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Texto de pré-visualização
Na Mansão de la Mole Julien Sorel o herói do romance Le Rouge et le Noir de Stendhal 1830 um jovem ambicioso e apaixo I J n a d o filho de um pequenoburguês do Franco Con I b d a d o consegue chegar através de um encadeamento de circunstâncias do seminário eclesiástico de Besançon onde estudava teologia a secretário de um grande senhor em Paris o marquês de La Mole cuja confiança conquista Matilde a filha do marquês é uma môça de dezenove anos espirituosa mimada cheia de fantasia e tão altiva que a sua própria situação c o seu próprio ambiente começam a aborrecêla O surgimento da sua paixão pelo domestique do seu pai é uma obraprima de Stendhal muito admirada Uma das cenas preparatórias nas quais começa a despertar o seu interêsse por Julien é a seguinte do quarto capítulo do segundo livro Um matin que labbé travaillait avec Julien dans la biblio thèque du marquis à léternel procès de Frilair Monsieur dit Julien tout à coup dîiïer tous les jours avec madame la marquise estce un de mes devoirs ou estce une bonté que lon a pour moi Cest un honneur insigne reprit labbé scandalisé Ja mais M N lacadémicien qui depuis quinze ans fait une cour assidue na pu lobtenir pour son neveu M Tanbeau Cest pour moi monsieur la partie la plus pénible de mon emploi Je mennuyais moins au séminaire Je vois bâiller quelquefois jusquà mademoiselle de La Mole qui pourtant doit lire accoutumé à lamabilité des amis de la maison Jai peur de mendormir De grâce obtenezmoi la permission daller dî ner à quarante sous dans quelque auberge obscure Labbé véritable parvenu était fort sensible à lhonneur de dtnor avec un grand seigneur Pendant quil sefforçait de 396 MIMESIS faire comprendre ce sentiment par Julien un léger bruit leur fit tourner la tête Julien vit mademoiselle de La Mole qui écou tait Il rougit Elle était venue chercher un livre et avait tout entendu elle prit quelque considération pour Julien Celuilà nest pas né à genoux pensatelle comme ce vieil abbé Dieu quil est laid A dîner Julien nosait pas regarder mademoiselle de La Mole mais elle eut la bonté de lui adresser la parole Ce jourlà on attendait beaucoup de monde elle lengagea à rester Esta cena faz parte como foi dito dos sucessos que servem de base e preparam um entrecho amoroso passional e extrema mente trágico A sua função e o seu valor psicológico não serão discutidos aqui isto fica fora do nosso objetivo O que nesta cena nos interessa é o seguinte seria quase completa mente incompreensível sem o conhecimento mais exato e deta lhado da situação política da estratificação social e das condi ções econômicas de um momento histórico muito definido a saber a França pouco antes da revolução de julho de acôrdo com o subtítulo do romance apôsto pelo editor Chronique de 1830 Já o enfado à mesa e nos salões desta família da alta aristocracia acêrca do qual Julien se queixa não é um enfado comum não provém da casual estupidez pessoal dos sêres humanos que ali se encontram há entre êles também alguns altamente instruídos espirituosos até importantes e o senhor da casa é inteligente e amável tratase com êste enfado muito mais de um fenômeno político e sóciohistórico da época da Restauração No século XVII ou até no século XVIII os salões correspondentes eram tudo menos aborrecidos Mas o ensaio empreendido pelo governo bourbônico com meios insu ficientes para reimplantar condições definitivamente superadas e condenadas fazia tempo pelos acontecimentos cria nos círculos oficiais e dirigentes dos seus adeptos uma atmosfera de mera convenção de falta de liberdade e de afetação contra a qual o espírito e a boa vontade das pessoas implicadas eram impo 1 Um a manhã em que o abade trabalhava com JuJjão na biblioteca do marquês no eterno processo de Frilair Senhor disse Juüão de repente jantar todos os dias com a senhora marquesa é um dos meus deveres ou é um a bondade que se tem por mim Ê uma honra insigne respondeu o abade escandalizado Nunca o senhor N o acadêmico que desde h á quinze anos faz uma côrtc assídua pôde obter êsse favor para o seu sobrinho o senhor Tanbeau Ê para mim senhor a parte mais penosa do meu emprêgo A borreda me menos no seminário Vejo bocejar às vêzes até a senhorita de La Mole que no entanto deve estar acostumada às amabilidades dos amigos da cas Tenho m êdo de adormecer Por favor obtenhame a permissão de ir jantar por quarenta centavos em algum albergue escuro O abade verdadeiro parvenu era muito sensível à honra de jantar com um grande senhor Enquanto se esforçava em fazer compreender êste sentimento a Julião um ligeiro ruído os fez voltar a cabeça Juüão viu a senhorita do La Mole que escutava Enrubesceu E la havia vindo buscar um livro e tinhn ouvido tudo teve então certa consideração por Julião Êsse aí nSo nasceu do joelhos pensou como o velho abade Deus como é feiot Durante o jantar Julifio nfto ousou olhar para a senhorita dc La Moio mas ela teve u bondade de lhe dirigir a palavra ftue dia ciperavnm vmilln ucnlc e cln o convidou para que flcoc NA MANSÃO DE LA MOLE 397 tentes Nestes salões não se deve falar daquilo que interessa a todo mundo dos problemas políticos e religiosos e conse qüentemente também não da maioria dos temas literários da época ou do passado imediato quando muito podem ser ditas frases oficiais que são tão mentirosas que um homem de gôsto e de tato prefere evitálas Que diferença com a ousadia espiritual dos famosos salões do século XVIII que evidente mente nem sonhavam com os perigos que desencadeavam contra a sua própria existência Agora conhecemse os perigos e a vida é dominada pelo temor de que a catástrofe de 1793 se possa repetir Devido à consciência que se tem de que não mais se acredita na causa que se representa e de que ela seria vencida em qualquer discussão pública preferese falar somente do tempo de música ou dos mexericos da côrte e existe a obrigação de admitir como aliados pessoas snobs e corruptas dos círculos da burguesia enriquecida as quais pela desavergonhada baixeza dos seus afãs e pelo mêdo pela fortuna mal ganha acabam por dete riorar completamente a atmosfera Baste isto quanto ao enfado Mas também a reação de Julien e mais absolutamente a sua presença assim como a do antigo diretor de seminário o Abbé Pirard na casa do marquês da La Mole só são compre ensíveis a partir da constelação políticosocial do instante histó rico atual A natureza apaixonada e fantasiosa de Julien entu siasmouse desde a sua primeira juventude pelas grandes idéias ila Revolução e de Rousseau pelos grandes acontecimentos da época napoleônica Desde a sua primeira juventude não sente outra coisa senão repugnância e desprêzo pela mesquinha hipo crisia e pela corrupção mentirosa das classes que dominam o puís desde a queda de Napoleão É demasiado fantasioso dema MÍaüo ambicioso e sequioso de domínio para se satisfazer com uma existência medíocre no seio da burguesia como o seu umigo Fouquet lho propõe a partir da observação de que um homem de origem pequenoburguesa só pode atingir uma posição ilc domínio através da igreja quase onipotente tomouse de plena consciência um hipócrita e o seu grande talento assegurar Ihcia uma brilhante carreira eclesiástica se os seus verdadeiros xcntimentos pessoais e políticos o caráter imediatamente passio mil da sua natureza não irrompessem em momentos decisivos Uni al instante de autodelação existe também aqui quando confia ao seu antigo mestre e protetor o Abbé Pirard os seus Hcntimentos no salão da marquesa pois a liberdade espiritual iiic nêlcs se documenta não é concebível sem uma mistura ilc altivez espiritual e de sentimento interno de superioridade o que não fica nada bem num jovem clérigo e protegido da casa I Neste caso específico a sua sinceridade não lhe acarreta qual quer diino pois o Abbé Pirard é seu amigo e sôbre a casual iprcituiloru a declaração de Julien faz uma impressão total niciilc diferente daquela que deveria esperar a temer O Abbé 6 ilcsiKiimlo aqui como vrai parvenu que sabe apreciar altamente ii Itonrii ilc comer junto n um grande senhor c que portanto 398 MIMESIS censura a declaração de Julien para justificar a censura Stendhal poderia também ter aduzido o fato de que a submissão isenta de crítica ao mal dêste mundo ou plena consciência de que se trata do mal é uma atitude típica dos jansenistas severos e o Abbé Pirard é um jansenista Sabemos das partes anteriores do romance que como diretor do seminário de Besançon teve de suportar muitas perseguições e arbitrariedades devido à sua posi ção de jansenista e à sua devoção severa inacessível a qualquer intriga pois o clero da sua província estava sob a influência dos jesuítas Por ocasião de um processo que o seu poderoso rival o vigáriogeral do bispo Abbé de Frilair movia contra o marquês da La Mole êste último teve a oportunidade de ganhar para si como seu homem de confiança o Abbé Pirard tendo assim podido apreciar a sua inteligência e retidão De tal forma finalmente para livrálo da sua insustentável situação em Besan çon o marquês conseguiu para o padre uma paróquia em Paris e pouco mais tarde acolheu em sua casa também o discípulo preferido do Abbé Julien Sorel como secretário privado Os caracteres as atitudes e as relações das personagens atuantes estão portanto estreitamente ligados às circunstâncias da história da época As suas condições políticas e sociais da história contemporânea estão enredadas na ação de uma forma tão exata e real como nunca antes fôra o caso em nenhum romance aliás em nenhuma obra literária em geral a não ser naquelas que se apresentavam como escritos políticosatíricos propriamente ditos O fato de embutir de forma tão funda mental e conseqüente a existência tràgicamente concebida de um ser humano de tão baixa extração social como aqui a de Julien Sorel na mais concreta história da época e de desen volvêla a partir dela constitui um fenômeno totalmente nôvo e extremamente importante Com a mesma precisão com que acontece com a mansão de La Mole também os outros círculos vitais nos quais Julien Soiel se movimenta a família do seu pai a casa do burgomestre M de Rênal em Verrières o semi nário de Besançon estão determinádos sociologicamente segundo o momento histórico e nenhuma personagem secundária como por exemplo o velho Chélan ou o diretor do dépôt de mendicité Valenod seria concebível da forma como são apre sentados aqui fora da situação histórica específica de época da Restauração A mesma fundamentação na história contem porânea encontrase também nos restantes romances da Stendhal ainda imperfeita e limitada a um quadro demasiado estreito em Armance mas completamente desenvolvida nas obras poste riores tanto na Chartreuse de Parme que evidentemente apre senta um cenário ainda pouco atingido pela evolução moderna de tal forma que o livro às vêzes produz o efeito de um romance histórico quanto em Lucien Leuwen um romance da época de LuísFilipe que Stendhal deixou inacabado Na forma em que êste último se nos apresenta o elemento contemporâneopolltico prepondera até demais nfio está fundido sempre com necessidade NA MANSAO DE LA MOLE 399 no andamento da ação e é apresentado em relação ao tema principal demasiado minuciosamente Talvez na reelaboração definitiva Stendhal tivesse atingido uma articulação orgânica do conjunto Finalmente também os escritos autobiográficos apesar do egotismo caprichoso e saltitante da sua posição estilística estão ligados ao político sociológico e econômico da época muito mais estreita essencial consciente e concretamente do que por exemplo os escritos correspondentes de Rousseau ou de Goethe Sentese que a história grande e real atacou Stendhal de forma muito diferente do que Rousseau ou Goethe Rousseau já não a viveu e Goethe soube tirar o corpo fora dela e até se fôr permitida esta expressão o corpo do seu espírito Com isto já fica dito ao mesmo tempo quais foram as circunstâncias que fizeram despertar neste instante e num homem desta época o realismo moderno trágico e historicamente fundamentado era o primeiro dos grandes movimentos dos tempos modernos do qual participavam conscientemente as gran des massas humanas a Revolução Francesa com tôdas as agitações que se espalharam pela Europa tôda e que foram suas conseqüências Diferenciase do movimento da Reforma não menos violento e que não agitou menos as massas pelo tempo muitíssimo mais rápido da sua difusão do seu efeito sôbre as massas e das mudanças práticas da vida num espaço relativamente amplo pois os progressets técnicos alcançados simultaneamente no campo dos transportes e da transmissão de informações assim como a difusão do ensino elementar resultante das tendências da própria Revolução possibilitaram uma mobilização dos povos relativamente muito mais rápida e mais uniforme no seu sentido Todos foram atingidos muito muis rápida mais consciente e mais uniformemente pelos mes mos pensamentos e acontecimentos Começava para a Europa aquêle processo de concentração temporal tanto dos aconte cimentos históricos em si como do seu tornarse conscientes puru todos um processo que de lá para cá fêz enormes pro gressos e que permite profetizar uma uniformização da vida dos homens sôbre tôda a Terra a qual em certo sentido já lói atingida Uma tal evolução estremece ou enfraquece tôdas iis ordens e classificações da vida que vigiam até então o tempo das modificações exige um esforço constante e extre mamente dificultoso em prol de uma adaptação interna assim como provoca violentas crises de adaptação Quem pretender ilar a si próprio razão da sua vida real da sua posição dentro ila sociedade humana é obrigado a fazêlo sôbre uma base prliticu muito mais ampla e dentro de um contexto temporal muito maior do que outrora para manter a consciência cons tante de que o chão social sôbre o qual se vive não está em repouso ein nenhum instante mas é modificado incessantemente pelos mais múltiplos estremecimento 400 MIMESIS Poderseia perguntar como se deu o fato de a moderna consciência da realidade ter se conformado literàriamente pela primeira vez na obra de Henri Beyle de Grenoble Beyle Stendhal foi um homem espirituoso vivaz interiormente inde pendente e corajoso mas não propriamente uma grande figura Os seus pensamentos são amiúde enérgicos e geniais mas são também saltitantes e arbitràriamente apresentados e apesar de tôda a sua ostentação da audácia não tem segurança nem coesão internas Todo o seu ser tem algo de fragmentário A mudan ça entre a abertura realista no conjunto e o néscio ocultamento no pormenor entre o frio domínio de si mesmo a ardentemente gozadora entrega ao sensível e a insegura e por vêzes senti mental vaidade não é sempre fácil de suportar A sua formulação lingüística é muito impressionante e inconfundivelmente original mas tem o fôlego curto é desigual nos seus êxitos e só rara mente apreende e retém o seu objeto de forma total Mas precisamente assim do jeito que era entregouse ao momento as circunstâncias pegaramno jogaramno de cá para lá confia ramlhe um destino inesperado e peculiar formaramno de tal modo que se viu obrigado a se entender com a realidade de uma forma que ninguém antes conhecera Quando eclodiu a Revolução Stendhal era um menino de seis anos de idade quando abandonou a sua cidade natal Gre noble e a sua família antigoburguesa e reacionária sombria mente amuada com as novas circunstâncias e então ainda muito abastada para se dirigir a Paris tinha dezesseis anos de idade IÁ chegou imediatamente após o golpe de Estado de Napoleão um seu parente Pierre Daru era um influente colaborador do primeiro cônsul Stendhal fêz depois de algumas vacilações e interrupções uma carreira brilhante na administração napoleô nica Viu a Europa durante as campanhas de Napoleão tornou se homem isto é um homem do mundo muito elegante tornouse também como parece um funcionário administrativo muito apto e um organizador de confiança cujo sangue frio não lhe deixava perder a calma nem nos momentos de perigo Quando a queda de Napoleão o fêz cair do cavalo estava no trigésimo segundo ano de sua vida A primeira parte da sua carreira ativa bem sucedida e brilhante tinha passado Dêsse momento em diante não tem mais qualquer profissão nem qualquer lugar ao qual pertencer Pode ir para onde quiser enquanto tiver dinheiro suficiente e enquanto as desconfiadas autoridades da época pósnapoleônica nada tenham a objetar contra a sua permanência Mas as suas condições econômicas pioram gradativamente em 1821 é expulso pela polícia de Met ternich da cidade de Milão onde se havia instalado num primeiro momento vai a Paris e vive lá durante nove anos sem profissão sozinho com meios muito parcos Depois da revolução de julho os seus amigos lhe conseguem um pôsto no serviço diplomático Como os austríiicos lhe ncgnnim o excquutur ptirii NA MANSÃO DE LA MOLE 401 Trieste deve ir como cônsul a Civitavecchia uma cidadezinha portuária esta é uma residência triste e por vêzes rabujavam no quando estendia demais suas visitas a Roma contudo pode passar algus anos de férias em Paris enquanto um dos seus protetores é ministro das relações exteriores Finalmente adoece sèriamente em Civitavecchia concedemlhe novamente férias em Paris onde morre em 1842 acometido por um ataque de apoplexia no meio da rua com menos de sessenta anos de idade Esta é segunda parte de sua vida neste tempo adquire a fama de um homem espirituoso excêntrico política e moralmente indigno de confiança durante êste tempo começa a escrever Primeiro escreve sôbre música sôbre a Itália e a arte italiana sôbre o amor só em Paris aos quarentaetrês anos em meio ao florescimento do movimento romântico no qual interveio a seu modo Stendhal publica o seu primeiro romance Êste esbôço da sua vida quer mostrar que só se deu razão de si mesmo e só se dedicou ao ofício de escrever de forma realista quando procurava náufrago num barquinho um pôrto seguro e quando descobriu com isto que para o seu barquinho não havia pôrto apropriado nem seguro quando embora não estivesse de modo algum cansado ou desacorçoado não deixava de ser um quarentão cuja primeira e brilhante carreira estava muito longe no tempo um homem sozinho e rela tivamente pobre chegou a sentir com todo rigor que não havia lugar algum que pudesse ocupar Só então o mundo social que o circundava tornouse para êle um problema o sentimento de ser diferente dos demais que até então carregara leve e orgulhosa mente tornouselhe só então objeto de urgente prestação de con lus e finalmente de criação artística A literatura realista de Stendhal brotou do seu malestar no mundo pósnapoleônico nssim como da consciência de não pertencer ao mesmo e de não ter nêlc um lugar certo O malestar no mundo dado e a incapa cidade de se incorporar a êle são evidentemente elementos rous scaunianoromânticos e é provável que Stendhal já possuísse algo disso na sua juventude há algo semelhante na sua natureza e a história da sua juventude só pode ter fortalecido tais inclinações uc por assim dizer correspondiam à moda da sua geração Por outro lado escreveu suas memórias de juventude a Vie de Henri Hndard só nos anos trinta e devese contar com que vistos tia perspectiva da sua evolução posterior da perspectiva de 1832 tenha acentuado tais motivos de isolamento individualista O corto é que os motivos e as manifestações do seu isolamento e ilu sua posição problemática perante a sociedade são totalmente diferentes dos fenômenos correspondentes em Rousseau ou nos seus seguidores do primeiro Romantismo Steiulhal tinha em contraste com Rousseau inclinação e m lamente também capacidade para o agir prático esforçavase por consojiuir o gôo sensível dit vida dada não se subtrai de 402 MIMESIS entrada à realidade prática assim como também não a censu lou como um todo logo de início senão que tentou pela primeira vez com êxito dominála O êxito e o prestígio mate riais eram apetecíveis para êle admira a energia e o domínio da vida e mesmo os seus amados sonhos le silence du bonheur são mais sensíveis mais plásticos mais fortemente dependentes da sociedade humana e das obras humanas Cimarosa Mozart Shakespeare a arte italiana do que as do promeneur solitaire Somente quando o êxito e o gôzo começaram a escaparselhe somente quando as circunstâncias práticas ameaçaram tirarlhe o chão de sua vida a sociedade do seu tempo tornouse para êle problema e assunto Rousseau não estava à vontade no mundo social que encontrava e que não se modificou grandemen te durante a sua vida ascendeu dentro dêle sem se tornar mais feliz por causa disso e sem melhorar as suas relações com o mesmo que parecia permanecer inamovível Stendhal viveu enquanto um terremoto atrás do outro sacudiu o chão social Um dêstes tremores desligouo do andamento quotidiano da sua vida que estava prédeterminado para homens da sua classe jogouo como a muitos dos seus semelhantes em meio a antes inconcebíveis aventuras vivências