razões e dos argumentos mas porque cedem àquela do interesse e estão então resolvidos a aplaudir qualquer autor que escreva a favor de uma tal doutrina dandolhe ou não uma justificativa racional Espero que mal saibam que homens providos de razão e desprovidos de preconceitos se lançam a ganhar sua confiança porque em um discurso destinado a estabelecer o poder monárquico absoluto de Adão em oposição à liberdade natural da humanidade este grande doutor que eles invocam no assunto disse tão pouco para proválo que seria mais natural concluir que não há muita coisa a ser dita 14 Contudo eu não queria me poupar nenhum esforço para conhecer plenamente o pensamento de nosso autor então consultei suas Observações sobre Aristóteles Hobbes etc a fim de ver se ele se servia de argumentos quaisquer que fossem eles para apoiar sua querida tese da soberania de Adão em suas controvérsias com os outros uma vez que foi tão parcimonioso em seu tratado sobre o Poder natural dos reis Nas observações sobre o Leviatan do Sr Hobbes creio que ele agrupou em resumo a totalidade dos argumentos dos quais o vi se servir onde quer que seja em seus escritos Se Deus criou apenas Adão e depois de uma parte de seu corpo fez a mulher e se a partir de um e de outro toda a humanidade se encontra engendrada como uma parte deles mesmos e se multiplica se Adão recebeu de Deus o domínio não somente sobre sua mulher e sobre os filhos que nasceram deles mas também sobre a terra inteira para submetêla e sobre todas as criaturas que aqui vivem de tal maneira que durante toda a vida de Adão nenhum homem pudesse reivindicar ou possuir o que quer que seja salvo em virtude de uma doação de uma cessão ou de uma autorização emanando dele eu me pergunto etc O p 165 Aqui encontramos o resumo de todos os argumentos para a soberania de Adão e contra a liberdade natural que se encontram disseminados em seus escritos Eilos a criação de Adão por Deus o poder que Ele lhe deu sobre Eva e o poder que ele possuía como pai sobre seus filhos eu os examinarei a todos um por um CAPÍTULO III DO TÍTULO DE ADÃO À SOBERANIA PELA CRIAÇÃO 15 No prefácio de suas Observações sobre a Política de Aristóteles Sir Robert nos diz não se pode supor que a humanidade seja naturalmente livre sem negar que Adão tenha sido criado assim sendo eu não vejo como a criação de Adão pôde lhe conceder um poder soberano sobre o que quer que fosse pois ela consistia apenas para ele em receber o ser diretamente da onipotência e da mão de Deus não compreendo então porque a hipótese da liberdade natural equivale à negação da criação de Adão e seria de muita ajuda se alguém me explicasse isto porque nosso autor não se dignou ele próprio de fazêlo Não experimento qualquer dificuldade em supor que a humanidade seja naturalmente livre ainda que eu sempre tenha acreditado que Adão foi criado ele foi criado ou começou a existir em virtude de uma ação direta do poder divino sem a intervenção de pais ou sem que seres da mesma espécie devessem ter existido antes dele para gerálo e isso no momento determinado por Deus e da mesma maneira antes dele o leão o rei dos animais começou a existir em virtude do poder criador de Deus em conseqüência se o único fato de um ser existir em virtude deste poder sem nada além é suficiente para lhe conferir a soberania nosso autor raciocinando desta forma vem provar que o leão pode fazer valer um direito tão bom quanto aquele de Adão e certamente mais antigo Não pois Adão extraía seu direito de Deus que o havia designado diz o autor em outra parte Neste caso não foi o fato da criação isoladamente que concedeu o poder a Adão é então possível supor que a humanidade seja livre sem negar que Adão foi criado porque foi o ato pelo qual Deus o designou que o fez rei Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 27 16 Vejamos como ele concilia sua criação e sua designação Em virtude da designação divina diz Sir Robert desde que Adão foi criado ele se tornou rei do mundo mesmo que não tivesse ainda súditos é verdade que não podia existir governo efetivo enquanto não houvesse súditos mas Adão extraía da lei da natureza o direito de governar sua posteridade Adão era então rei desde o momento de sua criação em potência mas não em ato Lamento que o autor não nos diga o que ele entende por designação divina Podese explicar por uma designação divina tudo o que a Providência determina tudo o que prescreve a lei da natureza ou tudo o que ensina a revelação direta mas suponho que não se saberia tratarse aqui do primeiro sentido ou seja da determinação da Providência pois isso equivaleria a dizer que Adão exerceu uma realeza de fato desde que foi criado porque a lei da natureza lhe concedia o direito de governar sua posteridade A Providência não podia lhe conferir uma realeza de fato sobre o mundo em uma época em que não existia nem governo nem súditos para serem governados o que nosso autor reconhece aqui Ele chega até a dar à expressão monarca do mundo um sentido diferente pois entende às vezes por isso um indivíduo que seria proprietário da totalidade do mundo com exceção do resto da humanidade como o faz em seu Prefácio à página que já citei ele diz uma vez que Adão recebeu a ordem de multiplicar sua raça de povoar a terra e dela tornarse senhor e recebeu a soberania sobre todas as criaturas tornouse por isso mesmo o monarca do mundo inteiro desde então nenhum de seus descendentes pode ter o direito de possuir o que quer que seja a menos que tenha dele este direito por meio de uma concessão uma permissão ou uma sucessão Suponhamos então que ele deixe de entender por monarca o proprietário do mundo e por designação uma verdadeira doação divina e uma cessão especial efetuada em prol de Adão sob a forma de uma revelação Gn 128 são as definições que o próprio Sir Robert sustenta na passagem que eu comento neste caso seu argumento se apresenta da seguinte maneira desde que Adão foi criado tornouse proprietário do mundo porque a lei da natureza lhe concedia o direito de governar sua posteridade Este raciocínio encerra dois erros claros Primeiro é falso que Deus tenha efetuado esta cessão em favor de Adão logo após têlo criado na verdade ainda que o texto que a isso se refere venha imediatamente em seguida àquele que relata a sua criação é evidente que Deus não podia se dirigir a Adão nestes termos antes de ter feito Eva e de têla conduzido para junto dele perguntase como ele podia ser rei em virtude de uma designação especial desde o momento de sua criação mais ainda porque o texto se não me engano qualifica de concessão original do governo as palavras que Deus pronuncia dirigindose a Eva na passagem Gn 316 este acontecimento é posterior à queda quando ocorreu algum tempo havia decorrido desde a criação de Adão e a situação deste havia mudado muito não percebo então como nosso autor pode dizer neste sentido que Adão tornouse rei do mundo em virtude de uma designação especial desde o momento de sua criação Em segundo lugar se era verdade que foi uma doação divina que constituiu a designação especial de Adão como monarca do mundo desde o momento de sua criação a razão que se enuncia aqui não bastaria para proválo seria sempre a sustentação de um raciocínio falso pois se Deus designou Adão como monarca do mundo por meio de uma doação especial é porque a lei da natureza concedia a Adão o direito de governar sua posteridade na verdade se Deus já havia concedido a Adão o direito de governar em virtude da natureza não teria por que fazerlhe uma doação especial ou pelo menos a primeira dádiva não poderia constituir prova da segunda 17 Por outro lado isto não resolve muito se por designação divina entendemos a lei da natureza ainda que seja uma maneira muito dura de designála neste contexto e por monarca do mundo o chefe político soberano do mundo pois neste caso a frase que examinamos se apresenta sob a seguinte forma em virtude da lei da natureza desde o momento de sua criação Adão foi encarregado de governar sua posteridade o que equivale dizer que ele governava em virtude da lei da natureza porque governava em virtude da lei da natureza Mesmo que se suponha que concedêssemos que o homem seja naturalmente encarregado de governar seus filhos isso não poderia provar que Adão tenha se tornado monarca desde o momento de sua criação na verdade se o homem é naturalmente encarregado em virtude de sua qualidade de pai acredito que é difícil conceber como Adão podia ser naturalmente encarregado de governar antes de ser pai ele que não podia extrair o direito de governar senão de sua qualidade de pai ou então é preciso sustentar que ele era pai antes de ser pai ou que possuía um direito antes de possuílo 18 A esta objeção fácil de prever nosso autor responde com muita lógica que Adão foi encarregado do governo em potência mas não em ato eis um meio bem elegante de governar sem governo de ser pai sem filhos e de ser rei sem súditos Da mesma maneira Sir Robert era autor antes de ter escrito seu livro não em ato é CLUBE DO LIVRO LIBERAL verdade mas em potência porque depois que ele o tivesse publicado a lei da natureza lhe teria concedido o direito de ser autor assim como Adão possuía o direito de governar seus filhos antes de têlos gerado se isso resolvia o caso de ser assim monarca do mundo ou seja monarca absoluto em potência mas não em ato Sir Robert pode conferir graciosamente este direito a qualquer um de seus amigos se ele lhe parecer conveniente e não sou eu quem o desejará todavia mesmo que estes termos ato e potência designassem outra coisa além da habilidade de nosso autor na arte da distinção não estariam em seu devido lugar aqui A questão não é saber se Adão exercia efetivamente o governo mas se estava efetivamente investido do direito de governar o direito da natureza diz nosso autor habilitava Adão a governar O que vem a ser então este direito da natureza O direito que pertence aos pais de exercer poder sobre a pessoa dos filhos porque ele os gerou geratione jus acquiritur parentibus in liberos diz nosso autor que cita Grotius O p 223 Assim o direito acompanha o fato da procriação do qual procede e segundo esta maneira de raciocinar ou de distinguir que é a de nosso autor Adão estava investido de seu direito desde o momento de sua criação mas somente em potência e não em ato ou seja em bom inglês ele não tinha direito algum 19 Para se falar em termos menos eruditos mas mais inteligíveis podese dizer que Adão tinha a possibilidade de tornarse chefe político porque era possível que tivesse filhos e adquirisse desta maneira o direito natural fosse qual fosse que resulta disso mas que relação existe entre isso e a criação de Adão que permite afirmar que ele se tornou monarca do mundo desde o momento de sua criação Visto isso poderseia também dizer que Noé se tornou monarca do mundo desde o momento de sua criação porque ele tinha a possibilidade de sobreviver à humanidade inteira com exceção de sua própria posteridade o que depois da definição de nosso autor é suficiente para fazer um monarca um monarca em potência Confesso de minha parte não perceber onde existe e como se pretende uma relação necessária entre a criação de Adão e seu direito de governar o que obrigaria a concluir que não se pode supor que a humanidade seja naturalmente livre sem negar que Adão foi criado nem como é possível reunir as palavras em virtude da designação especial etc O p 254 qualquer que seja a explicação que se dê de maneira que elas tenham um sentido um pouco mais aceitável ou pelo menos que provem a afirmação sobre a qual estão assentadas ou seja que Adão se tornou rei desde o momento de sua criação um rei diz nosso autor não em ato mas em potência ou seja na realidade rei nenhum 20 Temo ter cansado a paciência de meu leitor detendome sobre esta passagem mais tempo do que parece exigir o peso dos argumentos que ela encerra mas foi a maneira de escrever de nosso autor que me arrastou irresistivelmente ele amontoa várias suposições umas em cima das outras e o faz em termos ambíguos e gerais a mistura e a confusão que disso resulta são tais que não se pode apontar os erros que ele comete sem examinar os diferentes significados que os termos dos quais ele se serve são suscetíveis de receber e sem averiguar de que maneira se tomamos qualquer uma de suas acepções eles conseguem se entrosar entre elas e conter alguma verdade na passagem que tratamos aqui nada poderia impedir a refutação da tese do autor ou seja a afirmação de que Adão se tornou rei desde o momento de sua criação sem examinar primeiro o sentido das palavras desde o momento de sua criação devese compreender que elas se referem pois é possível ao momento em que Adão começou a governar como implica o membro de frase precedente desde o momento de sua criação ele se tornou monarca ou que se referem ao fato gerador do poder de Adão pois o texto diz p 11 a criação fez do homem o príncipe de sua descendência Como se pode julgar que é verdade que Adão seja rei de certa maneira se não se averigua primeiro em que sentido se deve interpretar a palavra rei Tratase como a redação do início desta passagem dá a entender dos direitos de prerrogativa privada de Adão que este tinha por uma concessão divina especial enquanto monarca do mundo nomeado por Deus Ou a idéia de rei evoca o poder paterno que Adão exercia sobre sua descendência e que lhe era devido em virtude do direito da natureza É preciso então dar à palavra rei um ou outro destes dois sentidos ou nem um nem outro e compreender que a criação fez de Adão um príncipe de uma maneira diferente daqueles dois Ainda que em nenhum sentido seja verdadeiro afirmar que Adão tenha se tornado rei desde o momento de sua criação esta tese nos é aqui apresentada como uma conclusão que seria deduzida daquela que a precede então na realidade não é senão uma afirmação gratuita justaposta a outras da mesma espécie que reúne ousadamente como em um raciocínio termos de senti do impreciso e duvidoso onde não existe nem prova nem encadeamento este procedimento é costumeiro em nosso autor como acabo de dar aqui um resumo ao leitor eu me absterei tanto quanto o assunto me permitir de voltar a esta questão se aqui eu toquei no assunto foi para fazer ver ao mundo como idéias incoerentes e hipóteses que não vêm acompanhadas de nenhuma prova se as reunirmos de uma bela Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 29 maneira numa linguagem bem apresentada e num estilo aceitável podem passar por raciocínios sólidos e sensatos até o dia em que alguém as examinar com atenção CAPÍTULO IV DO TÍTULO DE ADÃO À SOBERANIA POR ADOÇÃO GN 128 Parágrafos 2143 Filmer afirma que Deus deu o mundo a Adão ordenandolhe submeter a terra e povoála a doação passa aos filhos na medida em que estes possuem os direitos de seu pai mas é preciso distinguir a doação do mundo a título de propriedade daquele do poder real sobre os homens Ora o texto da Gênese 128 em primeiro lugar não tornou Adão monarca da espécie humana e em segundo concedeulhe um simples direito de copropriedade sobre as criaturas inferiores Os seres vivos dados por Deus são os animais privados de razão terrestres aquáticos ou aéreos o gado os animais selvagens e os répteis eles não incluem o homem senão a sujeição seria pior que a escravidão e o rei poderia comer seu povo A doação das espécies inferiores à espécie humana foi feita a todos os homens e não apenas a Adão A Bíblia emprega o plural porque Deus se dirigia também a Eva Se Deus falava no plural antes de ter criado Eva Ele se dirigia à humanidade coletivamente O próprio Filmer declara que Deus deu a terra aos filhos dos homens Como podia concluir que apenas Adão era o rei do mundo Procura em seguida negar a copropriedade dos filhos de Noé estes não teriam recebido o mundo senão na qualidade de subordinados ou de sucessores Entretanto a ordem de se multiplicar dada por Deus aos homens não interessava senão àqueles filhos de Noé que por sua vez se tornaram pais Noé não recebeu mais direitos que Adão sobre seus filhos mas Deus estendeu o campo de seu direito de propriedade sobre o mundo autorizandoo a se alimentar de animais selvagens Isso não confere nenhum poder sobre as pessoas Todos da mesma maneira podem se alimentar de animais selvagens e nenhum dispõe de um privilégio que lhe permitisse reduzir os outros à obediência pela fome CAPÍTULO V DO TÍTULO DE AÇÃO À SOBERANIA PELA SUJEIÇÃO DE EVA Parágrafos 4449 Filmer imagina que Deus confiou o governo a Adão quando diz a Eva Teu desejo te colocará ao lado de teu esposo e ele te comandará Entretanto Deus amaldiçoava Eva e pouco se preocupava em conferirlhe poderes Condenou Adão ao trabalho e não colocou um cetro em suas mãos A passagem citada não diz respeito senão à situação da mulher diante de seu marido CAPÍTULO VI DO TÍTULO DE ADÃO À SOBERANIA PELA PATERNIDADE Parágrafos 5072 A tese principal de Filmer é que Adão possuía um direito natural de domínio sobre seus filhos em virtude da própria paternidade tal seria a fonte de toda a autoridade real homem algum nascendo CLUBE DO LIVRO LIBERAL livre Grotius ensina que os pais adquirem um poder sobre seus filhos em virtude da geração Entretanto ele não pretende que se tratasse de um poder absoluto Filmer o faz dizer isso O argumento habitual é outro os pais dão a vida aos filhos portanto são senhores desta vida mas aquele que dá nem sempre tem o direito de retomar O pai na verdade não dá a vida de que ele não compreende sequer a natureza Deus é o autor e o doador da vida e mais ainda da alma O homem se acasala por desejo e freqüentemente perpetua a raça contra a sua vontade Se o pai tem direitos a mãe compartilha deles Os pais que abandonam seus filhos agem contra a natureza o que não fazem nem os leões nem os lobos Alguns chegam a comêlos O homem cai mais baixo que os animais selvagens se deixa de seguir a razão e sua extravagância faz crer aos outros que ele é capaz de os comandar Filmer apresenta hábitos criminosos como provas da autoridade paterna Filmer invoca o Decálogo Honra teu pai Se tivesse acrescentado e tua mãe teria visto que não se tratava de um poder monárquico A Escritura associa quase sempre a mãe ao pai Ela ordena a obediência aos pais O Quinto Mandamento não autoriza o pai a dispensar o filho de honrar sua mãe O direito natural concede aos dois um direito igual à honra Igualmente o avô paterno não pode dispensar o neto de honrar o pai A obrigação não se situa no plano da obediência política onde o soberano pode dispensar um súdito de obedecer a outro Filmer disse que o pai pode alienar seu poder em benefício de um terceiro Supondose que ele pudesse alienar seu direito ao respeito o que não é garantido uma vez admitido que o magistrado supremo é ao mesmo tempo pai nenhum súdito pode exercer autoridade sobre seus próprios filhos ou inversamente todos os súditos que são pais seriam soberanos Na realidade Deus deu a terra aos homens e lhes ordenou obedecer e honrar seus pais não conferiu aos pais nenhum poder de vida e de morte O homem possui portanto uma liberdade natural Todos aqueles que compartilham a mesma natureza as mesmas faculdades e os mesmos poderes são iguais por natureza e devem participar dos mesmos direitos e privilégios comuns até aquele que um superior pudesse reclamar para si seja uma designação divina manifesta seja consentimento de seu subordinado Isso destrói todo o raciocínio de Filmer Em outro momento Filmer se contradiz sem cessar com respeito ao ponto da respectiva autoridade dos pais e dos avós pelas razões indicadas Ele não atribui sempre a paternidade às mesmas pessoas aos pais aos filhos durante a vida de seu pai aos pais de família aos pais perpetuamente à herança de Adão à posteridade de Adão aos primeiros pais todos filhos ou netos de Noé aos primeiros pais a todos os reis a todos aqueles que detêm o poder supremo aos herdeiros destes primeiros ancestrais que eram no início os pais naturais de todo o povo a um rei eletivo àqueles em pequeno ou em grande número que governam a sociedade política a um usurpador Não importa por conseguinte quem pode ser pai CAPÍTULO VII DA PATERNIDADE E DA PROPRIEDADE Parágrafos 7377 Filmer justapõe duas proposições apenas a afirmação da propriedade privada de Adão sobre o mundo permite evitar os absurdos da teoria da liberdade natural o poder paterno é a fonte de todo poder Como conciliálos Pela morte de Adão seus bens passam ao filho mais velho supondose que a regra da primogenitura se aplique à sucessão mas o herdeiro dos bens apesar disso não se torna o pai dos filhos que não gerou Todos os filhos de Adão permanecem pais de seus próprios filhos Do ponto de vista da propriedade Caim e Abel possuíam territórios e rebanhos distintos já durante a vida de Adão Igualmente Noé dividiu o mundo entre seus três filhos Filmer nega que a vontade popular possa constituir uma fonte de poder como a paternidade pois esta dupla soberania conduziria a lutas sem fim Entretanto o resultado é o mesmo quando se invoca do mesmo modo a propriedade e a paternidade Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 31 CAPÍTULO VIII DA TRANSMISSÃO DO PODER MONÁRQUICO SOBERANO DE ADÃO Parágrafos 7880 Filmer começa por dizer que ninguém podia possuir nada exceto em virtude de uma doação ou de uma permissão de Adão ou como sucessor deste mas pouco a pouco termina por aceitar todos os procedimentos de transmissão da autoridade inclusive a usurpação CAPÍTULO IX DA MONARQUIA COMO HERANÇA RECEBIDA DE ADÃO Parágrafos 81103 Ainda que todo poder devesse ser monárquico ainda seria preciso saber quem é rei e quem não é Caso contrário não haveria diferença entre os piratas e os príncipes legítimos Somente a força garantiria a obediência Mesmo que Adão detivesse uma poderosa monarquia absoluta Filmer deveria ainda provar primeiro que este poder não cessou com Adão mas passou integralmente para algum outro segundo que os reis e governantes atuais da terra recebem dele seu título em virtude de alguma transferência regular A propriedade vinha de uma doação a paternidade do fato de gerar Se a doação não estivesse acompanhada de uma cláusula expressa de transmissibilidade não passaria aos sucessores de Adão por morte deste mas retornaria a Deus Na realidade Deus deu ao homem o desejo de autopreservação e a inteligência para utilizar para este fim as criaturas inferiores Deus deu também o desejo de perpetuar a espécie através do qual os filhos têm o direito de dividir os bens dos pais e de herdálos Os pais não são proprietários por sua própria conta mas devem prover as necessidades de sua progenitura Por sua morte esta obrigação cessa mas seus efeitos devem continuar a se estender o máximo de tempo possível de onde resulta um direito de sucessão natural em benefício dos filhos Por isso a propriedade privada não retorna ao conjunto da humanidade por morte do proprietário Por isso também o filho do morto e não seu pai é seu herdeiro Todos os filhos de Adão foram seus herdeiros sem que nenhum pudesse extrair disso o direito de comandar os outros Foi difundida a opinião de que existe um direito natural de primogenitura tanto para os bens quanto para o poder No entanto a propriedade existe no interesse do proprietário enquanto o poder existe no interesse daqueles sobre os quais ele é exercido A criança pode reclamar de seu pai os meios de viver mas não aqueles de comandar Se a soberania procede do consentimento valese da mesma regra que prevê sua transmissão Se provém de uma doação divina é preciso uma doação semelhante em benefício do novo titular Se está fundamentada sobre a procriação nenhum homem pode reivindicála diante de seus irmãos Não existe direito natural de primogenitura quer se trate do poder ou dos bens O herdeiro de Adão não podia receber de seu pai qualquer autoridade sobre Eva Os pais não podem alienar o poder que têm sobre seus filhos mas quando muito se encontrar despojados dele O pai adotivo adquire o título principal à piedade filial mas não o poder paterno que o pai natural simplesmente perdeu CLUBE DO LIVRO LIBERAL A paternidade não se transmite para o herdeiro Pelo modo que Filmer definiu a paternidade e a propriedade de Adão estes direitos eram intransmissíveis CAPÍTULO X DO HERDEIRO DO PODER MONÁRQUICO DE ADÃO Parágrafos 104105 Filmer diz que em toda multidão há um homem que por natureza tem o direito de ser o rei dos outros como herdeiro de Adão e que por natureza todo homem é rei ou súdito Suponhamos que se reúna uma multidão composta precisamente de todos os reis e príncipes da terra Logicamente o mesmo princípio deveria se aplicar Dessa maneira todos reivindicariam para si um direito igual É preciso admitir ou que os reis não recebem sua autoridade de Adão por sucessão segundo a regra da primogenitura ou que no mundo existe apenas um rei legítimo Este pode ser o chefe de qualquer casa desconhecendose que esteja ligada a outra Ao contrário se Adão tivesse mais de um herdeiro todos os homens seriam igualmente seus herdeiros sendo seus filhos ou os descendentes destes CAPÍTULO XI QUEM É ESTE HERDEIRO Parágrafos 106109 A questão que sempre desencadeou as guerras não é a de saber se há um poder no mundo nem qual é sua origem mas a de decidir quem vai exercêlo Exaltar a soberania sem mostrar o titular é provocar desordens Filmer atribui um caráter de direito divino não somente à autoridade mas a sua transmissão se bem que para ele toda usurpação seria um sacrilégio mas ele nos indica o herdeiro legítimo Ele nos fala da transferência do poder civil pela instituição divina ao pai mais velho Literalmente isso significa a pessoa mais idosa Nada precisa a idéia da instituição divina ou aquela do poder civil Não se consegue perceber bem quais são as regras sucessórias por instituição divina Filmer não define o herdeiro de Adão Afirma que a exclusão de toda outra constituição além da monarquia e a atribuição exclusiva do poder a Adão e depois ao seu herdeiro são três mandados de Deus Entretanto todos os homens descendem de Adão Ele sustenta que o irmão mais velho comanda os mais novos Deus disse a Caim sobre seu irmão Abel Seu desejo te será submetido e tu o comandarás mas Deus estabelecia como condição que Caim se conduzisse bem Além disso Caim e Abel eram proprietários de territórios distintos Adão teve outros filhos além de Caim e Abel Ele invoca a bênção de Isaac a Jacó Sê o senhor de teus irmãos e que os filhos de tua mãe se inclinem diante de ti mas esta bênção não dizia respeito ao direito de primogenitura que precisamente Jacó havia comprado de Esaú por via contratual No tempo dos patriarcas o direito de primogenitura não se estendia a toda a fortuna do pai limitavase a uma porção dupla Cada filho mais moço devia receber sua parte Jacó não era o mais velho mas o mais novo Esaú jamais se submeteu à autoridade de Jacó partiu para se estabelecer no Monte Seir Nenhum dos dois irmãos comandou o outro após a morte do pai Cada um fundou uma nação separada os Edomitas e os Israelitas Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 33 A se referir à primogenitura apenas o mais velho devia herdar Se eram necessárias regras auxiliares por exemplo quando o pai morre sem deixar filhos estas não são conhecidas de maneira precisa O importante é que eu saiba a que senhor devo obedecer Eu jamais obedeço ao poder paterno mas a qualquer um que esteja dele investido Não estabelecendo o direito Filmer se restringe à posse e termina por consagrar os direitos de um usurpador um Cade ou um Cromwell Faltam precisões Quem deve herdar o neto por uma filha ou o sobrinho por um irmão A filha ou o tio O neto por uma filha mais moça ou a filha de uma filha mais velha O filho mais velho de uma concubina ou o filho mais moço da esposa Quais são os efeitos da legitimação Quem deve herdar o mais velho deficiente mental ou o mais moço reconhecido por sua sabedoria A partir de que grau de loucura intervém a prescrição dos direitos Quem está em julgamento Será que o filho do herdeiro proscrito por sua loucura tem preferência sobre o filho daquele que reinou Todos estes problemas estão presentes na história Não faltam exemplos na Inglaterra e na Escócia Partindo de Adão não se pode saber quem é rei hoje em dia A situação seria a mesma se Adão houvesse recebido o poder de perdoar os pecados ou de curar as enfermidades O direito civil não pode servir para determinar o herdeiro pois é uma instituição divina inicial que rege a sucessão e portanto um direito anterior e superior a todo governo É pretensioso presumir que Deus impõe uma regra sucessória sem indicar quem herda A proibição do incesto é acompanhada da definição dos relacionamentos de parentesco que impedem o casa mento De modo contrário a Escritura não determina quem é o mais velho porque não estabelece em parte alguma a regra da primogenitura Filmer afirma sem provar que os patriarcas recebiam de Adão um poder soberano A condenação à morte pronunciada por Judá contra sua nora Tamar não prova que ele tenha sido soberano Não é porque ele a pronunciou que tinha o direito de fazêlo Além disso Judá era um filho mais moço de Jacó se ele detinha a autoridade paterna de Adão isso ocorreu durante a vida de seu próprio pai e de seus irmãos Abrão comandava um exército de 318 homens e Esaú um de 400 homens Para isso precisariam ser herdeiros de Adão Um fazendeiro das Índias Ocidentais pode reunir mais que isso Estes números correspondem simplesmente à autoridade que um homem exerce sobre sua família e sobre seus servidores O direito de fazer a guerra e de concluir a paz não prova a soberania os fazendeiros os capitães dos navios devem às vezes exercêlos Isto seria uma marca de soberania que não resultaria em nenhum elo com aquela de Adão Abraão não vivia como um monarca universal Ele mantinha com Lot relações de amizade baseadas na igualdade Ele enviou a grande distância seus criados para encontrar uma esposa para seu filho Não possuiu terra de sua propriedade durante muito tempo O exemplo de Esaú invocado por Filmer é ainda mais interessante Como querer insistir ao mesmo tempo que Esaú fosse rei e súdito de Jacó O poder patriarcal continuou depois do Dilúvio porque ainda havia patriarcas mas Filmer não estabelece em parte alguma que estes o tenham sido pelos direitos de Adão Os filhos de Noé dividiram a terra Ignorase de que maneira as nações modernas descendem deles A divisão efetuada entre Sem Cam e Jafé fundaram a independência mútua de todas as famílias A dispersão ocorrida depois do fracasso do empreendimento unitário da torre de Babel reforçou esta independência Entretanto nada indica que tenha havido correspondência entre a autoridade paterna e a autoridade real A língua não pode servir para identificar uma e outra A divisão lingüística e nacional da humanidade não nos ensina nada sobre os governos ou sobre as formas de governo Nessa época a Escritura sugere mais a existência de uma república que de uma monarquia absoluta O conjunto da população tomava as decisões Filmer fixa em 72 o número de povos distintos que foram formados após o episódio de Babel e supõe que Deus tenha tido o cuidado de manter a autoridade paterna no entanto pelo menos não existia mais herdeiro de Adão Filmer considera Nemrod o patriarca seguinte mas lhe censura haver procurado estender seu domínio através da conquista Ora o poder não ultrapassa os limites da família exceto por conquista ou por convenção Em seguida Filmer enumera um grande número de reinados e acrescenta que cada cidade possuía um rei A realeza não pertencia portanto apenas ao herdeiro único de Adão Os escalões intermediários da sucessão permanecem desconhecidos Não obstante eles existem e a autoridade patriarcal não experimentou interrupções durante a estada dos Israelitas no Egito Filmer conta a história dos Judeus mas não prova que os patriarcas fossem reis nem que patriarcas ou reis recebessem seu direito de Adão Fala também dos reis gregos Critica os argumentos extraídos da antigüidade helênica pagã mas se utiliza deles quando lhe é conveniente Em seguida diz que Deus escolheu Moisés e Josué como príncipes dos Judeus Sustenta que Deus restabeleceu o direito antigo e original de sucessão ao governo paterno quando concedeu reis aos Israelitas Deus CLUBE DO LIVRO LIBERAL nada declarou neste sentido Na verdade para restaurar o direito antigo seria preciso que o novo rei recebesse as mesmas atribuições que o patriarca Ora sabese que os reis de Israel detinham um poder muito superior àquele de Abraão Além disso Davi era descendente de um ramo mais jovem Se os irmãos mais moços herdarem em virtude da primogenitura todo mundo pode invocar o direito da primogenitura até Filmer Eis uma maneira estranha de consolidar os títulos das coroas Filmer diz que designando um rei Deus habilita a posteridade dele a sucedêlo mas tratase de toda a posteridade ou de um único descendente Ele evita tomar partido pois os reis são sucedidos em muitos casos sem que haja respeito à ordem sucessória em virtude de um desígnio divino não reconhecido ou que consagrava uma ordem diferente Deus nem sempre intervinha Jefté foi escolhido pelo povo De uma maneira geral os Juízes detinham apenas um poder que dizia respeito à vida que não passavam a seus filhos O final do Livro dos Juízes que contém a narrativa das lutas entre os levitas e os benjaminitas mostra que o governo dos Judeus não foi monárquico em todas as épocas É falso que Deus tenha previsto tacitamente a transmissão sucessória a um herdeiro único todas as vezes que conferia um poder Se fizermos uma estimativa o povo Judeu só teve reis hereditários em menos de um terço dos 1750 anos de sua história Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 35 SEGUNDO TRATADO SOBRE O GOVERNO CIVIL CAPÍTULO I ENSAIO SOBRE A ORIGEM OS LIMITES E OS FINS VERDADEIROS DO GOVERNO CIVIL 1 O ensaio anterior mostrou que 1º Adão não tinha nem por direito natural de paternidade nem por específica doação de Deus tal autoridade sobre seus filhos ou domínio sobre o mundo como se pretendeu 2º Se ele os tivesse ainda assim seus herdeiros não teriam direito a eles 3º Se seus herdeiros tivessem na ausência de uma lei da natureza ou lei específica de Deus que permita identificar qual o herdeiro legítimo em cada caso particular o direito de sucessão e conseqüentemente o de governar não poderia ser determinado com certeza 4º Mesmo se ele tivesse sido determinado não se sabe mais qual a linhagem mais antiga da posteridade de Adão e depois de tanto tempo entre as raças humanas e as famílias do mundo nenhuma está acima das outras para pretender ser a mais antiga e portanto aspirar ao direito de herança Creio que uma vez estabelecidas todas essas premissas é impossível aos governantes que vivem atualmente sobre a terra tirar qualquer proveito ou derivar a menor sombra de qualquer autoridade daquela que se supõe a fonte de todo o poder os direitos de prerrogativa privada de Adão e sua autoridade paterna Assim a menos que se queira fornecer argumentos àqueles que acreditam que todo governo terrestre é produto apenas da força e da violência e que em sua vida em comum os homens não seguem outras regras senão as dos animais selvagens em que o mais forte é quem manda e assim justificando para sempre a desordem e a maldade o tumulto a sedição e a rebelião coisas contra as quais protestam tão veementemente os seguidores dessa hipótese será preciso necessariamente descobrir uma outra gênese para o governo outra origem para o poder político e outra maneira para designar e conhecer as pessoas que dele estão investidas além daquelas que Sir Robert Filmer nos ensinou 2 Com este fim creio que não é fora de propósito indicar o que eu entendo por poder político e devese distinguir o poder de um magistrado sobre um súdito daquele de um pai sobre seus filhos de um patrão sobre seu empregado de um marido sobre sua esposa e de um senhor sobre seu escravo Considerandose que uma mesma pessoa levandose em conta todos os seus relacionamentos exercesse simultaneamente todos esses poderes distintos isso pode nos ajudar a distinguir uns dos outros e mostrar a diferença entre o dirigente de uma sociedade política um pai de família e o capitão de uma galera 3 Por poder político então eu entendo o direito de fazer leis aplicando a pena de morte ou por via de conseqüência qualquer pena menos severa a fim de regulamentar e de preservar a propriedade assim como de empregar a força da comunidade para a execução de tais leis e a defesa da república contra as depredações do estrangeiro tudo isso tendo em vista apenas o bem público CAPÍTULO II CLUBE DO LIVRO LIBERAL DO ESTADO DE NATUREZA 4 Para compreender corretamente o poder político e traçar o curso de sua primeira instituição é preciso que examinemos a condição natural dos homens ou seja um estado em que eles sejam absolutamente livres para decidir suas ações dispor de seus bens e de suas pessoas como bem entenderem dentro dos limites do direito natural sem pedir a autorização de nenhum outro homem nem depender de sua vontade Um estado também de igualdade onde a reciprocidade determina todo o poder e toda a competência ninguém tendo mais que os outros evidentemente seres criados da mesma espécie e da mesma condição que desde seu nascimento desfrutam juntos de todas as vantagens comuns da natureza e do uso das mesmas faculdades devem ainda ser iguais entre si sem subordinação ou sujeição a menos que seu senhor e amo de todos por alguma declaração manifesta de sua vontade tivesse destacado um acima dos outros e lhe houvesse conferido sem equívoco por uma designação evidente e clara os direitos de um amo e de um soberano 5 O judicioso Hooker considera esta igualdade natural dos homens como tão evidente em si mesma e fora de dúvida que fundamenta sobre ela a obrigação que têm de se amarem mutuamente sobre a qual ele baseia os deveres que uns têm para com os outros e de onde ele extrai os grandes preceitos da justiça e da caridade Ele diz O mesmo convite da natureza levou os homens a reconhecer seu dever tanto no amor ao próximo quanto no amor a si mesmo pois deve ser aplicada uma medida comum a todas as coisas iguais Se não posso me impedir de desejar que me façam o bem se espero mesmo que todos ajam assim para comigo na medida dos desejos mais exigentes que um homem possa formular para si mesmo como pretenderia obter satisfação ainda que em parte sem buscar por meu lado tentar satisfazer nos outros o mesmo desejo por que eles compartilham sem dúvida da mesma fraqueza e da mesma natureza Tudo o que lhes fosse oferecido desprezando este desejo forçosamente iria ferilos tanto quanto a mim Portanto se pratico o mal devo esperar sofrer pois os outros não têm motivo para me dedicar um amor maior que aquele que lhes demonstro Meu desejo de ser amado em toda a dimensão do possível por meus iguais naturais me impõe a obrigação natural de lhes dedicar plenamente a mesma afeição Ninguém ignora os diferentes preceitos e cânones para a direção da vida que a razão natural extraiu desta relação de igualdade que existe entre nós mesmos e aqueles que são como nós Eccl Pol liv 1 6 Entretanto ainda que se tratasse de um estado de liberdade este não é um estado de permissividade o homem desfruta de uma liberdade total de dispor de si mesmo ou de seus bens mas não de destruir sua própria pessoa nem qualquer criatura que se encontre sob sua posse salvo se assim o exigisse um objetivo mais nobre que a sua própria conservação O estado de Natureza é regido por um direito natural que se impõe a todos e com respeito à razão que é este direito toda a humanidade aprende que sendo todos iguais e independentes ninguém deve lesar o outro em sua vida sua saúde sua liberdade ou seus bens todos os homens são obra de um único Criador todopoderoso e infinitamente sábio todos servindo a um único senhor soberano enviados ao mundo por sua ordem e a seu serviço são portanto sua propriedade daquele que os fez e que os destinou a durar segundo sua vontade e de mais ninguém Dotados de faculdades similares dividindo tudo em uma única comunidade da natureza não se pode conceber que exista entre nós uma hierarquia que nos autorizaria a nos destruir uns aos outros como se tivéssemos sido feitos para servir de instrumento às necessidades uns dos outros da mesma maneira que as ordens inferiores da criação são destinadas a servir de instrumento às nossas Cada um é obrigado não apenas a conservar sua própria vida e não abandonar voluntariamente o ambiente onde vive mas também na medida do possível e todas as vezes que sua própria conservação não está em jogo velar pela conservação do restante da humanidade ou seja salvo para fazer justiça a um delinqüente não destruir ou debilitar a vida de outra pessoa nem o que tende a preservála nem sua liberdade sua saúde seu corpo ou seus bens Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 37 7 Para que se possa impedir todos os homens de violar os direitos do outro e de se prejudicar entre si e para fazer respeitar o direito natural que ordena a paz e a conservação da humanidade cabe a cada um neste estado assegurar a execução da lei da natureza o que implica que cada um esteja habilitado a punir aqueles que a transgridem com penas suficientes para punir as violações Pois de nada valeria a lei da natureza assim como todas as outras leis que dizem respeito aos homens neste mundo se não houvesse ninguém que no estado de natureza tivesse poder para executar essa lei e assim preservar o inocente e refrear os transgressores E se qualquer um no estado de natureza pode punir o outro por qualquer mal que ele tenha cometido todos podem fazer o mesmo Pois nesse estado de perfeita igualdade onde naturalmente não há superioridade ou jurisdição de um sobre o outro o que um pode fazer para garantir essa lei todos de vem ter o direito de fazêlo 8 Assim no estado de natureza um homem adquire um poder sobre o outro mas não um poder absoluto ou arbitrário para tratar um criminoso segundo as exaltações apaixonadas ou a extravagância ilimitada de sua própria vontade quando está em seu poder mas apenas para infringirlhe na medida em que a tranqüilidade e a consciência o exigem a pena proporcional a sua transgressão que seja bastante para assegurar a reparação e a prevenção Pois estas são as únicas duas razões por que um homem pode legalmente ferir outro o que chamamos de punição Ao transgredir a lei da natureza o ofensor declara estar vivendo sob outra lei diferente daquela da razão e eqüidade comuns que é a medida que Deus determinou para as ações dos homens para sua segurança mútua e assim tornandose perigoso para a humanidade ele enfraqueceu e rompeu o elo que os protege do dano e da violência Tratandose de uma violação dos direitos de toda a espécie de sua paz e de sua segurança garantidas pela lei da natureza todo homem pode reivindicar seu direito de preservar a humanidade punindo ou se necessário destruindo as coisas que lhe são nocivas dessa maneira pode reprimir qualquer um que tenha transgredido essa lei fazendo com que se arrependa de têlo feito e o impedindo de continuar a fazêlo e através de seu exemplo evitando que outros cometam o mesmo erro E neste caso e por este motivo todo homem tem o direito de punir o transgressor e ser executor da lei da natureza 9 Não duvido que esta doutrina vá parecer muito estranha a alguns homens mas antes que a condenem desejo que me respondam com que direito um príncipe ou um estado podem matar ou punir um estrangeiro por qualquer crime que ele tenha cometido