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FREUD A FILOSOFIA Joel Birman FILOSOFIA PASSOAPASSO 27 JORGE ZAHAR EDITOR Coleção PASSOAPASSO CIÊNCIAS SOCIAIS PASSOAPASSO Direção Celso Castro FILOSOFIA PASSOAPASSO Direção Denis L Rosenfield PSICANÁLISE PASSOAPASSO Direção Marco Antonio Coutinho Jorge Ver lista de títulos no final do volume Joel Birman Freud a filosofia Rio de Janeiro Copyright 2003 Joel Birman Copyright desta edição 2003 Jorge Zahar Editor Ltda rua México 31 sobreloja 20031144 Rio de Janeiro RJ tel 21 21080808 fax 21 21080800 email jzezaharcombr site wwwzaharcombr Todos os direitos reservados A reprodução nãoautorizada desta publicação no todo ou em parte constitui violação de direitos autorais Lei 961098 Composição eletrônica TopTextos Edições Gráficas Ltda Impressão Cromosete Gráfica e Editora Capa Sérgio Campante CIPBrasil Catalogaçãonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ B521f Birman Joel 1946 Freud a filosofia Joel Birman Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2003 Passoapasso 27 ISBN 8571107416 1 Freud Sigmund 18561939 2 Psicanálise e filo sofia I Título II Série CDD 1501952 031760 CDU 1599642 Sumário Introdução 7 Interlocução com a filosofia 8 Negatividade e inadequação 17 Sentido e verdade 25 Inconsciente e desejo 38 Metapsicologia metafísica e interpretação 44 Desconstrução do sujeito 49 Descentramentos 58 Da consciência ao inconsciente 61 O outro 65 O trágico e a diferença 69 Leituras recomendadas 75 Sobre o autor 77 Introdução A finalidade deste livro é a de delinear a constituição e o desenvolvimento teóricos do pensamento freudiano naqui lo que este colocou como questões para o discurso filosófico desde a fundação da psicanálise na passagem do século XIX para o século XX Com a construção desta Freud circuns creveu algumas problemáticas teóricas que foram cruciais para a filosofia que respondeu devidamente a isso Efetiva mente com críticas e objeções mas também com reconhe cimento pela pertinência das problemáticas que foram es boçadas a filosofia estabeleceu um diálogo franco com a psicanálise Essa interlocução bastante viva entre psicanálise e filosofia atravessou a totalidade do século passado de maneira a tecer uma verdadeira história entre as duas disci plinas A psicanálise acabou por incorporar uma série de ponderações críticas formuladas pela filosofia da mesma forma que esta também inscreveu no seu corpo teórico uma série de questões enunciadas pela psicanálise Aconte ceu enfim um rico processo de interpelação recíproca que fertilizou ambas as disciplinas por caminhos quase sempre inesperados e marcados por surpresas instigantes 1175033 7 A incidência da psicanálise no discurso filosófico inter pelou este numa tradição teórica muito especial a qual se centrava fundamentalmente na concepção de sujeito Com efeito a filosofia do sujeito foi questionada pela psicanálise de maneira precisa na medida em que para ela o sujeito estaria sempre inscrito no campo da consciência e se enun ciava no registro do eu enquanto a psicanálise formulou o descentramento do sujeito em ambos os registros citados Foi tal problemática que delineou a interlocução entre psicaná lise e filosofia e de onde se derivaram em cascata todas as demais problemáticas teóricas que formalizaram essa inter locução Por isso mesmo o que estará aqui presente é a consti tuição dessa problemática E pelo viés agudo dessa interlo cução que se esboça este ensaio introdutório ao pensamento de Freud O que implica dizer que este pensamento foi re cortado neste contexto específico com a finalidade de subli nhar as torções e retorções estabelecidas por este diálogo Interlocução com a filosofia Freud não era um filósofo Esta é a primeira afirmação a ser feita aqui Nunca pretendeu tampouco que com a constitui ção da psicanálise estivesse formulando algo que pudesse aproximálo efetivamente do trabalho filosófico Por isso mesmo pode parecer estranho que o seu discurso teórico se inscreva aqui numa coleção dedicada a autores de referên cia da tradição filosófica 8 Joel Birman Por que Freud aqui afinal das contas Um ruído se introduz então bruscamente na medida em que ele não construiu efetivamente uma filosofia Além disso manifes tava em geral uma certa ojeriza ao discurso filosófico como foi enunciado literalmente em alguns textos Com efeito num ensaio tardio sobre a visão de mundo de 1932 inserido nas Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise Freud opôs a psicanálise à filosofia dizendo que a primeira não era absolutamente uma Weltanschaung como pretendia ser a segunda Isso porque pelos procedi mentos presentes no discurso científico a psicanálise se voltaria para a pesquisa de objetos circunscritos enquanto a filosofia pretendera captar sempre a totalidade do ser e do real Concepção discutível do discurso filosófico podese certamente dizer sobre isso mas era a que Freud supunha ser no fechamento crítico de seu percurso teórico Uma leitura radical portanto da filosofia e de sua diferença absoluta com a psicanálise foi enunciada então por Freud permeada pela oposição aguda entre os discursos de ciência e da filosofia Seria apenas esta a concepção de filosofia presente no discurso de Freud para diferenciála devidamente da psica nálise Certamente não é Assim em Totem e Tabu publica do em 1913 ele construiu uma comparação entre diferentes formações culturais e diversas formações sintomáticas O que nos dizia sobre isso Se a histeria era quase uma obra de arte e a neurose obsessiva quase uma religião a filosofia seria então quase um delírio paranóico É preciso destacar logo que Freud não afirmou absolutamente a identidade essen Freud a filosofia 9 cial existente entre essas formações discursivas e as diversas patologias psíquicas mas se valeu sempre da palavra quase O que implica dizer que formulou que a histeria se asseme lharia a uma obra de arte da mesma forma que a religião e a filosofia se pareceriam bastante com as discursividades obsessiva e paranóide Ou seja o discurso freudiano enun ciou que essas diferentes modalidades psicopatológicas de discurso poderiam efetivamente ser como essas diversas formações discursivas existentes na cultura caso as subjeti vidades implicadas na sua produção tivessem a possibilida de de empreender a sublimação das pulsões sexuais e reali zar então obras de cultura Existiria sempre um processo sublimatório presente nas diferentes formações culturais mas que não estaria em ação nas ditas situações psicopato lógicas Porém mesmo considerando essas ponderações críti cas a similaridade estrutural e as formas de funcionamento psíquico implicadas nessas formações de cultura e nas for mações psicopatológicas se enunciaram com toda a elo qüência Com efeito Freud formulou que existiria um estilo de ser similar entre a exibição sedutora presente na histeria e a obra de arte assim como entre as cavilações culposas presentes nas obsessões e nos sistemas religiosos da mesma maneira que a ordenação lógica perfeita mas fundada numa base falsa presente nos delírios paranóicos seria pró xima da forma filosófica de discursividade Podese de preender disso portanto que Freud mantém sempre o discurso filosófico sob certa suspeita estando sempre com um pé atrás em relação a ele na medida em que a sistema 10 Joel Birman ticidade da argumentação lógica naquele presente não se apoiaria num ponto de partida incontestável que seria duvidoso quanto à sua veracidade Foi por isso mesmo aliás que voltou à questão logo depois em 1915 no ensaio O inconsciente Procurando diferençar agora entre a neurose e a psicose afirmou que na primeira existiria uma articulação precisa entre repre sentaçãocoisa e representaçãopalavra enquanto na se gunda a subjetividade deslizaria sempre no vazio da repre sentaçãopalavra Portanto Freud acabou por concluir de maneira surpreendente aliás que a esquizofrenia funciona ria como a filosofia Tanto nesta como naquela o discurso se teceria apenas em torno de palavras sem se preocupar nunca com o registro das coisas Assim o delírio e o discurso filosófico funcionariam de maneira similar pois em ambos a subjetividade manejaria sempre as palavras como se fos sem coisas não tendo então a devida exigência de submeter o discurso ao imperativo do teste da realidade O que é uma forma de dizer enfim que o discurso filosófico não passaria de um delírio sistematizado de características paranóides Não foi apenas isso que Freud falou da filosofia e nem sempre assim Existiram também outros contextos de sua obra com efeito nos quais se referiu à filosofia de maneira respeitosa e até mesmo bem mais próximo daquilo que se fazia em psicanálise Podese então contrapor essa perspec tiva posterior francamente crítica de Freud em relação à filosofia ao que teria dito no início de seu percurso sobre esta Isso pode nos evidenciar um giro de cento e oitenta graus na sua relação com a filosofia O contexto dessa Freud a filosofia 11 evidência é a sua correspondência com Fliess nos últimos anos do século XIX Fliess era um otorrinolaringologista que morava em Berlim e a quem Freud atribuía uma elevada respeitabili dade científica Por isso mesmo compartilhava com ele as suas primeiras concepções psicanalíticas esperando o seu reconhecimento teórico Pois bem o que disse Freud para Fliess sobre a filosofia no momento crucial de invenção da psicanálise De maneira curta e grossa Freud afirmou que estava finalmente realizando o seu desejo de ser um filósofo com a invenção da psicanálise Ao lado disso enunciou ainda para o espanto dos leitores que nunca tivera talento para a terapêutica apesar de sua atividade médica Espanto relativo seguramente Isso porque Freud teve uma forma ção inicial como pesquisador em anatomia do sistema ner voso a qual teve de abandonar por falta de recursos finan ceiros dedicandose então à clínica neurológica Portanto no contexto de constituição da psicanálise Freud aproxima va esta da filosofia e a afastava da medicina Enfim a psica nálise nada tinha a ver com a prática médica e não tinha qualquer pretensão terapêutica estando bem mais próxima da filosofia Podese enunciar assim que nas pontas extremas de seu percurso teórico Freud não apenas manifestou juízos diferentes e opostos sobre a filosofia como também realizou operações contrapostas de franca aproximação e de abso luto distanciamento entre psicanálise e filosofia É preciso reconhecer que o que estava em questão para Freud nessas diferentes conjunturas não era certamente a mesma coisa 12 Joel Birman Portanto é preciso distinguir devidamente o que estava em pauta para ele nesses diferentes contextos Além disso deve se considerar ainda quais eram as diversas concepções de filosofia enunciadas por Freud nesses diferentes mo mentos Desta maneira existe uma interlocução latente da psicanálise com a filosofia que perpassa a totalidade do discurso freudiano Essa interlocução evidencia não apenas as diferentes concepções de Freud sobre o que seja efeti vamente a filosofia mas também como ele diferenciava a psicanálise da filosofia nos seus diversos momentos teó ricos As oscilações entre a atração fatal e a ojeriza tempe raram sempre o estilo de Freud na sua leitura teórica disso A filosofia como discurso permeia então o horizonte teórico do pensamento freudiano como uma miragem em filigrana que Freud deve sempre se demarcar de maneira pontual A fundação da psicanálise como saber é o que estará sempre em pauta no campo tenso dessa interlocução estan do Freud constantemente impulsionado por razões episte mológicas nas suas diferentes tomadas de posição no que concerne a filosofia Com efeito nas diferentes formulações de Freud sobre a filosofia houve sempre o esforço continua mente renovado para delinear tanto o fundamento como as fronteiras da psicanálise A legitimidade da psicanálise como saber é o que estará aqui sempre em questão nas aproximações e distanciamentos abruptos esboçados pelo discurso freudiano com a filosofia Foi por isso que aludi à noção de fronteira que remete necessariamente para a de Freud a filosofia 13 território na medida em que a fundamentação epistemoló gica referida não é alheia à noção de soberania no sentido político do termo Podemos nos indagar ainda contudo se tais fronteiras do território psicanalítico não seriam basicamente móveis e sempre em processo de deslocamento marcadas pela porosidade Dessa maneira a imagem da borda caracteri zada pelas imagens da fluidez mobilidade e porosidade de suas linhas de força seria bem mais adequada que a de fronteira compacta para descrever o território de legitimi dade teórica da psicanálise Por esse viés portanto poder seia ter aqui uma perspectiva mais perscrutadora para empreender as contraditórias e paradoxais leituras de Freud sobre a filosofia No entanto as intenções epistemológicas do pensa mento freudiano voltadas para a fundação da psicanálise não esgotam as relações deste com a filosofia Isso porque é preciso evocar ainda o campo de recepção daquela por esta a qual faz parte também da problemática dessa interlocução crítica inclusive em seu campo histórico Com efeito a filosofia leu o discurso freudiano de diferen tes maneiras em contextos teóricos e históricos diversos É preciso pois dar lugar a isso também nem que seja de maneira esquemática e alusiva pois se constituiu uma história de recepção da psicanálise pela filosofia Porém para que tudo isso se empreenda devidamente é preciso indicar previamente a direção metodológica que me orientou nessa empreitada Assim o discurso freudiano será aqui considerado nas suas proposições teóricas que 14 Joel Birman formam um conjunto articulado de enunciados É isso que o constitui como um discurso propriamente dito Eviden temente Freud formulou vários discursos ao longo de sua obra submetidos que foram os enunciados conceituais a regras e a contextos teóricos diferentes A obra em questão foi sendo constituída como um processo sempre recomeça do Daí a pertinência da imagem da borda para se referir ao território da psicanálise Podese falar em discursos no plu ral e não no singular para se referir ao pensamento freudia no Dito isso no entanto é preciso privilegiar os diversos conjuntos discursivos que foram forjados nesse percurso Vale dizer o discurso freudiano enunciou uma série de pressupostos e teses sobre a subjetividade construindo en tão leituras sobre o psiquismo Dessas formulações decor reu uma série de conseqüências e desdobramentos teóricos imprevisíveis no horizonte de Freud Tudo isso se eviden ciou na recepção do pensamento freudiano constituindo uma história desta Foi pela consideração disso portanto que a comunidade filosófica se manifestou em relação à psicanálise E foi também justamente para tratar disso que este livro foi escrito Assim é preciso justificar teoricamente a importância e a presença do pensamento freudiano no campo do discurso filosófico Isso porque aquele não pode se inscrever neste por uma razão da ordem do fato mas apenas da ordem do direito para me valer de uma célebre oposição enunciada por Kant Ou seja Freud não era de fato um filósofo mas acabou por constituir a psicanálise como um novo campo do saber que formulou novos pressupostos Freud a filosofia 15 sobre a subjetividade Seu pensamento ligase diretamente ao filosófico pela problemática que a psicanálise colocou para a filosofia Qual foi a problemática que a construção do discurso psicanalítico colocou para a filosofia e em que sua invenção teórica interpelou a filosofia efetivamente Estas são as úni cas questões de direito que podem ser legitimamente reivin dicadas aqui tendo pois alguma pertinência teórica Dessa maneira qualquer outra questão por mais instigante que seja deve ser aqui considerada como secundária e até mes mo como irrelevante Assim se um dos fios de prumo deste percurso é o de procurar destacar os efeitos da filosofia sobre a psicanálise o outro será o de sublinhar a importância que assumiu o discurso freudiano para a filosofia isto é quais foram os seus efeitos no campo desta O que implica afirmar que estamos aqui face a uma pluralidade de efeitos que o discur so freudiano disseminou sobre o campo da filosofia provo cando geralmente estranheza quando não franca discórdia Porém a harmonia a incorporação e a ressonância positiva também aconteceram no contexto teórico de algumas retó ricas filosóficas Para percorrer esquematicamente então as diferentes direções acima consideradas e costurar os seus fios num bordado que seja consistente vamos começar por alinhavar a fundação teórica da psicanálise como saber esboçando as rupturas conceituais realizadas por Freud com a neuropa tologia e a psicologia da segunda metade do século XIX Perfilase já aqui a interlocução da psicanálise com a filoso 16 Joel Birman fia na medida em que tanto a neuropatologia quanto a psicologia daquele momento se inscreviam em certos pres supostos filosóficos Negatividade e inadequação A invenção da psicanálise como saber se realizou pela for mulação da existência do inconsciente como um outro registro psíquico além da consciência Foi esta descoberta empreendida por Freud que teve a potencialidade teórica de subverter os saberes sobre o psiquismo então instituídos a psiquiatria e a psicologia A psiquiatria como saber voltado para a elucidação e o tratamento das perturbações mentais era um discurso então bastante recente constituído que foi na passagem do século XVIII para o século XIX com o advento da Revolução Francesa Esta foi a tese formulada por Foucault na já famosa História da loucura A instituição do asilo como lugar designado para o cuidado dos loucos foi a positivação social da psiquiatria Isso porque essa nova institucionali dade para a loucura rompeu decididamente com o Hospital Geral estabelecido no Antigo Regime no século XVII no qual loucos criminosos indigentes e toda a escória dos demais excluídos do campo social eram confusamente mis turados num mesmo espaço Nesse contexto a psiquiatria considerou os loucos como doentes mentais portadores que seriam de uma enfermidade tanto quanto qualquer outra aliás descrita pela medicina somática A psiquiatria Freud a filosofia 17 portanto reivindicava os seus direitos de ser uma especiali dade médica Contudo os problemas que se colocavam para a psi quiatria começavam justamente aqui na medida em que a sua legitimidade médica era discutível Isso porque era teo ricamente impossível inscrever a alienação mental nos câ nones da medicina já que a psiquiatria não conseguia defi nila de acordo com os recentes critérios postulados pela medicina somática Esta foi estabelecida como clínica na passagem do século XVIII para o século XIX fundandose na racionalidade anátomoclínica enunciada por Foucault no Nascimento da clínica Segundo essa racionalidade as enfer midades se materializariam sempre por uma lesão anatômi ca a qual explicaria os diferentes sintomas presentes nas diversas doenças somáticas mesmo que estas pudessem ter causas diferentes e múltiplas O que se colocou como um real impasse teórico para a psiquiatria foi a sua impossibilidade de inscrever a alienação mental nessa exigência epistemológica de forma a se legiti mar como uma especialidade médica Isso porque o corpo anatômico dos ditos alienados se mostrava silencioso em relação à questão não evidenciando qualquer lesão capaz de justificar a pretensão médica da psiquiatria Com efeito os cérebros dos supostos doentes definido pela psiquiatria como sendo o órgão onde as lesões deveriam ocorrer não indicavam absolutamente sinais das mesmas Como legiti mar então que fosse uma enfermidade Essa impossibilidade debilitava a posição teórica dos autores que sustentavam uma leitura somática da alienação 18 Joel Birman mental e reforçava a daqueles que formulavam uma leitura moral para esta Com efeito se os loucos tinham perdido decididamente a razão estando isso pois no fundamento da enfermidade mental tal fato não se deveria contudo a uma lesão somática mas a uma transformação de ordem moral Esquirol que ao lado de Pinel foi um dos fundadores da psiquiatria enunciou que as paixões excessivas estariam no fundamento dessa alienação Por isso mesmo o trata mento moral era aquilo que a comunidade psiquiátrica se propunha efetivamente a realizar para promover a desalie nação mental A internação dos alienados seria enfim o ato inaugural do tratamento moral Entretanto no momento de sua fundação a psiquiatria formulou efetivamente a possibilidade teórica da cura da alienação mental não obstante os seus impasses de se legi timar como um discurso médico Foi em nome disso que os loucos foram retirados da promiscuidade existente nos Hospitais Gerais e inseridos nos asilos A produção da desalienação mental era a finalidade a ser alcançada pelo dito tratamento moral na medida em que a loucura passou então a ser efetivamente concebida como doença mental Essa postura teórica da psiquiatria a diferenciava da quela existente no Antigo Regime no qual se dizia que a perda da razão era incontornável isto é uma vez perdida a razão permanecerseia assim eternamente O modelo teó rico da perda da razão era então o da demência na qual existiria a perda total e absoluta das faculdades intelectuais Contudo com a constituição da psiquiatria o modelo teó Freud a filosofia 19 rico da perturbação da razão era evidenciado agora pelo delírio sendo pois a alienação o paradigma da loucura Esses diferentes momentos da história da loucura tive ram ressonâncias significativas no discurso filosófico Pode se reconhecer em Kant a leitura da loucura como perda irreversível da razão caucionando a interpretação vigente no Antigo Regime Em contrapartida Hegel aplaude o então jovem saber psiquiátrico justamente porque sustentava que a curabilidade da loucura seria possível na medida em que esta não se fundaria mais na perda da razão mas apenas na sua alienação Com efeito na Enciclopédia das ciências filo sóficas Hegel identificou o seu projeto teórico com o da psiquiatria justamente porque a alienação mental não seria uma perda da razão mas uma transformação possível dessa inscrevendose portanto de maneira constitutiva no pró prio campo da racionalidade por aquele delineada A lou cura então como alienação mental indicaria uma parada do movimento dialético do espírito sendo a terapêutica daquela a condição de possibilidade para a retomada do movimento que fora paralisado Podese dizer enfim que as ditas paixões excessivas aludidas por Esquirol estariam no fundamento da estagnação do tal movimento dialético cuja conseqüência crucial seria a produção do delírio e da alienação mental Entretanto o discurso psiquiátrico se deslocou do lu gar estratégico que ocupava no momento de sua fundação na segunda metade do século XIX tendo progressivamente se afastado e se descartado da causalidade moral assim 20 Joel Birman como do seu correlato qual seja a aposta na transformação da alienação mental Com efeito as hipóteses biológicas passaram a ocupar então uma posição cada vez mais domi nante na psiquiatria principalmente sob a forma das teorias da hereditariedade e da degenerescência de forma a colocar cada vez mais num plano subalterno qualquer perspectiva terapêutica A causalidade somática articulada numa con cepção mais vasta sobre os impasses presentes na civilização moderna acabou por sobrepujar qualquer veleidade teórica sobre a causalidade moral no campo da loucura De qualquer forma na leitura psiquiátrica a alienação mental era estritamente considerada no registro da cons ciência entre os teóricos que sustentavam para aquela uma causalidade moral Para os somaticistas também o psiquis mo estava restrito ao campo da consciência de maneira que seria sempre nesta que incidiriam as alterações primordial mente cerebrais Vale dizer as perturbações psíquicas se riam aqui um simples epifenômeno daquilo que se produ ziria silenciosamente na estrutura cerebral Ao lado disso a psicologia clássica que se centrava no estudo das faculdades mentais a sensação a percepção a atenção a memória a imaginação e o entendimento estava também referida à consciência O psíquico portanto era completamente identificado com o ser da consciência estando apenas nesta a sua verdade A subjetividade estava fundada na consciência e nela se inscreveria o eu Era este o discurso psicológico dominante no século XIX não obs tante a então recente constituição da psicologia experimen tal na Alemanha a partir dos anos 1850 Freud a filosofia 21 No final do século XIX portanto a psicologia clássica tinha já uma longa história iniciandose com a filosofia de Descartes e tendo continuidade com a tradição cartesiana Como se sabe o cogito cartesiano penso logo exito definiu a categoria de existência como estando essencial mente atrelada ao registro do pensamento Estariam aqui o fundamento e a certeza da subjetividade Em decorrência a tradição da psicologia clássica nisso fundada se voltava sobretudo para a pesquisa do pensamento de forma que o estudo das demais funções mentais era realizado com a finalidade de explicar a produção e a reprodução do enten dimento Pretendiase pois explicitar não apenas como funcionava o pensamento mas também enunciar quais seriam os seus pressupostos formais e materiais Isso porque a certeza da existência do eu circulava sempre e apenas em torno do pensamento Neste contexto a imaginação era constantemente con siderada de maneira negativa na medida em que não ofe recia subsídios positivos para a elucidação do entendimen to Pelo contrário aliás pois os devaneios da imaginação afastavam a racionalidade do caminho reto do conhecimen to Assim a pesquisa sobre os sonhos não tinha qualquer lugar no campo da psicologia clássica já que não entreabria caminho algum para a compreensão do entendimento como era o caso das funções da sensação da percepção da atenção e da memória Vale dizer a dita psicologia clássica se fundava num paradigma racionalista voltandose deci didamente para o registro da cognição e para a efetiva produção do conhecimento 22 Joel Birman Podese entrever assim os impasses que foram colo cados tanto para a recente psiquiatria quanto para a psicologia clássica ao se defrontarem com a experiência da loucura naquilo que ela revelava de mais fundamental a existência de alucinações e delírios Isso porque a formulação de critérios puramente cognitivos para descre vêlas servia apenas para enunciar tais formações psíquicas como pura negatividade Com efeito a alucinação era sempre caracterizada como uma modalidade de falsa per cepção e o delírio como sendo um juízo errôneo sobre a realidade Seria isso o que fundaria a alienação mental nas suas diversas modalidades de existência Tudo isso carac terizaria o desvario da razão e a desordem profunda do entendimento Ou seja a psiquiatria e a psicologia clássica ao se restringirem aos registros da consciência do eu e do pensa mento para conceberem a subjetividade ficaram reduzidas à oposição verdadeirofalso para realizar a leitura das per turbações do espírito Não existiria portanto qualquer po sitividade na experiência da loucura mas apenas pura ne gatividade isto é nas alucinações e nos delírios a subjetivi dade nada dizia Existiria aqui pois pura perda no desvario do espírito Na