responsabilidades autopro vações experiências de liberdade e de domínio Outro estreme cimento jogouo de volta para um quotidiano que lhe pareceu mais enfadonho tolo e carente de atrativos do que o primeiro o mais interessante nêle era que também não prometia ser durável novos tremores estavam no ar e eclodiam cá e lá ainda que não tão violentamente como os primeiros O inte rêsse de Stendhal dirigiase pelo fato de ter brotado das expe riências da sua existência própria não para a estrutura de uma sociedade possível mas para as modificações da sociedade real mente existente Nêle a perspectiva dos tempos é sempre píesente a imagem das formas e modas de vida que se modificam incessantemente domina os seus pensamentos tanto mais que são uma esperança para êle em 1880 ou 1930 encontrarei leito res que me entendam Quero apresentar alguns exemplos Quando fala do esprit de La Bruyère no 30 capítulo de Henri Brulard evidenciaselhe que esta espécie de formação espiritual perdeu validade a partir de 1789 Lesprit si délicieux pour qui le sent ne dure pas Comme une pêche passe en quelques jours lesprit passe en deux cent ans et bien plus vite sil v a révolution dans les rapports que les classes dune société ont entre elles Os Souvenirs dégotisme contêm uma multidão de tais observações de perspectiva temporal às vêzes realmenlc proféticas Prevê cap VII perto do fim que no tempo em que êste palavreado fôr lido terseá convertido em lugarco mum responsabilizar as classes dominantes pelos crimes dos ladrões e dos assassinos teme no comêço do nono capítulo que tôdas as suas audaciosas declarações que só ousa fazer com temor serão trivialidades dez anos após h sua morte sc o céu lhe conceder uma vida de duração relativamente decente de NA MANSÃO DE LA MOLE 403 oitenta ou noventa anos no capítulo seguinte fala de um seu amigo que despende uma soma extraordinàriamente elevada quinhentos francos pelos favores de uma honnête femme du peuple e acrescenta à guisa de explicação cinq cent francs en 1832 cest comme mille en 1872 isto é 40 anos após o momento em que escreve e 30 anos após sua morte E poucas páginas mais adiante encontrase uma outra frase muito interes sante também neste sentido mas quase incompreensível devido à sua rápida estrutura diz nela que seria injusto que falasse mal de uma mulher muito jovem ainda pois possivelmente o seu palavreado seria publicado dez anos após a sua morte e continua Si je mets vingt toutes les nuances de la vie seront changées le lecteur ne verra plus que les masses Et ou diable sont les masses dans ces jeux de ma plume Cest une chose à examiner Para contribuir à interpretação desta passagem quero observar que masses se entendo corretamente seria tra duzível aproximadamente como grandes linhas Teme por tanto que vinte anos após a sua morte a vida terá mudado tão profundamente que tôdas as nuanças tornarseiam incompre ensíveis de tal forma que o leitor só poderia ver as grandes linhas de sua representação Mas onde diabo estão as gran des linhas nestes jogos da minha pena Poderíamos citar aqui muitas outras passagens semelhantes mas não é necessário pois o elemento perspectivo temporal apresentase em tôda parte na própria representação Stendhal sempre trata nos seus escritos realistas da realidade com que se defronta je prends au hasard ce qui se trouve sur ma route é assim que diz não longe da passagem que acabamos de trans crever não escolheria o homem neste seu afã de conhecêlo fiste método que Montaigne já conhecia é o melhor para excluir a arbitrariedade da construção própria e para se entregar íi realidade dada Mas a realidade com que se defrontava estava construída de tal forma que não podia ser representada sem lima referência constante às violentas mudanças do passado imediato e sem um tatear présensível das mudanças futuras Tòdas as figuras humanas e todos os acontecimentos humanos upresentamse na sua obra sôbre uma base política e social mente movimentada Para figurarnos o que isto significa comparemolo com os mais conhecidos escritores realistas do século XVIII prérevolucionário com Lésage ou com o Abbé Prévost com o excelente Henry Fielding ou com Goldsmith considerese quão mais exata e profundamente dedicase às condições reais da sua época do que Voltaire Rousseau e a obra realista da juventude de Schiller e como é mais larga a base sAbrc a quul se apóia do que a de SaintSimon que tinha lido muito emboru numa edição muito incompleta que era a que existiu então Na medida cm que o realismo moderno sério mio pode representar o homem engastado numa realidade polí licoióuiorcouòmicii ile conjunto concreta em constante evo 404 MIMESIS lução assim como agora ocorre em qualquer romance ou filme Stendhal é o seu fundador Contudo a ideologia segundo a qual Stendhal apreende o acontecer e procura reproduzir as suas engrenagens apresenta ainda pouca influência do historicismo êste último penetrou durante o seu tempo na França mas o afetou pouco precisa mente por isto embora tenhamos falado nas últimas páginas de perspectivismo histórico e da constante consciência das mu danças e estremecimentos não falamos de uma compreensão das evoluções Não é totalmente fácil descrever a sua posição interna perante os fenômenos sociais É sua intenção captar cada uma das suas nuanças êle constrói com a maior exatidão a estrutura individual de cada ambiente não possui qualquer sistema racionalista preconcebido acêrca dos fatores gerais que determinam a vida social nem uma imagem modelar de como deveria ser a sociedade ideal mas em seus pormenores a sua representação dos acontecimentos dirigese em tudo de acôrdo com o sentido da psicologia clássicamoral para uma analyse du coeur humain e não para uma pesquisa ou para um pressen timento de fôrças históricas encontramse nêle motivos raciona listas empíricos sensualistas mas dificilmente motivos român ticohistóricos Mathilde de La Mole e a sua família estão orgulhosas da sua origem ela própria rende um culto fantástico a um dos seus antepassados que foi executado no século XVI por causa de uma conjuração Stendhal apresenta isto como elemento sociológica e psicologicamente importante da sua re presentação mas está muito longe de ter uma compreensão genética da essência e da função da aristocracia no sentido dos românticos Absolutismo religião e Igreja privilégios de classe tudo isto observa de modo não muito diferente de um iluminista médio isto é como uma rêde de superstições embus tes e intrigas em geral a intriga astuciosamente urdida junto com a paixão desempenha um papel decisivo na sua estruturação da ação enquanto que as fôrças históricas que lhe servem de base mal aparecem Evidentemente tudo isto pode ser expli cado a partir de sua ideologia política que era democrático republicana só isto já teria sido suficiente para tornálo imune contra o historicismo romântico e além do mais desgostavao extremamente a ênfase de escritores como Chateaubriand e também de Rousseau a quem amara em sua juventude afastouse mais e mais Por outro lado Stendhal também trata das classes da sociedade que segundo os seus ideais deveriam estar Ihe próximas de forma extremamente crítica e sem qualquer traço dos valores sentimentais que o Romantismo ligava à palavra povo A burguesia ativa na pratica que ganha decentemente o seu dinheiro causalhe um enfado insuperável tem horror da vertu républicaine dos Estados Unidos c não obstante tôda a sua objetividade lamenta a ruína da cultura social do ancien regime Ma foi Fesprit manque assim diz o capítulo XXX de I Ir uri Rrttlartl chaciin reserve toutes vrv NA MANSÃO DE LA MOLE 405 forces pour un métier que lui donne un rang dans le monde Não mais é o nascimento e também não mais o espírito ou a autoformação como honnête homme o que é decisivo é a destreza no ofício Êste não é um mundo no quai Stendhal Dominique possa viver e respirar Contudo também pode assim como os seus heróis trabalhar e ser ativo em caso de necessidade Mas como é possível levar a sério por muito tempo algo assim como um trabalho profissional objetivo Amor música paixão intriga heroísmo estas são coisas por cuja causa vale a pena viver Stendhal é um aristocrático filho ila grande burguesia do ancien régime não quer nem pode tornarse um bourgeois do século XIX Êle próprio o diz repe tidamente as minhas opiniões já foram republicanas desde a minha juventude mas a minha família legoume instintos aris tocráticos BruUtrd XIV depois da Revolução o público teatral embruteceu Brulard X X II eu mesmo fui liberal no tino 1821 mas achava os liberais outrageusement niais Souve nirs dégotisme V I a conversação com um gros marchand de province deixame embotado e infeliz para o dia todo Egotisme VII e pas sim tais manifestações e outras semelhantes que por vêzes se referem também à sua constituição física La nature ma donné les nerfs délicats et la peau sensible dune hmme Brulard XXXII encontramse em grande quantidade As vêzes tem acessos pronunciadamente socialistas no ano de IK11 só teria podido encontrarse energia na classe qui est en lutte avec les vrais besoins Brulard II e isto era válido não siSmentc para 1811 Mas acha insuportáveis o cheiro e o barulho ilii massa e nas suas obras por mais desconsideradamente rea listas que sejam no respeito a todo o resto não há povo nem no sentido românticonacional nem no sentido socialista vi pequenos burgueses e volta e meia figuras decorativas i iimii soldados criados e garçonetes Êle trata de preferência ile peculiaridades paisagísticas e nacionais por exemplo das ililorenças entre Paris e a província ou entre franceses e italia nos ou do caráter dos inglêses amiúde com perspicácia mas sempre a partir da própria experiência às vêzes de forma um Imito brusca e parcial Mas embora se trate de pormenores olvservados não de exemplos para formas estruturais universais mino seria o caso de Montesquieu não deixa de ser verdade que mui estão interpretados de forma genéticohistórica mas servem h iimn psicologia nacional moralísticoanedótica Poderseia liiliir de moralismo local Para entender de forma mais con i ixtii o que queremos dizer leiamse por exemplo as manifesta los de I9 c 4 de janeiro de 1817 em Rome Naples et Florence I iimlmentc vê o homem individual muito menos como produto ilii m u i situiiçiu histórica c como coadjuvante da mesma do que i miiii 11ni átomo dentro dela O homem parece ter sido jogado puise loituiliimente no ambiente cm que vive é um obstáculo um quiil se pode dar melhor ou pior não é pròpriamente um solo mil ri com o qual cslíi unido orgànicumcntc Além 406 MIMESIS disso a concepção stendhaliana do homem é no seu conjunto preponderantemente materialista e sensualista e disto encontrase um comprovante excelente em Henri Brulard XXVI Jappelle caractère dun homme sa manière habituelle daller à la chasse du bonheur em termes plus clairs mais moins qualificatifs len semble de ses habitudes morales Mas a felicidade mesmo quando no caso dos sêres humanos mais altamente organizados só pode ser encontrada no espírito na arte na paixão ou na fama conserva em Stendhal sempre uma tonalidade mais sensual e terrena do que nos românticos A sua aversão pela eficiência da burguesia provinciana contra o tipo de bourgeois que estava a se formar também poderia ser romântica mas um romântico dificilmente encerraria uma descrição da sua aversão pelas ativi dades lucrativas com as seguintes palavras Jai eu le rare plaisir de faire toute ma vie à peu près ce qui me plaisait Brulard XXXII A sua concepção do espírito e da liberdade é ainda totalmente a do século XVIII prérevolucionário embora só possa tornála real na sua própria pessoa mediante esforço e um tanto convulsivamente Êle deve pagar a liberdade com pobre za e com solidão interior e até também com solidão exterior e o esprit tornase fàcilmente paradoxal amargo e mordaz une gaîté qui fait peur Brulard VI O seu esprit não mais possui a segurançaemsi da época de Voltaire não domina com a mestria de um grande senhor do ancien régime nem a sua existência social nem uma parte especialmente importante da mesma as suas relações sexuais Até afirma que só chegou a ser engenhoso porque queria ocultar a sua paixão por uma mulher que não possuíra cette peur mille fois répétée a été dans le fait le principe dirigeant de ma vie pendant dix ans Egotisme cap 19 Tais traços fazemno parecer alguém nascido demasiado tarde que procura em vão tornar realidade a forma de vida de uma época passada Outros elementos da sua natureza a desconsiderada objetividade da sua fôrça rea lista a corajosa autoafirmação da sua pessoa diante do trivial juste milieu que estava em ascensão e outras coisas mais mostramno como precursor de certas formas posteriores de espírito e de vida Mas sempre sente e vivência a realidade do seu tempo como um obstáculo Por isso mesmo o seu realismo embora não tenha surgido de modo algum ou só muito tênuemente de uma compreensão genética amorosa dos desenvolvimentos isto é de uma ideologia histórica está tão enérgica e estreitamente ligado à sua existência o realismo dêste cheval ombrageux é um produto da luta pela sua autoafir mação e a partir disto explicase que o nível estilístico dos seus grandes romances realistas se aproxime muito mais do antigo conceito grande e heróico do trágico do que aquêle da maioria dos realistas posteriores Julien Sorel é muito mais herói do que as figuras de Balzac ou de Flaubert A partir de um outro ponto dc vista que já acabamos dc insinuar é evidente que está muito próximo do eu contem NA MANSÃO DE LA MOLE 407 porâneos românticos na luta contra as fronteiras estilísticas entre o realista e o trágico Nisto até os sobrepuja pois é muito mais conseqüente e legítimo e com base nesta coinci dência lhe foi possível também em 1822 aparecer como partidário da nova tendência É fato conhecido que a regra estilística clássica que excluía todo e qualquer realismo material das obras trágico sérias já se afrouxara durante o século XVIII tratamos disso nos dois capítulos precedentes Mesmo na França êste afrou xamento é perceptível já na primeira metade do século XVIII Durante a segunda metade foi sobretudo Diderot quem pro pagou tanto teórica como pràticamente um nível estilístico médio sem ultrapassar contudo o burguêscomovente Nos seus romances especialmente no Neveu de Rameau apresenta personagens da vida quotidiana e da classe média quando não baixa com uma certa seriedade Mas esta seriedade lembra mais o moralista e satírico do iluminismo do que o realismo do sécu lo XIX Na figura e na obra de Rousseau há decididamente um germe de evolução posterior Rousseau podia como diz Meinecke no seu ljvro sôbre o historicismo II 390 mesmo Km penetrar até o pensamento cabalmente histórico coadjuvar ii despertar o nôvo sentido pelo individual somente pelo desven diimcnto da sua própria e incomparável individualidade Mei nccke fala aqui do pensamento histórico coisa semelhante po deria ser dita do realismo Rousseau não é propriamente realis ta trata dos seus temas sobretudo da sua própria vida com um intcrêsse tão fortemente apologético e críticomoral o seu juízo iicêrcu dos acontecimentos está tão fortemente determinado pelos HiMiíi princípios de direito natural que a realidade do mundo Hoanl não se torna imediatamente um objeto para êle Contudo 0 exemplo das Confessions que procuram representar a própria uxiHtÊncia na sua situação real com respeito à vida contemporânea f importante como modêlo estilístico para aquêles escritores que possuíam mais sentido para a realidade dada do que êle Miiis importante talvez na sua influência mediata sôbre o rea liHmo sério é a sua politização do conceito idílico da natureza rlii criou uma imagem ideal para a conformação da vida que como é sabido exerceu forte sugestão e que se acreditava pudesse ser tornada realidade de forma imediata Estava em contraste mm ii reulidadet histórica existente historicamente devinda e êste routruRle tornavase tanto mais forte quanto mais claramente se evidenciava que a realização do ideal estava fadada ao fracasso 1 cuia forma a realidade prática histórica converteuse em proble mii dc uma maneira antes desconhecida mais concreta e mais próxima Nos primeiros decênios após a morte de Rousseau no préromiintismo francês o efeito daquela terrível desilusão foi evidentemente totulmente contrário apresentouse justamente mi cno do encritore mui importantes uma tendência para u fuiii dn rciilidmle contemporftnea A Revolução o Império 408 MIMESIS e ainda a época da Restauração são pobres em obras literárias realistas Os heróis dos romances préromânticos delatam uma aversão por vêzes quase mórbida a entrar em contato com a vida contemporânea Já para Rousseau a contradição entre o natural que desejava e o real historicamente fundamentado com que se deparava tornarase trágica mas esta contradição incitarao para a luta pelo natural Não mais vivia quando a Revolução e Napoleão criaram uma situação totalmente nova mas não uma situação natural no sentido de Rousseau mas ainda uma situação ligada historicamente A geração seguinte profundamente impressionada com os seus pensamentos e com as suas esperanças viveu a resistência vitoriosa do históricoreal e precisamente aquêles que mais profundamente sentiram a sua influência encontramse num mundo nôvo que destruíra totalmen te as suas esperanças e no qual não puderam se sentir à vontade Entraram em oposição com êle ou afastaramse dêle Da herança de Rousseau guardaram somente a cisão interna a tendência para a fuga da sociedade a necessidade de se isolar e de ficar sòzinho o outro lado da natureza de Rousseau o lado revolucionário e combatente êste êles perderam As circunstâncias externas que destruíram a unidade da vida espiritual e a influência dominadora da literatura na França também contribuíram para esta evolução Dificilmente se encontrará uma obra literária importante desde a eclosão da Revolução até a queda de Napoleão na qual não se apresentem sintomas desta fuga do real e çontemporâneo e mes mo entre os grupos românticos posteriores a 1826tais sintomas estão muito difundidos Êles se apresentam da maneira mais pura e completa em Senancour A relação da maioria dos pré românticos com a realidade social do seu tempo é justamente no seu caráter negativo muito mais sèriamente problemática do que a da sociedade iluminista O movimento rousseauniano e a grande decepção que sofreu foram pressupostos para o surgimen to da visão moderna da realidade Na medida em que Rousseau contrapunha com paixão o estado natural do homem e a realida de da vida existente e historicamente devinda converteu esta úl tima em problema prático somente então desvalorizouse a re presentação historicamente aproblemática e imóvel da vida no estilo do século XVIII O romantismo que se tinha desenvolvido muito antes na Alemanha e na Inglaterra e cujas tendências históricas e indivi dualistas estavam se preparando também na França fazia muito tempo chegou a se desenvolver por completo após 1820 e como é sabido foi precisamente o princípio da mistura de estilos aquilo que Victor Hugo e seus amigos levantaram como grito de guerra próprio do seu movimento nêle se manifestava da maneira mais evidente o contraste com o tratamento clássico dos temas e com a linguagem literária clássica Mas já na formulação de Hugo se apresenta algo de demasiado exaccrbadamente antitético tratase para êle da mistura do sublime com o grotesco Ambos são pólos estilísticos que não tomam em consideração u rcul NA MANS AO DE LA MOLE 409 De fato não tinha a intenção de representar a realidade dada de forma compreensiva antes ressalta nos temas históricos ou contemporâneos os pólos estilísticos do sublime e do grotesco ou também outras contradições éticas ou estéticas e o faz com lanto vigor que êles se chocam entre si com violências desta forma embora surjam efeitos fortes pois a fôrça de expressão de Hugo é poderosa e sugestiva são inverossímeis e como reprodução da vida humana falsos Outro escritor da geração romântica Balzac que possuía lanta capacidade criadora e muito maior proximidade do real tomou a representação da vida contemporânea como a tarefa mais própria e pode ser considerado juntamente com Stendhal como 0 criador do realismo moderno É dezesseis anos mais nôvo do que êste mas os seus primeiros romances característicos apa recem bastante simultâneamente com os de Stendhal isto é ao redor de 1830 Como exemplo da sua maneira de representar mostraremos primeiramente o retrato de Mme Vauquer a dona ila pensão do romance Le Père Goriot surgido em começos de 1834 Antecedeo uma descrição muito exata do bairro em que se encontra a pensão da casa em si das duas habitações do térreo dêste conjunto todo resulta a impressão intensa de descon solada pobreza desgaste e rancidez sendo que juntamente com a descrição material sugerese também a atmosfera moral Depois ila descrição da instalação da sala de jantar aparece finalmente a