em seu país É certo que suas leis mesmo em virtude de qualquer sanção que recebam da vontade promulgada do legislativo não se aplicam a um estrangeiro não se dirigem a ele e mesmo que assim fosse ele não seria obrigado a respeitálas A autoridade legislativa pela qual elas vigoram sobre os súditos daquela sociedade política não tem poder sobre ele Aqueles que detêm o poder supremo de fazer leis na Inglaterra na França ou na Holanda são para um indígena como qualquer um no restante do mundo homens sem autoridade Por isso se pela lei da natureza cada homem não tem o poder de punir as ações que a transgridem ainda que sensatamente ele julgue que a situação o requeira não vejo como os magistrados de qualquer comunidade podem punir um estrangeiro de outro país pois diante dele não têm mais poder que aquele que cada homem pode naturalmente ter sobre outro 10 Além do crime que consiste em violar a lei e se eximir da obediência à reta razão pelo qual um homem degenera e declara que rompeu com os princípios da natureza humana tornandose uma criatura nociva há em geral um dano injusto causado a uma ou outra pessoa isto é algum outro homem é prejudicado por aquela transgressão neste caso além do direito de punir que ela compartilha com os outros homens a pessoa lesada possui um direito próprio de buscar a reparação por parte do autor da infração E qualquer outra pessoa que ache isso justo pode também juntarse à vítima e ajudála a recuperar do ofensor o quanto ela considere suficiente para reparar o dano sofrido 11 Diante destes dois direitos distintos o primeiro de punir o crime a título de prevenção e para impedir que ele se reproduza direito de punição que pertence a todos o segundo de obter a reparação que pertence apenas à vítima o magistrado a quem foi conferido o direito comum de punir em virtude de suas próprias funções pode freqüentemente perdoar a punição das infrações criminais por sua própria autoridade se CLUBE DO LIVRO LIBERAL o bem público não exige a aplicação da lei mas não pode perdoar a reparação devida à vítima pelo dano sofrido Aquele que sofreu o dano tem o direito próprio de exigir a reparação e somente ele pode a ela renunciar Pertence à vítima o poder de se apropriar dos bens ou dos serviços do ofensor pelo direito de autopreservação assim como todo homem tem o poder de punir o crime e evitar que ele seja novamente cometido pelo direito que tem de proteger toda a humanidade realizando todo ato razoável a seu alcance para atingir este objetivo Por isso todo homem no estado de natureza tem o poder de matar um assassino tanto para impedir outros de fazer o mesmo dano que nenhuma reparação pode compensar pelo exemplo da punição que atinge a todos mas também para proteger os homens dos ataques de um criminoso que havendo renunciado à razão ao regulamento comum e à medida que Deus deu ao gênero humano através da violência injusta e da carnificina que cometeu a outro homem declarou guerra a todo o gênero humano e por isso pode ser destruído como um leão ou um tigre uma daquelas bestas selvagens em cuja companhia o homem não pode conviver ou ter segurança A grande lei da natureza está fundamentada nisso Quem derramar o sangue humano pela mão humana perderá o seu E Caim estava tão plenamente convencido de que todo homem tinha o direito de destruir um tal criminoso que após assassinar seu irmão gritou Quem me encontrar me matará tão claramente isso estava inscrito nos corações de toda a humanidade 12 Pela mesma razão no estado de natureza um homem pode punir as violações menos graves desta lei Talvez seja perguntado com a morte Eu responderei toda transgressão pode ser punida a esse ponto e com a mesma severidade tanto quanto for suficiente para infligir um dano proporcional ao ofensor darlhe motivo de arrependimento e infundir nos outros um terror que os impeça de imitálo Toda ofensa suscetível de ser cometida no estado de natureza pode no estado de natureza sofrer uma punição tão grande e no mesmo grau que o é em uma sociedade política Embora esteja além de meu presente propósito entrar aqui em detalhes sobre a lei da natureza ou suas medidas de punição é certo que esta lei existe absolutamente inteligível e clara para uma criatura racional dedicada a seu estudo como o são as leis positivas da comunidade civil ou melhor possivelmente mais claras pois a razão é mais fácil de ser compreendida que os sonhos e as maquinações intrincadas dos homens buscando traduzir em palavras interesses contrários e ocultos pois assim realmente se constitui grande parte das leis civis dos países que só são justas na medida em que se baseiam na lei da natureza pela qual devem ser regulamentadas e interpretadas 13 A esta estranha doutrina ou seja que no estado de natureza cada um tem o poder executivo da lei da natureza espero que seja objetado o fato de que não é razoável que os homens sejam juízes em causa própria pois a autoestima os tornará parciais em relação a si e a seus amigos e por outro lado que a sua má natureza a paixão e a vingança os levem longe demais ao punir os outros e nesse caso só advirá a confusão e a desordem e certamente foi por isso que Deus instituiu o governo para conter a parcialidade e a violência dos homens Eu asseguro tranqüilamente que o governo civil é a solução adequada para as inconveniências do estado de natureza que devem certamente ser grandes quando os homens podem ser juízes em causa própria pois é fácil imaginar que um homem tão injusto a ponto de lesar o irmão dificilmente será justo para condenar a si mesmo pela mesma ofensa Mas eu gostaria que aqueles que fizeram esta objeção lembremse de que os monarcas absolutos são apenas homens e admitindose que o governo é a única solução para estes males que necessariamente advêm dos homens julgarem em causa própria e por isso o estado de natureza não deve ser tolerado eu gostaria de saber que tipo de governo será esse e quanto melhor ele é que o estado de natureza onde um homem que comanda uma multidão tem a liberdade de julgar em causa própria e pode fazer com todos os seus súditos o que lhe aprouver sem o menor questionamento ou controle daqueles que executam a sua vontade e o que quer que ele faça quer seja levado pela razão quer pelo erro ou pela paixão devese obedecêlo É muito melhor o estado de natureza onde os homens não são obrigados a se submeter à vontade injusta de outro homem e onde aquele que julga se julga mal em causa própria ou em qualquer outro caso tem de responder por isso diante do resto da humanidade 14 Muitas vezes se pergunta como uma poderosa objeção Há ou algum dia houve homens em tal estado de natureza A isto pode bastar responder no momento que todos os príncipes e chefes de governos independentes em todo o mundo encontramse no estado de natureza e que assim sobre a terra jamais faltou ou jamais faltará uma multidão de homens nesse estado Citei todos os governantes de comunidades Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 39 independentes estejam ou não vinculadas a outras Pois não é toda convenção que põe fim ao estado de natureza entre os homens mas apenas aquela pela qual todos se obrigam juntos e mutuamente a formar uma comunidade única e constituir um único corpo político quanto às outras promessas e convenções os homens podem fazêlas entre eles sem sair do estado de natureza As promessas e os intercâmbios etc realizados entre dois homens numa ilha ou entre um suíço e um índio nas florestas da América os obriga embora eles estejam entre eles em um perfeito estado de natureza Pois a verdade e o respeito à palavra dada pertencem aos homens enquanto homens e não como membros da sociedade 15 Aos que argumentam que nunca houve homem algum no estado de natureza não me contentarei em contradizer opondo a autoridade do judicioso Hooker Eccl Pol liv 1 sec 10 quando ele diz as leis aqui mencionadas ou seja as leis da natureza obrigam os homens de maneira absoluta porque eles são homens ainda que na ausência de relações estabelecidas ao acordo solene entre eles sobre o que farão ou não farão mas como somos incapazes por nós mesmos de buscar uma quantidade suficiente de objetos necessários ao gênero de vida que nossa natureza deseja uma vida à medida da dignidade do homem e assim suprir os defeitos e as imperfeições que nos são inerentes quando vivemos sozinhos e solitários somos naturalmente induzidos a buscar a comunhão com outros e sua companhia esta foi a causa dos homens terem se unido em sociedades políticas Mas além disso eu afirmo que todos os homens se encontram naturalmente nesse estado e ali permanecem até o dia em que por seu próprio consentimento eles se tornem membros de alguma sociedade política e não duvido que no decorrer deste discurso eu possa esclarecer bem este ponto CAPÍTULO III DO ESTADO DE GUERRA 16 O estado de guerra é um estado de inimizade e de destruição por isso se alguém explicitamente ou por seu modo de agir declara fomentar contra a vida de outro homem projetos não apaixonados e prematuros mas calmos e firmes isto o coloca em um estado de guerra diante daquele a quem ele declarou tal intenção e assim expõe sua vida ao poder do outro que pode ele mesmo retirála ou ao de qualquer outro que se una a ele em sua defesa e abrace sua causa é razoável e justo que eu tenha o direito de destruir aquele que me ameaça com a destruição Segundo a lei fundamental da natureza que o ser humano deve ser preservado na medida do possível se nem todos podem ser preservados devese dar preferência à segurança do inocente você pode destruir o homem que lhe faz guerra ou que se revelou inimigo de sua existência pela mesma razão que se pode matar um lobo ou um leão porque homens deste tipo escapam aos laços da lei comum da razão não seguem outra lei senão aquela da força e da violência e assim podem ser tratados como animais selvagens criaturas perigosas e nocivas que certamente o destruirão sempre que o tiverem em seu poder 17 Por isso aquele que tenta colocar outro homem sob seu poder absoluto entra em um estado de guerra com ele esta atitude pode ser compreendida como a declaração de uma intenção contra sua vida Assim sendo tenho razão em concluir que aquele que me colocasse sob seu poder sem meu consentimento me usaria como lhe aprouvesse quando me visse naquela situação e prosseguiria até me destruir pois ninguém pode desejar terme em seu poder absoluto a não ser para me obrigar à força a algo que vem contra meu direito de liberdade ou seja fazer de mim um escravo Escapar de tal violência é a única garantia de minha preservação e a razão me leva a encarálo como um inimigo à minha preservação que me privaria daquela liberdade que a protege de forma que aquele que tenta me escravizar colocase por conseguinte em um estado de guerra comigo Aquele que no estado de natureza retirasse a liberdade que pertence a qualquer um naquele estado necessariamente se supõe que tem intenção de retirar tudo o mais pois a liberdade é a base de todo o resto assim como aquele que no estado de sociedade retirasse a liberdade pertencente aos membros daquela sociedade ou da comunidade política seria suspeito de tencionar retirar deles tudo o mais e portanto seria tratado como em estado de guerra CLUBE DO LIVRO LIBERAL 18 Isso autoriza todo homem a matar um ladrão que não lhe fez nenhum mal e não declarou outra intenção contra sua vida exceto a de mantêlo sob seu poder pela força para roubarlhe seu dinheiro ou o que quiser dele porque ao usar a força onde não tem este direito para me ter sob seu poder explicando sua atitude segundo sua vontade não tenho razão alguma para pensar que este indivíduo tendome sob seu poder e pronto a me privar de minha liberdade renunciaria a me privar de todo o resto E por isso me é lícito tratálo como alguém que se colocou em um estado de guerra para comigo ou seja matálo se eu puder pois qualquer pessoa que se introduz em um estado de guerra e se torna agressor está justamente se expondo a este risco 19 E temos aqui a clara diferença entre o estado de natureza e o estado de guerra que embora alguns homens confundam são tão distintos um do outro quanto um estado de paz boavontade assistência mútua e preservação de um estado de inimizade maldade violência e destruição mútua Homens vivendo juntos segundo a razão sem um superior comum na terra com autoridade para julgar entre eles eis efetivamente o estado de natureza Mas a força ou uma intenção declarada de força sobre a pessoa de outro onde não há superior comum na terra para chamar por socorro é estado de guerra e é a inexistência de um recurso deste gênero que dá ao homem o direito de guerra ao agressor mesmo que ele viva em sociedade e se trate de um concidadão Assim este ladrão a quem não posso fazer nenhum mal exceto apelar para a lei se ele me roubar tudo o que possuo seja meu cavalo ou meu casaco eu posso matálo para me defender quando ele me ataca à mão armada porque a lei estabelecida para garantir minha preservação contra os atos de violência quando não pode agir de imediato para proteger minha vida cuja perda é irreparável me dá o direito de me defender e assim o direito de guerra ou seja a liberdade de matar o agressor porque este não me deixa tempo para apelar para nosso juiz comum e torna impossível qualquer decisão que permita uma solução legal para remediar um caso em que o mal pode ser irreparável A vontade de se ter um juiz comum com autoridade coloca todos os homens em um estado de natureza o uso da força sem direito sobre a pessoa de um homem provoca um estado de guerra haja ou não um juiz comum 20 Quando a força deixa de existir cessa o estado de guerra entre aqueles que vivem em sociedade e ambos os lados são igualmente submetidos à justa determinação da lei porque agora eles têm acesso a um recurso tanto para reparar o mal sofrido quanto para prevenir todo o mal futuro Mas onde não existe tal recurso como no estado de natureza devido à inexistência de leis positivas e de juízes competentes com autoridade para julgar uma vez iniciado o estado de guerra ele continua e a parte inocente tem o direito de destruir a outra quando puder até que o agressor proponha a paz e deseje a reconciliação em tais termos que possa reparar quaisquer erros que já tenha cometido e assegurar o futuro da vítima E mesmo onde exista um recurso legal e juízes estabelecidos se por uma perversão manifesta da justiça ou clara distorção das leis sua solução é negada com a finalidade de proteger ou de garantir a violência ou o dano de alguns homens ou de um partido é difícil imaginar outra situação além de um estado de guerra Pois onde entra em jogo a violência e danos são causados ainda que por mãos daqueles que deveriam administrar a justiça continua se tratando de violência e danos apesar do nome das aparências ou das formas de lei pois a lei tem por finalidade proteger e reparar os inocentes através de sua aplicação justa a tudo o que está sob sua tutela quando isso não é realizado de boafé é o mesmo que entrar em guerra contra as vítimas às quais não tendo ninguém a quem recorrer na terra só resta apelar ao céu 21 Evitar este estado de guerra que exclui todo apelo exceto ao céu e onde até a menor diferença corre o risco de chegar por não haver autoridade para decidir entre os contendores é uma das razões principais porque os homens abandonaram o estado de natureza e se reuniram em sociedade Pois onde há uma autoridade um poder sobre a terra onde se pode obter reparação através de recurso está excluída a continuidade do estado de guerra e a controvérsia é decidida por aquele poder Se houvesse sobre a terra qualquer tribunal deste tipo qualquer jurisdição superior para determinar o direito entre Jefté e os Amonitas eles jamais chegariam a um estado de guerra mas vemos que ele foi obrigado a apelar ao céu O Senhor é Juiz disse ele julgue hoje entre os filhos de Israel e os filhos de Amon Juízes 1127 e depois prosseguiu e confiando em seu apelo conduziu seu exército para a batalha E por isso em tais controvérsias quando surge a pergunta Quem será o juiz ela não Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 41 pode significar Quem decidirá a controvérsia Todos sabem que Jefté aqui nos diz que o Senhor é Juiz e deverá julgar Quando não há juiz na terra o apelo é dirigido a Deus no céu Essa pergunta não pode então significar Quem será o juiz se alguém se coloca em estado de guerra para comigo Poderia eu como Jetfé apelar ao céu Disso só eu mesmo posso ser o juiz em minha própria consciência até o dia do Juízo Final quando responderei perante o juiz supremo de todos os homens CAPÍTULO IV DA ESCRAVIDÃO 22 A liberdade natural do homem deve estar livre de qualquer poder superior na terra e não depender da vontade ou da autoridade legislativa do homem desconhecendo outra regra além da lei da natureza A liberdade do homem na sociedade não deve estar edificada sob qualquer poder legislativo exceto aquele estabelecido por consentimento na comunidade civil nem sob o domínio de qualquer vontade ou constrangimento por qualquer lei salvo o que o legislativo decretar de acordo com a confiança nele depositada Portanto a liberdade não é o que Sir Robert Filmer nos diz OA 55 Observations on Aristotle uma liberdade para cada um fazer o que quer viver como lhe agradar e não ser contido por nenhuma lei Mas a liberdade dos homens submetidos a um governo consiste em possuir uma regra permanente à qual deve obedecer comum a todos os membros daquela sociedade e instituída pelo poder legislativo nela estabelecido É a liberdade de seguir minha própria vontade em todas as coisas não prescritas por esta regra e não estar sujeito à vontade inconstante incerta desconhecida e arbitrária de outro homem como a liberdade natural consiste na não submissão a qualquer obrigação exceto a da lei da natureza 23 Esta liberdade diante do poder arbitrário absoluto é tão necessária e está tão estreitamente ligada à preservação do homem que não pode ser perdida exceto por aquilo que ao mesmo tempo destrói sua preservação e sua vida Pois o homem incapaz de dispor de sua própria vida não poderia por convenção ou por seu próprio consentimento se transformar em escravo de outro nem reconhecer em quem quer que seja um poder arbitrário absoluto para dispor de sua vida quando lhe aprouver Ninguém pode conceder mais poder do que ele próprio tem e aquele que não pode tirar sua própria vida não pode conceder a outro tal poder Mesmo que ele incorra na pena capital por sua própria falta por qualquer ação que mereça a morte aquele por quem ele perdeu a vida quando o tem em seu poder pode retardar o cumprimento de sua pena e utilizálo a seu próprio serviço e isso não lhe causa qualquer dano Mas quando ele considera que a pena imposta pela escravidão ultrapassa o valor de sua vida tem o direito de resistir à vontade de seu senhor e provocar para si a morte que ele deseja 24 Esta é a perfeita condição da escravidão que nada mais é que o estado de guerra continuado entre um conquistador legítimo e seu prisioneiro Desde que façam um pacto entre eles se concordam que um deles exercerá um poder limitado que o outro obedecerá o estado de guerra e a escravidão deixam de existir enquanto este pacto durar Pois como foi dito ninguém pode concordar em conceder a outro um poder que não tem sobre si mesmo ou seja o poder de dispor de sua própria vida Admito que encontramos entre os judeus assim como em outras nações homens que se venderam mas evidentemente isto só ocorreu em relação ao trabalho servil não à escravidão Porque é certo que a pessoa vendida não estava sob um poder absoluto arbitrário e despótico e o senhor não tinha poder para matálo qualquer que fosse a situação porque em uma data determinada ele era obrigado a deixálo abandonar livremente o seu serviço longe de poder dispor arbitrariamente da vida de um tal servidor o senhor não podia sequer mutilálo propositalmente pois a perda de um olho ou de um dente implicaria no retorno de sua liberdade Êxodo 21 CLUBE DO LIVRO LIBERAL CAPÍTULO V DA PROPRIEDADE 25 Quando consideramos a razão natural segundo a qual os homens desde o momento do seu nascimento têm o direito a sua preservação e conseqüentemente a comer a beber e a todas as outras coisas que a natureza proporciona para sua subsistência ou a Revelação que nos relata que Deus deu o mundo a Adão a Noé e a seus filhos fica muito claro que Deus como diz o Rei Davi Salmo 11516 Deu a terra aos filhos dos homens a toda a humanidade Mas supondose isso alguns parecem ter grande dificuldade em perceber como alguém pôde se tornar proprietário de alguma coisa Não vou me contentar em responder que se é difícil explicar a propriedade partindose de uma suposição de que Deus deu o mundo a Adão e a sua posteridade em comum é impossível que qualquer homem exceto um monarca universal tenha qualquer propriedade partindose de uma suposição de que Deus deu o mundo a Adão e a seus herdeiros na sucessão excluindose todo o resto de sua descendência Irei mais longe para mostrar como os homens podem ter adquirido uma propriedade em porções distintas do que Deus deu à humanidade em comum mesmo sem o acordo expresso de todos os coproprietários 26 Deus que deu o mundo aos homens em comum deulhes também a razão para que se servissem dele para o maior benefício de sua vida e de suas conveniências A terra e tudo o que ela contém foi dada aos homens para o sustento e o conforto de sua existência Todas as frutas que ela naturalmente produz assim como os animais selvagens que alimenta pertencem à humanidade em comum pois são produção espontânea da natureza e ninguém possui originalmente o domínio privado de uma parte qualquer excluindo o resto da humanidade quando estes bens se apresentam em seu estado natural entretanto como foram dispostos para a utilização dos homens é preciso necessariamente que haja um meio qualquer de se apropriar deles antes que se tornem úteis ou de alguma forma proveitosos para algum homem em particular Os frutos ou a caça que alimenta o índio selvagem que não conhece as cercas e é ainda proprietário em comum devem lhe pertencer e lhe pertencer de tal forma ou seja fazer parte dele que ninguém mais possa ter direito sobre eles antes que ele possa usufruílos para o sustento de sua vida 27 Ainda que a terra e todas as criaturas inferiores pertençam em comum a todos os homens cada um guarda a propriedade de sua própria pessoa sobre esta ninguém tem qualquer direito exceto ela Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua Sempre que ele tira um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence por isso o tornando sua propriedade Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o colocou através do seu trabalho adicionalhe algo que excluiu o direito comum dos outros homens Sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador nenhum homem exceto ele pode ter o direito ao que o trabalho lhe acrescentou pelo menos quando o que resta é suficiente aos outros em quantidade e em qualidade 28 Aquele que se alimentou com bolotas que colheu sob um carvalho ou das maçãs que retirou das árvores na floresta certamente se apropriou deles para si Ninguém pode negar que a alimentação é sua Pergunto então Quando começaram a lhe pertencer Quando os digeriu Quando os comeu Quando os cozinhou Quando os levou para casa ou Quando os apanhou E é evidente que se o primeiro ato de apanhar não os tornasse sua propriedade nada mais poderia fazêlo Aquele trabalho estabeleceu uma distinção entre eles e o bem comum ele lhes acrescentou algo além do que a natureza a mãe de tudo havia feito e assim eles se tornaram seu direito privado Será que alguém pode dizer que ele não tem direito àquelas bolotas do carvalho ou àquelas maçãs de que se apropriou porque não tinha o consentimento de toda a humanidade para agir dessa forma Poderia ser chamado de roubo a apropriação de algo que pertencia a todos em comum Se tal consentimento fosse necessário Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 43 o homem teria morrido de fome apesar da abundância que Deus lhe proporcionou Sobre as terras comuns que assim permanecem por convenção vemos que o fato gerador do direito de propriedade sem o qual essas terras não servem para nada é o ato de tomar uma parte qualquer dos bens e retirála do estado em que a natureza a deixou E este ato de tomar esta ou aquela parte não depende do consentimento expresso de todos Assim a grama que meu cavalo pastou a relva que meu criado cortou e o ouro que eu extraí em qualquer lugar onde eu tinha direito a eles em comum com outros tornaramse minha propriedade sem a cessão ou o consentimento de ninguém O trabalho de removêlos daquele estado comum em que estavam fixou meu direito de propriedade sobre eles 29 Se fosse exigido o consentimento expresso de todos para que alguém se apropriasse individualmente de qualquer parte do que é considerado bem comum os filhos ou os criados não poderiam cortar a carne que seu pai ou seu senhor lhes forneceu em comum sem determinar a cada um sua porção particular Ainda que a água que corre na fonte pertença a todo mundo quem duvida que no cântaro ela pertence apenas a quem a tirou Seu trabalho a tirou das mãos da natureza onde ela era um bem comum e pertencia igualmente a todos os seus filhos e a transformou em sua propriedade 30 Assim esta lei da razão dá ao índio o veado que ele matou admitese que a coisa pertence àquele que lhe consagrou seu trabalho mesmo que antes ela fosse direito comum de todos E entre aqueles que contam como a parte civilizada da humanidade que fizeram e multiplicaram leis positivas para a determinação da propriedade a lei original da natureza que autoriza o início da apropriação dos bens antes comuns permanece sempre em vigor graças a ela os peixes que alguém pesca no oceano esta grandeza comum a toda a humanidade ou aquele âmbar cinzento que se recolheu tornamse propriedade daquele que lhes consagraram tantos cuidados através do trabalho que os removeu daquele estado comum em que a natureza os deixou E mesmo entre nós a lebre que alguém está caçando pertence àquele que a persegue durante a caça Pois tratandose de um animal considerado sempre um bem comum não pertencendo individualmente a ninguém quem consagrou tanto trabalho para encontrálo ou perseguilo e assim o removendo do estado de natureza em que ele era um bem comum criou sobre ele um direito de propriedade 31 Talvez surja uma objeção que se a colheita das bolotas ou de outros frutos da terra etc estabelece um direito a eles então qualquer um pode tomar tudo para si se esta for a sua vontade A isto eu respondo que não é bem assim A mesma lei da natureza que nos concede dessa maneira a propriedade também lhe impõe limites Deus nos deu tudo em abundância 1Tm 617 e a inspiração confirma a voz da razão Mas até que ponto ele nos fez a doação Para usufruirmos dela Tudo o que um homem pode utilizar de maneira a retirar uma vantagem qualquer para sua existência sem desperdício eis o que seu trabalho pode fixar como sua propriedade Tudo o que excede a este limite é mais que a sua parte e pertence aos outros Deus não criou nada para que os homens desperdiçassem ou destruíssem Considerandose então a abundância das provisões naturais que há tanto tempo existem no mundo o número restrito dos consumidores e a pequena parte daquela provisão que a indústria de um único homem pode estender e aumentar em detrimento dos outros especialmente conservando dentro dos limites estabelecidos pela razão aquilo que pode servir ao seu uso é preciso admitir que a propriedade adquirida dessa maneira corria pouco risco naquela época de suscitar querelas ou discórdias 32 Mas visto que a principal questão da propriedade atualmente não são os frutos da terra e os animais selvagens que nela subsistem mas a terra em si na medida em que ela inclui e comporta todo o resto pareceme claro que esta propriedade também ela será adquirida como a precedente A superfície da terra que um homem trabalha planta melhora cultiva e da qual pode utilizar os produtos pode ser considerada sua propriedade Por meio do seu trabalho ele a limita e a separa do bem comum Não bastará para provar a nulidade de seu direito dizer que todos os outros podem fazer valer um título igual e que em conseqüência disso ele não pode se apropriar de nada nada cercar sem o consentimento do conjunto de seus coproprietários ou seja de toda a humanidade Quando Deus deu o mundo em comum a toda a humanidade também ordenou que o homem trabalhasse e a penúria de sua condição exigia isso dele Deus e sua razão ordenaramlhe que submetesse a terra isto é que a melhorasse para beneficiar sua vida e assim fazendo ele estava investindo uma coisa que lhe CLUBE DO LIVRO LIBERAL pertencia seu trabalho Aquele que em obediência a este comando divino se tornava senhor de uma parcela de terra a cultivava e a semeava acrescentavalhe algo que era sua propriedade que ninguém podia reivindicar nem tomar dele sem injustiça 33 Nenhum outro homem podia se sentir lesado por esta apropriação de uma parcela de terra com o intuito de melhorála desde que ainda restasse bastante de tão boa qualidade e até mais que indivíduos ainda desprovidos pudessem utilizar Se bem que na realidade a cerca que um homem colocasse em seu benefício não reduziria nunca a parte dos outros Deixar uma quantidade igual que outro homem fosse capaz de utilizar equivaleria a não tomar nada Ninguém pode se sentir lesado por outra pessoa beber ainda que em uma quantidade exagerada se lhe é deixado todo um rio da mesma água para matar sua sede O que vale para a água vale da mesma forma para a terra se há quantidade suficiente de ambas 34 Deus deu o mundo aos homens em comum mas desde que lhos deu para seu benefício e para que dele retirassem as comodidades da vida de que fossem capazes não se poderia supor que Ele pretendesse que ela permanecesse sempre comum e inculta Ele a deu para o uso industrioso e racional e o trabalho deveria ser o título não para satisfazer o capricho ou a ambição daquele que se mete em querelas e disputas Aquele que tinha a sua disposição para fazer frutificar um lote tão bom quanto aqueles que já haviam sido tomados não tinha o direito de se queixar nem devia se imiscuir no trabalho que o outro já havia posto em funcionamento se assim o fizesse é claro que desejava o benefício do sacrifício do outro a que não tinha direito nem à terra que Deus lhe havia dado em comum com os outros para nela trabalhar pois os espaços disponíveis eram iguais à superfície já tomada e às vezes até superavam os meios de utilização do interessado e o campo de sua indústria 35 É verdade que quando se trata de terra comum na Inglaterra ou em qualquer outro país onde o governo estende sua competência a um grande número de pessoas a quem não falta dinheiro nem emprego ninguém pode cercar ou se apropriar de qualquer parcela sem o consentimento de todos os seus coproprietários porque a terra permanece comum por convenção ou seja pela lei da terra que não deve ser violada E embora ela seja comum em relação a alguns homens isso não ocorre em relação à toda a humanidade mas constitui a propriedade conjunta deste país ou desta região Além disso para o restante dos coproprietários o que subsistiria após uma divisão não teria o mesmo valor que tinha área quando todos podiam se servir dela visto que no início era bem diferente quando foi povoada pela primeira vez a vasta terra comum que era o mundo O direito que regia os homens favorecia a apropriação Deus lhes ordenava trabalhar e a necessidade os forçava a isso O trabalho constituía a propriedade não se podia priválos dela uma vez que fixassem este trabalho em algum lugar Assim sendo percebemos que existe um elo entre o fato de subjugar e cultivar a terra e adquirir o domínio sobre ela Um garantia o título do outro Da mesma forma que Deus ao dar a ordem para subjugar as coisas habilitou o homem a se apropriar delas A condição da vida humana que necessita de trabalho e de materiais para serem trabalhados introduz forçosamente as posses privadas 36 A medida da propriedade natural foi bem estabelecida pela extensão do trabalho do homem e pela conveniência da vida Nenhum trabalho humano podia subjugar ou se apropriar de tudo seu prazer só podia consumir uma pequena parte dessa maneira era impossível para qualquer homem usurpar o direito de outro ou adquirir para uso próprio uma propriedade em prejuízo de seus vizinhos que ainda podiam se apropriar de um domínio tão vasto e produtivo depois do outro ter tomado o seu quanto antes de ter sido apropriado Esta medida restringia a posse de todo homem a uma proporção bastante moderada pois no início do mundo ele só podia tomar para si o que não prejudicasse ninguém e nesses primórdios do mundo os homens se arriscavam mais a se perder vagando sozinho pelos imensos espaços virgens da terra do que restritos por vontade própria em uma terra a ser cultivada E ainda podemos nos servir da mesma medida sem causar prejuízo a ninguém por mais povoado que pareça o mundo Suponhamos que um homem ou uma família no estado em que se achavam no início quando os filhos de Adão ou de Noé povoaram o mundo cultivassem terras sem dono situadas no interior da América Veremos que as posses que ele poderia conseguir tendo em base os procedimentos de medida que indicamos não seriam muito extensas nem nos dias de hoje a ponto de prejudicar o resto da humanidade ou darlhe razão de queixa ou se considerar prejudicada pelo abuso deste homem ainda que a raça Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 45 humana tenha se espalhado por todos os cantos do mundo e exceda infinitamente o seu pequeno número inicial Sem o trabalho a superfície do solo tem tão pouco valor que me afirmaram que na Espanha chegase ao ponto de permitir que um homem are a terra semeie e colha sem ser perturbado em uma terra sobre a qual ele não tem qualquer título exceto o uso que faz dela Melhor ainda os habitantes consideramse devedores dele pois com seu trabalho em uma terra negligenciada e conseqüentemente desperdiçada aumentou a reserva de grãos que eles precisavam Mas seja o que for e eu não vou mais insistir nisso ouso corajosamente afirmar que a mesma regra de propriedade ou seja que cada homem deve ter tanto quanto pode utilizar ainda permaneceria válida no mundo sem prejudicar ninguém visto haver terra bastante para o dobro dos habitantes se a invenção do dinheiro e o acordo tácito entre os homens para estabelecer um valor para ele não tivesse introduzido por consentimento posses maiores e um direito a elas como isso se deu irei aos poucos mostrando mais amplamente 37 O certo é que no início do mundo antes do desejo do homem de possuir mais que o necessário ter alterado o valor intrínseco das coisas o que depende apenas de sua utilidade para a vida do homem ou ter concordado que um pedaço pequeno de metal amarelo que podia ser guardado sem que se deteriorasse ou apodrecesse devia valer uma grande peça de carne ou um monte de trigo mesmo que cada homem tivesse o direito de se apropriar por seu trabalho de todos os bens naturais de que pudesse se servir não havia o risco de ir longe demais nem causar dano aos outros pois a mesma abundância permanecia à disposição de qualquer um que utilizasse a mesma indústria A isto eu acrescentaria que aquele que se apropria da terra por meio de seu trabalho não diminui mas aumenta a reserva comum da humanidade Pois as provisões que servem para o sustento da vida humana produzidas por um acre de terra cercado e cultivado são dez vezes maiores que aquelas produzidas por um acre de terra de igual riqueza mas inculta e comum Por isso podese dizer que aquele que cerca a terra e retira de dez acres uma abundância muito maior de produtos para o conforto de sua vida do que retiraria de cem acres incultos dá na verdade noventa acres à humanidade Pois graças ao seu trabalho dez acres lhe dão tantos frutos quanto cem acres de terras comuns Eu aqui estimo o rendimento da terra cultivada a uma cifra muito baixa avaliando seu produto em dez para um quando está muito mais próximo de cem para um Porque eu gostaria que me respondessem se nas florestas selvagens e nas terras incultas da América abandonadas à natureza sem qualquer aproveitamento agricultura ou criação mil acres de terra forneceriam a seus habitantes miseráveis uma colheita tão abundante de produtos necessários à vida quanto dez acres de terra igualmente fértil o fazem em Devonshire onde são bem cultivadas Antes da apropriação da terra aquele que colhia todos os frutos silvestres que matava caçava ou domesticava todos os animais selvagens que podia aquele que aplicava sua atividade aos produtos espontâneos da natureza e modificava de uma maneira qualquer o estado em que ela os havia criado colocando neles o seu trabalho adquiria assim a propriedade sobre eles Mas se esses bens viessem a perecer em sua propriedade sem o devido uso se os frutos apodrecessem ou a caça ficasse putrefata antes de poder ser consumida ele infringia a lei comum da natureza e era passível de punição ele estaria invadindo a terra de seu vizinho pois seu direito cessava com a necessidade de utilizar estes bens e a possibilidade de deles retirar os bens para sua vida 38 As mesmas delimitações quantitativas regiam também a posse da terra Tudo o que o homem plantava colhia armazenava e consumia antes de se deteriorar pertencialhe por direito todo o gado e os produtos que podia cercar alimentar e utilizar também eram seus Mas se a grama apodrecesse no solo de seu cercado ou os frutos de sua plantação perecessem antes de serem colhidos e consumidos esta parte da terra não importa se estivesse ou não cercada podia ser considerada como inculta e podia se tornar posse de qualquer outro Assim no início Caim podia tomar e se apropriar de tanta terra quanto ele pudesse cultivar e ainda deixava o bastante para Abel alimentar seus carneiros poucos acres eram suficientes para as posses de ambos Mas à medida que as famílias aumentavam e a indústria ampliava suas reservas suas posses se ampliaram segundo suas necessidades mas isto não vinha acompanhado em geral da propriedade permanente das terras de que se serviam os interessados até que um dia eles se uniram estabeleceramse em conjunto e construíram cidades então por consentimento pouco a pouco começaram a fixar as fronteiras de seus diferentes territórios entraram em acordo sobre os limites entre eles e seus vizinhos e através de leis internas estabeleceram as propriedades dos membros daquela sociedade Vemos então que naquela parte do mundo que foi primeiro habitada e por isso provavelmente a melhor povoada mesmo em uma época tão distante quanto aquela de CLUBE DO LIVRO LIBERAL Abraão os homens perambulavam livremente de um lado a outro com seu gado e seus rebanhos que eram a fonte de seu sustento e isso Abraão fazia em um país onde era um estrangeiro evidência de que grande parte da terra era comum Os habitantes não lhe atribuíam um valor nem reclamavam a propriedade de uma quantidade de terra maior que aquela por eles utilizada Mas quando não houve mais espaço suficiente no mesmo lugar para que seus rebanhos se alimentassem juntos eles por consentimento como o fizeram Abraão e Lot Gn 135 separaram e ampliaram suas pastagens nas regiões que mais lhes apraziam E pela mesma razão Esaú separouse de seu pai e de seu irmão e se fixou no Monte Seir Gn 366 39 E assim sem supor qualquer dominação e propriedade privada de Adão sobre todo o mundo exclusiva de todos os outros homens pois isso não pode ser de forma alguma provado nem qualquer propriedade de outra pessoa foi dessa maneira estabelecida mas supondose que o mundo tenha sido dado aos filhos dos homens em comum percebemos como o trabalho poderia proporcionar aos homens direitos distintos a várias parcelas dele para seu uso particular quando não houvesse dúvida quanto ao seu direito nem espaço para disputas 40 Também não é tão estranho como talvez pudesse parecer antes da consideração que a propriedade do trabalho fosse capaz de desenvolver uma importância maior que a comunidade da terra Pois na verdade é o trabalho que estabelece em tudo a diferença de valor basta considerar a diferença entre um acre de terra plantada com fumo ou cana semeada com trigo ou cevada e um acre da mesma terra deixado ao bem comum sem qualquer cultivo e perceberemos que a melhora realizada pelo trabalho é responsável por grandíssima parte do seu valor Creio estar propondo uma avaliação moderada se disser que dentre os produtos da terra úteis à vida do homem nove décimos provêm do trabalho da mesma forma se quisermos avaliar corretamente os bens segundo o uso que deles fazemos e dividir as várias despesas decorrentes deste uso o que se deve apenas à natureza e o que se deve ao trabalho veremos que na maior parte delas noventa e nove por cento correm exclusivamente por conta do trabalho 41 Não há demonstração mais clara deste fato que as várias nações americanas que são ricas em terra e pobres em todos os confortos da vida a natureza lhes proviu tão generosamente quanto a qualquer outro povo com os elementos básicos da abundância ou seja um solo fértil capaz de produzir abundantemente o que pode servir de alimento vestuário e prazer mas na falta de trabalho para melhorar a terra não tem um centésimo das vantagens de que desfrutamos E um rei de um território tão vasto e produtivo se alimenta se aloja e se veste pior que um diarista na Inglaterra 42 Para tornar isso um pouco mais claro basta traçar os caminhos sucessivos de alguns produtos que servem em geral à vida antes de chegarem a ser utilizados por nós e ver quanto de seu valor eles recebem da indústria humana O pão o vinho e os tecidos são coisas de uso diário e encontradas em abundância entretanto as bolotas a água as folhas ou as peles poderiam nos servir de alimento bebida e roupas se o trabalho não nos fornecesse aqueles produtos mais úteis O que faz o pão valer mais que as bolotas o vinho mais que a água e os tecidos ou a seda mais que as folhas as peles ou o musgo devese inteiramente ao trabalho e à indústria De um lado temos aqui os alimentos e as roupas que a natureza por si só nos fornece de outro os bens que nossa indústria e nosso esforço nos prepara quem quiser estimar o quanto eles excedem o outro em valor quando qualquer um deles for avaliado verá que o trabalho é responsável pela maior parte do valor das coisas de que desfrutamos neste mundo E o solo que produz as matériasprimas raramente entra na avaliação ou entra com uma parte muito pequena tão pequena que mesmo entre nós a terra abandonada que não recebe os melhoramentos do pasto da agricultura ou do plantio é chamada de baldia o que na verdade ela é e veremos que o proveito que tiramos dela é pouco mais que nada Isto demonstra a que ponto se prefere uma quantidade de homens a extensões de domínios e que a grande arte do governo consiste em melhorar as terras e utilizálas corretamente Assim o príncipe sábio o semideus que estabelecerá leis de liberdade para proteger e encorajar a indústria honesta da humanidade diante Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 47 da opressão do poder e da estreiteza partidária rapidamente se tornará forte demais para seus vizinhos mas sobre isso falaremos depois Voltemos ao nosso propósito 43 Um acre de terra que produz aqui vinte alqueires de trigo e outro na América que com a mesma plantação daria o mesmo possuem sem dúvida o mesmo valor intrínseco Entretanto em