experiência da loucura enfim a subjetividade não se expressaria sendo pois a mais decantada forma de errância do psiquismo Assim a subjetividade era concebida como fundada apenas nos registros da consciência do eu e do pensamento pelos quais o critério da adequação do eu com os objetos do mundo era o único a ser destacado na leitura do psiquismo Freud a filosofia 23 A categoria de verdade supunha essa adequação de maneira que os pensamentos seriam julgados verdadeiros se ela existisse Em decorrência disso a alucinação seria sempre considerada como uma falsa percepção e o delírio não passaria de um juízo errôneo sobre um acontecimento qualquer Enfim para essas concepções teóricas não existi ria qualquer verdade na experiência da loucura sendo esta pois o grau zero da veracidade Isso tudo sem atentar evidentemente ao recente campo patológico das monomanias descritas então pela psiquia tria caracterizadas pela loucura parcial Assim como revela literalmente o próprio nome que os designa os monoma níacos seriam pessoas normais em quase tudo com a exce ção de uma só dimensão de seu espírito na qual manifestam todo o seu desvario Nesse contexto o critério de adequação do eu à realidade é bastante problemático para caracterizar tais perturbações pois não é facil compreender bem como a subjetividade pode ser perfeitamente bem adaptada no que se refere a quase tudo salvo num único ponto onde o desvario explode A invenção da psicanálise foi uma subversão no campo dos saberes sobre o psíquico justamente porque articulou uma elegante solução teórica para os impasses então pre sentes tanto na psiquiatria quanto na psicologia clássica Ao formular o conceito de inconsciente deslocou decisivamen te o psiquismo dos registros da consciência e do eu Os efeitos teóricos dessa invenção não foram imediatos no entanto exigindo um longo tempo de decantação no inte rior do discurso freudiano É o que veremos agora 24 Joel Birman Sentido e verdade O gesto teórico realizado pelo discurso freudiano foi o de deslocar a problemática da loucura do registro da adequa ção entre o eu e o objeto para o da produção do sentido Foi nessa inflexão que o enunciado do conceito de incons ciente pôde encontrar as suas devidas dimensões Para isso no entanto o discurso freudiano teve que reconhecer os estritos limites dos registros do eu e da consciência no psiquismo Como se construiu essa consistente hipótese de trabalho Quais foram os caminhos trilhados pelo discurso freudiano para constituíla Freud partiu da experiência clínica no campo da neu ropatologia daquilo que nessa se evidenciava como o seu impasse a questão da histeria Esta era enigmática justa mente porque questionava a medicina no seu fundamento anátomoclínico pois apresentava uma série de sinais e sintomas que não podiam ser explicados pela anatomia patológica Em decorrência disso interpelava o discurso clínico já que existiam nela sofrimento e sintomas corpó reos mas sem a evidência de qualquer lesão anatômica Em contrapartida abalada de maneira frontal na sua certeza teórica a medicina passou a caracterizar os histéricos como mentirosos e fabuladores que inventavam sintomas inexis tentes A histeria não passaria assim de simulação e de um amontoado de enganações O histérico seria uma completa fraude não enunciando então qualquer verdade nas suas queixas Não obstante tudo isso alguns neurologistas im portantes se voltaram para a investigação da histeria na Freud a filosofia 25 segunda metade do século XIX Procuravam enfim decifrar o seu enigma teórico Charcot inicialmente Célebre neuropatologista fran cês de quem Freud foi discípulo Charcot se dedicou intei ramente à pesquisa da histeria no final do seu percurso científico após ter realizado o trabalho exaustivo de classi ficação das enfermidades neurológicas pelo viés da raciona lidade anátomoclínica Porém não a conseguiu inscrever no registro dessa racionalidade Avançou muito em seu estudo supondo que existiam traumas produzidos por aci dentes ferroviários na etiologia da histeria A utilização da hipnose lhe permitiu além disso reconhecer que existiam experiências psíquicas que não eram ditas em plena cons ciência mas apenas no luscofusco de sua suspensão No entanto formulou que existiria na histeria uma lesão ana tômica de ordem funcional e que no futuro as pesquisas biológicas iriam evidenciar a sua positividade Charcot per maneceu enfim no registro da racionalidade anátomoclí nica não obstante os seus avanços teóricos no que tange ao trauma e à hipnose Em contrapartida Bernheim um outro pesquisador da Suíça com quem Freud estabeleceu trocas científicas supunha que a histeria seria sempre produzida pela suges tão e até mesmo pela autosugestão Os histéricos seriam portanto seres sugestionáveis Daí por que poderiam ser curáveis pela hipnose na medida em que esta realizaria um trabalho de contrasugestão Situado entre esses pólos teóricos Freud realizou a crítica sistemática de ambos Se não concordava com 26 Joel Birman Charcot no que se refere à lesão anátomofuncional não estava também de acordo com Bernheim no que tange à ausência de qualquer substrato para a sugestionabilidade na histeria Com efeito esse substrato se materializaria agora num traço psíquico não tendo pois qualquer posi tividade anatômica Porém Freud aprendeu com eles pela hipnose que existia uma região psíquica que estava fora do campo da consciência e do controle do eu Ao lado disso a hipnose lhe ensinou a potência da linguagem na produção e na cura dos sintomas desde que a fala pudesse circular entre duas figuras na qual a primeira o enfermo investisse a segunda o médico de um poder terapêutico Portanto foi pela articulação estabelecida entre traço psíquico e linguagem na qual estes se imantavam numa relação intersubjetiva permeada pelo afeto que o conceito de inconsciente se constituiu Para costurar devidamente essa concepção Freud contou ainda com um terceiro mestre que lhe entreabriu outras possibilidades teóricas Aprendeu com Breuer que a histeria seria sempre produzida por uma alteração par ticular da consciência denominada de estado hipnóide o qual seria engendrado pela hipnose mas também nas situações traumáticas Nestas com efeito a dor psíquica disso decorrente conduziria a subjetividade ao estado hipnóide do qual se seguiria sempre uma divisão da consciência de onde se originariam infalivelmente todos os sintomas histéricos Breuer enfrentou corajosamente portanto o espinhoso problema da divisão da consciência assim como o das múltiplas personificações presentes na Freud a filosofia 27 histeria que estavam bastante em voga na segunda metade do século XIX remetendo tudo isso para uma causalidade traumática Freud aderiu inicialmente à concepção do trauma um corpo estranho no psiquismo enunciando que seria sempre produzido pelo excesso de excitação nele presente em de corrência do fato de que o eu não teria respondido a algo que o teria ofendido Conseqüentemente o eu dividiria a consciência pela qual uma das partes expulsaria a outra de seu território como uma forma radical de proteção do eu para que este não tivesse mais contato com aquilo que lhe ofendera Contudo aquilo que fora excluído retornava sem pre de maneira oblíqua através de sintomas somáticos denominados de conversão Isso evidenciaria a transforma ção de um sofrimento psíquico supostamente mais pertur bador numa dor somática Seria essa a maneira indireta de o eu se recordar do que lhe tinha acontecido Por isso mesmo Freud e Breuer enunciaram a fórmula canônica segundo a qual os histéricos sofrem de reminiscências que subverteu inteiramente a interpretação da histeria Foi nesse contexto ainda que ambos conceberam o método catártico para o tratamento da histeria Cabia as sim colocar o indivíduo novamente sob hipnose em con tato ativo com o que vivera de penoso para possibilitar então que pudesse responder devidamente ao que não pôde empreender no momento traumático Com isso o corpo estranho retornaria ao registro da consciência e o eu se unificaria novamente revertendo a conversão estabeleci 28 Joel Birman da no registro somático e fazendo desaparecer então os sintomas Portanto a rememoração possibilitaria ao eu se libertar definitivamente das reminiscências dolorosas O tratamen to catártico seria assim uma purgação de afetos que permi tiria a inclusão das reminiscências no registro da consciên cia suspendendo então a sua divisão A Poética de Aristóte les incidiu decididamente aqui sobre o discurso freudiano enfim que nela se baseou diretamente para forjar o conceito de catarse No entanto as diferenças entre Freud e Breuer apare ceram logo em seguida não obstante as suas concordâncias iniciais Isso porque para este o trauma não tinha qualquer caráter sexual o que era a suposição daquele Para Breuer com efeito qualquer experiência dolorosa que produzisse excesso no campo da consciência seria efetivamente trau mática enquanto para Freud apenas as que tinham uma marca sexual poderiam produzir o referido excesso Para ele o corpo estranho como eixo de constituição da consciência segunda tinha sempre um sentido sexual Por isso mesmo se Freud admitia inicialmente que a histeria pudesse se configurar em diversas modalidades clínicas como sendo hipnóide de retenção e de defesa 1894 pouco depois passou a formular que só podia existir a histeria de defesa 1896 Todas as outras modalidades de histeria seriam a esta reduzida O conceito de defesa se destacou então no discurso freudiano como uma poderosa operação do eu para tentar silenciar uma experiência dolorosa que seria sempre sexual Vale dizer a ofensa de que a subjetividade Freud a filosofia 29 teria sido objeto carregaria sempre para Freud uma infalí vel marca erótica O que implica afirmar isso Diante de um trauma sexual o eu procura expulsar da consciência as repre sentações desprazerosas que tornariam o trauma presente e que o evocariam Existiria então uma atividade psíquica do eu no ato mesmo da expulsão não sendo pois a dita expulsão o efeito passivo de uma alteração funcional da consciência como supunha Breuer Seria pela expulsão vo luntária da representação em causa que se configurariam o corpo estranho e a segunda consciência que retornaria posteriormente de maneira indireta como sintoma soma tico A ruptura teórica com Breuer estava enfim definitiva mente consumada O conceito de defesa como operação do eu não ficou restrito contudo à histeria Freud o estendeu decisiva mente à leitura de outras formações psicopatológicas como a obsessão e a psicose já que teriam igualmente na sua gênese a presença de traumas sexuais A divisão da consciência seria assim sempre produzida pela defesa sendo esta agenciada pelo eu que através dela evitaria sempre o contato com uma representação que fosse dolo rosa Essa expulsão voluntária deixaria traços no psiquis mo inscritos que seriam agora numa consciência segunda Portanto se delineava já aqui um modelo teórico outro do psiquismo que se diferenciava ostensivamente tanto do modelo presente na psicologia clássica quanto da neuroa natomia do cérebro Nessa perspectiva nas mais diferentes formações psicopatológicas a subjetividade se expressava 30 Joel Birman positivamente procurando dizer algo sobre a sua expe riência dolorosa Assim o psiquismo estava agora configurado como um conjunto disperso de traços mentais que seriam sempre imantados por intensidades Ele contudo se evidenciava como dividido por uma barreira relativamente intranspo nível que seria produzida pelas defesas do eu Numa das bordas do psiquismo existiam sempre o eu e a consciência enquanto na outra se indicava a presença de uma segunda consciência Um conflito fundamental se delineava entre esses diferentes registros mentais na medida em que o primeiro se opunha à emergência do segundo no campo da consciência pela ação das defesas A segunda consciência faria nesse caso um esforço contínuo para penetrar no campo da primeira para poder ter acesso à ação Entre vontade e contravontade o conflito se estabeleceria encon trando o seu ponto de equilíbrio numa formação de compro misso entre ambas evidenciada pela produção de sintomas Se estes indicavam eloqüentemente as marcas daquilo que fora ostensivamente expulso do campo da consciência pela ação das defesas a resistência que se apossava dos indivíduos ao serem convidados a se lembrar do que tinha acontecido com eles mostrava a ação contínua daquelas O eu queria evitar enfim a todo custo o contato com o que lhe produzia sofrimento Porém ao conseguir contornar as fronteiras delineadas pelas defesas e penetrar astuciosamente no território da segunda consciência o que Freud descobriu foi que os traços aí presentes apesar de serem aparentemente disper Freud a filosofia 31 sos se conjugavam entre si de maneira significativa estabe lecendo relações precisas O trauma como acontecimento existencial crucial seria aquilo que permitia costurar os traços psíquicos que se articulavam nas dimensões lógica e temporal Seria portanto o que conferia sentido não apenas aos traços presentes na segunda consciência mas também à divisão efetiva do próprio campo da consciência Nesse contexto Freud compara a organização da se gunda consciência a um arquivo no qual cada traço psíqui co teria uma relação lógica e histórica com os demais Esse arquivo constituiria uma memória secreta de traços na qual estes seriam sempre investidos e marcados pela mobilidade Essa memóriaarquivo constituiria então uma escrita psí quica sobre a qual uma história traumática estaria velada mente condensada mas que a mobilidade que a perpassaria poderia transformar em fala Foi certamente dessa descrição freudiana que Derrida articulou a construção do psiquismo em Freud com a sua teoria da escrita assim como Lacan encontrou aí os elementos cruciais para formular que a psicanálise se fundava no campo da fala e da linguagem ordenado que seria o psiquismo pelos significantes Ao lado disso Freud compara ainda a organização da segunda consciência como arquivo a uma civilização desa parecida de forma que a pesquisa psicanalítica seria então análoga à investigação arqueológica A restauração do trau ma na consciência primeira equivaleria então a trazer no vamente à superfície uma civilização desaparecida tal como Schliemann quando descobriu a existência da civilização micênica subjacente à grega clássica Porém haveria aqui 32 Joel Birman uma diferença crucial qual seja a segunda consciência não seria uma civilização morta como a micênica mas viva permeada por forças dinâmicas que insistiam em retornar à consciência e ocupar a cena psíquica principal A investi gação psicanalítica seria enfim uma arqueologia do sentido o qual estaria arquivado nas tramas secretas da memória Portanto o discurso freudiano se aproximou aqui da racionalidade histórica enunciando a existência significati va do psiquismo como uma rede de traços articulados por operadores lógicos e temporais em torno de um aconteci mento fundador denominado trauma A utilização dos con ceitos de arquivo e de arqueologia não é fortuita eviden ciando como Freud estava antenado com a constituição de uma leitura outra do mundo centrada na idéia de história como nos disse Foucault em As palavras e as coisas Porém essa leitura supunha uma outra que lhe era anterior e que era fundadora do discurso freudiano Com efeito no começo da década de 1890 no ensaio sobre as afasias Freud concebeu o psiquismo como um aparelho de linguagem isto é um conjunto de signos que dotava de sentido os acontecimentos vivenciados pelos indivíduos Foi baseado nisso que Freud pôde enunciar então que o tratamento psíquico seria centrado na linguagem indo as sim na contramão da perspectiva positivista da medicina da época que não conferia qualquer valor à palavra na expe riência clínica Logo em seguida no entanto em 1895 no Projeto de uma psicologia científica Freud afirmou não ape nas que o psiquismo seria um aparelho de linguagem mas que além disso seria permeado por intensidades Estava Freud a filosofia 33 condensado já aqui o paradigma teórico forjado pelo dis curso freudiano Constitutivo da segunda consciência contudo o trau ma tinha uma leitura bastante específica Antes de mais nada apenas um acontecimento de ordem sexual poderia produzir um excesso quantitativo no psiquismo No entan to isso se produzia num corpo ainda considerado como assexuado Para Freud o trauma seria um corpo estranho no psiquismo justamente porque o sexual era algo estran geiro num corpo infantil assexuado Com efeito a criança seria abusada seja por um adulto seja por uma outra criança mais velha ficando pois numa posição passiva e indefesa face à sedução Não entendia o que tinha se passado na medida em que desconhecia a linguagem erótica Somente num segundo momento ao se defrontar com uma expe riência análoga de sedução na puberdade quando já seria sexuado o jovem daria sentido ao que lhe acontecera Ape nas agora o evento se transformava em traumático de forma que o eu procurava ativamente repelir o que lhe ocorrera pela divisão da consciência Isso porque o indivíduo repug nava aquela experiência sendo a fonte interminável de nojo e vergonha Por isso mesmo a esta concepção do trauma Freud denominou ainda de teoria da sedução Portanto Freud enunciava que o trauma se referia sempre a um acontecimento real que seria fundador das perturbações psíquicas mas que apenas ganharia sentido quando o corpo assexuado se transformasse em sexuado Podese depreender disso que o discurso freudiano se ins creve aqui numa tradição prémoderna do pensamento 34 Joel Birman segundo a arqueologia de Foucault na medida em que existiria uma relação estrita entre as palavras e as coisas sem qualquer autonomia daquelas O psiquismo representava então as coisas de maneira especular sendo a consciência pois o espelho do mundo É claro que Freud já dividira a consciência pela ação fulminante das defesas multiplicando e estilhaçando bastante aquela segundo as linhas de força de diversas especularidades Porém considerando com Fou cault a história das técnicas de interpretação Freud se ins creveria ainda no registro da semiologia no contexto teórico da qual existiria ainda uma especularidade estrita entre os registros das palavras e das coisas Foi justamente esse paradigma teórico que caiu por terra logo em seguida quando Freud abandonou definiti vamente a teoria da sedução Afirmara então numa carta a Fliess desolado que não acreditava mais na sua neurótica ou seja não acreditava mais que os seus pacientes tinham sido efetivamente seduzidos como diziam Dar credibilida de a isso seria supor que todos os adultos fossem completa mente perversos Porém acreditar nessa idéia lhe repugna va Contudo não queria dizer que seus pacientes eram mentirosos Bem entendido Alegar tal coisa seria reafirmar a leitura médica da fraudulência histérica O que os pacien tes diziam era verídico com efeito mas a verdade não remetia a um acontecimento real mas a algo que se forjava no registro psíquico O psiquismo como objeto teórico autônomo se constituiu somente aqui de fato e de direito passando a ser concebido pois de maneira descolada dos acontecimentos reais Freud a filosofia 35 O que Freud queria dizer com isso Antes de mais nada que existia uma realidade psíquica ao lado da realidade material de maneira que a real queixa de sedução dos indivíduos deveria ser remetida à primeira e não mais à segunda como supunha até então O acontecimento conti nuava sendo real para o sujeito é claro mas o registro da experiência era a realidade psíquica e não mais a material Enunciar isso seria formular que a verdade do acontecimen to se fundaria apenas no registro dos signos e não mais no das coisas De acordo com a arqueologia de Foucault Freud se inscreveria agora na modernidade se deslocando do campo especular da semiologia para o da hermenêutica Com efeito as palavras remeteriam então de maneira insis tente e infinita para outras palavras não existindo mais um momento fundador absoluto da produtividade discursiva como na teoria do trauma Pela nova leitura a consciência especular foi definiti vamente desbancada de sua posição soberana O psiquismo passou a ser um campo de signos imantado por intensida des de maneira que as representaçõessignos seriam regu ladas por investimentos afetivos comandando então o psí quico de maneira permanente Porém enunciar que a verdade do acontecimento se ordena na realidade psíquica e não na material é formular ainda que as certezas da individualidade seriam forjadas por fantasmas Ou seja o sistema de signos estava permeado por intensidades por fantasmas que como espectros povoa riam o psiquismo A verdade se deslocou agora do registro semiológico onde existia a referida adequação especular 36 Joel Birman entre o eu e a coisa para um outro no qual o que estaria em pauta seria a realidade psíquica em que signos intensidades e fantasmas constituiriam as cenas psíquicas É claro que a descrição freudiana anterior do psiquis mo se mantém incólume mas refundada agora numa outra concepção do acontecimento centrada na realidade psíqui ca e não mais na material Vale dizer o psiquismo continua sendo considerado um conjunto de traços permeados por intensidades que se articulam entre si segundo o sentido que os perpassa delineando as relações lógicas e temporais entre os traços Seriam os fantasmas agora que alinhavariam o sentido dos acontecimentos direcionando as cenas psí quicas Por isso mesmo as leituras de Derrida e Lacan centradas respectivamente na escrita e na fala como mate rialidades da linguagem puderam se reencontrar com o discurso freudiano Portanto o discurso freudiano passou a conferir posi tividade para o que na psicologia clássica era mera negati vidade qual seja a imaginação Esta foi restaurada agora pelo lugar estratégico conferido aos fantasmas subvertendo a posição de autonomia e soberania conferida ao eu espe cular na psicologia clássica Foi a posição hegemônica deste no psiquismo que foi colocada em questão enfim com a descoberta do inconsciente e a invenção da psicanálise Para isso no entanto o discurso freudiano enunciou que o psiquismo estava fundado no imperativo do prazer Seria sempre este que estaria insistentemente presente na produção e na reprodução do psiquismo regulandoo nas Freud a filosofia 37 suas diferentes formações o que implica dizer que a sexualidade identificada com a busca permanente do pra zer seria constitutiva do aparelho psíquico Com efeito nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade Freud enunciou a existência da sexualidade infantil desarticulando assim a sexualidade do campo restrito da reprodução indicando esta como sendo apenas uma dimensão daquela Seria na dita sexualidade infantil que os fantasmas se ancorariam e perpassariam capilarmente todas as representações men tais constituindo as cenas psíquicas interditas e secretamen te arquivadas Isso se desdobrou numa outra descrição do aparelho psíquico Inconsciente e desejo O psiquismo foi agora configurado em diferentes registros que estabelecem relações intrincadas entre si o inconsciente o préconsciente e a consciência Entre o primeiro registro e os demais existia uma barreira bem estabelecida constituí da pelo recalque Seria essa a defesa fundamental já que instauradora do psiquismo A divisão psíquica se redescreve então em outros termos não existindo mais agora a oposi ção entre diversas modalidades de consciência sustentada pela luta interminável entre vontade e contravontade Com efeito o conflito presente entre as instâncias psíquicas se realizaria entre o inconsciente que empreende um insisten te movimento de retorno para ter acesso à consciência e à ação e o préconscienteconsciência que a isso se oporia 38 Joel Birman pela mediação do recalque Porém seria continuamente pela dinâmica do conflito que se estabeleceriam as formações do inconsciente quais sejam os sonhos os lapsos os atos falhos as piadas e os sintomas A verdade presente nas cenas do inconsciente se enunciaria pela mediação de tais forma ções psíquicas sendo pois pela sua interpretação meticu losa que se poderia aceder ao inconsciente A diferença fundamental existente entre inconsciente e préconsciente se definiria pelo fato de que pela vontade seria possível tornar imediatamente consciente algo presen te no préconsciente enquanto tal não seria o caso no que se refere ao inconsciente Isso porque para se aproximar deste seria necessário superar a resistência que provocaria no psiquismo na medida em que aquela seria o efeito da operação do recalque No préconsciente estariam presentes as representações que estão momentaneamente fora da consciência por não interessarem à ação instrumental do eu mas que poderiam ser permanentemente evocadas des de que este assim o queira Entre os registros do précons ciente e da consciência existiria então uma outra censura mas essa seria porosa justamente porque não seria da ordem do recalque Portanto formulase que o eu seria sempre instrumental e que não poderia operar eficazmente com excesso de representações de maneira que faria sempre a economia da presença destas no campo da consciência em nome da sua efetividade instrumental Finalmente a consciência seria aqui o terceiro registro mental mantendo todas as características que tinha na concepção clássica Seria pois supostamente transparente Freud a filosofia 39 para si própria e ao mesmo tempo o espelho do mundo iluminada sem cessar pelo foco da atenção mediado pelo eu na sua ação instrumental Esse foco regularia o ritmo e o fluxo de representações na consciência Nos seus diferentes registros o psiquismo seria sempre constituído por representações permeadas por intensida des O que diferenciaria agora os registros seria tanto as diferentes modalidades de representação quanto as regras segundo as quais as representações seriam conjugadas As formas existentes de articulação entre as representações seriam devidas portanto à especificidade destas e às regras que as conjugariam entre si Nessa perspectiva impõese diferençar entre a repre sentaçãocoisa e a representaçãopalavra na medida em que a primeira materializaria o impacto das pulsões no psi quismo enquanto a segunda remeteria à imagem acústica das palavras naquele Assim se a representaçãocoisa seria marcadamente de ordem visual a representaçãopalavra teria uma materialidade auditiva desdobramento indireto que seria dos discursos escutados A incidência direta das pulsões no psiquismo se faria pelo registro da consciên ciapercepção produzindo as representaçõescoisa que existiriam inicialmente em estado disperso e em seguida articuladas em cadeias associativas segundo as regras da contigüidade e da simultaneidade que ordenariam as cadeias de signos Somente posteriormente as cadeias de representaçõescoisas seriam articuladas com as repre sentaçõespalavra possibilitando então a consciência pro priamente dita 40 Joel Birman Nesse contexto a representaçãocoisa seria caracterís tica do inconsciente e a representaçãopalavra estaria no registro do préconsciente sendo o ato de consciência a resultante da conjugação entre estes diferentes registros de representação A consciência seria então positivada como uma proposição e um enunciado na qual seriam