dona da casa em pessoa Cette pièce est dans tout son lustre au moment où vers sept heures du matin le chat de Mme Vauquer précède sa maîtresse unité sur les buffets y flaire le lait que contiennent plusieurs jattes couvertes dassiettes et fait entendre son ronron matinal Ilientôt la veuve se montre attifée de son bonnet de tulle sous lequel pend un tour de faux cheveux mal mis elle marche en niinussant ses pantoufles grimacées Sa face vieillotte gras souillette du milieu de laquelle sort un nez à bec de perroquet seit petites mains potelées sa personne dodue comme un rat dé jiIiho son corsage trop plein et qui flotte sont en harmonie avec cette salle où suinte le malheur où sest blottie la spéculation el dont Mme Vauquer respire lair chaudement fétide sans en itie écœurée Sa figure fraîche comme une première gellée dautomne scs yeux ridés dont lexpression passe du sourire pres i it aux danseuses à lamer renfrognement de lescompteur enfin toute sa personne explique la pension comme la pension implique sa personne Le bagne ne va pas sans Pargousin vous nima limciiez pas lun sans lautre Lembonpoint blafard de cette petite femme est le produit de cette vie comme le typhus est la 1 uiiscqueiice des exhalaisons dun hôpital Son jupon de laine li notée qui dépasse sa première jupe faite avec une vieille robe et ilmit lu ouate séchappe par les fentes de létoffe lézardée résume le silo n la salle à manger le jardinet annonce la cuisine et luit piessentii les pensionnaires Q u a n d elle est lá ce spectacle 410 MIMESIS est complet Agée denviron cinquante ans Mme Vauquer ressem ble à toutes les femmes qui ont eu des malheurs Elle a loeil vitreux lair innocent dune entremetteuse qui va se gendarmer pour se faire payer plus cher mais dailleurs prête à tout pour adoucir son sort à livrer Georges ou Pichegru si Georges ou Pichegru étaient encore à livrer Néanmoins elle est bonne femme au fond disent les pensionnaires qui la croient sans fortune en lentendant geindre et tousser comme eux Quavait été M Vauquer Elle ne sexpliquait jamais sur le défunt Comment avaitil perdu sa fortune Dans les malheurs répondaitelle Il sétait mal conduit envers elle ne lui avait laissé que les yeux pour pleurer cette maison pour vivre et le droit de ne compatir à aucune infortune parce que disaitelle elle avait souffert tout ce quil est possible de souffrir2 O retrato da dona da pensão está ligado à sua aparição matutina na sala de jantar aparece neste ponto central de sua atividade introduzida um pouco à maneira das bruxas pelo gato que pula sôbre o aparador e imediatamente começa uma descri ção pormenorizada da sua pessoa A descrição é feita sob um motivo principal que é repetido várias vêzes o motivo da harmo nia entre a sua pessoa por um lado e o espaço em que se encontra a pensão que dirige a vida que leva pelo outro em poucas palavras a harmonia entre a sua pessoa e aquilo que nós e às vêzes também já Balzac chamamos de meio Esta harmonia é sugerida da forma mais penetrante em primeiro lugar o aspecto gasto gordo sujamente quente e repulsivamente sexual do seu corpo e das suas roupas o que concorda com o Z Êste cômodo está em todo o seu esplendor quando perto das sete horas de manhã o gato da senhora V auquer precede sua dona salta sôbre os apara dores para farejar o leite contido em várias jarras cobertas com pires e faz ouvir o seu romrom matinal Logo a viúva aparece ataviada com a sua touca de tule sob a qual pende um a mecha de cabelo postiço mal colocada cia anda arrastando os seu chinelos tortos Seu rosto velhote rechonchudo do meio do qual surge um nariz de bico de papagaio suas pequenas mãos roli ças sua pessoa redonda como um rato de igreja o seu corpete demasiado cheio e flutuante estão em harmonia com esta sala onde ressuma a desdita onde se acaçapa a especulação e cuio ar mormente fétido a senhora Vauouer respira sem repugnância Sua figura fresca como uma prim eira geada outonal seus olhos enrugados cuja expressão passa do sorriso prescrito às dançarinas ao franzimento amargo do usurário enfim tôda a sua pessoa explica a pensão como a pensão implica a sua pessoa As galés não ficam bem sem o comitre não imaginaríeis uma sem o outro A gordura baça desta peauena mulher é o produto desta vida como o tifo é a conseqüência das exalações de um hospi tal A sua anágua de lá tricofada que sobressai da sua saia feita de um velho vestido cujo recheio escapa pelos rasgos do tecido puído resume o alão a sala de jantar o jardinzinho anuncia a cozinha e faz pressentir os pen sionistas Quando ela está lá êste espetáculo está completo Com cèrca de cinqUenta anos a senhora Vauquer parecese com tôdas as mulheres que tiveram desgraças Tem os olhos vítreos o ar inocente de uma alcoviteira que se deixa irritar para se fazer pagar mais caro mas antes de mais nada disposta a tudo para adocicar a sua sorte disposta a entregar Jorge ou Pichegru se Jorge ou Pichegru pudessem ainda ser entregues NSo obstante ela é uma boa mttlhïr no fundot dizem os pensionistas que acham que ela não tem fortuna e a ouvem gemir e tossir como âles O que tinha lido o senhor Vauquer Ela nunca explicava a sorte do defunto Como havia perdido sua fortuna Na des graças respondia Êle tinha ie comportado mal para com la n lo lhe tinha deixado senão os olhos para chorar esta casa para viver e o direito d i nlo se compadecer com nenhum infortúnio porqu dlzlt la tinha sofrido tudo o que é possível sofrer NA MANSÃO DE LA MOLE 411 ar da habitação que ela respira sem nojo pouco mais tarde em ligação com o seu rosto e com os seus gestos faciais o motivo é considerado de forma um pouco mais moralista a saber acen tuando enèrgicamente a relação mútua entre pessoa e meio sa personne explique la pension comme la pension implique sa per sonne A isto juntase a comparação com as galés A isso segue se uma interpretação mais médica na qual o embonpoint blafard da senhora Vauquer como produto da sua vida é comparado com o tifo como conseqiiência das exalações de um hospital Final mente o seu saiote é valorizado como uma espécie de síntese das diferentes especialidades da pensão como antegosto dos produtos da cozinha e como préanúncio dos hóspedes da pensão Êste saiote tornase por um instante símbolo do meio e depois o conjunto todo é ainda resumido na frase quand elle est là ce spectacle est complet não é necessário esperar o desjejum e os hóspedes tudo isso já está incluído na sua pessoa Não parece existir uma ordenação consciente das diferentes retomadas do motivo da harmonia assim como não parece que Balzac tivesse seguido um plano sistemático na descrição da aparência de Mme Vauquer a seqüência das coisas mencionadas cobertura da cabeça penteado chinelos rosto mãos corpo novamente rosto olhos corpulência saiote não permite reconhecer qualquer iraço de composição também não é indicada nenhuma separação entre roupa e corpo nem entre um traço físico e o seu significado moral A descrição tôda até o ponto em que a consideramos dirigese para a fantasia recriativa do leitor às imagens lem brudas de pessoas semelhantes e de meios semelhantes que êle possa ter conhecido A tese da unidade de estilo do meio na qual são também incluídos os sêres humanos não é fundamentada racionalmente mas é apresentada como um estado de coisas sen nlvelmente penetrantes de forma imediata de maneira puramente sugestiva sem provas Numa frase como esta ses petites mains potelées sa personne dodue comme un rat déglise sont en harmonie avec cette salle où suinte le malheur et dont Mme Vauquer respire lair chaudement fétide pressupõe a tese du harmonia com tudo o que ela traz consigo significação ociológicomoral dos móveis e das peças de vestuário possibilida de de determinar os elementos ainda não visíveis do meio a partir dos que já foram dados etc Também a menção das galés e In tifo só são comparações sugestivas não são provas nem tenta tivas para tanto A falta de ordem e o desleixo racional do texto são conseqüências da pressa com que Balzac trabalhava mu mesmo assim não são casuais pois a própria pressa é em bon purte um resultado da própria possessão por imagens suges 11vim O motivo da unidade do meio apossouse do próprio lliiliic com tanto ímpeto que os objetos e as pessoas que aiiutltuem um meio ganham para êle freqüentemente uma espé cie de egundu lignificaço diferente da significação racionalmente cugnuictvcl mu muito mais essencial uma significação que é ilrflnliln du melhor miinelrn poível pelo adjetivo demoníaco 412 MIMESIS Na sala de jantar com os seus móveis e apetrechos gastos e mesquinhos mas que não deixam de ser tranqüilos e inofensivos para uma mente não influenciada pela fantasia ressuma a desgraça acaçapase a especulação em meio a esta quotidiani dade trivial ocultamse bruxas alegóricas e no lugar da viúva rechonchuda e desordenadamente vestida vêse surgir por um instante uma ratazana Tratase portanto da unidade de um espaço vital determinado sentida como uma visão de conjunto demoníacoorgânica e descrita com meios extremamente suges tivos e sensíveis A parte seguinte do nosso texto na qual o motivo da har monia não mais é mencionado ocupase do caráter e da história pregressa da senhora Vauquer Mas seria um êrro ver nesta separação entre por um lado a aparência e pelo outro o cará ter e a história pregressa um princípio proposital de compo sição Mesmo nesta segunda parte aparecem ainda caracterís ticas físicas ceiV vitreux e muito freqüentemente Balzac também ordena de forma diferente ou mistura totalmente entre si os elementos físicos morais e históricos de um retrato O tratamento do caráter e da história pregressa não tem no nosso caso a finalidade de esclarecer algo disso tudo mas serve para colocar a obscuridade de Mme Vauquer sob uma luz apro priada isto é sob o luscofusco do demonismo subalterno e trivial No que se refere à história pregressa a dona da pensão integra a categoria das mulheres aproximadamente cinqüentonas qui ont eu des malheurs plural Balzac não dá explicação alguma acêrca da sua vida pregressa mas reproduz parcialmen te em discurso indireto a tagarelice informemente plangente perdidamente coloquial que ela mesma sói apresentar diante de inquirições compadecidas Também aqui apresenta o plural suspeito que se exime da informação precisa o seu falecido marido teria perdido a sua fortuna dans les malheurs de forma totalmente semelhante àquela em que mais tarde outra viúva suspeita indica que o seu marido que tinha sido conde e general morrera sur les champs de bataille A isto corresponde o baixo demonismo do caráter de Mme Vauquer parece bonne femme au fond parece ser pobre mas possui como é dito mais tarde uma bela fortuninha e é capaz de qualquer baixeza vulgar para melhorar um pouco a própria sorte a limitação baixa e vulgar das metas dêste egoísmo a mistura de tolice astúcia e fôrça vital escondida dá novamente a impressão de algo repulsivamente fantasmagórico novamente impõese a comparação com um rato ou comi um outro animal que tem sôbre a fôrça imaginativa dos homens um efeito demoníaco e vil A segunda parte da descrição é portanto uma complementação da primeira depois de Mme Vauquer ter sido apresentada na primeira parte como síntese da unidade do espaço vital por ela dominado na segundn aprofundase a opacidade e a baixeza do seu ser que deve agir no mencionado espaço NA MANSÃO DE LA MOLE 413 Em tôda a sua obra como neste texto Balzac sentiu os meios por mais diferentes que fôssem como unidades orgânicas demoníacas até e tentou transmitir esta sensação ao leitor Êle não somente localizou os sêres cujo destino contava sèriamente na sua moldura histórica e social perfeitamente determinada como o fazia Stendhal mas também considerou esta relação como necessária todo espaço vital tornase para êle uma atmos fera éticosensível cuja paisagem habitação móveis acessórios vestuário corpo caráter trato ideologia atividade e destino permeiam o ser humano ao mesmo tempo que a situação histó rica geral aparece novamente como atmosfera geral que abrange todos os espaços vitais individuais É digno de ser notado que conseguiu isto da maneira mais perfeita e legítima com referên cia aos círculos da burguesia média e pequena de Paris e da província enquanto que a sua representação da sociedade dis tinta é amiúde melodramática ilegítima e às vêzes até de um efeito cômico contrário às suas intenções Em geral Balzac não está isento de exageros melodramáticos mas enquanto isto só raramente prejudica a legitimidade do conjunto nas esferas baixas ou médias não é capaz de criar a atmosfera certa para as zonas mais elevadas da vida também não para as espirituais O realismo atmosférico de Balzac é um produto da sua época é êle próprio parte e produto de uma atmosfera A mes ma forma espiritual isto é a romântica que começava a perceber sensivelmente com tanta intensidade a unidade atmos férica de estilo das épocas anteriores que descobria a Idade Mé dia o Renascimento e também a forma historicamente peculiar das culturas estranhas Espanha o Oriente esta mesma forma espiritual desenvolveu também a compreensão orgânica para a peculiaridade atmosférica da própria época em tôdas as suas variadas formas O historicismo atmosférico e o realismo atmos lérico estão em estreita correlação Michelet e Balzac são arras Imlos pelas mesmas correntes Os acontecimentos que tiveram lugiir na França precisamente entre 1789 e 1815 e as suas conseqüências nos anos sucessivos trouxeram como seqüela o Imo de ser precisamente na França onde o realismo moderno contemporâneo chegou mais cedo e mais fortemente se desen volvcu e a unidade políticocultural do país deulhe neste sen lido um avanço importante com respeito à Alemanha A rea lidade francesa podia ser abrangida em tôda a sua variedade como um todo Em grau não menor do que a simpatia român tica pelu totalidade atmosférica dos espaços vitais também uma outrii corrente romântica contribuiu para o desenvolvimento do iciilismo moderno a saber aquela da qual já falamos tão repe tiiliimciilc a mistura de estilos Foi ela que permitiu que perso nagens de qualquer classe social com todos os seus entrelaça mentos vitais práticoquotidiunos tanto Julien Sorel como o velho íoiiot ou Mmc Viiuquer se tornassem objetos da representação litcniriii sórin 414 MIMESIS Estas considerações gerais parecemme evidentes é muito mais difícil descrever com alguma exatidão a ideologia que domina precisamente a especial maneira de representar de Bal zac As indicações que êle próprio faz a respeito são numerosas e dão também muitos pontos de apoio mas são confusas e contraditórias Por mais que êle seja rico em idéias e em ima ginação não possui a qualidade de separar entre si os diversos elementos da sua própria ideologia não é capaz de represar a irrupção de imagens e comparações sugestivas mas carentes de clareza em meio a análises racionais e em geral não conse gue adotar uma posição crítica diante da corrente da sua própria inspiração Tôdas as suas análises racionais embora estejam cheias de observações isoladas agudas e originais levam a uma fantasiosa macroscopia que lembra o seu contemporâneo Hugo No entanto para uma explicação de sua arte realista é neces sária precisamente uma nítida separação das correntes que nela confluem No Avantprapos à Comédie humaine publicada em 1842 Balzac começa a explicação da sua obra com uma comparação entre o reino animal e a sociedade humana para a qual se deixa inspirar pelas teorias de Geoffroy SaintHiiaire Êste biólogo sustentava sob a influência da filosofia natural especu lativa alemã da época o princípio da unidade típica na organi zação isto é a idéia de que na organização das plantas e dos animais haveria um plano geral Balzac lembra nesta ocasião os sistemas de outros místicos filósofos e biólogos Swedenborg SaintMartin Leibniz Buffon Bonnet Needham para formu lar finalmente os seus pensamentos da seguinte forma Le créateur ne sest servi que dun seul et même patron pour tous les êtres organisés Lanimal est un principe qui prend sa forme extérieure ou pour parler plus exactement les différences de sa forme dans les milieux où il est appelé à se développer A Êste princípio é transferido imediatamente à sociedade humana La Société com maiúscula como pouco antes Nature ne faitelle pas de lhomme suivant les milieux où son action se déploie autant dhommes différents quil y a de variétés en zoologie4 E depois compara as diferenças entre um soldado um trabalha dor um funcionário um advogado um vadio um sábio um estadista um comerciante um marinheiro um poeta um pobre 3 O Crlador nSo se serviu senão de um só modêlo para todos os sire organizados O animal é um princípio que assume sua forma exterior ou para falar mais exatamente as diferençai de sua forma nos meios onde chamado a se desenvolver 4 A Sociedade nlo faz do homem legundo os melos onde sua aclo 0 desenvolve tanto homens diferentes quantas há variedades zoológicas NA MANSÃO DE LA MOLE 415 um sacerdote com as que existem entre lôbo leão burro corvo tubarão e assim por diante Disto surge em primeiro lugar que Balzac tenta funda mentar as suas opiniões acêrca da sociedade humana tipo huma no diferenciado pelo meio mediante analogias biológicas A palavra meio milieu que aparece aqui pela primeira vez em sentido sociológico e à qual estava destinada uma tão grande carreira Taine parece têla recebido de Balzac Balzac apren deua de Geoffroy SaintHilaire o qual por sua vez a tinha transferido do campo da física para o da biologia Agora ela emigra da biologia para a sociologia O biologismo que Balzac tem em mente é como pode ser deduzido dos nomes por êle citados místico especulativo e vitalista com isto a representa ção ideal o princípio animal ou homem não está conce bido de modo algum de forma imanente mas como que uma idéia real platônica As diferentes espécies e gêneros são só formes extérieures E além do mais elas próprias não são vistas como historicamente mutantes mas como fixas um sol dado um trabalhador etc assim como um leão um burro A significação própria da idéia de meio assim como a apli cava na prática nos seus romances Balzac não parece têla reconhecido totalmente aqui Não a palavra mas a coisa o meio em sentido social já existiu muito antes dêle Montes quieu possui esta idéia inconfundivelmente mas enquanto Mon tesquieu dá muito maior consideração às condições naturais clima solo do que às que surgiram da história da humanidade c enquanto se afana em construir os diferentes meios como representações modelares inamovíveis às quais é possível aplicar cuso por caso o modêlo de constituição e de legislação apro priado para elas Balzac está na prática inteiramente sob o sortilégio dos elementos estruturais históricos e constantemente mutantes do seu meio E nenhum leitor chega de per si à idéia que Balzac parece defender no Avantpropos ou seja que o que lhe interessa é o tipo homem ou até mesmo somente os lipos especiais soldado comerciante o que se vê é a figura individual concreta internamente corpórea e histórica surgidu da imanência da situação histórica social física etc o cm constante mutação não o soldado mas por exemplo o coronel Bridau em Issoudun La Rabouilleuse licenciado após ii queda de Napoleão desmoralizado e entregue à aventura Após a audaciosa comparação entre a diferenciação zooló gica c sociológica Balzac se esforça contudo em salientar as peculiaridades da Société em contraste com a Nature Êle as vê mites de mais nada na muito maior variedade da vida humana c dos costumes humanos assim como na possibilidade inexistente no reino animal de se transformar uma espécie em ontra Lépicier devient pair de France et le noble descend parfois au dernier rang social outrossim há o acasalamento de ripéeie diferentes la femme dun marchand est quelquefois ililtnr dêtre celle dun prince dam la Société la femme ne 416 MIMESIS se trouve pas toujours être la femelle dun mâle também são mencionados os dramáticos conflitos amorosos raramente exis tentes no reino animal e os diferentes graus de inteligência de diferentes sêres humanos A oração que resume tudo diz LEtat social a des hasards que ne se permet pas la Nature car il est la Nature plus la Société Por mais inexato e macroscópico que seja êste período por mais que sofra por causa do proton pseudos falsidade inicial da comparação que lhe serve de fundamento não deixa de conter uma compreensão histórica instintiva les habitudes les vêtements les paroles les demeures changent au gré des civilisations e algo de dinamismo vitalista si quel ques savants nadmettent pas encore que lAnimalité se trans borde dans lHumanité par un immense courant de vie Não se fala nas especiais possibilidades de compreensão de que o homem dispõe frente ao homem também não em uma formu lação negativa isto é que comparados com êle osanimais não a possuem pelo contrário a simplicidade relativa da vida social e espiritual dos animais é colocada como fato objetivo