um ano a humanidade tira talvez de um deles cinco libras de lucro e do outro menos de um centavo se todo o produto que um índio retirou dele fosse avaliado e vendido aqui posso realmente dizer que não chegaria a um milésimo Assim sendo é o trabalho que dá à terra a maior parte de seu valor sem o qual ela não valeria quase nada é a ele que devemos a maior parte de todos os seus produtos úteis pois toda aquela palha o farelo e o pão daquele acre de trigo vale mais que o produto de um acre de uma terra boa que permanece inculta e é tudo efeito do trabalho Não são somente o esforço do trabalhador a labuta do ceifador e do debulhador o suor do padeiro que devem ser levados em conta no pão que comemos o trabalho daqueles que domesticaram os bois que forjaram o ferro e lavraram as pedras que abateram as árvores e serraram a madeira empregada no arado no moinho no forno e em quaisquer outros utensílios que são em grande número requisitados para este grão desde a semente a ser semeada até sua transformação em pão devem ser considerados na avaliação do trabalho e tomados como um efeito dele A natureza e a terra forneceram apenas a matériaprima intrinsecamente menos valiosa Se fosse possível identificálos poderia ser feito um estranho catálogo com os objetos produzidos pela indústria e utilizados para se fazer cada fatia de pão antes de ela chegar ao nosso consumo ferro madeira couro casca de árvore vigas pedra tijolos carvão cal tecidos tintas piche alcatrão mastros cordas e todos os materiais utilizados no navio que trouxe qualquer um dos produtos usados por qualquer dos operários para uma fase qualquer do trabalho o que seria impossível pelo menos longo demais relacionar 44 Tudo isso evidencia que embora as coisas da natureza sejam dadas em comum o homem sendo senhor de si mesmo e proprietário de sua própria pessoa e das ações de seu trabalho tem ainda em si a justificação principal da propriedade e aquilo que compôs a maior parte do que ele aplicou para o sustento ou o conforto de sua existência à medida que as invenções e as artes aperfeiçoaram as condições de vida era absolutamente sua propriedade não pertencendo em comum aos outros 45 Assim no começo por pouco que se servisse dele o trabalho conferia um direito de propriedade sobre os bens comuns que permaneceram por muito tempo os mais numerosos e até hoje é mais do que a humanidade utiliza No início a maior parte dos homens contentavase com o que a natureza oferecia para as suas necessidades e embora depois em algumas partes do mundo onde o aumento do número de pessoas e das reservas com o uso do dinheiro tornaram a terra escassa e por isso de algum valor as várias comunidades tenham estabelecido os limites de seus distintos territórios e por leis internas tenham regulamentado as propriedades particulares de sua sociedade e desta forma por convenção e acordo determinado a propriedade iniciada pelo trabalho e pela indústriae os tratados que foram feitos entre vários estados e reinados seja expressa ou tacitamente renunciando a toda reivindicação e direito sobre a terra em posse do outro puseram de lado por consentimento comum todas as suas pretensões a seu direito comum natural que originalmente tinham em relação àqueles países e assim por um acordo positivo estabeleceram um direito de propriedade entre eles em partes e parcelas distintas da terra embora ainda existam vastas extensões de terra cujos habitantes não se juntaram ao resto da humanidade para concordar com o uso da moeda comum elas permanecem baldias e são mais do que as pessoas que ali habitam utilizam ou podem utilizar e assim ainda continuam sendo terra comum mas isso ocorre raramente naquela parte da humanidade que consentiu no uso do dinheiro 46 A maior parte das coisas realmente úteis à vida do homem aquelas que a necessidade de sobreviver incitou os primeiros camponeses do mundo a explorar como fazem agora os americanos são em geral coisas de duração efêmera que se não forem consumidas pelo uso deterioram e perecem por si mesmas o ouro a prata e os diamantes são coisas às quais o capricho ou a convenção atribuem um valor maior que a sua utilidade real e sua necessidade para o sustento da vida Agora de todas as coisas boas que a natureza proveu em comum cada CLUBE DO LIVRO LIBERAL um tem o direito como foi dito de tomar tanto quanto possa utilizar cada um se tornaria proprietário de tudo o que seu trabalho viesse a produzir tudo pertenceria a ele desde que sua indústria pudesse atingilo e transformá lo a partir de seu estado natural Aquele que colhesse cem alqueires de bolotas ou de maçãs adquiriria assim uma propriedade sobre eles a mercadoria era sua desde o momento em que a havia colhido Ele só tinha de se preocupar em consumila antes que estragasse senão isto significaria que ele havia colhido mais que a sua parte e portanto roubado dos outros e na verdade era uma coisa tola além de desonesta acumular mais do que ele poderia utilizar Se ele distribuísse a outras pessoas uma parte desses frutos para que não perecessem inutilmente em suas mãos esta parte ele também estaria utilizando e se ele também trocasse ameixas que iriam perecer em uma semana por nozes que durariam um ano para serem comidas não estaria lesando ninguém ele não estaria desperdiçando a reserva comum nem destruindo parte dos bens que pertenciam aos outros enquanto nada se estragasse inutilmente em suas mãos Se ele trocasse suas nozes por um pedaço de metal cuja cor lhe agradara ou trocasse seus carneiros por conchas ou a lã por uma pedra brilhante ou por um diamante e os guardasse com ele durante toda a sua vida não estaria violando os direitos dos outros podia guardar com ele a quantidade que quisesse desses bens duráveis pois o excesso dos limites de sua justa propriedade não estava na dimensão de suas posses mas na destruição inútil de qualquer coisa entre elas 47 Assim foi estabelecido o uso do dinheiro alguma coisa duradoura que o homem podia guardar sem que se deteriorasse e que por consentimento mútuo os homens utilizariam na troca por coisas necessárias à vida realmente úteis mas perecíveis 48 Como os diferentes graus de indústria dos homens podiam fazêlos adquirir posses em proporções diferentes esta invenção do dinheiro deulhes a oportunidade de continuar a aumentálas Imaginemos uma ilha isolada de todo o comércio possível com o resto do mundo onde só houvesse cem famílias mas houvesse carneiros cavalos e vacas além de outros animais úteis frutos comestíveis e terra suficiente para dar milho para cem mil vezes mais mas nada na ilha que não fosse tão comum ou tão perecível que pudesse tomar o lugar do dinheiro que razão alguém poderia ter para aumentar suas posses além das necessidades de sua família e para um suprimento abundante para seu consumo seja no que sua própria indústria produzisse ou que eles pudessem trocar por outros produtos igualmente perecíveis e úteis No lugar onde não existe nada durável e raro que tenha bastante valor para ser guardado nada incita os homens a estender suas posses sobre terras mais vastas mesmo que estas sejam férteis e estejam disponíveis para ele Eu pergunto quem atribuiria um valor a dez mil ou a cem mil acres de uma terra excelente fácil de cultivar e além disso bem provida de gado mas situada no coração da América se lá não existe nenhuma possibilidade de comerciar com outras partes do mundo e extrair dinheiro da venda dos produtos Não teria valido a pena cercar essa terra e nós veríamos retornar ao estado natural selvagem e comum tudo aquilo que fosse mais do que o estritamente necessário para fornecer para ele e sua família os bens vitais 49 Assim no início toda a terra era uma América e mais ainda que hoje pois em parte alguma se conhecia o dinheiro Encontre qualquer coisa que tenha o uso e o valor de dinheiro entre seus vizinhos e você verá que o mesmo homem começará a aumentar suas posses 50 Mas uma vez que o ouro e a prata sendo de pouca utilidade para a vida do homem em relação ao alimento ao vestuário e aos meios de transporte retira seu valor apenas da concordância dos homens de que o trabalho ainda proporciona em grande parte a medida é evidente que o consentimento dos homens concordou com uma posse desproporcional e desigual da terra através de um consentimento tácito e voluntário eles descobriram e concordaram em uma maneira pela qual um homem pode honestamente possuir mais terra do que ele próprio pode utilizar seu produto recebendo ouro e prata em troca do excesso que podem ser guardados sem causar dano a ninguém estes metais não se deterioram nem perecem nas mãos de seu proprietário Esta divisão das coisas em uma igualdade de posses particulares os homens tornaram praticável fora dos limites da sociedade e sem acordo apenas atribuindo um valor ao ouro e à prata e tacitamente concordando com o uso do dinheiro Pois nos governos as leis regulam o direito de propriedade e a posse da terra é determinada por constituições positivas Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 49 51 Assim eu acho que é muito fácil conceber sem qual quer dificuldade como o trabalho pôde constituir no início a origem de um título de propriedade sobre os bens comuns da natureza e como o uso que se fazia dele lhe servia de limite Então não podia existir qualquer motivo para se disputar um título nem qualquer dúvida a respeito da dimensão da posse que ele autorizava O direito e a conveniência andavam juntos Como cada homem tinha o direito a tudo em que podia aplicar o seu trabalho não tinha a tentação de trabalhar mais do que para o que pudesse usar Isso não deixava espaço para controvérsia quanto ao título nem para usurpação do direito dos outros A parte que cada um talhava para si era facilmente reconhecível era tão inútil quanto desonesto talhar uma parte grande demais ou tomar mais que o necessário CAPÍTULO VI DO PODER PATERNO 52 Talvez possa ser censurado criticado como fora de propósito em um discurso desta natureza o fato de eu divulgar palavras e denominações que circulam no mundo e talvez não seja impróprio oferecer novas acepções quando as velhas podem induzir os homens a erros como é provável ter ocorrido com este do pátrio poder que parece situar o poder dos pais sobre seus filhos inteiramente sobre o pai como se a mãe não o compartilhasse Ora se consultarmos a razão ou a revelação veremos que ela tem um igual direito Isto justificaria perguntar se não seria mais exato chamálo de poder dos pais Pois sejam quais forem os deveres que a natureza e o direito de geração impõem às crianças certamente as obriga da mesma forma sobre as suas duas causas concorrentes Então vemos que a lei positiva de Deus sempre os reúne sem distinção quando ordena a obediência aos filhos Honra teu pai e tua mãe Ex 2012 Quem almaldiçoar o pai ou a mãe Lv 209 Respeite cada um de vós o pai e a mãe Lv 193 Filhos obedecei vossos pais Ef 61 é como se exprimem o Antigo e o Novo Testamento 53 Se este simples fato tivesse sido devidamente considerado mesmo sem que se aprofundasse muito na questão isso talvez pudesse ter evitado que os homens incorressem em erros tão crassos quando delegaram este poder dos pais que embora pudesse sem forçar seu sentido tomar o nome de dominação absoluta e autoridade real quando sob o título de poder paterno parecia reservado ao pai no entanto soou um pouco estranho e seu próprio nome trai o absurdo se este poder supostamente absoluto sobre as crianças fosse chamado poder dos pais e além disso descobriuse que ele pertence também à mãe Pois convirá muito pouco aos propósitos daqueles homens que defendem o absoluto poder e autoridade da paternidade como o chamam que a mãe tenha qualquer participação nele E seria de muito pouca serventia à monarquia que tanto defendem se pelo próprio nome parecesse que aquela autoridade fundamental de cuja origem eles derivariam seu governo de apenas uma pessoa não estivesse colocada em uma mas em duas pessoas ao mesmo tempo Mas deixemos de lado esta questão de nomes 54 Embora eu tenha dito anteriormente Capítulo II que por natureza todos os homens são iguais não se pode supor que eu me referisse a todos os tipos de igualdade A idade ou a virtude podem dar aos homens uma precedência justa A excelência dos talentos e dos méritos pode colocar alguns acima do nível comum O nascimento pode sujeitar alguns e a aliança ou os benefícios podem sujeitar outros reconhecendose aqueles a quem a natureza a gratidão ou outros aspectos possam obrigar E no entanto tudo isso coincide com a igualdade de todos os homens com respeito à jurisdição ou ao domínio de um sobre o outro ou seja a igualdade que apresentei como característica disso que se está tratando e que consiste para cada homem em ser igualmente o senhor de sua liberdade natural sem depender da vontade nem da autoridade de outro homem CLUBE DO LIVRO LIBERAL 55 Admito que as crianças não nascem neste estado de plena igualdade embora tenham nascido para isso Seus pais têm uma espécie de governo e jurisdição sobre eles quando eles vêm ao mundo e durante algum tempo depois mas é apenas temporário Os laços desta sujeição são como as fraldas que eles vestem e protegem a fragilidade de sua infância A idade e a razão à medida que elas crescem pouco a pouco as liberta delas até o dia em que caem completamente e deixam o homem absolutamente livre 56 Adão foi criado como um homem perfeito seu corpo e sua mente em completa posse de sua força e de sua razão e assim foi capaz desde o primeiro instante de promover seu próprio sustento e preservação e governar suas ações de acordo com os ditames da lei da razão nele implantada por Deus A partir dele o mundo foi povoado com seus descendentes que nasceram todos bebês frágeis e desamparados sem conhecimento ou compreensão Mas para suprir os defeitos deste estado imperfeito até o momento em que o progresso do crescimento e a idade o tivessem removido Adão e Eva e depois deles todos os pais estavam sujeitos pela lei da natureza a uma obrigação de preservar alimentar e educar as crianças que tivessem gerado não como criaturas produzidas por eles mas pela obra de seu próprio Criador o TodoPoderoso a quem deviam delas prestar contas 57 Uma mesma lei devia reger Adão e toda a sua posteridade a lei da razão Mas como sua descendência veio ao mundo de uma maneira diferente da dele por um nascimento natural que a produzia ignorante e desprovida do uso da razão ela não se encontrou imediatamente sob essa lei Pois ninguém pode estar sujeito a uma lei que não é promulgada para ele e como apenas a razão promulga e faz conhecer a lei não se pode admitir que ela se aplique a quem não chegou à idade da razão Os filhos de Adão que não eram regidos por esta lei da razão desde o seu nascimento não eram de início livres A lei em sua verdadeira noção não é tanto a limitação mas a direção de um agente livre e inteligente em seu próprio interesse e só prescreve visando o bem comum daqueles que lhe são submetidos Se eles pudessem ser mais felizes sem ela a lei desapareceria como um objeto inútil não é confinando alguém que lhe tornamos inacessíveis os lodaçais e os precipícios De forma que mesmo que possa ser errada a finalidade da lei não é abolir ou conter mas preservar e ampliar a liberdade Em todas as situações de seres criados aptos à lei onde não há lei não há liberdade A liberdade consiste em não se estar sujeito à restrição e à violência por parte de outras pessoas o que não pode ocorrer onde não há lei e não é como nos foi dito uma liberdade para todo homem agir como lhe apraz Quem poderia ser livre se outras pessoas pudessem lhe impor seus caprichos Ela se define como a liberdade para cada um de dispor e ordenar sobre sua própria pessoa ações possessões e tudo aquilo que lhe pertence dentro da permissão das leis às quais está submetida e por isso não estar sujeito à vontade arbitrária de outra pessoa mas seguir livremente a sua própria vontade 58 Portanto o poder que os pais exercem sobre seus filhos procede daquele dever que lhes é imposto de cuidar de sua descendência durante a condição imperfeita da infância Deve formar sua mente e governar as ações de sua ainda ignorante imaturidade até que a razão assuma seu lugar e os liberte dessa preocupação É isso que as crianças desejam e é essa a obrigação dos pais Deus que dotou o homem do entendimento para dirigir suas ações deulhe também como um atributo a ele vinculado uma liberdade de vontade e uma liberdade de agir dentro dos limites fixados pela lei que o rege Mas enquanto ele estiver em um estado em que não tem entendimento de sua própria pessoa para dirigir sua vontade não tem qualquer vontade própria para seguir Aquele que compreende por ele deve também desejar por ele comandar sua vontade e dirigir suas ações mas quando chega ao estado que tornou seu pai um homem livre o filho também se torna um homem livre 59 Isto está presente em todas as leis a que o homem está sujeito sejam naturais ou civis O homem está sujeito à lei da natureza O que o torna livre dessa lei O que lhe dá a livre disposição de sua propriedade segundo seu próprio desejo dentro do âmbito daquela lei Eu respondo Um estado de maturidade em que se supõe que ele seja capaz de conhecer aquela lei e assim manter suas ações dentro de seus limites Quando adquiriu esse estado supõese que ele tem conhecimento de até que ponto aquela lei será seu guia e até onde ele pode fazer uso de sua liberdade e assim a atinge até então deve ser guiado por outra pessoa que se presume conhecer até que ponto a Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 51 lei permite uma liberdade Se um tal estado racional e uma tal idade de discernimento o tornam livre o mesmo deve tornar livre também seu filho Um homem está sujeito à lei da Inglaterra O que o torna isento dessa lei Ou seja ter a liberdade de dispor de suas ações e posses segundo sua própria vontade dentro da permissão dessa lei A capacidade para conhecer essa lei o que se supõe que ocorre aos vinte e um anos de idade e em alguns casos antes Se isto tornou o pai livre tornará o filho também livre Até agora vimos que a lei não permite que o filho tenha vontade mas deve ser orientado pela vontade de seu pai ou guardião que deve entender por ele E se o pai morre sem apontar um substituto de sua confiança se não designou um tutor para orientar seu filho durante sua minoridade enquanto ele carece de entendimento a lei se encarrega disso Outra pessoa deve orientálo e ter vontade por ele até que ele atinja um estado de liberdade e sua inteligência tenha captado a arte de reger a sua vontade Mas depois disso pai e filho são igualmente livres tanto quanto tutor e pupilo após a minoridade igualmente sujeitos à mesma lei sem que o pai tenha qualquer domínio sobre a vida a liberdade ou os bens de seu filho e não faz nenhuma diferença se eles vivem simplesmente no estado de natureza e submissos ao direito natural ou sob as leis positivas de um governo estabelecido 60 Mas se por defeitos que podem surgir no curso normal da natureza uma pessoa não atinge tal grau de razão em que se poderia supor que ela fosse capaz de conhecer a lei e viver dentro de suas regras ela jamais será capaz de ser um homem livre jamais poderá dispor de sua própria vontade porque desconhece os limites dela e não tem o entendimento que deve guiála e deverá ser mantida sob a tutela e a orientação de outros durante todo o tempo que seu próprio entendimento for incapaz desse encargo Por isso os loucos e os idiotas jamais se libertam da tutela de seus pais as crianças que ainda não atingiram a idade de possuíla e os deficientes que são excluídos por um defeito natural que os impede para sempre de possuíla em terceiro lugar os loucos que de imediato são incapazes de se guiar segundo a razão normal têm por seu guia a reta razão que orienta outros homens que exercem sobre eles uma tutela e que vão buscar e descobrir o bem para eles diz Hooker Eccl Pol liv i sec 7 Tudo isso parece se reduzir à obrigação que Deus e a natureza impuseram aos homens e também às outras criaturas para proteger sua descendência até que ela seja capaz de arranjarse por si mesma e quase nunca importará em um exemplo ou prova da autoridade real dos pais 61 Assim nascemos livres como nascemos dotados de razão mas isso não significa que possamos dispor do exercício de nenhuma dessas duas faculdades a idade que traz a primeira traz consigo também a segunda Vemos então como a liberdade natural e a sujeição aos pais podem caminhar juntas e são ambas baseadas no mesmo princípio Uma criança é livre em virtude do direito de seu pai pelo entendimento de seu pai que deverá orientála até que ela adquira o seu A liberdade que um homem atinge na idade do discernimento assim como a sujeição de uma criança a seus pais enquanto não atinge aquela idade são tão consistentes e tão discerníveis que a maior parte dos defensores mais cegos da monarquia pelo direito de paternidade não poderia ignorar essa distinção nem os mais obstinados negar esta compatibilidade Se sua doutrina fosse absolutamente verdadeira se mesmo hoje se conhecesse o herdeiro legítimo de Adão e se ele reinasse sobre seu trono investido de todo o poder ilimitado de que fala Sir Robert Filmer se ele morresse logo após o nascimento de seu herdeiro será que a criança não deveria por mais livre e por mais soberana que pudesse ser ficar submetido a sua mãe e a sua ama a tutores e orientadores até que a idade e a educação lhe trouxesse a razão e a capacidade de governar a si própria e aos outros As necessidades de sua vida a saúde de seu corpo e a informação de sua mente exigiriam que ela fosse dirigida pela vontade de outros e não pela sua própria e embora se possa pensar que essa contenção e sujeição sejam prejudiciais ou inconsistentes com aquela liberdade ou soberania a que ela tem direito não deixariam seu império nas mãos daqueles que têm a tutela de sua minoridade Esta tutela sobre ela só a prepararia melhor e mais cedo para o cargo Se alguém me perguntasse quando meu filho terá idade para ser livre eu responderei na mesma idade em que seu monarca tiver idade para governar Como diz o judicioso Hooker Eccl Pol liv 1 sec 6 É muito mais fácil discernir em que momento se pode dizer que um homem progrediu suficientemente no uso da razão para ser capaz de se comportar segundo as leis que devem guiar suas ações do que para qualquer um determinálo pela habilidade ou pelos conhecimentos 62 As próprias sociedades políticas se apercebem e reconhecem que há um momento em que os homens estão prontos para começar a agir como homens livres e por isso até chegar este momento elas não exigem CLUBE DO LIVRO LIBERAL nenhum juramento de fidelidade ou de obediência ou nenhum outro ato público de homenagem ou de submissão ao governo de seu país 63 Assim a liberdade de um homem e sua faculdade de agir segundo sua própria vontade estão fundamentadas no fato dele possuir uma razão capaz de instruílo naquela lei pela qual ele vai ser regido e fazer com que saiba a que distância ele está da liberdade de sua própria vontade Deixálo entregue a uma liberdade desenfreada antes que tenha a razão para guiálo não é concederlhe o privilégio de ter sua natureza livre mas lançálo no meio de selvagens e abandonálo em um estado miserável e inferior ao dos homens como sendo o seu É isso que coloca nas mãos dos pais a autoridade de governar a minoridade de seus filhos Deus lhes confiou a tarefa de cuidar dessa maneira de sua descendência e depositou neles pendores de ternura e de solicitude apropriados para equilibrar este poder e para aplicálo na medida em que sua sabedoria o designar pelo bem das crianças enquanto elas dele necessitarem 64 Mas que razão pode provocar a transformação deste cuidado que os pais devem a sua descendência em uma dominação arbitrária absoluta por parte do pai O poder do pai não deve ultrapassar aquela disciplina que ele considera mais eficaz para proporcionar força e saúde ao corpo dos filhos vigor e retidão às suas mentes o que melhor prepara seus filhos para serem mais úteis a si mesmos e aos outros e se a condição assim o exigir fazer com que trabalhem quando forem capazes para prover seu próprio sustento Mas neste poder também a mãe juntamente com o pai tem sua parte 65 O pai não detém este poder em virtude de um direito natural particular mas somente por ser guardião de seus filhos e quando ele abandona este cuidado perde seu poder sobre eles o que segue paralelo a sua alimentação e educação às quais está inseparavelmente ligado e pertence tanto ao pai adotivo de uma criança abandonada quanto ao pai natural de outra A isso se reduz o poder que o simples fato da procriação proporciona ao homem sobre sua descendência quando o cuidado termina também se extingue o poder e este é todo o direito que ele tem ao nome e à autoridade de pai E o que acontece com este poder paterno naquela parte do mundo em que a mulher tem mais de um marido ao mesmo tempo Ou naquelas partes da América onde quando o marido e a mulher se separam o que acontece freqüentemente as crianças são entregues à mãe a seguem e estão completamente sob seus cuidados e sob seu encargo Se o pai morre enquanto os filhos são pequenos em toda parte eles não devem naturalmente à mãe durante sua minoridade a mesma obediência que deviam a seu pai quando ele estava vivo Quem pretenderá que a mãe tenha um poder legislativo sobre seus filhos Que ela possa estabelecer regras que os obriga perpetuamente pelas quais eles devem orientar todos os interesses de sua propriedade e limitar sua liberdade durante todo o curso de suas vidas Ou que ela possa fazer cumprir a observação dessas regras com penas capitais Este é o poder próprio do magistrado de que o pai não tem nem mesmo a sombra A autoridade que exerce sobre seus filhos é apenas temporária e não atinge sua vida ou sua propriedade é apenas uma ajuda à fragilidade e à imperfeição de sua minoridade uma disciplina necessária a sua educação e embora um pai possa dispor de suas próprias possessões como lhe apraz quando seus filhos estão em risco de morrer pela miséria seu poder não se estende às vidas ou aos bens que sua própria indústria ou a generosidade de outra pessoa tornou seus nem também a sua liberdade uma vez que chegaram à libertação da idade do discernimento Então o império do pai cessa e daí em diante ele não pode dispor da liberdade do seu filho mais do que pode dispor daquela de qualquer outro homem e ficase bem distante de uma jurisdição absoluta ou perpétua pois um homem pode se subtrair a ela com licença da autoridade divina deixando o pai e a mãe para se ligar a sua mulher 66 Mas embora haja um momento em que a criança se torna tão livre da sujeição à vontade e à autoridade de seu pai quanto seu próprio pai é livre da sujeição à vontade de qualquer outra pessoa e ambos não estão sob outra restrição exceto aquela comum aos dois seja ela a lei da natureza ou a lei civil de seu país esta liberdade não isenta um filho da honra que ele pela lei de Deus e da natureza deve prestar a seus pais Quando Deus tornou os pais instrumentos em seu grande desígnio de continuidade do gênero humano e ensejo da vida de seus filhos assim como impôs sobre eles a obrigação de alimentar preservar e criar sua descendência também colocou sobre as crianças uma obrigação perpétua de honrar seus pais que contendo em si uma estima e Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 53 reverência íntimas que devem ser demonstradas através de todas as expressões exteriores que afasta o filho de qualquer coisa que possa prejudicar ou afrontar perturbar ou implicar em risco à felicidade ou à vida daqueles de quem ele recebeu a sua e os engaja em todas as ações de defesa alívio assistência e conforto daqueles através dos quais ele veio à vida e tornouse capaz de desfrutála Nenhum estado e nenhuma liberdade pode isentar os filhos desta obrigação Mas isto está muito longe de conceder aos pais um poder de comando sobre seus filhos ou uma autoridade para fazer leis e dispor como lhes aprouver de suas vidas ou liberdades Uma coisa é dever honra respeito gratidão e assistência outra é exigir uma obediência e uma submissão absolutas A honra devida aos pais um monarca em seu trono deve a sua mãe e isto não diminui sua autoridade nem o sujeita ao seu domínio 67 A sujeição de um menor investe o pai de uma autoridade temporária que termina com a minoridade da criança e a honra que a criança deve aos pais lhes proporciona um direito perpétuo a um respeito reverência apoio e obediência maiores ou menores segundo o pai colocou mais ou menos cuidado gastos e bondade em sua educação Isto não termina com a minoridade mas permanece em todas as obrigações e condições da vida de um homem O fato de não distinguir estes dois poderes que o pai possui o direito de instrução durante a minoridade e o direito à honra durante toda a sua vida talvez seja responsável por grande parte dos erros nesta questão Falando estritamente o primeiro deles é um privilégio para os filhos e dever dos pais mais que uma prerrogativa de poder paterno A alimentação e a educação dos filhos é uma incumbência tão forçosa dos pais para o bem de seus filhos que nada pode eximilos de cuidar disso Embora o poder de comandar e punir siga ao lado disso Deus urdiu nos princípios da natureza humana uma tal ternura por sua descendência que há pouco receio de que os pais possam usar seu poder com muito rigor o excesso raramente ocorre no lado da severidade a forte tendência da natureza inclinandose para o outro lado Por isso Deus TodoPoderoso ao expressar sua atitude amável para com os Israelitas dizlhes que não obstante os haja punido puniuos como um pai pune seu filho Dt 85 isto é com ternura e afeição e não os manteve sob disciplina mais severa do que aquela que seria absolutamente a melhor para eles e mais doçura teria manifestado menos bondade Este é o poder a qual os filhos são mandados obedecer a fim de não aumentarem ou mal recompensarem os esforços e os cuidados de seus pais 68 Por outro lado a honra e o apoio material tudo a que a gratidão obriga em contrapartida aos benefícios recebidos os filhos o devem sem dispensa possível e isso é privilégio próprio dos pais Tratase aqui da vantagem dos pais como antes se tratava daquele do filho mas a educação que cabe aos pais é acompanhada por um poder quase universal devido à ignorância e às fragilidades da infância que requerem a restrição e a correção ou seja o exercício de um governo e uma espécie de dominação O dever que está contido na palavra honra requer menos obediência ainda que se imponha menos obediência aos filhos menores que aos maiores Quem pode acreditar na ordem Filhos obedecei a vossos pais que exige de um homem que tem filhos a mesma submissão a seus pais que seus filhos devem a ele ou que em virtude deste preceito ele deveria obedecer a todas as ordens de seu pai se este abusando da autoridade comete a indelicadeza de tratálo ainda como a um menino 69 Assim a primeira parte do poder ou melhor do dever do pai que é a educação lhe pertence até que termine na época determinada Quando a tarefa da educação está completa ela termina por si mesma e é também previamente alienável Pois um homem pode colocar em outras mãos a instrução de seu filho e aquele que fez de seu filho aprendiz de outro homem desobrigouo durante aquele período de grande parte de sua obediência tanto a ele quanto a sua mãe No entanto a segunda parte toda a obrigação de honra permanece intacta nada pode cancelar este dever Ele é tão inseparável de ambos pai e mãe que a autoridade do pai não pode despojar a mãe desse direito nem qualquer homem pode dispensar seu filho de honrar aquela que o gerou Mas ambos estão muito distantes de um poder de fazer leis e obrigálos de penalidades que podem atingir os bens a liberdade a integridade física e a própria vida O poder de comandar termina com a minoridade e ainda que depois disso o filho continue a dever aos pais honra e respeito apoio material e proteção e tudo o mais que a gratidão possa obrigar um homem em contrapartida aos benefícios que ele seja naturalmente suscetível de receber isso não coloca nenhum cetro nas mãos do pai nenhum poder soberano de comando Ele não tem domínio sobre os bens ou os atos de seu filho e nenhum direito de lhe impor toda a sua vontade entretanto em algumas situações que não sejam inconvenientes ao filho ou a sua família o filho pode esperar ser tratado respeitosamente CLUBE DO LIVRO LIBERAL 70 Um homem deve honra e respeito a outro mais velho ou a um sábio proteção a seu filho ou ao seu amigo alívio e ajuda aos infelizes e gratidão a um benfeitor em tal grau que tudo o que ele tem e tudo o que pode fazer não pode pagar suficientemente por isso mas nada disso lhe dá autoridade ou direito de fazer leis para as pessoas que lhe são devedoras E é claro que isso não se deve apenas ao simples título de pai não somente porque como foi dito é devido também à mãe mas porque também estas obrigações aos pais e a gradação do que se impõe aos filhos podem variar segundo os cuidados e a bondade os problemas e os custos que são dispensados em maior ou menor extensão em benefício de um ou outro dos filhos 71 Compreendese assim de que maneira os pais podem conservar um poder sobre seus filhos e exigir sua submissão nas sociedades em que eles mesmos são súditos da mesma forma que aqueles que estão no estado de natureza Isso não seria possível se todo o poder fosse apenas paterno e se se tratasse de uma única e mesma coisa neste caso toda a autoridade paterna pertenceria ao príncipe e nenhum súdito poderia detêla naturalmente Mas esses dois poderes político e pátrio são tão diferentes e tendem a fins tão pouco semelhantes que todo súdito que é um pai tem tanto poder sobre seus filhos quanto o príncipe tem sobre os seus e todo príncipe que tem pais deve a eles tanto respeito e obediência filiais quanto o mais humilde de seus súditos deve aos seus por isso não contém nenhuma parcela ou grau daquele tipo de dominação que um príncipe ou um magistrado tem sobre seus súditos 72 Embora a obrigação dos pais de educar seus filhos e a obrigação dos filhos de honrar seus pais contenham de um lado todo o poder e de outro toda a submissão que caracterizam esta relação o pai em geral detém um outro poder que lhe proporciona um poder sobre a obediência de seus filhos ele o divide com o resto dos homens mas passa no mundo como um aspecto da jurisdição paterna pois os pais têm quase sempre a ocasião de exercêlo na intimidade de sua família enquanto fora os exemplos são mais raros e despertam menos atenção Eu me refiro ao poder que em geral os homens têm de transmitir seus bens a quem lhes aprouver Normalmente em uma proporção determinada pela lei e pelos costumes de cada país os bens do pai representam para os filhos a esperança de uma herança mas é costume que o pai tenha a faculdade de distribuí los de forma mais parcimoniosa ou generosa segundo o comportamento deste ou daquele filho se adaptou a sua vontade ou ao seu humor 73 Este não é um vínculo pequeno sobre a obediência dos filhos E estando sempre vinculada à posse da terra uma submissão ao governo do país do qual essa terra é parte admitese comumente que um pai poderia obrigar sua posteridade àquele governo do qual ele mesmo era um súdito e a que seu contrato os obriga então tratandose apenas uma condição necessária anexada à terra que se encontra submissa a este governo atinge apenas aqueles que aceitam tomar a terra naquela condição e este não é um elo ou um compromisso natural mas uma submissão voluntária A natureza dá aos filhos de todo homem a mesma liberdade que proporciona a ele próprio ou a qualquer de seus ancestrais e enquanto permanecerem neste estado de liberdade podem escolher a que sociedade vão se juntar a que comunidade civil vão se submeter Mas se eles quiserem desfrutar da herança de seus ancestrais devem ficar sujeitos às mesmas cláusulas e termos a que eles se submeteram e satisfazer a todas as condições vinculadas a tal posse Na verdade através deste poder os pais obrigam seus filhos a lhes prestar obediência mesmo depois de ultrapassarem a minoridade e também é muito comum sujeitálos a este ou aquele poder político Mas a nenhum desses por qualquer direito peculiar de paternidade exceto pelo prêmio que têm em suas mãos para obrigar e recompensar tal submissão e não é mais poder que um francês tem sobre um inglês que na expectativa de um bem que lhe deixará certamente terá uma forte influência sobre sua obediência é certo que se o inglês quiser desfrutar da herança quando a receber é preciso que aceite as condições que regem a posse da terra em questão no país em que ela está situada seja ele a França ou a Inglaterra 74 Concluindo Mesmo se o poder do pai de comandar não ultrapasse a minoridade de seus filhos e isso em um grau apenas determinado pela disciplina e a orientação daquela idade e mesmo que aquela honra e respeito e tudo o que os latinos chamam de piedade que eles indispensavelmente devem a seus pais durante toda a sua vida e em todos os estados com todo aquele apoio e proteção que lhes são devidos isso não dá ao pai o Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 55 poder de governar ou seja de fazer leis e infligir punições a seus filhos entretanto ainda que ele não adquira assim nenhum domínio sobre seus bens nem sobre a atividade de seu filho basta que nos reportemos em espírito ao início do mundo ou mesmo em nosso tempo às regiões em que a população é muito dispersa o que permite às famílias se instalarem separadamente em locais mais afastados sem dono transferiremse e irem habitar em outros locais desocupados para imaginar a que ponto é fácil passar do papel de pai àquele de príncipe da casa85 O pai detém a autoridade em sua família desde o início da infância de seus filhos quando estes crescem como dificilmente podem viver juntos sem algum governo não é surpreendente que expressa ou tacitamente eles encarreguem disso o pai que parece permanecer simplesmente em suas funções sem qualquer mudança Nada mais é requerido para isso senão permitir que o pai exerça sozinho em sua família aquele poder executivo da lei da natureza de que todo homem livre naturalmente dispõe e através dessa permissão conceder lhe um poder monárquico sobre a família enquanto os filhos ali permanecerem Não obstante o pai só tem este poder por causa do consentimento de seus filhos e não por qualquer direito paterno como evidencia um fato indubitável se ocorresse por acaso ou por questões de negócios que um estrangeiro penetrasse na família e matasse um dos filhos ou cometesse qualquer outro delito o pai podia condenálo e matálo ou infligirlhe qualquer outra punição como o faria a qualquer um de seus filhos ora ele não podia tratar assim qualquer um que não fosse seu filho em virtude de uma autoridade paterna qualquer mas somente em virtude do poder executivo da lei da natureza que todo homem possuía por direito e apenas ele podia punir o estrangeiro em sua família onde os filhos estavam destituídos do exercício do mesmo poder para dar lugar à dignidade e à autoridade que desejavam que ele mantivesse sobre o restante da família 75 Era então fácil e quase natural para os filhos por um consentimento tácito e dificilmente evitável consentir em abrir caminho para a autoridade e o governo do pai Durante toda a sua infância eles se acostumaram a seguir sua orientação e a submeterlhe suas pequenas diferenças uma vez homens quem melhor que ele para dirigilos Suas pequenas propriedades e sua cobiça ainda mais limitada raramente suscitavam maiores controvérsias e quando crescessem onde poderiam encontrar um árbitro mais qualificado que o homem cujo cuidado havia assegurado no passado seu sustento e sua educação e que experimentava ternura por todos eles Não surpreende que eles não tivessem feito distinção entre minoridade e maioridade nem ansiassem por seus vinte e um anos ou por qualquer outra idade para se tornarem aptos para dispor livremente de seus bens e de sua vida quando não desejassem sair de sua tutela O governo a que permaneciam submetidos enquanto durasse continuava mais a protegêlos que a restringilos e em parte alguma eles poderiam encontrar maior segurança para a sua paz liberdades e bens que sob o governo de um pai 76 Assim por uma imperceptível transformação os pais naturais das famílias tornaramse também seus monarcas políticos e se tivessem a oportunidade de viver muito e deixar herdeiros capazes e dignos para várias gerações teriam podido estabelecer as fundações de reinados hereditários ou eletivos regidos por diversas constituições ou autoridades senhoriais e conformar segundo o acaso as idéias ou as situações Entretanto se os príncipes têm seus títulos em seu direito de paternidade se o fato dos pais terem em geral nas mãos o governo bastava para provar que estão naturalmente investidos da autoridade política se este argumento é válido ele prova suficientemente que todos os príncipes e apenas os príncipes deviam ser sacerdotes porque no início o pai de família era tanto sacerdote quanto governante em sua própria casa CAPÍTULO VII 85 Por isso não é improvável a opinião expressada pelo arquifilósofo de que a principal pessoa em toda família sempre foi uma espécie de rei assim quando um certo número de famílias se juntaram em sociedades civis os reis foram o primeiro tipo de governadores isso parece explicar igualmente porque o nome de pai subsistiu entre aqueles que de pais foram promovidos a governantes da mesma forma o antigo costume dos governa dores como Melquisedec talvez tenha se desenvolvido no início pelo mesmo motivo ou seja uma vez reis exercer funções sacerdotais o que era anteriormente realizado pelos pais Seja como for este não foi o único tipo de regime desenvolvido no mundo Suas in conveniências levaram a imaginar diversas outras de forma que resumindo todo regime público seja de que tipo for parece evidentemente terse originado de acordos deliberados da consulta e da composição entre os homens para julgar suas conveniências e vantagens pois nada na natureza considerada em si mesma proibia o homem de viver sem qualquer regime público Hooker Eccl Pol liv i sec 10 CLUBE DO LIVRO LIBERAL DA SOCIEDADE POLÍTICA OU CIVIL 77 Tendo Deus feito do homem uma criatura tal que segundo seu julgamento não era bom para ele ficar sozinho submeteuo a fortes obrigações de necessidade comodidade inclinação para leválo a viver em sociedade assim como o dotou de entendimento e linguagem para mantêla e desfrutála A primeira sociedade existiu entre marido e mulher e serviu de ponto de partida para aquela entre pais e filhos à qual com o tempo foi acrescentada aquela entre patrão e servidor Embora todas estas sociedades possam se reunir o que em geral elas fazem para constituir uma única família cujo senhor ou senhora detêm alguma autoridade conveniente a uma família cada uma delas ou todas reunidas não equivalem a uma sociedade política como veremos ao examinar os diversos objetivos vínculos e limites de cada uma 78 A sociedade conjugal resulta de um pacto voluntário entre o homem e a mulher e embora consista principalmente em uma comunhão dos corpos fundamentada sobre um direito recíproco como o exige seu objetivo principal a procriação esta sociedade se acompanha de uma ajuda e de uma assistência mútuas e além disso também de uma comunhão de interesses necessária não somente para unir seu cuidado e sua afeição mas também a sua descendência comum que