intima mente articuladas a representaçãocoisa e a representação palavra numa frase constituída por sujeito verbo e predi cado Porém isso tudo se inscreveria ainda em sistemas diferentes orientados por regras diversas As repre sentaçõescoisa estariam submetidas ao princípio do pra zer isto é buscariam sempre o prazer e o gozo não re cuando diante dos impasses colocados Em pauta estaria o processo primário que se caracterizaria pela mobilidade absoluta dos traços psíquicos com vistas ao gozo Seria isso que assinalaria o sistema inconsciente onde não existiria a idéia de morte e de contradição nem a noção de tempo mas apenas o imperativo de gozar Seria para se contrapor a isso que o recalque seria estabelecido para obstaculizar os efeitos nefastos do gozo absoluto Em contrapartida com o sistema préconscienteconsciência o psiquismo se regularia pelo princípio de realidade de forma que o prazer ficaria submetido aos imperativos da realidade material e não apenas aos da realidade psíquica Vale dizer o processo secundário encadearia as representações segundo as rela ções de causalidade e de reconhecimento do contexto de acordo com os pressupostos da lógica da identidade e da contradição Freud a filosofia 41 Desta maneira seriam os fantasmas que definiriam o imperativo de gozo presente no sistema inconsciente con figurando este pela mediação do desejo Seria o desejo que regularia a realidade psíquica a qual estaria sempre na dependência estrita dele As diferentes formações do in consciente seriam constantemente marcadas pelo desejo que buscaria se realizar em ato procurando se inscrever no registro da consciência mas que se chocaria com a barreira do recalque para impedir a realização de tal intento A positivação da imaginação empreendida pelo discurso freudiano se realizou pelo viés de conferir também ao desejo conjugado ao fantasma um lugar na subjetividade que não estava presente na psicologia clássica A produção de sentido seria agora efetuada pelo imperativo do desejo inscrito nas cenas fantasmáticas Essa descrição freudiana do psiquismo foi denominada de primeira tópica na qual se delineou a existência de diferentes registros mentais onde circulavam diversas mo dalidades de representação e de sintaxes reguladoras desta Assim as representaçãocoisa e representaçãopalavra se riam reguladas pelos princípios do prazer e da realidade por um lado e pelos processos primário e secundário pelo outro A realidade psíquica imantada pelo desejo se contra poria à realidade material regulada pelas gramáticas do eu e da consciência Estaria aqui o cerne da conflitualidade que marcaria o psiquismo dilacerado entre diferentes pólos A segunda tópica estabelecida por Freud em 1923 no ensaio O eu e o isso modificou o enunciado dos registros psíquicos mas manteve a mesma lógica conceitual e a pre 42 Joel Birman sença da conflitualidade como princípio Com efeito se o isso representava agora o pólo pulsional do psiquismo o eu mantinha o seu antigo lugar e o supereu representava agora a instância de interdição do desejo A leitura do psiquismo assim esboçada nas diferentes tópicas freudianas exigiu a constituição de um discurso teórico outro que não seria nem o da psicologia clássica nem o da neuropatologia Para esse discurso Freud forjou o nome de metapsicologia Esta se caracterizaria pela uti lização de três códigos de descrição dos fenômenos men tais que seriam complementares o tópico o dinâmico e o econômico Assim qualquer experiência psíquica exigiria uma leitura que definisse em que lugares psíquicos estaria acontecendo antes de mais nada Vale dizer em que registros psíquicos estaria aquela experiência ocorrendo e que modalidades de representação estariam em causa Foi assim definida a dimensão tópica Em seguida como os registros em pauta e as representações correspondentes estabeleceriam conflitos entre si isso delinearia a dinâmica psíquica Como as representações seriam sempre investi das finalmente a dimensão econômica da metapsicologia procurava definir quais seriam as intensidades em pauta Uma descrição metapsicológica do psiquismo seria aquela que sempre se orientasse enfim por esta tripla exigência teórica É pela indagação da metapsicologia que se pode situar devidamente a problemática crucial que a psicanálise colo cou para a filosofia É o que veremos agora esmiuçando nas suas difrações o discurso metapsicológico Freud a filosofia 43 Metapsicologia metafísica e interpretação É curioso que Freud tenha denominado de metapsicologia o saber de referência na psicanálise Tratase de algo franca mente intrigante porque afirma que a psicanálise não é uma psicologia mas uma metapsicologia Com efeito a leitura que a psicanálise realiza do psiquismo não se identifica com a da psicologia na medida em que não se volta para a descrição das faculdades mentais mas para a elucidação do sentido da experiência psíquica Por isso mesmo Freud afirmou literalmente que a leitura psicanalítica pretende ir além da psicologia A inclu são aqui do prefixo meta indica justamente isso A metapsi cologia pretende ser uma leitura do psiquismo que trans cenderia a da psicologia por não se restringir ao estudo das faculdades psíquicas Pressupondo assim que o psiquismo é um processo propõe a ele um triplo código de leitura quais sejam as leituras tópica dinâmica e econômica Porém ultrapassar o registro das faculdades implica ao mesmo tempo realizar uma modalidade de compreen são do psiquismo que transcenda os registros da consciência e do eu Desta maneira o que está em pauta é uma ruptura evidente com os pressupostos da psicologia clássica na medida em que com a metapsicologia a psicanálise pretende circunscrever os processos subjacentes ao eu e à consciência Em decorrência disso Freud afirmou repetidas vezes que a psicanálise seria uma psicologia profunda A psicologia clás sica por sua vez seria uma leitura da superfície do psiquis mo porque ficaria restrita a seus registros periféricos 44 Joel Birman Contudo isso ainda não é tudo A palavra metapsico logia é evidentemente derivada da palavra metafísica Ao denominar o saber teórico da psicanálise numa derivação imediata e incontornável da palavra metafísica Freud iden tifica naquela algo que a aproximaria desta Mas o que poderia tangenciar a psicanálise com o saber da metafísica Não parecem existir dúvidas a respeito disso a psicanálise seria um saber fundado na interpretação e no que esta implica qual seja o psiquismo seria construído em torno dos conceitos de sentido e significação na medida em que a interpretação apenas seria possível se estivesse remetida ao mundo do sentido como o seu correlato Por isso mesmo a obra inaugural da psicanálise intitu lavase A interpretação dos sonhos Contrariando as tradi ções da psicologia clássica e da neuropatologia o discurso freudiano enunciou que os sonhos seriam não apenas for mações psíquicas como também forjados pelo sentido Sonhar quer dizer alguma coisa isto é o sujeito enuncia algo através de seus sonhos não sendo estes nem o subproduto da atividade cerebral nem tampouco um devaneio errático da imaginação Freud retoma aqui uma longa tradição po pular e précientífica segundo a qual os sonhos seriam produções significativas A construção do sentido do sonho seria sempre imantada pelo desejo que se materializaria eloqüentemente na narrativa onírica Em decorrência disso o discurso freudiano enunciou que o sonho seria o caminho real para o inconsciente pois este teria no desejo o seu primado O sonho foi enunciado enfim como o paradigma Freud a filosofia 45 teórico do inconsciente portanto uma formação do in consciente Em seguida o discurso freudiano circunscreveu outras formações do inconsciente como os lapsos os atos falhos e as piadas constituindo uma verdadeira psicopatologia da vida cotidiana Pela mediação de tais formações poderse ia ter acesso ao inconsciente isto é seria possível delinear o campo desejante em ato numa dada subjetividade para realizar o seu deciframento efetivo Finalmente todas as perturbações psicopatológicas do espírito poderiam ser in terpretadas pelo paradigma do inconsciente na medida em que seriam significativas Assim o método de interpretação construído pela psi canálise seria o do deciframento Isso porque as formações do inconsciente seriam caracterizadas pelo enigma apre sentandose sempre de maneira cifrada tanto para o sujeito quanto para o intérprete Nem este nem aquele com efeito seriam detentores de uma chave predeterminada de leitura dos sonhos como se realizava ainda na Antigüidade Esta chave seria agora inoperante na medida em que não seria capaz de destacar a singularidade do sujeito definida sem pre pelo seu desejo Por isso mesmo para a interpretação de qualquer for mação do inconsciente seria necessário que o sujeito pudes se associar livremente a partir de cada um dos fragmentos cifrados da narrativa enigmática O sujeito deveria ser colo cado num estado de errância sem estar preocupado em explicar a formação em questão mas em se deixar levar pela trama que lhe vem ao espírito Desta maneira o processo 46 Joel Birman associativo já seria um processo interpretativo que suporia a fragmentação do psiquismo como sendo a sua condição de possibilidade Seria pelo deslizamento insistente do su jeito nas cadeias de signosrepresentações mentais que o sentido iria se configurando permitindo delinear o desejo numa formação cifrada Entretanto se a livre associação seria o imperativo me todológico para o analisante a atenção flutuante seria a sua contrapartida para a figura do analista Para este com efeito era exigido também que não buscasse qualquer explicação e não privilegiasse nenhum fragmento da narrativa do ana lisante mas que se deixasse sempre levar pela escuta errática do deslizamento deste Ou seja o analistaintérprete estaria também submetido à mesma errância e à suspensão expli cativa exigida da figura do analisante para que a interpre tação pudesse se enunciar O que esses imperativos metodológicos nos eviden ciam afinal das contas Tanto a associação livre do lado do analisante quanto a atenção flutuante do lado do analista revelam o que está em questão aqui a exigência de suspen são do eu para que as diversas cadeias associativas na sua real fragmentação pudessem se enunciar em ato como discurso Seria através disso que os registros do desejo e do sentido poderiam se evidenciar literalmente sem os ruídos das manobras explicativas do eu e sua ação instrumental voltada sempre para a adaptação do indivíduo Evidentemente tudo isso nos indica ainda como a desconstrução teórica da psicologia clássica se realizou pela suspensão momentânea do eu e do seu correlato qual seja Freud a filosofia 47 a sua estratégia estritamente cognitiva Com isso a imagi nação pôde ser positivada na sua produtividade simbólica pela mediação do deslizamento insistente das cadeias de signosrepresentações Os imperativos metodológicos do deciframento psicanalítico visam pois dar consistência aos pressupostos teóricos de uma subjetividade fundada agora no inconsciente Não foi por acaso certamente que todas as formações do inconsciente enunciadas por Freud denotam modali dades de ser do psíquico nas quais o eu no registro cognitivo falha literalmente na sua funcionalidade instru mental Tanto no sonho quanto no ato falho no lapso na piada e no sintoma o eu derrapa a partir de algo que o desconstrói momentaneamente evidenciando a irrupção do desejo É sempre isso que está em jogo quando se alude à presença do inconsciente no psiquismo na medida em que a consciência foi posicionada como subalterna e o eu colocado em estado de suspensão momentânea na sua instrumentalidade Enfim a imaginação como excesso e positividade produtiva pode então ser destacada saindo da condição de negatividade na qual fora colocada pela psicologia clássica Foi nesse contexto histórico de descoberta da psicaná lise que Freud enunciou que com a metapsicologia estaria realizando o seu antigo desejo de se dedicar à filosofia e não mais à medicina pois não tinha interesse nem talento para a terapêutica O que queria dizer Freud com isso efetiva mente Diversas e diferentes coisas ao mesmo tempo como veremos agora de maneira esquemática 48 Joel Birman Desconstrução do sujeito Antes de mais nada é preciso dizer que se Freud não era um erudito em filosofia não era tampouco um incauto Ele acompanhou alguns cursos ministrados por Brentano na Universidade de Viena no tempo em que era estudante de medicina Além disso dedicouse à prática da tradução para se sustentar ainda quando estudante Traduziu então alguns textos filosóficos como os de Stuart Mill Portanto Freud não era absolutamente ignorante no que concerne à filoso fia tendo pois uma boa educação de base No entanto é preciso considerar ainda a desconfiança existente na comunidade científica da Alemanha em rela ção à filosofia na segunda metade do século XIX Os natu ralistas alemães consideravam perigosas as formulações totalizantes presentes no discurso filosófico justamente porque não faziam avançar o conhecimento positivo pre tendido pelas ciências Porém o discurso filosófico em questão era representado principalmente pela filosofia de Hegel a quem se atribuía uma versão panlogista do mundo segundo a feliz expressão cunhada por Hyppolite Em de corrência disso existiu um deslocamento teórico significa tivo na tradição filosófica alemã de Hegel para Kant no final do século XIX nos rastros da Escola de Marburgo e da leitura de Cohen sobre a filosofia kantiana Nesse contexto os naturalistas alemães se inscreviam sobretudo na tradição filosófica kantiana considerada como crítica da perspectiva totalizante supostamente presente na filosofia de Hegel e Freud a filosofia 49 mais próxima então do ideário de positividade do saber científico É preciso evocar esse contexto para justificar as cres centes e progressivas desconfianças teóricas de Freud em relação à filosofia buscando este sempre enfatizar que a psicanálise não era uma modalidade filosófica de saber justamente porque tinha a pretensão de ser um discurso científico Isso porque a cientificidade da psicanálise era colocada em questão pela comunidade científica de então O pomo da discórdia era precisamente a pequena positivi dade presente nos enunciados teóricos da psicanálise de maneira que esta foi aproximada da estética desde a publi cação de A interpretação dos sonhos A psicanálise era um saber fundado na interpretação sendo por isso mesmo aproximada do discurso filosófico Este se transformou de cididamente num fantasma diabólico tanto para Freud quanto para a psicanálise nesta conjuntura histórica Foi visando sempre os diferentes objetos teóricos em questão na psicanálise e na filosofia procurando distingui los radicalmente que Freud empreendeu a crítica psicana lítica da filosofia O que estava em pauta portanto eram as supostas dimensões totalizante e sistemática presentes no discurso filosófico e que seriam alheias à psicanálise Pode se depreender disso que era sempre a filosofia de Hegel o alvo teórico visado por Freud caracterizada seja pela pre tensão totalizante seja pela pretensão a ser um sistema Por isso mesmo Freud aproximou o discurso filosófico da pa ranóia pela presença em ambos do imperativo do sistema Além disso a retórica filosófica foi considerada similar à que 50 Joel Birman se encontrava na esquizofrenia pois em ambas o fascínio com as palavras distanciariam o sujeito do registro das coisas fazendoo perder o juízo de realidade Seria ainda a sedução pelo sistema o que conduziria a filosofia a ficar presa na retórica linguageira e dar as costas ao mundo do real Finalmente a presença do imperativo totalizante con duziria a filosofia a se transformar numa visão de mundo o que não era o caso da psicanálise que teria uma leitura fragmentar do real fundada sempre num objeto teórico específico isto é o inconsciente Portanto a psicanálise não poderia ser uma modalida de de discurso filosófico justamente para ser teoricamente reconhecida como uma leitura científica sobre o psiquismo Estaria no inconsciente o seu objeto teórico e o que visava com a interpretação sendo pela mediação desta que teria sido construída a metapsicologia Foi em decorrência disso que Freud afirmou quando inventou a psicanálise que com a metapsicologia estaria realizando finalmente o seu desejo de ser um filósofo Estaria aqui a borda existente entre metapsicologia e metafísica na medida em que ambas se realizariam pela interpretação Porém foi pela existência dessa borda que Freud sem pre se inquietou com o fantasma da filosofia no interior da psicanálise que precisaria ser continuamente exorcizado Isso porque seria apenas assim que a psicanálise poderia ter o seu reconhecimento como discurso científico Daí a razão da mordacidade quase sempre presente na crítica de Freud ao discurso filosófico pois buscava decantar assim a presen ça deste fantasma na psicanálise Freud a filosofia 51 Nessa perspectiva Freud valeuse de diferentes argu mentos para sustentar o pertencimento da psicanálise no campo da ciência Assim mesmo se os conceitos fundamen tais da metapsicologia não fossem empíricos isso também se passaria com os demais discursos científicos e mesmo com a física considerada então como o modelo de cienti ficidade Com efeito os conceitos de matéria e de energia seriam tão abstratos quanto o de pulsão dizia Freud bas tante distantes todos estes de qualquer empiricidade Além disso os conceitos fundamentais de um dado discurso cien tífico apenas seriam fixados definitivamente com o desen volvimento deste discurso como foi ainda o caso exemplar da física devendo ser considerados como provisórios nos seus primórdios isto é como hipóteses fecundas de traba lho que poderiam ser sempre retificadas no futuro com o desenvolvimento científico No entanto o imperativo de verificação dos enunciados teóricos da psicanálise se impunha freqüentemente a Freud justamente porque seria por esse viés que o discurso freu diano poderia reivindicar a sua positividade científica Daí porque Freud e a primeira geração de psicanalistas publica ram longas narrativas de experiências analíticas A publica ção de extensos casos clínicos por Freud nos quais se des crevia a elucidação metapsicológica dos sintomas visava precisamente atender à exigência de verificação formulada pelo discurso científico A experiência psicanalítica foi transformada no laboratório de verificação científica dos enunciados metapsicológicos da psicanálise 52 Joel Birman É preciso evocar aqui que o discurso neopositivista que procurava diferençar os enunciados científico e filosófico pela mediação da categoria de verificação se constituiu justamente neste contexto histórico e na mesma Viena em que vivia Freud Era ao ideário neopositivista de ciência forjado pelo Círculo de Viena que o discurso freudiano tinha que prestar contas para que a psicanálise pudesse ser reconhecida como uma ciência e não como filosofia Contudo Freud teve de reconhecer que a psicanálise não se adequava aos cânones neopositivistas de ciência Assim diferentes conceitos metapsicológicos fundamentais não eram passíveis de qualquer verificação Desde os anos vinte Freud teve que aceitar definitivamente isso Com efeito quando enunciou o conceito de pulsão de morte que não foi reconhecido por parcela significativa das comuni dades científica e psicanalítica Freud afirmou que se tratava aqui de uma especulação isto é de algo que não poderia ser empiricamente verificado Especulação de que não po dia abrir mão tal a certeza que tinha naquele conceito bem fundado para interpretar certos processos psíquicos Por isso mesmo valeuse de Platão e de Empédocles constituin do então um argumento mítico para legitimar finalmente o conceito de pulsão de morte Além disso no final de seu percurso teórico Freud passou a aproximar a metapsicologia da bruxaria uma maneira de afirmar que os enunciados teóricos da psicaná lise não se combinavam com os cânones neopositivistas do discurso da ciência Com efeito Freud valeuse da metáfora da bruxaria para circunscrever a pertinência teórica do Freud a filosofia 53 discurso psicanalítico evocando uma tradição que teria sido enterrada pelo advento da ciência moderna Portanto a psicanálise se inscreveria numa longa tradição précientífi ca pois não se harmonizava com os cânones do neopositi vismo A evocação da bruxaria no entanto não é apenas uma metáfora para Freud já que estaria referida a um momento da história do pensamento no qual foi afirmado que seriam os espíritos malévolos os responsáveis pela loucura Na Idade Média com a Inquisição as histéricas foram lançadas nas fogueiras da virtude justamente porque consideraram nas possuídas pelos maus espíritos Para Freud contudo a teoria demonológica foi finalmente vitoriosa contra a tra dição positivista na leitura da loucura na medida em que o conceito de fantasma enunciado pela psicanálise teria con ferido positividade à idéia religiosa de espírito maléfico Como vimos segundo a concepção freudiana o psi quismo seria perpassado por fantasmas que encantavam a realidade psíquica para o bem e para o mal Nas cenas onde os desejos se inscreviam e circulavam permanentemente os fantasmas capturavam os signos e as representações men tais colocando a subjetividade em movimento sustentan doa no seu pensar no seu dizer e no seu fazer Por isso mesmo pela interpretação a metapsicologia freudiana bus cava realizar o deciframento dos fantasmas e dos desejos que impulsionavam a subjetividade que se manifestavam pelas formações do inconsciente Porém mesmo reconhecendo que a psicanálise não era efetivamente uma ciência de acordo com os cânones então 54 Joel Birman vigentes Freud ainda afirmava que aquela seria uma ciência de outra ordem e não uma modalidade de discurso filosó fico porque não pretendia ser um sistema nem realizar uma leitura totalizante do real A interpretação em psicanálise não constituiria uma visão de mundo Isso porque com o deciframento e sem se fundar num código a priori de sím bolos a interpretação psicanalítica visaria sempre as marcas particulares evidenciadas pelos signos se deslocando o tempo todo no eixo da singularidade Esta seria dessa maneira paulatinamente destacada perpassada pelos fan tasmas e desejos que a costurariam nos seus pequenos detalhes Portanto a fragmentação do psiquismo seria o contraponto permanente do deciframento sendo aquela a condição de possibilidade da interpretação A sexualidade perversopolimorfa enfim estaria no fundamento desta fragmentação impulsionada pelo imperativo do prazer Enunciase assim que o discurso freudiano colocou para a filosofia um problema fundamental na virada do século XIX para o XX o descentramento do sujeito Formular com efeito que a interpretação como deciframento se refere a uma leitura fragmentar do psíquico implica enunciar o descentramento do sujeito promovido pela psicanálise A concepção psicanalítica de que existiria um psiquis mo inconsciente e que a subjetividade transcenderia em muito os registros do eu e da consciência implicou efetiva mente no descentramento do sujeito Essa tese colocou em questão uma longa tradição que se constituiu com Descartes e que foi denominada de filosofia do sujeito Era sempre isso Freud a filosofia 55 que estava em pauta na crítica empreendida por Freud da psicologia clássica Essa crítica pôs em discussão toda a tradição filosófica fundada no cogito como Lacan indicou devidamente desde o início de seu percurso na psicanálise Isso porque se para Descartes o pensamento era a garantia do critério de exis tência para o sujeito penso logo existo para Lacan a descoberta do inconsciente indicava um paradoxo funda mental qual seja o sujeito existia onde não pensava e pensava onde não existia Com efeito se o inconsciente é desejo o desejo fundaria agora a condição de existência fora do registro do pensamento Foi em decorrência disso ainda que Lacan acabou por enunciar que o inconsciente seria um conceito ético e não ôntico não se inscrevendo mais no registro do conhecimento Portanto a existência do sujeito e a produção da verdade se realizariam para a psicanálise fora do registro do pensamento inscrevendose nos regis tros do desejo e do inconsciente Seria essa uma das versões da tese do descentramento do sujeito promovida pela psicanálise Porém existem ou tras que formularam também a mesma tese mas segundo uma outra direção teórica Com efeito quando Foucault inscreve Freud como um dos fundadores da tradição her menêutica ao lado de Marx e de Nietzsche acentua a di mensão interpretante presente no discurso freudiano Te riam se perdido aqui as noções de origem e de referente no campo da linguagem com a emergência da modernidade em contraposição ao que existia na dita Idade Clássica fundada ainda no registro da representação e da semiologia 56 Joel Birman A consciência concebida como superfície especular era o que fundava a semiologia e a crença de que o pensamento poderia representar o mundo das coisas Entre as operações do ver e do dizer existia uma articulação fundamental que se perdeu posteriormente Com a hermenêutica no entan to a modernidade passou a conceber a linguagem como remetendo sempre à linguagem numa errância infinita na qual cada palavra reenviaria sempre a uma outra palavra sem que se possa jamais capturar um referente originário Estaria rompida enfim a identidade entre o ver e o dizer materializada na representação Assim com a psicanálise estaríamos bastante longe de uma filosofia fundada no cogito na medida em que seria este que constituiu o campo da representação como fundamen to para a leitura das coisas no qual o ver e o dizer se identificavam Com a hermenêutica freudiana enfim a linguagem não se refere mais ao universo das coisas estando agora em questão a realidade psíquica e não mais a realidade material Podemos dizer portanto que a problemática colocada pela psicanálise para a filosofia se centra na crítica do cogito Estaria em pauta uma desconstrução da filosofia do sujeito com o descentramento do sujeito dos registros do eu e da consciência Essa desconstrução no entanto não se realizou de maneira imediata no discurso freudiano mas exigiu um longo e tortuoso percurso tendo que ultrapassar diferentes patamares conceituais A totalidade da obra de Freud nos seus diversos contextos teóricos foi a materialização dessa desconstrução É o que indicarei agora Freud a filosofia 57 Descentramentos Num ensaio publicado em 1917 intitulado Uma dificul dade da psicanálise Freud enunciou que a psicanálise pro vocava resistências não contingentes mas estruturais Isso porque não seria o fato daquela ser uma jovem modalidade de saber nem o de se fundar na sexualidade que justifica riam as ditas resistências Estas se baseariam no eu e na consciência em decorrência destes pretenderem sempre dominar o campo do psiquismo e das coisas Nessa medida a psicanálise implicaria uma ferida narcísica para a huma nidade devido aos descentramentos do psiquismo por ela promovidos A leitura desse ensaio é fundamental para evidenciar esta problemática por diversas razões Em primeiro lugar porque é uma produção madura do discurso freudiano onde se condensam os diversos sentidos assumidos pelo