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artigos ESCRITA E FORMAÇÃO INTELECTUAL EM UM MUNDO SEM DEUS AS PALAVRAS DE JEANPAUL SARTRE Marcelo de SantAnna Alves Primo1 Lécrivain engagé sait que la parole est action il sait que dévoiler cest changer et quon ne peut dévoiler quen projetant de changer Il a abandonné de rêve impossible de faire une peinture impartial de la Société et de la condition humaine Lhomme est lêtre visàvis de qui aucun être ne peut garder limpartialité même Dieu Car Dieu sil existait serait como lont bien vu certains mystiques en situation par rapport à lhomme JeanPaul Sartre Questce que la littérature RESUMO Sartre publica em 1964 Les Mots sua autobiografia na qual rememora e examina todo o percurso da sua formação intelectual refletindo sobre a importância e as possibilidades da escrita e acerca da situação do escritor relatando como surgiu a sua paixão por ler e escrever vendo ambos como o destino inescapável de todo intelectual Quanto ao tema do presente trabalho à proporção de seu apreço às palavras Sartre quando repudiou os valores da classe média materna e impôs a si a ideia de ser escritor afirmou o seu ateísmo e encontrou seu refúgio no território da palavra escrita concebendo a literatura como a sua própria emancipação Palavraschave Sartre Ateísmo Literatura Escrita ABSTRACT Sartre published in 1964 Les Mots his autobiography in which recalls and examines the whole course of his intellectual development reflecting on the importance and possibilities of writing and about the writers situation reporting how did your passion for reading and writing watching both as inescapable destiny of every intellectual On the subject of this study the proportion of their appreciation to the words Sartre when repudiated the values of maternal middle class and has set itself the idea of being a writer said his atheism and found his refuge in the territory word writing designing literature as their own emancipation 1 Afiliação institucional Bolsista PNPDCAPESUFS e professor colaborador do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe Email marceloprimosphotmailcom 80 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 marcelo de santanna alves primo Keywords Sartre Atheism Literature Writing No mesmo ano de sua recusa do prêmio Nobel e na sua suposta despedida da literatura Sartre publica em 1964 Les Mots escrito de cunho autobiográfico no qual o pensador francês passa em revista todo o percurso da sua formação intelectual pensando a importância e as possibilidades da escrita Rigorosa e lucidamente auscultando a sua infância e ao mesmo tempo com requintes de ironia Sartre relata como surgiu a sua paixão por ler e escrever vendo ambos como o destino inexorável de todo intelectual Quando fala em termos de um projeto permanente de ser escritor em um mundo sem Deus segundo a expressão de Regis Debray atribuiu à literatura um valor supremo2 Incentivado por seu avô e preceptor intelectual Charles Schweitzer Sartre tomando consciência da força da escrita equiparando a pena a uma espada ele retoma temas que foram objeto de sua reflexão em obras anteriores mas curado de seu idealismo que consistia em entrever mais verdade nos livros do que nos próprios objetos Contudo quando fala da cultura nos tempos atuais Sartre mostrando a situação do escritor como alguém impotente nem por isso entende que ele deva renunciar à sua tarefa pois se a cultura não salva nem justifica ninguém ela é eminentemente um produto do homem e este por sua vez projetase e se identifica com ela uma espécie de reflexo crítico que lhe mostra a sua própria imagem No que concerne ao tema do presente trabalho e se concordarmos com Gerd Bornheim quando afirma que a recusa de Deus perpassa toda a obra de Sartre 3 à medida que aprendeu o rigor a disciplina e o amor às palavras Sartre da mesma forma que rejeitou os valores da classe média materna como impôs a si a ideia de ser escritor afirmou o seu ateísmo e 2 A respeito do que seja um projeto Sartre afirma em O Existencialismo é um Humanismo De início o homem é um projeto que se vive a si mesmo subjetivamente ao invés de musgo podridão ou couveflor nada existe antes desse projeto não há nenhuma inteligibilidade no céu e o homem apenas será o que ele projetou ser Não o que ele quis ser pois entendemos vulgarmente o querer como uma decisão consciente que para quase todos nós é posterior àquilo que fizemos de nós mesmos Eu quero aderir a um partido escrever um livro casarme tudo isso são manifestações da escolha mais original mais espontânea do que aquilo que chamamos de vontadeSARTRE O existencialismo é um humanismo p 6 itálicos meus 3 BORNHEIM SARTRE p 303 81 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 escrita e formação intelectual em um mundo sem deus as palavras de jeanpaul sartre encontrou seu refúgio nos meandros da palavra escrita entendendo a literatura como a sua própria emancipação Na primeira parte dAs palavras intitulada Lire Sartre afirma Comecei a minha vida como hei de acabála sem dúvida no meio dos livros4 Mesmo não sabendo ler reverenciava as pedras erigidas na biblioteca de seu avô perdendose dentre os inúmeros títulos e estilos literários ao seu dispor tocando os livros para honrar as minhas mãos com a sua poeira5 Contudo não sabendo o que fazer com os livros que tanto despertaram a sua admiração o jovem Sartre limitavase a observar como o seu avô manejava esses objetos culturais com destreza de oficiante6 O orgulho de ser neto de alguém que era especializado na própria arte de fazer livros na confecção de objetos sagrados7 fazia com que o menino deslumbrado diante do universo literário que o absorvia paulatinamente tomasse consciência do respeito suscitado por uma tal profissão tanto quanto um fabricante de órgãos quanto um alfaiate de eclesiástico8 Sartre cita um acontecimento a respeito do ódio do avô por seu editor quando recebia por correio a quantia correspondente a seus direitos autorais imprecando contra a parte que lhe fôra correspondente Daí uma descoberta inesperada a exploração do homem pelo homem manifestada na relação entre o avô e seu editor abominação a qual fortalecia na infância do pensador francês o respeito por seu preceptor Meu respeito por aquele santo homem cujo devotamento não obtinha recompensa fui preparado desde cedo a tratar o magistério como um sacerdócio e a literatura como uma paixão9 Como um errante vasculhando todos os cantos da biblioteca o menino vesgo assaltava a sabedoria humana Foi ela quem me fez 4 Sartre As palavras p 30 5 Idem 6 Idem Sartre assim descreve Eu o vi milhares de vezes levantarse com ar ausente contornar a mesa atravessar o aposento com duas pernadas apanhar um volume sem hesitar sem se dar ao tempo de escolher folheálo enquanto voltava à poltrona com um movimento de polegar e do índice e depois tão logo sentado abrilo com um golpe seco na página certa fazendoo estalar como um sapato Às vezes eu me aproximava a fim de observar aquelas caixas que se fendiam como ostras e descobria a nudez de seus órgãos interiores folhas amarelecidas e emboloradas ligeiramente intumescidas cobertas de vênulas negras que bebiam tinta e recendiam a cogumelo Idem 7 Idem p 32 8 Idem 9 Idem p 33 82 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 marcelo de santanna alves primo Confidenciandose ao leitor Sartre menciona que nos livros estaria o seu porto seguro levandoo à indistinção entre a experiência obtida através da leitura e o curso das coisas mundanas confusão a qual exigiulhe um tempo considerável para libertarse do idealismo que o fazia depositar uma confiança absoluta na palavra escrita quando atribuiu a ela um status de verdade