tem o direito de ser alimentada e mantida por eles até ser capaz de prover suas próprias necessidades 79 Como a união entre o homem e a mulher tem por fim não somente a procriação mas a perpetuação da espécie esta relação entre o homem e a mulher deve continuar mesmo depois da procriação quanto tempo for necessário para a alimentação e o sustento dos jovens que devem ser mantidos por aqueles que os geraram até que sejam capazes de se deslocar e de se prover por si mesmos Esta regra que o Criador infinitamente sábio impôs à obra de suas mãos percebemos ser obedecida prontamente pelas criaturas inferiores Entre os animais vivíparos que se alimentam de erva a união do macho e da fêmea não dura muito mais que o próprio ato da copulação porque a teta da fêmea é suficiente para alimentar seus filhotes até que eles sejam capazes de pastar o macho apenas gera mas não se ocupa nem da fêmea nem dos filhotes para cujo sustento ele não contribui em nada Entre os animais selvagens a união dura um pouco mais pois a mãe não saberia garantir sua subsistência e alimentar sua numerosa prole de maneira satisfatória graças apenas ao produto de sua própria caça um modo de vida mais laborioso e também mais perigoso do que se alimentar da erva a ajuda do macho é necessária à manutenção de sua família que não pode sobreviver até ser capaz de caçar sozinha a não ser pelo cuidado conjunto do macho e da fêmea O mesmo pode ser observado em todas as aves exceto algumas aves domésticas cuja abundância de alimentos excusa o macho de alimentar e cuidar da jovem ninhada entre eles os filhotes têm de se alimentar dentro do ninho e até serem capazes de se servirem de suas próprias asas para garantirem por si sós sua subsistência o macho e a fêmea continuam a viver juntos 80 Aqui reside a razão principal senão a única pela qual o homem e a mulher são vinculados em uma união mais longa que as outras criaturas ou seja porque a mulher é capaz de conceber e de fato em geral ainda está atendendo a um filho e fica grávida de outro bem antes da criança precedente deixar de depender da ajuda de seus pais para sobreviver e poder conseguir se arranjar sozinha assim o pai que é responsável pelo cuidado daqueles que gerou tem por obrigação continuar em sociedade conjugal com a mesma mulher durante mais tempo que as outras criaturas cujos filhotes são capazes de sobreviverem sozinhos antes do próximo período da procriação e assim têm seus elos conjugais dissolvidos por si e ficam em liberdade até que o himeneu em sua época anual habitual as convoque novamente para escolher novos parceiros Não se pode deixar de admirar aí a sabedoria do grande Criador que tendo dotado o homem de uma capacidade de armazenar para o futuro e também de suprir a necessidade presente tornou necessário que a sociedade do homem e da mulher fosse mais duradoura que aquela do macho e da fêmea entre as outras criaturas de forma que assim sua indústria podia ser estimulada e seus interesses melhor unidos para acumular provisões e mercadorias para sua descendência comum tarefa a que muito tumultuariam as associações incertas ou a facilidade e a freqüência das dissoluções da sociedade conjugal Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 57 81 Mas embora estes sejam para a humanidade entraves que tornam o elo conjugal mais sólido e mais durável entre o homem do que entre as outras espécies animais seria o caso de perguntar o que impede tornar este contrato em que a procriação e a educação estão asseguradas e a herança regulamentada suscetível de dissolução por consentimento mútuo ou a um prazo determinado ou sob certas condições assim como qualquer outro trato voluntário pois nem a natureza da situação nem sua finalidade exigem que ela dure toda a vida falo aqui daqueles que não estão submetidos a qualquer lei positiva que ordena que todos os contratos deste gênero sejam perpétuos 82 Marido e mulher embora tenham um interesse comum possuem entendimentos diferentes e não podem evitar às vezes de terem também vontades diferentes é preciso então que uma determinação final isto é a regra seja colocada em algum lugar e esta cai naturalmente sobre o homem como sendo o mais capaz e o mais forte Mas isso só vale para as questões de seus interesses e bens comuns a mulher mantém a posse livre e completa de tudo aquilo que por contrato é seu direito peculiar e seu marido não tem sobre sua vida mais poder do que ela possui sobre a dele O poder do marido está tão distante daquele de um monarca absoluto que a mulher em muitos casos é livre para se separar dele se assim o autoriza o direito natural ou o contrato entre eles seja este contrato feito por eles próprios em um estado de natureza ou pelos costumes ou leis do país em que vivem e as crianças após uma tal separação ficam com o pai ou com a mãe segundo determina tal contrato 83 Todos os fins do casamento devem ser atingíveis sob um governo político assim como no estado de natureza o magistrado civil não limita o direito ou o poder dos esposos necessários a esses objetivos ou seja procriação e ajuda e assistência mútuas enquanto estão juntos decidindo apenas qualquer controvérsia sobre a questão que possa ocorrer entre o homem e a mulher Caso contrário se este poder de vida e de morte e esta soberania absolutos pertencessem naturalmente ao marido jamais poderia existir casamento em nenhum país em que o marido não esteja investido de uma autoridade absoluta deste tipo Entretanto os fins do casamento não exigem a atribuição de um tal poder ao marido O estado característico da sociedade conjugal não lhe confere este poder mesmo a comunidade dos bens o poder exercido sobre eles a assistência recíproca a obrigação mútua do sustento e os outros aspectos da sociedade matrimonial podem ser suscetíveis de modificações e regulados por aquele contrato que inicialmente os uniu naquela sociedade nada sendo necessário a qualquer sociedade que não seja necessário aos fins para os quais foi feita 84 A sociedade entre pais e filhos e os diferentes direitos e poderes que lhes pertencem respectivamente eu já considerei tão extensamente no capítulo anterior que não há necessidade de mais comentários aqui Creio ter ficado claro que é bem diferente de uma sociedade política 85 Senhor e servo são nomes tão antigos quanto a história mas dados a indivíduos de condições bem diferentes um homem livre tornase servidor de outro quando lhe vende um certo tempo de serviço que realiza em troca de um salário que deve receber e embora isso em geral o coloque dentro da família de seu senhor e recaia sob o jugo da disciplina geral que a comanda isso proporciona ao senhor um poder temporário sobre ele mas não maior que aquele contido no contrato entre eles Mas há uma outra categoria de servidores a que damos o nome particular de escravos que sendo cativos aprisionados em uma guerra justa estão pelo direito de natureza sujeitos à dominação absoluta e ao poder absoluto de seus senhores Como eu disse estes homens tiveram suas vidas capturadas e com elas suas liberdades perderam seus bens e estão no estado de escravidão privados de qualquer propriedade e não podem nesse estado não poder ser considerados parte da sociedade civil cujo principal fim é a preservação da propriedade 86 Consideremos então um chefe de família cercado de todos aqueles que ocupam um lugar subordinado em sua casa esposa filhos empregados e escravos unidos sob o governo doméstico de uma família apesar de toda a semelhança que esta possa apresentar com uma pequena comunidade civil pela ordem ali reinante os CLUBE DO LIVRO LIBERAL empregos e mesmo o número dos participantes ainda permanece muito diferente por sua constituição seu poder e suas finalidades ora a se pensar em uma monarquia cujo pater familias seria o monarca esta monarquia absoluta não exerceria senão um poder muito fragmentado e efêmero pois está evidente como já vimos antes que o chefe da família tem um poder muito distinto e diferentemente limitado tanto no tempo quanto na extensão sobre aquelas várias pessoas que fazem parte dela com exceção dos escravos e haja ou não escravos isto não muda em nada a natureza da família e a extensão de sua autoridade paterna não tem poder legislativo de vida e morte sobre qualquer um de seus membros nem nenhum poder do qual não compartilhe também a mãe de família E ele certamente não tem poder absoluto sobre o conjunto da família uma vez que tem um poder muito limitado sobre cada indivíduo em particular Mas como uma família ou qualquer outro agrupamento humano difere daquele que constitui propriamente a sociedade política é preciso examinar sobretudo em que consiste a sociedade política em si 87 O homem nasceu como já foi provado com um direito à liberdade perfeita e em pleno gozo de todos os direitos e privilégios da lei da natureza assim como qualquer outro homem ou grupo de homens na terra a natureza lhe proporciona então não somente o poder de preservar aquilo que lhe pertence ou seja sua vida sua liberdade seus bens contra as depredações e as tentativas de outros homens mas de julgar e punir as infrações daquela lei em outros quando ele está convencido que a ofensa merece e até com a morte em crimes em que ele considera que a atrocidade a justifica Mas como nenhuma sociedade política pode existir ou subsistir sem ter em si o poder de preservar a propriedade e para isso punir as ofensas de todos os membros daquela sociedade só existe uma sociedade política onde cada um dos membros renunciou ao seu poder natural e o depositou nas mãos da comunidade em todos os casos que os excluem de apelar por proteção à lei por ela estabelecida e assim excluído todo julgamento particular de cada membro particular a comunidade se torna um árbitro e compreendendo regras imparciais e homens autorizados pela comunidade para fazêlas cumprir ela decide todas as diferenças que podem ocorrer entre quaisquer membros daquela sociedade com respeito a qualquer questão de direito e pune aquelas ofensas que qualquer membro tenha cometido contra a sociedade com aquelas penalidades estabelecidas pela lei deste modo é fácil discernir aqueles que vivem daqueles que não vivem em uma sociedade política Aqueles que estão reunidos de modo a formar um único corpo com um sistema jurídico e judiciário com autoridade para decidir controvérsias entre eles e punir os ofensores estão em sociedade civil uns com os outros mas aqueles que não têm em comum nenhum direito de recurso ou seja sobre a terra estão ainda no estado de natureza onde cada um serve a si mesmo de juiz e de executor o que é como mostrei antes o perfeito estado de natureza 88 E assim a comunidade social adquire o poder de estabelecer a punição merecida em correspondência a cada infração cometida entre os membros daquela sociedade que é o poder de fazer leis assim como também o poder de punir qualquer dano praticado a um de seus membros por qualquer um que a ela não pertença que é o poder de guerra e de paz ela o exerce para preservar na medida do possível os bens de todos aqueles que fazem parte daquela sociedade Cada vez que um homem entra na sociedade civil e se torna membro de uma comunidade civil renuncia a seu poder de punir ofensas contra a lei da natureza na realização de seu próprio julgamento particular mas tendo delegado ao legislativo o julgamento de todas as ofensas que podem apelar ao magistrado delegou também à comunidade civil o direito de requerer sua força pessoal sempre que quiser para a execução dos julgamentos da comunidade civil que na verdade são seus próprios julgamentos pois são feitos por ele ou por seu representante Descobrimos aqui a origem dos poderes legislativo e executivo da sociedade civil que é julgar através de leis estabelecidas a que ponto as ofensas devem ser punidas quando cometidas na comunidade social e também determinar por meio de julgamentos ocasionais fundamentados nas presentes circunstâncias do fato a que ponto as injustiças de fora devem ser vingadas em ambos os casos empregando toda a força de todos os membros sempre que for necessário 89 Por isso todas as vezes que um número qualquer de homens se unir em uma sociedade ainda que cada um renuncie ao seu poder executivo da lei da natureza e o confie ao público lá e somente lá existe uma sociedade política ou civil E isso acontece todas as vezes que homens que estão no estado de natureza em qualquer número entram em sociedade para fazerem de um mesmo povo um corpo político único sob um único governo supremo ou todas as vezes que um indivíduo se une e se incorpora a qualquer governo já estabelecido Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 59 Esta sua atitude autoriza a sociedade ou seu corpo legislativo que é a mesma coisa a fazer leis por sua conta quando o bem público o exigir e requerer sua assistência para fazêlas executar assim como decretos dos quais ele mesmo seria o autor Os homens passam assim do estado de natureza para aquele da comunidade civil instituindo um juiz na terra com autoridade para dirimir todas as controvérsias e reparar as injúrias que possam ocorrer a qualquer membro da sociedade civil este juiz é o legislativo ou os magistrados por ele nomeados E onde houver homens seja qual for seu número e sejam quais forem os elos que os unem que não possam recorrer à decisão de um tal poder eles ainda estão no estado de natureza 90 Isto revela de maneira evidente que a monarquia absoluta que alguns homens consideram como a única forma de governo do mundo é na verdade inconsistente com a sociedade civil e por isso não poderia constituir de forma alguma um governo civil Porque a sociedade civil tem por finalidade evitar e remediar aquelas inconveniências do estado de natureza que se tornam inevitáveis sempre que cada homem julga em causa própria instituindo uma autoridade conhecida a que todos daquela sociedade podem apelar sobre qualquer injúria recebida ou controvérsia que possa surgir e que todos da sociedade devem obedecer86 em todo lugar em que há pessoas que não têm a possibilidade de apelar a uma autoridade e decidir qualquer diferença entre eles essas pessoas ainda estão no estado de natureza Tal é também a condição do príncipe absoluto diante daqueles que estão sob sua dominação 91 Pois supondose que o príncipe detenha nele próprio a totalidade do poder legislativo e executivo quando se busca obter a reparação e a indenização de injúrias ou inconveniências das quais o príncipe é o autor ou que foram causadas por sua ordem não se pode conseguir nenhum juiz nem quem quer que seja que possa julgar com autoridade sem injustiça ou parcialidade Tal homem seja qual for seu título Czar ou Grande Senhor ou qualquer outro que se queira permanece no estado de natureza com todos sob sua dominação assim como o resto da humanidade Onde existam dois homens que não possuem uma regra permanente e um juiz comum para apelar na terra para que sejam dirimidas as controvérsias de direito entre eles estes ainda estão no estado de natureza e sujeitos a todas as suas inconveniências com apenas esta lamentável diferença que distingue o súdito ou antes o escravo do príncipe absoluto87 aquele que na condição ordinária de sua natureza permanece livre para julgar seu direito e defendêlo com o máximo de suas forças sempre que sua propriedade for invadida pela vontade e por ordem de seu monarca não somente ele não tem a quem apelar como aqueles que vivem na sociedade devem ter mas se fosse degradado do estado comum das criaturas racionais serlheia negada liberdade de julgar ou defender seu direito assim sendo está exposto a toda a miséria e inconveniências que um homem pode temer daquele que além de estar no desenfreado estado de natureza está também corrompido pela lisonja e armado de poder 92 Aquele que acha que o poder absoluto purifica o sangue do homem e corrige a baixeza da natureza humana precisa ler a história de nosso século ou de qualquer outro para se convencer do contrário Aquele que fosse insolente e nocivo nas florestas da América provavelmente não estaria melhor em um trono onde talvez a ciência e a religião seriam consultados para justificar tudo o que ele quisesse fazer a seus súditos e a espada silenciaria todos aqueles que ousassem questionála Para saber de que vale a proteção proporcionada pela monarquia absoluta que pais de seus povos ele transforma em príncipes e que extremos de felicidade e de 86 O poder público de toda sociedade está acima de qualquer indivíduo que vive na mesma sociedade e o principal uso daquele poder é proporcionar leis a todos que estão sob seu governo a cujas leis em tais casos devemos obedecer a menos que a razão demonstre que a lei da razão ou a lei de Deus ordenam o contrário Hooker Eccl Pol liv i sec 16 87 Para afastar todas essas ofensas mútuas injúrias e erros isto é aquelas que atingem o homem no estado de natureza não havia outro caminho senão promover entre si o acordo e o compromisso estabelecendo algum tipo de governo público e submetendose como súditos daquele a quem concederam autoridade para legislar e governar e através disso proporcionar a paz a tranqüilidade e o bemestar que o restante podia estar buscando Os homens sempre souberam que onde se impõem a força e a injúria eles devem ser defensores de si mesmos Sabem que apesar da faculdade que cada um tem de buscar sua própria comodidade se esta busca for acompanhada de danos causados em prejuízo dos outros não se deve tolerála mas oporse a ela servindose de todos os homens e de todos os meios permitidos Finalmente sabiam que nenhum homem podia racionalmente pretender determinar seus direitos para assegurar sua manutenção segundo a determinação estabelecida por ele pois todo homem é parcial em relação a si próprio e àqueles por quem tem uma afeição particular e por isso esses conflitos e problemas seriam infinitos a menos que consentissem de comum acordo em ser governados em conjunto por alguém de sua escolha pois sem este consentimento nenhum homem teria razão para se investir de autoridade e julgar os outros Hooker ibid sec 10 CLUBE DO LIVRO LIBERAL segurança esta forma de governo permite à sociedade civil quando chega ao máximo da perfeição basta consultar o último relato sobre o Ceilão para vêlo com facilidade 93 Certamente nas monarquias absolutas assim como nas outras formas de governo do mundo os súditos podem invocar a lei e solicitar juízes para a decisão de quaisquer controvérsias e a contenção de qualquer violência que pudesse ocorrer entre os próprios súditos um contra o outro Todos acham isso necessário e acreditam que aquele que tenta abolir este recurso merece ser considerado inimigo declarado da sociedade e da humanidade Mas se este provém de um verdadeiro amor pela humanidade e pela sociedade e essa caridade que todos devemos uns aos outros há razão para duvidar Todo homem que preza seu próprio poder seu lucro ou sua grandeza não apenas pode mas naturalmente deve impedir os animais de ferir ou destruir um outro que trabalha e se esforça apenas para seu prazer e sua vantagem se o senhor cuida deles não é porque os ama mas porque ama a si mesmo e por causa do lucro que eles lhe trazem Por isso se for perguntado que segurança que barreira existe em tal estado contra a violência e a opressão deste chefe absoluto a verdadeira questão dificilmente aparece Estão prontos a lhe dizer que o simples fato de reclamar por segurança merece a morte Eles admitem que devem existir critérios leis e juízes entre os súditos para lhes garantir a paz e a segurança mútua mas quanto ao chefe ele deve ser absoluto e está acima de todas as contingências porque tem o poder de causar mais sofrimento e mais injustiça e tem razão em se servir dele Questionar como se pode estar protegido do agravo ou da injúria naquele lado onde se encontra a mão mais forte é dar ouvidos à voz do faccioso e do rebelde Como se no dia em que os homens deixaram o estado de natureza para entrar na sociedade tivessem concordado em ficar todos submissos à contenção das leis exceto um que ainda conservaria toda a liberdade do estado de natureza ampliada pelo poder e se tornaria desregrado devido à impunidade Isto equivale a acreditar que os homens são tolos o bastante para se protegerem cuidadosamente contra os danos que podem sofrer por parte das doninhas ou das raposas mas ficam contentes e tranqüilos em serem devorados por leões 94 Mas seja o que for que os aduladores possam dizer para divertir os espíritos isso nunca impede os homens de experimentar os sentimentos e quando percebem que um homem não importa sua condição está fora dos limites da sociedade civil a que eles pertencem e que não têm a quem apelar na terra contra qualquer dano que possam receber de sua parte estão inclinados a considerar que estão no estado de natureza em relação a ele e logo que possam cuidarão de se beneficiar daquela proteção e segurança da sociedade civil que se propunha ser sua instituição oficial e visando apenas aqueles que nela entraram Por isso embora talvez no início como será visto mais extensamente na seqüência deste discurso algum homem dotado de grandes qualidades tenha se destacado dos outros e em uma homenagem tácita a sua bondade e às suas virtudes como uma espécie de autoridade natural aceitou o encargo de exercer a autoridade suprema e de arbitrar suas diferenças sem outra proteção além da certeza de sua integridade e sabedoria mas quando o tempo confirmou e como alguns homens nos convenceriam até consagrou os costumes que tiveram sua fonte na inocência negligente e imprevidente das primeiras épocas pondo em cena sucessores de outra têmpera o povo percebendo que seus bens não estavam em segurança sob o governo que existia então88 quando o governo não tem outra finalidade além da preservação da propriedade jamais poderia se sentir seguro quanto ao resto nem se considerar em sociedade civil até que a legislatura fosse depositada em órgãos coletivos chamados Senado Parlamento ou o nome que se quiser Por este meio cada pessoa considerada individualmente igual às outras mesmo às mais humildes ficou sujeita a leis que ela mesma estabelecia como parte integrante do legislativo e ninguém por sua própria autoridade podia escapar à força da lei estabelecida ou por qualquer pretensão de superioridade solicitar isenção de seus próprios erros ou daqueles de seus dependentes Nenhum homem na sociedade civil pode ser imune às suas leis Se houver um homem que se veja no direito de fazer o que lhe apraz sem que se possa evocar qualquer recurso sobre a terra para reparar ou limitar todo o mal que ele fará gostaria que me dissessem se não é verdade que ele permanece no estado de natureza sob sua forma perfeita e que portanto não pode se integrar de maneira 88 No início quando pela primeira vez foi aprovado um certo tipo de regime pode ser que não se tenha pensado melhor na maneira de governar mas que tudo tenha sido deixado a cargo da sabedoria e do discernimento daqueles que deveriam comandar até o dia em que pela experiência perceberam que este regime se revelava em todos os sentidos muito inconveniente e que aquilo que eles imaginaram como uma solução só havia agravado o mal que eles queriam combater Viram que viver segundo a vontade de um único homem resultaria na miséria de todos os outros Isso os obrigou a estabelecer leis que fizessem com que cada um conhecesse de antemão seu dever e as penas previstas para sua transgressão Hooker Eccl Pol liv i sec 10 Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 61 nenhuma à sociedade civil a menos que alguém me diga que estado de natureza e sociedade civil são uma única e mesma coisa mas ainda não encontrei ninguém tão defensor da anarquia para afirmálo89 CAPÍTULO VIII DO INÍCIO DAS SOCIEDADES POLÍTICAS 95 Se todos os homens são como se tem dito livres iguais e independentes por natureza ninguém pode ser retirado deste estado e se sujeitar ao poder político de outro sem o seu próprio consentimento A única maneira pela qual alguém se despoja de sua liberdade natural e se coloca dentro das limitações da sociedade civil é através de acordo com outros homens para se associarem e se unirem em uma comunidade para uma vida confortável segura e pacífica uns com os outros desfrutando com segurança de suas propriedades e melhor protegidos contra aqueles que não são daquela comunidade Esses homens podem agir desta forma porque isso não prejudica a liberdade dos outros que permanecem como antes na liberdade do estado de natureza Quando qualquer número de homens decide constituir uma comunidade ou um governo isto os associa e eles formam um corpo político em que a maioria tem o direito de agir e decidir pelo restante 96 Quando qualquer número de homens através do consentimento de cada indivíduo forma uma comunidade dão a esta comunidade uma característica de um corpo único com o poder de agir como um corpo único o que significa agir somente segundo a vontade e a determinação da maioria Pois o que move uma comunidade é sempre o consentimento dos indivíduos que a compõem e como todo objeto que forma um único corpo deve se mover em uma única direção este deve se mover na direção em que o puxa a força maior ou seja o consentimento da maioria do contrário é impossível ele atuar ou subsistir como um corpo como uma comunidade como assim decidiu o consentimento individual de cada um por isso cada um é obrigado a se submeter às decisões da maioria E por isso naquelas assembléias cujo poder é extraído de leis positivas em que a lei positiva que os habilita a agir não fixa o número estabelecido vemos que a escolha da maioria passa por aquela do conjunto e importa na decisão sem contestação porque tem atrás de si o poder do conjunto em virtude da lei da natureza e da razão 97 E assim cada homem consentindo com os outros em instituir um corpo político submetido a um único governo se obriga diante de todos os membros daquela sociedade a se submeter à decisão da maioria e a concordar com ela do contrário se ele permanecesse livre e regido como antes pelo estado de natureza este pacto inicial em que ele e os outros se incorporaram em uma sociedade não significaria nada e não seria um pacto Será que ele teria a aparência de um pacto Que novo compromisso seria este se o interessado não estava vinculado a outros decretos da sociedade além daqueles que ele achava que lhe convinha e nos quais realmente consentiu Esta seria uma liberdade tão completa quanto a que ele ou qualquer outro possuía antes do pacto no estado de natureza em que nada o impede de consentir em uma decisão qualquer e de se submeter a ela se lhe parecer conveniente 98 Se racionalmente o consentimento da maioria não deve ser encarado como um ato do conjunto e a decisão de cada indivíduo nada exceto o consentimento de cada indivíduo pode transformar qualquer coisa em ato do conjunto pois os problemas de saúde e os impedimentos dos negócios apesar de em número serem muito inferiores ao total de uma comunidade civil necessariamente deixará muitos ausentes da assembléia pública Se acrescentarmos a isso a variedade de opiniões e a diversidade dos interesses que inevitavelmente ocorrem em 89 A lei civil sendo o ato de todo o corpo político tem a primazia sobre cada parte do mesmo corpo Hooker ibid CLUBE DO LIVRO LIBERAL todos os grupos humanos a inserção na sociedade em tais condições seria apenas como a entrada de Catão no teatro tantum ut exiret Uma constituição deste gênero tornaria o poderoso Leviatã mais efêmero que as criaturas mais frágeis e ele seria incapaz de sobreviver ao dia de seu nascimento e isto seria inadmissível e menos ainda que criaturas racionais só desejassem e constituíssem sociedades para depois dissolvêlas Pois quando a maioria não pode decidir pelo resto as pessoas não podem agir como um único corpo e este imediatamente entra em dissolução 99 Por isso é preciso admitir que todos aqueles que saem de um estado de natureza para se unir em uma comunidade abdiquem de todo o poder necessário à realização dos objetivos pelos quais eles se uniram na sociedade em favor da maioria da comunidade a menos que uma estipulação expressa não exija o acordo de um número superior à maioria Para isso basta um acordo que preveja a união de todos em uma mesma sociedade política e os indivíduos que se inserem em uma comunidade política não necessitam de outro pacto Assim o ponto de partida e a verdadeira constituição de qualquer sociedade política não é nada mais que o consentimento de um número qualquer de homens livres cuja maioria é capaz de se unir e se incorporar em uma tal sociedade Esta é a única origem possível de todos os governos legais do mundo 100 A isto eu encontro duas objeções Primeira A história não conhece exemplos de um grupo de homens independentes e iguais entre si que tenham se reunido e desta forma fundado e instituído um governo Segunda Juridicamente é impossível aos homens têlo feito porque todos os homens nasceram sob um governo e por isso devem a ele submeterse e não têm a liberdade de fundar um novo 101 Para a primeira existe uma resposta Não há por que se admirar da história nos fornecer poucas informações sobre os homens que viviam juntos no estado de natureza As inconveniências dessa condição e o amor e a necessidade da sociedade aproximaram em um número qualquer todos aqueles que desejavam ficar juntos mas eles necessariamente teriam de se unir e se associar se desejavam continuar juntos E se não pudermos supor que os homens jamais tenham se encontrado no estado de natureza por não termos ouvido falar de muitos em tal estado podemos também supor que os soldados de Salmanasar ou de Xerxes jamais tenham sido crianças porque pouco sabemos deles até se tornarem homens e se incorporarem aos exércitos Em toda parte o governo antecede aos registros e é raro aparecerem constituições em um povo até que a sociedade civil tenha durado tempo bastante para proporcionar por meio de outras artes mais necessárias sua segurança bemestar e abundância É então que se começa a procurar a história de seus fundadores e a estudar suas origens pois sua memória perdeuse As sociedades civis assim como os indivíduos em geral não têm lembrança de seu nascimento e de sua infância E se sabem qualquer coisa sobre sua origem devem isso a documentos conservados casualmente por outras pessoas E aqueles que temos do início de qualquer política no mundo excetuandose aquela dos judeus em que o próprio Deus se interpôs diretamente e que não defende de forma alguma a dominação paterna são todos exemplos evidentes de que tal início se processou como eu mencionei ou pelo menos sugerem pegadas manifestas neste sentido 102 Demonstra uma forte tendência a negar a evidência dos fatos aquele que não concorda com esta hipótese e não admite que o início de Roma e Veneza tenha ocorrido pela união de vários homens livres e independentes uns dos outros entre os quais não havia superioridade ou sujeição natural E a se acreditar nas palavras de José Acosta ele nos diz que em muitas partes da América não havia qualquer governo Há manifestamente grandes razões para se supor que esses homens diz ele referindose aos habitantes do Peru durante muito tempo não tiveram nem reis nem comunidades civis mas viviam em bandos como atualmente os habitantes da Flórida os Cheriquanas os povos do Brasil e de muitas outras nações mas quando a ocasião lhes surgiu na paz ou na guerra escolheram seus capitães como melhor lhes pareceu l i c 25 E mesmo lá cada homem nasce súdito de seu pai ou do chefe de sua família e já provamos que a obrigação que uma criança tem de se submeter a seu pai não tira dela a liberdade de se unir à sociedade política de sua escolha Mas seja como for é evidente que esses homens eram realmente livres e seja qual for a superioridade que alguns políticos queiram reconhecer hoje em dia em um ou outro dentre eles eles próprios não a reivindicaram eles eram todos iguais Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 63 porque assim o decidiram e assim permaneceram até o dia em que decidiram ter governantes Assim sendo todas as suas sociedades políticas começaram a partir de uma união voluntária e do acordo mútuo de homens que escolhiam livremente seus governantes e suas formas de governo 103 Espero que se admita que aqueles que partiram de Esparta com Palanto mencionados por Justino liv iii c 4 tenham sido homens livres independentes uns dos outros e tenham concordado livremente em instituir um governo e a ele se submeter Assim apresentei vários exemplos da história de povos que viviam livres no estado de natureza e que se reuniram se associaram e iniciaram uma comunidade civil Se fosse possível invocar a insuficiência dos exemplos históricos para provar que os governos não foram nem poderiam ter sido fundados dessa maneira creio que seria melhor os partidários do império paterno pararem de argumentar contra a liberdade natural Pois se eles podem extrair da história tantos exemplos de governos fundamentados sobre o direito paterno embora na melhor das hipóteses os argumentos que concluem o que foi e o que de direito deveria ser não provem muita coisa creio que se pode sem qualquer grande risco darlhes razão Mas se eu pudesse lhes dar um conselho neste caso seria preferível que eles não insistissem tanto em sua busca da origem dos governos como iniciaram de fato pois poderiam constatar que a maior parte deles se fundamenta sobre uma base pouco propícia às intenções que eles promovem e ao tipo de poder que eles defendem 104 Para concluir temos a razão do nosso lado quando afirmamos que os homens são naturalmente livres e os exemplos da história mostram que todos os governos do mundo que tiveram uma origem pacífica foram edificados sobre esta base e devem sua existência ao consentimento do povo Assim há pouco espaço para a dúvida seja sobre qual o lado certo ou sobre a opinião ou a prática da humanidade na fundação inicial dos governos 105 Admito que se olharmos retrospectivamente tão distante quanto a história possa nos conduzir para a origem das comunidades sociais em geral as encontraremos sob o governo e a administração de um homem Também estou pronto a acreditar que nas famílias bastante numerosas para subsistir por si mesmas e conservar sua unidade sem se misturar a outras como freqüentemente ocorre onde há muita terra e poucas pessoas o governo em geral começava na figura do pai Pela lei da natureza o pai tinha o mesmo poder que qualquer outro homem para punir como lhe aprouvesse as transgressões de seus filhos mesmo quando eles já fossem homens e estivessem fora de sua tutela e era muito provável que eles se submetessem a essa punição e por turnos todos se juntassem a ele contra o ofensor dandolhe assim poder para executar sua sentença contra qualquer transgressão e desse modo transformandoo no legislador e governante sobre tudo o que se relacionava a sua família Ninguém merecia mais que ele sua confiança sob sua guarda a afeição paterna garantia seus bens e seus interesses e o hábito de obedecêlo em sua infância tornava mais fácil obedecerlhe que a qualquer outro Portanto se fosse para ter alguém para comandálos uma vez que homens que vivem juntos dificilmente podem passar sem governo quem melhor que o homem que era o pai de todos a menos que a negligência a crueldade ou qualquer outro defeito mental ou físico o tornasse incapaz para a função Entretanto quando o pai morria e deixava um herdeiro que por insuficiência de idade de sabedoria ou de qualquer outra qualidade fosse menos capaz de governar ou então quando várias famílias se reuniam e decidiam continuar juntas não há dúvida que usavam sua liberdade natural para escolher aquele que lhes parecia mais capaz e mais apto a governálos bem Assim encontramos os povos da América que vivendo fora do alcance das guerras de conquista e da dominação invasora dos dois grandes impérios do Peru e do México desfrutavam de sua liberdade natural embora coeteris paribus em geral preferissem o herdeiro de seu rei morto mas se de alguma maneira o considerassem fraco ou incapaz eles o depunham e escolhiam para seu governante o mais forte e o mais corajoso 106 Se nos reportamos o mais longe que os registros nos permitam encontrar um relato do povoamento do mundo e da história das nações veremos que em geral o governo está nas mãos de um só homem mas isso não anula o que eu afirmo ou seja que o início da sociedade política depende do consentimento dos indivíduos de se unir e compor uma sociedade e que quando estão assim associados podem instituir a forma de governo que melhor lhes convier Mas como isso tem induzido os homens a erros e a pensar que por natureza todo governo CLUBE DO LIVRO LIBERAL era monárquico e pertencia ao pai pode não ser fora de propósito considerar aqui por que os povos no início em geral determinaram este regime que embora a superioridade do pai talvez pudesse ter suscitado a primeira instituição de algumas comunidades sociais e ter colocado no início o poder nas mãos de uma só pessoa porém é evidente que a razão que manteve a forma de governo sobre uma só pessoa não foi qualquer estima ou respeito à autoridade paterna pois todas as pequenas monarquias ou seja quase todas as monarquias que ainda estão em seu início permanecem em geral pelo menos em certas circunstâncias eletivas 107 No começo então na origem do mundo a autoridade do pai durante a infância dos seus descendentes habituouos ao comando de um só homem e ensinoulhes que quando este era exercido com solicitude e habilidade com afeição e amor para com aqueles que lhe eram submissos isso bastava para proporcionar aos homens toda a felicidade política que eles buscavam em sociedade Não admira que eles se estabelecessem e prosseguissem naquela forma de governo a que desde sua infância estavam acostumados e que por experiência consideravam tranqüila e segura Se a isso acrescentarmos que a monarquia se apresentou simples e clara a homens que nunca haviam sido instruídos em formas de governo e a quem jamais a ambição ou a insolência do poder havia ensinado a se precaver contra as usurpações da prerrogativa ou as inconveniências do poder absoluto que este regime sucessivamente se arriscava a reivindicar e lhes impor não é de se estranhar que eles não se preocupassem em descobrir procedimentos que contivessem quaisquer exorbitâncias por parte daqueles a quem escolheram para seus chefes e equilibrassem o poder do governo repartindoo entre diferentes mãos Eles não haviam conhecido a opressão de uma dominação tirânica e o espírito da época suas possessões ou seu modo de vida que proporcionavam pouca substância para a cobiça ou para a ambição também não lhes dava razão para temêla ou prevenila por isso não surpreende que eles tenham se submetido a um governo cuja estrutura não somente era a mais simples e a mais clara mas também a mais adequada a seu atual estado e condição que os instava muito mais a se defender contra as invasões e as depredações do estrangeiro que a multiplicar as leis A igualdade de um modo de vida simples e modesto confinando seus desejos dentro dos limites da pequena propriedade de cada homem despertava poucas controvérsias e por isso não havia necessidade de muitas leis para decidilas ou uma variedade de funcionários para dirigir o processo ou cuidar da execução da justiça visto não haver delitos ou delinqüentes Pois devese supor que naquela época aqueles que se quisessem bem o bastante para se reunir em sociedade deviam ter alguma familiaridade e amizade uns pelos outros alguma confiança mútua e não deveriam ter apreensões a não ser a respeito de estranhos não um do outro por isso imaginase que sua principal preocupação fosse como se colocarem ao abrigo de forças estrangeiras Era natural que se submetessem a uma estrutura de governo que melhor atingisse este resultado e escolhessem o homem mais sábio e mais corajoso para comandálos em suas guerras protegêlos contra seus inimigos e sobretudo dessa maneira se tornar seu chefe 108 Vemos assim que os reis dos índios da América que é o modelo das primeiras épocas na Ásia e na Europa quando havia muito poucos habitantes para o território e a ausência de pessoas e de dinheiro não davam aos homens a tentação de ampliar sua posse de terra ou de lutar por uma extensão maior são pouco mais que generais de seus exércitos e embora tenham o comando absoluto na guerra no interior de seu país e em tempo de paz exercem uma dominação muito pequena e têm uma soberania muito moderada as decisões sobre paz e guerra em geral cabem ao povo ou a um conselho Somente a guerra que não admite pluralidade de dirigentes devolve naturalmente o comando à autoridade única do rei 109 Mesmo em Israel a principal função de seus juízes e de seus primeiros reis parece ter sido a de capitães de guerra e comandantes de seus exércitos isto além do que significa estar ou não à frente do povo que era marchar para a guerra e voltar para casa na liderança de seus exércitos aparece claramente na história de Jefté Quando os amonitas lutavam contra Israel os galaditas atemorizados enviaram uma delegação a Jefté um bastardo de sua família que eles haviam expulso e fizeram com ele um acordo em que se comprometiam a fazer dele seu chefe se ele os ajudasse contra os amonitas Cumpriram o acordo com as seguintes palavras E o povo o nomeou chefe e comandante Juízes 1111 o que ao que parece era função do juiz Ele foi juiz de Israel Juízes 127 ou seja foi seu comandantegeral durante seis anos Quando Jotão censura os siquemitas e lhes recorda sua Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 65 dívida para com Gedeão que foi seu juiz e seu chefe ele lhes diz que Ele lutou por vós arriscou sua vida por vós e vos salvou das mãos de Madiã Juízes 917 Nenhuma palavra a seu respeito exceto sobre o que fez como general e na verdade isso é tudo o que existe em sua história ou naquela do restante dos juízes Abimelec em particular é chamado de rei embora ele tivesse sido no máximo seu general E quando o povo de Israel cansado da má conduta dos filhos de Samuel desejou um rei como todas as nações para julgálos e para marchar à sua frente e travar as suas batalhas 1Sm 820 Deus concordou com seu desejo e disse a Samuel Eu te mandarei um homem e tu o ungirás como chefe do meu povo de Israel para que ele o salve das mãos dos filisteus 916 Como se a única tarefa de um rei fosse conduzir seus exércitos e lutar em sua defesa em conformidade com isso na coroação de Saul Samuel verte sobre ele um frasco de óleo e lhe declara que o Senhor te ungiu como chefe de sua herança 101 Por isso depois de Saul ter sido solenemente escolhido e aclamado rei pelas tribos em Masfa aqueles que não o queriam como rei não fizeram outra objeção senão esta Como este homem vai nos salvar versículo 27 isto significava dizer Este homem não é capaz de reinar sobre nós pois lhe falta competência e firmeza na guerra para poder nos defender E quando Deus resolveu transferir o governo a Davi usou as seguintes palavras Mas agora o teu reinado não se manterá O Senhor buscou nele um homem segundo o seu próprio coração e o Senhor lhe mandou que fosse o capitão de Seu povo 1314 como se toda a autoridade real consistisse em lhe servir de general por isso quando as tribos que haviam permanecido fiéis à família de Saul e se opunham ao reino de Davi foram até Hebron para lhe oferecer sua submissão afirmaram entre outras justificativas que deviam se submeter a ele porque ele já era seu rei de fato na época de Saul e portanto não havia motivo para não