e só no fim encontrase uma insinuação do caráter subjetivo de tais conhecimentos les habitudes de chaque animal sont à nos yeux du moins constamment semblables en tout temps Depois desta transfusão do biológico ao históricohumano Balzac prossegue com uma polêmica contra a historiografia habi tual à qual lança em rosto ter negligenciado até então a histó ria dos costumes esta seria a tarefa à qual êle terseia avocado Com isto não menciona os ensaios de história dos costumes que foram feitos a partir do século XVIII Voltaire portanto não se chega também a uma análise que explicasse a diferença entre a sua representação dos costumes e a dos seus eventuais predecessores somente menciona Petrônio Ao observar as di ficuldades da sua tarefa um drama com três ou quatro mil personagens sentese encorajado pelo exemplo dos romances de Walter Scott movimentamonos estritamente no mundo do his toricismo romântico Também aqui a clareza do pensamento vêse prejudicada pelas formulações cheias de efeitos e fantasia por exemplo faire concurrence à lEtatCivil é incompreensível e a frase le hasard est le plus grand romancier du monde neces sita dentro de uma mentalidade histórica ao menos de um comentário Contudo alguns motivos significativos e caracte rísticos ressaltam bem antes de mais nada a concepção do romance de costumes como história filosófica e em geral a interpretação sustentada enèrgicamente por Balzac também alhu res de que a sua atividade deve ser considerada como historio grafia ainda voltaremos a êste ponto outrossim a justificação de tôdas as espécies e de todos os níveis estilísticos em obras dêste gênero e finalmente a sua intenção de superar Walter Scott na medida em que encerra todos os seus romances num conjunto único numa representação global da sociedade fran cesa do século XIX o que volta a designar aqui como obra histórica NA MANSÃO DE LA MOLE 417 Mas com isto o seu plano não se esgota quer prestar con tas pormenorizadas ainda acêrca de les raisons ou la raison de ces effets sociaux e se teve êxito pelo menos na procura de ce moteur social quer finalmente também méditer sur les principes naturels et voir en quoi les Sociétés sécartent ou se rapprochent de la règle éternelle du vrai du beau Não é necessário que insistamos acêrca da sua incapacidade de tecer considerações teóricas fora dos limites de uma narração nem acêrca do fato de que portanto só poderia tentar a realização dos seus planos em forma de romances Aqui somente interessa constatar que não lhe bastava a filosofia imanente dos seus romances de costumes e que esta insatisfação o induz aqui após tanta dis cussão biológica e histórica a empregar imagens modelares clás sicas la règle éternelle le vrai le beau categorias que não mais pode aproveitar de forma prática era seus romances Todos êstes motivos biológicos históricos clàssicamente morais encontramse espargidos efetivamente pela sua obra Gosta muito de comparações biológicas fala em fisiologia ou zoologia motivado por fenômenos sociais fala da anatomie du cœur humain no texto acima citado compara os efeitos de determinado meio social com as exalações que produzem o tifo e numa outra passagem do Père Goriot diz que Rastignac se leria entregue aos ensinamentos e seduções do luxo avec lardeur dont est saisi limpatient calice dun dattier femelle pour les fécondantes poussières de son hyménée É desnecessário enume rar motivos históricos pois o espírito atmosféricoindividuali zante do historicismo é o espírito de tôda a sua obra mas quero citar pelo menos uma de muitas passagens para mostrar que cru constantemente consciente das concepções historicistas A passagem consta do seu romance de província La vieille fille tratase de dois senhores de certa idade que moram em Alen çon um dêles é um típico cidevant o outro um oportunista da revolução falido Les époques déteignent sur les hommes qui les traversent Ces deux personnages prouvaient la vérité de cet axiome par lopposition des teintes historiques empreintes dans leurs physio nomies dans leurs discours dans leurs idées et leurs coutumes5 r numa outra passagem do mesmo romance fala por ocasião île uma casa de Alençon do archétype que ela representaria aqui não se trata do arquétipo de um ente abstrato histórico mas laqueie das maisons bourgeoises de uma grande parte da Irança A casa cujo saboroso caráter local descreveu anterior mente mereceria o seu lugar nesta obra tanto mais quil expliiue de tnarurs et représente des idées Elementos bioló Ah época dcftboinnt Abre ou homens que as atravessam Estas duas IHHtnnnycn ptnvitvmn a verdade díxle axioma pela oposiço das tintas hís irtih m impie cm iuai ÍU ionom lai nai ftuan palavras nas siuls icfâias e t nlttHIH 418 MIMESIS gicos e historicistas reúnemse na obra de Balzac e o fazem bastante bem não obstante algumas faltas de clareza e de muitos exageros pois ambos encaixam no caráter românticodinâmico da mesma caráter que por vêzes transborda no românticomá gico e demoníaco Em ambos os casos sentese a ação de fôrças irracionais Em contraste o elemento clássicomora lista age freqüentemente com um corpo estranho Manifestase particularmente na propensão de Balzac para a formulação de sentenças morais de caráter generalizador Por vêzes e como observações isoladas são engenhosas mas sofrem em geral de uma generalização desmedida por vêzes nem são engenhosas e quando crescem até se converterem em análises mais prolonga das surge o que vulgarmente se denomina de palavrório Quero citar aqui algumas máximas que se encontram no Père Goriot i Le bonheur est la poésie des femmes comme la toilette en est le fard La science et lamour sont des asymptotes que ne peuvent jamais se rejoindre Sil est un sentiment inné dans le cœur de lhomme nestce pas lorgueil de la protec tion exercé à tout moment en faveur dun être faible Quand ou connaît Paris on ne croit à rien de ce qui sy dit et lon ne dit rien de ce qui sy fait Un sentiment nest ce pas le monde dans une pensée O mínimo que pode ser dito sôbre tais sentenças é que não merecem em sua maioria a generalização de que gozam São as ocorrências surgidas da situação do instante por vêzes muito oportunas por vêzes absurdas nem sempre de bom gôsto Balzac ambiciona ser um moralista clássico ocasionalmente en contramse nêle até reminiscências de La Bruyère por exemplo uma passagem no Père Goriot onde são descritos os efeitos físi cos e espirituais da posse de dinheiro por ocasião da remessa de dinheiro que Rastignac recebe de sua família Mas isto não casa nem com o seu estilo nem com o seu temperamento As melhores formulações encontraas em meio às narrações quan do nem pensa em moralizar assim quando na Vieille Fille diz acerca de Mlle Cormon aproveitando a oportunidade do ins tante Honteuse ellemême elle ne devinait pas la honte dautrui Acêrca do plano do conjunto que ia se formando paula tinamente dentro dêle há ainda outras interessantes declarações dêle próprio sobretudo do tempo em que o fixou definitivamente nas cartas escritas ao redor de 1834 Há três motivos que devem ser salientados especialmente nestas autointerpretações 6 A felicidade é a poesia das mulheres assim como a toilette é seu disfarce A ciência e o am or são assíntotas que nunca podem se encon trar Se há um sentimento inato no coração do homem não 6 êle o orgulho da proteção exercida em favor de um ser débil Quando ne conhece Pariu não se acredita em nada do que dizem a seu respeito o nfto w dit nndn acêrtn do que lá se faz Um sentimento não é o mundo num pcnanmcnln NA MANSÃO DE LA MOLE 419 encontramse todos os três juntos numa carta à senhora von Hanska Lettres à FEtrangère Paris 1899 carta de 26 de outu hro de 1834 pp 200206 onde diz p 205 Les Etudes de Mœurs représenteront tous les effets sociaux sans que ni une situation de la vie ni une physionomie ni un caractère dhomme ou de femme ni une manière de vivre ni une profession ni une zone sociale ni un pays français ni quoi que ce soit de lenfance de la vieillesse de lâge mur de la politique de la justice de la guerre ait été oublié Cela posé lhistorié du coeur humain tracée fil à fil lhis toire sociale faite dans toutes ses parties voilà la base Ce ne seront pas des faits imaginaires ce sera ce qui se passe partout7 Dos três motivos que tenho em mente dois podem ser reconhecidos imediatamente primeiramente o caráter universal c vitalmente enciclopédico da intenção nenhuma parte da vida deve faltar logo depois o caráter realqualquer da mesma ce qui se passe partout O terceiro motivo reside na palavra histoire Nesta histoire du coeur humain ou histoire sociale não se trata de História no sentido corrente não da investigação científica de acontecimentos ocorridos mas de uma invenção relativamente livre não se trata de history mas de fiction os têrmos inglêses são especialmente claros não se trata de forma alguma do passado mas do presente contemporâneo que se estende quando muito por alguns anos ou décadas no passado Quando Balzac designa os seus Etudes de Mœurs au dixneuvième siècle como história de forma semelhante Stendhal já tinha dado ao seu romance Le Rouge et le Noir o subtítulo Chronique du dixneu vième siècle isto significa em primeiro lugar que considéra a sua atividade inventiva artisticamente conformadora como xendo uma atividade historicamente interpretativa até como uma atividade de filosofia da história como já podia ser apreen dido no Avantpropos em segundo lugar significa que consi dera o presente como história isto é o presente é algo que ocorre surgindo da história De fato os seus homens e os seus ambientes por mais presentes que sejam estão sempre represen I lidos como fenômenos que emanaram dos acontecimentos e das íórçiis históricas Basta reler por exemplo a descrição da ori gem da fortuna de Grandet Eugénie Grandet ou a carreira île Du Bousquier La vieille Fille ou a do velho Goriot para se aperceber disso nada semelhantemente consciente nem exato se encontra em parte alguma antes do aparecimento de Stendhal c de Halzac c êste último ultrapassa o primeiro de longe no 7 O fCstuüos de Costumes representarão todos os efeitos sociais sem liir nenhuma aituaçfio da vida nenhum fisionomia nenhum caráter de homem uii ile mulher nenhuma maneira de viver nenhuma profissão nenhuma zona ocinl nenhuma província francesa nada do que disser respeito à infância à vrlhUc h idade madura i política justiça à guerra tenha sido esquecido Uto pAftto ii hifttárlu do coraçfto humano traçada fio por fio a história um In feiu cm Adiu n Minn piirtc ei n bane N lo wrflo fatos imaginários oiA n ir um nlcrr rm Mn parte 420 MIMESIS que se refere à ligação orgânica entre homem e história Uma tal concepção e uma tal prática são totalmente historicistas Voltemos ainda uma vez ao segundo motivo ce ne seront pas des faits imaginaires ce sera ce qui se passe partout Com isto fica dito que a invenção não haure da livre fôrça imaginativa mas da vida real tal como se apresenta em tôda parte Ora Balzac possui diante desta vida múltipla embebida de história representada sem rebuços com tudo o que tiver de quotidiano prático feio e comum uma posição semelhante à que Stendhal já possuíra levaa a sério e até a considera tràgicamente nesta forma real quotidiana intrahistórica Isto não existiu em parte alguma no tempo posterior ao surgimento do gôsto clássico nem antes nesta forma prática e intrahistórica dirigida para uma autoresponsabilização social do homem A partir do classicismo francês e sobretudo após o absolutismo não somente o trata mento do quotidianoreal tinha se tornado muito mais limitado e decoroso mas também a atitude que se tinha diante dêle privavase por assim dizer fundamentalmente do trágico e do problemático Tentamos analisar isto nos capítulos precedentes um objeto da realidade prática podia ser tratado de forma cômi ca satírica didáticomoralizante certos objetos de campos bem circunscritos e determinados do contemporâneo e quotidiano atingiam até o nível estilístico mediano do comovente mas não se ia para além disto A vida realquotidiana mesmo das cama das médias da sociedade era considerada como de estilo baixo 0 engenhoso e importante Henry Fielding que toca tantos pro blemas morais estéticos e sociais mantém a representação sem pre nos limites do tom satíricomoralista e diz no Tom Jones livro XIV cap I that kind of novels which like this 1 am vriting is of the comic class A irrupção da seriedade trágica e existencial no realismo tal como a constatamos em Stendhal e Balzac está sem dúvida em estreita correlação com o grande movimento romântico da mistura dos estilos designado pelo slogan Shakespeare contra Racine e considero a forma stendhalbalzaquiana a mistura do sério com a realidade quotidiana muito mais decisiva autêntica importante do que a do grupo de Victor Hugo que queria unir o sublime ao grotesco A novidade da atitude e a nova espécie de objetos que eram tratados séria problemática tràgicamente tiveram como efeito o desenvolvimento progressivo de uma espécie totalmente nova de estilo sério ou se se quiser elevado não seria possível trans ferir para os novos objetos sem mais nem menos os níveis antigos nem os cristãos nem os shakesperianos nem os níveis racinianos de percepção e de expressão num primeiro momento mostravase uma certa insegurança nesta nova espécie de atitude grave Stendhal cujo realismo surgira a partir de umn resistência contra um presente que lhe era desprezível ainda conservou nu NA MANSÃO DE LA MOLE 421 sua atitude muito dos instintos do século XVIII Nos seus heróis ainda aparecem os espectros das lembranças de figuras tais como Romeo Don Juan Valmont das Liaisons Dangeu reses e SaintPreux sobretudo vive nêle a figura de Napoleão os heróis dos seus romances pensam e sentem contra o tempo rcbaixamse sòmente com desprêzo às intrigas e maquinações do presente pósnapoleônico embora se imiscuam constante mente motivos que segundo as concepções anteriores teriam caráter cômico não deixa de prevalecer para êle o conceito de que uma figura pela qual sente uma participação trágica parti cipação que também exige do leitor deve ser um herói autên tico grande e audacioso nos seus pensamentos e paixões A liberdade do coração grande a liberdade da paixão ainda têm no caso de Stendhal muito da altura aristocrática e do jôgo com a vida que pertencem antes ao ancien régime do que à burguesia do século XIX Balzac submerge os seus heróis bem mais profundamente na temporalidade com isto perdemselhe a medida e os limites da quilo que anteriormente era considerado trágico e a seriedade objetiva diante da realidade moderna que se desenvolveu mais tarde esta êle ainda não possui Qualquer enrêdo por mais tri vial ou corriqueiro que fôr é por êle tratado grandiloqüente mente como se fôsse trágico qualquer mania é por êle vista como paixão Está sempre disposto a marcar qualquer infeliz tomo herói ou como santo se se tratar de uma mulher com pitrun com um anjo ou com uma madona Demoniza todo e qualquer malvado enérgico e em geral qualquer figura leve mente sombria e chega até a chamar o coitado do velho Goriot d Christ de la paternité Correspondia ao seu temperamento agitado cálido e carente de crítica correspondia também à moda ilr vida romântica farejar por tôda parte fôrças demoníacas wiictas c exacerbar a expressão até o melodramático Na geração seguinte que faz sua aparição nos anos cin qüenta apresentase neste sentido uma violenta reação com Haubert o realismo tornase apartidário impessoal e objetivo Num Irabulho preparatório sôbre a imitação séria do quotidia no analisei um trecho de Madame Bovary a partir dêste pon lo ile vista c repetirei aqui aquelas páginas com poucas modi tliaçrteii c abreviações pois encaixam perfeitamente na atual roiientc de idéias e porque o local e a data da sua publicação I litiimbiil 1937 devem ter impedido que chegassem a ter mui ion leitores O trecho em questão está no nono capítulo da iimieim parte de Madame Bovary e diz assim Mai cétait surtout aux heures des repas quelle nen pou vait plim dan cette petite salle au rezdechaussée avec le poêle iin Imitait la porte qui criait les murs qui suintaient les pavés I i i i i i i i i Ii h toute lamertume de lexistence lui semblait servie sur on umtlcllc et il la fumée du bouilli il montait du fond de son imii iiimiuc dmitie bouffées daffadissement Charles était 422 MIMESIS long à manger elle grignotait quelques noisettes ou bien ap puyée du coude samusait avec la pointe de sou couteau de faire des raies sur la toile cirée8 A passagem constitui o ponto culminante de uma descrição cujo objeto é a insatisfação de Emma Bovary com a sua vida em Tostes Longo tempo esperou um acontecimento repentino que imprimisse uma nova direção a essa vida sem elegância aventura nem amor no mais profundo da província ao lado de um homem medíocre e enfadonho Ela até se preparou para êsse acontecimento cuidou de si e da sua casa como que para merecer essa virada do destino e para ser digna dela como ela não ocorre o desassossêgo e a desesperação apoderamse dela Isto é descrito por Flaubert em várias imagens que pintam o ambiente que rodeia Emma tal como êle se lhe apresenta somen te quando não vê mais esperança alguma de fugir dêsse mundo apareceselhe nitidamente o que êle tem de desconsolado mo nótono cinzento enfadonho asfixiante e irremediável A pas sagem que transcrevemos é o ponto culminante da descrição do seu desespêro Depois narrase como desleixa tudo na sua casa como deixa de se cuidar a si mesma e começa a ficar adoentada de tal forma que o seu marido se decide a deixar Tostes pois acredita que o clima não lhe faz bem A própria passagem mostra um quadro marido e mulher juntos durante uma refeição Mas êste quadro não é mostrado de forma alguma em si ou por si mesmo mas está subordinado ao objeto dominante ao desespêro de Emma Por isso mesmo também não é apresentado ao leitor de forma imediata eis duas pessoas sentadas à mesa e lá está o leitor que as observa mas o leitor vê em primeiro lugar Emma da qual muito se falou nas páginas anteriores e sòmente através dela é que vê o quadro De forma imediata o leitor vê apenas o estado interno de Emma e de forma mediata a partir dêste estado à luz da sua sensação vê o processo da refeição à mesa As primeiras palavras do trecho Mais cétait surtout aux heures des repas quelle nen pouvait plus anunciam o tema e tudo o que se segue só é desenvolvimento do tema Não só as determinações dependentes de dans e avec que indicam as espacialidades se constituem com o seu amontoado de pormenores do maltstar num comentário para elle nen pouvait plus mas também a ora ção seguinte que fala do nojo que lhe causam as comidas su jeitase no seu sentido e no seu ritmo à intenção principal Quando mais tarde se lê Charles était long à manger embora se trate gramaticalmente de uma nova oração e ritmicamente 8 M as era sobretudo às horas de refeição que ela não agüentava mais nesta pequena sala do andar térreo com a estufa que fumegava a porta que rangia os muros que ressumavam os pavimentos úmidos tôda a amargura dn existência parecialhe servida no seu prato e como a fumaça do cozido lubiont do fundo de sua alma como que outras baforadas de enjôo Carlos era domo rado a comer ela mordiscava ulgumn avelA ou bem apoiada no cotavéln divertlasc a fiter riscoa com w poniu dn facti nôbre o oleado NA MANSÃO DE LA MOLE 423 dc um nôvo movimento não deixa de ser apenas uma retomada uma variante do movimento principal somente a partir do con traste entre o seu tranqüilo comer e a sua repugnância e os movimentos descritos logo a seguir do seu nervoso desespêro h oração ganha a sua significação própria O homem que come despreocupado tornase ridículo e algo espectral quando Emma olha para êle assim como está sentado e come tornase o mo tivo principal propriamente dito do elle rien pouvait plus pois tudo o mais que origina o desespêro o triste recinto a comida habitual a falta de toalha de mesa o desconsolador do conjun to todo parece a ela e por conseguinte também ao leitor algo que tem a ver com Charles Bovary que emana dêle algo que seria totalmente diferente se êle fôsse diferente Desta forma a situação não é apresentada simplesmente como quadro mas o que é apresentado em primeiro lugar é a personagem Emma e através dela apresentase a situação Ain ilii não se trata contudo como em alguns romances em primei iii pessoa e em outras obras posteriores de espécie semelhante tlii simples reprodução do conteúdo da consciência de Emma daquilo que ela sente e do modo como ela o sente Embora wju dela que se irradie a luz que ilumina o quadro ela própria mio deixa de ser uma parte do quadro está em meio a êle Lem lua assim o falante da cena de Petrônio no nosso segundo ca pitulo só que os meios que Flaubert emprega são diferentes Niio é Emma quem fala aqui mas o escritor Le poêle qui fu niiilt la porte qui criait les murs qui suintaient les pavés hu niltlrx certamente