absoluta Foi nos livros que encontrei o universo assimilado classificado rotulado pensado e ainda temível confundi a desordem de minhas experiências livrescas com o curso aventuroso dos acontecimentos reais Daí veio esse idealismo de que gastei trinta anos para me desfazer10 Captando por meio da leitura a riqueza e o poder das palavras já que o olhar trabalhava as palavras sendo preciso experimentálas decidir sobre seu sentido 11 Sartre afirma que teria sido tomado por uma estranha sensação de tristeza e de derrocada de toda uma vida por meio do discurso oriunda de histórias absurdas as quais nem sequer lhe concerniam Assimilando o verbo pela imagem sua salvação consistiria em ver a incongruência entre ambos12 Perdido no emaranhado das palavras pensava ter 10 Idem Na primeira oportunidade de escapar do tédio característico dos círculos sociais Sartre descreve o seu mergulho no oceano literário que para ele era sinônimo de vida de vertigem e até mesmo de inumanidade Nossos visitantes despediamse eu ficava só evadiame deste cemitério banal ia juntarme à vida à loucura nos livros Bastavame abrir um deles para redescobrir esse pensamento inumano inquieto cujas pompas e trevas ultrapassavam meu entendimento que saltava de uma ideia à outra tão depressa que eu largava a presa cem vezes por página deixandoa escapulir aturdido perdido Eu assistia a acontecimentos que meu avô julgaria certamente inverossímeis e que não obstante possuíam a deslumbrante verdade das coisas escritas Idem p 39 11 Idem p 53 Sentido o qual Sartre tentou descobriu sob a palavra puto destinada a um professor que ele tinha a maior estima nos seus tempos de escola Um dia descobri uma inscrição recente no muro da Escola aproximeime e li O pai Barrault é um puto Meu coração bateu quase a romper se o estupor pregoume no lugar fiquei com medo Puto isso só podia ser uma dessas palavras feias que pululavam nos basfonds do vocabulário e com as quais uma criança bemeducada nunca se depara curta e brutal possuía a horrível simplicidade das bestas elementares Já era demais lêla jurei não pronunciála ainda que em voz baixa Eu não queria que aquela ideia negra agarrada à parede saltasse para a minha boca a fim de se metamorfosear no fundo de minha garganta em negra clarinada Se eu fizesse cara de que não a notara talvez ela reentrasse num buraco de parede Mas quando desviava o olhar era pra encontrar a infame denominação o pai Barrault que me aterrava mais ainda na palavra puto afinal de contas eu me limitava a adivinhar o sentido Idem p 59 12 Comparar com a diferença estabelecida por Sartre em Questce que la littérature tanto de forma como de conteúdo no que concerne à expressão por meio de palavras Sem dúvida também as artes de uma mesma época se influenciam mutuamente e são condicionadas pelos mesmos fatores sociais Mas aqueles que querem mostrar a absurdidade de uma teoria literária mostrando que ela é inaplicável à música devem provar antes de tudo que as artes são paralelas Logo esse paralelismo não existe Aqui como em toda parte não é só a forma que diferencia mas também a matéria e é uma coisa trabalhar sobre cores e sons outra é se exprimir por palavras Idem p1314 83 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 escrita e formação intelectual em um mundo sem deus as palavras de jeanpaul sartre chegado à descoberta da linguagem em seu estado original desprovida de qualquer humanidade A essa altura vendo o neto tomado pelo vício da leitura o avôtutor do filósofo francês viu que chegara o momento de seu neto libertarse a partir do momento em que já na infância questionava a respeito do conteúdo de uma obra literária como em relação a quem escreve e principalmente indagavase sobre a situação do escritor 13 Vejamos segundo as próprias palavras de Sartre Eu introduzia em minha cabeça pelos olhos palavras venenosas infinitamente mais ricas do que eu pensava uma força estranha recompunha em mim pelo discurso histórias de loucos furiosos que não me concerniam uma tristeza atroz a ruína de uma vida não ia eu contaminarme morrer envenenado Absorvendo o Verbo absorvido pela imagem eu só me salvava em suma pela incompatibilidade desses dois perigos simultâneos Ao cair do dia perdido numa selva de palavras estremecendo ao menor ruído tomando os estalos do assoalho por interjeições acreditava descobrir a linguagem em estado natural sem os homens Com que covarde alívio com que ilusão reencontrava a banalidade familial quando minha mãe entrava e acendia a luz exclamando Meu pobre benzinho assim você arranca os olhos Esgazeado eu saltava em pé gritavacorria bancava o palhaço Mas até mesmo nessa infância reconquistada eu me amofinava de que falam os livros Quem os escreve Por quê Revelei minhas inquietações ao meu avô que depois de refletir julgou chegada a hora de me libertar e o fez tão bem que me marcou 14 Sartre traz à baila novamente nAs Palavras questões sobre as quais se debruçara desde 1948 em Questce que la littérature a saber a reflexão e investigação concernentes que vão desde ao conteúdo da literatura até o que leva alguém a ser escritor Mas para além desses questionamentos súbitos sobre o que é ler ou escrever ou ler e escrever Sartre encarava o livro como algo sacro categoricamente afirmando eu achara a minha religião nada me pareceu mais importante do que um 13 Temas outrora trabalhados por Sartre em suas reflexões sobre a literatura já em 1948 Ver os títulos dos capítulos de Questce que la littérature Quest quécrire Porquoi écrire e Pour qui écriton 14 SARTRE As palavras p 4243 itálicos do autor 84 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 marcelo de santanna alves primo livro Na biblioteca eu via um templo15 No sexto andar de um edifício em Paris com vista para os telhados Sartre encontrara seu lugar natural fixandoo à altitude sendo a infância é que decide16 Foi nesse local privilegiado simbolicamente que ele recuperava a sua alegria olhando os outros de cima deslumbrado com as BellesLettres subjugando o próprio universo e entendendo que todas as coisas exigiam um nome Mais do que isso a atribuição de nomes a coisas sendo equiparada à criação e posse das mesmas foi o que o filósofo francês a escrever reconquistava o meu sexto andar simbólico volvia a respirar o ar rarefeito das BelasLetras o Universo se escalonava a meus pés e toda coisa solicitava humildemente um nome atribuilo era ao mesmo tempo criála e tomála Sem essa ilusão capital eu jamais teria escrito17 Corrigindo o seu manuscrito em 1963 aos 58 anos Sartre reavalia a sua posição de escritor Em sua infância querendo obter o merecimento de uma posição elevada constatara que o seu apreço por lugares altos era resultado direto de sua ambição pela verdade para compensar a sua altura18 Entretanto a questão não era mais estar em um local mais elevado pois não era questão de querer estar acima da humanidade e sim em permanecer no simulacro da altitude das próprias coisas Posteriormente fezse necessária a descida ao fundo descompassando o altímetro do simulacro das coisas e a realidade das mesmas oscilando entre o hábito de estar nas alturas e a desesperança em relação ao poder das palavras derivada da investigação a fundo da própria realidade Mas não o problema não era trepar em minha árvore sagrada eu já estava nela recusavame a descer não se tratava de me colocar acima dos homens eu queria viver em pleno éter entre os simulacros aéreos das Coisas Mais tarde longe de me agarrar a balões pus todo o meu zelo em ir ao fundo foi preciso 15 Idem p 44 16 Idem p 45 17 Idem 18 Hoje 22 de abril de 1963 corrijo este manuscrito no décimo andar de uma casa nova pela janela aberta diviso um cemitério Paris as colinas