reconhecerem sua realeza agora Disseram Já há tempo quando Saul reinava sobre nós foste tu o iniciador e o executor dos grandes feitos de Israel e o Senhor te disse Tu alimentarás meu povo de Israel e tu serás o capitão de Israel 2Sm 52 110 Assim se uma família se desenvolveu por graus até se tornar uma comunidade civil e a autoridade paterna foi mantida na pessoa do filho mais velho tendo cada um por sua vez crescido sob ela tacitamente a ela se submeteu este sistema simples e justo não ofendia ninguém e todos concordaram até que o tempo parece tê lo confirmado em instituir um direito de sucessão por preceito ou quando várias famílias ou os descendentes de várias famílias que o acaso a vizinhança ou os negócios juntaram e uniram em uma sociedade viu surgir a necessidade de um general cuja conduta pudesse defendêlos contra seus inimigos na guerra e a grande confiança que a inocência e sinceridade dessa época pobre mas virtuosa como são quase todas aquelas que iniciam governos destinados a uma existência durável neste mundo depositava em seus semelhantes incitaram os primeiros fundadores das comunidades civis a geralmente depositar o poder nas mãos de um só homem sem qualquer outra limitação ou restrição expressas exceto o exigido pela natureza da coisa e pelo objetivo do governo Seja por qual dessas duas razões for que inicialmente o poder foi confiado a uma só pessoa o certo é que isso só ocorreu tendo em vista o bemestar e a segurança públicos e aqueles que detinha m o poder no início das comunidades civis serviam habitualmente a este propósito Se eles não tivessem agido assim as jovens sociedades não teriam subsistido Sem tais pais carinhosos e preocupados com o bemestar público todos os governos teriam afundado na fragilidade e nas fraquezas de sua infância e príncipe e povo teriam logo perecido juntos 111 Mas a idade do ouro antes que a vã ambição e o amor sceleratus habendi a concupiscência maldosa corrompesse os espíritos dos homens em uma ilusão de poder e honra verdadeiros possuía mais virtudes e conseqüentemente melhores governantes e também súditos menos viciosos por um lado não se forçava a prerrogativa para oprimir o povo por outro conseqüentemente não se contestava qualquer privilégio seja para diminuir ou para restringir o poder do magistrado e portanto nenhuma disputa havia entre os chefes e o povo sobre os governantes ou o governo90 Nas épocas seguintes a ambição e o luxo iriam manter e aumentar o poder sem executar a tarefa que lhe havia sido destinada e auxiliados pela lisonja esses vícios ensinaram os príncipes a ter interesses distintos e separados daqueles de seus povos e os homens acharam necessário examinar mais 90 No início após a aprovação desta ou daquela forma particular de regime pode ser que nada mais tenha sido considerado com respeito à maneira de governar mas que tudo tenha sido deixado a cargo da sabedoria e do discernimento daqueles que deviam comandar até o dia em que por experiência descobriram que esse sistema era muito inconveniente para todas as partes pois a coisa que eles haviam imaginado como uma solução na verdade apenas aumentou o ferimento que ela devia ter curado Perceberam que a causa de toda a miséria dos homens foi terem vivido segundo a vontade de um só homem Isso os obrigou a estabelecer leis que fazem com que cada um conheça previamente seu dever e as penas previstas para sua transgressão Hooker Eccl Pol liv i sec 10 CLUBE DO LIVRO LIBERAL cuidadosamente a origem e os direitos do governo e descobrir maneiras de conter as exorbitâncias e evitar os abusos daquele poder que tendo confiado às mãos de outro apenas pensando em seu próprio interesse perceberam que era utilizado para lhes causar mal 112 Vemos assim como é provável que o povo naturalmente livre e por seu próprio consentimento submetido ao comando de seu pai ou reunido a partir de diferentes famílias para instituir um governo tenha em geral depositado o poder nas mãos de um só homem e optado por ficar submisso à vontade de uma única pessoa sem ao menos estabelecer condições expressas que limitassem ou regulassem seu poder pois consideravamse seguros sob a guarda de sua prudência e de sua honestidade Apesar disso as pessoas jamais sonharam que a monarquia fosse jure divino o que a humanidade só começou a ouvir falar quando nos foi revelado pela divindade da época contemporânea nem jamais permitiram que o poder paterno tivesse um direito de dominação ou ser a base de todo governo Isso deve bastar para mostrar que tanto quanto a história esclarece temos razão para concluir que todos os governos iniciados pacificamente foram fundamentados no consentimento do povo Eu digo pacificamente porque adiante terei ocasião de falar em conquista que alguns consideram como uma maneira de iniciar os governos A outra objeção que alguns insistem em fazer contra a maneira como explico o início da política é a seguinte 113 Todos os homens nasceram sob um ou outro tipo de governo portanto é impossível que jamais tenham sido livres e tenham tido a liberdade de se unir e fundar um novo governo ou tenham sido capazes de instituir um governo legítimo Se este argumento é válido eu pergunto como tantas monarquias legítimas se formaram no mundo Partindose desta hipótese se alguém puder me mostrar um único homem em qualquer época da história do mundo livre para iniciar uma monarquia legítima eu me junto a ele para mostrar na mesma época dez outros homens livres para se unirem e iniciarem um novo governo sob a forma real ou sob qualquer outra Isto demonstra que a partir do momento em que se encontra um único homem que nascido sob a autoridade de outro suficientemente livre para adquirir o direito de comandar outros em um império novo e distinto todos os homens que nasceram sob a autoridade de outro podem da mesma forma ser livres e se tornarem um governante ou um súdito em um governo distinto e separado Assim segundo seu próprio princípio todos os homens são livres não importa sua condição de nascimento ou só existiria no mundo um único príncipe legítimo um único governo legítimo Então só lhes resta nos mostrar qual é ele e quando o fizerem não duvido que toda a humanidade facilmente concordará em obedecerlhe 114 Embora bastasse responder a sua objeção para mostrar que ela os envolve nas mesmas dificuldades em que se perderam aqueles contra os quais eles a utilizaram eu me esforçarei para revelar um pouco mais da fragilidade deste argumento Todos os homens dizem eles nasceram sob governo e por isso não podem ter a liberdade de iniciar um novo Cada um nasce súdito de seu pai ou de seu príncipe e está por isso sob o vínculo perpétuo da submissão e da obediência Os homens jamais admitiram nem reconheceram que uma submissão natural deste gênero que os obrigasse a este ou aquele desde o nascimento fosse suscetível de se perpetuar sem o seu consentimento como uma submissão a eles e a seus herdeiros 115 A história sacra e profana está repleta de exemplos de homens que se afastaram e retiraram sua obediência da jurisdição sob a qual nasceram e da família ou comunidade onde foram criados e instituíram novos governos em outros locais isso explica o surgimento daquelas inúmeras pequenas comunidades sociais no início dos tempos e que sempre se multiplicaram enquanto havia espaço bastante até que os mais fortes ou os mais afortunados absorvessem os mais fracos depois aquelas que eram grandes se fragmentaram e se desagregaram em domínios menores todos eles testemunhando contra a soberania paterna e provando claramente que não foi sobre o direito natural do pai a seus herdeiros que os governos no início se fundamentaram pois seria impossível que partindose daí houvessem tantos pequenos reinados só haveria uma monarquia universal se os homens não Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 67 tivessem tido a liberdade de se separar de suas famílias e de seu governo fosse o que fosse que estivesse estabelecido para constituir comunidades civis distintas e outros governos como melhor lhes aprouvesse 116 Esta foi a prática do mundo desde suas origens até os dias de hoje quando os homens nascem sob sistemas constituídos e antigos que possuem leis estabelecidas e formas definidas de governo isso não coloca mais obstáculo a sua liberdade do que se tivessem nascido nas florestas entre os habitantes que as percorrem sem territórios proibidos ou caminhos traçados Aqueles que quisessem nos convencer de que por termos nascido sob qualquer governo estamos naturalmente submetidos a ele e não temos mais qualquer direito ou pretensão à liberdade do estado de natureza não têm outra razão com exceção daquela do poder paterno que já refutamos para apresentar exceto aquela de que nossos pais ou nossos ancestrais renunciaram a sua liberdade natural e se comprometeram e a sua família a uma sujeição perpétua ao governo a que se submeteram É verdade que todos os compromissos e todas as promessas que alguém faz por sua própria conta não obrigam nem poderiam obrigar por nenhum contrato a seus filhos ou sua posteridade Pois seu filho ao atingir a maioridade é tão livre quanto seu pai e nenhum ato do pai pode tirar a liberdade do filho o mesmo valendo para qualquer outra pessoa Ele pode vincular à terra que ele desfruta como súdito de uma comunidade civil condições que obriguem seu filho a se juntar à mesma comunidade se quiser desfrutar daquelas posses que eram de seu pai pois como aquele bem é propriedade de seu pai ele pode dispor dele ou doálo como bem entender 117 E isso normalmente tem ocasionado erro na questão pois como as comunidades civis não permitem que qualquer parte de seus domínios seja desmembrada ou desfrutada por ninguém que não pertença àquela comunidade o filho em geral não pode desfrutar das posses de seu pai exceto nas condições em que este o fez ou seja tornandose um membro da sociedade assim fazendo submetese imediatamente ao governo que ali encontra estabelecido da mesma forma que qualquer outro súdito daquela comunidade Assim os homens livres que nascem sob um governo não podem se tornar membros da comunidade a menos que consintam nisso mas o fazem em separado cada um por sua vez à medida que atingem a maioridade e não em conjunto mas como as pessoas não têm conhecimento disso acreditando que o consentimento está implícito ou não é necessário concluem que são súditos por natureza assim como são homens 118 Entretanto é evidente que os governos entendem isso de outra maneira não reivindicam nenhum poder sobre o filho em virtude daquele que exercem sobre o pai não consideram os filhos como seus súditos porque os pais o eram Se um súdito da Inglaterra tem um filho com uma mulher inglesa na França de quem ele é súdito Não do rei da Inglaterra porque ele deve obter uma autorização que lhe confere o privilégio nem do rei da França senão como seu pai pode ter a liberdade de leválo embora e criálo onde quiser E quem jamais será julgado como traidor ou desertor se ele deixou um país ou lutou contra ele ape nas por ter nascido nele de pais que ali eram estrangeiros A prática dos próprios governos e a lei da razão plena estabelecem então claramente que uma criança não nasce súdito de nenhum país ou governo Permanece sob a tutela e a autoridade de seu pai até que atinja a idade do discernimento e só a partir daí ele é um homem livre com liberdade para escolher o governo ao qual vai se submeter o corpo político ao qual vai se unir Se o filho de um homem inglês nascido na França pode fazêlo com toda a liberdade é evidente que a circunstância de seu pai ser súdito do reino da Inglaterra absolutamente não o vincula a este país nem ele está obrigado por qualquer pacto realizado por seus ancestrais Perguntase então por que seu filho não teria direito à mesma liberdade nascesse onde nascesse O poder que o pai exerce naturalmente sobre seus filhos é o mesmo independente do lugar de seu nascimento e os vínculos das obrigações naturais não são determinados pelos limites jurídicos dos reinados e das comunidades civis 119 Como já foi mostrado todo homem é naturalmente livre e nada pode submetêlo a qualquer poder sobre a terra salvo por seu próprio consentimento é preciso portanto considerar em que condições a declaração pela qual um indivíduo faz conhecer seu consentimento será considerada como suficiente para sujeitálo às leis de um governo qualquer Há uma distinção comum entre consentimento expresso e consentimento tácito que nos interessa no momento Ninguém duvida que o consentimento expresso manifestado por qualquer homem ao entrar em qualquer sociedade faz dele um membro perfeito daquela sociedade um súdito daquele governo A CLUBE DO LIVRO LIBERAL dificuldade é saber em que caso é preciso admitir a existência de um consentimento tácito e até que ponto obriga isto é em que medida se pode considerar que um indivíduo consentiu em um governo qualquer e assim está a ele submetido se ele não prestou qualquer declaração nesse sentido A isto eu respondo que qualquer homem que tenha qualquer posse ou desfrute de qualquer parte dos domínios de qualquer governo manifesta assim seu consentimento tácito e enquanto permanecer nesta situação é obrigado a obedecer as leis daquele governo como todos os outros que lhe estão submetidos pouco importa se ele possui terras em plena propriedade transmissíveis para sempre a seus herdeiros ou se ele ocupa somente um alojamento por uma semana ou se desfruta simplesmente da liberdade de ir e vir nas estradas e na verdade isso acontece ainda que ele seja apenas qualquer um dentro dos territórios daquele governo 120 Para melhor entender esta questão uma consideração se impõe cada vez que um homem se incorpora a qualquer comunidade civil pelo simples fato dele se associar também anexou e submete à comunidade aquelas posses que ele tem ou vai adquirir que ainda não pertencem a qualquer governo pois seria uma contradição direta que alguém entrasse em sociedade com outros para assegurar e regulamentar a propriedade mas que suas terras cuja propriedade deve ser regida pelas leis da sociedade estejam fora da jurisdição daquele governo do qual ele próprio o proprietário da terra é um súdito Pelo mesmo ato portanto pelo qual alguém une sua pessoa que antes era livre a qualquer comunidade social ele une também a ela suas posses que antes eram livres e ambos pessoa e posse tornamse sujeitos ao governo e ao domínio daquela comunidade social enquanto ela durar Quem quer que por herança aquisição autorização ou qualquer outra maneira desfrutar de qualquer parte da terra anexada e sob a jurisdição do governo daquela comunidade deve assumila nas condições em que ela está apoiada ou seja deve submeterse ao governo da comunidade social sob cuja jurisdição ela se encontra como qualquer outro súdito 121 Mas como o governo tem uma jurisdição direta apenas sobre a terra e só atinge seu dono antes dele se incorporar à sociedade quando ele reside nela e dela desfruta a obrigação que qualquer indivíduo tem de se submeter ao governo em virtude deste uso da terra começa e termina com ele de forma que quando o dono seja por doação venda ou outro modo qualquer deixa a terra em questão tem liberdade de partir e se incorporar a qualquer outra comunidade social ou se unir a outras pessoas para iniciar uma nova comunidade in vacuis locis em qualquer parte do mundo onde encontrem um local livre e sem dono Entretanto aquele que por um acordo propriamente dito e qualquer declaração expressa deu seu consentimento para fazer parte de qualquer comunidade social está perpétua e indispensavelmente obrigado a ser e permanecer seu súdito e nunca poderá ficar de novo na liberdade do estado de natureza a menos que alguma calamidade provoque a dissolução do governo a que ele estava submetido ou que qualquer ato público o impeça de continuar sendo um de seus membros 122 A submissão às leis de qualquer país e a vida pacífica ao abrigo dos privilégios e da proteção que elas asseguram não fazem de um homem membro daquela sociedade Isto é apenas uma proteção que deve ser prestada àquele que penetra fora do estado de guerra nos territórios que pertencem a qualquer governo e em toda a extensão onde vigoram suas leis Mas isso não torna um homem membro daquela sociedade súdito perpétuo daquela comunidade social assim como não tornaria um homem súdito de outro em cuja família ele achou conveniente permanecer algum tempo entretanto durante a duração dessa temporada seria obrigado a se comportar de acordo com as leis vigentes e se submeter ao governo ali encontrado Podemos ver que os estrangeiros que passam sua vida inteira sob um outro governo e gozam de seus privilégios e de sua proteção são obrigados ainda que por uma questão de consciência a se submeter a sua administração como qualquer outro cidadão mas nem por isso se tornam súditos ou membros daquela comunidade social Nada poderia tornálo a menos que ele entrasse efetivamente nela por meio de um compromisso especial e de uma promessa e um acordo explícitos Esta é a minha opinião sobre o início das sociedades políticas e sobre o consentimento que torna qualquer um membro de uma comunidade social seja ela qual for Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 69 CAPÍTULO IX DOS FINS DA SOCIEDADE POLÍTICA E DO GOVERNO 123 Se o homem é tão livre no estado de natureza como se tem dito se ele é o senhor absoluto de sua própria pessoa e de seus bens igual aos maiores e súdito de ninguém por que renunciaria a sua liberdade a este império para sujeitarse à dominação e ao controle de qualquer outro poder A resposta é evidente ainda que no estado de natureza ele tenha tantos direitos o gozo deles é muito precário e constantemente exposto às invasões de outros Todos são tão reis quanto ele todos são iguais mas a maior parte não respeita estritamente nem a igualdade nem a justiça o que torna o gozo da propriedade que ele possui neste estado muito perigoso e muito inseguro Isso faz com que ele deseje abandonar esta condição que embora livre está repleta de medos e perigos contínuos e não é sem razão que ele solicita e deseja se unir em sociedade com outros que já estão reunidos ou que planeja m se unir visando a salvaguarda mútua de suas vidas liberdades e bens o que designo pelo nome geral de propriedade 124 Por isso o objetivo capital e principal da união dos homens em comunidades sociais e de sua submissão a governos é a preservação de sua propriedade O estado de natureza é carente de muitas condições Em primeiro lugar ele carece de uma lei estabelecida fixada conhecida aceita e reconhecida pelo consentimento geral para ser o padrão do certo e do errado e também a medida comum para decidir todas as controvérsias entre os homens Embora a lei da natureza seja clara e inteligível para todas as criaturas racionais como os homens são tendenciosos em seus interesses além de ignorantes pela falta de conhecimento deles não estão aptos a reconhecer o valor de uma lei que eles seriam obrigados a aplicar em seus casos particulares 125 Em segundo lugar falta no estado de natureza um juiz conhecido e imparcial com autoridade para dirimir todas as diferenças segundo a lei estabelecida Como todos naquele estado são ao mesmo tempo juízes e executores da lei da natureza e os homens são parciais no julgamento de causa própria a paixão e a vingança se arriscam a conduzilos a muitos excessos e violência assim como a negligência e a indiferença podem também diminuir seu zelo nos casos de outros homens 126 Em terceiro lugar no estado de natureza freqüentemente falta poder para apoiar e manter a sentença quando ela é justa assim como para impor sua devida execução Aqueles que são ofendidos por uma injustiça dificilmente se absterão de remediála pela força se puderem esta resistência muitas vezes torna o castigo perigoso e fatal para aqueles que o experimentam 127 Assim apesar de todos os privilégios do estado de natureza a humanidade desfruta de uma condição ruim enquanto nele permanece procurando rapidamente entrar em sociedade É muito raro encontrarmos homens em qualquer número permanecendo um tempo apreciável nesse estado As inconveniências a que estão expostos pelo exercício irregular e incerto do poder que cada homem possui de punir as transgressões dos outros faz com que eles busquem abrigo sob as leis estabelecidas do governo e tentem assim salvaguardar sua propriedade É isso que dispõe cada um a renunciar tão facilmente a seu poder de punir porque ele fica inteiramente a cargo de titulares nomeados entre eles que deverão exercêlo conforme as regras que a comunidade ou aquelas pessoas por ela autorizadas adotaram de comum acordo Aí encontramos a base jurídica inicial e a gênese dos poderes legislativo e executivo assim como dos governos e das próprias sociedades 128 No estado de natureza sem falar da liberdade que tem de desfrutar prazeres inocentes o homem detém dois poderes O primeiro é fazer o que ele acha conveniente para sua própria preservação e para aquela dos outros dentro dos limites autorizados pela lei da natureza em virtude desta lei comum a todos cada homem forma com o resto da humanidade uma única comunidade uma única sociedade distinta de todas as outras CLUBE DO LIVRO LIBERAL criaturas E não fosse a corrupção e os vícios de indivíduos degenerados não haveria nenhuma necessidade dos homens se separarem desta grande comunidade natural nem fazerem acordos particulares para se associarem em associações menores e divididas O outro poder que o homem tem no estado de natureza é o poder de punir os crimes cometidos contra aquela lei A ambos ele renuncia quando se associa a uma sociedade política privada se posso chamála assim ou particular para se incorporar a uma comunidade civil separada do resto da humanidade 129 O primeiro poder ou seja aquele de fazer o que julga conveniente para a sua própria preservação e a do resto da humanidade ele deixa a cargo da sociedade para que ela o regulamente através de leis na medida em que isto se faça necessário para a sua preservação e a do restante daquela sociedade estas leis da sociedade em muitos pontos restringem a liberdade que ele possuía pela lei da natureza 130 Ao segundo o poder de punir ele renuncia inteiramente e empenha sua força natural que antes podia empregar como bem entendesse por sua própria autoridade para fazer respeitar a lei da natureza para ajudar o poder executivo da sociedade conforme a lei deste exigir Ele se encontra agora em um novo estado onde vai desfrutar de muitas vantagens graças ao trabalho a assistência e à companhia de outros na mesma comunidade assim como a proteção da força coletiva ele também tem de renunciar a grande parte de sua liberdade natural de prover suas necessidades em toda a medida em que o bem a prosperidade e a segurança da sociedade o exigir o que não somente é necessário mas justo visto que os outros membros da sociedade fazem o mesmo 131 Mas embora os homens ao entrarem na sociedade renunciem à igualdade à liberdade e ao poder executivo que possuíam no estado de natureza que é então depositado nas mãos da sociedade para que o legislativo deles disponha na medida em que o bem da sociedade assim o requeira cada um age dessa forma apenas com o objetivo de melhor proteger sua liberdade e sua propriedade pois não se pode supor que nenhuma criatura racional mude suas condições de vida para ficar pior e não se pode jamais presumir que o poder da sociedade ou o poder legislativo por ela instituído se estenda além do bem comum ele tem a obrigação de garantir a cada um sua propriedade remediando aqueles três defeitos acima mencionados que tornam o estado de natureza tão inseguro e inquietante Seja quem for que detenha o poder legislativo ou o poder supremo de uma comunidade civil deve governar através de leis estabelecidas e permanentes promulgadas e conhecidas do povo e não por meio de decretos improvisados por juízes imparciais e íntegros que irão decidir as controvérsias conforme estas leis e só deve empregar a força da comunidade em seu interior para assegurar a aplicação destas leis e no exterior para prevenir ou reparar as agressões do estrangeiro pondo a comunidade ao abrigo das usurpações e da invasão E tudo isso não deve visar outro objetivo senão a paz a segurança e o bem público do povo CAPÍTULO X DAS FORMAS DA COMUNIDADE CIVIL 132 Já foi mostrado que quando os homens se unem pela primeira vez em sociedade a maioria detém naturalmente todo o poder comunitário que ela pode utilizar para de tempos em tempos fazer leis para a comunidade e para providenciar o cumprimento destas leis por funcionários por ela nomeados neste caso a forma de governo é uma democracia perfeita mas ela pode também colocar o poder de fazer as leis nas mãos de um grupo selecionado de homens e de seus herdeiros ou sucessores e então tratase de uma oligarquia pode também colocálo nas mãos de um só homem o que vem a ser uma monarquia se ela o entrega a este homem e a seus herdeiros é uma monarquia hereditária se o entrega a ele apenas em vida e após sua morte retorna a ela o Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 71 poder exclusivo de nomear um sucessor é uma monarquia eletiva A partir desses elementos a comunidade pode combinar e misturar formas de governo como melhor lhe parecer Se a maioria começa por confiar o poder legislativo a uma só pessoa ou a várias mas apenas durante sua vida ou por um período determinado após o qual o poder supremo a ela retorna uma vez que a comunidade o recuperou pode dispor dele de novo e colocálo nas mãos que lhe aprouverem e assim constituir uma nova forma de governo Como a forma de governo depende da atribuição do poder supremo ou seja do legislativo é impossível conceber que um poder inferior possa prescrever a um superior ou que um outro além do poder supremo faça as leis a maneira de dispor o poder de fazer as leis determina a forma da comunidade civil 133 Deve estar sempre claro que o que eu entendo por comunidade social não é uma democracia ou qualquer forma de governo mas uma comunidade independente que os latinos qualificam pela palavra civitas à qual a expressão que melhor corresponde em nossa língua é comunidade social commonwealth que designa da forma mais adequada este tipo de sociedade humana o que não acontece em inglês com as palavras comunidade ou cidade pois pode haver comunidades subordinadas em um governo e cidade entre nós tem um significado completamente diferente de comunidade civil Por isso para evitar ambigüidade solicito a permissão de empregar a expressão comunidade civil nesse sentido a qual constato ter sido utilizada pelo Rei James I e que eu penso ser a acepção exata se alguém discordar consinto que a substitua por um termo melhor CAPÍTULO XI DA EXTENSÃO DO PODER LEGISLATIVO 134 O grande objetivo dos homens quando entram em sociedade é desfrutar de sua propriedade pacificamente e sem riscos e o principal instrumento e os meios de que se servem são as leis estabelecidas nesta sociedade a primeira lei positiva fundamental de todas as comunidades políticas é o estabelecimento do poder legislativo como a primeira lei natural fundamental que deve reger até mesmo o próprio legislativo é a preservação da sociedade e na medida em que assim o autorize o poder público de todas as pessoas que nela se encontram O legislativo não é o único poder supremo da comunidade social mas ele permanece sagrado e inalterável nas mãos em que a comunidade um dia o colocou nenhum edito seja de quem for sua autoria a forma como tenha sido concebido ou o poder que o subsidie tem a força e a obrigação de uma lei a menos que tenha sido sancionado pelo poder legislativo que o público escolheu e nomeou Pois sem isso faltaria a esta lei aquilo que é absolutamente indispensável para que ela seja uma lei ou seja o consentimento da sociedade acima do qual ninguém tem o poder de fazer leis91 exceto por meio do seu próprio consentimento e pela autoridade que dele emana Por isso toda a obediência que pode ser exigida de alguém mesmo em virtude dos vínculos mais solenes termina afinal neste poder supremo e é dirigida por aquelas leis que ele adota jamais um membro da sociedade pelo efeito de um juramento que o ligaria a qualquer poder estrangeiro ou a qualquer poder subordinado na ordem interna pode ser dispensado de sua obediência ao legislativo e agir por sua própria conta da mesma forma também não é obrigado a qualquer obediência contrária às leis adotadas ou que ultrapasse seus termos seria ridículo imaginar que um poder que não é o poder supremo na sociedade possa se impor a quem quer que seja 91 Como o poder legítimo de legislar para comandar sociedades humanas inteiras pertence como propriedade particular a estas mesmas sociedades em sua totalidade cada vez que um príncipe ou um potentado da terra seja de que espécie for o exerce por sua própria iniciativa e não por delegação expressa imediata e pessoalmente recebida de Deus ou por qualquer mandato que emana desde o início do consentimento daqueles sobre os quais ele legisla isso não é melhor que uma mera tirania Portanto as leis não têm valor se não recebem a aprovação pública Hooker Eccl Pol liv i sec 10 Sobre este ponto então devemos observar que tais homens não têm por natureza o poder completo e perfeito para comandar multidões humanas inteiras e por isso não poderemos depender das ordens de ninguém se de alguma maneira não consentirmos nisso Nós aceitamos ser comandados quando a sociedade de que fazemos parte consentiu ela própria em qualquer época passada sem revogar depois este consentimento através do mesmo acordo universal As leis humanas sejam de que tipo forem podem portanto ser adotadas através do consentimento Hooker ibid CLUBE DO LIVRO LIBERAL 135 O poder legislativo é o poder supremo em toda comunidade civil quer seja ele confiado a uma ou mais pessoas quer seja permanente ou intermitente Entretanto Primeiro ele não é exercido e é impossível que seja exercido de maneira absolutamente arbitrária sobre as vidas e sobre as fortunas das pessoas Sendo ele apenas a fusão dos poderes que cada membro da sociedade delega à pessoa ou à assembléia que tem a função do legislador permanece forçosamente circunscrito dentro dos mesmos limites que o poder que estas pessoas detinham no estado de natureza antes de se associarem em sociedade e a ele renunciaram em prol da comunidade social Ninguém pode transferir para outra pessoa mais poder do que ele mesmo possui e ninguém tem um poder arbitrário absoluto sobre si mesmo ou sobre qualquer outro para destruir sua própria vida ou privar um terceiro de sua vida ou de sua propriedade Foi provado que um homem não pode se submeter ao poder arbitrário de outra pessoa por outro lado no estado de natureza o poder que um homem pode exercer sobre a vida a liberdade ou a posse de outro jamais é arbitrário reduzindose àquele a ele investido pela lei da natureza para a preservação de si próprio e do resto da humanidade esta é a medida do poder que ele confia e que pode confiar à comunidade civil e através dela ao poder legislativo que portanto não pode ter um poder maior que esse Mesmo considerado em suas maiores dimensões o poder que ela detém se limita ao bem público da sociedade92 136 Segundo O legislativo ou autoridade suprema não pode arrogar para si um poder de governar por decretos arbitrários improvisados mas se limitar a dispensar a justiça e decidir os direitos do súdito através de leis permanentes já promulgadas93 e juízes autorizados e conhecidos Como a lei da natureza não é uma lei escrita e não pode ser encontrada em lugar algum exceto nas mentes dos homens aqueles que a paixão ou o interesse incitam a mal citála ou a mal empregála não podem ser tão facilmente convencidos de seu erro na ausência de um juiz estabelecido Por isso ela não serve como deveria para determinar os direitos e delimitar as propriedades daqueles que vivem sob sua submissão especialmente onde cada um é também seu juiz intérprete e executor e além disso em causa própria aquele que tem o direito do seu lado não dispõe em geral senão de sua energia pessoal que não tem força suficiente para defendêlo das injustiças ou para punir os delinqüentes Para evitar esses inconvenientes que desorganizam suas posses no estado de natureza os homens reuniramse em sociedades em que eles dispõem da força conjunta de toda a sociedade para proteger e defender suas propriedades e que eles podem delimitar segundo regras permanentes que permitem a cada um saber o que lhe pertence Foi com esta finalidade que os homens renunciaram a todo o seu poder natural e o depuseram nas mãos da sociedade em que se inseriram e a comunidade social colocou o poder legislativo nas mãos que lhe pareceram as mais adequadas ela o encarregou também de governálos segundo leis promulgadas sem as quais sua paz sua tranqüilidade e seus bens permaneceriam na mesma precariedade que no estado de natureza 137 O poder absoluto arbitrário ou governo sem leis estabelecidas e permanentes é absolutamente incompatível com as finalidades da sociedade e do governo aos quais os homens não se submeteriam à custa da liberdade do estado de natureza senão para preservar suas vidas liberdades e bens e graças a regras que definissem expressamente o direito e a propriedade Não se pode supor que eles pretendessem caso tivessem um poder para isso conceder a uma ou mais pessoas um poder arbitrário absoluto sobre suas pessoas e bens ou colocar as forças nas mãos do magistrado 92 As sociedades públicas repousam sobre duas fundações a primeira é uma inclinação natural pela qual todo homem deseja a vida social e a companhia a segunda é uma ordem estabelecida em termos expressos ou secretos que regulamenta as modalidades de sua união na vida comumEsta última constitui o que chamamos de direito de uma comunidade social a verdadeira alma de um corpo político do qual este direito anima e mantém unidos os elementos e os coloca em funcionamento em todas as atividades requeridas pelo bem público As leis políticas regidas por uma ordem e uma organização externas entre os homens nunca são estruturadas como deveriam a menos que se presumisse que a vontade do homem fosse intimamente obstinada rebelde e adversa a qualquer obediência às leis sagradas de sua natureza em resumo a menos que se presumisse que o homem considerado por seu espírito depravado não valesse mais que um animal selvagem apesar disso as leis prevêem disposições próprias para orientar externamente os atos humanos a fim de que eles não prejudiquem o bem comum em vista do qual as sociedades são instituídas Do contrário elas não seriam perfeitas Hooker Eccl Pol liv i sec 10 93 As leis humanas desempenham o papel de critérios com respeito aos homens cujas ações elas regulamentam mas estes critérios não são submetidos a regulamentos mais altos que regem sua apreciação estas leis são duas a lei de Deus e a lei da natureza portanto as leis humanas devem estar de acordo com as leis gerais da natureza e não contradizer nenhuma lei positiva da Escritura senão elas estão mal feitas Hooker Eccl Pol liv iii sec 9 Constranger os homens a atos inconvenientes parece irracional ibid liv i sec 10 Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 73 para que ele arbitrariamente fizesse valer sua vontade sobre eles Isto significaria colocaremse em uma situação pior que no estado de natureza onde tinham a liberdade de defender seus direitos contra as injustiças dos outros e se encontravam em igualdade de forças para mantêlos contra as tentativas de indivíduos isolados ou de grupos numerosos Pois supondose que eles houvessem se entregado ao poder e à vontade arbitrários e absolutos de um legislador estariam eles próprios desarmados e o teriam armado para que ele fizesse deles sua presa quando assim o quisesse O indivíduo exposto ao poder arbitrário de um único homem que tem cem mil sob suas ordens encontrase em uma situação muito pior que aquele exposto ao poder arbitrário de cem mil homens isolados ninguém pode garantir que a vontade daquele que detém tal comando é melhor que aquela de outros homens embora sua força seja cem mil vezes mais forte Por isso seja qual for a forma de comunidade civil a que se submetam o poder que comanda deve governar por leis declaradas e aceitas e não por ordens extemporâneas e resoluções imprecisas A humanidade estará em uma condição muito pior do que no estado de natureza se armar um ou vários homens com o poder conjunto de uma multidão para forçálos a obedecer os decretos exorbitantes e ilimitados de suas idéias repentinas ou a sua vontade desenfreada e manifestada no último momento sem que algum critério tenha sido estabelecido para guiálos em suas ações e justificálas Pois todo o poder que o governo detém visando apenas o bem da sociedade não deve seguir o arbitrário ou a sua vontade mas leis estabelecidas e promulgadas deste modo tanto o povo pode conhecer seu dever e fica seguro e protegido dentro dos limites da lei quanto os governantes mantidos dentro dos seus devidos limites não ficarão tentados pelo poder que detêm em suas mãos e não o utilizarão para tais propósitos nem por medidas desconhecidas do povo e contrárias a sua vontade 138 Terceiro O poder supremo não pode tirar de nenhum homem qualquer parte de sua propriedade sem seu próprio consentimento Como a preservação da propriedade é o objetivo do governo e a razão por que o homem entrou em sociedade ela necessariamente supõe e requer que as pessoas devem ter propriedade senão isto faria supor que a perderam ao entrar em sociedade aquilo que era seu objetivo que as fez se unirem em sociedade ou seja um absurdo grosseiro demais que ninguém ousaria sustentar Visto que os homens que vivem em sociedade são proprietários têm o direito de possuir todos os bens que lhe pertencem em virtude da lei da comunidade social dos quais ninguém tem o direito de priválos ou de qualquer parte deles sem seu próprio consentimento sem isso eles não são proprietários de nada Eu realmente não tenho nenhum direito de propriedade sobre aquilo que outra pessoa pode por direito tomar de mim quando lhe aprouver sem o meu consentimento Por isso é um erro acreditar que o poder supremo ou legislativo de qualquer comunidade social possa fazer o que ele desejar e dispor arbitrariamente dos bens dos súditos ou tomar qualquer parte delas como bem entender Isso não deve ser muito temido em governos em que o legislativo consiste inteiramente ou em parte de assembléias de composição variável e cujos membros quando elas são dissolvidas retornam à condição de súditos e estão sujeitos da mesma forma que o restante das pessoas às leis comuns de seu país Mas em governos em que o poder legislativo reside em uma assembléia permanente ou em um único homem como nas monarquias podese sempre recear que eles creiam ter um interesse distinto do resto da comunidade e então sejam capazes de aumentar suas próprias riquezas e seu poder tomando do povo o que mais lhes convier Pois a propriedade do homem só está absolutamente segura se houver leis boas e justas que estabeleçam os limites entre ela e aquelas de seus vizinhos e se aquele que comanda estes súditos não tiver poder para tomar de qualquer indivíduo a parte que lhe aprouver de sua propriedade usandoa e dela dispondo a seu belprazer 139 Como já foi mostrado seja quem for a pessoa em cujas mãos está depositado o governo como este só lhe foi confiado sob condição e para um fim preciso ou seja que todos os homens podem continuar donos de seus bens com toda segurança o príncipe o senado ou seja quem for que tenha o poder de fazer as leis para a regulamentação da propriedade entre os súditos jamais tem o poder de tomar para si o conjunto ou qualquer parte da propriedade dos súditos sem seu próprio consentimento Isto equivaleria a priválos de toda propriedade E para nos garantirmos que mesmo o poder absoluto quando é necessário não é arbitrário apesar de absoluto mas há sempre razões que o limitam e finalidades que os circunscrevem as mesmas que requereram que em alguns casos ele fosse absoluto não temos de considerar senão a prática usual da disciplina militar A preservação do exército que deve garantir aquela de toda a comunidade social requer uma absoluta obediência às ordens de todo oficial superior e quem desobedecer ou contestar os mais perigosos ou os mais imoderados dentre eles merece a morte entretanto o sargento que poderia ordenar um soldado a marchar até à boca de um canhão ou a ficar em uma brecha onde sua morte é quase certa não pode ordenar que aquele soldado lhe dê um CLUBE DO LIVRO LIBERAL centavo de seu dinheiro nem o general que o condena à morte por desertar de seu posto ou por desobedecer as ordens mais desesperadas pode com todo o seu poder absoluto de vida e de morte dispor de um níquel dos bens daquele soldado ou se apoderar do mais insignificante dos objetos que lhe pertence entretanto poderia lhe dar qualquer ordem e mandar prendêlo à menor desobediência Porque tal obediência cega é necessária aos objetivos para os quais o chefe militar tem seu poder ou seja a preservação do restante das pessoas mas o direito de dispor de seus bens se situa em outro plano completamente diferente 140 É verdade que os governos não poderiam subsistir sem grandes encargos e é justo que todo aquele que desfruta de uma parcela de sua proteção contribua para a sua manutenção com uma parte correspondente de seus bens Entretanto mais uma vez é preciso que ela mesma dê seu consentimento ou seja que a maioria consinta seja por manifestação direta ou pela intermediação de representantes de sua escolha se qualquer um reivindicar o poder de estabelecer impostos e impôlos ao povo por sua própria autoridade e sem tal consentimento do povo está assim invadindo a lei fundamental da propriedade e subvertendo a finalidade do governo Como posso me dizer proprietário de algo que outra pessoa possa por direito tomar quando bem entender 141 Quarto O poder legislativo não pode transferir para quaisquer outras mãos o poder de legislar ele detém apenas um poder que o povo lhe delegou e não pode transmitilo para outros Só o povo pode estabelecer a forma de comunidade social o que faz instituindo o poder legislativo e designando aqueles que devem exercêlo E quando o povo disse que queremos nos submeter a regras e ser governados por leis feitas por tais pessoas seguindo tais formas ninguém pode dizer que outras pessoas diferentes legislarão por elas nem o povo pode ser obrigado a obedecer quaisquer leis exceto aquelas promulgadas por aqueles a quem ele escolheu e autorizou para fazer as leis em seu nome 142 Eis os limites que impõe ao poder legislativo de toda sociedade civil sob todas as formas de governo a missão de confiança da qual ele foi encarregado pela sociedade e pela lei de Deus e da natureza Primeiro Ele deve governar por meio de leis estabelecidas e promulgadas e se abster de modificálas em casos particulares a fim de que haja uma única regra para ricos e pobres para o favorito da corte e o camponês que conduz o arado Segundo Estas leis só devem ter uma finalidade o bem do povo Terceiro O poder legislativo não deve impor impostos sobre a propriedade do povo sem que este expresse seu consentimento individualmente ou através de seus representantes E isso diz respeito estritamente falando só àqueles governos em que o legislativo é permanente ou pelo menos em que o povo não tenha reservado uma parte do legislativo a representantes que eles mesmos elegem periodicamente Quarto O legislativo