conceito de descentramento Em segundo lugar porque o descentramento promovido pela psicanálise foi também inscrito no rastro de outros que foram cruciais na história do pensamento no Ocidente Em terceiro lugar todos esses descentramentos se realizaram no campo do discurso cien tífico sendo pois constitutivos da modernidade Assim a psicanálise representaria a terceira grande ferida narcísica da humanidade tendo sido precedida his toricamente pelas revoluções copernicana na cosmologia e pela revolução darwiniana na biologia Porém se os descen tramentos da subjetividade dos registros da consciência e 58 Joel Birman do eu foram feridas narcísicas para a pretensão destes no domínio sobre o psiquismo e a realidade não seriam aque les de natureza radicalmente diferentes dos que retiraram o homem do centro do cosmo e da vida Com efeito se com Copérnico a Terra foi deslocada do centro do cosmo e inserida na posição secundária de um dos diversos planetas que girariam ao redor do Sol com Darwin o homem perdeu o seu lugar privilegiado na ordem da natureza inscreven dose nesta como um simples animal derivado de outras espécies na evolução biológica Portanto se o homem acre ditava ocupar um lugar destacado no cosmo e no campo do olhar divino com a teoria heliocêntrica de Copérnico esta pretensão teria caído literalmente por terra delineandose o Universo infinito no qual se inseria agora o homem desamparado Da mesma forma o homem podia se repre sentar ainda como um ser superior aos demais para o olhar divino ao supor a sua superioridade no mundo da natureza mas com a interpretação darwiniana foi remetido para as suas dimensões animais perdendo enfim qualquer aura de superioridade Nesse contexto a psicanálise teria retirado a última ancoragem da pretensão humana o último reduto de sua suposta superioridade e arrogância ao enunciar que a cons ciência não é soberana no psiquismo e que o eu não é autônomo neste Vale dizer a realidade psíquica se deslocou decididamente da consciência e do eu para os registros do inconsciente e da pulsão que passaram agora a regulála Porém condensamse aqui três sentidos diferentes para o Freud a filosofia 59 descentramento que se realizaram ao longo do pensamento freudiano 1 da consciência para o inconsciente 2 do eu para o outro 3 da consciência do eu e do inconsciente para as pulsões Existem portanto diferentes sentidos para o descen tramento transformandose então decisivamente o seu conceito Entretanto esses sentidos não são incompatíveis entre si mas complementares O que se enuncia desta ma neira é a radicalização do conceito de descentramento no discurso freudiano Isso porque se nos dois registros iniciais a crítica se circunscrevia ainda ao campo da representação no terceiro registro o descentramento se fundaria na exte rioridade desta Nessa perspectiva no seu percurso o discurso freudia no colocou paulatinamente em questão os três registros teóricos nas quais o cogito se fundava a consciência o eu e a representação Esta desconstrução foi não apenas progres siva mas foi evidenciando também limiares crescentes de complexidade Vale dizer desconstruir o centramento da subjetividade no registro da consciência é bem mais fácil do que fazêlo no registro do eu e este é certamente bem mais simples do que desconstruir o centramento no registro da representação Porém foi esta a direção desconstrutiva as sumida pelo discurso freudiano no qual se atingiu os três pilares fundadores da filosofia do sujeito Consideremos então os diferentes sentidos do descen tramento em psicanálise indicando suas ressonâncias no discurso filosófico 60 Joel Birman Da consciência ao inconsciente No primeiro descentramento freudiano a consciência foi retirada de seu lugar destacado no psiquismo e relativizada em relação ao inconsciente Estamos aqui no momento inaugural da psicanálise A realidade psíquica centrada no inconsciente se autonomizou perdendo a condição de sim ples reflexo especular da realidade material Estamos na primeira tópica em que o inconsciente como sistema psí quico se contraporia ao sistema préconscienteconsciência O psiquismo seria construído por representações atravessa das por intensidades mas onde o registro da representação seria mais importante que o da intensidade Enfim as repre sentações circulariam entre os diversos sistemas nos quais se articulariam e se desarticulariam a representaçãocoisa e a representaçãopalavra Porém o registro do eu não foi colocado em questão mantendose como instância soberana no psiquismo reali zando sua função cognitiva e regulado pelo princípio da realidade Em decorrência disso o eu não seria uma instân cia sexualizada mantendose como pura racionalidade po dendo discriminar entre as representações inconscientes e as préconscientesconscientes As fantasias inconscientes não teriam o poder de perturbar a percepção do eu que poderia afastálas de seu território Isso porque o eu seria investido pelo interesse isto é pelas exigências de auto conservação da individualidade Daí por que o modelo inicial do dualismo pulsional que definia as linhas de força do conflito psíquico se confi Freud a filosofia 61 gurava pela oposição entre as pulsões sexuais e as pulsões de autoconservação Seria sempre em nome da autoconser vação representada pelo sistema préconscienteconsciên cia e pelo eu que a subjetividade se protegeria da irrupção da sexualidade perversopolimorfa advinda do sistema in consciente Essa proteção se realizaria pelo recalque divisor de águas entre estes sistemas O conflito se fundaria entre os pólos vital e sexual do psiquismo de maneira que parafra seando Schiller Freud enunciou que o conflito psíquico se ordenaria entre a fome e o amor O método psicanalítico se pautava pelo imperativo de tornar consciente o que era inconsciente para que neste deslocamento de registros psíquicos o eu pudesse em nome dos interesses da autoconservação oferecer um destino es truturante para o sexual O que se impunha como exigência moral era adequação do princípio do prazer ao princípio da realidade pela qual o eu harmonizaria a subjetividade dilacerada Esse descentramento inaugural provocou efeitos im portantes na filosofia As ressonâncias foram diversas assu mindo diferentes direções nas quais os autores se posicio naram frente ao esvaziamento teórico da consciência A fenomenologia criticou bastante Freud pela promo ção desse descentramento pois a consciência perderia a sua consistência Como resposta foi argüido que o inconsciente não passaria da condição de ser uma modalidade outra de consciência ou seja uma forma latente desta Isso tudo apesar das repetidas objeções de Freud sobre essa leitura principalmente pelo enunciado dos conceitos de incons 62 Joel Birman ciente como sistema e de recalque que restringiriam a consistência da consciência Foi nesse contexto teórico que Freud foi vivamente criticado por Sartre nos anos 40 Este com efeito insistiu bastante no mecanicismo e fisicalismo presentes na meta psicologia que esvaziavam a consciência de sua riqueza e plenitude significativas Baseouse para tal na fenomenolo gia de Husserl e na filosofia existencial de Heidegger Em decorrência disso aproximou a subjetividade referida pelo inconsciente freudiano de uma postura ética de máfé da quela pela covardia e pela não assunção da responsabilida de que implicava para o sujeito a crença num inconsciente na exterioridade da consciência Em contrapartida à psica nálise Sartre enunciou a construção de uma analítica exis tencial na qual a centralidade moral e cognitiva da cons ciência seria finalmente restaurada pelo destaque conferido ao conceito de projeto existencial Em contrapartida destacando a subversão filosófica que a psicanálise produziu justamente por causa do descen tramento em pauta Althusser ironizou nos anos 60 a tradição fenomenológica na sua crítica à psicanálise Aplau dindo a boa nova das concepções de Freud para a crítica da filosofia do sujeito incluído ao lado de Nietzsche como aquele que perturbou esta tradição filosófica Althusser cri ticou os psicanalistas e os promotores da analítica exis tencial que aderiram ao silenciamento do discurso freudia no pela sedução teórica e mundana que estaria implicada na fenomenologia e no existencialismo Freud a filosofia 63 Não se inscrevendo na tradição fenomenológica Politzer valorizou no final da década de 1920 a ruptura teórica da psicanálise com a psicologia clássica e a promoção do des centramento da subjetividade Porém indicou também os obstáculos teóricos representados pelo mecanicismo fisica lista presente na metapsicologia para que a psicanálise pudesse refundar efetivamente a teoria da subjetividade que prometera Na esteira teórica de Politzer Dalbiez realizou nos anos 40 a crítica da doutrina freudiana mas enfatizou a impor tância do método inaugurado pela psicanálise isto é a in terpretação Com efeito por essa oposição conceitual Dal biez propunha que a metapsicologia fosse definitivamente descartada em nome da interpretação inovação teórica promovida por aquela De Politzer à Dalbiez portanto uma importante tendência teórica se consolidou no campo da filosofia francesa na qual a psicanálise foi concebida como um saber da interpretação e onde se criticava o mecanicismo presente na metapsicologia Foi nesse contexto histórico justamente que Lacan se constituiu efetivamente como autor nos anos 30 e 40 destacando já a crítica do cogito realizada pela psicanálise mas sustentando ao mesmo tempo a depuração da metapsicologia de seus modelos mecanicistas Baseouse aqui na fenomenologia sobretudo Hegel mas também Husserl para destacar a inovação teórica do conceito de inconsciente Na década de 1950 Hyppolite aproximou a interpretação promovida pela psi canálise com a fenomenologia do espírito de Hegel valo 64 Joel Birman rizando efetivamente o descentramento da subjetividade promovido por aquela Nos anos 60 Ricoeur procurou inscrever a psicanálise no campo da filosofia contemporânea enfatizando sua di mensão hermenêutica Indicou para isso que desde o século XIX se iniciou um processo teórico de suspeita em relação à consciência como lugar de produção da verdade que se evidenciou nos discursos de Nietzsche Marx e Freud Por tal motivo seria necessário evidenciar a produção dos enun ciados de verdade pelos métodos hermenêuticos advindos da lingüística da psicanálise e da filosofia da religião para se restabelecer o ser da consciência pelos caminhos indiretos da interpretação Tornar pois consciente o inconsciente continuava sendo ainda o imperativo da psicanálise e da filosofia para Ricoeur que acabou por inserir novamente Freud na tradição fenomenológica Entretanto o descentramento promovido pelo discur so freudiano não se restringiu apenas ao movimento que iria do registro da consciência para o do inconsciente Por isso mesmo a restauração promovida por Ricoeur é insufi ciente para acompanhar inteiramente a desconstrução do cogito enunciado pelo pensamento freudiano É o que se verá agora O outro No ensaio Para introduzir o narcisismo publicado em 1914 Freud enunciou um outro registro para o descentramento Freud a filosofia 65 proposto pela psicanálise Com efeito o que estaria em questão seria o eu e não mais apenas a consciência Isso porque nesse contexto a instância do eu passou a ser con cebida também como sexualizada não sendo mais direcio nada apenas pela busca desinteressada da verdade Portanto o eu seria também investido pela libido e deixaria assim de ter qualquer transparência nas suas operações cognitivas turvado que ficaria pelas suas exigências erógenas perden do então qualquer neutralidade na leitura do mundo Além disso o discurso freudiano formulou que o eu como instância totalizante do psiquismo e do corpo não seria originário como pensara anteriormente mas deriva do do investimento do outro Isso porque a condição pri meira do infante seria a da fragmentação promovida pelo autoerotismo e pela sexualidade perversapolimorfa Por tanto seria o outro quem promoveria a unidade do eu e do corpo através de uma imagem que teria a potência de unificação destes registros Constituirseia assim o narci sismo primário que estaria no fundamento do eu Caracte rizandose pela onipotência o eu visaria dominar a frag mentação originária Nessa perspectiva o eu seria uma condensação de investimentos erógenos articulado sempre em torno de uma imagem caucionada pelo outro de forma que aquele oscilaria permanentemente entre se autoinvestir e investir os objetos numa pontuação constante entre libido do eu e libido do objeto Não existiria mais aqui para Freud as pulsões de autoconservação sustentadas pelos interesses 66 Joel Birman vitais já que agora as pulsões do eu seriam também sexuais O que estaria em pauta portanto seria quanto o psiquismo deve conceder para si e quanto pode investir no outro numa modalidade de balança energética entre os registros do eu e dos objetos Dessa forma a subjetividade estaria sempre polarizada entre o eu e o outro num reconhecimento difícil deste pois a onipotência que a fundaria estaria referida sempre ao outro Por isso mesmo para Freud o eu onipotente teria que ser limitado na sua arrogância para que o narcisismo pu desse se deslocar de sua condição de primário para a de secundário Com isso o eu que se enuncia inicialmente como sendo o seu próprio ideal eu ideal teria que reco nhecer um ideal que lhe transcendesse para reconhecer a alteridade no outro ideal do eu a fim de poder se libertar da imagem alienada pela qual fora constituído Essa trans formação implicaria para Freud na experiência da castração condição de possibilidade do complexo de Édipo e do adven to das identificações sexuadas pelas quais as condições masculina e feminina seriam constituídas Com essa outra modalidade de descentramento por tanto o eu se constituiria a partir do outro não estando mais na origem já que seria forjado por derivação marcado para sempre pelas incidências do outro Essa incidência seria originariamente alienante no registro do eu ideal mas se transformaria posteriormente no registro do ideal do eu quando a intersubjetividade se constituísse onde ser reco nhecido pelo outro seria um imperativo De qualquer ma Freud a filosofia 67 neira o eu agora se inscreveria no campo do outro perden do então qualquer veleidade de autonomia absoluta osci lando para sempre entre os registros do eu ideal e do ideal do eu Foi por esse viés que Lacan introduziu Hegel na leitura da psicanálise na medida em que concebeu a constituição alienante do eu a partir da captura do outro processo denominado de estádio do espelho segundo os pressupostos da dialética do senhor e do escravo Nesse contexto a expe riência psicanalítica visaria agora a ruptura da imagem alienante do eu para que o sujeito pudesse finalmente se constituir Daí adviria o reconhecimento do sujeito no campo da transferência entre o analisante e o analista rom pendo definitivamente assim com as alienações imaginárias originariamente presentes no eu Habermas também considerou que a originalidade da psicanálise em relação às ciências da natureza e às ciências da cultura estaria nessa teorização específica do reconheci mento simbólico e da produção da alteridade Inscreveu pois a sua leitura da psicanálise no campo desse descentra mento que foi promovido neste momento do pensamento freudiano Contudo o registro da representação é o que está sempre em pauta nesses dois descentramentos iniciais Ape nas com o conceito de pulsão de morte isto é do enunciado sobre a existência de uma pulsão sem representação é que o descentramento promovido pela psicanálise passou a ter a pulsão como sua referência fundamental colocando em questão agora o registro da representação 68 Joel Birman O trágico e a diferença O conceito de pulsão se enunciou desde o início do discurso freudiano em 1905 nos Três ensaios sobre a teoria da sexua lidade Estava contudo sempre referido ao registro psíquico do inconsciente como fundador deste A pulsão seria assim fundamentalmente sexual mas se contraporia à dita pulsão de autoconservação que seria investida pelo interesse No entanto com o advento do conceito de narcisismo esta oposição caiu por terra pois agora todas as pulsões seriam sexuais O conflito psíquico seria fundado estritamente no registro sexual entre a libido do eu e a libido do objeto Porém com o enunciado do conceito de pulsão de morte em Além do princípio do prazer o discurso freudiano restabeleceu o conflito entre os registros do sexual e do não sexual No entanto o não sexual indicava agora o oposto da autoconservação e da ordem vital se enunciando como algo da ordem da morte que se oporia decididamente à pulsão de vida Com efeito se esta indicava uma potência de união e de reunião isto é o amor Eros no sentido platônico do termo a pulsão de morte indicava a desunião isto é a discórdia Tanatos Foi nesse contexto que Freud se valeu da referência a Empédocles para enunciar a presença da oposição insuperável entre o amor e a discórdia no funda mento da subjetividade É importante destacar como o conceito de pulsão de morte foi constituído desde 1915 no ensaio As pulsões e seus destinos no qual Freud formulou uma novidade teó rica Com efeito a força pulsional como exigência de Freud a filosofia 69 trabalho imposta ao psiquismo em função de sua inserção no corporal passou a ser concebida como autônoma em relação ao registro da representação Desta maneira se o circuito pulsional implicava na articulação entre a força e seus representantes afetivo e ideativo conjugados com os objetos de satisfação mediada pelo prazer o que Freud indicava agora é que tal circuito teria que ser constituído sempre pelo outro e pela mediação da pulsão de vida Portanto a representação como emergência que seria dos registros da visibilidade e da especularidade não seria mais um atributo intrínseco à pulsão e ao organismo conforme enunciara Freud nos Três ensaios sobre a teoria da sexualida de mas algo a ser constituído pelo outro enquanto repre sentante de Eros Seria este enfim que constituiria a ordem da vida a qual estaria insistentemente permeada pela irrup ção impactante de Tanatos Portanto esse descentramento colocou em questão o atributo da representação por sua vez não mais intrínseca à ordem da vida Esta seria atravessada agora pela morte como potência insistente de discórdia desarticulando sem pre a ordem da vida e exigindo que esta se reconstituísse permanentemente face às transgressões promovidas pela discórdia Se a representação é uma produção de Eros a pulsão de morte visaria sempre desconstruir as repre sentações estabelecidas exigindo novas ligações e a produ ção de outras representações psíquicas Freud se valeu aqui de Schopenhauer para dizer que anteriormente à hegemo nia do princípio do prazer o psiquismo se regularia origi nariamente pelo princípio do Nirvana sendo necessária a 70 Joel Birman incidência insistente de Eros para que o prazer se instituísse finalmente como princípio regulador da vida Digo isso porque Tanatos insiste também em transgredir a ordem da vida e o registro da representação exigindo sempre a pro dução de novas ligações e outras representações psíquicas Podese depreender disso que enunciar que o último descentramento formulado por Freud se refere à pulsão na qual a representação se acoplaria apenas num segundo tempo aos imperativos daquela implica em conceber o psiquismo como sendo movido por um confronto intermi nável de forças Entre o amor e a discórdia uma guerra permanente insiste em ser instituída no psiquismo de ma neira que representar como se processa esta guerra não é mais uma possibilidade fácil para a subjetividade Nem tampouco decisiva Não é um acaso certamente que nesse contexto de seu pensamento Freud enunciou que tanto o funcionamento psíquico como a experiência psicanalítica poderiam ser formulados com a metáfora da guerra Por isso mesmo não se poderia mais saber com antecipação qual seria o desdobramento de tal embate Foi justamente para falar dessa imprevisibilidade que Freud desenvolveu num ensaio tardio de 1937 denominado de Análise termi nável e interminável uma leitura trágica da subjetividade É claro que a psicanálise espera continuamente impor ao psiquismo o triunfo do dizer nesta guerra sempre reco meçada entre Tanatos e Eros É esta a sua aposta ética para que o circuito pulsional se ordene eroticamente e o princí pio do prazer possa sobrepujar o princípio do Nirvana Contudo nesta nova formulação o inconsciente como re Freud a filosofia 71 gistro mental se constituiria apenas em derivação com a ordenação do circuito pulsional no qual o representar po deria fundar aquele registro como um dos destinos da força pulsional As ressonâncias filosóficas desse terceiro descentra mento foram diversas Lacan aproximou a pulsão de morte do conceito de vontade de destruição de Schopenhauer assim como a compulsão de repetição articulada desde Freud com a pulsão de morte com a célebre leitura filosófica de Kierkgaard sobre a repetição Porém não se restringiu a isso A ênfase atribuída ao registro do real em oposição aos registros do imaginário e do simbólico que passou a domi nar as últimas formulações de Lacan indica claramente os limites do registro da representação no psiquismo Em de corrência disso Lacan não acredita mais aqui como foi o caso anteriormente no filosofema de Hegel de que o real é racional justamente porque o simbólico não teria mais agora a potência insofismável de transformar inteiramente o real Um resto seria sempre produzido como algo nunca absorvível pelo registro simbólico A leitura de Foucault sobre o advento da hermenêutica na modernidade no lugar da semiologia da Idade Clássica vai na mesma direção do último descentramento formulado por Freud Com efeito a idéia de confronto de forças é a que preside a sua aproximação teórica entre Marx Nietzsche e Freud na medida em que seria aquele que regularia o deslizamento infinito da linguagem Se Marx privilegiou a luta de classes e Nietzsche a produção de verdade como resultantes do confronto de forças a pulsão de morte como 72 Joel Birman discórdia seria agora imanente no escoamento insistente da linguagem que não teria mais uma origem absoluta para se imobilizar na sua vacilante mas infinita possibilidade de dizer Rosset realiza uma leitura de Freud que vai também nessa direção Aproximando agora Freud não apenas de Nietzsche e Marx na constituição da hermenêutica mas também de Schopenhauer Rosset inscreve a psicanálise no campo da filosofia trágica A pulsão de morte como potên cia da discórdia em oposição à pulsão de vida seria o signo mais eloqüente da inscrição do discurso freudiano no regis tro do trágico Da mesma forma Deleuze enfatizou o lugar do concei to de pulsão de morte no campo da filosofia da diferença que seria uma crítica ao estruturalismo Com efeito para se distinguir de Lacan ele enunciou que seria preciso diferen ciar os conceitos do instinto de morte e de pulsão de morte para sublinhar como em Freud este novo conceito não teria qualquer fundamentação na ordem da linguagem como ainda supunha Lacan Ao enfatizar isso Deleuze destaca como Foucault e Rosset a dimensão de confronto de forças que fundaria tal conceito Seria por esse viés que se poderia diferenciar os conceitos de repetição do mesmo e de repetição diferencial no campo de uma filosofia da diferença Portanto a radicalização da idéia de descentramento do sujeito se desdobrou na relativização da categoria de representação de maneira que agora seria o confronto de forças o que regularia o psiquismo na guerra insistente entre o amor e a discórdia A subjetividade se delineia agora num Freud a filosofia 73 estilo trágico Com isso a desconstrução do cogito cartesia no se realizou em três direções diferentes da consciência ao inconsciente do eu para outro e da representação à pulsão solapando os pressupostos da filosofia do sujeito Com isso o discurso freudiano passou a se inserir no campo da filosofia trágica e da filosofia da diferença incluindose também como instrumento teórico nos campos da arqueo logia da genealogia e da estética da existência formulados por Foucault Com a formulação final sobre o descentramento que se dirigia agora da representação para a pulsão Freud foi sendo progressivamente aproximado das filosofias de Nietzsche Marx Schopenhauer e Spinoza distanciandose das referências à Hegel à fenomenologia ao existencialismo e ao estruturalismo como se passava ainda quando a ênfase na leitura de seu pensamento focalizava os descentramentos iniciais Portanto com todos esses desdobramentos consi derando as problemáticas teóricas que constituiu o discur so freudiano delineou um campo de interlocução com a filosofia colocando para esta questões novas que veio a desenvolver pela incidência que sofreu da psicanálise En fim o discurso freudiano acabou por incorporar também alguns dos enunciados críticos formulados pela filosofia não obstante as reticências de Freud face a esta 74 Joel Birman Leituras recomendadas Birman J Freud e a interpretação psicanalítica Rio de Ja neiro Relume Dumará 1991 Psicanálise Ciência e Cultura Rio de Janeiro Jorge Zahar1994 Entre cuidado e saber de si Rio de Janeiro Relume Dumará 2000 2ª edição Deleuze G Diferença e repetição Rio de Janeiro Graal 1968 Derrida J Mal de Arquivo Rio de Janeiro Relume Dumará 2001 Foucault M As palavras e as coisas Lisboa Portugália 1968 Freud S A interpretação dos sonhos In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vols IV e V Rio de Janeiro Imago 1975 Três ensaios sobre a teoria da sexualidade In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vol VII Rio de Janeiro Imago 1975 Metapsicologia In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vol XIV Rio de Janeiro Imago 1975 Conferências introdutórias à psicanálise In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vols XV e XVI Rio de Janeiro Imago 1975 75 Novas Conferências Introdutórias à psicanálise In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Comple tas de Sigmund Freud Vol XXII Gay P Freud Uma vida para o nosso tempo São Paulo Companhia das Letras 1989 Lacan J O estádio do espelho como formador da função do eu In Lacan J Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 Função e campo da fala e da linguagem em psica nálise In Lacan J Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 Roudinesco E e Plon M Dicionário de Psicanálise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1999 76 Joel Birman Sobre o autor Joel Birman é professor titular do Instituto de Psicologia da UFRJ e professor adjunto do Instituto de Medicina Social da Uerj Psicanalista cursou mestrado em Filosofia PUCRJ 1976 doutorado em Filosofia USP 1984 e pósdoutorado em Psicanálise Paris VII 1996 Publicou diversos livros dentre os quais Freud e a interpretação psicanalítica Relu me Dumará 1989 Ensaios de teoria psicanalítica Jorge Zahar 1992 Psicanálise ciência e cultura Jorge Zahar 1993 Por uma estilística da existência Ed 34 1996 Estilo e Modernidade em psicanálise Ed 34 1997 Cartografias do feminino Ed 34 1999 Malestar na atualidade Civiliza ção Brasileira 1999 Entre o cuidado e saber de si Relume Dumará 2000 e Gramáticas do erotismo Civilização Bra sileira 2001 77