de SaintCloud azuis É dizer minha obstinação Tudo mudou no entanto Criança quisesse eu merecer esta posição elevada cumpriria ver em meus gostos pelos pombais um efeito de minha ambição da verdade uma compensação por minha pequena estatura Idem p 45 85 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 escrita e formação intelectual em um mundo sem deus as palavras de jeanpaul sartre calçar solas de chumbo Por sorte aconteceume às vezes roçar sobre areias nuas em espécies submarinas cujo nome me competia inventar Outras vezes não havia o que fazer uma irresistível leveza me retinha à superfície Por fim meu altímetro se desarranjou sou ora ludião ora escafandrista e amiúde em ambas as coisas juntas como convém em nossa especialidade moro no ar por hábito e fuço o chão sem muita esperança19 No seio da Comédia familial tantas vezes mencionada por Sartre nAs Palavras a qual lhe subtraía o mundo e os homens20 ele viase como um verme sem fé sem lei sem razão nem fim rodando correndo voando de impostura em impostura21 O que lhe ensinavam como felicidade na verdade não passava de um enorme fastio culminando em um desamparo22 latente porém inominável e impossível de ver devido aos pares que o cercavam No meu desamparo nunca penso primeiro não há palavra para nomeálo além disso não o vejo os outros não param de me cercar É a trama de minha vida o tecido de meus prazeres a carne de meus pensamentos23 Uma alternativa para erradicar esse desamparo seria um deus se ele 19 SARTRE As palavras p4546 20 Idem p 62 21 Idem p 68 22 Cf a exemplificação sartreana de desamparo nO existencialismo é um humanismo Tentarei dar lhes um exemplo que permita compreender melhor o desamparo contarei o caso de um dos meus alunos que veio procurarme nas seguintes circunstâncias o pai estava brigado com a mãe e tinha tendências colaboracionistas o irmão mais velho morrera durante a ofensiva de 1940 e esse jovem com sentimentos um pouco primitivos mas generosos desejava vingálo A mãe vivia só com ele muito perturbada pela semitraição do pai e pela morte do filhos mais velho e ele era o seu único consolo Esse jovem tinha naquele momento a seguinte escolha partir para a Inglaterra e alistarse nas Forças Francesas Livres ou seja abandonar a mãe ou permanecer com a mãe e ajudála a viver Ele tinha consciência de que a mãe só vivia em função dele e que o seu desaparecimento talvez a sua morte a mergulharia no desespero Tinha também a consciência de que no fundo cada ato que ele fazia em relação à mãe tinha uma resposta concreta no sentido de que ele a ajudava a viver enquanto cada ato que ele fizesse para partir e combater seria ambíguo poderia perderse na areia não servir para nada por exemplo partindo para a Inglaterra ele poderia permanecer indefinidamente num campo espanhol ao passar pela Espanha poderia chegar à Inglaterra ou a Argel e ser colocado num escritório preenchendo papeis Encontravase assim perante dois tipos de ação muito diferentes uma dela concreta imediata porém dirigida a um só individuo a outra dirigida a um conjunto infinitamente mais vasto uma coletividade nacional mas por isso mesmo ambígua e podendo ser interrompida a meio caminho Simultaneamente ele hesitava entre dois tipos de moral De um lado uma moral da simpatia da devoção individual e de outro lado uma moral mais ampla mas de uma eficácia mais contestável Precisava escolher entre uma das duas Quem poderia ajudálo a escolher A doutrina cristã Não SARTRE O existencialismo é um humanismo p 10 23 SARTRE As palavras p 69 86 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 marcelo de santanna alves primo revelasse seus desígnios e a necessidade de acreditar nele Sartre confessa que ainda na infância estava predisposto à religião aguardavaa a via como a sua cura pois sendo educado em um meio católico ensinaramlhe que esse ser onipotente o criara visando à sua glória24 Mais tarde essa imagem de uma divindade foi questionada fazendo ver a inutilidade de reverenciar a algo sem crer nesse algo e a amargura proporcionada em se buscar uma fé através de uma doutrina hegemônica Contudo Sartre afirma que a sorte neste momento lhe acenou justamente pelo desdém por tal busca Mas posteriormente no Deus fashionable elegante que me ensinaram não mais reconheci aquele que minha alma aguardava eu precisava de um Criador davamme um Grande Patrão os dois não eram senão um mas eu o ignorava eu servia sem calor o Ídolo fariseu e a doutrina oficial me desgostava de procurar minha própria fé Que sorte Confiança e desolação convertiam minha alma num campo de eleição para semear o céu sem este desdém eu seria monge25 Sartre aponta para o fenômeno de descristianização surgido na alta burguesia o qual levou um certo tempo para propagarse em todos os setores sociais um enfraquecimento da fé que uma vez inexistente não seriam permitidos matrimônios oficiais entre católicos e protestantes e o exemplo disso é o próprio Sartre que nasceu em uma família burguesa de origem alsaciana dividida entre o catolicismo e o protestantismo Se a crença de seus familiares era caracterizada por uma certa discrição contudo em nosso meio em minha família a fé não passava de um nome de aparato para a suave liberdade francesa 26 Entretanto a imagem do ateu ainda estava eivada de rótulos denominado como um indivíduo torpe e desarrazoado 24 Deus poderia livrarme do apuro eu teria sido uma obraprima assinada certo de contar com a minha parte no concerto universal teria esperado pacientemente que Ele me revelasse seus desígnios e minha necessidade Eu pressentia a religião estava à sua espera era o remédio Se ela me tivesse sido recusada eu próprio inventálaia Não me foi recusada educado na fé católica aprendi que o TodoPoderoso me criara para a sua maior glória era mais do que eu ousava sonhar Idem p 71 25 Idem 26 Idem p 72 Na continuação da passagem Sartre afirma que haviamme batizado como a tantos outros a fim de preservar minha independência negandome o batismo temiam violentar a minha alma católico registrado eu era livre eu era normal Mais tarde diziam poderá fazer o que quiser Julgavase então muito mais difícil ganhar a fé do que perdêla Idem pp 7273 87 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 escrita e formação intelectual em um mundo sem deus as palavras de jeanpaul sartre Sete ou oito anos depois após o ministério Combes a descrença declarada conservava a violência e o desalinho da paixão um ateu era um original um furioso que não se convidava a jantar pelo receio de que fizesse uma surtida um fanático atravancado de tabus que recusava a si próprio o direito de ajoelharse nas igrejas de casar aí suas filhas e aí chorar deliciosamente que se obrigava a provar a verdade de sua doutrina pela pureza de seus costumes que se encarniçava contra si mesmo e contra sua felicidade a ponto de se privar do meio de morrer consolado um maníaco de Deus que via em toda parte Sua ausência e que não conseguia abrir a boca sem pronunciar Seu nome em suma um senhor que tinha convicções religiosas27 Nessa perspectiva Sartre opõe ironicamente um ateu convicto de suas ideias ao crente que não possui convicção religiosa alguma mesmo que no decorrer dos tempos as certezas do cristianismo haveriam de serem constatadas e pertencentes a todos seja ela vista num brilho do olhar de um religioso seja pelo mosaico de cores formado nos vitrais de uma igreja quando penetram raios solares A tais certezas bastando que iluminassem as almas e sendo de caráter público a boa Sociedade acreditava em Deus para não falar dEle Como a religião parecia tolerante28 Ironicamente Sartre relata como o seu avô de origem protestante não hesitava em ridicularizar o catolicismo