5
Antropologia Social
UMG
17
Antropologia Social
UMG
18
Antropologia Social
UMG
3
Antropologia Social
UMG
9
Antropologia Social
UMG
2
Antropologia Social
UMG
3
Antropologia Social
UMG
1
Antropologia Social
UMG
17
Antropologia Social
UMG
19
Antropologia Social
UMG
Texto de pré-visualização
CAP1TULO III Características essenciais do Kula 1 Feita a descrição do cenário e dos atores passemos ao espetáculo em si O Kula é uma forma de troca e tem caráter intertribal bastante amplo é praticado por comunidades localizadas num extenso círculo de ilhas que formam um cir cuito fechado Esse circuito aparece no mapa V representado pelas linhas que unem uma ilha à outra ao norte e ao leste do extremo oriental da Nova Guiné Ao longo dessa rota artigos de dois tipos e somente desses dois viajam constantemente em direções opostas No sentido horário movimentamse os lon gos colares feitos de conchas vermelhas chamados soulava veja figs 18 e 19 No sentido oposto movemse os braceletes feitos de conchas brancas chamados mwali veja figs 16 e 17 Cada um desses artigos viajando em seu próprio sen tido no circuito fechado encontrase no caminho com os artigos da classe oposta e é constantemente trocado por eles Cada movimento dos artigos do Kula cada detalhe das transações é fixado e regulado por uma série de regras e convenções tradicionais alguns dos atos do Kula são acompanhados de elaboradas cerimô nias públicas e rituais mágicos Em cada ilha e em cada aldeia um número mais ou menos restrito de homens participam do Kula ou seja recebem os artigos conservamnos con sigo durante algum tempo e por fim passamnos adiante Cada um dos parti cipantes do Kula recebe periodicamente mas não regularmente um ou vários mwali braceletes de concha ou um soulava colar de discos feitos de conchas vermelhas que deve entregar a um de seus parceiros do qual recebe em troca o artigo oposto Assim ninguém jamais conserva nenhum artigo consigo por muito tempo O fato de que uma transação seja consumada não significa o fim da relação estabelecida entre os parceiros a regra é uma vez no Kula sempre no Kula A parceria entre dois indivíduos no Kula é permanente para toda a vida Os mwali e os soulava encontramse sempre em movimento vão passando de mão em mão e não há casos em que esses artigos fiquem retidos com um só dono Portanto o princípio de uma vez no Kula sempre no Kula aplicase de igual forma aos próprios artigos A troca cerimonial dos dois artigos um pelo outro é o aspecto fundamental e central do Kula Mas associados a ela e realizadas à sua sombra encontramos numerosas características e atividades secundárias Paralelamente à troca ritual dos colares pelos braceletes os nativos realizam um comércio comum negociando de uma ilha para a outra bens que de modo geral não são fabricados pelo dis trito que os importa mas são indispensáveis à sua economia Além disso há outras atividades que precedem ao Kula ou a ele se acham associadas como por exemplo a construção das canoas para navegação em altomar usadas nas expe dições certos tipos de cerimônias mortuárias de grande pompa e tabus pre paratórios O Kula é portanto uma instituição enorme e extraordinariamente com 76 MALINOWSKI plexa não só em extensão geográfica mas também na multiplicidade de seus objetivos Ele vincula um grande número de tribos e abarca em enorme con junto de atividades interrelacionadas e interdependentes de modo a formar um todo orgânico Devemos contudo lembrarnos de que o Kula que aparece aos nossos olhos como uma instituição extensa e complicada porém bem organizada é o resultado de muitos e muitos trabalhos e façanhas empreendidos por selvagens os quais não possuem leis nem objetivos nem esquemas explicitamente formu lados e nem mesmo conhecimento do esquema total de sua estrutura social Os nativos estão cientes de seus próprios motivos conhecem os objetivos das ações individuais e as regras que as coordenam porém está além de sua capacidade mental a percepção de como dessas ações emerge a instituição coletiva em seu conjunto Nem mesmo o nativo mais inteligente consegue ter uma idéia exata a respeito do Kula como uma grande construção social organizada e menos ainda de suas implicações e funções sociológicas Se lhe perguntarmos o que é o Kula ele nos irá responder com alguns detalhes muito provavelmente narrando suas experiências pessoais e pontos de vista subjetivos sobre o sistema mas certamente não nos irá fornecer nenhuma definição como a que acabamos de dar Dele não podemos nem mesmo obter um relato parcialmente coerente O nativo não tem visão do todo Ele faz parte do todo e não consegue vêlo de fora como um observador A integração de todos os detalhes observados bem como a síntese socio lógica dos diversos indícios importantes são tarefas do etnógrafo Antes de mais nada ele precisa descobrir o significado de certas atividades que de início pare cem incoerentes e não correlacionadas A seguir ele precisa distinguir nessas atividade o que é constante e relevante do que é acidental e de pouca impor tância isto é o etnógrafo deve procurar descobrir as leis e regras de todas as transações A ele cabe construir o quadro ou esquema total da grande institui ção da mesma forma que o cientista formula toda a sua teoria baseado em dados experimentais que embora sempre ao alcance de todos precisam de interpreta ção coerente e organizada Já tive oportunidade de mencionar esta questão me todológica na Introdução seções V e VI mas repitoa aqui por julgar neces sário seu total entendimento e a fim também de que o leitor não perca a pers pectiva correta das condições em que realmente se encontram os nativos II Para poder dar uma definição concisa e abstrata do Kula como a que acabei de fornecer tive de inverter a ordem da pesquisa tal como acontece durante o trabalho de campo onde as referências mais gerais só podem ser obtidas como resultado de longos inquéritos e laboriosos métodos indutivos Essa definição geral do Kula servirá como uma espécie de plano ou esquema para a descrição concreta e detalhada de que nos ocuparemos proximamente Isso se torna ainda mais necessário pelo fato de que o Kula está relacionado à troca de riquezas e de objetos de utilidade e constitui portanto uma instituição econômica não há aspecto da vida primitiva no qual nossos conhecimentos sejam mais limitados e nosso entendimento mais superficial que o econômico Há um excesso de falsas concepções quanto à economia primitiva e é portanto necessário limparmos o terreno antes de abordar qualquer assunto a ela relativo Na Introdução definimos o Kula como uma espécie de comércio e o colocamos entre esse e outros sistemas de permuta de mercadorias Não haverá erro nisso enquanto dermos à palavra comércio uma interpretação suficiente mente ampla significando com ela qualquer tipo de troca de mercadorias Tanto ARGONAUTAS DO PACIFICO OCIDENTAL 77 na c1encia econômica como na moderna etnografia porém o termo comércio tem um númerü tão grande de acepções que a fim de podermos entender corre tamente os fatos teremos que eliminar muitas idéias falsas e preconcebidas Assim por exemplo a noção que atualmente se faz a priori do comércio primitivo é a de uma troca de artigos indispensáveis ou úteis executada sem quaisquer cerimônias e sem qualquer regulamentação feita em intervalos irregulares e espas módicos mb pressão da carência ou necessidade julgase também que essa permuta se processa de maneira direta cada um dos interessados tomando gran des precauções para não sair logrado ou se os selvagens são tímidos demais e receosos de enfrentar uns aos outros através de algum arranjo costumeiro que lhes assegure por meio de severos castigos conformidade às obrigações a que estão sujeitos ou que lhes são impostas 36 Abandonando por ora a questão da validade ou não validade geral dessa concepção que a meu ver é bastante falsa e enganosa temos de entender claramente o fato de que o Kula contradiz em quase todos os seus aspectos a definição de comércio primitivo que acima men cionamos O Kula nos mostra o comércio primitivo sob um ângulo totalmente diferente O Kula não é uma modalidade subreptícia e precária de troca Muito pelo contrário está enraizado em mitos sustentado pelas leis da tradição e cingido por rituais mágicos Todas as transações principais que nele se processam são públicas e cerimoniais levadas a efeito segundo regras bem definidas O Kula não decorre de impulsos momentâneos mas se realiza periodicamente em datas préestabelecidas ao longo de rotas comerciais definidas que conduzem a locais fixos de encontro Muito embora se realize entre tribos lingüística cultural e talvez até mesmo racialmente diferentes umas das outras o Kula baseiase sob o ponto de vista sociológico num status fixo permanente numa parceria que une em pares alguns milhares de indivíduos Esta parceria é permanente para toda a vida e implica em diversos deveres e privilégios mútuos constitui assim um tipo de relacionamento intertribal feito em grande escala O mecanismo econô mico das transações baseiase numa forma específica de crédito que pressupõe alto grau de confiança mútua e honra comercial Isto se refere também às tran sações comerciais menores subsidiárias ao Kula propriamente dito O Kula não se realiza sob a pressão de quaisquer necessidades visto que seu objetivo prin cipal é o de permuta de artigos que não têm nenhuma utilidade prática Da definição concisa do Kula apresentada no início deste capítulo podemos 36 Uso o termo noçào atual tal como ele aparece nos livros de texto e observações oca sionais que se encontram disseminadas na literatura econômica e etnológica Com efeito a economia é um assunto muito pouco abordado tanto nos estudos teóricos sobre etnologia quanto not re1aros da pesquisa de campo Faço extensas considerações sobre esta deficiên cia no artigo Primitive Economics publicado no Economic Journal cm março de 1921 Uma das melhores análises sobre a questão da economia selvagem apesar de deficiente em diversos pontos é i que se encontra na obra Industrial Evolution de K Büchcr versão inglesa 1901 A perspectiva de Bücher na questão do comércio primitivo é no entanto inadequada Segundo sua opinião geral de que os nativos não possuem uma economia na cional Bücher defende o ponto de vista de que qualquer distribuição de bens entre os nati vos se processa através de meios não econômicos tais como o roubo tributações e presentes Os dados que forneço no presente volume são incompatíveis com a teoria de Bücher Bücher não teria mantido sua opinião se estivesse familiarizado com o estudo feito por Barton e incluído na obra Melanesians de Seligman sobre os hiri No artigo Die Ethnologische Wirtschaftsforschung de autoria de Pater W Kopper publi cado em Antlrropos XXI 191516 pp 611651 e 9711079 encontrase um resumo das pesquisas feitas sobre a economia primitiva esse resumo mostra a propósito quão pouco se tem realizado em matéria de trabalho verdadeiro e profundo no campo da economia pri mitiva O artigo é realmente de muito proveito nele o autor sintetiza os pontos de vista de outros estudiosos 78 MALINOWSKI concluir que em última essência o Kula despojado de todos os seus ornamentos e acessórios não passa de um sistema bastante simples que à primeira vista poderia até mesmo parecer insípido e pouco romântico Afinal ele consiste apenas da permuta interminavelmente repetida de dois artigos destinados à ornamenta ção mas raramente usados como tal Não obstante esta ação tão simples essa passagem de mão em mão desses dois objetos inúteis e sem sentido veio de alguma forma a tornarse o alicerce de uma grande instituição intertribal asso ciada a um semnúmero de outras atividades Os mitos a magia e a tradição construíram em torno do Kula formas bem definidas de cerimônias e rituais deram a ele um halo de romance e valor na mente dos nativos e deveras criaram em seus corações enorme paixão por essa simples permuta de objetos Devemos agora ampliar a definição do Kula descrevendolhe as regras e características fundamentais uma após as outras de modo a que o leitor possa entender claramente o mecanismo pelo qual a troca desses dois artigos veio a transformarse numa instituição tão vasta e complexa e de raízes tão profundas III Antes de mais nada algumas palavras devem ser ditas sobre os dois prin cipais objetos das transações do Kula os braceletes de conchas mwali e os colares soulava Os braceletes são obtidos quebrandose a parte superior e a extremidade delgada da concha de um grande caramujo Conus millepunctatus e a seguir polindose a argola assim obtida Esses braceletes são muito cobiçados por todos os papuamelanésios da Nova Guiné e se encontram até mesmo no distrito puramente papua do Golfo 37 A fig 17 ilustra o modo como esses brace letes são usados os nativos os exibiram especialmente para a fotografia Os pequenos discos feitos das conchas vermelhas do spondylus com os quais são confeccionados os soulava são também de uso bastante difundido Existem nu merosos centros de fabricação desses colares entre eles uma das aldeias de Port Moresby e várias localidades da Nova Guiné oriental especialmente as ilhas Trobriand e a ilha de Rossell Empreguei acima o vocábulo uso de propósito essas pequenas contas de forma achatada e arredondada com um orifício no centro e cores que variam do marromescuro ao vermelhocarmim são usados em vários tipos de enfeites Em geral fazem parte dos brincos cujas argolas são feitas do casco das tartarugas Dessas argolas que ficam presas ao lóbulo da orelha pende um feixe de contas Os brincos desse tipo são de uso bastante comum especialmente entre os massim pelo menos cinqüenta por cento dos homens e mulheres usam esse tipo de brincos outros preferem apenas as argolas feitas do casco das tartarugas Outro enfeite muito comum de uso freqüente orincipalmente entre as crianças é um colar curto que apenas contorna o pes coço feito dos discos vermelhos do spondylus esse tipo de colar pode ter um ou vários pingentes feitos com a concha do cauri Esses discos do spondylus entram de modo geral na confecção de várias espécies de enfeites majs sofjs ticados aqueles que se usam somente em ocasiões festivas Entretanto aqui nos interessam apenas os longos colares que medem de dois a cinco metros e são também feitos com os pequenos discos do spondylus Há dois tipos principais desses colares o primeiro mais requintado tem um grande pingente feito de 37 O Professor C G Seligman op cit p 93 afirma que os braceletes de concha aos quais os motu chamam de toea são comerciados da região oeste do distrito de Port Moresby ao golfo Papua Esses objetos são considerados de alto valor pelos motu e koita que vivem próximos de Port Moresby e alcançaram atualmente preços muito altos por vezes até f 30 muito mais do que se paga pelos mesmos artigos entre os massim ARGONAUTAS DO PACIFICO OCIDENTAL 79 conchas o outro possui contas maiores e traz no centro algumas conchas ou sementes pretas de banana veja fig 18 Tanto os mwali quanto os longos colares souava os dois principais artigos do Kula são