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FREUD A FILOSOFIA Joel Birman FILOSOFIA PASSOAPASSO 27 JORGE ZAHAR EDITOR Coleção PASSOAPASSO CIÊNCIAS SOCIAIS PASSOAPASSO Direção Celso Castro FILOSOFIA PASSOAPASSO Direção Denis L Rosenfield PSICANÁLISE PASSOAPASSO Direção Marco Antonio Coutinho Jorge Ver lista de títulos no final do volume Joel Birman Freud a filosofia Rio de Janeiro Copyright 2003 Joel Birman Copyright desta edição 2003 Jorge Zahar Editor Ltda rua México 31 sobreloja 20031144 Rio de Janeiro RJ tel 21 21080808 fax 21 21080800 email jzezaharcombr site wwwzaharcombr Todos os direitos reservados A reprodução nãoautorizada desta publicação no todo ou em parte constitui violação de direitos autorais Lei 961098 Composição eletrônica TopTextos Edições Gráficas Ltda Impressão Cromosete Gráfica e Editora Capa Sérgio Campante CIPBrasil Catalogaçãonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ B521f Birman Joel 1946 Freud a filosofia Joel Birman Rio de Janeiro Jorge Zahar Ed 2003 Passoapasso 27 ISBN 8571107416 1 Freud Sigmund 18561939 2 Psicanálise e filo sofia I Título II Série CDD 1501952 031760 CDU 1599642 Sumário Introdução 7 Interlocução com a filosofia 8 Negatividade e inadequação 17 Sentido e verdade 25 Inconsciente e desejo 38 Metapsicologia metafísica e interpretação 44 Desconstrução do sujeito 49 Descentramentos 58 Da consciência ao inconsciente 61 O outro 65 O trágico e a diferença 69 Leituras recomendadas 75 Sobre o autor 77 Introdução A finalidade deste livro é a de delinear a constituição e o desenvolvimento teóricos do pensamento freudiano naqui lo que este colocou como questões para o discurso filosófico desde a fundação da psicanálise na passagem do século XIX para o século XX Com a construção desta Freud circuns creveu algumas problemáticas teóricas que foram cruciais para a filosofia que respondeu devidamente a isso Efetiva mente com críticas e objeções mas também com reconhe cimento pela pertinência das problemáticas que foram es boçadas a filosofia estabeleceu um diálogo franco com a psicanálise Essa interlocução bastante viva entre psicanálise e filosofia atravessou a totalidade do século passado de maneira a tecer uma verdadeira história entre as duas disci plinas A psicanálise acabou por incorporar uma série de ponderações críticas formuladas pela filosofia da mesma forma que esta também inscreveu no seu corpo teórico uma série de questões enunciadas pela psicanálise Aconte ceu enfim um rico processo de interpelação recíproca que fertilizou ambas as disciplinas por caminhos quase sempre inesperados e marcados por surpresas instigantes 1175033 7 A incidência da psicanálise no discurso filosófico inter pelou este numa tradição teórica muito especial a qual se centrava fundamentalmente na concepção de sujeito Com efeito a filosofia do sujeito foi questionada pela psicanálise de maneira precisa na medida em que para ela o sujeito estaria sempre inscrito no campo da consciência e se enun ciava no registro do eu enquanto a psicanálise formulou o descentramento do sujeito em ambos os registros citados Foi tal problemática que delineou a interlocução entre psicaná lise e filosofia e de onde se derivaram em cascata todas as demais problemáticas teóricas que formalizaram essa inter locução Por isso mesmo o que estará aqui presente é a consti tuição dessa problemática E pelo viés agudo dessa interlo cução que se esboça este ensaio introdutório ao pensamento de Freud O que implica dizer que este pensamento foi re cortado neste contexto específico com a finalidade de subli nhar as torções e retorções estabelecidas por este diálogo Interlocução com a filosofia Freud não era um filósofo Esta é a primeira afirmação a ser feita aqui Nunca pretendeu tampouco que com a constitui ção da psicanálise estivesse formulando algo que pudesse aproximálo efetivamente do trabalho filosófico Por isso mesmo pode parecer estranho que o seu discurso teórico se inscreva aqui numa coleção dedicada a autores de referên cia da tradição filosófica 8 Joel Birman Por que Freud aqui afinal das contas Um ruído se introduz então bruscamente na medida em que ele não construiu efetivamente uma filosofia Além disso manifes tava em geral uma certa ojeriza ao discurso filosófico como foi enunciado literalmente em alguns textos Com efeito num ensaio tardio sobre a visão de mundo de 1932 inserido nas Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise Freud opôs a psicanálise à filosofia dizendo que a primeira não era absolutamente uma Weltanschaung como pretendia ser a segunda Isso porque pelos procedi mentos presentes no discurso científico a psicanálise se voltaria para a pesquisa de objetos circunscritos enquanto a filosofia pretendera captar sempre a totalidade do ser e do real Concepção discutível do discurso filosófico podese certamente dizer sobre isso mas era a que Freud supunha ser no fechamento crítico de seu percurso teórico Uma leitura radical portanto da filosofia e de sua diferença absoluta com a psicanálise foi enunciada então por Freud permeada pela oposição aguda entre os discursos de ciência e da filosofia Seria apenas esta a concepção de filosofia presente no discurso de Freud para diferenciála devidamente da psica nálise Certamente não é Assim em Totem e Tabu publica do em 1913 ele construiu uma comparação entre diferentes formações culturais e diversas formações sintomáticas O que nos dizia sobre isso Se a histeria era quase uma obra de arte e a neurose obsessiva quase uma religião a filosofia seria então quase um delírio paranóico É preciso destacar logo que Freud não afirmou absolutamente a identidade essen Freud a filosofia 9 cial existente entre essas formações discursivas e as diversas patologias psíquicas mas se valeu sempre da palavra quase O que implica dizer que formulou que a histeria se asseme lharia a uma obra de arte da mesma forma que a religião e a filosofia se pareceriam bastante com as discursividades obsessiva e paranóide Ou seja o discurso freudiano enun ciou que essas diferentes modalidades psicopatológicas de discurso poderiam efetivamente ser como essas diversas formações discursivas existentes na cultura caso as subjeti vidades implicadas na sua produção tivessem a possibilida de de empreender a sublimação das pulsões sexuais e reali zar então obras de cultura Existiria sempre um processo sublimatório presente nas diferentes formações culturais mas que não estaria em ação nas ditas situações psicopato lógicas Porém mesmo considerando essas ponderações críti cas a similaridade estrutural e as formas de funcionamento psíquico implicadas nessas formações de cultura e nas for mações psicopatológicas se enunciaram com toda a elo qüência Com efeito Freud formulou que existiria um estilo de ser similar entre a exibição sedutora presente na histeria e a obra de arte assim como entre as cavilações culposas presentes nas obsessões e nos sistemas religiosos da mesma maneira que a ordenação lógica perfeita mas fundada numa base falsa presente nos delírios paranóicos seria pró xima da forma filosófica de discursividade Podese de preender disso portanto que Freud mantém sempre o discurso filosófico sob certa suspeita estando sempre com um pé atrás em relação a ele na medida em que a sistema 10 Joel Birman ticidade da argumentação lógica naquele presente não se apoiaria num ponto de partida incontestável que seria duvidoso quanto à sua veracidade Foi por isso mesmo aliás que voltou à questão logo depois em 1915 no ensaio O inconsciente Procurando diferençar agora entre a neurose e a psicose afirmou que na primeira existiria uma articulação precisa entre repre sentaçãocoisa e representaçãopalavra enquanto na se gunda a subjetividade deslizaria sempre no vazio da repre sentaçãopalavra Portanto Freud acabou por concluir de maneira surpreendente aliás que a esquizofrenia funciona ria como a filosofia Tanto nesta como naquela o discurso se teceria apenas em torno de palavras sem se preocupar nunca com o registro das coisas Assim o delírio e o discurso filosófico funcionariam de maneira similar pois em ambos a subjetividade manejaria sempre as palavras como se fos sem coisas não tendo então a devida exigência de submeter o discurso ao imperativo do teste da realidade O que é uma forma de dizer enfim que o discurso filosófico não passaria de um delírio sistematizado de características paranóides Não foi apenas isso que Freud falou da filosofia e nem sempre assim Existiram também outros contextos de sua obra com efeito nos quais se referiu à filosofia de maneira respeitosa e até mesmo bem mais próximo daquilo que se fazia em psicanálise Podese então contrapor essa perspec tiva posterior francamente crítica de Freud em relação à filosofia ao que teria dito no início de seu percurso sobre esta Isso pode nos evidenciar um giro de cento e oitenta graus na sua relação com a filosofia O contexto dessa Freud a filosofia 11 evidência é a sua correspondência com Fliess nos últimos anos do século XIX Fliess era um otorrinolaringologista que morava em Berlim e a quem Freud atribuía uma elevada respeitabili dade científica Por isso mesmo compartilhava com ele as suas primeiras concepções psicanalíticas esperando o seu reconhecimento teórico Pois bem o que disse Freud para Fliess sobre a filosofia no momento crucial de invenção da psicanálise De maneira curta e grossa Freud afirmou que estava finalmente realizando o seu desejo de ser um filósofo com a invenção da psicanálise Ao lado disso enunciou ainda para o espanto dos leitores que nunca tivera talento para a terapêutica apesar de sua atividade médica Espanto relativo seguramente Isso porque Freud teve uma forma ção inicial como pesquisador em anatomia do sistema ner voso a qual teve de abandonar por falta de recursos finan ceiros dedicandose então à clínica neurológica Portanto no contexto de constituição da psicanálise Freud aproxima va esta da filosofia e a afastava da medicina Enfim a psica nálise nada tinha a ver com a prática médica e não tinha qualquer pretensão terapêutica estando bem mais próxima da filosofia Podese enunciar assim que nas pontas extremas de seu percurso teórico Freud não apenas manifestou juízos diferentes e opostos sobre a filosofia como também realizou operações contrapostas de franca aproximação e de abso luto distanciamento entre psicanálise e filosofia É preciso reconhecer que o que estava em questão para Freud nessas diferentes conjunturas não era certamente a mesma coisa 12 Joel Birman Portanto é preciso distinguir devidamente o que estava em pauta para ele nesses diferentes contextos Além disso deve se considerar ainda quais eram as diversas concepções de filosofia enunciadas por Freud nesses diferentes mo mentos Desta maneira existe uma interlocução latente da psicanálise com a filosofia que perpassa a totalidade do discurso freudiano Essa interlocução evidencia não apenas as diferentes concepções de Freud sobre o que seja efeti vamente a filosofia mas também como ele diferenciava a psicanálise da filosofia nos seus diversos momentos teó ricos As oscilações entre a atração fatal e a ojeriza tempe raram sempre o estilo de Freud na sua leitura teórica disso A filosofia como discurso permeia então o horizonte teórico do pensamento freudiano como uma miragem em filigrana que Freud deve sempre se demarcar de maneira pontual A fundação da psicanálise como saber é o que estará sempre em pauta no campo tenso dessa interlocução estan do Freud constantemente impulsionado por razões episte mológicas nas suas diferentes tomadas de posição no que concerne a filosofia Com efeito nas diferentes formulações de Freud sobre a filosofia houve sempre o esforço continua mente renovado para delinear tanto o fundamento como as fronteiras da psicanálise A legitimidade da psicanálise como saber é o que estará aqui sempre em questão nas aproximações e distanciamentos abruptos esboçados pelo discurso freudiano com a filosofia Foi por isso que aludi à noção de fronteira que remete necessariamente para a de Freud a filosofia 13 território na medida em que a fundamentação epistemoló gica referida não é alheia à noção de soberania no sentido político do termo Podemos nos indagar ainda contudo se tais fronteiras do território psicanalítico não seriam basicamente móveis e sempre em processo de deslocamento marcadas pela porosidade Dessa maneira a imagem da borda caracteri zada pelas imagens da fluidez mobilidade e porosidade de suas linhas de força seria bem mais adequada que a de fronteira compacta para descrever o território de legitimi dade teórica da psicanálise Por esse viés portanto poder seia ter aqui uma perspectiva mais perscrutadora para empreender as contraditórias e paradoxais leituras de Freud sobre a filosofia No entanto as intenções epistemológicas do pensa mento freudiano voltadas para a fundação da psicanálise não esgotam as relações deste com a filosofia Isso porque é preciso evocar ainda o campo de recepção daquela por esta a qual faz parte também da problemática dessa interlocução crítica inclusive em seu campo histórico Com efeito a filosofia leu o discurso freudiano de diferen tes maneiras em contextos teóricos e históricos diversos É preciso pois dar lugar a isso também nem que seja de maneira esquemática e alusiva pois se constituiu uma história de recepção da psicanálise pela filosofia Porém para que tudo isso se empreenda devidamente é preciso indicar previamente a direção metodológica que me orientou nessa empreitada Assim o discurso freudiano será aqui considerado nas suas proposições teóricas que 14 Joel Birman formam um conjunto articulado de enunciados É isso que o constitui como um discurso propriamente dito Eviden temente Freud formulou vários discursos ao longo de sua obra submetidos que foram os enunciados conceituais a regras e a contextos teóricos diferentes A obra em questão foi sendo constituída como um processo sempre recomeça do Daí a pertinência da imagem da borda para se referir ao território da psicanálise Podese falar em discursos no plu ral e não no singular para se referir ao pensamento freudia no Dito isso no entanto é preciso privilegiar os diversos conjuntos discursivos que foram forjados nesse percurso Vale dizer o discurso freudiano enunciou uma série de pressupostos e teses sobre a subjetividade construindo en tão leituras sobre o psiquismo Dessas formulações decor reu uma série de conseqüências e desdobramentos teóricos imprevisíveis no horizonte de Freud Tudo isso se eviden ciou na recepção do pensamento freudiano constituindo uma história desta Foi pela consideração disso portanto que a comunidade filosófica se manifestou em relação à psicanálise E foi também justamente para tratar disso que este livro foi escrito Assim é preciso justificar teoricamente a importância e a presença do pensamento freudiano no campo do discurso filosófico Isso porque aquele não pode se inscrever neste por uma razão da ordem do fato mas apenas da ordem do direito para me valer de uma célebre oposição enunciada por Kant Ou seja Freud não era de fato um filósofo mas acabou por constituir a psicanálise como um novo campo do saber que formulou novos pressupostos Freud a filosofia 15 sobre a subjetividade Seu pensamento ligase diretamente ao filosófico pela problemática que a psicanálise colocou para a filosofia Qual foi a problemática que a construção do discurso psicanalítico colocou para a filosofia e em que sua invenção teórica interpelou a filosofia efetivamente Estas são as úni cas questões de direito que podem ser legitimamente reivin dicadas aqui tendo pois alguma pertinência teórica Dessa maneira qualquer outra questão por mais instigante que seja deve ser aqui considerada como secundária e até mes mo como irrelevante Assim se um dos fios de prumo deste percurso é o de procurar destacar os efeitos da filosofia sobre a psicanálise o outro será o de sublinhar a importância que assumiu o discurso freudiano para a filosofia isto é quais foram os seus efeitos no campo desta O que implica afirmar que estamos aqui face a uma pluralidade de efeitos que o discur so freudiano disseminou sobre o campo da filosofia provo cando geralmente estranheza quando não franca discórdia Porém a harmonia a incorporação e a ressonância positiva também aconteceram no contexto teórico de algumas retó ricas filosóficas Para percorrer esquematicamente então as diferentes direções acima consideradas e costurar os seus fios num bordado que seja consistente vamos começar por alinhavar a fundação teórica da psicanálise como saber esboçando as rupturas conceituais realizadas por Freud com a neuropa tologia e a psicologia da segunda metade do século XIX Perfilase já aqui a interlocução da psicanálise com a filoso 16 Joel Birman fia na medida em que tanto a neuropatologia quanto a psicologia daquele momento se inscreviam em certos pres supostos filosóficos Negatividade e inadequação A invenção da psicanálise como saber se realizou pela for mulação da existência do inconsciente como um outro registro psíquico além da consciência Foi esta descoberta empreendida por Freud que teve a potencialidade teórica de subverter os saberes sobre o psiquismo então instituídos a psiquiatria e a psicologia A psiquiatria como saber voltado para a elucidação e o tratamento das perturbações mentais era um discurso então bastante recente constituído que foi na passagem do século XVIII para o século XIX com o advento da Revolução Francesa Esta foi a tese formulada por Foucault na já famosa História da loucura A instituição do asilo como lugar designado para o cuidado dos loucos foi a positivação social da psiquiatria Isso porque essa nova institucionali dade para a loucura rompeu decididamente com o Hospital Geral estabelecido no Antigo Regime no século XVII no qual loucos criminosos indigentes e toda a escória dos demais excluídos do campo social eram confusamente mis turados num mesmo espaço Nesse contexto a psiquiatria considerou os loucos como doentes mentais portadores que seriam de uma enfermidade tanto quanto qualquer outra aliás descrita pela medicina somática A psiquiatria Freud a filosofia 17 portanto reivindicava os seus direitos de ser uma especiali dade médica Contudo os problemas que se colocavam para a psi quiatria começavam justamente aqui na medida em que a sua legitimidade médica era discutível Isso porque era teo ricamente impossível inscrever a alienação mental nos câ nones da medicina já que a psiquiatria não conseguia defi nila de acordo com os recentes critérios postulados pela medicina somática Esta foi estabelecida como clínica na passagem do século XVIII para o século XIX fundandose na racionalidade anátomoclínica enunciada por Foucault no Nascimento da clínica Segundo essa racionalidade as enfer midades se materializariam sempre por uma lesão anatômi ca a qual explicaria os diferentes sintomas presentes nas diversas doenças somáticas mesmo que estas pudessem ter causas diferentes e múltiplas O que se colocou como um real impasse teórico para a psiquiatria foi a sua impossibilidade de inscrever a alienação mental nessa exigência epistemológica de forma a se legiti mar como uma especialidade médica Isso porque o corpo anatômico dos ditos alienados se mostrava silencioso em relação à questão não evidenciando qualquer lesão capaz de justificar a pretensão médica da psiquiatria Com efeito os cérebros dos supostos doentes definido pela psiquiatria como sendo o órgão onde as lesões deveriam ocorrer não indicavam absolutamente sinais das mesmas Como legiti mar então que fosse uma enfermidade Essa impossibilidade debilitava a posição teórica dos autores que sustentavam uma leitura somática da alienação 18 Joel Birman mental e reforçava a daqueles que formulavam uma leitura moral para esta Com efeito se os loucos tinham perdido decididamente a razão estando isso pois no fundamento da enfermidade mental tal fato não se deveria contudo a uma lesão somática mas a uma transformação de ordem moral Esquirol que ao lado de Pinel foi um dos fundadores da psiquiatria enunciou que as paixões excessivas estariam no fundamento dessa alienação Por isso mesmo o trata mento moral era aquilo que a comunidade psiquiátrica se propunha efetivamente a realizar para promover a desalie nação mental A internação dos alienados seria enfim o ato inaugural do tratamento moral Entretanto no momento de sua fundação a psiquiatria formulou efetivamente a possibilidade teórica da cura da alienação mental não obstante os seus impasses de se legi timar como um discurso médico Foi em nome disso que os loucos foram retirados da promiscuidade existente nos Hospitais Gerais e inseridos nos asilos A produção da desalienação mental era a finalidade a ser alcançada pelo dito tratamento moral na medida em que a loucura passou então a ser efetivamente concebida como doença mental Essa postura teórica da psiquiatria a diferenciava da quela existente no Antigo Regime no qual se dizia que a perda da razão era incontornável isto é uma vez perdida a razão permanecerseia assim eternamente O modelo teó rico da perda da razão era então o da demência na qual existiria a perda total e absoluta das faculdades intelectuais Contudo com a constituição da psiquiatria o modelo teó Freud a filosofia 19 rico da perturbação da razão era evidenciado agora pelo delírio sendo pois a alienação o paradigma da loucura Esses diferentes momentos da história da loucura tive ram ressonâncias significativas no discurso filosófico Pode se reconhecer em Kant a leitura da loucura como perda irreversível da razão caucionando a interpretação vigente no Antigo Regime Em contrapartida Hegel aplaude o então jovem saber psiquiátrico justamente porque sustentava que a curabilidade da loucura seria possível na medida em que esta não se fundaria mais na perda da razão mas apenas na sua alienação Com efeito na Enciclopédia das ciências filo sóficas Hegel identificou o seu projeto teórico com o da psiquiatria justamente porque a alienação mental não seria uma perda da razão mas uma transformação possível dessa inscrevendose portanto de maneira constitutiva no pró prio campo da racionalidade por aquele delineada A lou cura então como alienação mental indicaria uma parada do movimento dialético do espírito sendo a terapêutica daquela a condição de possibilidade para a retomada do movimento que fora paralisado Podese dizer enfim que as ditas paixões excessivas aludidas por Esquirol estariam no fundamento da estagnação do tal movimento dialético cuja conseqüência crucial seria a produção do delírio e da alienação mental Entretanto o discurso psiquiátrico se deslocou do lu gar estratégico que ocupava no momento de sua fundação na segunda metade do século XIX tendo progressivamente se afastado e se descartado da causalidade moral assim 20 Joel Birman como do seu correlato qual seja a aposta na transformação da alienação mental Com efeito as hipóteses biológicas passaram a ocupar então uma posição cada vez mais domi nante na psiquiatria principalmente sob a forma das teorias da hereditariedade e da degenerescência de forma a colocar cada vez mais num plano subalterno qualquer perspectiva terapêutica A causalidade somática articulada numa con cepção mais vasta sobre os impasses presentes na civilização moderna acabou por sobrepujar qualquer veleidade teórica sobre a causalidade moral no campo da loucura De qualquer forma na leitura psiquiátrica a alienação mental era estritamente considerada no registro da cons ciência entre os teóricos que sustentavam para aquela uma causalidade moral Para os somaticistas também o psiquis mo estava restrito ao campo da consciência de maneira que seria sempre nesta que incidiriam as alterações primordial mente cerebrais Vale dizer as perturbações psíquicas se riam aqui um simples epifenômeno daquilo que se produ ziria silenciosamente na estrutura cerebral Ao lado disso a psicologia clássica que se centrava no estudo das faculdades mentais a sensação a percepção a atenção a memória a imaginação e o entendimento estava também referida à consciência O psíquico portanto era completamente identificado com o ser da consciência estando apenas nesta a sua verdade A subjetividade estava fundada na consciência e nela se inscreveria o eu Era este o discurso psicológico dominante no século XIX não obs tante a então recente constituição da psicologia experimen tal na Alemanha a partir dos anos 1850 Freud a filosofia 21 No final do século XIX portanto a psicologia clássica tinha já uma longa história iniciandose com a filosofia de Descartes e tendo continuidade com a tradição cartesiana Como se sabe o cogito cartesiano penso logo exito definiu a categoria de existência como estando essencial mente atrelada ao registro do pensamento Estariam aqui o fundamento e a certeza da subjetividade Em decorrência a tradição da psicologia clássica nisso fundada se voltava sobretudo para a pesquisa do pensamento de forma que o estudo das demais funções mentais era realizado com a finalidade de explicar a produção e a reprodução do enten dimento Pretendiase pois explicitar não apenas como funcionava o pensamento mas também enunciar quais seriam os seus pressupostos formais e materiais Isso porque a certeza da existência do eu circulava sempre e apenas em torno do pensamento Neste contexto a imaginação era constantemente con siderada de maneira negativa na medida em que não ofe recia subsídios positivos para a elucidação do entendimen to Pelo contrário aliás pois os devaneios da imaginação afastavam a racionalidade do caminho reto do conhecimen to Assim a pesquisa sobre os sonhos não tinha qualquer lugar no campo da psicologia clássica já que não entreabria caminho algum para a compreensão do entendimento como era o caso das funções da sensação da percepção da atenção e da memória Vale dizer a dita psicologia clássica se fundava num paradigma racionalista voltandose deci didamente para o registro da cognição e para a efetiva produção do conhecimento 22 Joel Birman Podese entrever assim os impasses que foram colo cados tanto para a recente psiquiatria quanto para a psicologia clássica ao se defrontarem com a experiência da loucura naquilo que ela revelava de mais fundamental a existência de alucinações e delírios Isso porque a formulação de critérios puramente cognitivos para descre vêlas servia apenas para enunciar tais formações psíquicas como pura negatividade Com efeito a alucinação era sempre caracterizada como uma modalidade de falsa per cepção e o delírio como sendo um juízo errôneo sobre a realidade Seria isso o que fundaria a alienação mental nas suas diversas modalidades de existência Tudo isso carac terizaria o desvario da razão e a desordem profunda do entendimento Ou seja a psiquiatria e a psicologia clássica ao se restringirem aos registros da consciência do eu e do pensa mento para conceberem a subjetividade ficaram reduzidas à oposição verdadeirofalso para realizar a leitura das per turbações do espírito Não existiria portanto qualquer po sitividade na experiência da loucura mas apenas pura ne gatividade isto é nas alucinações e nos delírios a subjetivi dade nada dizia Existiria aqui pois pura perda no desvario do espírito Na experiência