não deve nem pode transferir para outros o poder de legislar e nem também depositálo em outras mãos que não aquelas a que o povo o confiou CAPÍTULO XII DOS PODERES LEGISLATIVO EXECUTIVO E FEDERATIVO DA COMUNIDADE CIVIL 143 O poder legislativo é aquele que tem competência para prescrever segundo que procedimentos a força da comunidade civil deve ser empregada para preservar a comunidade e seus membros Entretanto como Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 75 basta pouco tempo para fazer aquelas leis que serão executadas de maneira contínua e que permanecerão indefinidamente em vigor não é necessário que o legislativo esteja sempre em funcionamento se não há trabalho a fazer e como pode ser muito grande para a fragilidade humana a tentação de ascender ao poder não convém que as mesmas pessoas que detêm o poder de legislar tenham também em suas mãos o poder de executar as leis pois elas poderiam se isentar da obediência às leis que fizeram e adequar a lei a sua vontade tanto no momento de fazêla quanto no ato de sua execução e ela teria interesses distintos daqueles do resto da comunidade contrários à finalidade da sociedade e do governo Por isso nas comunidades civis bem organizadas onde se atribui ao bem comum a importância que ele merece confiase o poder legislativo a várias pessoas que se reúnem como se deve e estão habilitadas para legislar seja exclusivamente seja em conjunto com outras mas em seguida se separam uma vez realizada a sua tarefa ficando elas mesmas sujeitas às leis que fizeram isto estabelece um vínculo novo e próximo entre elas o que garante que elas façam as leis visando o bem público 144 Mas como as leis que são feitas num instante e um tempo muito breve permanecem em vigor de maneira permanente e durável e é indispensável que se assegure sua execução sem descontinuidade ou pelo menos que ela esteja pronta para ser executada é necessário que haja um poder que tenha uma existência contínua e que garanta a execução das leis à medida em que são feitas e durante o tempo em que permanecerem em vigor Por isso freqüentemente o poder legislativo e o executivo ficam separados 145 Em toda comunidade civil existe um outro poder que se pode chamar de natural porque corresponde ao que cada homem possuía naturalmente antes de entrar em sociedade Mesmo que os membros de uma comunidade civil permaneçam pessoas distintas em suas referências mútuas e como tais sejam governados pelas leis da sociedade em referência ao resto da humanidade eles formam um corpo único e este corpo permanece no estado de natureza em referência ao resto da humanidade como cada um de seus membros estava anteriormente Isso explica que as controvérsias que surgirem entre qualquer homem da sociedade e aqueles que a ela não pertencem sejam administradas pelo público e que um dano causado a um membro daquela comunidade implica em que todo o conjunto seja obrigado a reparar Assim sob este ponto de vista a comunidade toda é um corpo único no estado da natureza com respeito a todos os outros estados ou a todas as outras pessoas que não pertençam a sua comunidade 146 Este poder tem então a competência para fazer a guerra e a paz ligas e alianças e todas as transações com todas as pessoas e todas as comunidades que estão fora da comunidade civil se quisermos podemos chamá lo de federativo Uma vez que se compreenda do que se trata pouco me importa o nome que receba 147 Estes dois poderes executivo e federativo embora sejam realmente distintos em si o primeiro compreendendo a execução das leis internas da sociedade sobre todos aqueles que dela fazem parte e o segundo implicando na administração da segurança e do interesse do público externo com todos aqueles que podem lhe trazer benefícios ou prejuízos estão quase sempre unidos E ainda que este poder federativo faça ele uma boa ou má administração apresente uma importância muito grande para a comunidade civil ele se curva com muito menos facilidade à direção de leis preexistentes permanentes e positivas por isso é necessário que ele seja deixado a cargo da prudência e da sabedoria daqueles que o detêm e que devem exercêlo visando o bem público As leis que dizem respeito aos súditos entre eles uma vez destinadas a reger seus atos é melhor que os precedam Mas a atitude adotada diante dos estrangeiros depende em grande parte de seus atos e da flutuação de seus projetos e interesses portanto devem ser deixados em grande parte à prudência daqueles a quem foi confiado este poder a fim de que eles o exerçam com o melhor de sua habilidade para o benefício da comunidade civil 148 Embora como eu disse os poderes executivo e federativo de cada comunidade sejam realmente distintos em si dificilmente devem ser separados e colocados ao mesmo tempo nas mãos de pessoas distintas e como ambos requerem a força da sociedade para o seu exercício é quase impraticável situar a força da comunidade civil em mãos distintas e sem elo hierárquico ou que os poderes executivo e federativo sejam CLUBE DO LIVRO LIBERAL confiados a pessoas que possam agir separadamente isto equivaleria a submeter a força pública a comandos diferentes e resultaria um dia ou outro em desordem e ruína CAPÍTULO XIII DA HIERARQUIA DOS PODERES DA COMUNIDADE CIVIL 149 Em uma sociedade política organizada que se apresenta como um conjunto independente e que age segundo sua própria natureza ou seja que age para a preservação da comunidade só pode existir um poder supremo que é o legislativo ao qual todos os outros estão e devem estar subordinados não obstante como o legislativo é apenas um poder fiduciário e se limita a certos fins determinados permanece ainda no povo um poder supremo para destituir ou alterar o legislativo quando considerar o ato legislativo contrário à confiança que nele depositou pois todo poder confiado como um instrumento para se atingir um fim é limitado a esse fim e sempre que esse fim for manifestamente negligenciado ou contrariado isto implica necessariamente na retirada da confiança voltando assim o poder para as mãos daqueles que o confiaram que podem depositálo de novo onde considerarem melhor para sua proteção e segurança Deste modo a comunidade permanece perpetuamente investida do poder supremo de se salvaguardar contra as tentativas e as intenções de quem quer que seja mesmo aquelas de seus próprios legisladores sempre que eles forem tão tolos ou tão perversos para preparar e desenvolver projetos contra as liberdades e as propriedades dos súditos Nenhum homem nenhuma sociedade humana tem o poder de abandonar sua preservação e conseqüentemente os meios de garantila à vontade absoluta de um terceiro e a sua dominação arbitrária e sempre que algum indivíduo pretender reduzilos a uma condição de escravidão devem ter o direito de preservar este bem inalienável e de se livrarem daquele que invade esta lei fundamental sagrada e inalterável de autopreservação que foi a causa de sua associação Partindo se deste princípio podese dizer que a comunidade tem sempre o poder supremo mas contanto que não seja considerada submissa a qualquer forma de governo porque o povo jamais pode exercer este poder antes do governo ser dissolvido 150 Em todo caso enquanto o governo subsistir o legislativo é o poder supremo pois aquele que pode legislar para um outro lhe é forçosamente superior e como esta qualidade de legislatura da sociedade só existe em virtude de seu direito de impor a todas as partes da sociedade e a cada um de seus membros leis que lhes prescrevem regras de conduta e que autorizam sua execução em caso de transgressão o legislativo é forçosamente supremo e todos os outros poderes pertençam eles a uma subdivisão da sociedade ou a qualquer um de seus membros derivam dele e lhe são subordinados 151 Em algumas comunidades civis em que o legislativo nem sempre existe e o executivo está investido em uma única pessoa que tem também uma participação no legislativo aquele personagem único em um sentido bem tolerável pode ser também chamado de supremo Isto não significa que ele detenha em si todo o poder supremo que é aquele de legislar mas porque detém em si a execução suprema de onde todos os magistrados inferiores derivam todos os seus vários poderes subordinados ou pelo menos grande parte deles além disso não existindo poder legislativo que lhe seja superior porque não se pode fazer nenhuma lei sem seu consentimento e ele jamais concordaria em se submeter a outra parte do legislativo neste sentido ele é realmente supremo Não obstante devese observar que embora lhes sejam prestados juramentos de obediência e fidelidade estes não lhe são dirigidos como legislador supremo mas na sua qualidade de executor supremo de uma lei que é obra de um poder que ele detêm em conjunto com outros como a submissão consiste na obediência conforme as leis quando ele as infringe não tem direito à obediência nem pode reivindicála a não ser em razão de sua qualidade de personagem público investido da autoridade da lei e que se apresenta como a imagem da comunidade civil como seu fantasma ou como seu representante impulsionado pela vontade da sociedade declarada em suas leis ele não tem qualquer vontade ou qualquer poder exceto aquele da lei Mas quando ele deixa de lado esta Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 77 representação esta vontade pública e age por vontade própria ele se degrada e não passa de um indivíduo isolado sem poder e sem vontade e a partir daí os membros só devem obediência à vontade pública da sociedade 152 Quando o poder executivo é depositado nas mãos de uma única pessoa que também tem uma participação no legislativo está visivelmente subordinado a este e dele depende podendo ser à vontade substituído ou alterado não é então o poder executivo supremo que está isento de subordinação mas o poder executivo supremo investido em uma só pessoa que tendo uma participação no legislativo não está subordinado a nenhum legislativo distinto e superior nem tem de lhe prestar contas salvo na medida em que ele mesmo o aceite e consinta neste caso podese então concluir que ele só está subordinado ao que julga bom o que será muito pouco Quanto aos outros poderes ministeriais e subordinados de uma comunidade civil nem precisamos falar a respeito pois eles se multiplicam com uma variedade tão infinita nos diferentes costumes e constituições de comunidades civis distintas que é impossível a referência individual a todos eles No que lhes diz respeito basta destacar uma única característica essencial para o nosso propósito ou seja que nenhuma dentre elas se estenda além da competência que lhe foi delegada em virtude de uma concessão e um mandato expressos e todas devem prestar contas a algum outro poder na comunidade civil 153 Não é necessário nem mesmo conveniente que o poder legislativo seja permanente Mas a existência do poder executivo é absolutamente necessária pois nem sempre há a necessidade de serem feitas novas leis mas é sempre necessária a aplicação das leis existentes Mesmo que o poder legislativo deposite em outras mãos a execução das leis por ele feitas ainda mantém o poder de retomálo em caso de necessidade e de punir uma administração ilegal O mesmo ocorre com o poder federativo que juntamente com o executivo é auxiliar e subordinado ao legislativo este como já mostramos é o poder supremo em uma comunidade civil organizada Supõese também neste caso que o legislativo é composto de várias pessoas pois se fosse uma única pessoa não podia ser permanente e por isso sendo supremo teria naturalmente o poder executivo supremo e também o legislativo que podem se reunir e legislar nas ocasiões determinadas por sua constituição fundamental na data que elas isoladamente fixarem ou ainda quando melhor lhes parecer no caso de não haver uma data predeterminada para isso ou outra forma prescrita de convocálo Como o povo confiou o poder supremo a estas pessoas elas sempre permanecem investidas dele e podem exercêlo quando assim o desejarem a menos que por sua constituição fundamental estejam limitadas a determinadas ocasiões ou elas não tenham fixado uma data por um ato de seu poder supremo em qualquer dos casos quando chega a data marcada elas têm o direito de se reunir e retomar sua atividade 154 Se o poder legislativo ou qualquer de seus elementos se compuser de representantes que o povo escolheu por um período determinado e que depois deste retornam para o estado original de súditos e só têm participação no legislativo se forem escolhidos outra vez é preciso também que o povo proceda a essa escolha seja em ocasiões predeterminadas ou quando for para isso convocado neste último caso o poder de convocar o legislativo está ordinariamente depositado nas mãos do executivo e tem uma destas duas limitações com respeito à ocasião que a constituição fundamental requeira sua reunião e atuação a intervalos determinados e o poder executivo então se contenta apenas com um papel auxiliar que consiste em dar as diretrizes para sua eleição e reunião nas devidas formas ou que se deixe a cargo de seu bomsenso requisitálo por novas eleições quando as ocasiões ou as exigências do público requererem a emenda de antigas leis ou a criação de novas ou ainda quando forem exigidas soluções ou formas de prevenir de quaisquer inconvenientes de sua responsabilidade ou que ameacem o povo 155 Podese questionar aqui o que acontecerá se o poder executivo que detém a força da comunidade civil se utilizar dessa força para impedir que o poder legislativo se reúna e atue quando a constituição fundamental ou as necessidades da vida pública o requererem Eu respondo que o fato de se servir da força contra o povo sem autoridade e indo de encontro à confiança depositada no autor de ato equivale por si só a entrar em guerra contra o povo que tem o direito de restaurar seu poder legislativo no exercício de seu poder Se o povo instituiu um legislativo é porque ele exerce o poder de fazer leis seja a uma data precisa e fixada de antemão seja em caso de necessidade cada vez que uma força qualquer impede o poder legislativo de prestar à CLUBE DO LIVRO LIBERAL sociedade um serviço assim necessário o povo cuja segurança e preservação estão em jogo tem o direito de destituílo pela força Em todos os estados e em todas as condições o verdadeiro recurso contra a força exercida sem autoridade é oporse a ela pela força O uso da força sem autoridade sempre coloca quem a usa em um estado de guerra como o agressor o que lhe permite receber como resposta o mesmo tratamento 156 O poder de reunir e destituir o legislativo confiado ao executivo não concede a este nenhuma superioridade mas define uma missão de confiança da qual ele é encarregado para garantir a segurança das pessoas em um caso em que a incerteza e a mutabilidade dos problemas humanos não podem se acomodar dentro de uma regra fixada Era impossível aos primeiros arquitetos dos governos mesmo que tentassem prever o futuro exercer sobre os acontecimentos futuros um controle suficiente para serem capazes de fixar de antemão e definitivamente o momento da eleição periódica e a duração das reuniões do legislativo de uma maneira judiciosa e correspondendo exatamente a todas as necessidades da comunidade civil a melhor solução que se conseguiu encontrar para este mal foi confiar no bomsenso de um personagem que estaria sempre presente e cuja tarefa seria velar pelo bem público Se o poder legislativo se reunisse a breves intervalos e prolongasse suas sessões sem necessidade isso não podia ser senão oneroso para o povo e necessariamente provocaria inconvenientes mais perigosos por outro lado os acontecimentos por vezes sofriam bruscamente uma tal alteração que era preciso apelar para a sua ajuda Qualquer atraso em sua convocação podia comprometer a segurança pública e às vezes também havia tanto a fazer que o tempo limitado de suas sessões corria o risco de ser muito curto para a execução da tarefa e privar o povo do benefício que somente uma deliberação madura poderia proporcionar Nesse caso o que poderia ser feito para impedir que a regularidade dos intervalos que separam as sessões do legislativo e a fixação da duração de seus trabalhos não expusessem a comunidade cedo ou tarde a algum perigo iminente aqui ou ali senão confiando na prudência de um personagem cuja presença constante e seu conhecimento dos negócios públicos tornasse capaz do uso desta prerrogativa para o bem público E que melhor escolha que a de confiála a quem já estava encarregado da execução das leis para o mesmo fim Assim supondose que a regulamentação das ocasiões para as reuniões e sessões do legislativo não seria estabelecida pela constituição fundamental ela recairia naturalmente nas mãos do executivo não como um poder arbitrário e dependente do seu belprazer mas com o encargo de sempre exercer esta função visando o interesse do público segundo as exigências do momento e a evolução dos acontecimentos Quanto a determinar que métodos apresentam menos inconveniências se a periodicidade das sessões do legislativo a liberdade deixada ao príncipe de convocálo ou talvez uma mistura de ambos não cabe a mim aqui inquirir mas apenas mostrar que embora o poder executivo possa ter a prerrogativa de convocar e dissolver tais convenções do legislativo ainda assim não lhe é superior 157 As coisas do mundo seguem um fluxo tão constante que nada permanece muito tempo no mesmo estado Assim o povo as riquezas o comércio o poder mudam suas estações cidades poderosas e prósperas se transformam em ruínas e se transformam em locais abandonados e desolados enquanto outros locais ermos se transformam em países populosos repletos de riquezas e habitantes Entretanto nem sempre a evolução segue um ritmo igual e o interesse privado freqüentemente mantém costumes e privilégios depois de desaparecida a sua razão de ser e em seguida em governos em que o poder legislativo se compõe em parte de representantes escolhidos pelo povo esta representação se torna muito desigual e desproporcional às razões que a haviam de início instituído Para ver a que absurdos grosseiros nos arriscamos a chegar ao permanecermos fiéis ao costume basta constatar que o simples nome de uma cidade da qual não restam nem mesmo as ruínas e onde no máximo encontramos um redil como habitação e no máximo um pastor como habitante pode enviar tantos representantes à grande assembléia dos legisladores quanto um condado inteiro que possui uma numerosa população e inúmeras riquezas Diante disso os estrangeiros ficam estupefatos e todo mundo admite que é preciso encontrar uma solução mas a maioria acha difícil encontrar uma pois como a constituição do legislativo é o ato fundamental e supremo da sociedade antecedente em si a todas as leis positivas e inteiramente dependente do povo nenhum poder inferior pode modificálo Em um governo como este de que falamos em que o povo após ter estabelecido o legislativo não tem mais o poder de agir enquanto o governo subsistir o mal parece sem solução Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 79 158 A regra salus populi suprema lex é certamente tão justa e fundamental que aquele que a segue com sinceridade não corre um risco grande de errar Por isso se o executivo que tem o poder de convocar o legislativo considerar a representação em suas proporções verdadeiras e não suas modalidades acidentais e se regulamentar pela razão objetiva e não pelos antigos costumes para determinar o número dos eleitos de cada uma das localidades que enviam representantes privilégio ao qual uma parte do povo mesmo associado não poderia pretender senão na medida de sua contribuição ao bem público esta decisão não tem de modo algum por efeito a instauração de um poder legislativo novo ao contrário ela restaura o poder legislativo antigo o verdadeiro e corrige os defeitos que com o passar do tempo vão sendo introduzidos de maneira insensível mas inevitável Como é interesse e intenção do povo ter uma representação honesta e justa aquele que realiza melhor este ideal se conduz certamente como o fundador do governo e como seu amigo e não poderia deixar de obter o consentimento e a aprovação da comunidade Uma vez que a prerrogativa não é senão um poder nas mãos do príncipe para promover o bem público naqueles casos que dependendo de acontecimentos imprevistos e incertos teria sido muito perigoso submeter a leis imperativas e imutáveis Todo ato que tem manifestamente por objetivo o bem do povo e o estabelecimento do governo sobre suas verdadeiras bases é e sempre será uma prerrogativa justa O poder de criar novas coletividades e por conseguinte novos representantes supõe que o número de representantes pode variar com o tempo que localidades que não tinham o direito de se fazer representar podem adquirilo e outros que o possuíam podem perdêlo se vêm a se tornar muito insignificantes para merecer esse privilégio Não é a transformação da situação atual provocada talvez pela corrupção ou pelo declínio que causa um dano sério ao governo mas sua tendência para prejudicar ou oprimir o povo e de isolar uma parte ou uma facção dele para discriminála e sujeitála injustamente ao resto Tudo o que não pode ser reconhecido como vantajoso para a sociedade e para o povo em geral segundo critérios justos e duradouros encontrará sempre em si próprio sua justificativa e sempre que o povo escolher seus representantes por meio de medidas justas e inegavelmente eqüitativas convenientes à estrutura original do governo não se pode duvidar de que foram a vontade e o ato da sociedade que o permitiram ou propuseram fazêlo CAPÍTULO XIV DA PREROGATIVA 159 Quando os poderes legislativo e executivo se encontram em mãos distintas assim como em todas as monarquias moderadas e governos bem estruturados o bem da sociedade exige que várias coisas fiquem a cargo do discernimento daquele que detêm o poder executivo Como os legisladores são incapazes de prever e prover leis para tudo o que pode ser útil à comunidade o executor das leis possuindo o poder em suas mãos tem pela lei comum da natureza o direito de utilizálo para o bem da sociedade em casos em que a lei civil nada prescreve até que o legislativo possa convenientemente se reunir para preencher esta lacuna Há muitas coisas em que a lei não tem meios de desempenhar um papel útil é preciso então necessariamente deixálas a cargo do bomsenso daquele que detêm nas mãos o poder executivo para que ele as regulamente segundo o exigirem o bem público e suas vantagens Mais que isso convém às vezes que as próprias leis se retraiam diante do poder executivo ou antes diante da lei fundamental da natureza e do governo ou seja que tanto quanto possível todos os membros da sociedade devem ser preservados Muitos acidentes podem ocorrer quando a aplicação estrita e rígida da lei pode prejudicar como por exemplo absterse de demolir a casa de um homem que nada fez de mal para deter um incêndio quando a casa do vizinho está queimando às vezes por uma ação que pode merecer absolvição e recompensa um homem pode tombar sob o golpe da lei que não faz distinção das pessoas convém então que os governantes tenham o poder de atenuar a severidade da lei e perdoar alguns contraventores pois o governo tem por finalidade garantir a preservação de todos na medida do possível ainda que se poupem os culpados quando se pode provar que os inocentes não foram prejudicados 160 Este poder de agir discricionariamente em vista do bem público na ausência de um dispositivo legal e às vezes mesmo contra ele é o que se chama de prerrogativa Em alguns governos o poder encarregado de CLUBE DO LIVRO LIBERAL legislar não existe permanentemente e em geral é exercido por muitos e é muito lento em vista da celeridade exigida na execução além disso como também é impossível prever e portanto ter um provimento de leis para atender a todos os acidentes e todas as urgências que podem dizer respeito aos negócios públicos ou fazer leis que jamais se arrisquem a ser nefastas se aplicadas com um rigor inflexível em todas as circunstâncias a todas as pessoas que entram em seu campo de aplicação o poder executivo guarda por isso uma certa liberdade para realizar muitos atos discricionários que não estão previstos na lei 161 Quando este poder é exercido no interesse da comunidade e de modo adequado às responsabilidades e objetivos do governo tratase sem dúvida de prerrogativa e jamais é questionado É muito raro se é que chega a ocorrer que o povo manifeste escrúpulos ou rigor sobre este ponto ou chegue a questionar a prerrogativa quando ela é empregada de uma maneira mais ou menos aceitável em vista do fim a que é destinada ou seja o bem comum e não vise manifestamente prejudicálo Mas se houver uma contestação entre o poder executivo e o povo a propósito de qualquer coisa reivindicada como prerrogativa a tendência do exercício de tal prerrogativa para o bem ou o mal do povo decidirá facilmente a questão 162 É fácil imaginar que no início dos governos quando as comunidades civis pouco diferiam das famílias quanto ao número de pessoas também pouco diferiam delas quanto ao número de leis e como os governantes atuavam quase como pais e velavam pelo seu bemestar o governo se identificava quase inteiramente com a prerrogativa Poucas leis estabelecidas serviam aos seus propósitos e o discernimento e a cautela do governante supriam o resto Mas quando o erro ou a lisonja persuadiu alguns príncipes a utilizar este poder para fins privados que só interessavam a eles mesmos e não ao bem público o povo reclamou leis expressas para circunscrever a prerrogativa naqueles pontos onde a considerava desvantajosa proclamou então os limites da prerrogativa nos casos em que considerou necessário que ele e seus ancestrais haviam deixado em toda a amplitude a cargo da sabedoria daqueles príncipes que dela não fizeram um uso correto ou seja visando o bem público 163 As pessoas que dizem que o povo abusou da prerrogativa quando a fez definir sobre um ponto qualquer por leis positivas têm uma idéia muito falsa de governo Pois agindo assim ele não tirou do príncipe nada que lhe pertencesse por direito mas apenas declarou que aquele poder que havia deixado indefinidamente em suas mãos ou nas de seus ancestrais para ser exercido para o bem do povo deixava de lhe ser destinado uma vez que o estava utilizando de outra maneira Como o objetivo do governo é o bem da comunidade as modificações feitas visando este objetivo não podem ser um atentado aos direitos de ninguém em um governo ninguém pode invocar um direito que se incline a um outro fim Os únicos abusos são aqueles que prejudicam ou entravam o bem público Aqueles que dizem o contrário falam como se o príncipe tivesse um interesse distinto e separado do bem da comunidade eis a razão e a fonte de onde procedem quase todos os males e as desordens que acompanham os governos monárquicos Realmente se fosse assim o povo sob seu governo não seria uma sociedade de criaturas racionais que entraram em uma comunidade visando o bem comum mas deveria ser encarado como um rebanho de criaturas inferiores sob a dominação de um dono que os mantém e os faz trabalhar para ele para seu próprio prazer ou proveito Se os homens fossem tão desprovidos de razão e tão selvagens para entrar em sociedade em tais termos talvez como alguns o desejariam a prerrogativa pudesse na verdade ser um poder arbitrário para realizar atos que prejudicassem o povo 164 Mas desde que não se pode imaginar que uma criatura livre se submeta a outra para ser prejudicada embora quando ela encontrar um governante bom e sábio talvez possa não considerar necessário determinar limites precisos ao seu poder sobre todas as coisas a prerrogativa pode significar apenas a permissão que o povo concede a seus governantes para fazer várias coisas de sua própria livre escolha nas situações em que a lei for omissa e às vezes mesmo em contrário ao que reza o seu texto visando o bem público e com a consagração popular dos atos realizados nestas condições Um bom príncipe consciente da missão que lhe foi confiada e preocupado com o bem público não precisaria ter muita prerrogativa ou seja poder para fazer o bem enquanto um príncipe mau e fraco desejaria invocar o poder que seus antecessores exerciam sem a orientação da lei como uma prerrogativa pertencente a ele pelo direito do seu cargo que ele exerceria ao belprazer para atingir ou Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 81 promover um interesse distinto daquele do povo dando a este uma ocasião para fazer valer o seu direito e impor um limite a esse poder que ele aceitava autorizar tacitamente enquanto foi utilizado para o seu bem 165 Quem examinar a história da Inglaterra verá que a prerrogativa foi sempre maior nas mãos dos príncipes mais sábios e melhores porque o povo observando que a tendência geral de suas ações era o bem público não contestava o que era feito sem o respaldo legal ou se alguns desvios mínimos visando o bemestar público manifestavam alguma sombra de fragilidade ou erro humano uma vez que os príncipes são homens como todos os outros quando percebia que a principal intenção de sua conduta era a preocupação com o bem público Por isso como o povo tinha motivos para estar satisfeito com esses príncipes quando eles agiam sem o respaldo da lei ou mesmo contra ela aquiescia ao que faziam e sem qualquer queixa permitialhes ampliar sua prerrogativa o quanto quisessem julgando corretamente que eles nada fariam em prejuízo de suas leis desde que agissem em conformidade com a base e o objetivo de todas as leis que é o bem público 166 Na verdade quase deuses estes príncipes tinham algum direito de exercer um poder arbitrário invocando o argumento que quer provar que a monarquia absoluta é a melhor forma de governo pela qual Deus governa o universo porque esses reis participam de sua sabedoria e de sua bondade Sobre isso está baseado o ditado que diz que os reinados dos bons príncipes sempre têm sido mais perigosos para as liberdades de seu povo mas quando seus sucessores administrando o governo com idéias diferentes transformaram as ações daqueles bons governantes em precedentes e fizeram deles o padrão de sua prerrogativa como se aquilo que tivesse sido feito apenas visando o bem público fosse um direito implícito para prejudicar o povo se assim o desejassem isso freqüentemente ocasionou contestações e às vezes desordens públicas até que o povo pudesse recuperar seu direito original e declarar que aquilo não era uma prerrogativa e realmente nunca foi pois é impossível que alguém na sociedade possa ter o direito de prejudicar o povo mas é perfeitamente possível e razoável que o povo se abstenha de delimitar a prerrogativa daqueles reis ou governantes que não ultrapassaram os limites do bem público pois a prerrogativa nada mais é que o poder de realizar o bem público sem se basear em nenhuma regra 167 Na Inglaterra o poder de convocar os parlamentos assim como determinar sua data local e duração é certamente uma prerrogativa do rei mas ainda com esta confiança de que ele será exercido para o bem da nação como assim o requererem as exigências do momento e a diversidade das circunstâncias como é impossível prever quais seriam o local e a época mais adequados para reunilos sua escolha foi deixada a cargo do poder executivo do modo mais proveitoso ao bem público e mais conveniente aos objetivos dos parlamentos 168 No domínio da prerrogativa surge sempre a velha questão Quem julgará se este poder está sendo utilizado de modo legítimo Eu respondo Entre um poder executivo constituído detentor desta prerrogativa e um legislativo que depende da vontade daquele para se reunir não pode haver juiz na terra Como não pode existir ninguém entre o legislativo e o povo quando o executivo ou o legislativo que têm o poder em suas mãos planejam ou começam a escravizálo ou a destruílo Neste caso assim como em todos os outros casos em que não houver juiz na terra o povo não teria outro remédio senão apelar para o céu assim quando os governantes exercem um poder que o povo jamais lhes confiou pois nunca pensou em consentir que alguém pudesse governá lo visando o seu mal agem sem direito Quando o conjunto do povo ou um indivíduo isolado são privados de seu direito ou são submetidos ao exercício de um poder ilegal não dispondo de qualquer juiz para apelar na terra têm a liberdade de apelar ao céu quando acharem que a causa merece Por isso embora o povo não possa ser juiz por não possuir pela constituição daquela sociedade qualquer poder superior para dirimir e dar uma sentença efetiva no caso ele tem o direito concedido por uma lei antecedente e soberana a todas as leis positivas dos homens que lhe reserva a decisão final que pertence a todo homem quando ele não dispõe de nenhum recurso sobre a terra de julgar se tem justa causa para fazer seu apelo ao céu E ele não poderia renunciar a este julgamento pois nenhum homem tem o poder de se submeter a outro ao ponto de dar a este outro a liberdade de destruílo nem Deus nem a natureza jamais permitiram que um homem se abandonasse ao ponto de negligenciar sua própria preservação e assim como ele não pode destruir sua própria vida também não pode dar a ninguém o poder de fazêlo Ninguém deve pensar que isso vai servir como base perpétua para a desordem pois só entra em CLUBE DO LIVRO LIBERAL ação quando a situação estiver tão ruim que a maioria a perceba se canse e julgue necessário providenciar uma solução Mas o poder executivo ou os príncipes sábios jamais correrão este risco e é preciso que todos evitem isso ao máximo pois não existe nada no mundo mais perigoso CAPÍTULO XV DO PODER PATERNO POLÍTICO E DESPÓTICO CONSIDERADOS EM CONJUNTO 169 Embora eu já tenha tido a ocasião de falar desses poderes separadamente os grandes erros que há algum tempo têm sido cometidos a respeito do governo me parecem provir daqueles que os têm confundido entre si por isso talvez não seja fora de propósito aqui examinálos em conjunto 170 Em primeiro lugar o poder paterno ou parental nada mais é que aquele que os pais têm sobre seus filhos para governálos visando o seu bem até que eles atinjam o uso da razão ou um estado de entendimento em que possam ser considerados capazes de compreender a regra que deve reger sua atividade seja ela a lei da natureza ou a lei civil de seu país capazes quero dizer de compreendêla assim como a compreendem os outros homens livres que vivem submetidos a essa lei O afeto e a ternura que Deus implantou no coração dos homens em relação a seus filhos tornam evidente que este não pretende ser um governo arbitrário e severo mas apenas visando o auxílio a instrução e a preservação de sua descendência Mas aconteça o que acontecer como eu já provei nada autoriza a crer que ele conceda aos pais um direito de vida e de morte sobre seu filho ou sobre quem quer que seja nem que ele mantenha o filho quando crescer e já for um homem em um estado de dependência diante da vontade de seus pais salvo na medida em que a doação da vida e da educação que deles recebeu o obriga até à morte a respeitar seu pai e sua mãe a honrálos agradecerlhes assistilos e prover suas necessidades O governo paterno é portanto um governo natural mas não se estende aos mesmos objetivos e às mesmas competências do governo político o poder do pai não atinge toda a propriedade do filho da qual só ele próprio pode dispor 171 Em segundo lugar o poder político é aquele poder que todo homem detém no estado de natureza e abre mão em favor da sociedade e ali aos governantes que a sociedade colocou à sua frente impondolhes o encargo expresso ou tácito de exercer este poder para seu bem e para a preservação de sua propriedade Então este poder que todo homem tem no estado de natureza e que remete à sociedade em todos os casos em que a sociedade pode assegurálo é para que eles utilizem os meios que considerarem bons e que a natureza permitir para preservar sua propriedade e para infligir aos outros quando eles infringem a lei da natureza a punição que sua razão considerar mais adequada para garantir sua preservação e a de toda a humanidade Como a finalidade e a medida deste poder quando está nas mãos de cada homem no estado de natureza é a preservação de toda a sua sociedade ou seja de toda a humanidade em geral não pode ter outra finalidade ou medida quando está nas mãos dos magistrados senão preservar os membros daquela sociedade em suas vidas liberdades e posses e por isso não pode ser um poder absoluto e arbitrário sobre suas vidas e bens que devem ser preservados tanto quanto possível mas um poder de fazer leis e completálas por penalidades que sejam de natureza a assegurar a preservação do todo amputando aquelas partes e apenas aquelas cuja corrupção se torne uma ameaça para as partes saudáveis e idôneas pois a severidade só é legítima neste sentido E este poder procede apenas do pacto do acordo e do consentimento mútuo daqueles que compõem a comunidade 172 Em terceiro lugar o poder despótico é um poder absoluto e arbitrário que um homem tem sobre outro de lhe tirar a vida quando bem entender Este poder não é um dom da natureza pois ela não estabeleceu esta discriminação entre os homens e nem efeito de um contrato pois o homem não possuindo tal poder Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 83 arbitrário sobre sua própria vida não poderia conceder a outro homem tal poder mas é o efeito apenas do confisco que o agressor faz de sua própria vida quando se coloca em estado de guerra com qualquer outro Por este gesto põe de lado a razão que Deus deu aos homens para lhes servir de regra e de elo comum na unidade de uma mesma companhia e de uma mesma sociedade e tendo renunciado às vias pacíficas que a razão ensina e feito uso da força da guerra para atingir seus injustos objetivos às custas de um outro e sem direito a isso e assim insurgindose contra sua própria espécie e abraçando a condição dos animais selvagens pois como princípio de direito ele erige a força que lhes serve de regra tornase sujeito a ser destruído pela pessoa injuriada e pelo resto da humanidade que a ela se unirá na execução da justiça como qualquer outro animal selvagem ou besta nociva com quem a humanidade não pode conviver nem ter segurança Assim os prisioneiros capturados em uma guerra justa e legítima mas somente estes são submetidos a um poder despótico que não tem sua fonte em uma convenção nem é capaz de nenhuma exceto a continuação do estado de guerra Que contrato pode ser feito com um homem que não é dono de sua própria vida Que obrigação ele pode executar Entretanto desde que lhe seja permitido tornar a ser dono de sua vida o poder despótico e arbitrário de seu senhor cessa Aquele que é senhor de si mesmo e de sua própria vida tem também o direito aos meios de preservála assim uma vez que há contrato a escravidão cessa e aquele que faz um acordo com seu prisioneiro renuncia assim ao seu poder absoluto e põe fim ao estado de guerra 173 A natureza dá o primeiro destes poderes ou seja o pátrio poder aos pais no interesse de seus filhos durante a sua minoridade para suprir sua ausência de habilidades e sua falta de entendimento sobre como administrar sua propriedade É preciso que se saiba que aqui como em qualquer outra parte por propriedade eu entendo aquela que o homem tem sobre sua pessoa e não somente sobre seus bens Um acordo voluntário concede o segundo ou seja o poder político aos governantes para o benefício de seus súditos para garantilos na posse e no uso de suas propriedades E o confisco proporciona o terceiro o poder despótico aos senhores para seu próprio benefício sobre aqueles que são desprovidos de toda propriedade 174 Quem quer que examinar a gênese e a extensão características de cada um desses poderes assim como seus diferentes fins respectivos facilmente constata que o pátrio poder está longe de se igualar àquele do magistrado assim como o poder despótico os ultrapassa e que a dominação absoluta esteja onde estiver jamais poderia constituir uma categoria de sociedade civil pois exclui sua própria existência assim como a escravidão exclui aquela da propriedade O pátrio poder só existe quando a minoridade torna a criança incapaz de administrar sua propriedade o poder político quando os homens dispõem de sua propriedade e o poder despótico sobre aqueles que não possuem nenhuma propriedade CAPÍTULO XVI DA CONQUISTA 175 Embora os governos em sua origem não possam jamais se estabelecer de outra maneira que não aquela acima mencionada nem as sociedades políticas serem fundamentadas sobre outra coisa além do consentimento do povo a ambição provocou no mundo tantas desordens que no tumulto da guerra que compõe uma parte tão grande da história da humanidade este consentimento passa quase despercebido e por isso muitos têm confundido a força das armas com o consentimento do povo e consideram a conquista como uma das origens do governo Mas a conquista está longe de estabelecer qualquer governo assim como a demolição de uma casa está longe da construção de outra nova em seu lugar Na verdade ela freqüentemente abre caminho para a nova estrutura de uma comunidade civil ao destruir a antiga mas sem o consentimento do povo jamais poderá edificar uma nova CLUBE DO LIVRO LIBERAL 176 O agressor que se coloca em estado de guerra com outro homem injustamente invadindo o direito deste jamais extrairá de uma guerra injusta nenhum direito sobre sua conquista Facilmente concordarão com isso todos os homens que não acham que os ladrões e os piratas têm um direito de soberania sobre quem quer que seja que tenham dominado pela força ou que os homens sejam obrigados por promessas que o uso ilegal da força lhes extorquiu Se um ladrão invadir minha casa e com um punhal em minha garganta me obrigar a escrever um documento cedendolhe os meus bens isto lhe dá qualquer direito É justamente um direito deste gênero que possui o conquistador injusto que força a minha submissão com o poder da espada A injúria e o crime são iguais sejam eles cometidos por uma cabeça coroada ou por algum pequeno vilão Nem o título do ofensor nem o número de seus seguidores fazem diferença na infração a menos que seja para agravála A única diferença é que os grandes ladrões punem os pequenos para mantêlos em sua obediência enquanto os grandes são recompensados com lauréis e triunfos por serem grandes demais para as mãos frágeis da justiça deste mundo e são eles que têm nas mãos o poder que poderia punir os ofensores Que recurso posso ter contra um ladrão que invadiu a minha casa Apelar para a lei para obter justiça Mas talvez a justiça seja negada ou eu esteja ferido incapaz de me mover roubado e sem os meios para poder agir Se Deus retirou todos os meios de buscar recursos só resta a paciência Mas meu filho quando for capaz pode buscar o amparo da lei que me foi negado ele ou seu filho podem renovar seu apelo até que ele recupere seu direito Mas o conquistado ou seus filhos não têm tribunal ou árbitro na terra a quem apelar Então podem apelar ao céu como fez Jefté e repetir seu apelo até recuperarem o direito nativo de seus ancestrais ou seja o direito de colocar sobre eles um poder legislativo que a maioria aprove e aceite livremente Poderá ser objetado que isso provocaria um tumulto sem fim mas eu digo que bastaria que a justiça estivesse acessível a todos que apelam para ela Aquele que perturba sem motivo o repouso do seu vizinho é punido pelo tribunal a que este se dirige Aquele que apela ao céu deve estar certo de que tem o direito do seu lado