quando tinha oportunidade e suas palavras à mesa assemelhavamse a de Lutero29 Já a sua avó ouvindo as sandices sobre os santos proferidas por seu marido ela fazia semblante de reprovação chamandoo de incrédulo mas o seu sorriso cínico destoava de suas palavras deixando a entender que ela não acreditava em nada apenas seu ceticismo a impedia de ser ateia30 A sua mãe por sua vez tinha o seu deus pessoal evitando contendas dessa estirpe contentandose em ser consolada em segredo Nessa altura Sartre via toda essa discussão religiosa enfraquecida em sua mente e mesmo entre o espírito de crítica do protestantismo e o 27 SARTRE As palavras p 72 28 Idem 29 Idem p 73 30 Idem p 74 88 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 marcelo de santanna alves primo espírito de submissão católico algo o fazia questionar sucessivamente todo e qualquer dogma No final das contas segundo Sartre todo esse debate o entediava e o que reforçou a sua descrença foi mais o indiferentismo dos seus avós do que propriamente conflitos doutrinários A despeito de tudo isso Sartre acreditava de camisola de joelhos sobre a cama com as mãos juntas fazia todos os dias a oração mas pensava cada vez menos frequentemente no bom Deus31 Sartre cita um exemplo do apogeu do enfraquecimento senão da erradicação de sua crença Sua mãe o levava um dia por semana a uma instituição religiosa para participar de um curso de instrução doutrinária A imagem dos padres excitada em seu imaginário por seu avô devido a seu anticlericalismo radical fizera com que seu neto ficasse no mais absoluto malestar uma vez começado o curso32 Quanto ao próprio Sartre ele não nutria nenhum sentimento hostil quanto aos padres pois seu avô os detestava por ele Contudo se foi o seu avô o responsável por confiálo a um padre de sua confiança a ser o depositário da continuação de uma doutrina oficial era só chegar em casa que o velho não perdia a oportunidade de zombar do neto Desse modo precisamente nesse momento esta decepção me afundou na impiedade sendo que depois de tal episódio fatídico durante muitos anos ainda entretive relações públicas com o TodoPoderoso na intimidade deixei de frequentálo33 Um outro exemplo citado pelo filósofo francês foi uma vez que ele supostamente experimentou a sensação de que um deus existia brincando com fósforos acabou queimando um tapete e quando tentava esconder seu crime lá estava a divindade vendo todo o ocorrido fazendo com que ele entrasse em pânico no banheiro simplesmente vulnerável Entretanto a indignação me salvou enfurecime contra tão grosseira indiscrição blasfemei murmurei como meu avô Maldito nome de Deus nome de Deus nome de Deus Nunca mais ele me contemplou34 Desses exemplos acima citados o que é 31 Idem 32 Charles Schweitzer respeitava o Padre Dibildos um homem de bem a quem conhecia pessoalmente mas seu anticlericalismo era tão declarado que eu transpunha o portão do curso com a sensação de penetrar em território inimigo Idem p 74 33 Idem p 75 34 Idem 89 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 escrita e formação intelectual em um mundo sem deus as palavras de jeanpaul sartre possível extrair Segundo Sartre a constatação da mais inequívoca rejeição da necessidade de um deus uma vez que ele lhe foi apresentado recebido mas sem entender realmente o que se buscava Acabo de contar a história de uma vocação falhada eu tinha necessidade de Deus ele me foi dado eu o recebi sem compreender o que procurava Por não deitar raiz em meu coração vegetou em mim algum tempo depois morreu35 Na segunda parte dAs palavras intitulada Écrire chegando ao final do escrito Sartre recapitula a sua autobiografia e o que levou a tornarse escritor Ele era uma criança fugidia submetida às forças externas foi criado de acordo com uma concepção antiquada de cultura que no máximo fazia vir à tona a religião que serviu de modelo educacional Ensinavamme História Sagrada Evangelho catecismo sem me dar os meios de crer o resultado foi uma desordem que se tornou a minha ordem particular36 O filósofo francês afirma que devido à sua dupla pertença confessional católica e protestante não pudera acreditar em divindades pois todas eram chamadas por seus nomes Entretanto quando pensava em enveredar pela literatura percebera que uma crença humilde se metamorfoseou em uma pretensiosa evidência de predestinação já que deduzia sua eleição somente do fato de ser cristão Eu crescia erva abandonada na terriça da catolicidade minhas raízes sorviam aí os sumos e eu os transformava em minha seiva Daí procede esta lúcida cegueira de que sofri trinta anos 37 Narrando um episódio acontecido em La Rochelle durante a demora dos amigos em chegarem ao seu encontro para distrairse Sartre resolve pensar em um ser onipotente porém mirando o céu azul chega à conclusão cabal ele não existe disse eu a mim mesmo com espanto de polidez e julguei que o caso estava encerrado De certa maneira estava visto que nunca mais depois disso senti a menor tentação de ressuscitar o TodoPoderoso 38 Sartre afirma ter tido grande dificuldade em se desvencilhar quando inculcadas na 35 Sartre continua a passagem com uma certa dose de humor Hoje quando me falam dEle digo com o divertimento sem mágoa de um velho bonitão que encontra uma antiga beleza Há cinquenta anos sem aquele malentendido sem aquele menosprezo sem o acidente que nos separou poderia ter havido algo entre nós Idem 36 Idem p 179 37 Idem p 180 38 Idem 90 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 marcelo de santanna alves primo mente de noções distorcidas que ele usava para se compreender se situar e se justificar Assim ele afirma Escrever foi durante muito tempo pedir à Morte à Religião sob uma máscara que arrancassem minha vida ao acaso Fui de Igreja Militante quis salvarme pelas obras místico tentei desvelar o silêncio do ser por um sussurrar contrariado de palavras e sobretudo confundi as coisas com os nomes isto é crer39 Contudo Sartre afirma a sua mudança foram dissipadas as imagens enganadoras que o envolviam quando descobriu a razão de pensar ordenadamente contra si próprio tomando a evidência de uma coisa pelo desgosto que ela causava Ele conclui A ilusão retrospectiva está reduzida a migalhas martírio salvação imortalidade tudo se deteriora o edifício cai em ruínas catei o Espírito Santo nas caves e o expulsei delas o ateísmo é uma empresa cruel e de longo fôlego creio têla levado até o fim 40 Foi a essa altura de seu trajeto intelectual que Sartre viu o desengano e conheceu melhor as suas tarefas pois segundo ele mesmo há tempos é um homem que desperta de uma insanidade longa e angustiante porém quando revisitou seu próprio passado fazia troça de seus antigos erros não sabendo mais o que fazer da vida41 Todavia libertarse dos erros não é abdicar de escrever pois é só o que resta a ser feito Desinvesti mas não me evadi escrevo sempre Que outra coisa fazer É meu hábito e meu ofício Durante muito tempo tomei a pena como espada agora conheço a nossa impotência Não importa faço e farei livros são necessários sempre servem apesar de tudo42 Referências BORNHEIM G Sartre São Paulo Perspectiva 2005 Coleção Debates 36 39 Idem 40 Idem p 181 41 Voltei a ser o viajante sem passagem que eu era aos sete anos o condutor entra no meu compartimento ele me fita menos severo que outrora na realidade só deseja ir embora deixarme concluir a viagem em paz basta que lhe dê uma desculpa válida não importa qual ele a aceitará Infelizmente não acho nenhuma e aliás não tenho mesmo vontade de procurála ficaremos a sós um com o outro no malestar até Dijon onde bem sei que ninguém me espera Idem p 182 42 Idem 91 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 escrita e formação intelectual em um mundo sem deus as palavras de jeanpaul sartre COHENSOLAL A Sartre uma biografia Trad de Milton Persson Porto Alegre LPM Editores 2008 SARTRE JeanPaul As palavras Trad de J Guinsburg 6a edição Rio de Janeiro Nova Fronteira 1984 Questce que la littérature Paris Éditions Gallimard 1948 O existencialismo é um humanismo Trad de Rita Correia Guedes São Paulo Nova Cultural 1978 Coleção Os Pensadores 92 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015