Emma sente e vê tudo isto mas ela não unia capa de ajuntálo desta forma Toute 1amertume de Fexis írK c lui semblait servie sur son assiette ela certamente tem uma ui sensução mas se quisesse exprimila não sairia desta forma iiini chegar a esta formulação faltamlhe a agudeza e a fria ho nestidade que resulta de uma prestação de contas consigo mesmo Indavia não é de modo algum a existência de Flaubert mas a ilo Im m a a única que se apresenta nestas palavras Flaubert mui la senão tornar lingüisticamente maduro o material que ela nlricce em sua plena subjetividade Se Emma pudesse fazêlo uinlm não mais seria o que é terseia emancipado de si mes ma o com isto estaria salva Mas ela não somente não vê as nti mas é vista como vidente c através disto pela mera desig 111111111 nftidn da sua existência subjetiva a partir das suas pro pilas sensações é julgada Quando se lê uma passagem poste imi 2 parte capítulo 12 perto da segunda página jamais luirlfx nc lui paraissait aussi désagréable avoir les doigts aussi i wn iM 1txprlt aussi lourd les façons si communes pensase tiilvr por um instunte que esta singular justaposição seja o re mitindo de um amontoamento afetivo dos motivos que fazem jmiiii o desgôsto de Emma pelo seu marido que seja ela pró piin quem por assim dizer pronunciasse internamente estas pa lavra que se trate de um caso de discurso indireto Mas isto p i I m um érro Irutasc dc fnto dc alguns motivos paradigmá 424 MIMESIS ticos do desgosto de Emma mas foram concatenados muito pre meditadamente pelo autor e não por Emma movida pelas suas emoções Pois Emma sente muito mais e de maneira muito mais confusa vê também outras coisas afora estas no seu cor po nos seus modos nas suas vestimentas misturamse lembran ças entrementes ouveo dizer alguma coisa sente talvez sua mão a sua respiração vêo andar de cá para lá bonachão limitado inapetitoso e despreocupado é um semnúmero de impressões confusas A única coisa que aparece com contornos nítidos é a repugnância que sente por êle e que deve ocultar Flaubert transpõe a agudeza nas impressões escolhe três dentre elas de forma aparentemente involuntária mas que são tiradas de forma exemplar do físico do espiritual e do comportamento e coloca as assim como se fôssem três choques que atingem Emma um após o outro Isto evidentemente não é uma reprodução natu ralista da consciência Os choques naturais ocorrem sempre de forma totalmente diferente Há nisto a mão ordenadora do escritor que compendia de forma fechada a confusão do con teúdo interno e o dirige no sentido em que êle próprio avança na direção repugnância diante de Charles Bovary Esta orde nação do conteúdo interno evidentemente não recebe as suas escalas de fora mas do próprio material de que se constitui É pôsto em ordem aquilo que deve ser empregado para que o próprio conteúdo se transforme em linguagem sem mistura alguma Quando se compara esta forma de representação com as de Stendhal ou Balzac devese expor preliminarmente que também aqui podem ser encontradas as duas características decisivas do realismo moderno também aqui acontecimentos quotidianos e reais de uma camada social baixa da burguesia provinciana são levados muito a sério ainda falaremos sôbre o caráter especial desta seriedade e também aqui os acontecimentos quotidia nos estão submersos muito exata e profundamente numa época históricocontemporânea determinada a época da monarquia burguesa embora isto ocorra de forma menos evidente do que no caso de Stendhal ou de Balzac não deixa de ser incontestá vel Nestas duas características fundamentais existe em con traste com todo o realismo anterior unanimidade entre os três escritores mas a posição de Flaubert diante do seu objeto é to talmente diferente No caso de Stendhal e de Balzac ouvimos com freqüência quase sempre aliás como o autor pensa acêrca das suas personagens e dos acontecimentos sobretudo Balzac acompanha as suas narrações constantemente com comentários comovidos ou irónicos ou morais ou históricos ou econômi cos Ouvimos também muito amiúde o que as próprias perso nagens pensam ou sentem e isto ocorre freqüentemente de tal maneira que o autor se identifica com a personagem numa si tuação dada Estas duas coisas faltam em Flaubert quitsc intei ramente A sua opinião sôbrc os acontecimentos e as pcrsonii NA MANSÃO DE LA MOLE 425 gens não é expressa e quando as próprias personagens se ma nifestam isto nunca ocorre de tal forma que o autor se identi fique com a sua opinião ou com a intenção de levar o leitor a se identificar com ela Embora ouçamos o autor falar êle não exprime qualquer opinião e não comenta O seu papel limitase a escolher os acontecimentos e a traduzilos em linguagem e isto ocorre com a convicção de que qualquer acontecimento se fôr possível exprimilo limpa e integralmente interpretaria intei ramente a si próprio e os sêres humanos que dêle participassem muito melhor e mais inteiramente do que o poderia fazer qual quer opinião ou juízo que lhe fôsse acrescentado Sôbre esta convicção isto é sôbre a profunda confiança na verdade da linguagem empregada com responsabilidade honestidade e es mfiro repousa a arte de Flaubert Isto é uma tradição muito antiga clàssicamente francesa Já no verso de Boileau sôbre o poder da palavra bem empregada ucêrca de Malherbe dun mot mis en sa place enseigna le pouvoir há algo disto considerações semelhantes encontramse cm Ja Bruyère Vauvenargues disse Il riy aurait point derreurs qui ne périssent dellesmêmes exprimées clairement A con litinçu de Flaubert na linguagem vai além da de Vauvenargues iicrcdita que também a realidade do acontecimento se desvende nu expressão lingüística Flaubert é um homem que trabalha muito conscientemente e possui senso artístico crítico num grau pouco comum até na França Por isso encontramse em sua cor icipondência especialmente a dos anos 1852 a 1854 durante n quais escreveu Madame Bovary Troisième Série na Nouvelle 1illtlon augmentée da Correspondance 1927 muitas manifesta nte esclarecedoras acêrca das suas intenções artísticas Elas ilcKcmbocam numa teoria que é em última análise mística mas que repousa na prática como tôda mística legítima sôbre a mAo u experiência e a disciplina uma teoria da submersão mm objetos da realidade esquecendose de si mesmo através ilu qiml êstes objetos seriam transformados par une chimie merveilleuse e evoluiriam até atingir a maturidade verbal Des tu forum os objetos preenchem inteiramente o escritor êle se qticcc a si próprio o seu coração servelhe tão sòmente para iilir o dos outros e quando êste estado atingível sòmente pela viol6nciu dc uma paciência fanática fôr alcançado a expressão linguistica plena que ao mesmo tempo apanha integralmente o ohjcln cm questão e o julga imparcialmente apresentase de per m o objetos são vistos como Deus os vê na sua verdadeira idiiliiliulc A isto juntase uma concepção da mistura de estilos que Hiirgc du mesma visão místicorealista não haveria objetos ilivuloM e baixos a criação seria uma obra de arte criada sem piiidiiltdiKlc o artista realista deveria imitar os processos da iiiiiVtto c ciidu objeto conteria na sua peculiaridade perante o Alfii dc Deu Imilo a seriedade quanto a comicidade tanto a tllgniilmlr quiinto n baixeza Sc fôr reproduzido correta e exa iiiiiunic ciilúo também será utingido exutumente o nível dc esti 426 MIMESIS lo que lhe corresponde não é necessária nem uma teoria geral dos níveis pela qual os objetos seriam graduados segundo a sua dignidade nem qualquer análise por parte do escritor que comente o objeto após sua apresentação para fins de melhor compreensão e mais exata ordenação tudo isto deveria surgir por si próprio a partir da representação do objeto É evidente o contraste que existe entre esta concepção e a evidenciação grandiloqüente e ostentatória do próprio sentimen to e das escalas por êle conferidas tal como tinha surgido a partir de Rousseau e por sua causa uma interpretação compara tiva entre a frase de Flaubert Notre coeur ne doit être bon quà sentir celui des autres e a de Rousseau no início das Con fessions Je sens mon coeur et je connais les hommes podfria representar exaustivamente a mudança de posição que acabava de se completar Porém da correspondência também surge com clareza quão penosamente e com que convulsionado esfôrçó Flau bert chegou às suas convicções Os grandes objetos e a atuação livre e carente de responsabilidades da fantasia criadora ainda têm um grande atrativo para êle sob êste ponto de vista vê Shakespeare Cervantes e até Hugo com olhos totalmente ro mânticos e maldiz por vêzes o seu próprio objeto estreito e pequenoburguês que o obriga a realizar um trabalho estilístico miniatural dos mais penosos dire à la fois simplement et pro prement des choses vulgaires Isto vai por vêzes tão longe que diz coisas que contradizem as suas posições fundamentais et ce quil y a de désolant cest de penser que même réussi dans la perfection cela Madame Bovary ne peut être que passable et ne sera jamais beau à cause du fond même Juntase ainda a isto o fato de êle como tantos importantes artistas do século XIX odiar o seu tempo vê com grande agudeza os seus pro blemas e as crises que estão em preparação vê a anarquia inter na o manque de base théologique o comêço da massificação o historicismo corrompido e eclético o domínio do chavão não vê contudo qualquer solução qualquer escapatória o seu faná tico misticismo artístico é quase como uma religião sucedânea à qual se aferra convulsivamente e a sua honestidade tornase muito freqüentemente resmungona mesquinha colérica e ner vosa Com isto sofre por vêzes o amor imparcial pelos objetos comparável ao amor do criador Todavia a passagem que ana lisamos está intata por essas lacunas e debilidades do seu ser permitenos observar limpamente o efeito da sua intenção ar tística A cena mostra marido e mulhec à mesa a mais quotidiana das situações que possam ser imaginadas anteriormente só se riam concebíveis literariamente como parte de uma farsa de um idílio de uma sátira Aqui é um retrato do malestar a sa ber não de um malestar momentâneo e passageiro mas de um malestar crônico que domina inteiramente tôda uma existência a de Emma Bovary Embora mais arde apareçam tôda classe de acontecimentos inclusive histórins amorosiis ninguém pode NA MANSÃO DE LA MOLE 427 rá ver nesta cena à mesa só uma parte da exposição de uma his tória de amor nem quererá designar Madame Bovary como um romance de amor O romance é a representação de tôda uma existência humana sem escapatória e o nosso trecho é uma par te disso que contém contudo o todo em seu bôjo Nesta cena não acontece nada de extraordinário e nada de extraordinário aconteceu no passado imediato É um instante qualquer da hora regularmente recorrente em que marido e mulher comem jun tos Os dois não brigam não se apresenta nenhum conflito tan gível Emma está totalmente desesperada mas o seu desespêro não é causado por qualquer catástrofe determinada não há nada lc totalmente concreto que tenha perdido ou desejado Embora tenha muitps desejos êstes são totalmente vagos elegância ámor uma vida cheia de variações Um tal desespêro carente de con creção pode ter existido sempre mas antes nunca se pensou em leválo a sério em obras literárias Uma tal tragicidade carente dc forma se fôr possível chamála de tragicidade que é desen cadeada pela própria situação como um todo só se tornou apreen aível literàriamente através do romantismo Flaubert deve ter ido o primeiro a representála junto a sêres humanos de baixa formação espiritual e de baixo nível social E certamente é o primeiro a apreender imediatamente o caráter circunstancial des ta situação anímica Nada acontece mas êste nada tornouse um algo pesado surdo e ameaçador Já vimos como Flaubert consegue isto ordena na linguagem as confusas impressões do malestar que surgem em Emma pela observação do recinto da comida e do marido até conferirlhes uma densa univocidade lim cral também narra só raramente acontecimentos que impe lem h ação ràpidamente mediante uma série de meros quadros que fazem do nada do diaadia indiferente uma duradoura pre cnça do desgosto do enfado de falsas esperanças de decepções imraliftuntcs e de lastimáveis temores um destino humano cin zento qualquer arrastase lentamente para o seu fim lambém a interpretação da situação está contida em si menina Os dois estão sentados juntos à mesa o homem nada niiiHitu do estado interno da mulher têm tão pouco em comum que nem chega a haver uma disputa uma discussão um conflito nlieiio Cada um dêlcs está de tal modo encasulado no seu pró mundo ela no desespêro e nos vagos sonhos desejosos êle nu m u i tAla satisfação provinciana que os dois estão totalmente tnilillírioi Nada têm em comum mas nada também de próprio im cuja causa valesse a pena ficar sozinho Pois cada um tem puni i um mundo falso e néscio que não é possível coadunar mm a realidade da sua situação de tal modo que cada um dêles iltHnliça as possibilidades da vida que se lhes oferecem O iiie iioinlcec com êstes dois vale para quase tôdas as personagens lo lomimcc Cada um dos muitos sêres humanos medíocres itie nôlc o movimentam tem o seu próprio mundo de estupidez n6ilii r medíocre um mundo de ilusões hábitos impulsos e i liuvfton aula um catá nà nenhum pode compreender o outro 428 MIMESIS nenhum pode ajudar o outro a atingir a compreensão Não existe um mundo comum dos sêres humanos porque êste so mente poderia surgir quando muitos dêles encontrassem o cami nho para a realidade autêntica e própria conferida a cada um dêles realidade esta que seria também então a autêntica realidade comum Certamente os homens se encontram para os seus afazeres e divertimentos mas êste encontro não dá ne nhum sinal de comunidade tornase esquerdo ridículo penoso e está carregado de incompreensão vaidade mentira e ódio estúpido O que seria realmente o mundo o mundo dos sábios isto Flaubert nunca nos diz No seu livro o mundo é feito de mera estupidez que não atina para a verdadeira realidade de tal forma que esta nem poderia ser encontrável Todavia ela existe Existe na linguagem do escritor que desmascara a estu pidez pelo seu mero relato A linguagem tem pois uma escaia para a estupidez e com isto tem também parte daquela realida de dos sábios que não aparece em nenhuma outra forma nes te livro Também Emma Bovary a figura principal do romance está totalmente enfiada na falsa realidade na bêtise humaine assim como o herói do outro romance realista de Flaubert Frédéric Moreau da Education sentimentale Como encaixa a modalidade da representação flaubertiana de tais personagens nas categorias tradicionais do trágico e do cômico Sem dúvida a existência de Emma é apreendida em tôda a sua pro fundidade sem dúvida as categorias intermediárias que antes existiram como por exemplo comovente ou satírico ou talvez didático não são aplicáveis e muito amiúde o leitor é arrebatado pelo seu destino de uma forma que se parece muito com a compaixão trágica Mas ela não é um autêntico herói trá gico A maneira como a linguagem desnuda o tolo o imaturo e o desordenado da sua vida até o miserável defcta vida no qual fica prêsa toute lamertume de F existence lui semblait servie sur son assiette exclui a idéia da autêntica tragicidade e o autor e o leitor nunca podem se sentir de tal forma unos com ela como deve ser o caso com o herói trágico Ele é sem pre posta à prova julgada e juntamente com todo o mundo em que está prêsa condenada Mas também não é cômica não o é com tôda certeza para tanto é compreendida muito profun damente demais a partir do envolvimento do seu destino em bora Flaubert não leve a cabo qualquer espécie de psicologia da compreensão mas deixe falar simplesmente os fatos En controu uma posição diante da realidade da vida contemporânea que difere totalmente das posições e dos níveis estilísticos ante riores mesmo dos de Stendhal e de Balzac aliás precisamente dos destes dois Poderiam ser chamados muito simplesmente dc seriedade objetiva Isto parece estranho como denominação estilística para uma obra de arte literária Seriedade objetiva que procura penetrar até as profundezas dus paixões c enredos dc uma vida humana sem contudo entrar cia própriu num cs NA MANSÃO DE LA MOLE 429 tado de excitação ou pelo menos sem delatar essa excitação esta é uma posição que se pode esperar mais de um clérigo de um educador ou de um psicólogo do que de um artista Mas êstes querem agir de forma imediatamente prática o que está longe das intenções de Flaubert Através da sua atitude pas de cris pas de convulsion rien que la fixité dun regard pensif quer obrigar a linguagem a produzir a verdade acêrca dos objetos da sua observação le style étant à lui tout seul une nwnière absolue de voir les choses Corr II 346 Em todo caso atingese também através disto no fim das contas uma intenção pedagógica e de crítica do seu tempo não se deve ter receio de exprimir isto assim por mais que Flaubert faça ques tão de ser artista e nada mais que artista Quanto mais a gente sc ocupa com Flaubert tanto mais se evidencia a profundidade du sua visão da problemática e da socavação da cultura bur guesa do século XIX contida nas suas obras realistas e muitas pussagens importantes da sua correspondência confirmam êste fulo A demonização dos processos sociais que se encontra em Hulzac falta evidentemente em Flaubert de forma total e ab soluta A vida não mais embate e escuma mas flui viscosa e pesadamente Para Flaubert o peculiar dos acontecimentos quotidianos e contemporâneos não parecia estar nas ações e nus paixões muito movimentadas não em sêres ou fôrças de moníacas mas no que se faz presente durante longo tempo aquilo cujo movimento superficial não é senão burburinho vão entrementes por baixo ocorre um outro movimento quase im perceptível mas universal e ininterrupto de tal forma que o Mibsolo político econômico e social parece ser relativamente cutAvcl mas ao mesmo tempo parece também estar insuportá vel mente carregado de tensão Todos os acontecimentos pare cem modificálo muito pouco mas na concreção da duração li qual Flaubert sabe sugerir tanto no acontecimento isolado como no nosso exemplo quanto no conjunto do panorama da ópoeu mostrase algo como uma ameaça oculta é um tempo ipio com a sua estúpida falta de escapatórias parece carregado como com um explosivo Através do nível estilístico de uma seriedade fundamental i objetiva a partir da qual as coisas falam de per si e se orde nam dc per si diante do leitor sem importunálo segundo 0 eu valor como sendo trágicas ou cômicas e até mesmo na maioria dos casos como sendo as duas coisas simultâneamente rlmihcrt superou o ímpeto romântico e a romântica insegurança no tratamento dos objetos contemporâneos já se vê claramente ulgo ilo positivismo mais antigo no seu critério artístico embora oriiaioniilmcntc pronuncie acêrca de Comte um juízo muito ilmlnvorávcl Sôbrc a base desta objetividade tornaramse pos nlvciii desenvolvimentos posteriores dos quais trataremos em ca pitulo subseqüentes Aliás poucos dos que o seguiram avo 1 ui mu i a tiircfa du representação da realidade contemporâ 430 MIMESIS nea com a mesma clareza e responsabilidade sem dúvida po rém houve entre êles espíritos mais livres espontâneos e ricos do que o seu O tratamento sério da realidade quotidiana a ascensão de camadas humanas mais largas e socialmente inferiores à posição de objetos de representação problemáticoexistencial por um la do e pelo outro o engarçamento de personagens e aconteci mentos quotidianos quaisquer no decurso geral da história con temporânea do pano de fundo historicamente agitado êstes são segundo nos parece os fundamentos do realismo moderno e é natural que a forma ampla e elástica do romance em prosa se impusesse cada vez mais para uma reprodução que abarcava tantos elementos Se observamos corretamente a França teve durante todo o século XIX a mais importante participação no surgimento e no desenvolvimento do moderno realismo A si tuação d Alemanha foi por nós ventilada no fim do último capítulo Na Inglaterra embora a evolução fôsse fundamental mente a mesma da França ela se desenvolveu mais calma e gradualmente sem a quebra brusca entre 1780 e 1830 já se inicia muito antes e preserva durante muito mais tempo até bem entrados os tempos vitorianos formas e modos de ver tra dicionais Já na arte de Fielding Tom Jones apareceu em 1749 há muito mais enérgico realismo contemporâneo da vida como um todo do que nos romances franceses do mesmo perío do também a agitação do panodefundo histórico contempo râneo não falta inteiramente Mas o conjunto é concebido de forma mais moralista e mantémse afastado da seriedade pro blemática e existencial Por outro lado ainda em Dickens cu jas obras foram publicadas a partir dos anos trinta do século XIX não obstante o forte sentimento social e a sugestiva densi dade do seu meio quase nada se faz sentir da agitação do panodefundo políticohistórico