antes de mais nada enfeites e como tal usados exclusivamente com os trajes de dança mais elaborados nas grandes ocasiões festivas nas danças cerimoniais e nas grandes reuniões de que participam os nativos de várias aldeias veja fig 6 Jamais podem ser usados como enfeites diários ou em ocasiões menos importantes tais como as pequenas danças na aldeia as reuniões organizadas na época das colheitas ou as expedições do namoro nessas ocasiões são usados adornos de flores pintura facial e enfeites menores mas não de uso diário como os que aparecem nas fig 12 e 13 Embora usáveis e com efeito usados em algumas ocasiões o souava e mwali não têm entretanto esta função básica Um chefe por exemplo pode ter em seu poder vários colares e alguns braceletes se houver em sua própria aldeia ou nalguma aldeia vizinha alguma grande festa a que pretenda comparecer o chefe usará esses enfeites se for ornamentarse para participar pessoalmente das danças caso contrário qualquer de seus paren tes filhos e amigos ou até mesmo seus vassalos pode usálos para enfeitarse Se formos a uma festa ou dança onde os homens estão usando esses ornamentos e lhes perguntarmos a quem pertencem os enfeites provavelmente mais da me tade deles responderá que não são deles mas que os emprestaram de outros na tivos Esses objetos não são possuídos para serem usados o privilégio de enfei tarse com os mwali e souava não é o verdadeiro objetivo da posse Outro fato aliás bem mais significativo é que a maioria dos braceletes cerca de noventa por cento deles são pequenos demais para serem usados até mesmo por crianças Por outro lado alguns deles são tão grandes e tão valiosos que não são usados praticamente nunca a não ser uma vez cada dez anos se tanto mesmo nesse caso apenas por uma pessoa muito importante num dia de gran des festividades Embora os colares possam ser usados alguns deles são de igual forma considerados valiosos e incômodos demais para se usarem com muita fre qüência ficam desse modo reservados para ocasiões muito especiais Isso nos força a indagar por que entào se dá tanta importância a esses objetos Qual é a sua finalidade A resposta completa a essas perguntas vai emergir aos poucos nos próximos capítulos mas uma idéia aproximada deve ser fornecida imediatamente Como é sempre melhor abordar um tema desco nhecido através de outro já conhecido vamos refletir um pouco e tentar desco brir se em nosso próprio meio não existem também certos objetos que desem penham papel semelhante ao desses colares e braceletes e são possuídos e usados de maneira também análoga à deles Ao voltar para a Europa após seis anos de permanência no Pacífico Sul e na Austrália visitei numa excursão turística o castelo de Edimburgo onde me foram mostradas as jóias da Coroa O guarda contoume diversas histórias de como as jóias haviam sido usadas por este ou aquele rei ou rainha nesta ou naquela ocasião de que modo haviam sido leva das a Londres causando com isso justa indignação a toda nação escocesa como as jóias foram por fim restituídas como todos estão agora satisfeitos sabendoas em lugar seguro trancadas a chave e cadeado fora do alcance de pessoas que as queiram tocar Enquanto eu olhava para as jóias e pensava comigo mesmo como eram feias inúteis pesadas e até mesmo vistosas demais e de mau gosto tive a sensação exata de que algo parecido já me havia sido relatado recente mente e de que eu já vira inúmeros outros objetos desse mesmo tipo que me impressionaram de maneira idêntica Tive então diante dos olhos a visão de uma aldeia nativa construída sobre solo de coral a visão de uma pequena e frágil plataforma armada provisoria mente sob um telhado de sapé e rodeada de homens escuros nus um dos quais 80 MALINOWSKI me mostrava colares longos e finos de cor vermelha além de outros objetos grandes brancos desgastados pelo uso feios e engordurados Esse nativo iame fornecendo de maneira reverente os nomes de todos esses objetos contandome a história de cada um deles quando e por quem foram usados como tinham passado de dono para dono e como a posse temporária desses objetos consti tuía um grande sinal de importância e glória para sua aldeia A analogia entre os vaygua objetos de valor europeus e os de Trobriand precisa ser definida de maneira mais clara as jóias da Coroa britânica como quaisquer objetos tradi cionais demasiado valiosos e incômodos para serem realmente usados represen tam o mesmo que os vaygu a pois são possuídos pela posse em si f a posse aliada à glória e ao renome que ela propicia que constitui a principal fonte de valor desses objetos Tanto os objetos tradicionais ou relíquias históricas dos europeus quanto os vaygu a são apreciados pelo valor histórico que encer ram Podem ser feios inúteis e segundo os padrões correntes possuir muito pouco valor intrínseco porém só pelo fato de terem figurado em acontecimentos históricos e passado pelas mãos de personagens antigos constituem um veículo infalível de importante associação sentimental e passam a ser considerados grandes preciosidades O sentimentalismo histórico que desempenha papel de impor tância no nosso interesse em estudar os acontecimentos do passado existe de igual modo no Pacífico Sul Cada um dos artigos realmente bons do Kula tem um nome próprio e encerra uma espécie de história ou romance nas tradições dos nativos As jóias da Coroa britânica e os objetos tradicionais são insígnias de status social e símbolos de riqueza respectivamente no nosso passado como na própria Nova Guiné até há poucos anos status social e riqueza existiam um em função do outro O ponto mais importante de diferença é que os artigos do Kula são de posse temporária ao passo que para ter total valor o tesouro euro peu precisa ser de posse permanente Numa visão mais larga feita agora sob o ponto de vista etnológico pode mos classificar os artigos preciosos do Kula entre os diversos objetos cerimoniais que representam riqueza enormes armas esculpidas e decoradas implementos de pedra artigos para uso doméstico e industrial ricamente ornamentados e incô modos demais para serem usados normalmente Esses objetos todos são chama dos cerimoniais mas a palavra parece cobrir um grande número de significa dos e incluir muita coisa que não tem significado nenhum Na verdade um objeto é freqüentemente designado como cerimonial especialmente em exibições de museus simplesmente porque seu uso e natureza são desconhecidos Quanto às exposições nos museus de objetos da Nova Guiné posso dizer que muitos dos chamados objetos cerimonais não passam de objetos de uso comum mas exces sivamente elaborados a preciosidade do material com que foram feitos e a quan tidade de trabalho despendida em fabricálos são os fatores que os transforma ram em reservatórios de valor econômico condensado Outros objetos há que são usados em ocasiões festivas mas não têm qualquer função nos ritos e cerimô nias servindo tãosomente como enfeites ou decoração a esses podemos dar o nome de objetos de parada cf cap VI seção 1 Há finalmente certos arti gos que realmente são usados como instrumentos de rituais mágicos ou reli giosos e pertencem ao conjunto de apetrechos intrínsecos a essas cerimônias Esses são os únicos objetos a que poderíamos chamar corretamente de cerimo niais Durante os festejos Soi que se realizam entre os massim do sul as mu lheres carregando machados de lâminas polidas e cabos finamente esculpidos acompanham com passos rítmicos ao som dos tambores a entrada dos por cos e das mudas de mangueira na aldeia veja fig 5 e 6 Como isso faz parte da cerimônia e os machados são acessórios indispensáveis seu uso nessa oca sião pode ser legitimamente chamado cerimonial Nalguns rituais de magi ARGONAUTAS DO PACIFICO OCIDENTAL 81 das ilhas Trobriand o towosi feiticeiro agrícola tem de carregar sobre o om bro um machado com o qual ele golpeia ritualmente as estruturas chamadas kamkokola veja fig 59 cf também cap II seção IV Sob determinado ponto de vista os vaygua objetos de valor do Kula são objetos de uso excessivamente elaborados Constituem também no entanto objetos cerimonais no sentido estrito e correto da palavra Essa questão vai se tornar mais clara ao leitor nas páginas que se seguem A ela voltaremos tam bém no último capítulo O leitor precisa ter em mente que estamos tentando fornecer uma idéia ví vida e clara daquilo que os objetos de valor próprios do Kula representam para os nativos Não é nossa intenção descrevêlos de maneira detalhada e circuns tancial nem definilos com máxima exatidão Estabelecemos um paralelo entre esses artigos e as jóias da Coroa britânica e os objetos históricos europeus a fim de demonstrar que este tipo de posse não constitui um fantástico costume próprio dos habitantes do Pacífico Sul e pode muito bem encontrar equivalentes em nossa orópria cultura A comparação que fiz quero agora enfatizar bem este ponto não se baseia em semelhanças puramente externas e superficiais As forças psicológicas de uma e de outra cultura são as mesmas é a mesma a atitude men tal que nos leva a valorizar nossos objetos históricos ou tradicionais e faz com que os nativos da Nova Guiné tenham seus vaygu a em grande apreço IV A permuta desses dois tipos de vaygua ou seja a troca dos braceletes pelos colares constitui o principal ato do Kula Não é feita livremente a torto e a direito nem está ao capricho da vontade ou disponibilidade dos nativos Está muito pelo contrário sujeita a rigorosos limites e regras Uma dessas regras referese à sociologia da troca e dispõe que as transações do Kula só podem ser executadas entre parceiros O indivíduo que participa do Kula nem todos os nativos no âm bito desse sistema têm autorização para isso possui apenas um número limitado de pessoas com as quais pode negociar Esta parceria é estabelecida de um modo definido exige a satisfação de certas formalidades e constitui uma relação perma nente para toda a vida O número de parceiros que um indivíduo pode ter varia de acordo com sua posição social e importância O plebeu das ilhas Trobriand possui apenas alguns parceiros ao passo que o chefe chega a ter centenas deles Não existe propriamente um mecanismo social pelo qual se possa limitar a partici pação de uns e estender a de outros porém as pessoas em geral sabem exatamente a quantos parceiros têm direito em termos de sua posição social Um dos fato res que as orientam nesse particular é na maioria dos casos o exemplo dado pelos seus ancestrais imediatos Mesmo nas tribos em que as diferenças de posi ção social não são pronunciadas um homem de prestígio ou o líder de um vilarejo ou aldeia pode ter centenas de parceiros no Kula ao passo que um nativo de pouca importância tem apenas alguns Os parceiros do Kula têm que trocar entre si os objetos próprios do Kula e incidentalmente trocam também outros presentes Comportamse como amigos possuem uma série de deveres e obrigações mútuas que variam conforme a distân cia entre suas respectivas aldeias e o status de cada um deles Em média o na tivo tem alguns parceiros próximos geralmente seus próprios amigos ou os pa rentes por afinidade com os quais normalmente mantém relações de amizade bastante estreitas A parceria no Kula é um dos laços especiais que unem dois indivíduos numa relação permanente de troca de presentes e mútua presta ção de serviços que são tão característicos desses nativos Em média o nativo também realiza transações do Kula com um ou dois chefes da vizinhança Num 82 MALINOWSKI caso desse tipo ele tem de prestar assistência e vários serviços aos chefes e oferecerlhes a primeira escolha toda vez que recebe um novo sortimento de vaygu a Por outro lado o nativo espera que os chefes sejam especialmente li berais para com ele O parceiro de alémmar é por outro lado um hospedeiro patrono e aliado em terras perigosas e pouco seguras Hoje em dia embora a sensação de perigo ainda exista e os nativos nunca se sintam perfeitamente seguros e à vontade num distrito que não seja o seu os perigos que temem são os de natureza má gica mais do que qualquer outra coisa portanto é o temor à feitiçaria das terras estranhas que os assedia quando nelas se encontram Em épocas passa das perigos mais tangíveis os ameaçavam e o parceiro constituía a principal garantia de segurança pessoal O parceiro também fornece alimento dá presen tes e sua casa é o local onde o participante do Kula permanece enquanto está na aldeia embora nunca para dormir O Kula portanto provê a cada um de seus participantes com alguns amigos próximos e alguns aliados em distritos lon ínquos desconhecidos e perigosos São essas as únicas pessoas com quem ele pode realizar o Kula mas é claro dentre todos os seus parceiros o nativo tem liberdade de decidir a qual deles fornecer quais objetos Tentemos agora passar a uma visão ampla dos efeitos cumulativos das re gras de parceria Há no circuito inteiro do Kula um encadeamento de relações que naturalmente fazem dele um todo entrelaçado Pessoas que vivem a centenas de milhas umas das outras relacionamse através da parceria direta ou indireta realizam trocas passam a conhecerse e às vezes se encontram em grandes reuniões intertribais veja fig 20 Os objetos dados por um nativo não só os artigos do Kula mas também vários outros objetos de uso doméstico e pe quenos presentes chegam com o tempo a parceiros indiretos muito distan tes 1 fácil observar que no fim de contas não só os objetos da cultura mate rial mas também costumes canções temas artísticos e influências culturais ge rais também viajam ao longo das rotas do Kula O que se verifica então é um vasto encadeamento de relações intertribais numa grande instituição que incorpora milhares de pessoas todas elas unidas por uma paixão comum pelas transações do Kula e em segundo plano por muitos pequenos laços e interesses Voltando mais uma vez ao aspecto pessoal do Kula vamos a um exemplo concreto Consideremos o nativo típico que vive por exemplo na aldeia de Si naketa um dos centros mais importantes do Kula na porção meridional das ilhas Trobriand Possui alguns parceiros próximos e outros distantes mas per tencem todos a duas categorias uns lhe dão apenas braceletes outros lhe dão apenas colares Visto que nas rotas do Kula os braceletes são transportados em sentido contrário ao dos colares uma das regras naturais e invariáveis do siste ma é o fato de que os braceletes nunca são fornecidos ao nativo pelo mesmo indivíduo que lhe dá os colares Suponhamos que eu seja o nativo de Sinaketa Se um dos meus sócios me fornece braceletes e eu em troca lhe dou um colar todas as nossas futuras transações deverão ser exatamente desse mesmo tipo Além disso a natureza de nossas transações depende de nossa posição relativa ou seja nossa localização geográfica com referência aos pontos cardeais Do norte e do leste eu em Sinaketa recebo apenas os braceletes do sul e do oeste apenas os colares Se um dos meus sócios é meu vizinho na aldeia e sua casa fica ao norte ou ao leste da minha dele sempre receberei braceletes e a ele sempre darei colares Se eventualmente ele mudar de residência