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Sartre quando repudiou os valores da classe média materna e impôs a si a ideia de ser escritor afirmou o seu ateísmo e encontrou seu refúgio no território da palavra escrita concebendo a literatura como a sua própria emancipação Palavraschave Sartre Ateísmo Literatura Escrita ABSTRACT Sartre published in 1964 Les Mots his autobiography in which recalls and examines the whole course of his intellectual development reflecting on the importance and possibilities of writing and about the writers situation reporting how did your passion for reading and writing watching both as inescapable destiny of every intellectual On the subject of this study the proportion of their appreciation to the words Sartre when repudiated the values of maternal middle class and has set itself the idea of being a writer said his atheism and found his refuge in the territory word writing designing literature as their own emancipation 1 Afiliação institucional Bolsista PNPDCAPESUFS e professor colaborador do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe Email marceloprimosphotmailcom 80 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 marcelo de santanna alves primo Keywords Sartre Atheism Literature Writing No mesmo ano de sua recusa do prêmio Nobel e na sua suposta despedida da literatura Sartre publica em 1964 Les Mots escrito de cunho autobiográfico no qual o pensador francês passa em revista todo o percurso da sua formação intelectual pensando a importância e as possibilidades da escrita Rigorosa e lucidamente auscultando a sua infância e ao mesmo tempo com requintes de ironia Sartre relata como surgiu a sua paixão por ler e escrever vendo ambos como o destino inexorável de todo intelectual Quando fala em termos de um projeto permanente de ser escritor em um mundo sem Deus segundo a expressão de Regis Debray atribuiu à literatura um valor supremo2 Incentivado por seu avô e preceptor intelectual Charles Schweitzer Sartre tomando consciência da força da escrita equiparando a pena a uma espada ele retoma temas que foram objeto de sua reflexão em obras anteriores mas curado de seu idealismo que consistia em entrever mais verdade nos livros do que nos próprios objetos Contudo quando fala da cultura nos tempos atuais Sartre mostrando a situação do escritor como alguém impotente nem por isso entende que ele deva renunciar à sua tarefa pois se a cultura não salva nem justifica ninguém ela é eminentemente um produto do homem e este por sua vez projetase e se identifica com ela uma espécie de reflexo crítico que lhe mostra a sua própria imagem No que concerne ao tema do presente trabalho e se concordarmos com Gerd Bornheim quando afirma que a recusa de Deus perpassa toda a obra de Sartre 3 à medida que aprendeu o rigor a disciplina e o amor às palavras Sartre da mesma forma que rejeitou os valores da classe média materna como impôs a si a ideia de ser escritor afirmou o seu ateísmo e 2 A respeito do que seja um projeto Sartre afirma em O Existencialismo é um Humanismo De início o homem é um projeto que se vive a si mesmo subjetivamente ao invés de musgo podridão ou couveflor nada existe antes desse projeto não há nenhuma inteligibilidade no céu e o homem apenas será o que ele projetou ser Não o que ele quis ser pois entendemos vulgarmente o querer como uma decisão consciente que para quase todos nós é posterior àquilo que fizemos de nós mesmos Eu quero aderir a um partido escrever um livro casarme tudo isso são manifestações da escolha mais original mais espontânea do que aquilo que chamamos de vontadeSARTRE O existencialismo é um humanismo p 6 itálicos meus 3 BORNHEIM SARTRE p 303 81 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 escrita e formação intelectual em um mundo sem deus as palavras de jeanpaul sartre encontrou seu refúgio nos meandros da palavra escrita entendendo a literatura como a sua própria emancipação Na primeira parte dAs palavras intitulada Lire Sartre afirma Comecei a minha vida como hei de acabála sem dúvida no meio dos livros4 Mesmo não sabendo ler reverenciava as pedras erigidas na biblioteca de seu avô perdendose dentre os inúmeros títulos e estilos literários ao seu dispor tocando os livros para honrar as minhas mãos com a sua poeira5 Contudo não sabendo o que fazer com os livros que tanto despertaram a sua admiração o jovem Sartre limitavase a observar como o seu avô manejava esses objetos culturais com destreza de oficiante6 O orgulho de ser neto de alguém que era especializado na própria arte de fazer livros na confecção de objetos sagrados7 fazia com que o menino deslumbrado diante do universo literário que o absorvia paulatinamente tomasse consciência do respeito suscitado por uma tal profissão tanto quanto um fabricante de órgãos quanto um alfaiate de eclesiástico8 Sartre cita um acontecimento a respeito do ódio do avô por seu editor quando recebia por correio a quantia correspondente a seus direitos autorais imprecando contra a parte que lhe fôra correspondente Daí uma descoberta inesperada a exploração do homem pelo homem manifestada na relação entre o avô e seu editor abominação a qual fortalecia na infância do pensador francês o respeito por seu preceptor Meu respeito por aquele santo homem cujo devotamento não obtinha recompensa fui preparado desde cedo a tratar o magistério como um sacerdócio e a literatura como uma paixão9 Como um errante vasculhando todos os cantos da biblioteca o menino vesgo assaltava a sabedoria humana Foi ela quem me fez 4 Sartre As palavras p 30 5 Idem 6 Idem Sartre assim descreve Eu o vi milhares de vezes levantarse com ar ausente contornar a mesa atravessar o aposento com duas pernadas apanhar um volume sem hesitar sem se dar ao tempo de escolher folheálo enquanto voltava à poltrona com um movimento de polegar e do índice e depois tão logo sentado abrilo com um golpe seco na página certa fazendoo estalar como um sapato Às vezes eu me aproximava a fim de observar aquelas caixas que se fendiam como ostras e descobria a nudez de seus órgãos interiores folhas amarelecidas e emboloradas ligeiramente intumescidas cobertas de vênulas negras que bebiam tinta e recendiam a cogumelo Idem 7 Idem p 32 8 Idem 9 Idem p 33 82 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 marcelo de santanna alves primo Confidenciandose ao leitor Sartre menciona que nos livros estaria o seu porto seguro levandoo à indistinção entre a experiência obtida através da leitura e o curso das coisas mundanas confusão a qual exigiulhe um tempo considerável para libertarse do idealismo que o fazia depositar uma confiança absoluta na palavra escrita quando atribuiu a ela um status de verdade absoluta Foi nos livros que encontrei o universo assimilado classificado rotulado pensado e ainda temível confundi a desordem de minhas experiências livrescas com o curso aventuroso dos acontecimentos reais Daí veio esse idealismo de que gastei trinta anos para me desfazer10 Captando por meio da leitura a riqueza e o poder das palavras já que o olhar trabalhava as palavras sendo preciso experimentálas decidir sobre seu sentido 11 Sartre afirma que teria sido tomado por uma estranha sensação de tristeza