da loucura enfim a subjetividade não se expressaria sendo pois a mais decantada forma de errância do psiquismo Assim a subjetividade era concebida como fundada apenas nos registros da consciência do eu e do pensamento pelos quais o critério da adequação do eu com os objetos do mundo era o único a ser destacado na leitura do psiquismo Freud a filosofia 23 A categoria de verdade supunha essa adequação de maneira que os pensamentos seriam julgados verdadeiros se ela existisse Em decorrência disso a alucinação seria sempre considerada como uma falsa percepção e o delírio não passaria de um juízo errôneo sobre um acontecimento qualquer Enfim para essas concepções teóricas não existi ria qualquer verdade na experiência da loucura sendo esta pois o grau zero da veracidade Isso tudo sem atentar evidentemente ao recente campo patológico das monomanias descritas então pela psiquia tria caracterizadas pela loucura parcial Assim como revela literalmente o próprio nome que os designa os monoma níacos seriam pessoas normais em quase tudo com a exce ção de uma só dimensão de seu espírito na qual manifestam todo o seu desvario Nesse contexto o critério de adequação do eu à realidade é bastante problemático para caracterizar tais perturbações pois não é facil compreender bem como a subjetividade pode ser perfeitamente bem adaptada no que se refere a quase tudo salvo num único ponto onde o desvario explode A invenção da psicanálise foi uma subversão no campo dos saberes sobre o psíquico justamente porque articulou uma elegante solução teórica para os impasses então pre sentes tanto na psiquiatria quanto na psicologia clássica Ao formular o conceito de inconsciente deslocou decisivamen te o psiquismo dos registros da consciência e do eu Os efeitos teóricos dessa invenção não foram imediatos no entanto exigindo um longo tempo de decantação no inte rior do discurso freudiano É o que veremos agora 24 Joel Birman Sentido e verdade O gesto teórico realizado pelo discurso freudiano foi o de deslocar a problemática da loucura do registro da adequa ção entre o eu e o objeto para o da produção do sentido Foi nessa inflexão que o enunciado do conceito de incons ciente pôde encontrar as suas devidas dimensões Para isso no entanto o discurso freudiano teve que reconhecer os estritos limites dos registros do eu e da consciência no psiquismo Como se construiu essa consistente hipótese de trabalho Quais foram os caminhos trilhados pelo discurso freudiano para constituíla Freud partiu da experiência clínica no campo da neu ropatologia daquilo que nessa se evidenciava como o seu impasse a questão da histeria Esta era enigmática justa mente porque questionava a medicina no seu fundamento anátomoclínico pois apresentava uma série de sinais e sintomas que não podiam ser explicados pela anatomia patológica Em decorrência disso interpelava o discurso clínico já que existiam nela sofrimento e sintomas corpó reos mas sem a evidência de qualquer lesão anatômica Em contrapartida abalada de maneira frontal na sua certeza teórica a medicina passou a caracterizar os histéricos como mentirosos e fabuladores que inventavam sintomas inexis tentes A histeria não passaria assim de simulação e de um amontoado de enganações O histérico seria uma completa fraude não enunciando então qualquer verdade nas suas queixas Não obstante tudo isso alguns neurologistas im portantes se voltaram para a investigação da histeria na Freud a filosofia 25 segunda metade do século XIX Procuravam enfim decifrar o seu enigma teórico Charcot inicialmente Célebre neuropatologista fran cês de quem Freud foi discípulo Charcot se dedicou intei ramente à pesquisa da histeria no final do seu percurso científico após ter realizado o trabalho exaustivo de classi ficação das enfermidades neurológicas pelo viés da raciona lidade anátomoclínica Porém não a conseguiu inscrever no registro dessa racionalidade Avançou muito em seu estudo supondo que existiam traumas produzidos por aci dentes ferroviários na etiologia da histeria A utilização da hipnose lhe permitiu além disso reconhecer que existiam experiências psíquicas que não eram ditas em plena cons ciência mas apenas no luscofusco de sua suspensão No entanto formulou que existiria na histeria uma lesão ana tômica de ordem funcional e que no futuro as pesquisas biológicas iriam evidenciar a sua positividade Charcot per maneceu enfim no registro da racionalidade anátomoclí nica não obstante os seus avanços teóricos no que tange ao trauma e à hipnose Em contrapartida Bernheim um outro pesquisador da Suíça com quem Freud estabeleceu trocas científicas supunha que a histeria seria sempre produzida pela suges tão e até mesmo pela autosugestão Os histéricos seriam portanto seres sugestionáveis Daí por que poderiam ser curáveis pela hipnose na medida em que esta realizaria um trabalho de contrasugestão Situado entre esses pólos teóricos Freud realizou a crítica sistemática de ambos Se não concordava com 26 Joel Birman Charcot no que se refere à lesão anátomofuncional não estava também de acordo com Bernheim no que tange à ausência de qualquer substrato para a sugestionabilidade na histeria Com efeito esse substrato se materializaria agora num traço psíquico não tendo pois qualquer posi tividade anatômica Porém Freud aprendeu com eles pela hipnose que existia uma região psíquica que estava fora do campo da consciência e do controle do eu Ao lado disso a hipnose lhe ensinou a potência da linguagem na produção e na cura dos sintomas desde que a fala pudesse circular entre duas figuras na qual a primeira o enfermo investisse a segunda o médico de um poder terapêutico Portanto foi pela articulação estabelecida entre traço psíquico e linguagem na qual estes se imantavam numa relação intersubjetiva permeada pelo afeto que o conceito de inconsciente se constituiu Para costurar devidamente essa concepção Freud contou ainda com um terceiro mestre que lhe entreabriu outras possibilidades teóricas Aprendeu com Breuer que a histeria seria sempre produzida por uma alteração par ticular da consciência denominada de estado hipnóide o qual seria engendrado pela hipnose mas também nas situações traumáticas Nestas com efeito a dor psíquica disso decorrente conduziria a subjetividade ao estado hipnóide do qual se seguiria sempre uma divisão da consciência de onde se originariam infalivelmente todos os sintomas histéricos Breuer enfrentou corajosamente portanto o espinhoso problema da divisão da consciência assim como o das múltiplas personificações presentes na Freud a filosofia 27 histeria que estavam bastante em voga na segunda metade do século XIX remetendo tudo isso para uma causalidade traumática Freud aderiu inicialmente à concepção do trauma um corpo estranho no psiquismo enunciando que seria sempre produzido pelo excesso de excitação nele presente em de corrência do fato de que o eu não teria respondido a algo que o teria ofendido Conseqüentemente o eu dividiria a consciência pela qual uma das partes expulsaria a outra de seu território como uma forma radical de proteção do eu para que este não tivesse mais contato com aquilo que lhe ofendera Contudo aquilo que fora excluído retornava sem pre de maneira oblíqua através de sintomas somáticos denominados de conversão Isso evidenciaria a transforma ção de um sofrimento psíquico supostamente mais pertur bador numa dor somática Seria essa a maneira indireta de o eu se recordar do que lhe tinha acontecido Por isso mesmo Freud e Breuer enunciaram a fórmula canônica segundo a qual os histéricos sofrem de reminiscências que subverteu inteiramente a interpretação da histeria Foi nesse contexto ainda que ambos conceberam o método catártico para o tratamento da histeria Cabia as sim colocar o indivíduo novamente sob hipnose em con tato ativo com o que vivera de penoso para possibilitar então que pudesse responder devidamente ao que não pôde empreender no momento traumático Com isso o corpo estranho retornaria ao registro da consciência e o eu se unificaria novamente revertendo a conversão estabeleci 28 Joel Birman da no registro somático e fazendo desaparecer então os sintomas Portanto a rememoração possibilitaria ao eu se libertar definitivamente das reminiscências dolorosas O tratamen to catártico seria assim uma purgação de afetos que permi tiria a inclusão das reminiscências no registro da consciên cia suspendendo então a sua divisão A Poética de Aristóte les incidiu decididamente aqui sobre o discurso freudiano enfim que nela se baseou diretamente para forjar o conceito de catarse No entanto as diferenças entre Freud e Breuer apare ceram logo em seguida não obstante as suas concordâncias iniciais Isso porque para este o trauma não tinha qualquer caráter sexual o que era a suposição daquele Para Breuer com efeito qualquer experiência dolorosa que produzisse excesso no campo da consciência seria efetivamente trau mática enquanto para Freud apenas as que tinham uma marca sexual poderiam produzir o referido excesso Para ele o corpo estranho como eixo de constituição da consciência segunda tinha sempre um sentido sexual Por isso mesmo se Freud admitia inicialmente que a histeria pudesse se configurar em diversas modalidades clínicas como sendo hipnóide de retenção e de defesa 1894 pouco depois passou a formular que só podia existir a histeria de defesa 1896 Todas as outras modalidades de histeria seriam a esta reduzida O conceito de defesa se destacou então no discurso freudiano como uma poderosa operação do eu para tentar silenciar uma experiência dolorosa que seria sempre sexual Vale dizer a ofensa de que a subjetividade Freud a filosofia 29 teria sido objeto carregaria sempre para Freud uma infalí vel marca erótica O que implica afirmar isso Diante de um trauma sexual o eu procura expulsar da consciência as repre sentações desprazerosas que tornariam o trauma presente e que o evocariam Existiria então uma atividade psíquica do eu no ato mesmo da expulsão não sendo pois a dita expulsão o efeito passivo de uma alteração funcional da consciência como supunha Breuer Seria pela expulsão vo luntária da representação em causa que se configurariam o corpo estranho e a segunda consciência que retornaria posteriormente de maneira indireta como sintoma soma tico A ruptura teórica com Breuer estava enfim definitiva mente consumada O conceito de defesa como operação do eu não ficou restrito contudo à histeria Freud o estendeu decisiva mente à leitura de outras formações psicopatológicas como a obsessão e a psicose já que teriam igualmente na sua gênese a presença de traumas sexuais A divisão da consciência seria assim sempre produzida pela defesa sendo esta agenciada pelo eu que através dela evitaria sempre o contato com uma representação que fosse dolo rosa Essa expulsão voluntária deixaria traços no psiquis mo inscritos que seriam agora numa consciência segunda Portanto se delineava já aqui um modelo teórico outro do psiquismo que se diferenciava ostensivamente tanto do modelo presente na psicologia clássica quanto da neuroa natomia do cérebro Nessa perspectiva nas mais diferentes formações psicopatológicas a subjetividade se expressava 30 Joel Birman positivamente procurando dizer algo sobre a sua expe riência dolorosa Assim o psiquismo estava agora configurado como um conjunto disperso de traços mentais que seriam sempre imantados por intensidades Ele contudo se evidenciava como dividido por uma barreira relativamente intranspo nível que seria produzida pelas defesas do eu Numa das bordas do psiquismo existiam sempre o eu e a consciência enquanto na outra se indicava a presença de uma segunda consciência Um conflito fundamental se delineava entre esses diferentes registros mentais na medida em que o primeiro se opunha à emergência do segundo no campo da consciência pela ação das defesas A segunda consciência faria nesse caso um esforço contínuo para penetrar no campo da primeira para poder ter acesso à ação Entre vontade e contravontade o conflito se estabeleceria encon trando o seu ponto de equilíbrio numa formação de compro misso entre ambas evidenciada pela produção de sintomas Se estes indicavam eloqüentemente as marcas daquilo que fora ostensivamente expulso do campo da consciência pela ação das defesas a resistência que se apossava dos indivíduos ao serem convidados a se lembrar do que tinha acontecido com eles mostrava a ação contínua daquelas O eu queria evitar enfim a todo custo o contato com o que lhe produzia sofrimento Porém ao conseguir contornar as fronteiras delineadas pelas defesas e penetrar astuciosamente no território da segunda consciência o que Freud descobriu foi que os traços aí presentes apesar de serem aparentemente disper Freud a filosofia 31 sos se conjugavam entre si de maneira significativa estabe lecendo relações precisas O trauma como acontecimento existencial crucial seria aquilo que permitia costurar os traços psíquicos que se articulavam nas dimensões lógica e temporal Seria portanto o que conferia sentido não apenas aos traços presentes na segunda consciência mas também à divisão efetiva do próprio campo da consciência Nesse contexto Freud compara a organização da se gunda consciência a um arquivo no qual cada traço psíqui co teria uma relação lógica e histórica com os demais Esse arquivo constituiria uma memória secreta de traços na qual estes seriam sempre investidos e marcados pela mobilidade Essa memóriaarquivo constituiria então uma escrita psí quica sobre a qual uma história traumática estaria velada mente condensada mas que a mobilidade que a perpassaria poderia transformar em fala Foi certamente dessa descrição freudiana que Derrida articulou a construção do psiquismo em Freud com a sua teoria da escrita assim como Lacan encontrou aí os elementos cruciais para formular que a psicanálise se fundava no campo da fala e da linguagem ordenado que seria o psiquismo pelos significantes Ao lado disso Freud compara ainda a organização da segunda consciência como arquivo a uma civilização desa parecida de forma que a pesquisa psicanalítica seria então análoga à investigação arqueológica A restauração do trau ma na consciência primeira equivaleria então a trazer no vamente à superfície uma civilização desaparecida tal como Schliemann quando descobriu a existência da civilização micênica subjacente à grega clássica Porém haveria aqui 32 Joel Birman uma diferença crucial qual seja a segunda consciência não seria uma civilização morta como a micênica mas viva permeada por forças dinâmicas que insistiam em retornar à consciência e ocupar a cena psíquica principal A investi gação psicanalítica seria enfim uma arqueologia do sentido o qual estaria arquivado nas tramas secretas da memória Portanto o discurso freudiano se aproximou aqui da racionalidade histórica enunciando a existência significati va do psiquismo como uma rede de traços articulados por operadores lógicos e temporais em torno de um aconteci mento fundador denominado trauma A utilização dos con ceitos de arquivo e de arqueologia não é fortuita eviden ciando como Freud estava antenado com a constituição de uma leitura outra do mundo centrada na idéia de história como nos disse Foucault em As palavras e as coisas Porém essa leitura supunha uma outra que lhe era anterior e que era fundadora do discurso freudiano Com efeito no começo da década de 1890 no ensaio sobre as afasias Freud concebeu o psiquismo como um aparelho de linguagem isto é um conjunto de signos que dotava de sentido os acontecimentos vivenciados pelos indivíduos Foi baseado nisso que Freud pôde enunciar então que o tratamento psíquico seria centrado na linguagem indo as sim na contramão da perspectiva positivista da medicina da época que não conferia qualquer valor à palavra na expe riência clínica Logo em seguida no entanto em 1895 no Projeto de uma psicologia científica Freud afirmou não ape nas que o psiquismo seria um aparelho de linguagem mas que além disso seria permeado por intensidades Estava Freud a filosofia 33 condensado já aqui o paradigma teórico forjado pelo dis curso freudiano Constitutivo da segunda consciência contudo o trau ma tinha uma leitura bastante específica Antes de mais nada apenas um acontecimento de ordem sexual poderia produzir um excesso quantitativo no psiquismo No entan to isso se produzia num corpo ainda considerado como assexuado Para Freud o trauma seria um corpo estranho no psiquismo justamente porque o sexual era algo estran geiro num corpo infantil assexuado Com efeito a criança seria abusada seja por um adulto seja por uma outra criança mais velha ficando pois numa posição passiva e indefesa face à sedução Não entendia o que tinha se passado na medida em que desconhecia a linguagem erótica Somente num segundo momento ao se defrontar com uma expe riência análoga de sedução na puberdade quando já seria sexuado o jovem daria sentido ao que lhe acontecera Ape nas agora o evento se transformava em traumático de forma que o eu procurava ativamente repelir o que lhe ocorrera pela divisão da consciência Isso porque o indivíduo repug nava aquela experiência sendo a fonte interminável de nojo e vergonha Por isso mesmo a esta concepção do trauma Freud denominou ainda de teoria da sedução Portanto Freud enunciava que o trauma se referia sempre a um acontecimento real que seria fundador das perturbações psíquicas mas que apenas ganharia sentido quando o corpo assexuado se transformasse em sexuado Podese depreender disso que o discurso freudiano se ins creve aqui numa tradição prémoderna do pensamento 34 Joel Birman segundo a arqueologia de Foucault na medida em que existiria uma relação estrita entre as palavras e as coisas sem qualquer autonomia daquelas O psiquismo representava então as coisas de maneira especular sendo a consciência pois o espelho do mundo É claro que Freud já dividira a consciência pela ação fulminante das defesas multiplicando e estilhaçando bastante aquela segundo as linhas de força de diversas especularidades Porém considerando com Fou cault a história das técnicas de interpretação Freud se ins creveria ainda no registro da semiologia no contexto teórico da qual existiria ainda uma especularidade estrita entre os registros das palavras e das coisas Foi justamente esse paradigma teórico que caiu por terra logo em seguida quando Freud abandonou definiti vamente a teoria da sedução Afirmara então numa carta a Fliess desolado que não acreditava mais na sua neurótica ou seja não acreditava mais que os seus pacientes tinham sido efetivamente seduzidos como diziam Dar credibilida de a isso seria supor que todos os adultos fossem completa mente perversos Porém acreditar nessa idéia lhe repugna va Contudo não queria dizer que seus pacientes eram mentirosos Bem entendido Alegar tal coisa seria reafirmar a leitura médica da fraudulência histérica O que os pacien tes diziam era verídico com efeito mas a verdade não remetia a um acontecimento real mas a algo que se forjava no registro psíquico O psiquismo como objeto teórico autônomo se constituiu somente aqui de fato e de direito passando a ser concebido pois de maneira descolada dos acontecimentos reais Freud a filosofia 35 O que Freud queria dizer com isso Antes de mais nada que existia uma realidade psíquica ao lado da realidade material de maneira que a real queixa de sedução dos indivíduos deveria ser remetida à primeira e não mais à segunda como supunha até então O acontecimento conti nuava sendo real para o sujeito é claro mas o registro da experiência era a realidade psíquica e não mais a material Enunciar isso seria formular que a verdade do acontecimen to se fundaria apenas no registro dos signos e não mais no das coisas De acordo com a arqueologia de Foucault Freud se inscreveria agora na modernidade se deslocando do campo especular da semiologia para o da hermenêutica Com efeito as palavras remeteriam então de maneira insis tente e infinita para outras palavras não existindo mais um momento fundador absoluto da produtividade discursiva como na teoria do trauma Pela nova leitura a consciência especular foi definiti vamente desbancada de sua posição soberana O psiquismo passou a ser um campo de signos imantado por intensida des de maneira que as representaçõessignos seriam regu ladas por investimentos afetivos comandando então o psí quico de maneira permanente Porém enunciar que a verdade do acontecimento se ordena na realidade psíquica e não na material é formular ainda que as certezas da individualidade seriam forjadas por fantasmas Ou seja o sistema de signos estava permeado por intensidades por fantasmas que como espectros povoa riam o psiquismo A verdade se deslocou agora do registro semiológico onde existia a referida adequação especular 36 Joel Birman entre o eu e a coisa para um outro no qual o que estaria em pauta seria a realidade psíquica em que signos intensidades e fantasmas constituiriam as cenas psíquicas É claro que a descrição freudiana anterior do psiquis mo se mantém incólume mas refundada agora numa outra concepção do acontecimento centrada na realidade psíqui ca e não mais na material Vale dizer o psiquismo continua sendo considerado um conjunto de traços permeados por intensidades que se articulam entre si segundo o sentido que os perpassa delineando as relações lógicas e temporais entre os traços Seriam os fantasmas agora que alinhavariam o sentido dos acontecimentos direcionando as cenas psí quicas Por isso mesmo as leituras de Derrida e Lacan centradas respectivamente na escrita e na fala como mate rialidades da linguagem puderam se reencontrar com o discurso freudiano Portanto o discurso freudiano passou a conferir posi tividade para o que na psicologia clássica era mera negati vidade qual seja a imaginação Esta foi restaurada agora pelo lugar estratégico conferido aos fantasmas subvertendo a posição de autonomia e soberania conferida ao eu espe cular na psicologia clássica Foi a posição hegemônica deste no psiquismo que foi colocada em questão enfim com a descoberta do inconsciente e a invenção da psicanálise Para isso no entanto o discurso freudiano enunciou que o psiquismo estava fundado no imperativo do prazer Seria sempre este que estaria insistentemente presente na produção e na reprodução do psiquismo regulandoo nas Freud a filosofia 37 suas diferentes formações o que implica dizer que a sexualidade identificada com a busca permanente do pra zer seria constitutiva do aparelho psíquico Com efeito nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade Freud enunciou a existência da sexualidade infantil desarticulando assim a sexualidade do campo restrito da reprodução indicando esta como sendo apenas uma dimensão daquela Seria na dita sexualidade infantil que os fantasmas se ancorariam e perpassariam capilarmente todas as representações men tais constituindo as cenas psíquicas interditas e secretamen te arquivadas Isso se desdobrou numa outra descrição do aparelho psíquico Inconsciente e desejo O psiquismo foi agora configurado em diferentes registros que estabelecem relações intrincadas entre si o inconsciente o préconsciente e a consciência Entre o primeiro registro e os demais existia uma barreira bem estabelecida constituí da pelo recalque Seria essa a defesa fundamental já que instauradora do psiquismo A divisão psíquica se redescreve então em outros termos não existindo mais agora a oposi ção entre diversas modalidades de consciência sustentada pela luta interminável entre vontade e contravontade Com efeito o conflito presente entre as instâncias psíquicas se realizaria entre o inconsciente que empreende um insisten te movimento de retorno para ter acesso à consciência e à ação e o préconscienteconsciência que a isso se oporia 38 Joel Birman pela mediação do recalque Porém seria continuamente pela dinâmica do conflito que se estabeleceriam as formações do inconsciente quais sejam os sonhos os lapsos os atos falhos as piadas e os sintomas A verdade presente nas cenas do inconsciente se enunciaria pela mediação de tais forma ções psíquicas sendo pois pela sua interpretação meticu losa que se poderia aceder ao inconsciente A diferença fundamental existente entre inconsciente e préconsciente se definiria pelo fato de que pela vontade seria possível tornar imediatamente consciente algo presen te no préconsciente enquanto tal não seria o caso no que se refere ao inconsciente Isso porque para se aproximar deste seria necessário superar a resistência que provocaria no psiquismo na medida em que aquela seria o efeito da operação do recalque No préconsciente estariam presentes as representações que estão momentaneamente fora da consciência por não interessarem à ação instrumental do eu mas que poderiam ser permanentemente evocadas des de que este assim o queira Entre os registros do précons ciente e da consciência existiria então uma outra censura mas essa seria porosa justamente porque não seria da ordem do recalque Portanto formulase que o eu seria sempre instrumental e que não poderia operar eficazmente com excesso de representações de maneira que faria sempre a economia da presença destas no campo da consciência em nome da sua efetividade instrumental Finalmente a consciência seria aqui o terceiro registro mental mantendo todas as características que tinha na concepção clássica Seria pois supostamente transparente Freud a filosofia 39 para si própria e ao mesmo tempo o espelho do mundo iluminada sem cessar pelo foco da atenção mediado pelo eu na sua ação instrumental Esse foco regularia o ritmo e o fluxo de representações na consciência Nos seus diferentes registros o psiquismo seria sempre constituído por representações permeadas por intensida des O que diferenciaria agora os registros seria tanto as diferentes modalidades de representação quanto as regras segundo as quais as representações seriam conjugadas As formas existentes de articulação entre as representações seriam devidas portanto à especificidade destas e às regras que as conjugariam entre si Nessa perspectiva impõese diferençar entre a repre sentaçãocoisa e a representaçãopalavra na medida em que a primeira materializaria o impacto das pulsões no psi quismo enquanto a segunda remeteria à imagem acústica das palavras naquele Assim se a representaçãocoisa seria marcadamente de ordem visual a representaçãopalavra teria uma materialidade auditiva desdobramento indireto que seria dos discursos escutados A incidência direta das pulsões no psiquismo se faria pelo registro da consciên ciapercepção produzindo as representaçõescoisa que existiriam inicialmente em estado disperso e em seguida articuladas em cadeias associativas segundo as regras da contigüidade e da simultaneidade que ordenariam as cadeias de signos Somente posteriormente as cadeias de representaçõescoisas seriam articuladas com as repre sentaçõespalavra possibilitando então a consciência pro priamente dita 40 Joel Birman Nesse contexto a representaçãocoisa seria caracterís tica do inconsciente e a representaçãopalavra estaria no registro do préconsciente sendo o ato de consciência a resultante da conjugação entre estes diferentes registros de representação A consciência seria então positivada como uma proposição e um enunciado na qual seriam intima