Entrementes Thackeray que embute os acontecimentos de Vanity Fair 18478 muito con cretamente na história do seu tempo os anos anteriores e pos teriores a Waterloo conserva em conjunto a espécie de visão moralista meio satírica e meio sentimental que foi transmitida sem muitas mudanças já a partir do século XVIII Infelizmente devemos renunciar a falar ainda que seja com indicações as mais vagas do surgimento do moderno realismo russo As almas mortas de Gogol apareceu em 1842 a narração O capote já em 1835 isto é impossível para o nosso fim quando não po demos ler as obras na sua própria língua Deveremos conten tarnos com falar da influência que exerceu mais tarde 1 Introdução ao Contexto do Livro 11 Mímesis de Erich Auerbach Erich Auerbach em sua obra monumental Mímesis A Representação da Realidade na Literatura Ocidental oferece uma análise profunda e abrangente de como a realidade é representada na literatura ocidental ao longo dos séculos Publicado pela primeira vez em 1946 Mímesis examina as técnicas e os métodos usados por escritores de diversas épocas para retratar a realidade em suas obras literárias Auerbach investiga como diferentes autores lidam com a representação da realidade explorando temas como a interação entre personagens o tratamento da subjetividade e a influência do contexto histórico na narrativa Sua abordagem é notável pela análise detalhada de passagens literárias selecionadas que ele interpreta dentro de seus contextos culturais e históricos específicos O conceito de mímesis ou imitação da realidade é central ao seu estudo e Auerbach demonstra como essa representação evoluiu e se diversificou ao longo da história da literatura ocidental Ele considera não apenas o conteúdo das obras mas também as técnicas narrativas utilizadas pelos autores para representar a realidade o que confere à sua análise uma profundidade única 12 Estrutura Geral do Livro Mímesis é organizado em vinte capítulos cada um dedicado a uma análise detalhada de um excerto literário específico que exemplifica diferentes maneiras de representar a realidade A obra começa com uma análise da Odisseia de Homero contrastando o estilo detalhado e direto do poema épico com a técnica narrativa mais indireta e sugestiva da Bíblia Hebraica Essa comparação inicial estabelece o tom para as análises subsequentes que seguem uma ordem cronológica Os capítulos que seguem abrangem uma vasta gama de períodos e estilos literários desde a Antiguidade Clássica até o Modernismo do século XX Auerbach analisa autores clássicos como Dante Cervantes e Montaigne passando por Shakespeare Molière e Goethe até chegar aos modernistas como Marcel Proust e Virginia Woolf Cada capítulo é uma unidade autônoma que permite uma análise aprofundada da obra em seu próprio contexto mas juntos eles compõem um panorama abrangente da evolução da técnica narrativa e da representação da realidade na literatura ocidental 13 Introdução ao Capítulo Na Mansão de La Mole O capítulo intitulado Na Mansão de La Mole examina o romance Le Rouge et le Noir O Vermelho e o Negro escrito por Stendhal e publicado em 1830 Auerbach utiliza este capítulo para explorar como Stendhal representa a complexidade social e política da França do século XIX através da psicologia dos personagens e da trama narrativa Em Le Rouge et le Noir Stendhal narra a trajetória de Julien Sorel um jovem ambicioso que busca ascender socialmente utilizando seu talento e astúcia O romance é reconhecido como uma das primeiras grandes obras do realismo literário e Auerbach destaca como Stendhal utiliza a história de Julien para criticar e expor as tensões e hipocrisias da sociedade francesa durante a Restauração O período pósnapoleônico é marcado por tentativas de restabelecer a ordem aristocrática em meio a uma burguesia emergente criando um cenário de conflito e mudança social que é ricamente explorado na narrativa de Stendhal No capítulo Na Mansão de La Mole Auerbach foca na dinâmica entre Julien e os membros da família La Mole Esta análise revela como Stendhal usa os personagens e suas interações para ilustrar as complexas relações de poder e status social A mansão do Marquês de La Mole serve como um microcosmo da sociedade francesa onde as ambições pessoais de Julien entram em confronto com as rígidas estruturas sociais e expectativas da aristocracia A análise de Auerbach neste capítulo permite uma discussão profunda sobre como Stendhal utiliza a narrativa realista para abordar questões de mobilidade social identidade pessoal e conflito de classes O detalhamento psicológico e social presente no texto de Stendhal exemplifica como a literatura pode oferecer uma representação crítica e multifacetada da realidade contemporânea alinhandose aos temas centrais de Mímesis 2 Desmontagem e Análise do Capítulo 21 Contexto Histórico e Social O capítulo Na Mansão de La Mole analisado por Auerbach em Mímesis está situado na França pósnapoleônica um período turbulento conhecido como a Restauração Após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815 a monarquia Bourbon foi restaurada ao poder tentando reverter as mudanças sociais e políticas ocorridas durante a Revolução Francesa e o Império Napoleônico Este período é marcado por esforços da nobreza para restabelecer sua supremacia enquanto enfrentava o desafio da emergente burguesia que estava ganhando influência econômica e política A sociedade da época se caracterizava por uma rígida estratificação social onde a aristocracia tentava manter seu prestígio e controle mesmo diante da ascensão de novas forças sociais representadas pela burguesia A tensão entre estas classes cria um pano de fundo de conflito e transformação refletindo as mudanças profundas na estrutura social da França No romance de Stendhal essa tensão é claramente observada através da interação entre os personagens principais e o ambiente em que se encontram Julien Sorel o protagonista é um filho de carpinteiro que por meio de sua ambição e astúcia busca ascender socialmente espelhando a luta da burguesia para se afirmar em uma sociedade dominada pela nobreza Sua trajetória no romance simboliza a possibilidade de mobilidade social ainda que repleta de obstáculos e desafios A nobreza por outro lado é representada pelo marquês de La Mole e sua família que tentam preservar sua posição e valores em um mundo em mudança 22 Caracterização dos Personagens Principais Julien Sorel o protagonista de Le Rouge et le Noir é um jovem de origem humilde que ambiciona escalar a hierarquia social Filho de um carpinteiro Julien é inteligente e determinado qualidades que o ajudam a se destacar em uma sociedade que valoriza a linhagem e o status Sua posição como secretário do marquês de La Mole em Paris reflete sua tentativa de superar sua origem e se integrar à alta sociedade usando sua educação e habilidades para se afirmar A trajetória de Julien simboliza a possibilidade de ascensão social mas também os dilemas morais e pessoais que essa busca acarreta Ele enfrenta a constante pressão de se adequar às expectativas da nobreza enquanto luta para manter sua identidade e objetivos pessoais Matilde de La Mole filha do marquês representa a juventude aristocrática do período desiludida com os valores tradicionais e em busca de novos sentidos de vida e identidade Ela é espirituosa independente e rebelde sentindose entediada e sufocada pelas convenções da alta sociedade A atração de Matilde por Julien é uma combinação de fascínio e rebelião contra o status quo ela se sente atraída por sua independência e ambição características que contrastam com a apatia e conformismo ao seu redor A relação de Matilde com Julien é central para a trama pois revela as complexas interações de poder desejo e status social Marquês de La Mole o patriarca da família personifica a velha aristocracia apegada às tradições e ao status Ele é uma figura respeitável e autoritária simbolizando a estabilidade e a rigidez das estruturas sociais tradicionais O marquês representa a classe que luta para manter sua relevância e controle em um mundo que está mudando rapidamente Sua interação com Julien e outros personagens reflete a tensão entre a preservação das tradições aristocráticas e a inevitável modernização da sociedade 23 Principais Cenas e Suas Funções Uma das cenas mais reveladoras do capítulo é a Cena da Biblioteca Nesta passagem Julien questiona seu papel na casa do marquês de La Mole demonstrando sua tensão interna entre sua posição subordinada e suas ambições de ascensão social Ele se sente constrangido pelas formalidades e pelas expectativas impostas sobre ele devido ao seu papel o que leva Matilde a vêlo sob uma nova luz Ela começa a perceber Julien não apenas como um servo mas como alguém com vontade própria e independência de pensamento o que a fascina e a aproxima dele Essa cena estabelece a dinâmica de poder entre Julien e a família La Mole e revela o conflito entre suas aspirações pessoais e as limitações impostas pela sociedade Outra cena significativa é o Jantar com a Família Este evento ilustra a opressão social sentida por Julien ao ser forçado a se conformar às normas e expectativas da alta sociedade destacando a desconexão entre sua origem humilde e o ambiente aristocrático em que se encontra A formalidade e a superficialidade das interações durante o jantar enfatizam a alienação de Julien e sua luta para encontrar um lugar nesse mundo Essa cena reflete a tensão entre os valores e a etiqueta da nobreza e o desejo de Julien de se afirmar e ser reconhecido por suas próprias qualidades As Reflexões de Matilde também desempenham um papel crucial Ela sente uma crescente atração por Julien que se destaca por sua independência e rejeição das convenções aristocráticas Matilde desiludida com os valores de sua própria classe encontra em Julien uma forma de rebeldia e autenticidade que ela mesma anseia Suas reflexões revelam o fascínio por Julien como um símbolo de liberdade e desafio às normas estabelecidas aprofundando a complexidade de sua relação e os conflitos internos de Matilde 24 Estrutura Narrativa e Estilo Auerbach destaca que a narrativa de Stendhal em Le Rouge et le Noir é uma crítica incisiva à sociedade de seu tempo utilizando o personagem Julien para expor as hipocrisias e tensões sociais Stendhal emprega um estilo realista que se foca nos detalhes psicológicos e sociais oferecendo uma análise profunda das motivações e interações dos personagens Através de descrições meticulosas e diálogos realistas Stendhal revela a complexidade da vida interior de Julien e dos outros personagens bem como as influências do contexto social e histórico em suas ações e decisões O estilo realista de Stendhal permite que os leitores compreendam as nuances das relações sociais e as contradições internas dos personagens Ele retrata a realidade com uma precisão que enfatiza a verossimilhança das experiências humanas e as pressões sociais tornando a narrativa uma ferramenta poderosa para a crítica social A atenção aos detalhes e a exploração das emoções e conflitos internos dos personagens ajudam a construir uma representação rica e multifacetada da sociedade francesa do século XIX 3 Relação do Capítulo com o Todo 31 Integração Temática com a Obra O capítulo Na Mansão de La Mole de Mímesis exemplifica de maneira clara como Erich Auerbach utiliza textos literários para analisar a evolução da representação da realidade na literatura ocidental Auerbach examina a forma como Stendhal retrata a sociedade francesa do século XIX destacando como a literatura reflete e se engaja com as complexidades sociais e políticas da época O enfoque na narrativa de Stendhal em Le Rouge et le Noir revela como os escritores desse período começaram a abordar a realidade de maneira mais direta e detalhada contribuindo para o desenvolvimento do realismo literário No capítulo Auerbach demonstra como Stendhal utiliza seus personagens e a trama para ilustrar as tensões entre classes sociais e as mudanças na estrutura social francesa A narrativa de Stendhal é rica em detalhes que capturam a luta entre a antiga nobreza e a emergente burguesia bem como a mobilidade social e os conflitos internos dos indivíduos que tentam navegar por essas transformações Auerbach usa o exemplo de Stendhal para mostrar como a literatura do século XIX começa a se distanciar das representações idealizadas e heróicas do passado focando em uma representação mais fiel e crítica da vida cotidiana e das dinâmicas sociais 32 Reflexão sobre os Temas Abordados em Mímesis Os temas abordados no capítulo Na Mansão de La Mole ressoam profundamente com os principais tópicos discutidos ao longo de Mímesis Auerbach aborda questões como a mobilidade social a luta de classes e a crise da identidade aristocrática em face das mudanças sociais A análise do capítulo revela como Stendhal retrata as pressões sociais e as tensões individuais através de seus personagens especialmente Julien Sorel que simboliza a ambição e o conflito interno em um período de grandes transformações sociais Auerbach demonstra como a literatura pode capturar as complexidades das relações sociais e as mudanças de poder oferecendo uma visão crítica e perspicaz das condições humanas em diferentes épocas No caso de Le Rouge et le Noir a tensão entre Julien e a família La Mole reflete as dificuldades enfrentadas por aqueles que buscam ascender socialmente em um sistema rigidamente estruturado Matilde de La Mole por sua vez personifica a desilusão e a busca de identidade entre os jovens aristocratas destacando o impacto das mudanças sociais na percepção de si mesmos e de seus papéis na sociedade Essa reflexão sobre os temas abordados em Mímesis mostra como Auerbach usa o capítulo para exemplificar a maneira como a literatura do século XIX começa a se envolver mais profundamente com as questões sociais e políticas de sua época oferecendo uma crítica incisiva das estruturas de poder e das experiências humanas em um contexto de rápida mudança 33 Contribuição do Capítulo para o Argumento Geral da Obra A análise do capítulo Na Mansão de La Mole contribui significativamente para o argumento geral de Mímesis ilustrando como a representação literária da realidade se torna mais complexa e psicológica com o advento do realismo Auerbach usa a narrativa de Stendhal para demonstrar como os escritores realistas capturam a intricada rede de relações sociais e as profundas motivações psicológicas de seus personagens Isso marca uma evolução da representação literária que se afasta da idealização e se aproxima de uma análise crítica e detalhada das condições humanas O enfoque em Julien Sorel por exemplo permite a Auerbach explorar temas mais amplos de mudança social e identidade Julien é uma figura através da qual Stendhal examina a tensão entre as aspirações pessoais e as limitações impostas pela sociedade Sua trajetória de ascensão social e os conflitos que enfrenta ao tentar integrarse na alta sociedade refletem as complexidades e desafios da mobilidade social um tema central no realismo literário Além disso a interação de Julien com os membros da família La Mole especialmente com Matilde serve como uma lente para examinar as crises de identidade e os dilemas morais enfrentados pela aristocracia em um mundo em transformação A análise de Auerbach mostra como Stendhal utiliza a trama e os personagens para expor as contradições e as tensões internas da sociedade francesa do século XIX oferecendo uma representação rica e multifacetada da realidade Essa contribuição do capítulo reforça a argumentação de Auerbach de que a literatura realista proporciona uma ferramenta poderosa para a crítica social ao capturar com precisão e profundidade as experiências humanas e as estruturas sociais de seu tempo Ao explorar esses temas através de Le Rouge et le Noir Auerbach exemplifica como o realismo literário se torna um meio de entender e questionar as dinâmicas sociais e políticas ampliando a capacidade da literatura de refletir e influenciar a percepção da realidade 4 Discussão e Conclusão 41 Reflexões Finais sobre o Capítulo O capítulo Na Mansão de La Mole é um estudo minucioso de como Stendhal em Le Rouge et le Noir usa a narrativa para refletir e criticar as complexas dinâmicas sociais e psicológicas da França pósnapoleônica A relação entre Julien Sorel e Matilde de La Mole é central para essa análise revelando não apenas as tensões entre diferentes classes sociais mas também os desafios pessoais enfrentados pelos indivíduos ao navegarem por um sistema social rígido e em transição Julien Sorel como filho de um carpinteiro que se esforça para ascender socialmente é emblemático das possibilidades e dos limites da mobilidade social durante a Restauração Sua ambição de se elevar além de sua origem humilde e ser aceito na alta sociedade o coloca em um constante estado de conflito interno e externo Ele deve equilibrar suas aspirações pessoais com as expectativas e normas da aristocracia o que muitas vezes resulta em sentimentos de inadequação e alienação A posição de Julien como secretário do marquês de La Mole permitelhe observar e interagir com a nobreza mas também o coloca em situações que expõem as desigualdades e as injustiças do sistema social A dinâmica entre Julien e Matilde de La Mole acrescenta outra camada de complexidade à narrativa Matilde uma jovem aristocrata se vê entediada e desiludida com os valores e as restrições de sua classe Sua atração por Julien é tanto uma expressão de fascínio por sua autenticidade e independência quanto uma forma de rebelião contra as convenções que a sufocam Essa relação ambígua revela as contradições e os dilemas enfrentados pela juventude aristocrática que embora privilegiada busca um sentido de propósito e identidade em um mundo em mudança Stendhal utiliza a relação entre Julien e Matilde para ilustrar as tensões entre o desejo de ascensão social e os desafios de conformidade com as normas aristocráticas Julien apesar de sua habilidade e inteligência enfrenta constantemente os preconceitos e as expectativas da nobreza que o vê como um intruso Matilde por outro lado luta contra o tédio e a falta de autenticidade em sua própria classe vendo em Julien uma possibilidade de escape e um meio de confrontar as limitações de sua posição social Erich Auerbach em sua análise destaca como Stendhal captura essas nuances através de um estilo realista que se concentra nos detalhes da psicologia e das interações sociais dos personagens Auerbach argumenta que essa abordagem representa uma mudança significativa na representação literária da realidade que se torna mais complexa e psicológica no século XIX O estilo de Stendhal com sua atenção aos detalhes e seu foco nas motivações e conflitos internos dos personagens permite uma crítica incisiva das estruturas sociais e dos valores da época Através de Le Rouge et le Noir Stendhal não apenas narra a história de um jovem ambicioso mas também oferece uma visão crítica das tensões e contradições da sociedade francesa pósnapoleônica Auerbach mostra como a literatura pode servir como um espelho para refletir e questionar as dinâmicas sociais fornecendo uma representação mais verdadeira e multifacetada da realidade A relação entre Julien e Matilde com todas as suas complexidades e ambiguidades é um exemplo poderoso de como a literatura pode explorar os desafios pessoais e sociais de maneira profunda e significativa Em suma o capítulo Na Mansão de La Mole exemplifica como Auerbach usa a narrativa de Stendhal para discutir a evolução do realismo literário e sua capacidade de capturar a complexidade da vida social e psicológica Julien Sorel e Matilde de La Mole personificam as lutas e os conflitos de um período em transformação oferecendo uma crítica perspicaz das estruturas de poder e das experiências humanas em um contexto de mudanças sociais profundas 42 Perguntas para Discussão 1 Como Julien Sorel representa as mudanças sociais da França pósnapoleônica Julien Sorel é um retrato das forças de mobilidade social emergentes na França após a era napoleônica Ele personifica a luta de indivíduos talentosos e ambiciosos para superar suas origens humildes e se integrar em uma sociedade dominada por uma aristocracia resistente à mudança Julien enfrenta os preconceitos e as barreiras impostas pela nobreza mas sua ascensão embora cheia de obstáculos reflete o impacto da burguesia em ascensão que começa a desafiar as hierarquias tradicionais 2 Quais são as principais críticas sociais que Stendhal faz através dos personagens do marquês de La Mole e de Matilde Stendhal utiliza os personagens do marquês de La Mole e de Matilde para criticar as hipocrisias e a rigidez da aristocracia francesa O marquês de La Mole simboliza a velha nobreza que está desconectada das realidades emergentes e se apega a valores obsoletos Sua rigidez e conservadorismo ilustram a resistência da classe aristocrática às mudanças sociais e políticas Matilde por outro lado representa a juventude aristocrática que se sente sufocada pelos valores tradicionais e busca um sentido de autenticidade e propósito Sua atração por Julien e seu desejo de escapar das convenções sociais refletem uma crítica ao conformismo e à superficialidade da alta sociedade 3 De que maneira o estilo narrativo de Stendhal contribui para o desenvolvimento do realismo literário O estilo narrativo de Stendhal caracterizado por uma abordagem detalhada e psicológica contribui significativamente para o desenvolvimento do realismo literário Ele se concentra em personagens complexos e multifacetados cujas ações e pensamentos são moldados por suas circunstâncias sociais e internas Stendhal usa descrições precisas e diálogos realistas para capturar as motivações e os conflitos internos dos personagens o que proporciona uma visão rica e verdadeira da realidade Sua ênfase na verossimilhança e na representação fiel das experiências humanas marca uma evolução do realismo literário que se afasta das idealizações e se aproxima de uma análise crítica e detalhada da vida cotidiana 5 Discussão e Conclusão AUERBACH Erich Mímesis A Representação da Realidade na Literatura Ocidental 5 ed São Paulo Perspectiva 2013 STENDHAL Le Rouge et le Noir 2 ed Paris Gallimard 1985