e de derrocada de toda uma vida por meio do discurso oriunda de histórias absurdas as quais nem sequer lhe concerniam Assimilando o verbo pela imagem sua salvação consistiria em ver a incongruência entre ambos12 Perdido no emaranhado das palavras pensava ter 10 Idem Na primeira oportunidade de escapar do tédio característico dos círculos sociais Sartre descreve o seu mergulho no oceano literário que para ele era sinônimo de vida de vertigem e até mesmo de inumanidade Nossos visitantes despediamse eu ficava só evadiame deste cemitério banal ia juntarme à vida à loucura nos livros Bastavame abrir um deles para redescobrir esse pensamento inumano inquieto cujas pompas e trevas ultrapassavam meu entendimento que saltava de uma ideia à outra tão depressa que eu largava a presa cem vezes por página deixandoa escapulir aturdido perdido Eu assistia a acontecimentos que meu avô julgaria certamente inverossímeis e que não obstante possuíam a deslumbrante verdade das coisas escritas Idem p 39 11 Idem p 53 Sentido o qual Sartre tentou descobriu sob a palavra puto destinada a um professor que ele tinha a maior estima nos seus tempos de escola Um dia descobri uma inscrição recente no muro da Escola aproximeime e li O pai Barrault é um puto Meu coração bateu quase a romper se o estupor pregoume no lugar fiquei com medo Puto isso só podia ser uma dessas palavras feias que pululavam nos basfonds do vocabulário e com as quais uma criança bemeducada nunca se depara curta e brutal possuía a horrível simplicidade das bestas elementares Já era demais lêla jurei não pronunciála ainda que em voz baixa Eu não queria que aquela ideia negra agarrada à parede saltasse para a minha boca a fim de se metamorfosear no fundo de minha garganta em negra clarinada Se eu fizesse cara de que não a notara talvez ela reentrasse num buraco de parede Mas quando desviava o olhar era pra encontrar a infame denominação o pai Barrault que me aterrava mais ainda na palavra puto afinal de contas eu me limitava a adivinhar o sentido Idem p 59 12 Comparar com a diferença estabelecida por Sartre em Questce que la littérature tanto de forma como de conteúdo no que concerne à expressão por meio de palavras Sem dúvida também as artes de uma mesma época se influenciam mutuamente e são condicionadas pelos mesmos fatores sociais Mas aqueles que querem mostrar a absurdidade de uma teoria literária mostrando que ela é inaplicável à música devem provar antes de tudo que as artes são paralelas Logo esse paralelismo não existe Aqui como em toda parte não é só a forma que diferencia mas também a matéria e é uma coisa trabalhar sobre cores e sons outra é se exprimir por palavras Idem p1314 83 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 escrita e formação intelectual em um mundo sem deus as palavras de jeanpaul sartre chegado à descoberta da linguagem em seu estado original desprovida de qualquer humanidade A essa altura vendo o neto tomado pelo vício da leitura o avôtutor do filósofo francês viu que chegara o momento de seu neto libertarse a partir do momento em que já na infância questionava a respeito do conteúdo de uma obra literária como em relação a quem escreve e principalmente indagavase sobre a situação do escritor 13 Vejamos segundo as próprias palavras de Sartre Eu introduzia em minha cabeça pelos olhos palavras venenosas infinitamente mais ricas do que eu pensava uma força estranha recompunha em mim pelo discurso histórias de loucos furiosos que não me concerniam uma tristeza atroz a ruína de uma vida não ia eu contaminarme morrer envenenado Absorvendo o Verbo absorvido pela imagem eu só me salvava em suma pela incompatibilidade desses dois perigos simultâneos Ao cair do dia perdido numa selva de palavras estremecendo ao menor ruído tomando os estalos do assoalho por interjeições acreditava descobrir a linguagem em estado natural sem os homens Com que covarde alívio com que ilusão reencontrava a banalidade familial quando minha mãe entrava e acendia a luz exclamando Meu pobre benzinho assim você arranca os olhos Esgazeado eu saltava em pé gritavacorria bancava o palhaço Mas até mesmo nessa infância reconquistada eu me amofinava de que falam os livros Quem os escreve Por quê Revelei minhas inquietações ao meu avô que depois de refletir julgou chegada a hora de me libertar e o fez tão bem que me marcou 14 Sartre traz à baila novamente nAs Palavras questões sobre as quais se debruçara desde 1948 em Questce que la littérature a saber a reflexão e investigação concernentes que vão desde ao conteúdo da literatura até o que leva alguém a ser escritor Mas para além desses questionamentos súbitos sobre o que é ler ou escrever ou ler e escrever Sartre encarava o livro como algo sacro categoricamente afirmando eu achara a minha religião nada me pareceu mais importante do que um 13 Temas outrora trabalhados por Sartre em suas reflexões sobre a literatura já em 1948 Ver os títulos dos capítulos de Questce que la littérature Quest quécrire Porquoi écrire e Pour qui écriton 14 SARTRE As palavras p 4243 itálicos do autor 84 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 marcelo de santanna alves primo livro Na biblioteca eu via um templo15 No sexto andar de um edifício em Paris com vista para os telhados Sartre encontrara seu lugar natural fixandoo à altitude sendo a infância é que decide16 Foi nesse local privilegiado simbolicamente que ele recuperava a sua alegria olhando os outros de cima deslumbrado com as BellesLettres subjugando o próprio universo e entendendo que todas as coisas exigiam um nome Mais do que isso a atribuição de nomes a coisas sendo equiparada à criação e posse das mesmas foi o que o filósofo francês a escrever reconquistava o meu sexto andar simbólico volvia a respirar o ar rarefeito das BelasLetras o Universo se escalonava a meus pés e toda coisa solicitava humildemente um nome atribuilo era ao mesmo tempo criála e tomála Sem essa ilusão capital eu jamais teria escrito17 Corrigindo o seu manuscrito em 1963 aos 58 anos Sartre reavalia a sua posição de escritor Em sua infância querendo obter o merecimento de uma posição elevada constatara que o seu apreço por lugares altos era resultado direto de sua ambição pela verdade para compensar a sua altura18 Entretanto a questão não era mais estar em um local mais elevado pois não era questão de querer estar acima da humanidade e sim em permanecer no simulacro da altitude das próprias coisas Posteriormente fezse necessária a descida ao fundo descompassando o altímetro do simulacro das coisas e a realidade das mesmas oscilando entre o hábito de estar nas alturas e a desesperança em relação ao poder das palavras derivada da investigação a fundo da própria realidade Mas não o problema não era trepar em minha árvore sagrada eu já estava nela recusavame a descer não se tratava de me colocar acima dos homens eu queria viver em pleno éter entre os simulacros aéreos das Coisas Mais tarde longe de me agarrar a balões pus todo o meu zelo em ir ao fundo foi preciso 15 Idem p 44 16 Idem p 45 17 Idem 18 Hoje 22 de abril de 1963 corrijo este manuscrito no décimo andar de uma casa nova pela janela aberta diviso um cemitério Paris as colinas de SaintCloud azuis É dizer minha obstinação Tudo mudou no entanto Criança quisesse eu merecer esta posição elevada cumpriria ver em meus gostos pelos pombais um efeito de minha ambição da verdade uma compensação por minha pequena estatura Idem p 45 85 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 escrita e formação intelectual em um mundo sem deus as palavras de jeanpaul sartre calçar solas de chumbo Por sorte aconteceume às vezes roçar sobre areias nuas em espécies submarinas cujo nome me