no próprio âmbito da aldeia nosso relacionamento continuará o mesmo se porém ele vier a pertencer a outra comunidade de aldeia situada ao sul ou a oeste da minha nos sas transações assumirão sentido inverso Meus sócios que vivem ao norte de Si naketa nos distritos de Luba Kulumata ou Kiriwina fornecemme braceletes ARGONAUTAS DO PAC1FTCO OCIDENTAL 83 que eu passo aos meus sócios do sul destes eu recebo colares O sul neste caso inclui os distritos sulinos de Boyowa bem como as ilhas Amphlett e Dobu Cada pessoa tem portanto de obedecer a leis específicas quanto ao senti do geográfico de suas transações Se em qualquer ponto do circuito do Kula nós a imaginarmos voltada para o centro do círculo veremos que com a mão esquerda ela recebe os braceletes e com a direita os colares passandoos en tão adiante Em outras palavras o nativo constantemente passa os braceletes da esquerda para a direita e os colares da direita para a esquerda Aplicando esta regra de conduta pessoal ao circuito inteiro do Kula verifi camos imediatamente qual o resultado integral de todo o processo Em sua tota lidade as transações não resultam numa troca inútil ou sem objetivo desses dois tipos de artigos ou seja não constitui em um fortuito vaivém de braceletes e colares Há dois fluxos constantes um o dos colares obedecendo ao sentido horário ou dos ponteiros de um relógio o outro o dos braceletes em sentido oposto O termo circular é portanto bem adequado às transações do Kula pois que elas realmente constituem um círculo ou circuito de artigos em constante mo vimento cf mapa V Todas as aldeias desse circuito têm posição fixa em rela ção às demais ou seja cada uma delas está em relação a qualquer outra ou do lado dos colares ou do lado dos braceletes Passemos agora a uma outra regra do Kula uma das mais importantes Como acabamos de dizer os braceletes e colares movemse no círculo cada um em sua própria direção um em sentido oposto ao do outro sejam quais forem as circunstâncias nenhum deles jamais é negociado de volta ou seja no sentido ou direção errada Esses objetos também se encontram em constante movimen tação jamais param Isso pode à primeira vista parecer inacreditável mas o fato é que ninguém conserva consigo esses objetos por longo espaço de tempo Com efeito em todo o território de Trobriand existem talvez apenas um ou dois braceletes e colares especialmente bem feitos conservados permanentemente como bens de herança constituem uma classe especial de objetos que de uma vez por todas estão fora de circulação no Kula A posse é portanto uma relação econô mica deveras especial no sistema do Kula Nenhum dos nativos que dele partici pam pode manter quaisquer dos artigos em seu poder por mais de um ou dois anos e quando os conserva durante este tempo está sujeito a ser censurado por sua mesquinhez Alguns distritos têm má reputação entre os demais por serem lerdos e duros de lidar no Kula Por outro lado um número enorme de ar tigos passa pelas mãos de cada participante do Kula durante sua vida esses artigos são de posse temporária e cada um os guarda em confiança por um certo espaço de tempo Esta posse raramente significa que o nativo os ponha em uso e ele tem por obrigação passálos o quanto antes a um dos seus parceiros E22a posse temporária no entanto lhe permite adquirir grande renome exibir sua aquisição contar aos outros de que modo a obteve e planejar a quem os desti nar a seguir Tudo isso constitui um dos assuntos favoritos entre os nativos ser vindolhes de tema para suas conversas e mexericos A glória e as façanhas de chefes e plebeus no Kula são constantemente discutidas e ventiladas em suas con versas 38 Cada um dos artigos do Kula movese assim numa única direção nunca volta para trás jamais pára de modo permanente e leva de dois a dez anos para perfazer o circuito completo Essa é talvez uma das características mais notáveis do Kula pois através dela se cria uma nova forma de posse e coloca os dois artigos do Kula numa 33 Esta citação e as demais que se seguem foram tomadas de um artigo preliminar do autor sobre o Kula publicado em Man julho de 1920 Artigo número 51 p 100 84 MALINOWSKI categoria especial própria deles Podemos agora voltar à comparação que já esta belecemos entre os vaygu a objetos de valor em Kiriwina e os objetos tradicio nais ou relíquias históricas dos europeus Essa comparação só não é válida num particular nos objetos europeus desse tipo a posse permanente e a associação contínua com um cargo ou posição social hereditária ou com uma família são características essenciais Nisso os artigos do Kula diferem bastante dos nossos objetos tradicionais mas por sua vez assemelhamse a um outro tipo de objetos de valor os troféus as marcas de superioridade as taças de campeonatos obje tos esses que a facção vencedora indivíduo ou grupo guarda apenas por determinado espaço de tempo Embora esses objetos sejam confiados em posse temporária e não sirvam a quaisquer fins utilitários seus possuidores sentem espe cial prazer pelo simples fato de os terem em mãos merecendoos por direito Neste caso também a semelhança não é apenas superficial e externa mas se trata da mesma atitude mental caracterizada por dispositivos sociais análogos A se melhança é tanto maior porquanto no Kula também existe o elemento de orgu lho pelo êxito ou mérito alcançado o qual constitui um dos principais ingredi entes da satisfação e prazer que o indivíduo ou o grupo sente com a posse de um troféu O êxito no Kula é atribuído a poderes individuais especiais obtidos principalmente através da magia dos quais os nativos se orgulham muito Por outro lado a aldeia inteira também se ufana quando um de seus membros obtém no Kula um troféu especialmente valioso Todas as regras até aqui enumeradas sob o ponto de vista individual limitam a amplitude social e a direção das transações bem como a duração da posse dos objetos Sob o ponto de vista de seu efeito total essas regras dão de lineamento geral ao Kula e o caracterizam como um circuito duplamente fecha do Devemos agora dizer algumas palavras sobre a natureza de cada uma das transações individuais vistas sob o ângulo de sua técnica comercial Neste par ticular existem também regras bastante específicas V O princípio básico em que se assentam as regras da transação propriamente dita é o fato de que o Kula consiste na doação de um presente cerimonial em troca do qual após certo lapso de tempo deve ser recebido um presente equi valente Esse lapso de tempo pode ser de algumas horas ou apenas alguns mi nutos embora por vezes chegue a passar um ano ou mais entre a doação de um artigo e o recebimento do artigo oposto 39 A troca entretanto jamais pode ser efetuada diretamente e a equivalência entre os presentes não deve nunca ser discutida avaliada publicamente ou pechinchada O decoro de cada transação do Kula é rigorosamente mantido e altamente prezadc Os nativos fazêm total distinção entre esse tipo de transação e o escambo o qual praticam extensiva mente e conhecem bastante e para o qual possuem um termo especial gimwali na 1ngua de Kiriwina Ao criticar algum nativo que age de maneira incorreta apressada ou indecorosa no Kula os naiivos freqüentemente dizem Ele age como se o Kula fosse o gimwali Outro princípio muito importante é o de que cabe a quem dá decidir sobre a equivalência entre o presente que oferece e aquele que recebeu anteriormente de seu parceiro A equivalência não pode ser imposta sob qualquer forma de 39 A fim de não me sentir culpado de incoerência pelo uso impreciso do termo cerimo nial apresento aqui uma definição sumária chamaremos de cerimonia a todo ato 1 público realizado sob estreita observância de formalidades específicas 3 de valor socio lógico religioso ou mágico e vinculado a obrigações ARGONAUTAS DO PACIFICO OCIDENTAL 85 doação Esperase que o parceiro tendo recebido um presente kula dê em troca um presente de justo e igual valor em outras palavras o bracelete que ele dá como contrapresente deve ser tão bom quanto o colar que recebeu como pre sente ou viceversa Um presente excepcionalmente valioso por sua vez deve ser retribuído com um contrapresente de valor semelhante e não com vários contrapresentes menores Não obstante isso pode haver presentes intermediários com os quais o parceiro adia temporariamente o verdadeiro contrapresente Se o objeto dado como contrapresente tiver valor menor que o presente o receptor ficará decepcionado e aborrecido mas não pode usar de meios diretos para obter uma compensação nem tentar coagir seu sócio nem tampouco dar fim de uma vez por todas às suas transações com ele Quais são então as for ças operantes no sentido de fazer com que cada parceiro siga à risca os termos da transação Entra aqui uma faceta muito importante de atitude mental do nativo com referência à riqueza e ao valor A falsa noção através da qual se atribui ao selvagem uma natureza puramente econômica poderia levarnos a um erro de raciocínio como o que se segue A paixão pela posse e o ódio de per der ou ceder constituem o elemento fundamental e mais primitivo na atitude tomada pelo homem em relação às riquezas No homem primitivo essa carac terística fundamental se encontra em sua forma mais simples e pura Agarrese a seus bens e não os deixe escapulir é o princípio segundo o qual ele se guia 40 O erro fundamental deste raciocínio está em pressupor que o homem pri mitivo representado hoje pelo selvagem está pelo menos sob o ponto de vista econômico livre de quaisquer convenções ou restrições sociais A verdade é bem outra Muito embora o nativo do Kula como qualquer outro ser humano tenha paixão pela posse deseje manter consigo todos os seus bens e tema perdêlos o código social das leis que regulam o dar e receber suplanta sua tendência aquisitiva natural Esse código social tal como o encontramos entre os nativos do Kula está no entanto longe de atenuar o desejo natural pela posse muito pelo contrário estabelece que possuir é ser poderoso e que a riqueza constitui apanágio indis pensável de dignidade social e atributo da virtude individual O importante po rém é que para os nativos do Kula possuir é dar e nesse aspecto eles são notavelmente diferentes de nós Pressupõem que qualquer pessoa deve natural mente partilhar seus btns e deles ser o depositário e distribuidor Além disso quanto mais alta a categoria social maiores as obrigações Esperase que o chefe forneça alimento a qualquer estranho ou visitante e até mesmo a qualquer vadio vindo de outras partes da aldeia O chefe tem de dividir com os outros nativos seu estoque particular de tabaco ou nozes de bétel Assim sendo o nativo de certa posição social precisa esconder qualquer porção desses artigos que queira preservar para uso próprio No extremo oriental da Nova Guiné eram comuns entre os nativos de certa posição social as cestas especiais de três camadas fa bricadas nas ilhas Trobriand porque na divisão inferior podiam esconder seus pequenos tesouros A riqueza é portanto o principal indício do poder e a generosidade sinal da riqueza Com efeito a avareza é o vício mais desprezado constituindo entre os nativos a única coisa sobre a qual eles fazem críticas mo rais realmente acerbas A generosidade por outro lado é tida como essência da bondade 40 Esta não é a interpretação fantasiosa daquilo que poderia ser uma op1mao errônea pois posso fornecer exemplos concretos que comprovam que tais opiniões foram realmente apre sentadas visto porém que minha intenção neste capítulo não é a de apresentar uma crítica das teorias sobre a economia primitiva atualmente existentes não quero abarrotar este capí tulo com citações 86 MALINOWSKI Essa injunção moral e o subseqüente hábito de generosidade superficial mente observados e mal interpretados são responsáveis por uma outra idéia er rônea bastante difundida a do comunismo primitivo dos selvagens Isto tanto quanto a ficção diametralmente oposta do nativo insaciável e desumanamente tenaz é definitivamente errôneo como veremos com suficiente clareza nos ca pítulos que se seguem O princípio fundamental do código moral dos nativos neste assunto faz pois com que o indivíduo contribua com seu quinhão justo nas transações do Kula e quanto mais importante ele for mais deseja sobressairse por sua gene rosidade N oblesse oblige é na realidade a norma social que regula sua conduta Isso não significa que os nativos estejam sempre satisfeitos ou que não haja brigas ressentimentos e até mesmo lutas por causa das transações É óbvio que por mais que o indivíduo queira dar um equivalente justo em troca do objeto recebido às vezes ele não consegue fazêlo Então como há sempre intensa competição no sentido de ser o doador mais generoso o indivíduo que recebe menos do que dá não esconde o seu aborrecimento mas gabase de sua própria generosidade e a contrasta com a avareza do seu parceiro o outro se ressente com isso e assim a briga está pronta para começar É porém muito impor tante compreenderse que realmente não existe regateio nem tendência a lograr um indivíduo naquilo que por direito lhe cabe Embora por motivos diferentes tanto o doador quanto o receptor concordam entusiasticamente que o presente deva ser generoso E então é claro há o fato importante de que o indivíduo que é justo e generoso no Kula atrai para si maior fluxo de transações que o indivíduo mesquinho Os dois princípios mais importantes a saber primeiro que o Kula é um presente retribuído após certo período de tempo por meio de um contrapresente e não um escambo e segundo que cabe ao doador estabelecer a equivalência do contrapresente que não pode ser imposta e não pode haver regateio ou de voluções na troca fundamentam todas as transações Um exemplo concreto de como se realizam essas transações será suficiente para uma idéia preliminar Suponhamos que eu nativo de Sinaketa tenha em meu poder um belo par de braceletes Uma expedição ultramarina proveniente de Dobu no arquipé lago dEntrecasteaux chega à minha aldeia Soprando um búzio apanho meu par de braceletes e o ofereço ao meu parceiro de ultramar dizendolhe algumas palavras como por exemplo Este é um vaga presente com que se inicia a transação em tempo certo ireis darme um grande soulava colar em retri buição No ano seguinte quando eu o visitar em sua aldeia meu parceiro terá em seu poder um colar equivalente que dele receberei como yotile contrapre sente caso não possua um colar suficientemente bom com que retribuir ao meu último presente ele me dará um pequeno colar manifestamente não equiva lente ao meu presente oferecido como basi presente intermediário Isto sig nifica que o presente principal deverá ser dado numa próxima ocasião e o basi é oferecido em sinal de confiança mas este por sua vez deve também ser retribuído por mim nesse ínterim com um presente de pequenos braceletes de conchas O presente final que me será dado de modo a concluirse a transação chamase kudu presente com o qual se conclui uma transação em oposição a basi Loc cit p 99 Muito embora o regateio e a pechincha estejam excluídos do Kula há mo dos costumeiros e