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Texto de pré-visualização
Na Mansão de la Mole Julien Sorel o herói do romance Le Rouge et le Noir de Stendhal 1830 um jovem ambicioso e apaixo I J n a d o filho de um pequenoburguês do Franco Con I b d a d o consegue chegar através de um encadeamento de circunstâncias do seminário eclesiástico de Besançon onde estudava teologia a secretário de um grande senhor em Paris o marquês de La Mole cuja confiança conquista Matilde a filha do marquês é uma môça de dezenove anos espirituosa mimada cheia de fantasia e tão altiva que a sua própria situação c o seu próprio ambiente começam a aborrecêla O surgimento da sua paixão pelo domestique do seu pai é uma obraprima de Stendhal muito admirada Uma das cenas preparatórias nas quais começa a despertar o seu interêsse por Julien é a seguinte do quarto capítulo do segundo livro Um matin que labbé travaillait avec Julien dans la biblio thèque du marquis à léternel procès de Frilair Monsieur dit Julien tout à coup dîiïer tous les jours avec madame la marquise estce un de mes devoirs ou estce une bonté que lon a pour moi Cest un honneur insigne reprit labbé scandalisé Ja mais M N lacadémicien qui depuis quinze ans fait une cour assidue na pu lobtenir pour son neveu M Tanbeau Cest pour moi monsieur la partie la plus pénible de mon emploi Je mennuyais moins au séminaire Je vois bâiller quelquefois jusquà mademoiselle de La Mole qui pourtant doit lire accoutumé à lamabilité des amis de la maison Jai peur de mendormir De grâce obtenezmoi la permission daller dî ner à quarante sous dans quelque auberge obscure Labbé véritable parvenu était fort sensible à lhonneur de dtnor avec un grand seigneur Pendant quil sefforçait de 396 MIMESIS faire comprendre ce sentiment par Julien un léger bruit leur fit tourner la tête Julien vit mademoiselle de La Mole qui écou tait Il rougit Elle était venue chercher un livre et avait tout entendu elle prit quelque considération pour Julien Celuilà nest pas né à genoux pensatelle comme ce vieil abbé Dieu quil est laid A dîner Julien nosait pas regarder mademoiselle de La Mole mais elle eut la bonté de lui adresser la parole Ce jourlà on attendait beaucoup de monde elle lengagea à rester Esta cena faz parte como foi dito dos sucessos que servem de base e preparam um entrecho amoroso passional e extrema mente trágico A sua função e o seu valor psicológico não serão discutidos aqui isto fica fora do nosso objetivo O que nesta cena nos interessa é o seguinte seria quase completa mente incompreensível sem o conhecimento mais exato e deta lhado da situação política da estratificação social e das condi ções econômicas de um momento histórico muito definido a saber a França pouco antes da revolução de julho de acôrdo com o subtítulo do romance apôsto pelo editor Chronique de 1830 Já o enfado à mesa e nos salões desta família da alta aristocracia acêrca do qual Julien se queixa não é um enfado comum não provém da casual estupidez pessoal dos sêres humanos que ali se encontram há entre êles também alguns altamente instruídos espirituosos até importantes e o senhor da casa é inteligente e amável tratase com êste enfado muito mais de um fenômeno político e sóciohistórico da época da Restauração No século XVII ou até no século XVIII os salões correspondentes eram tudo menos aborrecidos Mas o ensaio empreendido pelo governo bourbônico com meios insu ficientes para reimplantar condições definitivamente superadas e condenadas fazia tempo pelos acontecimentos cria nos círculos oficiais e dirigentes dos seus adeptos uma atmosfera de mera convenção de falta de liberdade e de afetação contra a qual o espírito e a boa vontade das pessoas implicadas eram impo 1 Um a manhã em que o abade trabalhava com JuJjão na biblioteca do marquês no eterno processo de Frilair Senhor disse Juüão de repente jantar todos os dias com a senhora marquesa é um dos meus deveres ou é um a bondade que se tem por mim Ê uma honra insigne respondeu o abade escandalizado Nunca o senhor N o acadêmico que desde h á quinze anos faz uma côrtc assídua pôde obter êsse favor para o seu sobrinho o senhor Tanbeau Ê para mim senhor a parte mais penosa do meu emprêgo A borreda me menos no seminário Vejo bocejar às vêzes até a senhorita de La Mole que no entanto deve estar acostumada às amabilidades dos amigos da cas Tenho m êdo de adormecer Por favor obtenhame a permissão de ir jantar por quarenta centavos em algum albergue escuro O abade verdadeiro parvenu era muito sensível à honra de jantar com um grande senhor Enquanto se esforçava em fazer compreender êste sentimento a Julião um ligeiro ruído os fez voltar a cabeça Juüão viu a senhorita do La Mole que escutava Enrubesceu E la havia vindo buscar um livro e tinhn ouvido tudo teve então certa consideração por Julião Êsse aí nSo nasceu do joelhos pensou como o velho abade Deus como é feiot Durante o jantar Julifio nfto ousou olhar para a senhorita dc La Moio mas ela teve u bondade de lhe dirigir a palavra ftue dia ciperavnm vmilln ucnlc e cln o convidou para que flcoc NA MANSÃO DE LA MOLE 397 tentes Nestes salões não se deve falar daquilo que interessa a todo mundo dos problemas políticos e religiosos e conse qüentemente também não da maioria dos temas literários da época ou do passado imediato quando muito podem ser ditas frases oficiais que são tão mentirosas que um homem de gôsto e de tato prefere evitálas Que diferença com a ousadia espiritual dos famosos salões do século XVIII que evidente mente nem sonhavam com os perigos que desencadeavam contra a sua própria existência Agora conhecemse os perigos e a vida é dominada pelo temor de que a catástrofe de 1793 se possa repetir Devido à consciência que se tem de que não mais se acredita na causa que se representa e de que ela seria vencida em qualquer discussão pública preferese falar somente do tempo de música ou dos mexericos da côrte e existe a obrigação de admitir como aliados pessoas snobs e corruptas dos círculos da burguesia enriquecida as quais pela desavergonhada baixeza dos seus afãs e pelo mêdo pela fortuna mal ganha acabam por dete riorar completamente a atmosfera Baste isto quanto ao enfado Mas também a reação de Julien e mais absolutamente a sua presença assim como a do antigo diretor de seminário o Abbé Pirard na casa do marquês da La Mole só são compre ensíveis a partir da constelação políticosocial do instante histó rico atual A natureza apaixonada e fantasiosa de Julien entu siasmouse desde a sua primeira juventude pelas grandes idéias ila Revolução e de Rousseau pelos grandes acontecimentos da época napoleônica Desde a sua primeira juventude não sente outra coisa senão repugnância e desprêzo pela mesquinha hipo crisia e pela corrupção mentirosa das classes que dominam o puís desde a queda de Napoleão É demasiado fantasioso dema MÍaüo ambicioso e sequioso de domínio para se satisfazer com uma existência medíocre no seio da burguesia como o seu umigo Fouquet lho propõe a partir da observação de que um homem de origem pequenoburguesa só pode atingir uma posição ilc domínio através da igreja quase onipotente tomouse de plena consciência um hipócrita e o seu grande talento assegurar Ihcia uma brilhante carreira eclesiástica se os seus verdadeiros xcntimentos pessoais e políticos o caráter imediatamente passio mil da sua natureza não irrompessem em momentos decisivos Uni al instante de autodelação existe também aqui quando confia ao seu antigo mestre e protetor o Abbé Pirard os seus Hcntimentos no salão da marquesa pois a liberdade espiritual iiic nêlcs se documenta não é concebível sem uma mistura ilc altivez espiritual e de sentimento interno de superioridade o que não fica nada bem num jovem clérigo e protegido da casa I Neste caso específico a sua sinceridade não lhe acarreta qual quer diino pois o Abbé Pirard é seu amigo e sôbre a casual iprcituiloru a declaração de Julien faz uma impressão total niciilc diferente daquela que deveria esperar a temer O Abbé 6 ilcsiKiimlo aqui como vrai parvenu que sabe apreciar altamente ii Itonrii ilc comer junto n um grande senhor c que portanto 398 MIMESIS censura a declaração de Julien para justificar a censura Stendhal poderia também ter aduzido o fato de que a submissão isenta de crítica ao mal dêste mundo ou plena consciência de que se trata do mal é uma atitude típica dos jansenistas severos e o Abbé Pirard é um jansenista Sabemos das partes anteriores do romance que como diretor do seminário de Besançon teve de suportar muitas perseguições e arbitrariedades devido à sua posi ção de jansenista e à sua devoção severa inacessível a qualquer intriga pois o clero da sua província estava sob a influência dos jesuítas Por ocasião de um processo que o seu poderoso rival o vigáriogeral do bispo Abbé de Frilair movia contra o marquês da La Mole êste último teve a oportunidade de ganhar para si como seu homem de confiança o Abbé Pirard tendo assim podido apreciar a sua inteligência e retidão De tal forma finalmente para livrálo da sua insustentável situação em Besan çon o marquês conseguiu para o padre uma paróquia em Paris e pouco mais tarde acolheu em sua casa também o discípulo preferido do Abbé Julien Sorel como secretário privado Os caracteres as atitudes e as relações das personagens atuantes estão portanto estreitamente ligados às circunstâncias da história da época As suas condições políticas e sociais da história contemporânea estão enredadas na ação de uma forma tão exata e real como nunca antes fôra o caso em nenhum romance aliás em nenhuma obra literária em geral a não ser naquelas que se apresentavam como escritos políticosatíricos propriamente ditos O fato de embutir de forma tão funda mental e conseqüente a existência tràgicamente concebida de um ser humano de tão baixa extração social como aqui a de Julien Sorel na mais concreta história da época e de desen volvêla a partir dela constitui um fenômeno totalmente nôvo e extremamente importante Com a mesma precisão com que acontece com a mansão de La Mole também os outros círculos vitais nos quais Julien Soiel se movimenta a família do seu pai a casa do burgomestre M de Rênal em Verrières o semi nário de Besançon estão determinádos sociologicamente segundo o momento histórico e nenhuma personagem secundária como por exemplo o velho Chélan ou o diretor do dépôt de mendicité Valenod seria concebível da forma como são apre sentados aqui fora da situação histórica específica de época da Restauração A mesma fundamentação na história contem porânea encontrase também nos restantes romances da Stendhal ainda imperfeita e limitada a um quadro demasiado estreito em Armance mas completamente desenvolvida nas obras poste riores tanto na Chartreuse de Parme que evidentemente apre senta um cenário ainda pouco atingido pela evolução moderna de tal forma que o livro às vêzes produz o efeito de um romance histórico quanto em Lucien Leuwen um romance da época de LuísFilipe que Stendhal deixou inacabado Na forma em que êste último se nos apresenta o elemento contemporâneopolltico prepondera até demais nfio está fundido sempre com necessidade NA MANSAO DE LA MOLE 399 no andamento da ação e é apresentado em relação ao tema principal demasiado minuciosamente Talvez na reelaboração definitiva Stendhal tivesse atingido uma articulação orgânica do conjunto Finalmente também os escritos autobiográficos apesar do egotismo caprichoso e saltitante da sua posição estilística estão ligados ao político sociológico e econômico da época muito mais estreita essencial consciente e concretamente do que por exemplo os escritos correspondentes de Rousseau ou de Goethe Sentese que a história grande e real atacou Stendhal de forma muito diferente do que Rousseau ou Goethe Rousseau já não a viveu e Goethe soube tirar o corpo fora dela e até se fôr permitida esta expressão o corpo do seu espírito Com isto já fica dito ao mesmo tempo quais foram as circunstâncias que fizeram despertar neste instante e num homem desta época o realismo moderno trágico e historicamente fundamentado era o primeiro dos grandes movimentos dos tempos modernos do qual participavam conscientemente as gran des massas humanas a Revolução Francesa com tôdas as agitações que se espalharam pela Europa tôda e que foram suas conseqüências Diferenciase do movimento da Reforma não menos violento e que não agitou menos as massas pelo tempo muitíssimo mais rápido da sua difusão do seu efeito sôbre as massas e das mudanças práticas da vida num espaço relativamente amplo pois os progressets técnicos alcançados simultaneamente no campo dos transportes e da transmissão de informações assim como a difusão do ensino elementar resultante das tendências da própria Revolução possibilitaram uma mobilização dos povos relativamente muito mais rápida e mais uniforme no seu sentido Todos foram atingidos muito muis rápida mais consciente e mais uniformemente pelos mes mos pensamentos e acontecimentos Começava para a Europa aquêle processo de concentração temporal tanto dos aconte cimentos históricos em si como do seu tornarse conscientes puru todos um processo que de lá para cá fêz enormes pro gressos e que permite profetizar uma uniformização da vida dos homens sôbre tôda a Terra a qual em certo sentido já lói atingida Uma tal evolução estremece ou enfraquece tôdas iis ordens e classificações da vida que vigiam até então o tempo das modificações exige um esforço constante e extre mamente dificultoso em prol de uma adaptação interna assim como provoca violentas crises de adaptação Quem pretender ilar a si próprio razão da sua vida real da sua posição dentro ila sociedade humana é obrigado a fazêlo sôbre uma base prliticu muito mais ampla e dentro de um contexto temporal muito maior do que outrora para manter a consciência cons tante de que o chão social sôbre o qual se vive não está em repouso ein nenhum instante mas é modificado incessantemente pelos mais múltiplos estremecimento 400 MIMESIS Poderseia perguntar como se deu o fato de a moderna consciência da realidade ter se conformado literàriamente pela primeira vez na obra de Henri Beyle de Grenoble Beyle Stendhal foi um homem espirituoso vivaz interiormente inde pendente e corajoso mas não propriamente uma grande figura Os seus pensamentos são amiúde enérgicos e geniais mas são também saltitantes e arbitràriamente apresentados e apesar de tôda a sua ostentação da audácia não tem segurança nem coesão internas Todo o seu ser tem algo de fragmentário A mudan ça entre a abertura realista no conjunto e o néscio ocultamento no pormenor entre o frio domínio de si mesmo a ardentemente gozadora entrega ao sensível e a insegura e por vêzes senti mental vaidade não é sempre fácil de suportar A sua formulação lingüística é muito impressionante e inconfundivelmente original mas tem o fôlego curto é desigual nos seus êxitos e só rara mente apreende e retém o seu objeto de forma total Mas precisamente assim do jeito que era entregouse ao momento as circunstâncias pegaramno jogaramno de cá para lá confia ramlhe um destino inesperado e peculiar formaramno de tal modo que se viu obrigado a se entender com a realidade de uma forma que ninguém antes conhecera Quando eclodiu a Revolução Stendhal era um menino de seis anos de idade quando abandonou a sua cidade natal Gre noble e a sua família antigoburguesa e reacionária sombria mente amuada com as novas circunstâncias e então ainda muito abastada para se dirigir a Paris tinha dezesseis anos de idade IÁ chegou imediatamente após o golpe de Estado de Napoleão um seu parente Pierre Daru era um influente colaborador do primeiro cônsul Stendhal fêz depois de algumas vacilações e interrupções uma carreira brilhante na administração napoleô nica Viu a Europa durante as campanhas de Napoleão tornou se homem isto é um homem do mundo muito elegante tornouse também como parece um funcionário administrativo muito apto e um organizador de confiança cujo sangue frio não lhe deixava perder a calma nem nos momentos de perigo Quando a queda de Napoleão o fêz cair do cavalo estava no trigésimo segundo ano de sua vida A primeira parte da sua carreira ativa bem sucedida e brilhante tinha passado Dêsse momento em diante não tem mais qualquer profissão nem qualquer lugar ao qual pertencer Pode ir para onde quiser enquanto tiver dinheiro suficiente e enquanto as desconfiadas autoridades da época pósnapoleônica nada tenham a objetar contra a sua permanência Mas as suas condições econômicas pioram gradativamente em 1821 é expulso pela polícia de Met ternich da cidade de Milão onde se havia instalado num primeiro momento vai a Paris e vive lá durante nove anos sem profissão sozinho com meios muito parcos Depois da revolução de julho os seus amigos lhe conseguem um pôsto no serviço diplomático Como os austríiicos lhe ncgnnim o excquutur ptirii NA MANSÃO DE LA MOLE 401 Trieste deve ir como cônsul a Civitavecchia uma cidadezinha portuária esta é uma residência triste e por vêzes rabujavam no quando estendia demais suas visitas a Roma contudo pode passar algus anos de férias em Paris enquanto um dos seus protetores é ministro das relações exteriores Finalmente adoece sèriamente em Civitavecchia concedemlhe novamente férias em Paris onde morre em 1842 acometido por um ataque de apoplexia no meio da rua com menos de sessenta anos de idade Esta é segunda parte de sua vida neste tempo adquire a fama de um homem espirituoso excêntrico política e moralmente indigno de confiança durante êste tempo começa a escrever Primeiro escreve sôbre música sôbre a Itália e a arte italiana sôbre o amor só em Paris aos quarentaetrês anos em meio ao florescimento do movimento romântico no qual interveio a seu modo Stendhal publica o seu primeiro romance Êste esbôço da sua vida quer mostrar que só se deu razão de si mesmo e só se dedicou ao ofício de escrever de forma realista quando procurava náufrago num barquinho um pôrto seguro e quando descobriu com isto que para o seu barquinho não havia pôrto apropriado nem seguro quando embora não estivesse de modo algum cansado ou desacorçoado não deixava de ser um quarentão cuja primeira e brilhante carreira estava muito longe no tempo um homem sozinho e rela tivamente pobre chegou a sentir com todo rigor que não havia lugar algum que pudesse ocupar Só então o mundo social que o circundava tornouse para êle um problema o sentimento de ser diferente dos demais que até então carregara leve e orgulhosa mente tornouselhe só então objeto de urgente prestação de con lus e finalmente de criação artística A literatura realista de Stendhal brotou do seu malestar no mundo pósnapoleônico nssim como da consciência de não pertencer ao mesmo e de não ter nêlc um lugar certo O malestar no mundo dado e a incapa cidade de se incorporar a êle são evidentemente elementos rous scaunianoromânticos e é provável que Stendhal já possuísse algo disso na sua juventude há algo semelhante na sua natureza e a história da sua juventude só pode ter fortalecido tais inclinações uc por assim dizer correspondiam à moda da sua geração Por outro lado escreveu suas memórias de juventude a Vie de Henri Hndard só nos anos trinta e devese contar com que vistos tia perspectiva da sua evolução posterior da perspectiva de 1832 tenha acentuado tais motivos de isolamento individualista O corto é que os motivos e as manifestações do seu isolamento e ilu sua posição problemática perante a sociedade são totalmente diferentes dos fenômenos correspondentes em Rousseau ou nos seus seguidores do primeiro Romantismo Steiulhal tinha em contraste com Rousseau inclinação e m lamente também capacidade para o agir prático