competia inventar Outras vezes não havia o que fazer uma irresistível leveza me retinha à superfície Por fim meu altímetro se desarranjou sou ora ludião ora escafandrista e amiúde em ambas as coisas juntas como convém em nossa especialidade moro no ar por hábito e fuço o chão sem muita esperança19 No seio da Comédia familial tantas vezes mencionada por Sartre nAs Palavras a qual lhe subtraía o mundo e os homens20 ele viase como um verme sem fé sem lei sem razão nem fim rodando correndo voando de impostura em impostura21 O que lhe ensinavam como felicidade na verdade não passava de um enorme fastio culminando em um desamparo22 latente porém inominável e impossível de ver devido aos pares que o cercavam No meu desamparo nunca penso primeiro não há palavra para nomeálo além disso não o vejo os outros não param de me cercar É a trama de minha vida o tecido de meus prazeres a carne de meus pensamentos23 Uma alternativa para erradicar esse desamparo seria um deus se ele 19 SARTRE As palavras p4546 20 Idem p 62 21 Idem p 68 22 Cf a exemplificação sartreana de desamparo nO existencialismo é um humanismo Tentarei dar lhes um exemplo que permita compreender melhor o desamparo contarei o caso de um dos meus alunos que veio procurarme nas seguintes circunstâncias o pai estava brigado com a mãe e tinha tendências colaboracionistas o irmão mais velho morrera durante a ofensiva de 1940 e esse jovem com sentimentos um pouco primitivos mas generosos desejava vingálo A mãe vivia só com ele muito perturbada pela semitraição do pai e pela morte do filhos mais velho e ele era o seu único consolo Esse jovem tinha naquele momento a seguinte escolha partir para a Inglaterra e alistarse nas Forças Francesas Livres ou seja abandonar a mãe ou permanecer com a mãe e ajudála a viver Ele tinha consciência de que a mãe só vivia em função dele e que o seu desaparecimento talvez a sua morte a mergulharia no desespero Tinha também a consciência de que no fundo cada ato que ele fazia em relação à mãe tinha uma resposta concreta no sentido de que ele a ajudava a viver enquanto cada ato que ele fizesse para partir e combater seria ambíguo poderia perderse na areia não servir para nada por exemplo partindo para a Inglaterra ele poderia permanecer indefinidamente num campo espanhol ao passar pela Espanha poderia chegar à Inglaterra ou a Argel e ser colocado num escritório preenchendo papeis Encontravase assim perante dois tipos de ação muito diferentes uma dela concreta imediata porém dirigida a um só individuo a outra dirigida a um conjunto infinitamente mais vasto uma coletividade nacional mas por isso mesmo ambígua e podendo ser interrompida a meio caminho Simultaneamente ele hesitava entre dois tipos de moral De um lado uma moral da simpatia da devoção individual e de outro lado uma moral mais ampla mas de uma eficácia mais contestável Precisava escolher entre uma das duas Quem poderia ajudálo a escolher A doutrina cristã Não SARTRE O existencialismo é um humanismo p 10 23 SARTRE As palavras p 69 86 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 marcelo de santanna alves primo revelasse seus desígnios e a necessidade de acreditar nele Sartre confessa que ainda na infância estava predisposto à religião aguardavaa a via como a sua cura pois sendo educado em um meio católico ensinaramlhe que esse ser onipotente o criara visando à sua glória24 Mais tarde essa imagem de uma divindade foi questionada fazendo ver a inutilidade de reverenciar a algo sem crer nesse algo e a amargura proporcionada em se buscar uma fé através de uma doutrina hegemônica Contudo Sartre afirma que a sorte neste momento lhe acenou justamente pelo desdém por tal busca Mas posteriormente no Deus fashionable elegante que me ensinaram não mais reconheci aquele que minha alma aguardava eu precisava de um Criador davamme um Grande Patrão os dois não eram senão um mas eu o ignorava eu servia sem calor o Ídolo fariseu e a doutrina oficial me desgostava de procurar minha própria fé Que sorte Confiança e desolação convertiam minha alma num campo de eleição para semear o céu sem este desdém eu seria monge25 Sartre aponta para o fenômeno de descristianização surgido na alta burguesia o qual levou um certo tempo para propagarse em todos os setores sociais um enfraquecimento da fé que uma vez inexistente não seriam permitidos matrimônios oficiais entre católicos e protestantes e o exemplo disso é o próprio Sartre que nasceu em uma família burguesa de origem alsaciana dividida entre o catolicismo e o protestantismo Se a crença de seus familiares era caracterizada por uma certa discrição contudo em nosso meio em minha família a fé não passava de um nome de aparato para a suave liberdade francesa 26 Entretanto a imagem do ateu ainda estava eivada de rótulos denominado como um indivíduo torpe e desarrazoado 24 Deus poderia livrarme do apuro eu teria sido uma obraprima assinada certo de contar com a minha parte no concerto universal teria esperado pacientemente que Ele me revelasse seus desígnios e minha necessidade Eu pressentia a religião estava à sua espera era o remédio Se ela me tivesse sido recusada eu próprio inventálaia Não me foi recusada educado na fé católica aprendi que o TodoPoderoso me criara para a sua maior glória era mais do que eu ousava sonhar Idem p 71 25 Idem 26 Idem p 72 Na continuação da passagem Sartre afirma que haviamme batizado como a tantos outros a fim de preservar minha independência negandome o batismo temiam violentar a minha alma católico registrado eu era livre eu era normal Mais tarde diziam poderá fazer o que quiser Julgavase então muito mais difícil ganhar a fé do que perdêla Idem pp 7273 87 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 escrita e formação intelectual em um mundo sem deus as palavras de jeanpaul sartre Sete ou oito anos depois após o ministério Combes a descrença declarada conservava a violência e o desalinho da paixão um ateu era um original um furioso que não se convidava a jantar pelo receio de que fizesse uma surtida um fanático atravancado de tabus que recusava a si próprio o direito de ajoelharse nas igrejas de casar aí suas filhas e aí chorar deliciosamente que se obrigava a provar a verdade de sua doutrina pela pureza de seus costumes que se encarniçava contra si mesmo e contra sua felicidade a ponto de se privar do meio de morrer consolado um maníaco de Deus que via em toda parte Sua ausência e que não conseguia abrir a boca sem pronunciar Seu nome em suma um senhor que tinha convicções religiosas27 Nessa perspectiva Sartre opõe ironicamente um ateu convicto de suas ideias ao crente que não possui convicção religiosa alguma mesmo que no decorrer dos tempos as certezas do cristianismo haveriam de serem constatadas e pertencentes a todos seja ela vista num brilho do olhar de um religioso seja pelo mosaico de cores formado nos vitrais de uma igreja quando penetram raios solares A tais certezas bastando que iluminassem as almas e sendo de caráter público a boa Sociedade acreditava em Deus para não falar dEle Como a religião parecia tolerante28 Ironicamente Sartre relata como o seu avô de origem protestante não hesitava em ridicularizar o catolicismo quando tinha oportunidade e suas palavras à mesa assemelhavamse a de Lutero29 Já a sua avó ouvindo as sandices sobre os santos proferidas por seu marido ela fazia semblante de reprovação chamandoo de incrédulo mas o seu sorriso cínico destoava de suas palavras deixando a entender que ela não acreditava em nada apenas seu ceticismo a impedia de ser ateia30 A sua mãe por sua vez tinha o seu deus pessoal evitando contendas dessa estirpe contentandose em ser consolada em segredo Nessa altura Sartre via toda