regulamentados de se fazerem ofertas por algum artigo vaygu a que se sabe está em poder de um parceiro Isso se faz pelo oferecimento do que chamaremos de presentes de solicitação dos quais há muitos tipos Se acon tecer de ter eu habitante de Sinaketa em meu poder um par extraordinaria mente bom de braceletes a fama de meus braceletes se espalha pois é preciso ARGONAUTAS DO PACtFICO OCIDENTAL 87 lembrarnos de que cada um dos braceletes e colares de primeira categoria tem um nome especial e uma história toda sua e à medida que circula no grande circuito do Kula tornase bem conhecido e seu aparecimento num determinado distrito sempre constitui uma sensação Todos os meus parceiros então sejam eles do ultramar sejam do meu próprio distrito competem entre si pela honra de receber esse meu artigo e os que estão especialmente ansiosos tentam obtê lo oferecendome pokala oferendas e kaributu presentes de solicitação Os primeiros os pokala em geral consistem de porcos bananas de especial quali dade inhame ou taro os últimos os kaributu são de maior valor as grandes e valiosas lâminas de machado chamadas beku ou as colheres para cal feitas de osso de baleia Loc cit p 100 As complicações adicionais relativas à retribuição desses presentes de solicitação bem como mais algumas sutilezas e expressões técnicas referentes a este assunto serão fornecidas mais adiante no capítulo IV VI Enumerei as regras principais do Kula de maneira suficiente a uma defini ção preliminar devo agora dizer algumas palavras a respeito das atividades afins e dos aspectos secundários do Kula Se compreendermos que por vezes a troca deve realizarse entre distritos separados por mares perigosos onde um grande número de homens tem de navegar em canoas obedecendo a datas preestabele cidas tornase claro que muitos preparativos são necessários para que uma ex pedição se possa realizar Muitas atividades preliminares estão intimamente rela cionadas ao Kula tais como a construção das canoas a preparação do equipa mento o aprovisionamento da expedição o estabelecimento das datas e a orga nização social do empreendimento Todas essas atividades são subsidiárias ao Kula e já que são executadas para atender às finalidades do Kula e constituem uma série concatenada a descrição do Kula deve incluir um relato dessas ativi dades preliminares A descrição detalhada do processo de construção de canoas do cerimonial que o acompanha dos rituais mágicos concomitantes do lança mento e da viagem inaugural dos costumes afins que têm por finalidade a pre paração do equipamento tudo isso será contado com detalhes nos próximos capítulos Outra atividade inextricavelmente ligada ao Kula é a do comércio secundá rio Viajando a terras longínquas ricas em recursos naturais desconhecidos em sua terra natal os navegadores do Kula retornam de cada expedição fartamente carregados com os espólios de seu empreendimento A fim também de presen tear seus parceiros os nativos levam em cada viagem uma carga de produtos tidos como altamente desejáveis no distrito ultramarino Parte dessa carga é dis tribuída aos parceiros na forma de presentes mas uma boa porção dela desti nase ao pagamento de objetos desejados pelos nativos em sua terra natal Em certos casos durante a viagem os visitantes exploram por sua própria conta os recursos naturais das terras do alémmar Os nativos de Sinaketa por exemplo mergulham na laguna de Sanaroa em busca dos spondylus e os de Dobu fazem pescarias nas ilhas Trobriand numa praia situada no extremo sul da ilha O co mércio secundário tornase ainda mais complicado pelo fato de que certos gran des centros do Kula como por exemplo Sinaketa não são especializados na produção dos artigos que para os dobu são de especial valor Dessa forma os nativos de Sinaketa têm de obter o estoque de mercadorias necessárias nas al deias do interior de Kuboma e isso eles fazem através de pequenas expedições comerciais preliminares ao Kula Assim como a construção de canoas o comér 88 MALINOWSKI cio secundário será descrito com detalhes mais tarde mas não podemos deixar de mencionálo aqui Neste momento tais atividades afins e subsidiárias precisam ser adequada mente relacionadas umas às outras e à transação principal Tanto a construção de canoas quanto o comércio regular foram mencionados como secundários ou subsidiários ao Kula propriamente dito Isso requer uma explicação Não é mi nha intenção ao subordinar essas duas coisas ao Kula expressar uma conside ração filosófica ou uma opinião pessoal quanto ao valor relativo dessas ativi dades sob o ponto de vista de alguma teleologia social Com efeito é óbvio que se observarmos essas atividades do lado de fora como estudiosos de socio logia comparada e avaliarmos sua verdadeira utilidade o comércio e a constru ção de canoas aparecerão como as realizações verdadeiramente importantes e consideraremos o Kula apenas como um estímulo indireto que impele os nativos a navegar e a comerciar Minha presente descrição não é porém sociológica mas sim puramente etnográfica e toda análise sociológica que venho apresen tando é apenas a que se faz absolutamente indispensável para dissipar falsas concepções e definir termos 41 Definindo o Kula como a atividade primária e mais importante e as de mais como secundárias quero fazer ver que essa prioridade está implícita nas próprias instituições Ao estudar o comportamento dos nativos e todos os costu mes em questão vemos que o Kula constitui sob todos os aspectos o objetivo principal as datas são fixadas as atividades preliminares estabelecidas as expe dições organizadas a organização social determinada não em função do comér cio mas sim em função do Kula A grande festa cerimonial realizada ao iniciar se uma expedição referese ao Kula a cerimônia final da avaliação e contagem dos espólios referese ao Kula e não aos objetos obtidos pelo comércio Final mente a magia que constitui um dos principais elementos de todo esse processo referese exclusivamente ao Kula e isto se aplica até mesmo ao conjunto de má gicas com que se encantam as canoas Alguns dos rituais mágicos do ciclo são executados tendo por objetivo as próprias canoas outros têm por objetivo o Kula A construção de canoas está sempre em conexão direta com uma expedição do Kula Tudo isto é lógico irá tornarse realmente claro e convincente só depois que apresentarmos um relato minucioso É porém necessário estabelecermos a estas alturas a perspectiva correta da relação entre o Kula principal e o comér cio subsidiário Certamente existem muitas tribos vizinhas que nada conhecem a respeito do Kula e apesar disso fabricam canoas e navegam para longe em ousadas ex pedições comerciais há também diversas aldeias nas ilhàs Trobriand por exemplo que embora dentro do circuito do Kula não o praticam e contudo possuem canoas com as quais realizam um vigoroso comércio marítimo Mas nos locais em que é praticado o Kula controla todas as demais atividades afins e tanto a construção de canoas quanto o comércio se tornam subsidiários dele E isto se expressa de um lado pela natureza das instituições e pelo modo como se processam todos os preparativos e de outro pelo comportamento e pelas afir mações explícitas dos nativos O Kula como espero estáse tornando cada vez mais evidente é uma instituição enorme e complicada por mais insignificante que seu núcleo nos pos 1 Talvez não haja necessidade de salientarmos o fato de que no presente estudo não estão incluídas quaisquer considerações referentes às origens e ao desenvolvimento ou história das instituições nativas A mistura de pontos de vista especulativos ou hipotéticos com o relato de ocorrências concretas constitui na minha opinião um pecado imperdoável contra os princípios metodológicos da etnografia ARGONAUTAS DO PACIFICO OCIDENTAL 89 sa parecer Para os nativos ele representa um dos interesses mais vitais da exis tência e como tal possui um caráter cerimonial e está cingido pela magia Po demos imaginar que os objetos que constituem a riqueza nativa possam passar de uma pessoa para outra sem quaisquer cerimônias ou rituais mas isso jamais acontece no Kula Mesmo quando por vezes pequenas expedições de apenas uma ou duas canoas partem para o alémmar e trazem os vaygu a observamse determinados tabus e práticas tradicionais na partida durante a viagem e à che gada até mesmo a menor das expedições de uma só canoa constitui aconteci mento tribal de relativa importância conhecido e discutido no distrito inteiro A expedição típica porém é aquela da qual participa um grande número de canoas organizadas de maneira específica formando um só grupo Realizamse festas distribuições de alimentos e outras cerimônias públicas há um líder e mestre da expedição e várias regras a serem observadas a par dos tabus e regulamentos costumeiramente associados ao Kula A natureza cerimonial do Kula está rigorosamente vinculada a um outro aspecto que o caracteriza a magia A crença na eficácia da magia domina o Kula como domina a tantas outras atividades tribais Rituais mágicos precisam ser executados sobre as canoas marítimas quando são construídas para que se jam velozes estáveis e seguras rituais mágicos são também executados sobre as canoas para lhes dar sorte no Kula Um outro sistema de rituais mágicos é executado para afastar os perigos da navegação Um terceiro sistema de rituais mágicos relativos às expedições marítimas é o mwasila ou a magia do Kula pro priamente dita Esse sistema se compõe de numerosos rituais e encantamentos todos eles agindo diretamente sobre a mente nanola do parceiro fazendo com que ele se torne afável de mente instável e ansioso por dar presentes kula Loc cit p 100 É natural que uma instituição tão intimamente ligada a elementos mágicos e cerimoniais como o é o Kula não só esteja assentada sobre um alicerce tra dicional muito firme mas também possua um grande estoque de lendas Há uma rica mitologia do Kula na qual se contam estórias sobre épocas remotas quando ancestrais míticos se empenhavam em expedições longínquas e audacio sas Graças a seus conhecimentos de magia eles conseguiam escapar aos perigos vencer os inimigos transpor obstáculos e através de suas façanhas estabelece ram muitos precedentes que agora são rigorosamente observados nos costume tribais Mas sua importância para seus descendentes reside principalmente no fato de que eles lhes legaram seus conhecimentos de magia e isto fez com que o Kula se tornasse possível nas gerações subseqüentes Loc cit p 100 Em determinados distritos aos quais não pertencem as ilhas Trobriand o Kula está associado a festas mortuárias chamadas soi Esta associação sobre a qual faremos um relato no capítulo XX é de grande interesse e importância As grandes expedições do Kula são realizadas por um grande número de nativos um distrito inteiro Mas os limites geográficos dentro dos quais são recrutados os membros de uma expedição encontramse perfeitamente definidos Observando o mapa V podemos ver diversos círculos cada um deles represen tando determinada unidade sociológica a que chamaremos de comunidade kula Cada comunidade kula se compõe de uma ou várias aldeias cujos nativos par tem juntos nas grandes expedições marítimas e atuam como um só grupo nas transações do Kula executam seus rituais mágicos em comum possuem os mes mos líderes e se movem na mesma esfera social interna e externa em cujo âm bito trocam seus objetos de valor O Kula então consiste primeiro das pequena transações internas dentro da comunidade kula ou comunidades adjacentes e segundo das grandes expedições marítimas nas quais a troca de artigos se veri fica entre duas comunidades separadas pelo mar Nas primeiras existe um fluxo 90 MALINOWSKI pequeno mas contínuo e permanente de artigos entre uma aldeia e outra e até mesmo dentro de uma mesma aldeia Nas segundas uma enorme quantidade de objetos de valor chegando a mais de mil por vez é trocada através de uma enorme transação ou mais acertadamente através de uma infinidade de tran sações que se realizam simultaneamente Loc cit p 101 O Kula consiste na série dessas expedições marítimas periódicas que vinculam os diversos grupos de ilhas e anualmente trazem de um distrito para o outro grande quantidade de vaygu a e objetos de comércio subsidiário Os objetos do comércio subsidiário são utilizados e consumidos mas os vaygu a braceletes e colares movem se constantemente no circuito Loc cit p 105 Apresentei neste capítulo uma definição curta e sumária do Kula Enume rei um após outro seus aspectos mais característicos as regras mais notáveis estabelecidas nos costumes nas crenças e no comportamento dos nativos Isto se fez necessário para podermos fornecer umà noção geral da instituição antes de descreverlhe minuciosamente o funcionamento Uma definição abreviada po rém jamais pode proporcionar ao leitor o entendimento total de uma instituição social humana Para isso é necessário explicar seu funcionamento de maneira concreta colocar o leitor em contato com as pessoas mostrarlhe de que manei ra elas se portam em cada um dos estágios consecutivos e descrever todas as manifestações reais das regras gerais estabelecidas in abstracto Como dissemos acima as transações do Kula são efetuadas através de dois tipos de empreendimentos existem em primeiro lugar as grandes expedições marítimas nas quais se transporta uma quantidade mais ou menos considerável de objetos de valor Há a par disso a troca interna em que os artigos passam de pessoa para pessoa freqüentemente mudando de dono inúmeras vezes num percurso de algumas milhas As grandes expedições marítimas constituem de longe a parte mais espe tacular do Kula Contêm também um número maior de cerimônias públicas rituais mágicos e praxes tradicionais Também requerem é claro maiores pre parativos e atividades preliminares Terei portanto muito mais coisas a dizer sobre as expedições ultramarinas do Kula do que sobre as trocas internas Visto que os costumes e crenças relativos ao Kula foram na maior parte estudados em Boyowa ou seja nas ilhas Trobriand e analisados sob o ponto de vista desse distrito irei relatar em primeiro lugar o modo típico como se processa uma expedição marítima seguindo seus preparativos organização e partida das ilhas Trobriand Começando pela construção das canoas procedendo em seguida à cerimônia de seu lançamento e às visitas de apresentação formal das canoas selecionaremos então a comunidade de Sinaketa e acompanharemos os nativos numa de suas viagens marítimas a qual descreveremos em todos os seus detalhes Isto nos mostrará uma modalidade de expedição kula em deman da a terras distantes Mostraremos então em que aspectos essas expedições dife rem entre si noutras ramificações do Kula e para isso irei descrever uma expe dição proveniente de Dobu e outra entre Kiriwina e Kitava Esse relato será complementado com uma descrição do Kula interno de algumas modalidades de comércio associado e das demais ramificações do Kula No capítulo que se segue eu passo portanto aos estágios preliminares do Kula nas ilhas Trobriand começando pela construção das canoas