mente articuladas a representaçãocoisa e a representação palavra numa frase constituída por sujeito verbo e predi cado Porém isso tudo se inscreveria ainda em sistemas diferentes orientados por regras diversas As repre sentaçõescoisa estariam submetidas ao princípio do pra zer isto é buscariam sempre o prazer e o gozo não re cuando diante dos impasses colocados Em pauta estaria o processo primário que se caracterizaria pela mobilidade absoluta dos traços psíquicos com vistas ao gozo Seria isso que assinalaria o sistema inconsciente onde não existiria a idéia de morte e de contradição nem a noção de tempo mas apenas o imperativo de gozar Seria para se contrapor a isso que o recalque seria estabelecido para obstaculizar os efeitos nefastos do gozo absoluto Em contrapartida com o sistema préconscienteconsciência o psiquismo se regularia pelo princípio de realidade de forma que o prazer ficaria submetido aos imperativos da realidade material e não apenas aos da realidade psíquica Vale dizer o processo secundário encadearia as representações segundo as rela ções de causalidade e de reconhecimento do contexto de acordo com os pressupostos da lógica da identidade e da contradição Freud a filosofia 41 Desta maneira seriam os fantasmas que definiriam o imperativo de gozo presente no sistema inconsciente con figurando este pela mediação do desejo Seria o desejo que regularia a realidade psíquica a qual estaria sempre na dependência estrita dele As diferentes formações do in consciente seriam constantemente marcadas pelo desejo que buscaria se realizar em ato procurando se inscrever no registro da consciência mas que se chocaria com a barreira do recalque para impedir a realização de tal intento A positivação da imaginação empreendida pelo discurso freudiano se realizou pelo viés de conferir também ao desejo conjugado ao fantasma um lugar na subjetividade que não estava presente na psicologia clássica A produção de sentido seria agora efetuada pelo imperativo do desejo inscrito nas cenas fantasmáticas Essa descrição freudiana do psiquismo foi denominada de primeira tópica na qual se delineou a existência de diferentes registros mentais onde circulavam diversas mo dalidades de representação e de sintaxes reguladoras desta Assim as representaçãocoisa e representaçãopalavra se riam reguladas pelos princípios do prazer e da realidade por um lado e pelos processos primário e secundário pelo outro A realidade psíquica imantada pelo desejo se contra poria à realidade material regulada pelas gramáticas do eu e da consciência Estaria aqui o cerne da conflitualidade que marcaria o psiquismo dilacerado entre diferentes pólos A segunda tópica estabelecida por Freud em 1923 no ensaio O eu e o isso modificou o enunciado dos registros psíquicos mas manteve a mesma lógica conceitual e a pre 42 Joel Birman sença da conflitualidade como princípio Com efeito se o isso representava agora o pólo pulsional do psiquismo o eu mantinha o seu antigo lugar e o supereu representava agora a instância de interdição do desejo A leitura do psiquismo assim esboçada nas diferentes tópicas freudianas exigiu a constituição de um discurso teórico outro que não seria nem o da psicologia clássica nem o da neuropatologia Para esse discurso Freud forjou o nome de metapsicologia Esta se caracterizaria pela uti lização de três códigos de descrição dos fenômenos men tais que seriam complementares o tópico o dinâmico e o econômico Assim qualquer experiência psíquica exigiria uma leitura que definisse em que lugares psíquicos estaria acontecendo antes de mais nada Vale dizer em que registros psíquicos estaria aquela experiência ocorrendo e que modalidades de representação estariam em causa Foi assim definida a dimensão tópica Em seguida como os registros em pauta e as representações correspondentes estabeleceriam conflitos entre si isso delinearia a dinâmica psíquica Como as representações seriam sempre investi das finalmente a dimensão econômica da metapsicologia procurava definir quais seriam as intensidades em pauta Uma descrição metapsicológica do psiquismo seria aquela que sempre se orientasse enfim por esta tripla exigência teórica É pela indagação da metapsicologia que se pode situar devidamente a problemática crucial que a psicanálise colo cou para a filosofia É o que veremos agora esmiuçando nas suas difrações o discurso metapsicológico Freud a filosofia 43 Metapsicologia metafísica e interpretação É curioso que Freud tenha denominado de metapsicologia o saber de referência na psicanálise Tratase de algo franca mente intrigante porque afirma que a psicanálise não é uma psicologia mas uma metapsicologia Com efeito a leitura que a psicanálise realiza do psiquismo não se identifica com a da psicologia na medida em que não se volta para a descrição das faculdades mentais mas para a elucidação do sentido da experiência psíquica Por isso mesmo Freud afirmou literalmente que a leitura psicanalítica pretende ir além da psicologia A inclu são aqui do prefixo meta indica justamente isso A metapsi cologia pretende ser uma leitura do psiquismo que trans cenderia a da psicologia por não se restringir ao estudo das faculdades psíquicas Pressupondo assim que o psiquismo é um processo propõe a ele um triplo código de leitura quais sejam as leituras tópica dinâmica e econômica Porém ultrapassar o registro das faculdades implica ao mesmo tempo realizar uma modalidade de compreen são do psiquismo que transcenda os registros da consciência e do eu Desta maneira o que está em pauta é uma ruptura evidente com os pressupostos da psicologia clássica na medida em que com a metapsicologia a psicanálise pretende circunscrever os processos subjacentes ao eu e à consciência Em decorrência disso Freud afirmou repetidas vezes que a psicanálise seria uma psicologia profunda A psicologia clás sica por sua vez seria uma leitura da superfície do psiquis mo porque ficaria restrita a seus registros periféricos 44 Joel Birman Contudo isso ainda não é tudo A palavra metapsico logia é evidentemente derivada da palavra metafísica Ao denominar o saber teórico da psicanálise numa derivação imediata e incontornável da palavra metafísica Freud iden tifica naquela algo que a aproximaria desta Mas o que poderia tangenciar a psicanálise com o saber da metafísica Não parecem existir dúvidas a respeito disso a psicanálise seria um saber fundado na interpretação e no que esta implica qual seja o psiquismo seria construído em torno dos conceitos de sentido e significação na medida em que a interpretação apenas seria possível se estivesse remetida ao mundo do sentido como o seu correlato Por isso mesmo a obra inaugural da psicanálise intitu lavase A interpretação dos sonhos Contrariando as tradi ções da psicologia clássica e da neuropatologia o discurso freudiano enunciou que os sonhos seriam não apenas for mações psíquicas como também forjados pelo sentido Sonhar quer dizer alguma coisa isto é o sujeito enuncia algo através de seus sonhos não sendo estes nem o subproduto da atividade cerebral nem tampouco um devaneio errático da imaginação Freud retoma aqui uma longa tradição po pular e précientífica segundo a qual os sonhos seriam produções significativas A construção do sentido do sonho seria sempre imantada pelo desejo que se materializaria eloqüentemente na narrativa onírica Em decorrência disso o discurso freudiano enunciou que o sonho seria o caminho real para o inconsciente pois este teria no desejo o seu primado O sonho foi enunciado enfim como o paradigma Freud a filosofia 45 teórico do inconsciente portanto uma formação do in consciente Em seguida o discurso freudiano circunscreveu outras formações do inconsciente como os lapsos os atos falhos e as piadas constituindo uma verdadeira psicopatologia da vida cotidiana Pela mediação de tais formações poderse ia ter acesso ao inconsciente isto é seria possível delinear o campo desejante em ato numa dada subjetividade para realizar o seu deciframento efetivo Finalmente todas as perturbações psicopatológicas do espírito poderiam ser in terpretadas pelo paradigma do inconsciente na medida em que seriam significativas Assim o método de interpretação construído pela psi canálise seria o do deciframento Isso porque as formações do inconsciente seriam caracterizadas pelo enigma apre sentandose sempre de maneira cifrada tanto para o sujeito quanto para o intérprete Nem este nem aquele com efeito seriam detentores de uma chave predeterminada de leitura dos sonhos como se realizava ainda na Antigüidade Esta chave seria agora inoperante na medida em que não seria capaz de destacar a singularidade do sujeito definida sem pre pelo seu desejo Por isso mesmo para a interpretação de qualquer for mação do inconsciente seria necessário que o sujeito pudes se associar livremente a partir de cada um dos fragmentos cifrados da narrativa enigmática O sujeito deveria ser colo cado num estado de errância sem estar preocupado em explicar a formação em questão mas em se deixar levar pela trama que lhe vem ao espírito Desta maneira o processo 46 Joel Birman associativo já seria um processo interpretativo que suporia a fragmentação do psiquismo como sendo a sua condição de possibilidade Seria pelo deslizamento insistente do su jeito nas cadeias de signosrepresentações mentais que o sentido iria se configurando permitindo delinear o desejo numa formação cifrada Entretanto se a livre associação seria o imperativo me todológico para o analisante a atenção flutuante seria a sua contrapartida para a figura do analista Para este com efeito era exigido também que não buscasse qualquer explicação e não privilegiasse nenhum fragmento da narrativa do ana lisante mas que se deixasse sempre levar pela escuta errática do deslizamento deste Ou seja o analistaintérprete estaria também submetido à mesma errância e à suspensão expli cativa exigida da figura do analisante para que a interpre tação pudesse se enunciar O que esses imperativos metodológicos nos eviden ciam afinal das contas Tanto a associação livre do lado do analisante quanto a atenção flutuante do lado do analista revelam o que está em questão aqui a exigência de suspen são do eu para que as diversas cadeias associativas na sua real fragmentação pudessem se enunciar em ato como discurso Seria através disso que os registros do desejo e do sentido poderiam se evidenciar literalmente sem os ruídos das manobras explicativas do eu e sua ação instrumental voltada sempre para a adaptação do indivíduo Evidentemente tudo isso nos indica ainda como a desconstrução teórica da psicologia clássica se realizou pela suspensão momentânea do eu e do seu correlato qual seja Freud a filosofia 47 a sua estratégia estritamente cognitiva Com isso a imagi nação pôde ser positivada na sua produtividade simbólica pela mediação do deslizamento insistente das cadeias de signosrepresentações Os imperativos metodológicos do deciframento psicanalítico visam pois dar consistência aos pressupostos teóricos de uma subjetividade fundada agora no inconsciente Não foi por acaso certamente que todas as formações do inconsciente enunciadas por Freud denotam modali dades de ser do psíquico nas quais o eu no registro cognitivo falha literalmente na sua funcionalidade instru mental Tanto no sonho quanto no ato falho no lapso na piada e no sintoma o eu derrapa a partir de algo que o desconstrói momentaneamente evidenciando a irrupção do desejo É sempre isso que está em jogo quando se alude à presença do inconsciente no psiquismo na medida em que a consciência foi posicionada como subalterna e o eu colocado em estado de suspensão momentânea na sua instrumentalidade Enfim a imaginação como excesso e positividade produtiva pode então ser destacada saindo da condição de negatividade na qual fora colocada pela psicologia clássica Foi nesse contexto histórico de descoberta da psicaná lise que Freud enunciou que com a metapsicologia estaria realizando o seu antigo desejo de se dedicar à filosofia e não mais à medicina pois não tinha interesse nem talento para a terapêutica O que queria dizer Freud com isso efetiva mente Diversas e diferentes coisas ao mesmo tempo como veremos agora de maneira esquemática 48 Joel Birman Desconstrução do sujeito Antes de mais nada é preciso dizer que se Freud não era um erudito em filosofia não era tampouco um incauto Ele acompanhou alguns cursos ministrados por Brentano na Universidade de Viena no tempo em que era estudante de medicina Além disso dedicouse à prática da tradução para se sustentar ainda quando estudante Traduziu então alguns textos filosóficos como os de Stuart Mill Portanto Freud não era absolutamente ignorante no que concerne à filoso fia tendo pois uma boa educação de base No entanto é preciso considerar ainda a desconfiança existente na comunidade científica da Alemanha em rela ção à filosofia na segunda metade do século XIX Os natu ralistas alemães consideravam perigosas as formulações totalizantes presentes no discurso filosófico justamente porque não faziam avançar o conhecimento positivo pre tendido pelas ciências Porém o discurso filosófico em questão era representado principalmente pela filosofia de Hegel a quem se atribuía uma versão panlogista do mundo segundo a feliz expressão cunhada por Hyppolite Em de corrência disso existiu um deslocamento teórico significa tivo na tradição filosófica alemã de Hegel para Kant no final do século XIX nos rastros da Escola de Marburgo e da leitura de Cohen sobre a filosofia kantiana Nesse contexto os naturalistas alemães se inscreviam sobretudo na tradição filosófica kantiana considerada como crítica da perspectiva totalizante supostamente presente na filosofia de Hegel e Freud a filosofia 49 mais próxima então do ideário de positividade do saber científico É preciso evocar esse contexto para justificar as cres centes e progressivas desconfianças teóricas de Freud em relação à filosofia buscando este sempre enfatizar que a psicanálise não era uma modalidade filosófica de saber justamente porque tinha a pretensão de ser um discurso científico Isso porque a cientificidade da psicanálise era colocada em questão pela comunidade científica de então O pomo da discórdia era precisamente a pequena positivi dade presente nos enunciados teóricos da psicanálise de maneira que esta foi aproximada da estética desde a publi cação de A interpretação dos sonhos A psicanálise era um saber fundado na interpretação sendo por isso mesmo aproximada do discurso filosófico Este se transformou de cididamente num fantasma diabólico tanto para Freud quanto para a psicanálise nesta conjuntura histórica Foi visando sempre os diferentes objetos teóricos em questão na psicanálise e na filosofia procurando distingui los radicalmente que Freud empreendeu a crítica psicana lítica da filosofia O que estava em pauta portanto eram as supostas dimensões totalizante e sistemática presentes no discurso filosófico e que seriam alheias à psicanálise Pode se depreender disso que era sempre a filosofia de Hegel o alvo teórico visado por Freud caracterizada seja pela pre tensão totalizante seja pela pretensão a ser um sistema Por isso mesmo Freud aproximou o discurso filosófico da pa ranóia pela presença em ambos do imperativo do sistema Além disso a retórica filosófica foi considerada similar à que 50 Joel Birman se encontrava na esquizofrenia pois em ambas o fascínio com as palavras distanciariam o sujeito do registro das coisas fazendoo perder o juízo de realidade Seria ainda a sedução pelo sistema o que conduziria a filosofia a ficar presa na retórica linguageira e dar as costas ao mundo do real Finalmente a presença do imperativo totalizante con duziria a filosofia a se transformar numa visão de mundo o que não era o caso da psicanálise que teria uma leitura fragmentar do real fundada sempre num objeto teórico específico isto é o inconsciente Portanto a psicanálise não poderia ser uma modalida de de discurso filosófico justamente para ser teoricamente reconhecida como uma leitura científica sobre o psiquismo Estaria no inconsciente o seu objeto teórico e o que visava com a interpretação sendo pela mediação desta que teria sido construída a metapsicologia Foi em decorrência disso que Freud afirmou quando inventou a psicanálise que com a metapsicologia estaria realizando finalmente o seu desejo de ser um filósofo Estaria aqui a borda existente entre metapsicologia e metafísica na medida em que ambas se realizariam pela interpretação Porém foi pela existência dessa borda que Freud sem pre se inquietou com o fantasma da filosofia no interior da psicanálise que precisaria ser continuamente exorcizado Isso porque seria apenas assim que a psicanálise poderia ter o seu reconhecimento como discurso científico Daí a razão da mordacidade quase sempre presente na crítica de Freud ao discurso filosófico pois buscava decantar assim a presen ça deste fantasma na psicanálise Freud a filosofia 51 Nessa perspectiva Freud valeuse de diferentes argu mentos para sustentar o pertencimento da psicanálise no campo da ciência Assim mesmo se os conceitos fundamen tais da metapsicologia não fossem empíricos isso também se passaria com os demais discursos científicos e mesmo com a física considerada então como o modelo de cienti ficidade Com efeito os conceitos de matéria e de energia seriam tão abstratos quanto o de pulsão dizia Freud bas tante distantes todos estes de qualquer empiricidade Além disso os conceitos fundamentais de um dado discurso cien tífico apenas seriam fixados definitivamente com o desen volvimento deste discurso como foi ainda o caso exemplar da física devendo ser considerados como provisórios nos seus primórdios isto é como hipóteses fecundas de traba lho que poderiam ser sempre retificadas no futuro com o desenvolvimento científico No entanto o imperativo de verificação dos enunciados teóricos da psicanálise se impunha freqüentemente a Freud justamente porque seria por esse viés que o discurso freu diano poderia reivindicar a sua positividade científica Daí porque Freud e a primeira geração de psicanalistas publica ram longas narrativas de experiências analíticas A publica ção de extensos casos clínicos por Freud nos quais se des crevia a elucidação metapsicológica dos sintomas visava precisamente atender à exigência de verificação formulada pelo discurso científico A experiência psicanalítica foi transformada no laboratório de verificação científica dos enunciados metapsicológicos da psicanálise 52 Joel Birman É preciso evocar aqui que o discurso neopositivista que procurava diferençar os enunciados científico e filosófico pela mediação da categoria de verificação se constituiu justamente neste contexto histórico e na mesma Viena em que vivia Freud Era ao ideário neopositivista de ciência forjado pelo Círculo de Viena que o discurso freudiano tinha que prestar contas para que a psicanálise pudesse ser reconhecida como uma ciência e não como filosofia Contudo Freud teve de reconhecer que a psicanálise não se adequava aos cânones neopositivistas de ciência Assim diferentes conceitos metapsicológicos fundamentais não eram passíveis de qualquer verificação Desde os anos vinte Freud teve que aceitar definitivamente isso Com efeito quando enunciou o conceito de pulsão de morte que não foi reconhecido por parcela significativa das comuni dades científica e psicanalítica Freud afirmou que se tratava aqui de uma especulação isto é de algo que não poderia ser empiricamente verificado Especulação de que não po dia abrir mão tal a certeza que tinha naquele conceito bem fundado para interpretar certos processos psíquicos Por isso mesmo valeuse de Platão e de Empédocles constituin do então um argumento mítico para legitimar finalmente o conceito de pulsão de morte Além disso no final de seu percurso teórico Freud passou a aproximar a metapsicologia da bruxaria uma maneira de afirmar que os enunciados teóricos da psicaná lise não se combinavam com os cânones neopositivistas do discurso da ciência Com efeito Freud valeuse da metáfora da bruxaria para circunscrever a pertinência teórica do Freud a filosofia 53 discurso psicanalítico evocando uma tradição que teria sido enterrada pelo advento da ciência moderna Portanto a psicanálise se inscreveria numa longa tradição précientífi ca pois não se harmonizava com os cânones do neopositi vismo A evocação da bruxaria no entanto não é apenas uma metáfora para Freud já que estaria referida a um momento da história do pensamento no qual foi afirmado que seriam os espíritos malévolos os responsáveis pela loucura Na Idade Média com a Inquisição as histéricas foram lançadas nas fogueiras da virtude justamente porque consideraram nas possuídas pelos maus espíritos Para Freud contudo a teoria demonológica foi finalmente vitoriosa contra a tra dição positivista na leitura da loucura na medida em que o conceito de fantasma enunciado pela psicanálise teria con ferido positividade à idéia religiosa de espírito maléfico Como vimos segundo a concepção freudiana o psi quismo seria perpassado por fantasmas que encantavam a realidade psíquica para o bem e para o mal Nas cenas onde os desejos se inscreviam e circulavam permanentemente os fantasmas capturavam os signos e as representações men tais colocando a subjetividade em movimento sustentan doa no seu pensar no seu dizer e no seu fazer Por isso mesmo pela interpretação a metapsicologia freudiana bus cava realizar o deciframento dos fantasmas e dos desejos que impulsionavam a subjetividade que se manifestavam pelas formações do inconsciente Porém mesmo reconhecendo que a psicanálise não era efetivamente uma ciência de acordo com os cânones então 54 Joel Birman vigentes Freud ainda afirmava que aquela seria uma ciência de outra ordem e não uma modalidade de discurso filosó fico porque não pretendia ser um sistema nem realizar uma leitura totalizante do real A interpretação em psicanálise não constituiria uma visão de mundo Isso porque com o deciframento e sem se fundar num código a priori de sím bolos a interpretação psicanalítica visaria sempre as marcas particulares evidenciadas pelos signos se deslocando o tempo todo no eixo da singularidade Esta seria dessa maneira paulatinamente destacada perpassada pelos fan tasmas e desejos que a costurariam nos seus pequenos detalhes Portanto a fragmentação do psiquismo seria o contraponto permanente do deciframento sendo aquela a condição de possibilidade da interpretação A sexualidade perversopolimorfa enfim estaria no fundamento desta fragmentação impulsionada pelo imperativo do prazer Enunciase assim que o discurso freudiano colocou para a filosofia um problema fundamental na virada do século XIX para o XX o descentramento do sujeito Formular com efeito que a interpretação como deciframento se refere a uma leitura fragmentar do psíquico implica enunciar o descentramento do sujeito promovido pela psicanálise A concepção psicanalítica de que existiria um psiquis mo inconsciente e que a subjetividade transcenderia em muito os registros do eu e da consciência implicou efetiva mente no descentramento do sujeito Essa tese colocou em questão uma longa tradição que se constituiu com Descartes e que foi denominada de filosofia do sujeito Era sempre isso Freud a filosofia 55 que estava em pauta na crítica empreendida por Freud da psicologia clássica Essa crítica pôs em discussão toda a tradição filosófica fundada no cogito como Lacan indicou devidamente desde o início de seu percurso na psicanálise Isso porque se para Descartes o pensamento era a garantia do critério de exis tência para o sujeito penso logo existo para Lacan a descoberta do inconsciente indicava um paradoxo funda mental qual seja o sujeito existia onde não pensava e pensava onde não existia Com efeito se o inconsciente é desejo o desejo fundaria agora a condição de existência fora do registro do pensamento Foi em decorrência disso ainda que Lacan acabou por enunciar que o inconsciente seria um conceito ético e não ôntico não se inscrevendo mais no registro do conhecimento Portanto a existência do sujeito e a produção da verdade se realizariam para a psicanálise fora do registro do pensamento inscrevendose nos regis tros do desejo e do inconsciente Seria essa uma das versões da tese do descentramento do sujeito promovida pela psicanálise Porém existem ou tras que formularam também a mesma tese mas segundo uma outra direção teórica Com efeito quando Foucault inscreve Freud como um dos fundadores da tradição her menêutica ao lado de Marx e de Nietzsche acentua a di mensão interpretante presente no discurso freudiano Te riam se perdido aqui as noções de origem e de referente no campo da linguagem com a emergência da modernidade em contraposição ao que existia na dita Idade Clássica fundada ainda no registro da representação e da semiologia 56 Joel Birman A consciência concebida como superfície especular era o que fundava a semiologia e a crença de que o pensamento poderia representar o mundo das coisas Entre as operações do ver e do dizer existia uma articulação fundamental que se perdeu posteriormente Com a hermenêutica no entan to a modernidade passou a conceber a linguagem como remetendo sempre à linguagem numa errância infinita na qual cada palavra reenviaria sempre a uma outra palavra sem que se possa jamais capturar um referente originário Estaria rompida enfim a identidade entre o ver e o dizer materializada na representação Assim com a psicanálise estaríamos bastante longe de uma filosofia fundada no cogito na medida em que seria este que constituiu o campo da representação como fundamen to para a leitura das coisas no qual o ver e o dizer se identificavam Com a hermenêutica freudiana enfim a linguagem não se refere mais ao universo das coisas estando agora em questão a realidade psíquica e não mais a realidade material Podemos dizer portanto que a problemática colocada pela psicanálise para a filosofia se centra na crítica do cogito Estaria em pauta uma desconstrução da filosofia do sujeito com o descentramento do sujeito dos registros do eu e da consciência Essa desconstrução no entanto não se realizou de maneira imediata no discurso freudiano mas exigiu um longo e tortuoso percurso tendo que ultrapassar diferentes patamares conceituais A totalidade da obra de Freud nos seus diversos contextos teóricos foi a materialização dessa desconstrução É o que indicarei agora Freud a filosofia 57 Descentramentos Num ensaio publicado em 1917 intitulado Uma dificul dade da psicanálise Freud enunciou que a psicanálise pro vocava resistências não contingentes mas estruturais Isso porque não seria o fato daquela ser uma jovem modalidade de saber nem o de se fundar na sexualidade que justifica riam as ditas resistências Estas se baseariam no eu e na consciência em decorrência destes pretenderem sempre dominar o campo do psiquismo e das coisas Nessa medida a psicanálise implicaria uma ferida narcísica para a huma nidade devido aos descentramentos do psiquismo por ela promovidos A leitura desse ensaio é fundamental para evidenciar esta problemática por diversas razões Em primeiro lugar porque é uma produção madura do discurso freudiano onde se condensam os diversos sentidos assumidos pelo conceito