essa discussão religiosa enfraquecida em sua mente e mesmo entre o espírito de crítica do protestantismo e o 27 SARTRE As palavras p 72 28 Idem 29 Idem p 73 30 Idem p 74 88 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 marcelo de santanna alves primo espírito de submissão católico algo o fazia questionar sucessivamente todo e qualquer dogma No final das contas segundo Sartre todo esse debate o entediava e o que reforçou a sua descrença foi mais o indiferentismo dos seus avós do que propriamente conflitos doutrinários A despeito de tudo isso Sartre acreditava de camisola de joelhos sobre a cama com as mãos juntas fazia todos os dias a oração mas pensava cada vez menos frequentemente no bom Deus31 Sartre cita um exemplo do apogeu do enfraquecimento senão da erradicação de sua crença Sua mãe o levava um dia por semana a uma instituição religiosa para participar de um curso de instrução doutrinária A imagem dos padres excitada em seu imaginário por seu avô devido a seu anticlericalismo radical fizera com que seu neto ficasse no mais absoluto malestar uma vez começado o curso32 Quanto ao próprio Sartre ele não nutria nenhum sentimento hostil quanto aos padres pois seu avô os detestava por ele Contudo se foi o seu avô o responsável por confiálo a um padre de sua confiança a ser o depositário da continuação de uma doutrina oficial era só chegar em casa que o velho não perdia a oportunidade de zombar do neto Desse modo precisamente nesse momento esta decepção me afundou na impiedade sendo que depois de tal episódio fatídico durante muitos anos ainda entretive relações públicas com o TodoPoderoso na intimidade deixei de frequentálo33 Um outro exemplo citado pelo filósofo francês foi uma vez que ele supostamente experimentou a sensação de que um deus existia brincando com fósforos acabou queimando um tapete e quando tentava esconder seu crime lá estava a divindade vendo todo o ocorrido fazendo com que ele entrasse em pânico no banheiro simplesmente vulnerável Entretanto a indignação me salvou enfurecime contra tão grosseira indiscrição blasfemei murmurei como meu avô Maldito nome de Deus nome de Deus nome de Deus Nunca mais ele me contemplou34 Desses exemplos acima citados o que é 31 Idem 32 Charles Schweitzer respeitava o Padre Dibildos um homem de bem a quem conhecia pessoalmente mas seu anticlericalismo era tão declarado que eu transpunha o portão do curso com a sensação de penetrar em território inimigo Idem p 74 33 Idem p 75 34 Idem 89 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 escrita e formação intelectual em um mundo sem deus as palavras de jeanpaul sartre possível extrair Segundo Sartre a constatação da mais inequívoca rejeição da necessidade de um deus uma vez que ele lhe foi apresentado recebido mas sem entender realmente o que se buscava Acabo de contar a história de uma vocação falhada eu tinha necessidade de Deus ele me foi dado eu o recebi sem compreender o que procurava Por não deitar raiz em meu coração vegetou em mim algum tempo depois morreu35 Na segunda parte dAs palavras intitulada Écrire chegando ao final do escrito Sartre recapitula a sua autobiografia e o que levou a tornarse escritor Ele era uma criança fugidia submetida às forças externas foi criado de acordo com uma concepção antiquada de cultura que no máximo fazia vir à tona a religião que serviu de modelo educacional Ensinavamme História Sagrada Evangelho catecismo sem me dar os meios de crer o resultado foi uma desordem que se tornou a minha ordem particular36 O filósofo francês afirma que devido à sua dupla pertença confessional católica e protestante não pudera acreditar em divindades pois todas eram chamadas por seus nomes Entretanto quando pensava em enveredar pela literatura percebera que uma crença humilde se metamorfoseou em uma pretensiosa evidência de predestinação já que deduzia sua eleição somente do fato de ser cristão Eu crescia erva abandonada na terriça da catolicidade minhas raízes sorviam aí os sumos e eu os transformava em minha seiva Daí procede esta lúcida cegueira de que sofri trinta anos 37 Narrando um episódio acontecido em La Rochelle durante a demora dos amigos em chegarem ao seu encontro para distrairse Sartre resolve pensar em um ser onipotente porém mirando o céu azul chega à conclusão cabal ele não existe disse eu a mim mesmo com espanto de polidez e julguei que o caso estava encerrado De certa maneira estava visto que nunca mais depois disso senti a menor tentação de ressuscitar o TodoPoderoso 38 Sartre afirma ter tido grande dificuldade em se desvencilhar quando inculcadas na 35 Sartre continua a passagem com uma certa dose de humor Hoje quando me falam dEle digo com o divertimento sem mágoa de um velho bonitão que encontra uma antiga beleza Há cinquenta anos sem aquele malentendido sem aquele menosprezo sem o acidente que nos separou poderia ter havido algo entre nós Idem 36 Idem p 179 37 Idem p 180 38 Idem 90 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 marcelo de santanna alves primo mente de noções distorcidas que ele usava para se compreender se situar e se justificar Assim ele afirma Escrever foi durante muito tempo pedir à Morte à Religião sob uma máscara que arrancassem minha vida ao acaso Fui de Igreja Militante quis salvarme pelas obras místico tentei desvelar o silêncio do ser por um sussurrar contrariado de palavras e sobretudo confundi as coisas com os nomes isto é crer39 Contudo Sartre afirma a sua mudança foram dissipadas as imagens enganadoras que o envolviam quando descobriu a razão de pensar ordenadamente contra si próprio tomando a evidência de uma coisa pelo desgosto que ela causava Ele conclui A ilusão retrospectiva está reduzida a migalhas martírio salvação imortalidade tudo se deteriora o edifício cai em ruínas catei o Espírito Santo nas caves e o expulsei delas o ateísmo é uma empresa cruel e de longo fôlego creio têla levado até o fim 40 Foi a essa altura de seu trajeto intelectual que Sartre viu o desengano e conheceu melhor as suas tarefas pois segundo ele mesmo há tempos é um homem que desperta de uma insanidade longa e angustiante porém quando revisitou seu próprio passado fazia troça de seus antigos erros não sabendo mais o que fazer da vida41 Todavia libertarse dos erros não é abdicar de escrever pois é só o que resta a ser feito Desinvesti mas não me evadi escrevo sempre Que outra coisa fazer É meu hábito e meu ofício Durante muito tempo tomei a pena como espada agora conheço a nossa impotência Não importa faço e farei livros são necessários sempre servem apesar de tudo42 Referências BORNHEIM G Sartre São Paulo Perspectiva 2005 Coleção Debates 36 39 Idem 40 Idem p 181 41 Voltei a ser o viajante sem passagem que eu era aos sete anos o condutor entra no meu compartimento ele me fita menos severo que outrora na realidade só deseja ir embora deixarme concluir a viagem em paz basta que lhe dê uma desculpa válida não importa qual ele a aceitará Infelizmente não acho nenhuma e aliás não tenho mesmo vontade de procurála ficaremos a sós um com o outro no malestar até Dijon onde bem sei que ninguém me espera Idem p 182 42 Idem 91 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015 escrita e formação intelectual em um mundo sem deus as palavras de jeanpaul sartre COHENSOLAL A Sartre uma biografia Trad de Milton Persson Porto Alegre LPM Editores 2008 SARTRE JeanPaul As palavras Trad de J Guinsburg 6a edição Rio de Janeiro Nova Fronteira 1984 Questce que la littérature Paris Éditions Gallimard 1948 O existencialismo é um humanismo Trad de Rita Correia Guedes São Paulo Nova Cultural 1978 Coleção Os Pensadores 92 Outramargem revista de filosofia Belo Horizonte n 2 1º semestre de 2015