5
Antropologia Social
UMG
17
Antropologia Social
UMG
18
Antropologia Social
UMG
3
Antropologia Social
UMG
9
Antropologia Social
UMG
2
Antropologia Social
UMG
3
Antropologia Social
UMG
1
Antropologia Social
UMG
17
Antropologia Social
UMG
19
Antropologia Social
UMG
Texto de pré-visualização
CAP1TULO III Características essenciais do Kula 1 Feita a descrição do cenário e dos atores passemos ao espetáculo em si O Kula é uma forma de troca e tem caráter intertribal bastante amplo é praticado por comunidades localizadas num extenso círculo de ilhas que formam um cir cuito fechado Esse circuito aparece no mapa V representado pelas linhas que unem uma ilha à outra ao norte e ao leste do extremo oriental da Nova Guiné Ao longo dessa rota artigos de dois tipos e somente desses dois viajam constantemente em direções opostas No sentido horário movimentamse os lon gos colares feitos de conchas vermelhas chamados soulava veja figs 18 e 19 No sentido oposto movemse os braceletes feitos de conchas brancas chamados mwali veja figs 16 e 17 Cada um desses artigos viajando em seu próprio sen tido no circuito fechado encontrase no caminho com os artigos da classe oposta e é constantemente trocado por eles Cada movimento dos artigos do Kula cada detalhe das transações é fixado e regulado por uma série de regras e convenções tradicionais alguns dos atos do Kula são acompanhados de elaboradas cerimô nias públicas e rituais mágicos Em cada ilha e em cada aldeia um número mais ou menos restrito de homens participam do Kula ou seja recebem os artigos conservamnos con sigo durante algum tempo e por fim passamnos adiante Cada um dos parti cipantes do Kula recebe periodicamente mas não regularmente um ou vários mwali braceletes de concha ou um soulava colar de discos feitos de conchas vermelhas que deve entregar a um de seus parceiros do qual recebe em troca o artigo oposto Assim ninguém jamais conserva nenhum artigo consigo por muito tempo O fato de que uma transação seja consumada não significa o fim da relação estabelecida entre os parceiros a regra é uma vez no Kula sempre no Kula A parceria entre dois indivíduos no Kula é permanente para toda a vida Os mwali e os soulava encontramse sempre em movimento vão passando de mão em mão e não há casos em que esses artigos fiquem retidos com um só dono Portanto o princípio de uma vez no Kula sempre no Kula aplicase de igual forma aos próprios artigos A troca cerimonial dos dois artigos um pelo outro é o aspecto fundamental e central do Kula Mas associados a ela e realizadas à sua sombra encontramos numerosas características e atividades secundárias Paralelamente à troca ritual dos colares pelos braceletes os nativos realizam um comércio comum negociando de uma ilha para a outra bens que de modo geral não são fabricados pelo dis trito que os importa mas são indispensáveis à sua economia Além disso há outras atividades que precedem ao Kula ou a ele se acham associadas como por exemplo a construção das canoas para navegação em altomar usadas nas expe dições certos tipos de cerimônias mortuárias de grande pompa e tabus pre paratórios O Kula é portanto uma instituição enorme e extraordinariamente com 76 MALINOWSKI plexa não só em extensão geográfica mas também na multiplicidade de seus objetivos Ele vincula um grande número de tribos e abarca em enorme con junto de atividades interrelacionadas e interdependentes de modo a formar um todo orgânico Devemos contudo lembrarnos de que o Kula que aparece aos nossos olhos como uma instituição extensa e complicada porém bem organizada é o resultado de muitos e muitos trabalhos e façanhas empreendidos por selvagens os quais não possuem leis nem objetivos nem esquemas explicitamente formu lados e nem mesmo conhecimento do esquema total de sua estrutura social Os nativos estão cientes de seus próprios motivos conhecem os objetivos das ações individuais e as regras que as coordenam porém está além de sua capacidade mental a percepção de como dessas ações emerge a instituição coletiva em seu conjunto Nem mesmo o nativo mais inteligente consegue ter uma idéia exata a respeito do Kula como uma grande construção social organizada e menos ainda de suas implicações e funções sociológicas Se lhe perguntarmos o que é o Kula ele nos irá responder com alguns detalhes muito provavelmente narrando suas experiências pessoais e pontos de vista subjetivos sobre o sistema mas certamente não nos irá fornecer nenhuma definição como a que acabamos de dar Dele não podemos nem mesmo obter um relato parcialmente coerente O nativo não tem visão do todo Ele faz parte do todo e não consegue vêlo de fora como um observador A integração de todos os detalhes observados bem como a síntese socio lógica dos diversos indícios importantes são tarefas do etnógrafo Antes de mais nada ele precisa descobrir o significado de certas atividades que de início pare cem incoerentes e não correlacionadas A seguir ele precisa distinguir nessas atividade o que é constante e relevante do que é acidental e de pouca impor tância isto é o etnógrafo deve procurar descobrir as leis e regras de todas as transações A ele cabe construir o quadro ou esquema total da grande institui ção da mesma forma que o cientista formula toda a sua teoria baseado em dados experimentais que embora sempre ao alcance de todos precisam de interpreta ção coerente e organizada Já tive oportunidade de mencionar esta questão me todológica na Introdução seções V e VI mas repitoa aqui por julgar neces sário seu total entendimento e a fim também de que o leitor não perca a pers pectiva correta das condições em que realmente se encontram os nativos II Para poder dar uma definição concisa e abstrata do Kula como a que acabei de fornecer tive de inverter a ordem da pesquisa tal como acontece durante o trabalho de campo onde as referências mais gerais só podem ser obtidas como resultado de longos inquéritos e laboriosos métodos indutivos Essa definição geral do Kula servirá como uma espécie de plano ou esquema para a descrição concreta e detalhada de que nos ocuparemos proximamente Isso se torna ainda mais necessário pelo fato de que o Kula está relacionado à troca de riquezas e de objetos de utilidade e constitui portanto uma instituição econômica não há aspecto da vida primitiva no qual nossos conhecimentos sejam mais limitados e nosso entendimento mais superficial que o econômico Há um excesso de falsas concepções quanto à economia primitiva e é portanto necessário limparmos o terreno antes de abordar qualquer assunto a ela relativo Na Introdução definimos o Kula como uma espécie de comércio e o colocamos entre esse e outros sistemas de permuta de mercadorias Não haverá erro nisso enquanto dermos à palavra comércio uma interpretação suficiente mente ampla significando com ela qualquer tipo de troca de mercadorias Tanto ARGONAUTAS DO PACIFICO OCIDENTAL 77 na c1encia econômica como na moderna etnografia porém o termo comércio tem um númerü tão grande de acepções que a fim de podermos entender corre tamente os fatos teremos que eliminar muitas idéias falsas e preconcebidas Assim por exemplo a noção que atualmente se faz a priori do comércio primitivo é a de uma troca de artigos indispensáveis ou úteis executada sem quaisquer cerimônias e sem qualquer regulamentação feita em intervalos irregulares e espas módicos mb pressão da carência ou necessidade julgase também que essa permuta se processa de maneira direta cada um dos interessados tomando gran des precauções para não sair logrado ou se os selvagens são tímidos demais e receosos de enfrentar uns aos outros através de algum arranjo costumeiro que lhes assegure por meio de severos castigos conformidade às obrigações a que estão sujeitos ou que lhes são impostas 36 Abandonando por ora a questão da validade ou não validade geral dessa concepção que a meu ver é bastante falsa e enganosa temos de entender claramente o fato de que o Kula contradiz em quase todos os seus aspectos a definição de comércio primitivo que acima men cionamos O Kula nos mostra o comércio primitivo sob um ângulo totalmente diferente O Kula não é uma modalidade subreptícia e precária de troca Muito pelo contrário está enraizado em mitos sustentado pelas leis da tradição e cingido por rituais mágicos Todas as transações principais que nele se processam são públicas e cerimoniais levadas a efeito segundo regras bem definidas O Kula não decorre de impulsos momentâneos mas se realiza periodicamente em datas préestabelecidas ao longo de rotas comerciais definidas que conduzem a locais fixos de encontro Muito embora se realize entre tribos lingüística cultural e talvez até mesmo racialmente diferentes umas das outras o Kula baseiase sob o ponto de vista sociológico num status fixo permanente numa parceria que une em pares alguns milhares de indivíduos Esta parceria é permanente para toda a vida e implica em diversos deveres e privilégios mútuos constitui assim um tipo de relacionamento intertribal feito em grande escala O mecanismo econô mico das transações baseiase numa forma específica de crédito que pressupõe alto grau de confiança mútua e honra comercial Isto se refere também às tran sações comerciais menores subsidiárias ao Kula propriamente dito O Kula não se realiza sob a pressão de quaisquer necessidades visto que seu objetivo prin cipal é o de permuta de artigos que não têm nenhuma utilidade prática Da definição concisa do Kula apresentada no início deste capítulo podemos 36 Uso o termo noçào atual tal como ele aparece nos livros de texto e observações oca sionais que se encontram disseminadas na literatura econômica e etnológica Com efeito a economia é um assunto muito pouco abordado tanto nos estudos teóricos sobre etnologia quanto not re1aros da pesquisa de campo Faço extensas considerações sobre esta deficiên cia no artigo Primitive Economics publicado no Economic Journal cm março de 1921 Uma das melhores análises sobre a questão da economia selvagem apesar de deficiente em diversos pontos é i que se encontra na obra Industrial Evolution de K Büchcr versão inglesa 1901 A perspectiva de Bücher na questão do comércio primitivo é no entanto inadequada Segundo sua opinião geral de que os nativos não possuem uma economia na cional Bücher defende o ponto de vista de que qualquer distribuição de bens entre os nati vos se processa através de meios não econômicos tais como o roubo tributações e presentes Os dados que forneço no presente volume são incompatíveis com a teoria de Bücher Bücher não teria mantido sua opinião se estivesse familiarizado com o estudo feito por Barton e incluído na obra Melanesians de Seligman sobre os hiri No artigo Die Ethnologische Wirtschaftsforschung de autoria de Pater W Kopper publi cado em Antlrropos XXI 191516 pp 611651 e 9711079 encontrase um resumo das pesquisas feitas sobre a economia primitiva esse resumo mostra a propósito quão pouco se tem realizado em matéria de trabalho verdadeiro e profundo no campo da economia pri mitiva O artigo é realmente de muito proveito nele o autor sintetiza os pontos de vista de outros estudiosos 78 MALINOWSKI concluir que em última essência o Kula despojado de todos os seus ornamentos e acessórios não passa de um sistema bastante simples que à primeira vista poderia até mesmo parecer insípido e pouco romântico Afinal ele consiste apenas da permuta interminavelmente repetida de dois artigos destinados à ornamenta ção mas raramente usados como tal Não obstante esta ação tão simples essa passagem de mão em mão desses dois objetos inúteis e sem sentido veio de alguma forma a tornarse o alicerce de uma grande instituição intertribal asso ciada a um semnúmero de outras atividades Os mitos a magia e a tradição construíram em torno do Kula formas bem definidas de cerimônias e rituais deram a ele um halo de romance e valor na mente dos nativos e deveras criaram em seus corações enorme paixão por essa simples permuta de objetos Devemos agora ampliar a definição do Kula descrevendolhe as regras e características fundamentais uma após as outras de modo a que o leitor possa entender claramente o mecanismo pelo qual a troca desses dois artigos veio a transformarse numa instituição tão vasta e complexa e de raízes tão profundas III Antes de mais nada algumas palavras devem ser ditas sobre os dois prin cipais objetos das transações do Kula os braceletes de conchas mwali e os colares soulava Os braceletes são obtidos quebrandose a parte superior e a extremidade delgada da concha de um grande caramujo Conus millepunctatus e a seguir polindose a argola assim obtida Esses braceletes são muito cobiçados por todos os papuamelanésios da Nova Guiné e se encontram até mesmo no distrito puramente papua do Golfo 37 A fig 17 ilustra o modo como esses brace letes são usados os nativos os exibiram especialmente para a fotografia Os pequenos discos feitos das conchas vermelhas do spondylus com os quais são confeccionados os soulava são também de uso bastante difundido Existem nu merosos centros de fabricação desses colares entre eles uma das aldeias de Port Moresby e várias localidades da Nova Guiné oriental especialmente as ilhas Trobriand e a ilha de Rossell Empreguei acima o vocábulo uso de propósito essas pequenas contas de forma achatada e arredondada com um orifício no centro e cores que variam do marromescuro ao vermelhocarmim são usados em vários tipos de enfeites Em geral fazem parte dos brincos cujas argolas são feitas do casco das tartarugas Dessas argolas que ficam presas ao lóbulo da orelha pende um feixe de contas Os brincos desse tipo são de uso bastante comum especialmente entre os massim pelo menos cinqüenta por cento dos homens e mulheres usam esse tipo de brincos outros preferem apenas as argolas feitas do casco das tartarugas Outro enfeite muito comum de uso freqüente orincipalmente entre as crianças é um colar curto que apenas contorna o pes coço feito dos discos vermelhos do spondylus esse tipo de colar pode ter um ou vários pingentes feitos com a concha do cauri Esses discos do spondylus entram de modo geral na confecção de várias espécies de enfeites majs sofjs ticados aqueles que se usam somente em ocasiões festivas Entretanto aqui nos interessam apenas os longos colares que medem de dois a cinco metros e são também feitos com os pequenos discos do spondylus Há dois tipos principais desses colares o primeiro mais requintado tem um grande pingente feito de 37 O Professor C G Seligman op cit p 93 afirma que os braceletes de concha aos quais os motu chamam de toea são comerciados da região oeste do distrito de Port Moresby ao golfo Papua Esses objetos são considerados de alto valor pelos motu e koita que vivem próximos de Port Moresby e alcançaram atualmente preços muito altos por vezes até f 30 muito mais do que se paga pelos mesmos artigos entre os massim ARGONAUTAS DO PACIFICO OCIDENTAL 79 conchas o outro possui contas maiores e traz no centro algumas conchas ou sementes pretas de banana veja fig 18 Tanto os mwali quanto os longos colares souava os dois principais artigos do Kula são