de descentramento Em segundo lugar porque o descentramento promovido pela psicanálise foi também inscrito no rastro de outros que foram cruciais na história do pensamento no Ocidente Em terceiro lugar todos esses descentramentos se realizaram no campo do discurso cien tífico sendo pois constitutivos da modernidade Assim a psicanálise representaria a terceira grande ferida narcísica da humanidade tendo sido precedida his toricamente pelas revoluções copernicana na cosmologia e pela revolução darwiniana na biologia Porém se os descen tramentos da subjetividade dos registros da consciência e 58 Joel Birman do eu foram feridas narcísicas para a pretensão destes no domínio sobre o psiquismo e a realidade não seriam aque les de natureza radicalmente diferentes dos que retiraram o homem do centro do cosmo e da vida Com efeito se com Copérnico a Terra foi deslocada do centro do cosmo e inserida na posição secundária de um dos diversos planetas que girariam ao redor do Sol com Darwin o homem perdeu o seu lugar privilegiado na ordem da natureza inscreven dose nesta como um simples animal derivado de outras espécies na evolução biológica Portanto se o homem acre ditava ocupar um lugar destacado no cosmo e no campo do olhar divino com a teoria heliocêntrica de Copérnico esta pretensão teria caído literalmente por terra delineandose o Universo infinito no qual se inseria agora o homem desamparado Da mesma forma o homem podia se repre sentar ainda como um ser superior aos demais para o olhar divino ao supor a sua superioridade no mundo da natureza mas com a interpretação darwiniana foi remetido para as suas dimensões animais perdendo enfim qualquer aura de superioridade Nesse contexto a psicanálise teria retirado a última ancoragem da pretensão humana o último reduto de sua suposta superioridade e arrogância ao enunciar que a cons ciência não é soberana no psiquismo e que o eu não é autônomo neste Vale dizer a realidade psíquica se deslocou decididamente da consciência e do eu para os registros do inconsciente e da pulsão que passaram agora a regulála Porém condensamse aqui três sentidos diferentes para o Freud a filosofia 59 descentramento que se realizaram ao longo do pensamento freudiano 1 da consciência para o inconsciente 2 do eu para o outro 3 da consciência do eu e do inconsciente para as pulsões Existem portanto diferentes sentidos para o descen tramento transformandose então decisivamente o seu conceito Entretanto esses sentidos não são incompatíveis entre si mas complementares O que se enuncia desta ma neira é a radicalização do conceito de descentramento no discurso freudiano Isso porque se nos dois registros iniciais a crítica se circunscrevia ainda ao campo da representação no terceiro registro o descentramento se fundaria na exte rioridade desta Nessa perspectiva no seu percurso o discurso freudia no colocou paulatinamente em questão os três registros teóricos nas quais o cogito se fundava a consciência o eu e a representação Esta desconstrução foi não apenas progres siva mas foi evidenciando também limiares crescentes de complexidade Vale dizer desconstruir o centramento da subjetividade no registro da consciência é bem mais fácil do que fazêlo no registro do eu e este é certamente bem mais simples do que desconstruir o centramento no registro da representação Porém foi esta a direção desconstrutiva as sumida pelo discurso freudiano no qual se atingiu os três pilares fundadores da filosofia do sujeito Consideremos então os diferentes sentidos do descen tramento em psicanálise indicando suas ressonâncias no discurso filosófico 60 Joel Birman Da consciência ao inconsciente No primeiro descentramento freudiano a consciência foi retirada de seu lugar destacado no psiquismo e relativizada em relação ao inconsciente Estamos aqui no momento inaugural da psicanálise A realidade psíquica centrada no inconsciente se autonomizou perdendo a condição de sim ples reflexo especular da realidade material Estamos na primeira tópica em que o inconsciente como sistema psí quico se contraporia ao sistema préconscienteconsciência O psiquismo seria construído por representações atravessa das por intensidades mas onde o registro da representação seria mais importante que o da intensidade Enfim as repre sentações circulariam entre os diversos sistemas nos quais se articulariam e se desarticulariam a representaçãocoisa e a representaçãopalavra Porém o registro do eu não foi colocado em questão mantendose como instância soberana no psiquismo reali zando sua função cognitiva e regulado pelo princípio da realidade Em decorrência disso o eu não seria uma instân cia sexualizada mantendose como pura racionalidade po dendo discriminar entre as representações inconscientes e as préconscientesconscientes As fantasias inconscientes não teriam o poder de perturbar a percepção do eu que poderia afastálas de seu território Isso porque o eu seria investido pelo interesse isto é pelas exigências de auto conservação da individualidade Daí por que o modelo inicial do dualismo pulsional que definia as linhas de força do conflito psíquico se confi Freud a filosofia 61 gurava pela oposição entre as pulsões sexuais e as pulsões de autoconservação Seria sempre em nome da autoconser vação representada pelo sistema préconscienteconsciên cia e pelo eu que a subjetividade se protegeria da irrupção da sexualidade perversopolimorfa advinda do sistema in consciente Essa proteção se realizaria pelo recalque divisor de águas entre estes sistemas O conflito se fundaria entre os pólos vital e sexual do psiquismo de maneira que parafra seando Schiller Freud enunciou que o conflito psíquico se ordenaria entre a fome e o amor O método psicanalítico se pautava pelo imperativo de tornar consciente o que era inconsciente para que neste deslocamento de registros psíquicos o eu pudesse em nome dos interesses da autoconservação oferecer um destino es truturante para o sexual O que se impunha como exigência moral era adequação do princípio do prazer ao princípio da realidade pela qual o eu harmonizaria a subjetividade dilacerada Esse descentramento inaugural provocou efeitos im portantes na filosofia As ressonâncias foram diversas assu mindo diferentes direções nas quais os autores se posicio naram frente ao esvaziamento teórico da consciência A fenomenologia criticou bastante Freud pela promo ção desse descentramento pois a consciência perderia a sua consistência Como resposta foi argüido que o inconsciente não passaria da condição de ser uma modalidade outra de consciência ou seja uma forma latente desta Isso tudo apesar das repetidas objeções de Freud sobre essa leitura principalmente pelo enunciado dos conceitos de incons 62 Joel Birman ciente como sistema e de recalque que restringiriam a consistência da consciência Foi nesse contexto teórico que Freud foi vivamente criticado por Sartre nos anos 40 Este com efeito insistiu bastante no mecanicismo e fisicalismo presentes na meta psicologia que esvaziavam a consciência de sua riqueza e plenitude significativas Baseouse para tal na fenomenolo gia de Husserl e na filosofia existencial de Heidegger Em decorrência disso aproximou a subjetividade referida pelo inconsciente freudiano de uma postura ética de máfé da quela pela covardia e pela não assunção da responsabilida de que implicava para o sujeito a crença num inconsciente na exterioridade da consciência Em contrapartida à psica nálise Sartre enunciou a construção de uma analítica exis tencial na qual a centralidade moral e cognitiva da cons ciência seria finalmente restaurada pelo destaque conferido ao conceito de projeto existencial Em contrapartida destacando a subversão filosófica que a psicanálise produziu justamente por causa do descen tramento em pauta Althusser ironizou nos anos 60 a tradição fenomenológica na sua crítica à psicanálise Aplau dindo a boa nova das concepções de Freud para a crítica da filosofia do sujeito incluído ao lado de Nietzsche como aquele que perturbou esta tradição filosófica Althusser cri ticou os psicanalistas e os promotores da analítica exis tencial que aderiram ao silenciamento do discurso freudia no pela sedução teórica e mundana que estaria implicada na fenomenologia e no existencialismo Freud a filosofia 63 Não se inscrevendo na tradição fenomenológica Politzer valorizou no final da década de 1920 a ruptura teórica da psicanálise com a psicologia clássica e a promoção do des centramento da subjetividade Porém indicou também os obstáculos teóricos representados pelo mecanicismo fisica lista presente na metapsicologia para que a psicanálise pudesse refundar efetivamente a teoria da subjetividade que prometera Na esteira teórica de Politzer Dalbiez realizou nos anos 40 a crítica da doutrina freudiana mas enfatizou a impor tância do método inaugurado pela psicanálise isto é a in terpretação Com efeito por essa oposição conceitual Dal biez propunha que a metapsicologia fosse definitivamente descartada em nome da interpretação inovação teórica promovida por aquela De Politzer à Dalbiez portanto uma importante tendência teórica se consolidou no campo da filosofia francesa na qual a psicanálise foi concebida como um saber da interpretação e onde se criticava o mecanicismo presente na metapsicologia Foi nesse contexto histórico justamente que Lacan se constituiu efetivamente como autor nos anos 30 e 40 destacando já a crítica do cogito realizada pela psicanálise mas sustentando ao mesmo tempo a depuração da metapsicologia de seus modelos mecanicistas Baseouse aqui na fenomenologia sobretudo Hegel mas também Husserl para destacar a inovação teórica do conceito de inconsciente Na década de 1950 Hyppolite aproximou a interpretação promovida pela psi canálise com a fenomenologia do espírito de Hegel valo 64 Joel Birman rizando efetivamente o descentramento da subjetividade promovido por aquela Nos anos 60 Ricoeur procurou inscrever a psicanálise no campo da filosofia contemporânea enfatizando sua di mensão hermenêutica Indicou para isso que desde o século XIX se iniciou um processo teórico de suspeita em relação à consciência como lugar de produção da verdade que se evidenciou nos discursos de Nietzsche Marx e Freud Por tal motivo seria necessário evidenciar a produção dos enun ciados de verdade pelos métodos hermenêuticos advindos da lingüística da psicanálise e da filosofia da religião para se restabelecer o ser da consciência pelos caminhos indiretos da interpretação Tornar pois consciente o inconsciente continuava sendo ainda o imperativo da psicanálise e da filosofia para Ricoeur que acabou por inserir novamente Freud na tradição fenomenológica Entretanto o descentramento promovido pelo discur so freudiano não se restringiu apenas ao movimento que iria do registro da consciência para o do inconsciente Por isso mesmo a restauração promovida por Ricoeur é insufi ciente para acompanhar inteiramente a desconstrução do cogito enunciado pelo pensamento freudiano É o que se verá agora O outro No ensaio Para introduzir o narcisismo publicado em 1914 Freud enunciou um outro registro para o descentramento Freud a filosofia 65 proposto pela psicanálise Com efeito o que estaria em questão seria o eu e não mais apenas a consciência Isso porque nesse contexto a instância do eu passou a ser con cebida também como sexualizada não sendo mais direcio nada apenas pela busca desinteressada da verdade Portanto o eu seria também investido pela libido e deixaria assim de ter qualquer transparência nas suas operações cognitivas turvado que ficaria pelas suas exigências erógenas perden do então qualquer neutralidade na leitura do mundo Além disso o discurso freudiano formulou que o eu como instância totalizante do psiquismo e do corpo não seria originário como pensara anteriormente mas deriva do do investimento do outro Isso porque a condição pri meira do infante seria a da fragmentação promovida pelo autoerotismo e pela sexualidade perversapolimorfa Por tanto seria o outro quem promoveria a unidade do eu e do corpo através de uma imagem que teria a potência de unificação destes registros Constituirseia assim o narci sismo primário que estaria no fundamento do eu Caracte rizandose pela onipotência o eu visaria dominar a frag mentação originária Nessa perspectiva o eu seria uma condensação de investimentos erógenos articulado sempre em torno de uma imagem caucionada pelo outro de forma que aquele oscilaria permanentemente entre se autoinvestir e investir os objetos numa pontuação constante entre libido do eu e libido do objeto Não existiria mais aqui para Freud as pulsões de autoconservação sustentadas pelos interesses 66 Joel Birman vitais já que agora as pulsões do eu seriam também sexuais O que estaria em pauta portanto seria quanto o psiquismo deve conceder para si e quanto pode investir no outro numa modalidade de balança energética entre os registros do eu e dos objetos Dessa forma a subjetividade estaria sempre polarizada entre o eu e o outro num reconhecimento difícil deste pois a onipotência que a fundaria estaria referida sempre ao outro Por isso mesmo para Freud o eu onipotente teria que ser limitado na sua arrogância para que o narcisismo pu desse se deslocar de sua condição de primário para a de secundário Com isso o eu que se enuncia inicialmente como sendo o seu próprio ideal eu ideal teria que reco nhecer um ideal que lhe transcendesse para reconhecer a alteridade no outro ideal do eu a fim de poder se libertar da imagem alienada pela qual fora constituído Essa trans formação implicaria para Freud na experiência da castração condição de possibilidade do complexo de Édipo e do adven to das identificações sexuadas pelas quais as condições masculina e feminina seriam constituídas Com essa outra modalidade de descentramento por tanto o eu se constituiria a partir do outro não estando mais na origem já que seria forjado por derivação marcado para sempre pelas incidências do outro Essa incidência seria originariamente alienante no registro do eu ideal mas se transformaria posteriormente no registro do ideal do eu quando a intersubjetividade se constituísse onde ser reco nhecido pelo outro seria um imperativo De qualquer ma Freud a filosofia 67 neira o eu agora se inscreveria no campo do outro perden do então qualquer veleidade de autonomia absoluta osci lando para sempre entre os registros do eu ideal e do ideal do eu Foi por esse viés que Lacan introduziu Hegel na leitura da psicanálise na medida em que concebeu a constituição alienante do eu a partir da captura do outro processo denominado de estádio do espelho segundo os pressupostos da dialética do senhor e do escravo Nesse contexto a expe riência psicanalítica visaria agora a ruptura da imagem alienante do eu para que o sujeito pudesse finalmente se constituir Daí adviria o reconhecimento do sujeito no campo da transferência entre o analisante e o analista rom pendo definitivamente assim com as alienações imaginárias originariamente presentes no eu Habermas também considerou que a originalidade da psicanálise em relação às ciências da natureza e às ciências da cultura estaria nessa teorização específica do reconheci mento simbólico e da produção da alteridade Inscreveu pois a sua leitura da psicanálise no campo desse descentra mento que foi promovido neste momento do pensamento freudiano Contudo o registro da representação é o que está sempre em pauta nesses dois descentramentos iniciais Ape nas com o conceito de pulsão de morte isto é do enunciado sobre a existência de uma pulsão sem representação é que o descentramento promovido pela psicanálise passou a ter a pulsão como sua referência fundamental colocando em questão agora o registro da representação 68 Joel Birman O trágico e a diferença O conceito de pulsão se enunciou desde o início do discurso freudiano em 1905 nos Três ensaios sobre a teoria da sexua lidade Estava contudo sempre referido ao registro psíquico do inconsciente como fundador deste A pulsão seria assim fundamentalmente sexual mas se contraporia à dita pulsão de autoconservação que seria investida pelo interesse No entanto com o advento do conceito de narcisismo esta oposição caiu por terra pois agora todas as pulsões seriam sexuais O conflito psíquico seria fundado estritamente no registro sexual entre a libido do eu e a libido do objeto Porém com o enunciado do conceito de pulsão de morte em Além do princípio do prazer o discurso freudiano restabeleceu o conflito entre os registros do sexual e do não sexual No entanto o não sexual indicava agora o oposto da autoconservação e da ordem vital se enunciando como algo da ordem da morte que se oporia decididamente à pulsão de vida Com efeito se esta indicava uma potência de união e de reunião isto é o amor Eros no sentido platônico do termo a pulsão de morte indicava a desunião isto é a discórdia Tanatos Foi nesse contexto que Freud se valeu da referência a Empédocles para enunciar a presença da oposição insuperável entre o amor e a discórdia no funda mento da subjetividade É importante destacar como o conceito de pulsão de morte foi constituído desde 1915 no ensaio As pulsões e seus destinos no qual Freud formulou uma novidade teó rica Com efeito a força pulsional como exigência de Freud a filosofia 69 trabalho imposta ao psiquismo em função de sua inserção no corporal passou a ser concebida como autônoma em relação ao registro da representação Desta maneira se o circuito pulsional implicava na articulação entre a força e seus representantes afetivo e ideativo conjugados com os objetos de satisfação mediada pelo prazer o que Freud indicava agora é que tal circuito teria que ser constituído sempre pelo outro e pela mediação da pulsão de vida Portanto a representação como emergência que seria dos registros da visibilidade e da especularidade não seria mais um atributo intrínseco à pulsão e ao organismo conforme enunciara Freud nos Três ensaios sobre a teoria da sexualida de mas algo a ser constituído pelo outro enquanto repre sentante de Eros Seria este enfim que constituiria a ordem da vida a qual estaria insistentemente permeada pela irrup ção impactante de Tanatos Portanto esse descentramento colocou em questão o atributo da representação por sua vez não mais intrínseca à ordem da vida Esta seria atravessada agora pela morte como potência insistente de discórdia desarticulando sem pre a ordem da vida e exigindo que esta se reconstituísse permanentemente face às transgressões promovidas pela discórdia Se a representação é uma produção de Eros a pulsão de morte visaria sempre desconstruir as repre sentações estabelecidas exigindo novas ligações e a produ ção de outras representações psíquicas Freud se valeu aqui de Schopenhauer para dizer que anteriormente à hegemo nia do princípio do prazer o psiquismo se regularia origi nariamente pelo princípio do Nirvana sendo necessária a 70 Joel Birman incidência insistente de Eros para que o prazer se instituísse finalmente como princípio regulador da vida Digo isso porque Tanatos insiste também em transgredir a ordem da vida e o registro da representação exigindo sempre a pro dução de novas ligações e outras representações psíquicas Podese depreender disso que enunciar que o último descentramento formulado por Freud se refere à pulsão na qual a representação se acoplaria apenas num segundo tempo aos imperativos daquela implica em conceber o psiquismo como sendo movido por um confronto intermi nável de forças Entre o amor e a discórdia uma guerra permanente insiste em ser instituída no psiquismo de ma neira que representar como se processa esta guerra não é mais uma possibilidade fácil para a subjetividade Nem tampouco decisiva Não é um acaso certamente que nesse contexto de seu pensamento Freud enunciou que tanto o funcionamento psíquico como a experiência psicanalítica poderiam ser formulados com a metáfora da guerra Por isso mesmo não se poderia mais saber com antecipação qual seria o desdobramento de tal embate Foi justamente para falar dessa imprevisibilidade que Freud desenvolveu num ensaio tardio de 1937 denominado de Análise termi nável e interminável uma leitura trágica da subjetividade É claro que a psicanálise espera continuamente impor ao psiquismo o triunfo do dizer nesta guerra sempre reco meçada entre Tanatos e Eros É esta a sua aposta ética para que o circuito pulsional se ordene eroticamente e o princí pio do prazer possa sobrepujar o princípio do Nirvana Contudo nesta nova formulação o inconsciente como re Freud a filosofia 71 gistro mental se constituiria apenas em derivação com a ordenação do circuito pulsional no qual o representar po deria fundar aquele registro como um dos destinos da força pulsional As ressonâncias filosóficas desse terceiro descentra mento foram diversas Lacan aproximou a pulsão de morte do conceito de vontade de destruição de Schopenhauer assim como a compulsão de repetição articulada desde Freud com a pulsão de morte com a célebre leitura filosófica de Kierkgaard sobre a repetição Porém não se restringiu a isso A ênfase atribuída ao registro do real em oposição aos registros do imaginário e do simbólico que passou a domi nar as últimas formulações de Lacan indica claramente os limites do registro da representação no psiquismo Em de corrência disso Lacan não acredita mais aqui como foi o caso anteriormente no filosofema de Hegel de que o real é racional justamente porque o simbólico não teria mais agora a potência insofismável de transformar inteiramente o real Um resto seria sempre produzido como algo nunca absorvível pelo registro simbólico A leitura de Foucault sobre o advento da hermenêutica na modernidade no lugar da semiologia da Idade Clássica vai na mesma direção do último descentramento formulado por Freud Com efeito a idéia de confronto de forças é a que preside a sua aproximação teórica entre Marx Nietzsche e Freud na medida em que seria aquele que regularia o deslizamento infinito da linguagem Se Marx privilegiou a luta de classes e Nietzsche a produção de verdade como resultantes do confronto de forças a pulsão de morte como 72 Joel Birman discórdia seria agora imanente no escoamento insistente da linguagem que não teria mais uma origem absoluta para se imobilizar na sua vacilante mas infinita possibilidade de dizer Rosset realiza uma leitura de Freud que vai também nessa direção Aproximando agora Freud não apenas de Nietzsche e Marx na constituição da hermenêutica mas também de Schopenhauer Rosset inscreve a psicanálise no campo da filosofia trágica A pulsão de morte como potên cia da discórdia em oposição à pulsão de vida seria o signo mais eloqüente da inscrição do discurso freudiano no regis tro do trágico Da mesma forma Deleuze enfatizou o lugar do concei to de pulsão de morte no campo da filosofia da diferença que seria uma crítica ao estruturalismo Com efeito para se distinguir de Lacan ele enunciou que seria preciso diferen ciar os conceitos do instinto de morte e de pulsão de morte para sublinhar como em Freud este novo conceito não teria qualquer fundamentação na ordem da linguagem como ainda supunha Lacan Ao enfatizar isso Deleuze destaca como Foucault e Rosset a dimensão de confronto de forças que fundaria tal conceito Seria por esse viés que se poderia diferenciar os conceitos de repetição do mesmo e de repetição diferencial no campo de uma filosofia da diferença Portanto a radicalização da idéia de descentramento do sujeito se desdobrou na relativização da categoria de representação de maneira que agora seria o confronto de forças o que regularia o psiquismo na guerra insistente entre o amor e a discórdia A subjetividade se delineia agora num Freud a filosofia 73 estilo trágico Com isso a desconstrução do cogito cartesia no se realizou em três direções diferentes da consciência ao inconsciente do eu para outro e da representação à pulsão solapando os pressupostos da filosofia do sujeito Com isso o discurso freudiano passou a se inserir no campo da filosofia trágica e da filosofia da diferença incluindose também como instrumento teórico nos campos da arqueo logia da genealogia e da estética da existência formulados por Foucault Com a formulação final sobre o descentramento que se dirigia agora da representação para a pulsão Freud foi sendo progressivamente aproximado das filosofias de Nietzsche Marx Schopenhauer e Spinoza distanciandose das referências à Hegel à fenomenologia ao existencialismo e ao estruturalismo como se passava ainda quando a ênfase na leitura de seu pensamento focalizava os descentramentos iniciais Portanto com todos esses desdobramentos consi derando as problemáticas teóricas que constituiu o discur so freudiano delineou um campo de interlocução com a filosofia colocando para esta questões novas que veio a desenvolver pela incidência que sofreu da psicanálise En fim o discurso freudiano acabou por incorporar também alguns dos enunciados críticos formulados pela filosofia não obstante as reticências de Freud face a esta 74 Joel Birman Leituras recomendadas Birman J Freud e a interpretação psicanalítica Rio de Ja neiro Relume Dumará 1991 Psicanálise Ciência e Cultura Rio de Janeiro Jorge Zahar1994 Entre cuidado e saber de si Rio de Janeiro Relume Dumará 2000 2ª edição Deleuze G Diferença e repetição Rio de Janeiro Graal 1968 Derrida J Mal de Arquivo Rio de Janeiro Relume Dumará 2001 Foucault M As palavras e as coisas Lisboa Portugália 1968 Freud S A interpretação dos sonhos In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vols IV e V Rio de Janeiro Imago 1975 Três ensaios sobre a teoria da sexualidade In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vol VII Rio de Janeiro Imago 1975 Metapsicologia In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vol XIV Rio de Janeiro Imago 1975 Conferências introdutórias à psicanálise In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vols XV e XVI Rio de Janeiro Imago 1975 75 Novas Conferências Introdutórias à psicanálise In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Comple tas de Sigmund Freud Vol XXII Gay P Freud Uma vida para o nosso tempo São Paulo Companhia das Letras 1989 Lacan J O estádio do espelho como formador da função do eu In Lacan J Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 Função e campo da fala e da linguagem em psica nálise In Lacan J Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 Roudinesco E e Plon M Dicionário de Psicanálise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1999 76 Joel Birman Sobre o autor Joel Birman é professor titular do Instituto de Psicologia da UFRJ e professor adjunto do Instituto de Medicina Social da Uerj Psicanalista cursou mestrado em Filosofia PUCRJ 1976 doutorado em Filosofia USP 1984 e pósdoutorado em Psicanálise Paris VII 1996 Publicou diversos livros dentre os quais Freud e a interpretação psicanalítica Relu me Dumará 1989 Ensaios de teoria psicanalítica Jorge Zahar 1992 Psicanálise ciência e cultura Jorge Zahar 1993 Por uma estilística da existência Ed 34 1996 Estilo e Modernidade em psicanálise Ed 34 1997 Cartografias do feminino Ed 34 1999 Malestar na atualidade Civiliza ção Brasileira 1999 Entre o cuidado e saber de si Relume Dumará 2000 e Gramáticas do erotismo Civilização Bra sileira 2001 77