e um direito também que vale o trabalho e o custo do processo pois ele vai responder diante de um tribunal que não pode ser enganado e sempre punirá cada um segundo os danos que tenham causado aos seus semelhantes ou seja uma parte qualquer da humanidade De onde se conclui evidentemente que aquele que conquista em uma guerra injusta não pode desse modo ter direito à submissão e à obediência do conquistado 177 Mas supondose que a vitória favoreça o lado certo consideremos o conquistador em uma guerra legal e vejamos que poder ele adquire e sobre quem Primeiro É evidente que por sua conquista ele não adquire poder sobre aqueles que conquistaram junto com ele Aqueles que lutaram a seu lado não podem sofrer pela conquista mas de vem no mínimo continuar homens tão livres quanto eram antes Muito freqüentemente eles servem sob contrato e com a condição de dividir com seu chefe a fim de desfrutar de uma parcela do saque e outras vantagens que acompanham a espada vencedora ou pelo menos ver atribuída a ele uma parte do país subjugado E espero que o povo vitorioso não se torne escravo da conquista e use seus lauréis apenas para mostrar que são sacrifícios ao triunfo de seu líder Aqueles que fundamentam a monarquia absoluta sobre o direito da espada transformam seus heróis que são os fundadores de tais monarquias em valentões consumados e se esquecem que eles tiveram oficiais e soldados que combateram a seu lado nas batalhas que venceram ou os auxiliaram na conquista ou repartiram a posse dos países que dominaram Alguns nos dizem que a monarquia inglesa deriva da conquista normanda e que nossos príncipes adquiriram dessa forma um direito à dominação absoluta o que se for verdade o que a história desmente e se Guilherme tinha justa causa de fazer guerra à nossa ilha sua dominação pela conquista só poderia se estender aos saxões e aos bretões que eram então os habitantes deste país Os normandos que vieram com ele e o ajudaram na conquista são juntamente com todos os seus descendentes homens livres e não súditos conquistados seja qual for o gênero de soberania que tenha resultado E se eu ou qualquer outro indivíduo reivindicarmos nossa liberdade argumentando que a derivamos deles será muito difícil provar o contrário É evidente que as leis que não estabelecem nenhuma distinção entre estas categorias de indivíduos não têm por objetivo instituir qualquer discriminação em sua liberdade e privilégios 178 Mas suponhamos o que raramente ocorre que os conquistadores e os conquistados nunca se associaram formando um povo sob as mesmas leis e liberdade Vamos ver agora que poder um conquistador legal tem sobre aqueles que conquistou eu digo que este poder é puramente despótico Ele tem um poder absoluto Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 85 sobre as vidas daqueles que por uma guerra injusta ficaram privados de mantêlas mas não tem poder sobre as vidas e os bens daqueles que não participaram da guerra e nem também sobre os bens daqueles que dela participaram ativamente 179 Segundo Eu digo neste caso que o conquistador só adquire o poder sobre aqueles que realmente ajudaram concorreram ou consentiram naquela força injusta que foi usada contra ele O povo jamais habilita seus governantes a cometer uma injustiça como por exemplo empreender uma guerra injusta pois o poder de realizar atos desse gênero jamais lhe pertenceu portanto não deve ser considerado culpado da violência e da injustiça que são cometidas em uma guerra injusta senão na medida em que ele realmente participou dela e não pode ser considerado culpado de qualquer violência ou opressão que seus governantes usassem sobre o próprio povo ou sobre uma parte de seus súditos uma vez que não autorizaram este abuso É verdade que os conquistadores raramente se dão ao trabalho de fazer a distinção mas eles de bom grado permitem que a confusão que acompanha a guerra arraste tudo com ela mas isso não altera em nada o direito pois a única razão pela qual o conquistador tem poder sobre as vidas daqueles que conquistou é ter utilizado a força para perpetrar uma injustiça e só poderá exercer tal poder sobre aqueles que participaram dessa utilização da força o restante é inocente e como o povo daquele país não lhe causou nenhum mal e não constituiu ameaça a sua vida ele não tem mais direitos sobre o povo daquele país do que tem sobre qualquer outro entre aqueles que viveram em bons termos com ele sem injúrias ou provocações 180 Terceiro O poder que um conquistador adquire sobre aqueles que ele venceu em uma guerra justa é perfeitamente despótico ele tem um poder absoluto sobre as vidas daqueles que colocandose em um estado de guerra tiveram este poder confiscado mas não tem por isso direito nem título sobre seus bens Eu não duvido que à primeira vista esta possa parecer uma doutrina estranha uma vez que contradiz completamente a prática do mundo nada mais familiar quando se fala da dominação de países do que dizer que alguém o conquistou como se a conquista por si só concedesse um direito de posse Mas quando consideramos que a prática daqueles que detêm a força e o poder por mais universal que ela possa ser raramente é a regra do direito embora faça parte da sujeição do conquistado não discutir as condições a ele impostas pela espada da conquista 181 Embora em toda guerra haja em geral uma complicação de força e prejuízos e raramente o agressor deixe de causar danos às propriedades quando ele usa a força contra as pessoas daqueles contra os quais ele luta é apenas o emprego dessa força que coloca um homem em estado de guerra Pouco importa se foi pela violência que ele deu início ao ato injusto ou se este foi perpetrado em silêncio e através da fraude se ele se recusa a qualquer reparação e o perpetua pela violência o que vem a ser a mesma coisa que utilizar a força desde o início é o uso injusto da força que faz uma guerra Aquele que invade a minha casa e violentamente me expulsa porta afora ou tendo entrado pacificamente em seguida me obriga a ficar do lado de fora na realidade faz a mesma coisa supondose que estamos em tal estado que não tenhamos um juiz comum na terra a quem possamos apelar e a cujas decisões ambos tenhamos de nos submeter é disso que falo agora deste uso injusto da força que coloca um homem contra outro em um estado de guerra e por isso é culpado do confisco de sua vida Como ele se afasta da razão ou seja da regra que rege os relacionamentos entre os homens e utiliza a violência à maneira dos animais selvagens fica sujeito a ser destruído por aquele contra o qual ele emprega a força como um animal selvagem que é perigoso para sua existência 182 Apesar dos erros dos pais não serem culpa dos filhos e eles poderem ser racionais e pacíficos não obstante a brutalidade e a injustiça do pai este com seus erros e sua violência pode confiscar apenas sua própria vida não envolvendo seus filhos em sua culpa ou destruição Seus bens de que a natureza tornou seus filhos proprietários para os impedir de perecer uma vez que ele deseja que a humanidade seja preservada em toda a medida do possível continuam a pertencer a seus filhos Supondose que eles não tenham participado da guerra seja pela pouca idade ou por uma questão de escolha nada fizeram que mereça o confisco desses bens e o conquistador não tem qualquer direito de se apossar deles pela simples invocação da vitória que obteve sobre aquele que tentou destruílo pela força embora ele talvez tenha algum direito a eles para reparar os danos causados pela guerra e na proteção de seus próprios direitos Em que medida isso atinge os bens do conquistado CLUBE DO LIVRO LIBERAL nós veremos a seguir Assim aquele que pela conquista tem o direito sobre a pessoa de um homem para destruí lo se assim o quiser não tem por isso um direito sobre seus bens para se apossar e desfrutar deles É a força brutal utilizada pelo agressor que dá ao seu adversário o direito de tirar sua vida e destruílo se quiser como se fosse uma criatura nociva mas só o dano continuado lhe dá o direito de se apossar dos bens do outro homem Embora eu possa matar um ladrão que me assalta na estrada não tenho o direito que parece menor de tirar seu dinheiro e deixálo ir embora isto me tornaria um ladrão Sua força e o estado de guerra em que se colocou fizeram com que ele perdesse o direito a sua vida mas não deu a mim o direito de assumir seus bens Então o direito de conquista se estende apenas às vidas daqueles que se associaram na guerra não a seus bens exceto para reparar os danos causados e os encargos da guerra e isso também sob reserva dos direitos da esposa e dos filhos inocentes 183 Mesmo que o conquistador tenha a justiça do seu lado como se poderia supor ele não tem o direito de se apoderar de mais do que o conquistado poderia ser confiscado sua vida está à sua mercê assim como seu serviço e os bens de que ele pode se apropriar para reparar os danos causados mas não pode se apropriar dos bens de sua esposa e dos seus filhos eles também têm direito aos bens de que ele desfrutava e à partilha da propriedade que possuía Por exemplo se eu causei um dano a outro homem no estado de natureza e todas as comunidades civis estão entre si no estado de natureza e como eu me recuso a reparar o mal ele se coloca no estado de guerra em que defendo pela força minhas aquisições injustas o que faz de mim o agressor Eu sou conquistado certamente minha vida está à mercê do conquistador mas não a de minha esposa e as de meus filhos Eles não fizeram a guerra nem ajudaram nela Eu não poderia confiscar suas vidas que não me pertencem Minha esposa tem uma parte em meus bens que eu também não poderia confiscar O mesmo ocorre com meus filhos que tendo nascido de mim têm o direito de ser sustentados com o produto do meu trabalho ou do meu capital Resumindo o conquistador tem um direito à reparação pelos danos recebidos e os filhos têm direito aos bens de seu pai para o seu sustento Quanto à parte da esposa seja ela fruto do seu trabalho ou de um pacto que lhe proporcionou esse direito é evidente que seu marido não poderia confiscar o que era dela O que deve ser feito nesse caso Eu respondo Como a lei fundamental da natureza exige que todos sejam preservados na medida do possível em conseqüência disso se não existe o bastante para satisfazer a ambos ou seja para as perdas do conquistador e para o sustento dos filhos aquele que está provido até com excesso deve renunciar a uma parte de sua indenização plena e ceder o lugar àqueles que correm o risco de perecer sem ela 184 Mas vamos supor que os encargos e os prejuízos da guerra devam ser recuperados pelo conquistador até o último centavo e que os filhos do conquistado sejam espoliados de todos os bens de seu pai e sejam deixados para morrer de fome embora nessa dívida a satisfação seja devida ao conquistador isso dificilmente lhe dá um título a qualquer país que ele conquiste É pouco provável que o montante dos prejuízos de guerra possa se igualar ao valor das terras de uma superfície considerável em qualquer parte do mundo em que não reste mais espaço sem dono ou inculto E como eu não me apossei das terras do conquistador uma vez que isso me era impossível sendo eu o vencido parece pouco provável que eu lhe tenha causado qualquer outro prejuízo que possa equivaler ao valor de minhas próprias terras supondose que elas sejam mais ou menos tão vastas e tão bem cultivadas quanto a sua parte que eu invadi A destruição de um produto de um ou dois anos pois raramente atinge quatro ou cinco representa o prejuízo mais grave que em geral poderia ser causado Quanto ao dinheiro e às riquezas e ao tesouro desse tipo que puderam ser tomados estes não são bens da natureza e possuem apenas um valor ilusório a natureza jamais lhes atribuiu um valor real Por seu padrão eles não têm mais valor que o wampompeke dos americanos para um príncipe europeu ou a moeda de prata da Europa teria tido antigamente para um americano O produto de cinco anos não vale a propriedade perpétua da terra lá onde não existem terras sem dono nem áreas baldias que pudessem ser tomadas por aquele que foi desapossado isto será facilmente admitido despojandose o dinheiro de seu valor imaginário pois a desproporção ultrapassa a relação de cinco para cinco mil embora ao mesmo tempo o produto de meio ano tenha mais valor que a herança onde havendo mais terra do que os habitantes possuem e fazem uso qualquer um tem a liberdade de utilizar a área baldia Mas lá raramente os conquistadores se preocupam em se apossar das terras dos vencidos Assim no estado de natureza no qual todos os príncipes e todos os governantes permanecem em referência um ao outro os prejuízos que os homens se causam podem dar a um conquistador poder para desapropriar a posteridade do vencido e privála daquela herança que devia ser perpetuamente posse dela e de seus descendentes Na verdade o conquistador será levado a se considerar o dono e é condição própria dos vencidos não poder disputar seus Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 87 direitos Mas se tudo se reduz a este fato o único direito que ele concede é aquele que o mais forte opõe ao mais fraco em nome da força bruta Segundo este critério o indivíduo mais forte tem o direito de se apossar de tudo o que quiser 185 O conquistador mesmo em uma guerra justa não tem por sua conquista nenhum direito de dominação sobre aqueles que a ele se juntaram no combate nem também sobre os habitantes do país subjugado que não tenham se oposto a ele ou sobre os descendentes daqueles que lutaram contra ele estes estão livres de qualquer sujeição a ele e se seu governo precedente for dissolvido permanecem em liberdade para começar e construir outro para si 186 É verdade que o conquistador por meio da força que tem sobre ele em geral os impele com uma espada no peito a se curvarem às suas condições e a se submeterem ao governo que ele quiser lhes dar mas a pergunta é a seguinte Que direito tem ele de fazer isso Responder que estes homens se submetem por seu próprio consentimento é admitir que seu próprio consentimento seria necessário para conceder ao conquistador um título para governar sobre eles Falta apenas considerar se as promessas extorquidas pela força sem direito podem ser consideradas consentimento e até que ponto elas obrigam ao que eu respondo que elas não obrigam a absolutamente nada porque seja o que for que alguém toma de mim à força eu ainda mantenho o direito de posse e ele é obrigado no mesmo momento a me restituir Aquele que tira de mim o meu cavalo deve imediatamente devolvêlo e eu ainda tenho o direito de retomálo Pela mesma razão aquele que me obrigou a uma promessa deve imediatamente devolvêla isto é liberarme da obrigação de cumprila ou posso eu mesmo retomála ou seja decidir se vou cumprila Pois a lei da natureza só me impõe obrigações em virtude das regras que ela prescreve não podendo me obrigar pela violação de suas regras como extorquindo qualquer coisa de mim pela força Isso não altera nada o fato de dizer Eu dei minha palavra assim como meu gesto não tem por efeito desculpar o emprego da força e transmitir meus direitos quando enfio a mão em meu bolso e entrego eu mesmo minha carteira ao ladrão que a exige com uma pistola no meu peito 187 De tudo isso resulta que o governo de um conquistador imposto pela força ao vencido contra quem ele não tinha o direito de guerra ou que não se aliou aos seus inimigos embora a isso tivesse direito não é legítimo 188 Mas suponhamos que todos os homens daquela comunidade sendo todos membros do mesmo corpo político tivessem se associado naquela guerra injusta na qual eles são vencidos e que em conseqüência disso suas vidas estejam à mercê do conquistador 189 Eu afirmo que isso não diz respeito a seus filhos que estão em sua minoridade pois um pai não tem em si um poder sobre a vida e a liberdade de seu filho e nenhum ato seu pode produzir a perda de uma ou de outra Assim os filhos aconteça o que acontecer com seus pais são homens livres e o poder absoluto do conquistador não se estende além das pessoas dos homens que lhes estão subjugados e morre com eles e ainda que ele possa governálos como escravos sujeitos a seu poder arbitrário absoluto não tem tal direito de dominação sobre seus filhos Ele não pode ter poder sobre eles exceto por seu próprio consentimento seja o que for que ele possa induzilos a dizer ou fazer e não tem autoridade legal pois o que os compele à submissão é a força não a escolha 190 Todo homem nasce com um direito duplo primeiro um direito de liberdade sobre sua pessoa sobre a qual nenhum outro homem tem poder e só ele próprio pode dispor livremente a ela segundo o direito de preferência a qualquer outro homem de dividir com seus irmãos os bens de seu pai CLUBE DO LIVRO LIBERAL 191 Pelo primeiro deles um homem está naturalmente livre de sujeição a qualquer governo embora ele tenha nascido em um lugar sob sua jurisdição mas se ele rejeitar o governo legal do país em que nasceu deve também renunciar ao direito que lhe pertencia por suas leis e às posses ali situadas que lhe cabem por herança de seus ancestrais no caso destes últimos terem participado da fundação do governo 192 Pelo segundo os habitantes de qualquer país que são descendentes e derivam um título a seus bens daqueles a que estão submetidos e têm um governo imposto sobre eles contra seu livre consentimento mantêm o direito à posse de seus ancestrais embora eles não tenham consentido livremente no governo cujas duras condições foram impostas pela força sobre os proprietários daquele país Como o primeiro conquistador jamais tem direito à terra daquele país o povo que é constituído pelos descendentes daqueles que foram constrangidos pela violência a se curvar ao jugo de um governo de força tem sempre o direito de sacudir este jugo e se libertar da usurpação ou da tirania que a espada lhe impôs até obter de seus chefes uma forma de governo na qual ele consinta voluntariamente e por escolha Jamais se poderia presumir que ele pudesse fazer isso até que estivesse em um pleno estado de liberdade para escolher seu governo e seus governantes ou pelo menos até que tivesse leis positivas às quais ele próprio ou seus representantes tivessem dado seu livre consentimento e também até que lhe fosse reconhecido o direito de propriedade legítimo ou seja o direito que cada indivíduo possui de ser proprietário daquilo que lhe pertence em condições que interditam qualquer outra pessoa a lhe subtrair uma parte qualquer sem seu próprio consentimento sem isso quem quer que esteja sob qualquer governo não tem o estatuto de homem livre mas de escravo sob o qual a força da guerra se exerce sem intermediário Quem duvida que os cristãos gregos descendentes dos antigos proprietários daquele país possam legitimamente sacudir o jugo turco sob o qual generam por tanto tempo quando tiverem poder para isso 193 Se concordamos que o conquistador em uma guerra justa tem tanto direito aos bens quanto poder sobre as pessoas do conquistado o que evidentemente é falso nada indica que este governo se transforme em um poder absoluto se se prolongar porque como os descendentes destes são todos homens livres se ele lhes outorga bens e posses para habitar em seu país sem o que ele não valeria nada eles adquirem a propriedade de tudo o que ele lhes transfere na medida em que se trata de uma transferência A natureza da propriedade é que sem o próprio consentimento do homem ela não pode ser dele tomada 194 Suas pessoas são livres por direito de nascença e suas propriedades não importa a sua extensão são propriedades próprias e estão à sua própria disposição não àquela do conquistador caso contrário não haveria propriedade Supondose que o conquistador dá mil acres a um homem e a seus herdeiros para sempre mas a outro ceda mil acres durante a sua vida sob um aluguel de cinqüenta ou cem libras por ano O primeiro não tem direito a seus mil acres perpetuamente e o segundo aos seus durante sua vida se pagar o aluguel fixado O locatário vitalício não tem a propriedade de tudo aquilo que pode extrair da terra por seu trabalho e sua indústria durante o período fixado supondo que isso atinja a um montante equivalente ao dobro do aluguel Podese sustentar que o rei ou o conquistador após ter feito essa cessão possa invocar o poder que lhe confere a conquista para retomar as terras em sua totalidade ou em parte dos herdeiros do primeiro destes dois homens ou do segundo durante sua vida quando ele está pagando seu aluguel Ou ele pode retomar de um ou de outro os bens ou o dinheiro que obtiveram da terra como bem entender Se pode isso então significa o fim de todos os contratos livres e voluntários do mundo Basta existir poder suficiente para anulálos a qualquer momento E todas as doações e promessas dos homens que estão no poder não passam de escárnio e conluio pois pode haver algo mais ridículo que dizer Eu lhe dou isso para sempre a você e aos seus utilizando para isso o modo de comunicação mais confiável e solene que se possa imaginar embora o que tenha de ser compreendido é que eu tenho o direito se quiser de retomálo de você amanhã 195 Eu não vou discutir agora se os príncipes estão isentos das leis de seu país mas estou certo de que devem submissão às leis de Deus e da natureza Nenhum indivíduo nenhum poder pode se isentar das obrigações que essa lei eterna lhes impõe Elas são tão grandes e tão fortes no caso das promessas que a própria onipotência pode estar a elas vinculadas As cessões as promessas e os juramentos são compromissos julgados pelo TodoPoderoso Seja o que for que alguns bajuladores digam aos príncipes do mundo estes juntamente com Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 89 todas as pessoas que a eles se juntarem não representam diante da grandeza divina senão uma gota do oceano ou um grão de poeira na balança absolutamente nada 196 O resumo da questão referente à conquista é o seguinte o conquistador se tiver uma causa justa tem um direito despótico sobre as pessoas de todos aqueles que realmente ajudaram e concorreram na guerra contra ele e um direito de recuperar seu prejuízo e sua despesa à custa do trabalho e dos bens dos vencidos contanto que com isso não prejudique terceiros Sobre o restante do povo se há alguns que não concordaram com a guerra e sobre os filhos dos próprios prisioneiros ou as posses de ambos ele não tem poder algum e assim não pode retirar da conquista nenhum título legítimo para exercer sobre eles sua dominação nem para transmitir algum à sua posteridade mas se é um agressor e se coloca em um estado de guerra contra eles nem ele nem seus sucessores têm qualquer direito de principado maior que Hingar ou Hubba os dinamarqueses tiveram aqui na Inglaterra ou Spartacus teria se tivesse conquistado a Itália ou seja o direito que alguém tem de se livrar de seu jugo assim que Deus proporcionar àqueles que estão sob sua sujeição a coragem e a oportunidade para fazêlo Assim Deus não levou em conta os direitos fossem quais fossem que os reis da Assíria podiam reivindicar sobre Judá pela força da espada e ajudou Ezequias a se libertar da dominação deste império conquistador E o Senhor estava com Ezequias e ele prosperou por isso ele progrediu rebelouse contra o rei da Assíria e se recusou a servilo 2Reis 187 Fica evidente então que se alguém abala um poder ao qual foi submetido pela força e não pelo direito esta ação recebe o nome de rebelião mas não constitui um pecado diante de Deus que ao contrário a aprova e autoriza sem dar qualquer importância aos acordos e aos pactos que intervêm uma vez que foram extorquidos pela força Para qualquer um que tenha lido atentamente a história de Acaz e Ezequias parece muito provável que os assírios tenham vencido Acaz e o deposto tenham feito de Ezequias rei durante a vida de seu pai e que Ezequias em virtude de um acordo durante todo esse tempo tenhalhe prestado homenagem e pago tributo CAPÍTULO XVII DA USURPAÇÃO 197 Assim como a conquista pode ser chamada de usurpação do estrangeiro a usurpação também é uma espécie de conquista doméstica com a diferença de que jamais um usurpador pode ter o direito do seu lado só havendo usurpação quando alguém toma posse daquilo que pertence por direito a outra pessoa Isto embora também constitua uma usurpação é apenas uma troca de pessoas mas não das formas e regras do governo mas se o usurpador estende seu poder além daquele por direito pertencente aos príncipes ou governadores legítimos da comunidade civil tratase de tirania adicionada à usurpação 198 Em todos os governos legítimos a designação das pessoas que devem comandar é um elemento tão natural e necessário quanto a forma do governo em si e dela o povo originalmente retirou seu estabelecimento Por isso todas as comunidades civis com a forma de governo estabelecida prevêem regras também para designar aqueles que terão qualquer participação na autoridade pública assim como métodos estabelecidos para investi los de suas funções A anarquia é um tanto semelhante seja ela desprovida de qualquer forma de governo ou regida por uma monarquia escolhida mas sem que se tenha previsto o meio de se designar ou nomear a pessoa que exercerá o poder e será o monarca Quem quer que exerça qualquer parcela do poder por outros meios que não aqueles prescritos pelas leis da comunidade civil não tem o direito de exigir obediência mesmo que a forma da comunidade civil seja ainda preservada pois não se trata de uma pessoa que as leis tenham designado e conseqüentemente não é a pessoa a quem o povo deu seu consentimento Nem este usurpador nem qualquer de seus sucessores jamais poderão ter um título até que o povo esteja ao mesmo tempo em liberdade de consentir e tenha realmente consentido em reconhecêlo e permitirlhe a autoridade que eles até então lhes usurparam CLUBE DO LIVRO LIBERAL CAPÍTULO XVIII DA TIRANIA 199 Assim como a usurpação consiste em exercer um poder a que um outro tem direito a tirania consiste em exercer o poder além do direito legítimo o que a ninguém poderia ser permitido É isto que ocorre cada vez que alguém faz uso do poder que detém não para o bem daqueles sobre os quais ele o exerce mas para sua vantagem pessoal e particular quando o governante mesmo autorizado governa segundo sua vontade e não segundo as leis e suas ordens e ações não são dirigidas à preservação das propriedades de seu povo mas à satisfação de sua própria ambição vingança cobiça ou qualquer outra paixão irregular 200 Se alguém duvidar da verdade desta proposição ou de sua fundamentação por ela vir da mão obscura de um súdito espero que a autoridade de um rei saiba fazer com que seja aceita O rei James em seu discurso no parlamento em 1603 nos declara Eu vou sempre preferir o bem do público e o de toda a comunidade civil fazendo boas leis e boas constituições a qualquer objetivo meu privado e pessoal Pensarei sempre na riqueza e no bem da comunidade civil como meu maior bem e minha grande felicidade no mundo nisso o rei legítimo se situa em oposição ao tirano Eu reconheço que a principal e específica diferença entre um rei legítimo e um tirano usurpador é a seguinte o tirano orgulhoso e ambicioso acredita que seu reinado e seu povo estão destinados apenas à satisfação de seus desejos e de suas aspirações exorbitantes ao contrário o rei legítimo e justo reconhece que sua própria existência deve ser destinada à busca da riqueza e da propriedade de seu povo E novamente em seu discurso ao parlamento em 1609 ele diz as seguintes palavras O rei obriga a si próprio um duplo juramento para observar as leis fundamentais de seu reino Tacitamente em virtude de sua qualidade de rei comprometendose a proteger o bem do povo e as leis de seu reinado e expressamente pelo juramento que pronunciou quando foi coroado assim todo rei justo em num reino estabelecido comprometese a observar o pacto feito com seu povo quando ele fez as leis proporcionando ao seu governo uma organização que se harmonize com ele seguindo o modelo do pacto que Deus fez com Noé após o dilúvio Daí em diante seja tempo de semeadura ou de colheita frio ou quente verão ou inverno dia ou noite ele não terminará enquanto a terra existir Por isso um rei que governa um reino estabelecido deixa de ser um rei e degenera em um tirano no momento em que ele põe de lado as leis estabelecidas e passa a governar de acordo com suas próprias leis E um pouco depois Por isso todos os reis que não são tiranos ou perjuros ficarão felizes em se restringir aos limites de suas leis E aqueles que os convencem do contrário são víboras pestes e estão tanto contra eles quanto contra toda a comunidade civil Assim este monarca ilustrado que compreendia bem as noções das coisas estabelece que a diferença entre um rei e um tirano consiste apenas em que o primeiro faz das leis o limite de seu poder e do bem público o objetivo de seu governo o outro subordina tudo a sua vontade e ambição pessoais 201 É um erro acreditar que este defeito é exclusivo apenas das monarquias outras formas de governo também podem estar propensas a possuílo Cada vez que um poder colocado nas mãos de alguém que deve governar o povo e preservar suas propriedades é aplicado para outros objetivos e é utilizado para empobrecer perseguir ou subjugar o povo às ordens irregulares e arbitrárias daqueles que o detêm imediatamente se transforma em uma tirania seja este abuso cometido por um ou mais homens Por exemplo podemos ler a história dos trinta tiranos de Atenas ou aquela de um tirano único em Siracusa e a intolerável dominação dos decênviros em Roma não foi nada melhor 202 Onde termina a lei começa a tirania desde que a lei seja transgredida em prejuízo de alguém Toda pessoa investida de uma autoridade que excede o poder a ele conferido pela lei e faz uso da força que tem sob seu comando para atingir o súdito com aquilo que a lei não permite deixa de ser um magistrado e Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 91 como age sem autoridade qualquer um tem o direito de lhe resistir como a qualquer homem que pela força invada o direito de outro Isto é admitido nos magistrados subalternos Aquele que tem autoridade para me dominar na rua pode encontrar uma resistência como aquela que demonstro a um gatuno ou a um ladrão se tentar invadir minha casa para executar um mandato judicial não importa se eu sei que ele é portador deste mandato e que tem competência para proceder legalmente a minha prisão E por que este princípio não se aplica ao magistrado de escalão mais elevado assim como àquele que ocupa o escalão mais baixo Eu gostaria de saber É razoável que o irmão mais velho que recebe a maior parte da herança do pai deveria ter o direito de se apropriar das partes de seus irmãos mais moços Ou aquele homem rico que possuía uma região inteira por este fato teria o direito de se apoderar quando quisesse do casebre e do jardim de seu vizinho pobre A posse legítima de um poder e de uma riqueza consideráveis que ultrapassam excessivamente a maior parte daquilo que os filhos de Adão puderam recolher está longe de ser uma desculpa e muito menos uma razão para a rapina e a opressão pois devem ser assim qualificados todos os danos causados ao outro sem autoridade ao contrário é uma provocação Exceder os limites da autoridade não é um direito maior em um agente superior que em um agente subalterno não mais justificável em um rei do que em um policial mas é muito pior se seu autor está encarregado de uma missão de confiança e se a vantagem da educação que recebeu de suas funções e dos conselheiros que o auxiliam o favorece em relação a seus irmãos e permite supôlo melhor informado dos critérios do bem e do mal 203 Podese resistir às ordens de um príncipe A resistência é legítima todas as vezes que um indivíduo se percebe lesado ou imagina que não lhe foi feito justiça Isto vai perturbar e transtornar todos os regimes políticos e em vez de governo e ordem não se terá senão anarquia e confusão 204 A isso eu respondo Não se deve opor a força senão à força injusta e ilegal quem quer que resista em qualquer outra circunstância atrai para si uma condenação justa tanto de Deus quanto dos homens e em conseqüência só virão perigos e tumultos como freqüentemente é sugerido Porque 205 Primeiro Como em alguns países a pessoa do príncipe pela lei é sagrada seja o que for que ele ordene ou faça sua pessoa ainda permanece livre de qualquer questionamento ou violência e escapa ao uso da força ou a qualquer censura ou condenação judicial Mas podese fazer oposição aos atos ilegais de qualquer agente inferior ou outro indivíduo por ele nomeado a menos que ele realmente se coloque em estado de guerra contra seu povo dissolva o governo e deixe o povo entregue àquela defesa que pertence a todos no estado de natureza Quem poderia prever como podem terminar situações desse tipo Um reino vizinho mostrou ao mundo um exemplo estranho Em todos os outros casos a inviolabilidade da pessoa a exime de todas as inconveniências o que o situa ao abrigo de toda violência e de todo mal enquanto o governo subsistir e nesse sentido não poderia haver uma constituição mais sábia O mal que ele pode fazer pessoalmente não se arrisca a se renovar com freqüência e não estende muito seus efeitos porque sua força individual não lhe dá os meios para subverter as leis nem para oprimir o conjunto do povo supondose um príncipe tão fraco e de uma natureza tão ruim para querer agir deste modo O inconveniente de determinadas más ações que podem às vezes ocorrer quando um príncipe impetuoso sobe ao trono são bem recompensadas pela paz do público e tranqüilidade do governo na pessoa do magistrado supremo colocado fora do alcance do perigo é mais seguro para o conjunto que um pequeno número de homens corra às vezes o risco de sofrer do que expor desnecessariamente o chefe da república 206 Segundo Este privilégio pertence somente à pessoa exclusiva do rei e não impede questionar se opor e resistir àqueles que usam a força injusta embora eles pretendam dele um comissionamento que a lei não autoriza Isto está evidente no caso daquele que tem um mandato do rei para prender um homem um comissionamento pleno do rei e no entanto ele não pode invadir a casa de um homem para fazêlo nem executar a ordem do rei em determinados dias ou em determinados locais embora este comissionamento não contenha exceções em si mas são limitações da lei que se alguém transgredir o comissionamento CLUBE DO LIVRO LIBERAL do rei não o justifica Como a autoridade do rei lhe é outorgada pela lei ele não pode conferir a ninguém o poder de agir contra a lei ou justificar seu ato por seu comissionamento O comissionamento ou a ordem de qualquer magistrado onde ele não tem autoridade são tão nulos e insignificantes quanto aqueles de um homem qualquer A diferença entre um e outro é que o magistrado tem alguma autoridade dentro de limites e fins determinados enquanto o homem comum não tem nenhuma Não é o comissionamento mas a autoridade que dá o direito de agir e contra as leis não pode haver autoridade mas apesar de tal resistência a pessoa e a autoridade do rei ainda estão ambas asseguradas e assim não há riscos nem para o governante nem para o governo 207 Terceiro Supondose um governo em que a pessoa do magistrado supremo não é sagrada esta doutrina que autoriza a resistência cada vez que ele exerce ilegalmente seu poder tem por efeito criar situações inúteis que o exporiam a riscos ou colocariam o governo em má situação Quando a parte prejudicada pode ser aliviada e seus danos reparados pelo apelo à lei não pode haver pretexto para a força que só deve ser utilizada quando um homem é interceptado em seu apelo à lei Nada justifica a força hostil exceto quando é negado a alguém o recurso legal Apenas esta força coloca quem a usa em estado de guerra e torna legal a resistência a ele Um homem com uma espada em suas mãos exige minha carteira na estrada quando talvez eu não possua nem doze cêntimos em meu bolso legalmente eu posso matar este homem A outro eu entreguei cem libras para guardar apenas enquanto eu desmonto e ele se recusa a me devolver o dinheiro quando eu torno a montar e tira a sua espada para defender a posse pela força tento retomálo Este homem me causa um prejuízo cem vezes talvez mil vezes maior que o outro talvez tencionasse me fazer a quem eu matei antes que realmente me tivesse feito alguma coisa entretanto eu podia legalmente matar o primeiro enquanto legalmente eu não podia nem sequer ferir o segundo A razão é clara O primeiro utilizou a força e minha vida ficou ameaçada eu podia não ter tempo de utilizar as vias legais para protegêla e se viesse a perdêla seria muito tarde para qualquer recurso A lei não poderia ressuscitar minha carcaça sem vida A perda seria irreparável e para evitála a lei da natureza me dá o direito de destruir o indivíduo que se colocou em estado de guerra contra mim e ameaçou minha destruição Mas no outro caso minha vida não estando em perigo eu posso ter o benefício de apelar para a lei e ter dessa forma a reparação para minhas cem libras 208 Quarto Se os atos ilegais cometidos pelo magistrado foram confirmados pelo poder que ele detém e se o mesmo poder obstrui a reparação que a lei obriga o direito de resistir não perturbará o governo de maneira intempestiva nem sem razão grave mesmo diante de atos de tirania assim manifestos Se a questão não interessa senão a alguns particulares ainda que eles tenham o direito de se defender e de recuperar pela força aquilo que lhes foi tomado ilegalmente pela força o direito de agir dessa forma não corre o risco de facilmente engajálos em um conflito em que certamente eles perecerão sendo impossível para um ou poucos homens oprimidos perturbarem o governo se o conjunto do povo não se encontra interessado assim como um louco furioso ou um descontente exaltado derrubarem um estado firmemente estabelecido pois o povo também está pouco inclinado a seguir um ou outro 209 Mas se estes atos ilegais estendem seus efeitos à maioria do povo ou se a má ação e a opressão só atingem uma minoria mas em condições tais que todo mundo parece ameaçado pelo precedente assim criado e por suas conseqüências e se todos estão convencidos em suas consciências que suas leis estão em perigo e com elas seus bens liberdades e vidas e talvez até sua religião eu não sei como eles poderiam ser impedidos de resistir à força ilegal usada contra eles Admito que esta é uma inconveniência que espera todos o governos sejam quais forem quando os governantes deixam as coisas chegarem a um ponto em que a grande massa de seu povo os trata como suspeitos é a situação mais perigosa em que eles podem se colocar e eles são os que merecem menos piedade pois isso é muito fácil de ser evitado É impossível para um governante se ele realmente pretende o bem do seu povo e ao mesmo tempo sua preservação e a de suas leis não conseguir que eles enxerguem e sintam isso como para um pai de família não deixar seus filhos perceberem que ele os ama e cuida deles 210 Mas se todo mundo constata que se pretende agir de uma maneira e se age na verdade de outra se são usados ar tifícios para escapar da lei e se utiliza a confiança da prerrogativa que é um poder arbitrário em Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 93 algumas coisas deixadas nas mãos do príncipe para fazer o bem e não o mal ao povo empregada contrariamente aos objetivos para os quais foi confiada se o povo perceber que os ministros e os magistrados subalternos foram escolhidos em função de tais fins e que são retribuídos pelo favorecimento ou pela desgraça segundo seu apoio ou sua oposição se vê aplicada repetidamente a experiência do poder arbitrário e se percebe que se favorece a religião clandestina embora a condenando em público que está prestes a se estabelecer com seus membros recebendo todo o apoio possível e quando a coisa não pode ser feita ainda assim é aprovada como sendo a melhor se enfim toda uma seqüência de ações mostra todos os concílios tendendo para aquela direção como um homem poderia se impedir mais tempo de interpretar o rumo dos acontecimentos e procurar um meio de se salvar além de acreditar que o capitão do navio em que ele estava levava a ele e o resto dos passageiros para a Argélia quando o encontrava sempre seguindo este curso embora ventos contrários fendas em seu casco e falta de homens e provisões freqüentemente o forçassem a mudar seu curso para outra direção durante algum tempo à qual ele prontamente retornava logo que o vento o tempo e outras circunstâncias o permitiam CAPÍTULO XIX DA DISSOLUÇÃO DO GOVERNO 211 Quando se deseja falar da dissolução do governo com alguma clareza é preciso começar por distinguir entre a dissolução da sociedade e a dissolução do governo Aquilo que constitui a comunidade e tira os homens do estado livre da natureza e os coloca em uma sociedade política é o acordo que cada um estabelece com o restante para se associar e agir como um único corpo e assim se tornar uma comunidade civil distinta A maneira usual e praticamente a única pela qual esta união é dissolvida é a invasão de uma força estrangeira realizando uma conquista Neste caso não sendo possível subsistir nem sobreviver como um único organismo intacto e independente necessariamente cessa a união que caracterizava este organismo e que o constituía e assim cada um retorna a sua condição anterior ao estado em que estava antes com uma liberdade de se arranjar sozinho e prover sua própria segurança como julgar adequado em alguma outra sociedade Quando a sociedade é dissolvida é certo que o governo dessa sociedade deve desaparecer Assim as espadas dos conquistadores freqüentemente cortam os governos pela base e pulverizam a sociedade pois põem fim às relações mútuas de obediência e proteção que uniam as massas que ela subjugou ou dispersou e à ordem social que deveria conserválas ao abrigo da violência O mundo está bastante bem informado sobre este modo de dissolução dos governos e bastante disposto a se acomodar para que seja necessário insistir mais e é fácil provar que o governo não pode subsistir quando a sociedade é dissolvida é tão impossível a estrutura de uma casa sobreviver quando seu revestimento é espalhado e deslocado por um furacão ou quando misturado em uma pilha confusa por um terremoto 212 Além desta derrocada de fora os governos são dissolvidos a partir de dentro Primeiro Quando o legislativo é alterado Sendo a sociedade civil definida como um estado de paz onde os associados excluíram o estado de guerra confiando o papel de árbitro ao poder legislativo para que este ponha fim a todas as diferenças que podem surgir entre eles é no legislativo que os membros de uma comunidade civil estão unidos e combinados em conjunto para formar um único organismo vivo e homogêneo Esta é a alma que dá à comunidade civil sua forma sua vida e sua unidade Daí procedem a influência a simpatia e a conexão mútua entre seus vários membros Por isso quando o legislativo é rompido ou dissolvido seguemse a dissolução e a morte Como a essência e a união da sociedade consistem em se ter uma vontade o legislativo uma vez estabelecido é encarregado de declarar esta vontade e por assim dizer guardála A constituição do legislativo é o ato primeiro e fundamental da sociedade em virtude desse ato os associados prevêem a manutenção de sua união remetendose ao consentimento do povo e a sua escolha para designar as pessoas que os governarão e para habilitar as pessoas que farão as leis que regerão seus