antes de mais nada enfeites e como tal usados exclusivamente com os trajes de dança mais elaborados nas grandes ocasiões festivas nas danças cerimoniais e nas grandes reuniões de que participam os nativos de várias aldeias veja fig 6 Jamais podem ser usados como enfeites diários ou em ocasiões menos importantes tais como as pequenas danças na aldeia as reuniões organizadas na época das colheitas ou as expedições do namoro nessas ocasiões são usados adornos de flores pintura facial e enfeites menores mas não de uso diário como os que aparecem nas fig 12 e 13 Embora usáveis e com efeito usados em algumas ocasiões o souava e mwali não têm entretanto esta função básica Um chefe por exemplo pode ter em seu poder vários colares e alguns braceletes se houver em sua própria aldeia ou nalguma aldeia vizinha alguma grande festa a que pretenda comparecer o chefe usará esses enfeites se for ornamentarse para participar pessoalmente das danças caso contrário qualquer de seus paren tes filhos e amigos ou até mesmo seus vassalos pode usálos para enfeitarse Se formos a uma festa ou dança onde os homens estão usando esses ornamentos e lhes perguntarmos a quem pertencem os enfeites provavelmente mais da me tade deles responderá que não são deles mas que os emprestaram de outros na tivos Esses objetos não são possuídos para serem usados o privilégio de enfei tarse com os mwali e souava não é o verdadeiro objetivo da posse Outro fato aliás bem mais significativo é que a maioria dos braceletes cerca de noventa por cento deles são pequenos demais para serem usados até mesmo por crianças Por outro lado alguns deles são tão grandes e tão valiosos que não são usados praticamente nunca a não ser uma vez cada dez anos se tanto mesmo nesse caso apenas por uma pessoa muito importante num dia de gran des festividades Embora os colares possam ser usados alguns deles são de igual forma considerados valiosos e incômodos demais para se usarem com muita fre qüência ficam desse modo reservados para ocasiões muito especiais Isso nos força a indagar por que entào se dá tanta importância a esses objetos Qual é a sua finalidade A resposta completa a essas perguntas vai emergir aos poucos nos próximos capítulos mas uma idéia aproximada deve ser fornecida imediatamente Como é sempre melhor abordar um tema desco nhecido através de outro já conhecido vamos refletir um pouco e tentar desco brir se em nosso próprio meio não existem também certos objetos que desem penham papel semelhante ao desses colares e braceletes e são possuídos e usados de maneira também análoga à deles Ao voltar para a Europa após seis anos de permanência no Pacífico Sul e na Austrália visitei numa excursão turística o castelo de Edimburgo onde me foram mostradas as jóias da Coroa O guarda contoume diversas histórias de como as jóias haviam sido usadas por este ou aquele rei ou rainha nesta ou naquela ocasião de que modo haviam sido leva das a Londres causando com isso justa indignação a toda nação escocesa como as jóias foram por fim restituídas como todos estão agora satisfeitos sabendoas em lugar seguro trancadas a chave e cadeado fora do alcance de pessoas que as queiram tocar Enquanto eu olhava para as jóias e pensava comigo mesmo como eram feias inúteis pesadas e até mesmo vistosas demais e de mau gosto tive a sensação exata de que algo parecido já me havia sido relatado recente mente e de que eu já vira inúmeros outros objetos desse mesmo tipo que me impressionaram de maneira idêntica Tive então diante dos olhos a visão de uma aldeia nativa construída sobre solo de coral a visão de uma pequena e frágil plataforma armada provisoria mente sob um telhado de sapé e rodeada de homens escuros nus um dos quais 80 MALINOWSKI me mostrava colares longos e finos de cor vermelha além de outros objetos grandes brancos desgastados pelo uso feios e engordurados Esse nativo iame fornecendo de maneira reverente os nomes de todos esses objetos contandome a história de cada um deles quando e por quem foram usados como tinham passado de dono para dono e como a posse temporária desses objetos consti tuía um grande sinal de importância e glória para sua aldeia A analogia entre os vaygua objetos de valor europeus e os de Trobriand precisa ser definida de maneira mais clara as jóias da Coroa britânica como quaisquer objetos tradi cionais demasiado valiosos e incômodos para serem realmente usados represen tam o mesmo que os vaygu a pois são possuídos pela posse em si f a posse aliada à glória e ao renome que ela propicia que constitui a principal fonte de valor desses objetos Tanto os objetos tradicionais ou relíquias históricas dos europeus quanto os vaygu a são apreciados pelo valor histórico que encer ram Podem ser feios inúteis e segundo os padrões correntes possuir muito pouco valor intrínseco porém só pelo fato de terem figurado em acontecimentos históricos e passado pelas mãos de personagens antigos constituem um veículo infalível de importante associação sentimental e passam a ser considerados grandes preciosidades O sentimentalismo histórico que desempenha papel de impor tância no nosso interesse em estudar os acontecimentos do passado existe de igual modo no Pacífico Sul Cada um dos artigos realmente bons do Kula tem um nome próprio e encerra uma espécie de história ou romance nas tradições dos nativos As jóias da Coroa britânica e os objetos tradicionais são insígnias de status social e símbolos de riqueza respectivamente no nosso passado como na própria Nova Guiné até há poucos anos status social e riqueza existiam um em função do outro O ponto mais importante de diferença é que os artigos do Kula são de posse temporária ao passo que para ter total valor o tesouro euro peu precisa ser de posse permanente Numa visão mais larga feita agora sob o ponto de vista etnológico pode mos classificar os artigos preciosos do Kula entre os diversos objetos cerimoniais que representam riqueza enormes armas esculpidas e decoradas implementos de pedra artigos para uso doméstico e industrial ricamente ornamentados e incô modos demais para serem usados normalmente Esses objetos todos são chama dos cerimoniais mas a palavra parece cobrir um grande número de significa dos e incluir muita coisa que não tem significado nenhum Na verdade um objeto é freqüentemente designado como cerimonial especialmente em exibições de museus simplesmente porque seu uso e natureza são desconhecidos Quanto às exposições nos museus de objetos da Nova Guiné posso dizer que muitos dos chamados objetos cerimonais não passam de objetos de uso comum mas exces sivamente elaborados a preciosidade do material com que foram feitos e a quan tidade de trabalho despendida em fabricálos são os fatores que os transforma ram em reservatórios de valor econômico condensado Outros objetos há que são usados em ocasiões festivas mas não têm qualquer função nos ritos e cerimô nias servindo tãosomente como enfeites ou decoração a esses podemos dar o nome de objetos de parada cf cap VI seção 1 Há finalmente certos arti gos que realmente são usados como instrumentos de rituais mágicos ou reli giosos e pertencem ao conjunto de apetrechos intrínsecos a essas cerimônias Esses são os únicos objetos a que poderíamos chamar corretamente de cerimo niais Durante os festejos Soi que se realizam entre os massim do sul as mu lheres carregando machados de lâminas polidas e cabos finamente esculpidos acompanham com passos rítmicos ao som dos tambores a entrada dos por cos e das mudas de mangueira na aldeia veja fig 5 e 6 Como isso faz parte da cerimônia e os machados são acessórios indispensáveis seu uso nessa oca sião pode ser legitimamente chamado cerimonial Nalguns rituais de magi ARGONAUTAS DO PACIFICO OCIDENTAL 81 das ilhas Trobriand o towosi feiticeiro agrícola tem de carregar sobre o om bro um machado com o qual ele golpeia ritualmente as estruturas chamadas kamkokola veja fig 59 cf também cap II seção IV Sob determinado ponto de vista os vaygua objetos de valor do Kula são objetos de uso excessivamente elaborados Constituem também no entanto objetos cerimonais no sentido estrito e correto da palavra Essa questão vai se tornar mais clara ao leitor nas páginas que se seguem A ela voltaremos tam bém no último capítulo O leitor precisa ter em mente que estamos tentando fornecer uma idéia ví vida e clara daquilo que os objetos de valor próprios do Kula representam para os nativos Não é nossa intenção descrevêlos de maneira detalhada e circuns tancial nem definilos com máxima exatidão Estabelecemos um paralelo entre esses artigos e as jóias da Coroa britânica e os objetos históricos europeus a fim de demonstrar que este tipo de posse não constitui um fantástico costume próprio dos habitantes do Pacífico Sul e pode muito bem encontrar equivalentes em nossa orópria cultura A comparação que fiz quero agora enfatizar bem este ponto não se baseia em semelhanças puramente externas e superficiais As forças psicológicas de uma e de outra cultura são as mesmas é a mesma a atitude men tal que nos leva a valorizar nossos objetos históricos ou tradicionais e faz com que os nativos da Nova Guiné tenham seus vaygu a em grande apreço IV A permuta desses dois tipos de vaygua ou seja a troca dos braceletes pelos colares constitui o principal ato do Kula Não é feita livremente a torto e a direito nem está ao capricho da vontade ou disponibilidade dos nativos Está muito pelo contrário sujeita a rigorosos limites e regras Uma dessas regras referese à sociologia da troca e dispõe que as transações do Kula só podem ser executadas entre parceiros O indivíduo que participa do Kula nem todos os nativos no âm bito desse sistema têm autorização para isso possui apenas um número limitado de pessoas com as quais pode negociar Esta parceria é estabelecida de um modo definido exige a satisfação de certas formalidades e constitui uma relação perma nente para toda a vida O número de parceiros que um indivíduo pode ter varia de acordo com sua posição social e importância O plebeu das ilhas Trobriand possui apenas alguns parceiros ao passo que o chefe chega a ter centenas deles Não existe propriamente um mecanismo social pelo qual se possa limitar a partici pação de uns e estender a de outros porém as pessoas em geral sabem exatamente a quantos parceiros têm direito em termos de sua posição social Um dos fato res que as orientam nesse particular é na maioria dos casos o exemplo dado pelos seus ancestrais imediatos Mesmo nas tribos em que as diferenças de posi ção social não são pronunciadas um homem de prestígio ou o líder de um vilarejo ou aldeia pode ter centenas de parceiros no Kula ao passo que um nativo de pouca importância tem apenas alguns Os parceiros do Kula têm que trocar entre si os objetos próprios do Kula e incidentalmente trocam também outros presentes Comportamse como amigos possuem uma série de deveres e obrigações mútuas que variam conforme a distân cia entre suas respectivas aldeias e o status de cada um deles Em média o na tivo tem alguns parceiros próximos geralmente seus próprios amigos ou os pa rentes por afinidade com os quais normalmente mantém relações de amizade bastante estreitas A parceria no Kula é um dos laços especiais que unem dois indivíduos numa relação permanente de troca de presentes e mútua presta ção de serviços que são tão característicos desses nativos Em média o nativo também realiza transações do Kula com um ou dois chefes da vizinhança Num 82 MALINOWSKI caso desse tipo ele tem de prestar assistência e vários serviços aos chefes e oferecerlhes a primeira escolha toda vez que recebe um novo sortimento de vaygu a Por outro lado o nativo espera que os chefes sejam especialmente li berais para com ele O parceiro de alémmar é por outro lado um hospedeiro patrono e aliado em terras perigosas e pouco seguras Hoje em dia embora a sensação de perigo ainda exista e os nativos nunca se sintam perfeitamente seguros e à vontade num distrito que não seja o seu os perigos que temem são os de natureza má gica mais do que qualquer outra coisa portanto é o temor à feitiçaria das terras estranhas que os assedia quando nelas se encontram Em épocas passa das perigos mais tangíveis os ameaçavam e o parceiro constituía a principal garantia de segurança pessoal O parceiro também fornece alimento dá presen tes e sua casa é o local onde o participante do Kula permanece enquanto está na aldeia embora nunca para dormir O Kula portanto provê a cada um de seus participantes com alguns amigos próximos e alguns aliados em distritos lon ínquos desconhecidos e perigosos São essas as únicas pessoas com quem ele pode realizar o Kula mas é claro dentre todos os seus parceiros o nativo tem liberdade de decidir a qual deles fornecer quais objetos Tentemos agora passar a uma visão ampla dos efeitos cumulativos das re gras de parceria Há no circuito inteiro do Kula um encadeamento de relações que naturalmente fazem dele um todo entrelaçado Pessoas que vivem a centenas de milhas umas das outras relacionamse através da parceria direta ou indireta realizam trocas passam a conhecerse e às vezes se encontram em grandes reuniões intertribais veja fig 20 Os objetos dados por um nativo não só os artigos do Kula mas também vários outros objetos de uso doméstico e pe quenos presentes chegam com o tempo a parceiros indiretos muito distan tes 1 fácil observar que no fim de contas não só os objetos da cultura mate rial mas também costumes canções temas artísticos e influências culturais ge rais também viajam ao longo das rotas do Kula O que se verifica então é um vasto encadeamento de relações intertribais numa grande instituição que incorpora milhares de pessoas todas elas unidas por uma paixão comum pelas transações do Kula e em segundo plano por muitos pequenos laços e interesses Voltando mais uma vez ao aspecto pessoal do Kula vamos a um exemplo concreto Consideremos o nativo típico que vive por exemplo na aldeia de Si naketa um dos centros mais importantes do Kula na porção meridional das ilhas Trobriand Possui alguns parceiros próximos e outros distantes mas per tencem todos a duas categorias uns lhe dão apenas braceletes outros lhe dão apenas colares Visto que nas rotas do Kula os braceletes são transportados em sentido contrário ao dos colares uma das regras naturais e invariáveis do siste ma é o fato de que os braceletes nunca são fornecidos ao nativo pelo mesmo indivíduo que lhe dá os colares Suponhamos que eu seja o nativo de Sinaketa Se um dos meus sócios me fornece braceletes e eu em troca lhe dou um colar todas as nossas futuras transações deverão ser exatamente desse mesmo tipo Além disso a natureza de nossas transações depende de nossa posição relativa ou seja nossa localização geográfica com referência aos pontos cardeais Do norte e do leste eu em Sinaketa recebo apenas os braceletes do sul e do oeste apenas os colares Se um dos meus sócios é meu vizinho na aldeia e sua casa fica ao norte ou ao leste da minha dele sempre receberei braceletes e a ele sempre darei colares Se eventualmente ele mudar de residência no próprio âmbito da aldeia nosso relacionamento continuará o mesmo se porém ele vier a pertencer a outra comunidade de aldeia situada ao sul ou a oeste da minha nos sas transações assumirão sentido inverso Meus sócios que vivem ao norte de Si naketa nos distritos de Luba Kulumata ou Kiriwina fornecemme braceletes ARGONAUTAS DO PAC1FTCO OCIDENTAL 83 que eu passo aos meus sócios do sul destes eu recebo colares O sul neste caso inclui os distritos sulinos de Boyowa bem como as ilhas Amphlett e Dobu Cada pessoa tem portanto de obedecer a leis específicas quanto ao senti do geográfico de suas transações Se em qualquer ponto do circuito do Kula nós a imaginarmos voltada para o centro do círculo veremos que com a mão esquerda ela recebe os braceletes e com a direita os colares passandoos en tão adiante Em outras palavras o nativo constantemente passa os braceletes da esquerda para a direita e os colares da direita para a esquerda Aplicando esta regra de conduta pessoal ao circuito inteiro do Kula verifi camos imediatamente qual o resultado integral de todo o processo Em sua tota lidade as transações não resultam numa troca inútil ou sem objetivo desses dois tipos de artigos ou seja não constitui em um fortuito vaivém de braceletes e colares Há dois fluxos constantes um o dos colares obedecendo ao sentido horário ou dos ponteiros de um relógio o outro o dos braceletes em sentido oposto O termo circular é portanto bem adequado às transações do Kula pois que elas realmente constituem um círculo ou circuito de artigos em constante mo vimento cf mapa V Todas as aldeias desse circuito têm posição fixa em rela ção às demais ou seja cada uma delas está em relação a qualquer outra ou do lado dos colares ou do lado dos braceletes Passemos agora a uma outra regra do Kula uma das mais importantes Como acabamos de dizer os braceletes e colares movemse no círculo cada um em sua própria direção um em sentido oposto ao do outro sejam quais forem as circunstâncias nenhum deles jamais é negociado de volta ou seja no sentido ou direção errada Esses objetos também se encontram em constante movimen tação jamais param Isso pode à primeira vista parecer inacreditável mas o fato é que ninguém conserva consigo esses objetos por longo espaço de tempo Com efeito em todo o território de Trobriand existem talvez apenas um ou dois braceletes e colares especialmente bem feitos conservados permanentemente como bens de herança constituem uma classe especial de objetos que de uma vez por todas estão fora de circulação no Kula A posse é portanto uma relação econô mica deveras especial no sistema do Kula Nenhum dos nativos que dele partici pam pode manter quaisquer dos artigos em seu poder por mais de um ou dois anos e quando os conserva durante este tempo está sujeito a ser censurado por sua mesquinhez Alguns distritos têm má reputação entre os demais por serem lerdos e duros de lidar no Kula Por outro lado um número enorme de ar tigos passa pelas mãos de cada participante do Kula durante sua vida esses artigos são de posse temporária e cada um os guarda em confiança por um certo espaço de tempo Esta posse raramente significa que o nativo os ponha em uso e ele tem por obrigação passálos o quanto antes a um dos seus parceiros E22a posse temporária no entanto lhe permite adquirir grande renome exibir sua aquisição contar aos outros de que modo a obteve e planejar a quem os desti nar a seguir Tudo isso constitui um dos assuntos favoritos entre os nativos ser vindolhes de tema para suas conversas e mexericos A glória e as façanhas de chefes e plebeus no Kula são constantemente discutidas e ventiladas em suas con versas 38 Cada um dos artigos do Kula movese assim numa única direção nunca volta para trás jamais pára de modo permanente e leva de dois a dez anos para perfazer o circuito completo Essa é talvez uma das características mais notáveis do Kula pois através dela se cria uma nova forma de posse e coloca os dois artigos do Kula numa 33 Esta citação e as demais que se seguem foram tomadas de um artigo preliminar do autor sobre o Kula publicado em Man julho de 1920 Artigo número 51 p 100 84 MALINOWSKI categoria especial própria deles Podemos agora voltar à comparação que já esta belecemos entre os vaygu a objetos de valor em Kiriwina e os objetos tradicio nais ou relíquias históricas dos europeus Essa comparação só não é válida num particular nos objetos europeus desse tipo a posse permanente e a associação contínua com um cargo ou posição social hereditária ou com uma família são características essenciais Nisso os artigos do Kula diferem bastante dos nossos objetos tradicionais mas por sua vez assemelhamse a um outro tipo de objetos de valor os troféus as marcas de superioridade as taças de campeonatos obje tos esses que a facção vencedora indivíduo ou grupo guarda apenas por determinado espaço de tempo Embora esses objetos sejam confiados em posse temporária e não sirvam a quaisquer fins utilitários seus possuidores sentem espe cial prazer pelo simples fato de os terem em mãos merecendoos por direito Neste caso também a semelhança não é apenas superficial e externa mas se trata da mesma atitude mental caracterizada por dispositivos sociais análogos A se melhança é tanto maior porquanto no Kula também existe o elemento de orgu lho pelo êxito ou mérito alcançado o qual constitui um dos principais ingredi entes da satisfação e prazer que o indivíduo ou o grupo sente com a posse de um troféu O êxito no Kula é atribuído a poderes individuais especiais obtidos principalmente através da magia dos quais os nativos se orgulham muito Por outro lado a aldeia inteira também se ufana quando um de seus membros obtém no Kula um troféu especialmente valioso Todas as regras até aqui enumeradas sob o ponto de vista individual limitam a amplitude social e a direção das transações bem como a duração da posse dos objetos Sob o ponto de vista de seu efeito total essas regras dão de lineamento geral ao Kula e o caracterizam como um circuito duplamente fecha do Devemos agora dizer algumas palavras sobre a natureza de cada uma das transações individuais vistas sob o ângulo de sua técnica comercial Neste par ticular existem também regras bastante específicas V O princípio básico em que se assentam as regras da transação propriamente dita é o fato de que o Kula consiste na doação de um presente cerimonial em troca do qual após certo lapso de tempo deve ser recebido um presente equi valente Esse lapso de tempo pode ser de algumas horas ou apenas alguns mi nutos embora por vezes chegue a passar um ano ou mais entre a doação de um artigo e o recebimento do artigo oposto 39 A troca entretanto jamais pode ser efetuada diretamente e a equivalência entre os presentes não deve nunca ser discutida avaliada publicamente ou pechinchada O decoro de cada transação do Kula é rigorosamente mantido e altamente prezadc Os nativos fazêm total distinção entre esse tipo de transação e o escambo o qual praticam extensiva mente e conhecem bastante e para o qual possuem um termo especial gimwali na 1ngua de Kiriwina Ao criticar algum nativo que age de maneira incorreta apressada ou indecorosa no Kula os naiivos freqüentemente dizem Ele age como se o Kula fosse o gimwali Outro princípio muito importante é o de que cabe a quem dá decidir sobre a equivalência entre o presente que oferece e aquele que recebeu anteriormente de seu parceiro A equivalência não pode ser imposta sob qualquer forma de 39 A fim de não me sentir culpado de incoerência pelo uso impreciso do termo cerimo nial apresento aqui uma definição sumária chamaremos de cerimonia a todo ato 1 público realizado sob estreita observância de formalidades específicas 3 de valor socio lógico religioso ou mágico e vinculado a obrigações ARGONAUTAS DO PACIFICO OCIDENTAL 85 doação Esperase que o parceiro tendo recebido um presente kula dê em troca um presente de justo e igual valor em outras palavras o bracelete que ele dá como contrapresente deve ser tão bom quanto o colar que recebeu como pre sente ou viceversa Um presente excepcionalmente valioso por sua vez deve ser retribuído com um contrapresente de valor semelhante e não com vários contrapresentes menores Não obstante isso pode haver presentes intermediários com os quais o parceiro adia temporariamente o verdadeiro contrapresente Se o objeto dado como contrapresente tiver valor menor que o presente o receptor ficará decepcionado e aborrecido mas não pode usar de meios diretos para obter uma compensação nem tentar coagir seu sócio nem tampouco dar fim de uma vez por todas às suas transações com ele Quais são então as for ças operantes no sentido de fazer com que cada parceiro siga à risca os termos da transação Entra aqui uma faceta muito importante de atitude mental do nativo com referência à riqueza e ao valor A falsa noção através da qual se atribui ao selvagem uma natureza puramente econômica poderia levarnos a um erro de raciocínio como o que se segue A paixão pela posse e o ódio de per der ou ceder constituem o elemento fundamental e mais primitivo na atitude tomada pelo homem em relação às riquezas No homem primitivo essa carac terística fundamental se encontra em sua forma mais simples e pura Agarrese a seus bens e não os deixe escapulir é o princípio segundo o qual ele se guia 40 O erro fundamental deste raciocínio está em pressupor que o homem pri mitivo representado hoje pelo selvagem está pelo menos sob o ponto de vista econômico livre de quaisquer convenções ou restrições sociais A verdade é bem outra Muito embora o nativo do Kula como qualquer outro ser humano tenha paixão pela posse deseje manter consigo todos os seus bens e tema perdêlos o código social das leis que regulam o dar e receber suplanta sua tendência aquisitiva natural Esse código social tal como o encontramos entre os nativos do Kula está no entanto longe de atenuar o desejo natural pela posse muito pelo contrário estabelece que possuir é ser poderoso e que a riqueza constitui apanágio indis pensável de dignidade social e atributo da virtude individual O importante po rém é que para os nativos do Kula possuir é dar e nesse aspecto eles são notavelmente diferentes de nós Pressupõem que qualquer pessoa deve natural mente partilhar seus btns e deles ser o depositário e distribuidor Além disso quanto mais alta a categoria social maiores as obrigações Esperase que o chefe forneça alimento a qualquer estranho ou visitante e até mesmo a qualquer vadio vindo de outras partes da aldeia O chefe tem de dividir com os outros nativos seu estoque particular de tabaco ou nozes de bétel Assim sendo o nativo de certa posição social precisa esconder qualquer porção desses artigos que queira preservar para uso próprio No extremo oriental da Nova Guiné eram comuns entre os nativos de certa posição social as cestas especiais de três camadas fa bricadas nas ilhas Trobriand porque na divisão inferior podiam esconder seus pequenos tesouros A riqueza é portanto o principal indício do poder e a generosidade sinal da riqueza Com efeito a avareza é o vício mais desprezado constituindo entre os nativos a única coisa sobre a qual eles fazem críticas mo rais realmente acerbas A generosidade por outro lado é tida como essência da bondade 40 Esta não é a interpretação fantasiosa daquilo que poderia ser uma op1mao errônea pois posso fornecer exemplos concretos que comprovam que tais opiniões foram realmente apre sentadas visto porém que minha intenção neste capítulo não é a de apresentar uma crítica das teorias sobre a economia primitiva atualmente existentes não quero abarrotar este capí tulo com citações 86 MALINOWSKI Essa injunção moral e o subseqüente hábito de generosidade superficial mente observados e mal interpretados são responsáveis por uma outra idéia er rônea bastante difundida a do comunismo primitivo dos selvagens Isto tanto quanto a ficção diametralmente oposta do nativo insaciável e desumanamente tenaz é definitivamente errôneo como veremos com suficiente clareza nos ca pítulos que se seguem O princípio fundamental do código moral dos nativos neste assunto faz pois com que o indivíduo contribua com seu quinhão justo nas transações do Kula e quanto mais importante ele for mais deseja sobressairse por sua gene rosidade N oblesse oblige é na realidade a norma social que regula sua conduta Isso não significa que os nativos estejam sempre satisfeitos ou que não haja brigas ressentimentos e até mesmo lutas por causa das transações É óbvio que por mais que o indivíduo queira dar um equivalente justo em troca do objeto recebido às vezes ele não consegue fazêlo Então como há sempre intensa competição no sentido de ser o doador mais generoso o indivíduo que recebe menos do que dá não esconde o seu aborrecimento mas gabase de sua própria generosidade e a contrasta com a avareza do seu parceiro o outro se ressente com isso e assim a briga está pronta para começar É porém muito impor tante compreenderse que realmente não existe regateio nem tendência a lograr um indivíduo naquilo que por direito lhe cabe Embora por motivos diferentes tanto o doador quanto o receptor concordam entusiasticamente que o presente deva ser generoso E então é claro há o fato importante de que o indivíduo que é justo e generoso no Kula atrai para si maior fluxo de transações que o indivíduo mesquinho Os dois princípios mais importantes a saber primeiro que o Kula é um presente retribuído após certo período de tempo por meio de um contrapresente e não um escambo e segundo que cabe ao doador estabelecer a equivalência do contrapresente que não pode ser imposta e não pode haver regateio ou de voluções na troca fundamentam todas as transações Um exemplo concreto de como se realizam essas transações será suficiente para uma idéia preliminar Suponhamos que eu nativo de Sinaketa tenha em meu poder um belo par de braceletes Uma expedição ultramarina proveniente de Dobu no arquipé lago dEntrecasteaux chega à minha aldeia Soprando um búzio apanho meu par de braceletes e o ofereço ao meu parceiro de ultramar dizendolhe algumas palavras como por exemplo Este é um vaga presente com que se inicia a transação em tempo certo ireis darme um grande soulava colar em retri buição No ano seguinte quando eu o visitar em sua aldeia meu parceiro terá em seu poder um colar equivalente que dele receberei como yotile contrapre sente caso não possua um colar suficientemente bom com que retribuir ao meu último presente ele me dará um pequeno colar manifestamente não equiva lente ao meu presente oferecido como basi presente intermediário Isto sig nifica que o presente principal deverá ser dado numa próxima ocasião e o basi é oferecido em sinal de confiança mas este por sua vez deve também ser retribuído por mim nesse ínterim com um presente de pequenos braceletes de conchas O presente final que me será dado de modo a concluirse a transação chamase kudu presente com o qual se conclui uma transação em oposição a basi Loc cit p 99 Muito embora o regateio e a pechincha estejam excluídos do Kula há mo dos costumeiros e