atos de maneira que nenhum indivíduo nenhum CLUBE DO LIVRO LIBERAL grupo entre eles tenha o poder de legislar por outros procedimentos Quando um ou mais indivíduos assumem a tarefa de legislar sem que o povo os tenha autorizado a fazêlo eles fazem leis sem autoridade e por isso o povo não é obrigado a obedecêlas Em conseqüência disso o povo se vê novamente desobrigado de qualquer sujeição e pode constituir para si um novo legislativo como achar melhor estando em ampla liberdade para resistir à força daqueles que sem autoridade iriam lhes impor qualquer coisa Cada um recupera a disposição de toda a sua vontade quando aqueles que uma delegação da sociedade encarregou de declarar a vontade do público não pode mais fazêla e outros usurpam o lugar sem qualquer autoridade ou delegação 213 Isto em geral é provocado por pessoas da comunidade civil que fazem mau uso do poder que detêm e é difícil considerar o fato com justiça e determinar o responsável sem saber a forma de governo em que isso se produziu Vamos supor então que o legislativo tenha sido confiado à decisão de três pessoas distintas 1 Um personagem hereditário único detentor do poder executivo permanente e supremo e também com o poder de convocar e dissolver os outros dois em momentos determinados 2 Uma assembléia da nobreza hereditária 3 Uma assembléia de representantes escolhidos pro tempore pelo povo Supondose tal forma de governo é evidente 214 Primeiro Que quando tal personagem única ou tal príncipe estabelece sua própria vontade arbitrária em lugar das leis que são a vontade da sociedade declaradas pelo legislativo então o legislativo é alterado Como o poder legislativo é aquele que executa os regulamentos e as leis e ao qual se deve obediência quando outras leis são estabelecidas e outras regras invocadas e impostas sem ter sido adotados pela legislatura que a sociedade instaurou é evidente que o poder legislativo se encontra modificado Quem quer que introduza novas leis ou subverta as leis antigas sem ter sido para isso autorizado pela designação fundamental da sociedade renega e derruba o poder pelo qual foi constituído e estabelece assim um novo legislativo 215 Segundo Quando o príncipe proíbe o legislativo de se reunir em seu devido tempo ou de agir livremente em busca daqueles objetivos para os quais foi constituído o legislativo é alterado Não é um certo número de homens nem o fato deles se reunirem que constituem o poder legislativo se falta a esses homens a liberdade de debater entre eles e a calma para aperfeiçoar o que visa o bem da sociedade Quando se suprimem ou se alteram estes atributos para privar a sociedade do devido exercício de seu poder o legislativo é realmente alterado Pois não são as denominações que constituem os governos mas o uso e o exercício daqueles poderes que foram designados para acompanhálos assim quem tira a liberdade ou impede a ação do legislativo nas temporadas fixadas para suas reuniões na verdade derruba o legislativo e põe fim ao governo 216 Terceiro Quando o príncipe se serve de seu poder arbitrário para mudar a designação dos eleitores ou o modo de eleição sem o consentimento do povo e contra ao seu interesse comum então também o legislativo é alterado Se vem a ser designado por outros indivíduos que não aqueles que a sociedade habilitou para este efeito ou por outros procedimentos que não aqueles prescritos por ela os escolhidos não são o poder legislativo designado pelo povo 217 Quarto Quando o príncipe ou o poder legislativo libertam o povo da dominação de um poder estrangeiro isto certamente constitui uma mudança do poder legislativo e por conseguinte uma dissolução do governo Como as pessoas se associaram a fim de assegurar sua proteção na integridade liberdade e independência de uma única sociedade regida por suas próprias leis isto se torna impossível quando é deixado em poder de qualquer outro 218 Compreendese facilmente por que razão sob uma constituição deste gênero devese imputar ao príncipe a dissolução do governo porque ele tendo a força o tesouro e os encargos do Estado à sua disposição freqüentemente se convence ou se deixa convencer por bajuladores que sua qualidade de magistrado supremo o Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 95 coloca ao abrigo de qualquer controle somente ele está em condições de preparar eficazmente tais mudanças sob a cobertura do exercício de uma autoridade legítima tendo em suas mãos os meios para aterrorizar ou suprimir os opositores alegando serem facciosos sediciosos e inimigos do governo Nenhum outro setor do legislativo ou do povo está apto a tentar qualquer alteração do legislativo sem uma rebelião manifesta e visível e é suficientemente capaz de perceber que quando ela prevalece produz efeitos muito pouco diferentes da conquista estrangeira Em tal forma de governo além do príncipe possuir o poder de dissolver as outras partes do legislativo e reverter seus membros à vida privada estes nunca podem em oposição a ele ou sem seu acordo modificar o poder legislativo por uma lei sendo necessário seu consentimento para sancionar qualquer decreto deles Mas ainda que as outras partes do legislativo não contribuam de qualquer modo para qualquer atentado contra o governo favorecendo estes desígnios ou se abstendo de a eles se opor são culpadas e se tornam cúmplices deste crime certamente o maior que os homens podem cometer entre si 219 Existe ainda mais um modo pelo qual um governo desse tipo pode ser dissolvido ou seja quando aquele que tem o poder executivo supremo negligencia e abandona o seu cargo impedindo assim a execução das leis já existentes Isto equivale é claro a reduzir tudo à anarquia e assim efetivamente dissolver o governo Pois as leis não são feitas para si mesmas mas para serem executadas dentro dos limites da sociedade para manter cada parte do organismo político em seu lugar e função determinados e se isso vem a desaparecer o governo evidentemente também desaparece e o povo se torna uma multidão confusa sem ordem ou coesão Quando não há mais a administração da justiça para assegurar os direitos dos homens nem qualquer poder remanescente no interior da comunidade para dirigir a força ou prover as necessidades do público certamente não há mais governo Quando as leis não podem ser executadas tudo se passa como se não houvesse leis e um governo sem leis é imagino eu um mistério político inconcebível para as faculdades do homem e incompatível com toda sociedade humana 220 Nestes casos citados e em casos semelhantes quando o governo é dissolvido o povo está em liberdade para proteger seus interesses instaurando um novo legislativo diferente do outro pela mudança das pessoas ou da forma ou de ambas como considerar mais vantajoso e mais de acordo com as exigências da segurança pública A sociedade jamais pode perder por culpa de quem quer que seja o direito inato e original que possui de se preservar que só pode ser cumprido por um legislativo estabelecido e uma execução eqüitativa e imparcial das leis feitas por ele Mas a condição da humanidade não é tão miserável que lhe seja impossível servir se deste remédio antes que seja tarde demais para procurar outro Informar a um povo que ele pode proteger seus interesses instaurando um novo legislativo quando perdeu o antigo devido à opressão ou em seguida a maquinações ou ainda por ter se libertado de um poder estrangeiro é apenas dizerlhe que pode esperar alívio quando já é muito tarde e o mal se tornou incurável Isto na verdade não é mais do que convidálo primeiro para ser escravo e depois para cuidar de sua liberdade e dizerlhes que podem agir como homens livres depois de estarem acorrentados Isto seria antes o meio de se zombar dele do que de aliviálo e os homens jamais estarão ao abrigo da tirania se não tiverem os meios de escapar antes que ela os tenha dominado completamente Por isso não somente têm o direito de sair dela mas de impedila 221 Existe então em segundo lugar outra maneira pela qual os governos são dissolvidos ou seja quando o legislativo ou o príncipe um dos dois age em desacordo com a confiança nele depositada Primeiro O legislativo age contra a confiança nele depositada quando tenta invadir a propriedade do súdito e transformar a si ou qualquer parte da comunidade em senhores que dispõem arbitrariamente da vida liberdade ou bens do povo 222 A razão por que os homens entram em sociedade é a preservação de sua propriedade e o fim a que se propõem quando escolhem e autorizam um legislativo é que haja leis e regulamentos estabelecidos que sirvam de proteção e defesa para as propriedades de todos os membros da sociedade para limitar o poder e moderar a dominação de cada parte e de cada membro da sociedade Por isso nunca se poderia imaginar que a sociedade quisesse habilitar o legislativo a destruir o próprio objeto que cada um se propunha a proteger quando a ela se juntou e que o povo teve em vista quando cuidou de escolher seus legisladores cada vez que os legisladores CLUBE DO LIVRO LIBERAL tentam tomar ou destruir a propriedade do povo ou reduzilo à escravidão sob um poder arbitrário estão se colocando em um estado de guerra contra o povo que fica portanto dispensado de qualquer obediência e é então deixado ao refúgio comum que Deus deu a todos os homens contra a força e a violência Sempre que o legislativo transgredir esta regra fundamental da sociedade e seja por ambição por medo por tolice ou por corrupção tentar dominar a si mesmo ou pôr as mãos em qualquer outro poder absoluto sobre as vidas as liberdades e os bens do povo por este abuso de confiança ele confisca o poder que o povo depositou em suas mãos para fins absolutamente contrários e o devolve ao povo que tem o direito de retomar sua liberdade original e pelo estabelecimento de um novo legislativo o que ele considerar adequado promover sua própria segurança e tranqüilidade que é o objetivo pelo qual estão em sociedade O que eu disse aqui com respeito ao legislativo em geral se aplica também ao executor supremo que tendo uma dupla confiança nele depositada tanto uma participação no legislativo quanto a suprema execução da lei age contra ambas quando começa a estabelecer sua própria vontade arbitrária como a lei da sociedade Ele age também contrário a sua confiança quando emprega a força os recursos do Tesouro e os cargos públicos da sociedade para corromper os representantes e obter sua conivência com seus propósitos ou se abertamente ele alicia os eleitores e lhes prescreve escolher indivíduos que por solicitações ameaças promessas ou quaisquer outros meios já concordaram com suas intenções e emprega esses eleitores para enviar às assembléias homens que se sentissem obrigados no futuro a votar de uma certa maneira e fazer adotar leis determinadas Assim sendo o que é este controle sobre candidatos e eleitores este novo modelo de procedimento eleitoral senão cortar o governo pela base e envenenar a verdadeira fonte da segurança pública O povo que reservou a si mesmo a escolha de seus representantes como a defesa de suas propriedades não poderia proceder a isso por nenhuma outra razão senão aquela de eles poderem sempre ser livremente escolhidos e assim sendo poderem agir e aconselhar com a mesma liberdade baseandose nas necessidades da comunidade civil e no bem público como a reflexão e uma discussão racional lhes julgasse requerer Isso aqueles que votam sem ter ouvido os debates e considerado a razão de todos os lados não são capazes de fazer Preparar uma assembléia deste gênero e tentar fazer passar os cúmplices declarados de sua própria vontade pelos verdadeiros representantes do povo e legisladores da sociedade é certamente um abuso de confiança da maior gravidade e a mais perfeita declaração de uma intenção de subverter o governo Se acrescentarmos a isso as recompensas e punições visivelmente empregadas para o mesmo fim e todos os artifícios de uma lei pervertida utilizados para tomar e destruir todos que se interpõem no caminho de tal intenção e não concordam em trair as liberdades de seu país não haverá mais dúvida sobre o que está ocorrendo Quanto ao poder que merecem os membros da sociedade que o empregam contrariamente à confiança que acompanha sua missão em sua primeira instituição é fácil determinar evidentemente é impossível confiar no futuro em alguém que tenha se comprometido uma vez que seja em uma tentativa deste gênero 223 A isso talvez se possa objetar que o povo é ignorante e está sempre descontente e portanto estabelecer as bases do governo na opinião insegura e no humor incerto do povo é expôlo à ruína certa e nenhum governo será capaz de subsistir muito tempo se o povo puder instaurar um novo legislativo sempre que desconfiar do antigo A isto eu responderei É exatamente o contrário O povo não está tão facilmente pronto a se afastar de suas formas antigas como alguns pretendem sugerir Dificilmente se consegue convencêlo a corrigir os defeitos reconhecidos da estrutura a que está acostumado Se há quaisquer defeitos originais ou outros introduzidos pelo tempo ou pela corrupção não é uma tarefa fácil conseguir que sejam mudados mesmo quando todo mundo vê que há uma oportunidade para isso Esta lentidão e aversão que o povo tem de abandonar suas antigas constituições nas muitas revoluções que foram vistas neste reino nesta época e em épocas anteriores perpetuaram nossa fidelidade diante de nosso antigo poder legislativo composto do rei de lordes e de homens do povo ou nos faz todas as vezes voltar a ele quando várias tentativas estéreis o derrubaram Sejam quais tenham sido as provocações que impeliram o povo a retirar a coroa das cabeças de alguns de nossos príncipes jamais o levaram tão longe a ponto de colocála em uma outra linhagem 224 Mas podese argumentar que esta hipótese se arrisca a incitar a freqüente rebelião A isto eu respondo Primeiro Não mais que qualquer outra hipótese Pois quando se lança o povo na miséria e ele se vê exposto ao mau uso do poder arbitrário proclame quanto quiser que seus governantes são filhos de Júpiter considereos sagrados e divinos descidos ou autorizados pelo céu faça com que pareçam com aquilo que você quiser a mesma coisa irá acontecer O povo maltratado governado de maneira ilegal estará pronto na primeira ocasião para se libertar de uma carga que lhe pesa demais sobre os ombros Ele deseja e busca a oportunidade Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 97 que nas flutuações fraquezas e acidentes das questões humanas raramente tarda a se apresentar A menos que tenha vivido muito pouco tempo no mundo todo homem foi em sua época testemunha de exemplos deste gênero e deve ter lido muito pouco aquele que não é capaz de encontrar exemplos em todo tipo de governos do mundo 225 Segundo Eu respondo que tais revoluções não ocorrem devido a cada pequena falta cometida na administração dos negócios públicos Erros graves por parte do governo muitas leis injustas e inoportunas e todos os deslizes da fraqueza humana são suportados pelo povo sem revolta ou queixa Mas se uma longa sucessão de abusos prevaricações e fraudes todas tendendo na mesma direção torna a intenção visível ao povo e ele não pode deixar de perceber o que o oprime nem de ver o que o espera não é de se espantar então que ele se rebele e tente colocar as rédeas nas mãos de quem possa lhe garantir o fim em si do governo sem isso as denominações antigas e as formas enganadoras longe de representar um progresso em relação ao estado de natureza e à anarquia pura e simples são bem piores pois o mal permanece tão grave e tão próximo mas o remédio mais distante e mais difícil 226 Terceiro Eu respondo que este poder que o povo detém de restaurar sua segurança instaurando um novo legislativo quando seus legisladores agem contra a sua missão invadindo sua propriedade é a melhor defesa contra a rebelião e o meio mais eficaz para impedila Se a rebelião é uma oposição não às pessoas mas à autoridade que se fundamenta unicamente nas constituições e leis do governo aqueles que invadem pela força e justificam pela força sua violação são verdadeira e propriamente rebeldes Quando os homens se uniram em sociedade sob um governo civil excluíram o uso da força e introduziram leis para a preservação da propriedade da paz e da unidade entre eles e aqueles que contrariamente às leis fazem reviver o uso da força agem realmente de maneira a rebellare ou seja restabelecer o estado de guerra e são propriamente rebeldes aqueles que estão no poder sob o pretexto de que têm autoridade a tentação da força de que dispõem e a bajulação dos outros sobre eles são os mais prováveis de agir desse modo e a melhor maneira de prevenir o mal é mostrar o perigo e a injustiça àqueles que estão mais expostos a se deixar tentar 227 Nos dois casos já mencionados quando o legislativo é modificado ou quando os legisladores agem contra da finalidade para a qual foram instituídos os responsáveis são culpados de rebelião Quem quer que suprima pela força o legislativo estabelecido de uma sociedade e as leis por ele feitas conforme a confiança nele depositada suprime também a arbitragem em que todos consentiram visando uma decisão pacífica de todas as suas controvérsias e um obstáculo ao estado de guerra entre eles Aquele que remove ou altera o legislativo suprime este poder decisivo que ninguém pode possuir exceto pela designação e o consentimento do povo e assim destrói a autoridade que o povo estabeleceu e que só ele pode estabelecer e introduzindo um poder que o povo não autorizou na verdade introduz um estado de guerra que é aquele da força sem autoridade Assim removendo o legislativo estabelecido pela sociedade em cujas decisões o povo aquiesceu unanimemente como se ele mesmo a houvesse tomado eles desatam o nó e expõem o povo novamente ao estado de guerra Se aqueles que suprimem o legislativo pela força são rebeldes os próprios legisladores como foi mostrado não merecem menos este nome quando em lugar de proteger e preservar o povo suas liberdades e propriedades o que lhe foi confiado fazer eles pela força invadem e tentam suprimilas como se colocam em um estado de guerra contra aqueles que fizeram deles protetores e guardiães de sua paz são no sentido próprio e com a mais terrível das circunstâncias agravantes rebellantes rebeldes 228 Mas se aqueles que dizem que nosso argumento lança uma base para a rebelião entendem que assim se está arriscado a provocar uma guerra civil e disputas internas ao se dizer ao povo que ele está dispensado da obediência quando tentativas ilegais são feitas contra suas liberdades ou propriedades e pode se opor à violência ilegal daqueles que eram seus magistrados quando invadiram suas propriedades contrariamente à confiança neles depositada e que por isso esta doutrina não deve ser permitida sendo também perigosa à paz do mundo eles podem do mesmo modo sustentar que os homens honestos não podem se opor aos ladrões ou aos piratas porque isso pode ocasionar desordem ou derramamento de sangue Se qualquer malfeito ocorre nesses casos não se deve responsabilizar aquele que defende seu próprio direito mas aquele que invade o de seu vizinho Se o CLUBE DO LIVRO LIBERAL homem honesto deve abandonar tudo o que possui pela paz em prol daquele que porá suas mãos violentas sobre a sua propriedade eu quero que seja considerado que tipo de paz haverá no mundo que consiste apenas na violência e na rapina e que deve ser mantida apenas em benefício dos ladrões e dos opressores Quem não admiraria o tratado de paz que os poderosos concluem com os humildes quando o carneiro sem resistência ofereceu sua garganta ao lobo imperioso para que este a dilacerasse O antro de Polifemo nos fornece um perfeito padrão de tal governo em que Ulisses e seus companheiros não têm nada mais a fazer senão se deixar devorarem sem reclamar E sem dúvida Ulisses que era um homem prudente recomendou a seus companheiros obediência passiva e os exortou a se submeter em silêncio expondolhes a importância da paz para a humanidade e mostrandolhes as inconveniências a que se arriscariam se oferecessem resistência a Polifemo que agora detinha o poder sobre eles 229 O objetivo do governo é o bem da humanidade e o que é melhor para a humanidade que o povo deva estar sempre exposto à vontade desenfreada da tirania ou que os governantes às vezes enfrentem a oposição quando exorbitam de seus direitos no uso do poder e o empregam para a destruição e não para a preservação das propriedades de seu povo 230 Que ninguém diga que partindo deste princípio haverá malfeitos a cada vez que um indivíduo impetuoso ou de espírito turbulento desejar a mudança do governo É verdade que tal homem pode se agitar sempre que quiser mas com isso só conseguirá se arruinar e se perder como bem o merece Enquanto o mal não se torna geral e as intenções nefastas dos dirigentes não se tornem visíveis assim como suas tentativas perceptíveis para a maioria o povo que prefere sofrer a resistir para fazer valer seus direitos não se arrisca a se rebelar Alguns exemplos de injustiça ou opressão particulares aqui ou ali não bastam para inquietálo Mas se universalmente se convencer baseado na evidência manifesta que as intenções o está colocando contra as suas liberdades e o curso e a tendência geral das coisas não pode deixar de lhe despertar suspeitas da má intenção de seus governantes a quem deve se queixar Quem pode ajudálo se aquele que podia evitálo se colocou sob suspeita E o povo poderá ser censurado por ter o entendimento que todas as criaturas racionais possuem e não conceber os fatos senão como os constata e os percebe Os verdadeiros responsáveis não são antes aqueles que criaram uma tal situação que não permite que eles enxerguem de outra forma Eu admito que o orgulho a ambição e a violência de determinados homens às vezes causaram grandes desordens nas comunidades civis e as facções têm sido fatais a alguns estados e reinos Mas se a causa mais freqüente desses males começou na irreflexão dos homens e em um desejo de rejeitar a autoridade legal de seus governantes ou na insolência e nas tentativas dos governadores para adquirir e exercer um poder arbitrário sobre seu povo se foi a opressão ou a desobediência que deu o primeiro passo para a desordem deixo a cargo da história imparcial determinar Estou certo de uma coisa seja quem for governante ou súdito que tente pela força invadir os direitos do príncipe ou do povo e determinar a base para a derrubada da constituição e da estrutura de qual quer governo justo ele é altamente culpado do maior crime de que um homem é capaz e deve responder por todos os males do sangue derramado da rapina e da desolação que o destroçamento de um governo traz para um país Aquele que age assim merece que a humanidade o considere como um inimigo comum e como uma peste e como tal deve ser tratado 231 Todos concordam que é permitido resistir pela força aos súditos ou aos estrangeiros que utilizam da força para se apossar dos bens de quem quer que seja Mas temse negado nos últimos tempos que se possa resistir aos magistrados que agem da mesma forma Como se aqueles que têm os maiores privilégios e vantagens propiciados pela lei tivessem assim o poder de infringir essas leis sem as quais eles não seriam em nada superiores aos seus semelhantes Sua ofensa é muito maior tanto porque não sabem agradecer a parte mais vantajosa que a lei lhes dá quanto porque falharam na missão que o povo lhes outorgou 232 Qualquer pessoa que usar a força ilegalmente como todos fazem em uma sociedade em que não existe lei colocase em estado de guerra contra aqueles contra quem ele a usa e nesse estado todos os vínculos anteriores são cancelados todos os outros direitos cessam e cada um tem o direito de se defender e resistir ao Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 99 agressor Isto é tão evidente que o próprio Barclay94 o grande defensor do poder e da santidade dos reis é forçado a admitir que em alguns casos é legal o povo resistir a seu rei também em um capítulo em que ele pretende mostrar que a lei divina proíbe ao povo todas as formas de rebelião Fica então evidente mesmo por sua própria doutrina que desde que em alguns casos a resistência é permitida nem toda resistência aos príncipes é uma rebelião São estas as suas palavras Quod siquis dicat Ergone populus tyrannicae crudelitati et furori jugulum sempre praebebit Ergone multitudo civitates suas fame ferro et flamma vastari seque conjuges et liberos fortunae ludibrio et tyranni libidini exponi inque omnia vitae pericula omnesque miserias et molestias à rege deduci patientur Num illis quod omni animantium generi est a natura tributum denegari debet ut scilicet vim vi repellant seseque ab injuria tueantur Huic breviter responsum sit populo universo negari defensionem quae juris naturalis est neque ultionem quae praeter naturam est adversus regem concedi debere Quapropter si rex non in singulares tantum personas aliquot privatum odium exerceat sed corpus etiam reipublicae cujus ipse caput est ie totum populum vel insignem aliquam ejus partem immani et intoleranda saevitia seu tyrannide divexet populo quidem hoc casu resistendi ac tuendi se ab injuria potestas competit sed tuendi se tantum non enim in principem invadendi et restituendae injuriae illatae non recedendi a debita reverentia propter acceptam injuriam Praesentem denique impetum propulsandi non vim praeteritam ulciscendi jus habet Horum enim alterum a natura est ut vitam scilicet corpusque tueamur Alterum vero contra naturam ut inferior de superiori supplicium sumat Quod itaque populus malum antequam factum sit impedire potest ne fiat id postquam factum est in regem authorem sceleris vindicare non potest populus igitur hoc amplius quam privatus quispiam habet Quod huic vel ipsis adversariis judicibus excepto Buchanano nullum nisi patientia remedium superest Cum ille si intolerabilis tyrannis est modicum enim ferre omnino debet resistere cum reverentia possit Barclay Contra Monarchomachos lib iii c 8 Isto significa 233 Mas se alguém perguntar Então as pessoas devem sempre se expor à crueldade e à ira da tirania Devem ver suas cidades pilhadas e reduzidas a cinzas suas esposas e filhos expostos à luxúria e à fúria dos tiranos e eles mesmos e suas famílias reduzidos por seu rei à ruína e todas as misérias da privação e da opressão e ficar impassíveis Devem apenas os homens ser privados do privilégio comum de opor força com força que a natureza permite tão livremente a todas as outras criaturas para se protegerem Eu respondo A autodefesa é uma parte da lei da natureza não pode ser negada à comunidade nem mesmo contra o próprio rei Mas não se deve deixar que ela se vingue sobre ele pois isso não está de acordo com a lei da natureza Por isso se o rei demonstrar um sentimento de ódio não apenas a determinadas pessoas mas se colocar contra todo o conjunto da comunidade civil de que ele é o chefe e com um mau uso intolerável do poder cruelmente tiranizar todo o povo ou uma considerável parte dele neste caso o povo tem o direito de resistir e se defender da injúria Mas isso deve ser feito com cautela pois ele só tem o direito de se defender não de atacar seu príncipe O povo pode reparar os danos causados mas não deve por nenhuma provocação exceder os limites da reverência e do respeito devidos Pode rejeitar a presente tentativa mas não deve vingar violências passadas Para nós é natural defender a vida e uma parte do corpo mas um inferior punir um superior é contra a natureza O malfeito dirigido ao povo deve ser evitado por ele antes que seja cometido mas se for cometido ele não deve se vingar sobre a pessoa do rei ainda que ele seja o autor da vilania Eis então o privilégio do povo em geral acima do ódio de qualquer pessoa individualmente segundo nossos próprios adversários exceto apenas Buchanan aquelas pessoas individualmente não têm outro recurso senão a paciência mas o conjunto do povo pode com respeito resistir à tirania intolerável mas quando ela for apenas moderada devem suportála 94 William Barclay 15461608 escocês filósofo do direito e da política autor de De regno et regali potestate adversus buchananum Brutum Boucherium et reliquos monarchomacos Paris 1600 e De potestate papae N da T CLUBE DO LIVRO LIBERAL 234 Eis dentro de que limites esse grande defensor do poder monárquico autoriza a resistência 235 É verdade que ele acrescentou duas limitações a isso sem qualquer propósito Primeira Segundo ele deve ser exercida com respeito Segunda Não deve ser acompanhada de sanções ou de punições e a razão que ele apresenta é que um inferior não pode punir um superior Primeiro Como resistir à força sem revidar os golpes ou como combater com reverência Seria preciso uma certa habilidade para tornar isso inteligível Aquele que se opõe a um assalto somente com um escudo para receber os golpes ou em uma postura mais respeitosa sem uma espada em sua mão para deter a confiança e a força do assaltante rapidamente estará no fim de sua resistência e descobrirá que uma defesa desse tipo só serve para atrair sobre si o pior uso Esta é uma maneira ridícula de resistir como mostrou Juvenal que estava nessa situação na luta ubi tu pulsas ego vapulo tantum você bate e eu só apanho E o resultado do combate será inevitavelmente o mesmo que ele descreve aqui Libertas pauperis haec est Pulsatus rogat et pugnis concisus adorat Ut liceat paucis cum dentibus inde reverti95 Assim terminará sempre a resistência imaginária dos homens que não têm o direito de revidar os golpes Por isso aquele que pode resistir deve ter o direito de lutar Então nosso autor ou qualquer outra pessoa concilie um golpe na cabeça ou uma cutilada na face com toda a reverência e o respeito que quiserem Aquele que é capaz de conciliar os golpes e a reverência pelo que eu saiba merece por suas penas uma paulada civil e respeitosa no primeiro momento propício Segundo Em sua opinião um inferior nunca pode punir um superior isto é verdadeiro de uma maneira geral desde que ele seja o superior Mas resistir à força com a força não é senão o estado de guerra que coloca as partes em uma situação de igualdade cancelando todas as relações anteriores de reverência respeito e superioridade então o que permanece estranho é que aquele que se opõe ao agressor injusto tem esta superioridade sobre ele pois ele tem o direito em caso de vitória de punir o ofensor tanto para romper a paz quanto para todos os males resultantes Por isso em outra passagem Barclay mais coerente consigo mesmo nega ser legal resistir a um rei em qualquer caso Mas lá ele aponta dois casos em que um rei pode destronar a si mesmo Vejamos o que ele diz Quid ergo nulline casus incidere possunt quibus populo sese erigere atque in regem impotentius dominantem arma capere et invadere jure suo suaque authoritate liceat Nulli certe quamdiu rex manet Semper enim ex divinis id obstat Regem honorificato et qui potestati resistit Dei ordinationi resistit non alias igitur in eum populo potestas est quam si id committat propter quod ipso jure rex esse desinat Tunc enim se ipse principatu exuit atque in privatis constituit liber hoc modo populus et superior efficitur reverso ad eum scilicet jure illo quod ante regem inauguratumin interregno habuit At sunt paucorum generum commissa ejusmodi quae hunc effectum pariunt At ego cum plurima animo perlustrem duo tantum invenio duos inquam casus quibus rex ipso facto ex rege non regem se facit et omni Honoré et dignitate regali atque in subditos potestate destituit quorum etiam meminit Winzerus Horum unus est si regnum disperdat quemadmodum de Nerone fertur quod is nempe senatum populumque Romanum atque adeo urbem ipsam ferro flammaque vastare ac novas sibi sedes quaerere 95 Tal é a liberdade do pobre Agredido ele suplica e golpeado a socos ele implora que o deixem sem lhe arrancar os dentes Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 101 decrevisset Et de Caligula quod palam denunciarit se neque civem neque principem senatui amplium fore inque animo habuerit interempto utriusque ordinis electissimo quoque Alexandriam commigrare ac ut populum uno ictu interimerit unam ei cervicem optavit Talia cum rex aliquis meditatur et molitur serio omnem regnandi curam et animum ilico abjicit ac proinde imperium in subditos amittit ut dominus servi pro derelicto habiti dominium 236 Alter casus est si rex in alicujus clientelam se contulit ac regnum quod liberum a majoribus et populo traditum accepit alienae ditioni mancipavit Nam tunc qumvis forte non ea mente id agit populo plane ut incommodet tamem quia quod praecipuum est regiae dignitatis amisit ut summus scilicet in regno secundum Deum sit et solo Deo inferior atque populum etiam totum ignorantem vel invitum cujus libertatem sartam et tectam conservare debuit in alterius gentis ditionem et potestatem dedidit hac velut quadam regni abalienatione effecit ut nec quod ipse in regno imperium habuit retineat nec in eum cui collatum voluit juris quicquam transferat atque ita eo facto liberum jam et suae potestatis populum relinquit cujus rei exemplum unum annales Scotici suppeditant Barclay Contra Monarchomachos 1ib iii c 16 Que vem a significar 237 Então não há nenhum caso em que o povo possa ter o direito e por sua própria iniciativa pegar em armas e atacar seu rei que lhe impõe uma dominação imperiosa Não nenhum enquanto ele continuar sendo rei Honra o rei e Aquele que resiste ao poder resiste à ordem de Deus são oráculos divinos que jamais o permitiriam Por isso é impossível que o povo adquira jamais algum poder sobre a pessoa do rei a menos que ele cometa alguma ação que lhe faça perder a qualidade de rei Então ele mesmo se despoja de sua coroa e de sua dignidade retorna à condição de um homem comum e o povo se torna livre e superior sendolhe devolvido novamente o poder que ele detinha no interregno antes de coroálo rei Mas as coisas não chegam a este ponto senão após algumas prevaricações que permanecem excepcionais Depois de considerar bem todos os lados só encontro dois exemplos Dois casos se apresentam quero dizer quando um rei ipso facto deixa de ser rei e pára de exercer qualquer poder e qualquer autoridade sobre seu povo que também foram citados por Winzerus O primeiro é quando ele tenta derrubar o governo ou seja se tem um propósito e uma intenção de arruinar o reino e a comunidade civil como nos contam que Nero resolveu derrubar o senado e o povo de Roma deixou a cidade arrasada com fogo e sangue e depois transferiuse para outro lugar e Calígula que abertamente declarou que não ficaria mais à frente do povo ou do senado e que ele pretendia suprimir com estas duas ordens o pior homem de ambos os cargos e depois se retirou para Alexandria e desejava que o povo tivesse um só pescoço para poder acabar com ele de um só golpe Quando um rei seja ele qual for abriga tais intenções em seu espírito e busca seriamente realizálas imediatamente abandona todo o cuidado e preocupação com a comunidade civil e conseqüentemente renuncia ao poder de governar seus súditos da mesma forma que um senhor renuncia à propriedade de seus escravos quando os abandona 238 O outro caso é quando um rei se coloca em uma situação de dependência diante de outro rei e submete seu reinado que seus ancestrais lhe legaram e que o povo livremente lhe confiou ao domínio de outro mesmo que não haja a intenção de prejudicar o povo perdeu assim o elemento essencial da dignidade real ou seja ser imediatamente depois de Deus supremo em seu reino e também porque traiu ou forçou seu povo cuja liberdade ele devia ter cuidadosamente preservado ao poder e ao domínio de uma nação estrangeira e por essa digamos assim alienação de seu reino ele perde o poder que possuía antes sem transferir qualquer direito por menor que seja àqueles que ele busca entregálo e por este ato deixa o povo livre à mercê de seu destino Pode se encontrar um exemplo disso nos anais escoceses 239 Nestes casos Barclay o grande defensor da monarquia absoluta é forçado a admitir que se tem o direito de resistir a um rei e que este deixa de ser rei ou seja resumindo para não multiplicar os exemplos em todos os domínios que escapam a sua competência ele não possui a qualidade de rei e temse o direito de a ele CLUBE DO LIVRO LIBERAL resistir quando a autoridade termina o rei também desaparece e se torna um homem como qualquer outro sem autoridade e estes dois casos que ele cita diferem pouco daqueles acima mencionados como sendo destrutivos aos governos mas ele omitiu o princípio de onde deriva a sua doutrina o abuso da confiança que consiste em não preservar a forma de governo fixada em comum acordo e a falta de intenção de cumprir os objetivos próprios do governo que são o bem público e a preservação da propriedade Quando um rei se destrona e se coloca em estado de guerra com seu povo o que os impede de perseguilo agora que ele não é mais rei como a qualquer outro homem que se colocasse em estado de guerra com ele Barclay e aqueles que compartilham de sua opinião fariam bem em nos dizer E eu gostaria de chamar a atenção sobre a passagem onde Barclay diz que os malfeitos que se projetam contra ele o povo tem o direito de impedir previamente ele autoriza assim a resistência ainda que a tirania só exista na intenção Ele diz que desde que um rei seja qual for abrigue em seus pensamentos e busque seriamente pôr em prática tais intenções imediatamente renuncia a todo o cuidado e preocupação com a comunidade social assim segundo ele a negligência do bem público deve ser encarada como uma evidência de tal intenção ou pelo menos uma causa suficiente para a resistência A razão que o autor apresenta é a seguinte ele traiu ou oprimiu seu povo cuja liberdade ele devia cuidadosamente ter preservado O que ele acrescenta sobre a dominação de uma nação estrangeira não significa nada a culpa e o confisco permanecendo na perda de sua liberdade que devia ter sido preservada e não em qualquer distinção das pessoas a cujo domínio ele estava sujeito O direito do povo é igualmente invadido e sua liberdade perdida quer eles sejam tornados escravos de um senhor dentro de seu país quer de uma nação estrangeira e aí reside a injustiça e contra ela o povo só tem o direito de defesa E há exemplos a serem encontrados em todos os países que mostram que a ofensa não está na mudança de nações nas pessoas de seus governantes mas na mudança de governo Salvo engano de minha parte em uma passagem de seu tratado sobre a Sujeição Cristã Bilson um bispo de nossa igreja e grande defensor do poder e da prerrogativa dos príncipes reconhece que os príncipes podem renunciar ao seu poder e ao seu direito à obediência de seus súditos e se houver necessidade de argumentos de autoridade em um caso onde a razão é tão clara eu posso recomendar ao meu leitor Bracton Fortescue o autor de The Mirror96 e outros escritores que não podem ser suspeitos de conhecer mal nosso governo ou de lhe serem hostis Mas achei que apenas Hooker bastava para satisfazer àqueles homens que confiando nele para sua política eclesiástica são por um destino estranho levados a negar aqueles princípios sobre os quais ele a edificou Eles seriam melhor vistos se tomassem cuidado para que operários mais habilidosos que eles não os utilizassem para demolir o edifício que eles estão prestes a construir estou certo de que sua política civil é tão nova tão perigosa e tão destrutiva tanto para os governantes quanto para o povo que assim como as gerações anteriores jamais poderiam suportar o início dessa discussão podese esperar que aquelas que estão por vir salvas das imposições destes subcapatazes egípcios terão horror à memória de tais bajuladores servis que enquanto isso pareceu servir aos seus propósitos converteram todos os governos em tirania absoluta e gostariam de ter todos os homens nascidos na única condição que corresponde à baixeza de suas almas a escravidão 240 É provável que se coloque aqui a indagação habitual Quem vai julgar se o príncipe ou o legislativo agiram contra a missão que lhes foi confiada Isso talvez homens maldispostos e facciosos possam espalhar entre o povo quando o príncipe só faz uso de sua devida prerrogativa Eu respondo O povo será o juiz quem vai julgar se o comissionado ou o mandatário age bem e de acordo com a confiança nele depositada senão aquele que o comissionou e deve por havêlo comissionado ter ainda o poder de destituílo quando falha em sua confiança Se isso é razoável em casos particulares de homens comuns por que deveria ser diferente na questão que é a mais considerável de todas que diz respeito ao bemestar de milhões de pessoas e onde o mal se não for evitado fica mais grave e não pode ser curado sem muitas dificuldades ônus e perigos 241 Além disso quem deve julgar esta questão Não pode significar que não há absolutamente juiz pois onde não há magistratura na terra para decidir as controvérsias entre os homens Deus no céu é o juiz Somente Ele na verdade é o juiz dos direitos do homem mas neste caso como em todos os outros cada homem é juiz de si mesmo ao decidir quando outro se colocou em estado de guerra com ele e quando ele deve apelar para o Juiz Supremo como fez Jefté 96 O Espelho dos Juízes obra anônima de 1640 N da T Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 103 242 Quando surge uma controvérsia entre um príncipe e uma parte do povo em uma questão em que a lei é silenciosa ou duvidosa e a questão é de muita importância eu acho que o árbitro apropriado em tal caso deveria ser o conjunto do povo pois em casos em que o príncipe tem uma confiança depositada nele e está dispensado das regras ordinárias comuns da lei se alguns homens se consideram lesados e acham que o príncipe agiu de encontro ou além dessa confiança quem mais apropria do para julgar que o conjunto do povo que primeiro depositou nele essa confiança até que ponto ela deve se estender Mas se o príncipe ou seja quem for que esteja na administração declinar dessa forma de determinação não resta outra solução senão apelar ao céu O emprego da força entre pessoas que não têm superior conhecido na terra ou em condições tais que não se possa buscar nenhum juiz na terra constitui propriamente o estado de guerra o único recurso então é apelar ao céu e a parte lesada deve decidir por ela mesma se julga adequado fazer uso desse apelo e utilizálo 243 Para concluir o poder que cada indivíduo deu à sociedade quando nela entrou jamais pode reverter novamente aos indivíduos enquanto durar aquela sociedade sempre permanecendo na comunidade pois sem isso não haveria nenhuma comunidade nenhuma comunidade civil o que seria contrário ao acordo inicial da mesma forma quando a sociedade confiou o legislativo a uma assembléia seja qual for para que seus membros e seus sucessores o exerçam no futuro e se encarreguem de providenciar sua própria sucessão o legislativo não pode reverter ao povo enquanto aquele governo durar tendo habilitado o legislativo com um poder perpétuo o povo renunciou ao seu poder político em prol do legislativo e não pode reassumilo Mas se tiverem estabelecido limites para a duração de seu legislativo e tornado temporário este poder supremo confiado a qualquer pessoa ou assembléia ou ainda quando por malfeitos daquele detentores da autoridade o poder é confiscado pelo confisco ou por determinação do tempo estabelecido ele reverte à sociedade e o povo tem o direito de agir como supremo e exercer ele próprio o poder legislativo ou ainda colocálo sob uma nova forma ou em outras mãos como achar melhor