regulamentados de se fazerem ofertas por algum artigo vaygu a que se sabe está em poder de um parceiro Isso se faz pelo oferecimento do que chamaremos de presentes de solicitação dos quais há muitos tipos Se acon tecer de ter eu habitante de Sinaketa em meu poder um par extraordinaria mente bom de braceletes a fama de meus braceletes se espalha pois é preciso ARGONAUTAS DO PACtFICO OCIDENTAL 87 lembrarnos de que cada um dos braceletes e colares de primeira categoria tem um nome especial e uma história toda sua e à medida que circula no grande circuito do Kula tornase bem conhecido e seu aparecimento num determinado distrito sempre constitui uma sensação Todos os meus parceiros então sejam eles do ultramar sejam do meu próprio distrito competem entre si pela honra de receber esse meu artigo e os que estão especialmente ansiosos tentam obtê lo oferecendome pokala oferendas e kaributu presentes de solicitação Os primeiros os pokala em geral consistem de porcos bananas de especial quali dade inhame ou taro os últimos os kaributu são de maior valor as grandes e valiosas lâminas de machado chamadas beku ou as colheres para cal feitas de osso de baleia Loc cit p 100 As complicações adicionais relativas à retribuição desses presentes de solicitação bem como mais algumas sutilezas e expressões técnicas referentes a este assunto serão fornecidas mais adiante no capítulo IV VI Enumerei as regras principais do Kula de maneira suficiente a uma defini ção preliminar devo agora dizer algumas palavras a respeito das atividades afins e dos aspectos secundários do Kula Se compreendermos que por vezes a troca deve realizarse entre distritos separados por mares perigosos onde um grande número de homens tem de navegar em canoas obedecendo a datas preestabele cidas tornase claro que muitos preparativos são necessários para que uma ex pedição se possa realizar Muitas atividades preliminares estão intimamente rela cionadas ao Kula tais como a construção das canoas a preparação do equipa mento o aprovisionamento da expedição o estabelecimento das datas e a orga nização social do empreendimento Todas essas atividades são subsidiárias ao Kula e já que são executadas para atender às finalidades do Kula e constituem uma série concatenada a descrição do Kula deve incluir um relato dessas ativi dades preliminares A descrição detalhada do processo de construção de canoas do cerimonial que o acompanha dos rituais mágicos concomitantes do lança mento e da viagem inaugural dos costumes afins que têm por finalidade a pre paração do equipamento tudo isso será contado com detalhes nos próximos capítulos Outra atividade inextricavelmente ligada ao Kula é a do comércio secundá rio Viajando a terras longínquas ricas em recursos naturais desconhecidos em sua terra natal os navegadores do Kula retornam de cada expedição fartamente carregados com os espólios de seu empreendimento A fim também de presen tear seus parceiros os nativos levam em cada viagem uma carga de produtos tidos como altamente desejáveis no distrito ultramarino Parte dessa carga é dis tribuída aos parceiros na forma de presentes mas uma boa porção dela desti nase ao pagamento de objetos desejados pelos nativos em sua terra natal Em certos casos durante a viagem os visitantes exploram por sua própria conta os recursos naturais das terras do alémmar Os nativos de Sinaketa por exemplo mergulham na laguna de Sanaroa em busca dos spondylus e os de Dobu fazem pescarias nas ilhas Trobriand numa praia situada no extremo sul da ilha O co mércio secundário tornase ainda mais complicado pelo fato de que certos gran des centros do Kula como por exemplo Sinaketa não são especializados na produção dos artigos que para os dobu são de especial valor Dessa forma os nativos de Sinaketa têm de obter o estoque de mercadorias necessárias nas al deias do interior de Kuboma e isso eles fazem através de pequenas expedições comerciais preliminares ao Kula Assim como a construção de canoas o comér 88 MALINOWSKI cio secundário será descrito com detalhes mais tarde mas não podemos deixar de mencionálo aqui Neste momento tais atividades afins e subsidiárias precisam ser adequada mente relacionadas umas às outras e à transação principal Tanto a construção de canoas quanto o comércio regular foram mencionados como secundários ou subsidiários ao Kula propriamente dito Isso requer uma explicação Não é mi nha intenção ao subordinar essas duas coisas ao Kula expressar uma conside ração filosófica ou uma opinião pessoal quanto ao valor relativo dessas ativi dades sob o ponto de vista de alguma teleologia social Com efeito é óbvio que se observarmos essas atividades do lado de fora como estudiosos de socio logia comparada e avaliarmos sua verdadeira utilidade o comércio e a constru ção de canoas aparecerão como as realizações verdadeiramente importantes e consideraremos o Kula apenas como um estímulo indireto que impele os nativos a navegar e a comerciar Minha presente descrição não é porém sociológica mas sim puramente etnográfica e toda análise sociológica que venho apresen tando é apenas a que se faz absolutamente indispensável para dissipar falsas concepções e definir termos 41 Definindo o Kula como a atividade primária e mais importante e as de mais como secundárias quero fazer ver que essa prioridade está implícita nas próprias instituições Ao estudar o comportamento dos nativos e todos os costu mes em questão vemos que o Kula constitui sob todos os aspectos o objetivo principal as datas são fixadas as atividades preliminares estabelecidas as expe dições organizadas a organização social determinada não em função do comér cio mas sim em função do Kula A grande festa cerimonial realizada ao iniciar se uma expedição referese ao Kula a cerimônia final da avaliação e contagem dos espólios referese ao Kula e não aos objetos obtidos pelo comércio Final mente a magia que constitui um dos principais elementos de todo esse processo referese exclusivamente ao Kula e isto se aplica até mesmo ao conjunto de má gicas com que se encantam as canoas Alguns dos rituais mágicos do ciclo são executados tendo por objetivo as próprias canoas outros têm por objetivo o Kula A construção de canoas está sempre em conexão direta com uma expedição do Kula Tudo isto é lógico irá tornarse realmente claro e convincente só depois que apresentarmos um relato minucioso É porém necessário estabelecermos a estas alturas a perspectiva correta da relação entre o Kula principal e o comér cio subsidiário Certamente existem muitas tribos vizinhas que nada conhecem a respeito do Kula e apesar disso fabricam canoas e navegam para longe em ousadas ex pedições comerciais há também diversas aldeias nas ilhàs Trobriand por exemplo que embora dentro do circuito do Kula não o praticam e contudo possuem canoas com as quais realizam um vigoroso comércio marítimo Mas nos locais em que é praticado o Kula controla todas as demais atividades afins e tanto a construção de canoas quanto o comércio se tornam subsidiários dele E isto se expressa de um lado pela natureza das instituições e pelo modo como se processam todos os preparativos e de outro pelo comportamento e pelas afir mações explícitas dos nativos O Kula como espero estáse tornando cada vez mais evidente é uma instituição enorme e complicada por mais insignificante que seu núcleo nos pos 1 Talvez não haja necessidade de salientarmos o fato de que no presente estudo não estão incluídas quaisquer considerações referentes às origens e ao desenvolvimento ou história das instituições nativas A mistura de pontos de vista especulativos ou hipotéticos com o relato de ocorrências concretas constitui na minha opinião um pecado imperdoável contra os princípios metodológicos da etnografia ARGONAUTAS DO PACIFICO OCIDENTAL 89 sa parecer Para os nativos ele representa um dos interesses mais vitais da exis tência e como tal possui um caráter cerimonial e está cingido pela magia Po demos imaginar que os objetos que constituem a riqueza nativa possam passar de uma pessoa para outra sem quaisquer cerimônias ou rituais mas isso jamais acontece no Kula Mesmo quando por vezes pequenas expedições de apenas uma ou duas canoas partem para o alémmar e trazem os vaygu a observamse determinados tabus e práticas tradicionais na partida durante a viagem e à che gada até mesmo a menor das expedições de uma só canoa constitui aconteci mento tribal de relativa importância conhecido e discutido no distrito inteiro A expedição típica porém é aquela da qual participa um grande número de canoas organizadas de maneira específica formando um só grupo Realizamse festas distribuições de alimentos e outras cerimônias públicas há um líder e mestre da expedição e várias regras a serem observadas a par dos tabus e regulamentos costumeiramente associados ao Kula A natureza cerimonial do Kula está rigorosamente vinculada a um outro aspecto que o caracteriza a magia A crença na eficácia da magia domina o Kula como domina a tantas outras atividades tribais Rituais mágicos precisam ser executados sobre as canoas marítimas quando são construídas para que se jam velozes estáveis e seguras rituais mágicos são também executados sobre as canoas para lhes dar sorte no Kula Um outro sistema de rituais mágicos é executado para afastar os perigos da navegação Um terceiro sistema de rituais mágicos relativos às expedições marítimas é o mwasila ou a magia do Kula pro priamente dita Esse sistema se compõe de numerosos rituais e encantamentos todos eles agindo diretamente sobre a mente nanola do parceiro fazendo com que ele se torne afável de mente instável e ansioso por dar presentes kula Loc cit p 100 É natural que uma instituição tão intimamente ligada a elementos mágicos e cerimoniais como o é o Kula não só esteja assentada sobre um alicerce tra dicional muito firme mas também possua um grande estoque de lendas Há uma rica mitologia do Kula na qual se contam estórias sobre épocas remotas quando ancestrais míticos se empenhavam em expedições longínquas e audacio sas Graças a seus conhecimentos de magia eles conseguiam escapar aos perigos vencer os inimigos transpor obstáculos e através de suas façanhas estabelece ram muitos precedentes que agora são rigorosamente observados nos costume tribais Mas sua importância para seus descendentes reside principalmente no fato de que eles lhes legaram seus conhecimentos de magia e isto fez com que o Kula se tornasse possível nas gerações subseqüentes Loc cit p 100 Em determinados distritos aos quais não pertencem as ilhas Trobriand o Kula está associado a festas mortuárias chamadas soi Esta associação sobre a qual faremos um relato no capítulo XX é de grande interesse e importância As grandes expedições do Kula são realizadas por um grande número de nativos um distrito inteiro Mas os limites geográficos dentro dos quais são recrutados os membros de uma expedição encontramse perfeitamente definidos Observando o mapa V podemos ver diversos círculos cada um deles represen tando determinada unidade sociológica a que chamaremos de comunidade kula Cada comunidade kula se compõe de uma ou várias aldeias cujos nativos par tem juntos nas grandes expedições marítimas e atuam como um só grupo nas transações do Kula executam seus rituais mágicos em comum possuem os mes mos líderes e se movem na mesma esfera social interna e externa em cujo âm bito trocam seus objetos de valor O Kula então consiste primeiro das pequena transações internas dentro da comunidade kula ou comunidades adjacentes e segundo das grandes expedições marítimas nas quais a troca de artigos se veri fica entre duas comunidades separadas pelo mar Nas primeiras existe um fluxo 90 MALINOWSKI pequeno mas contínuo e permanente de artigos entre uma aldeia e outra e até mesmo dentro de uma mesma aldeia Nas segundas uma enorme quantidade de objetos de valor chegando a mais de mil por vez é trocada através de uma enorme transação ou mais acertadamente através de uma infinidade de tran sações que se realizam simultaneamente Loc cit p 101 O Kula consiste na série dessas expedições marítimas periódicas que vinculam os diversos grupos de ilhas e anualmente trazem de um distrito para o outro grande quantidade de vaygu a e objetos de comércio subsidiário Os objetos do comércio subsidiário são utilizados e consumidos mas os vaygu a braceletes e colares movem se constantemente no circuito Loc cit p 105 Apresentei neste capítulo uma definição curta e sumária do Kula Enume rei um após outro seus aspectos mais característicos as regras mais notáveis estabelecidas nos costumes nas crenças e no comportamento dos nativos Isto se fez necessário para podermos fornecer umà noção geral da instituição antes de descreverlhe minuciosamente o funcionamento Uma definição abreviada po rém jamais pode proporcionar ao leitor o entendimento total de uma instituição social humana Para isso é necessário explicar seu funcionamento de maneira concreta colocar o leitor em contato com as pessoas mostrarlhe de que manei ra elas se portam em cada um dos estágios consecutivos e descrever todas as manifestações reais das regras gerais estabelecidas in abstracto Como dissemos acima as transações do Kula são efetuadas através de dois tipos de empreendimentos existem em primeiro lugar as grandes expedições marítimas nas quais se transporta uma quantidade mais ou menos considerável de objetos de valor Há a par disso a troca interna em que os artigos passam de pessoa para pessoa freqüentemente mudando de dono inúmeras vezes num percurso de algumas milhas As grandes expedições marítimas constituem de longe a parte mais espe tacular do Kula Contêm também um número maior de cerimônias públicas rituais mágicos e praxes tradicionais Também requerem é claro maiores pre parativos e atividades preliminares Terei portanto muito mais coisas a dizer sobre as expedições ultramarinas do Kula do que sobre as trocas internas Visto que os costumes e crenças relativos ao Kula foram na maior parte estudados em Boyowa ou seja nas ilhas Trobriand e analisados sob o ponto de vista desse distrito irei relatar em primeiro lugar o modo típico como se processa uma expedição marítima seguindo seus preparativos organização e partida das ilhas Trobriand Começando pela construção das canoas procedendo em seguida à cerimônia de seu lançamento e às visitas de apresentação formal das canoas selecionaremos então a comunidade de Sinaketa e acompanharemos os nativos numa de suas viagens marítimas a qual descreveremos em todos os seus detalhes Isto nos mostrará uma modalidade de expedição kula em deman da a terras distantes Mostraremos então em que aspectos essas expedições dife rem entre si noutras ramificações do Kula e para isso irei descrever uma expe dição proveniente de Dobu e outra entre Kiriwina e Kitava Esse relato será complementado com uma descrição do Kula interno de algumas modalidades de comércio associado e das demais ramificações do Kula No capítulo que se segue eu passo portanto aos estágios preliminares do Kula nas ilhas Trobriand começando pela construção das canoas