esforçavase por consojiuir o gôo sensível dit vida dada não se subtrai de 402 MIMESIS entrada à realidade prática assim como também não a censu lou como um todo logo de início senão que tentou pela primeira vez com êxito dominála O êxito e o prestígio mate riais eram apetecíveis para êle admira a energia e o domínio da vida e mesmo os seus amados sonhos le silence du bonheur são mais sensíveis mais plásticos mais fortemente dependentes da sociedade humana e das obras humanas Cimarosa Mozart Shakespeare a arte italiana do que as do promeneur solitaire Somente quando o êxito e o gôzo começaram a escaparselhe somente quando as circunstâncias práticas ameaçaram tirarlhe o chão de sua vida a sociedade do seu tempo tornouse para êle problema e assunto Rousseau não estava à vontade no mundo social que encontrava e que não se modificou grandemen te durante a sua vida ascendeu dentro dêle sem se tornar mais feliz por causa disso e sem melhorar as suas relações com o mesmo que parecia permanecer inamovível Stendhal viveu enquanto um terremoto atrás do outro sacudiu o chão social Um dêstes tremores desligouo do andamento quotidiano da sua vida que estava prédeterminado para homens da sua classe jogouo como a muitos dos seus semelhantes em meio a antes inconcebíveis aventuras vivências responsabilidades autopro vações experiências de liberdade e de domínio Outro estreme cimento jogouo de volta para um quotidiano que lhe pareceu mais enfadonho tolo e carente de atrativos do que o primeiro o mais interessante nêle era que também não prometia ser durável novos tremores estavam no ar e eclodiam cá e lá ainda que não tão violentamente como os primeiros O inte rêsse de Stendhal dirigiase pelo fato de ter brotado das expe riências da sua existência própria não para a estrutura de uma sociedade possível mas para as modificações da sociedade real mente existente Nêle a perspectiva dos tempos é sempre píesente a imagem das formas e modas de vida que se modificam incessantemente domina os seus pensamentos tanto mais que são uma esperança para êle em 1880 ou 1930 encontrarei leito res que me entendam Quero apresentar alguns exemplos Quando fala do esprit de La Bruyère no 30 capítulo de Henri Brulard evidenciaselhe que esta espécie de formação espiritual perdeu validade a partir de 1789 Lesprit si délicieux pour qui le sent ne dure pas Comme une pêche passe en quelques jours lesprit passe en deux cent ans et bien plus vite sil v a révolution dans les rapports que les classes dune société ont entre elles Os Souvenirs dégotisme contêm uma multidão de tais observações de perspectiva temporal às vêzes realmenlc proféticas Prevê cap VII perto do fim que no tempo em que êste palavreado fôr lido terseá convertido em lugarco mum responsabilizar as classes dominantes pelos crimes dos ladrões e dos assassinos teme no comêço do nono capítulo que tôdas as suas audaciosas declarações que só ousa fazer com temor serão trivialidades dez anos após h sua morte sc o céu lhe conceder uma vida de duração relativamente decente de NA MANSÃO DE LA MOLE 403 oitenta ou noventa anos no capítulo seguinte fala de um seu amigo que despende uma soma extraordinàriamente elevada quinhentos francos pelos favores de uma honnête femme du peuple e acrescenta à guisa de explicação cinq cent francs en 1832 cest comme mille en 1872 isto é 40 anos após o momento em que escreve e 30 anos após sua morte E poucas páginas mais adiante encontrase uma outra frase muito interes sante também neste sentido mas quase incompreensível devido à sua rápida estrutura diz nela que seria injusto que falasse mal de uma mulher muito jovem ainda pois possivelmente o seu palavreado seria publicado dez anos após a sua morte e continua Si je mets vingt toutes les nuances de la vie seront changées le lecteur ne verra plus que les masses Et ou diable sont les masses dans ces jeux de ma plume Cest une chose à examiner Para contribuir à interpretação desta passagem quero observar que masses se entendo corretamente seria tra duzível aproximadamente como grandes linhas Teme por tanto que vinte anos após a sua morte a vida terá mudado tão profundamente que tôdas as nuanças tornarseiam incompre ensíveis de tal forma que o leitor só poderia ver as grandes linhas de sua representação Mas onde diabo estão as gran des linhas nestes jogos da minha pena Poderíamos citar aqui muitas outras passagens semelhantes mas não é necessário pois o elemento perspectivo temporal apresentase em tôda parte na própria representação Stendhal sempre trata nos seus escritos realistas da realidade com que se defronta je prends au hasard ce qui se trouve sur ma route é assim que diz não longe da passagem que acabamos de trans crever não escolheria o homem neste seu afã de conhecêlo fiste método que Montaigne já conhecia é o melhor para excluir a arbitrariedade da construção própria e para se entregar íi realidade dada Mas a realidade com que se defrontava estava construída de tal forma que não podia ser representada sem lima referência constante às violentas mudanças do passado imediato e sem um tatear présensível das mudanças futuras Tòdas as figuras humanas e todos os acontecimentos humanos upresentamse na sua obra sôbre uma base política e social mente movimentada Para figurarnos o que isto significa comparemolo com os mais conhecidos escritores realistas do século XVIII prérevolucionário com Lésage ou com o Abbé Prévost com o excelente Henry Fielding ou com Goldsmith considerese quão mais exata e profundamente dedicase às condições reais da sua época do que Voltaire Rousseau e a obra realista da juventude de Schiller e como é mais larga a base sAbrc a quul se apóia do que a de SaintSimon que tinha lido muito emboru numa edição muito incompleta que era a que existiu então Na medida cm que o realismo moderno sério mio pode representar o homem engastado numa realidade polí licoióuiorcouòmicii ile conjunto concreta em constante evo 404 MIMESIS lução assim como agora ocorre em qualquer romance ou filme Stendhal é o seu fundador Contudo a ideologia segundo a qual Stendhal apreende o acontecer e procura reproduzir as suas engrenagens apresenta ainda pouca influência do historicismo êste último penetrou durante o seu tempo na França mas o afetou pouco precisa mente por isto embora tenhamos falado nas últimas páginas de perspectivismo histórico e da constante consciência das mu danças e estremecimentos não falamos de uma compreensão das evoluções Não é totalmente fácil descrever a sua posição interna perante os fenômenos sociais É sua intenção captar cada uma das suas nuanças êle constrói com a maior exatidão a estrutura individual de cada ambiente não possui qualquer sistema racionalista preconcebido acêrca dos fatores gerais que determinam a vida social nem uma imagem modelar de como deveria ser a sociedade ideal mas em seus pormenores a sua representação dos acontecimentos dirigese em tudo de acôrdo com o sentido da psicologia clássicamoral para uma analyse du coeur humain e não para uma pesquisa ou para um pressen timento de fôrças históricas encontramse nêle motivos raciona listas empíricos sensualistas mas dificilmente motivos român ticohistóricos Mathilde de La Mole e a sua família estão orgulhosas da sua origem ela própria rende um culto fantástico a um dos seus antepassados que foi executado no século XVI por causa de uma conjuração Stendhal apresenta isto como elemento sociológica e psicologicamente importante da sua re presentação mas está muito longe de ter uma compreensão genética da essência e da função da aristocracia no sentido dos românticos Absolutismo religião e Igreja privilégios de classe tudo isto observa de modo não muito diferente de um iluminista médio isto é como uma rêde de superstições embus tes e intrigas em geral a intriga astuciosamente urdida junto com a paixão desempenha um papel decisivo na sua estruturação da ação enquanto que as fôrças históricas que lhe servem de base mal aparecem Evidentemente tudo isto pode ser expli cado a partir de sua ideologia política que era democrático republicana só isto já teria sido suficiente para tornálo imune contra o historicismo romântico e além do mais desgostavao extremamente a ênfase de escritores como Chateaubriand e também de Rousseau a quem amara em sua juventude afastouse mais e mais Por outro lado Stendhal também trata das classes da sociedade que segundo os seus ideais deveriam estar Ihe próximas de forma extremamente crítica e sem qualquer traço dos valores sentimentais que o Romantismo ligava à palavra povo A burguesia ativa na pratica que ganha decentemente o seu dinheiro causalhe um enfado insuperável tem horror da vertu républicaine dos Estados Unidos c não obstante tôda a sua objetividade lamenta a ruína da cultura social do ancien regime Ma foi Fesprit manque assim diz o capítulo XXX de I Ir uri Rrttlartl chaciin reserve toutes vrv NA MANSÃO DE LA MOLE 405 forces pour un métier que lui donne un rang dans le monde Não mais é o nascimento e também não mais o espírito ou a autoformação como honnête homme o que é decisivo é a destreza no ofício Êste não é um mundo no quai Stendhal Dominique possa viver e respirar Contudo também pode assim como os seus heróis trabalhar e ser ativo em caso de necessidade Mas como é possível levar a sério por muito tempo algo assim como um trabalho profissional objetivo Amor música paixão intriga heroísmo estas são coisas por cuja causa vale a pena viver Stendhal é um aristocrático filho ila grande burguesia do ancien régime não quer nem pode tornarse um bourgeois do século XIX Êle próprio o diz repe tidamente as minhas opiniões já foram republicanas desde a minha juventude mas a minha família legoume instintos aris tocráticos BruUtrd XIV depois da Revolução o público teatral embruteceu Brulard X X II eu mesmo fui liberal no tino 1821 mas achava os liberais outrageusement niais Souve nirs dégotisme V I a conversação com um gros marchand de province deixame embotado e infeliz para o dia todo Egotisme VII e pas sim tais manifestações e outras semelhantes que por vêzes se referem também à sua constituição física La nature ma donné les nerfs délicats et la peau sensible dune hmme Brulard XXXII encontramse em grande quantidade As vêzes tem acessos pronunciadamente socialistas no ano de IK11 só teria podido encontrarse energia na classe qui est en lutte avec les vrais besoins Brulard II e isto era válido não siSmentc para 1811 Mas acha insuportáveis o cheiro e o barulho ilii massa e nas suas obras por mais desconsideradamente rea listas que sejam no respeito a todo o resto não há povo nem no sentido românticonacional nem no sentido socialista vi pequenos burgueses e volta e meia figuras decorativas i iimii soldados criados e garçonetes Êle trata de preferência ile peculiaridades paisagísticas e nacionais por exemplo das ililorenças entre Paris e a província ou entre franceses e italia nos ou do caráter dos inglêses amiúde com perspicácia mas sempre a partir da própria experiência às vêzes de forma um Imito brusca e parcial Mas embora se trate de pormenores olvservados não de exemplos para formas estruturais universais mino seria o caso de Montesquieu não deixa de ser verdade que mui estão interpretados de forma genéticohistórica mas servem h iimn psicologia nacional moralísticoanedótica Poderseia liiliir de moralismo local Para entender de forma mais con i ixtii o que queremos dizer leiamse por exemplo as manifesta los de I9 c 4 de janeiro de 1817 em Rome Naples et Florence I iimlmentc vê o homem individual muito menos como produto ilii m u i situiiçiu histórica c como coadjuvante da mesma do que i miiii 11ni átomo dentro dela O homem parece ter sido jogado puise loituiliimente no ambiente cm que vive é um obstáculo um quiil se pode dar melhor ou pior não é pròpriamente um solo mil ri com o qual cslíi unido orgànicumcntc Além 406 MIMESIS disso a concepção stendhaliana do homem é no seu conjunto preponderantemente materialista e sensualista e disto encontrase um comprovante excelente em Henri Brulard XXVI Jappelle caractère dun homme sa manière habituelle daller à la chasse du bonheur em termes plus clairs mais moins qualificatifs len semble de ses habitudes morales Mas a felicidade mesmo quando no caso dos sêres humanos mais altamente organizados só pode ser encontrada no espírito na arte na paixão ou na fama conserva em Stendhal sempre uma tonalidade mais sensual e terrena do que nos românticos A sua aversão pela eficiência da burguesia provinciana contra o tipo de bourgeois que estava a se formar também poderia ser romântica mas um romântico dificilmente encerraria uma descrição da sua aversão pelas ativi dades lucrativas com as seguintes palavras Jai eu le rare plaisir de faire toute ma vie à peu près ce qui me plaisait Brulard XXXII A sua concepção do espírito e da liberdade é ainda totalmente a do século XVIII prérevolucionário embora só possa tornála real na sua própria pessoa mediante esforço e um tanto convulsivamente Êle deve pagar a liberdade com pobre za e com solidão interior e até também com solidão exterior e o esprit tornase fàcilmente paradoxal amargo e mordaz une gaîté qui fait peur Brulard VI O seu esprit não mais possui a segurançaemsi da época de Voltaire não domina com a mestria de um grande senhor do ancien régime nem a sua existência social nem uma parte especialmente importante da mesma as suas relações sexuais Até afirma que só chegou a ser engenhoso porque queria ocultar a sua paixão por uma mulher que não possuíra cette peur mille fois répétée a été dans le fait le principe dirigeant de ma vie pendant dix ans Egotisme cap 19 Tais traços fazemno parecer alguém nascido demasiado tarde que procura em vão tornar realidade a forma de vida de uma época passada Outros elementos da sua natureza a desconsiderada objetividade da sua fôrça rea lista a corajosa autoafirmação da sua pessoa diante do trivial juste milieu que estava em ascensão e outras coisas mais mostramno como precursor de certas formas posteriores de espírito e de vida Mas sempre sente e vivência a realidade do seu tempo como um obstáculo Por isso mesmo o seu realismo embora não tenha surgido de modo algum ou só muito tênuemente de uma compreensão genética amorosa dos desenvolvimentos isto é de uma ideologia histórica está tão enérgica e estreitamente ligado à sua existência o realismo dêste cheval ombrageux é um produto da luta pela sua autoafir mação e a partir disto explicase que o nível estilístico dos seus grandes romances realistas se aproxime muito mais do antigo conceito grande e heróico do trágico do que aquêle da maioria dos realistas posteriores Julien Sorel é muito mais herói do que as figuras de Balzac ou de Flaubert A partir de um outro ponto dc vista que já acabamos dc insinuar é evidente que está muito próximo do eu contem NA MANSÃO DE LA MOLE 407 porâneos românticos na luta contra as fronteiras estilísticas entre o realista e o trágico Nisto até os sobrepuja pois é muito mais conseqüente e legítimo e com base nesta coinci dência lhe foi possível também em 1822 aparecer como partidário da nova tendência É fato conhecido que a regra estilística clássica que excluía todo e qualquer realismo material das obras trágico sérias já se afrouxara durante o século XVIII tratamos disso nos dois capítulos precedentes Mesmo na França êste afrou xamento é perceptível já na primeira metade do século XVIII Durante a segunda metade foi sobretudo Diderot quem pro pagou tanto teórica como pràticamente um nível estilístico médio sem ultrapassar contudo o burguêscomovente Nos seus romances especialmente no Neveu de Rameau apresenta personagens da vida quotidiana e da classe média quando não baixa com uma certa seriedade Mas esta seriedade lembra mais o moralista e satírico do iluminismo do que o realismo do sécu lo XIX Na figura e na obra de Rousseau há decididamente um germe de evolução posterior Rousseau podia como diz Meinecke no seu ljvro sôbre o historicismo II 390 mesmo Km penetrar até o pensamento cabalmente histórico coadjuvar ii despertar o nôvo sentido pelo individual somente pelo desven diimcnto da sua própria e incomparável individualidade Mei nccke fala aqui do pensamento histórico coisa semelhante po deria ser dita do realismo Rousseau não é propriamente realis ta trata dos seus temas sobretudo da sua própria vida com um intcrêsse tão fortemente apologético e críticomoral o seu juízo iicêrcu dos acontecimentos está tão fortemente determinado pelos HiMiíi princípios de direito natural que a realidade do mundo Hoanl não se torna imediatamente um objeto para êle Contudo 0 exemplo das Confessions que procuram representar a própria uxiHtÊncia na sua situação real com respeito à vida contemporânea f importante como modêlo estilístico para aquêles escritores que possuíam mais sentido para a realidade dada do que êle Miiis importante talvez na sua influência mediata sôbre o rea liHmo sério é a sua politização do conceito idílico da natureza rlii criou uma imagem ideal para a conformação da vida que como é sabido exerceu forte sugestão e que se acreditava pudesse ser tornada realidade de forma imediata Estava em contraste mm ii reulidadet histórica existente historicamente devinda e êste routruRle tornavase tanto mais forte quanto mais claramente se evidenciava que a realização do ideal estava fadada ao fracasso 1 cuia forma a realidade prática histórica converteuse em proble mii dc uma maneira antes desconhecida mais concreta e mais próxima Nos primeiros decênios após a morte de Rousseau no préromiintismo francês o efeito daquela terrível desilusão foi evidentemente totulmente contrário apresentouse justamente mi cno do encritore mui importantes uma tendência para u fuiii dn rciilidmle contemporftnea A Revolução o Império 408 MIMESIS e ainda a época da Restauração são pobres em obras literárias realistas Os heróis dos romances préromânticos delatam uma aversão por vêzes quase mórbida a entrar em contato com a vida contemporânea Já para Rousseau a contradição entre o natural que desejava e o real historicamente fundamentado com que se deparava tornarase trágica mas esta contradição incitarao para a luta pelo natural Não mais vivia quando a Revolução e Napoleão criaram uma situação totalmente nova mas não uma situação natural no sentido de Rousseau mas ainda uma situação ligada historicamente A geração seguinte profundamente impressionada com os seus pensamentos e com as suas esperanças viveu a resistência vitoriosa do históricoreal e precisamente aquêles que mais profundamente sentiram a sua influência encontramse num mundo nôvo que destruíra totalmen te as suas esperanças e no qual não puderam se sentir à vontade Entraram em oposição com êle ou afastaramse dêle Da herança de Rousseau guardaram somente a cisão interna a tendência para a fuga da sociedade a necessidade de se isolar e de ficar sòzinho o outro lado da natureza de Rousseau o lado revolucionário e combatente êste êles perderam As circunstâncias externas que destruíram a unidade da vida espiritual e a influência dominadora da literatura na França também contribuíram para esta evolução Dificilmente se encontrará uma obra literária importante desde a eclosão da Revolução até a queda de Napoleão na qual não se apresentem sintomas desta fuga do real e çontemporâneo e mes mo entre os grupos românticos posteriores a 1826tais sintomas estão muito difundidos Êles se apresentam da maneira mais pura e completa em Senancour A relação da maioria dos pré românticos com a realidade social do seu tempo é justamente no seu caráter negativo muito mais sèriamente problemática do que a da sociedade iluminista O movimento rousseauniano e a grande decepção que sofreu foram pressupostos para o surgimen to da visão moderna da realidade Na medida em que Rousseau contrapunha com paixão o estado natural do homem e a realida de da vida existente e historicamente devinda converteu esta úl tima em problema prático somente então desvalorizouse a re presentação historicamente aproblemática e imóvel da vida no estilo do século XVIII O romantismo que se tinha desenvolvido muito antes na Alemanha e na Inglaterra e cujas tendências históricas e indivi dualistas estavam se preparando também na França fazia muito tempo chegou a se desenvolver por completo após 1820 e como é sabido foi precisamente o princípio da mistura de estilos aquilo que Victor Hugo e seus amigos levantaram como grito de guerra próprio do seu movimento nêle se manifestava da maneira mais evidente o contraste com o tratamento clássico dos temas e com a linguagem literária clássica Mas já na formulação de Hugo se apresenta algo de demasiado exaccrbadamente antitético tratase para êle da mistura do sublime com o grotesco Ambos são pólos estilísticos que não tomam em consideração u rcul NA MANS AO DE LA MOLE 409 De fato não tinha a intenção de representar a realidade dada de forma compreensiva antes ressalta nos temas históricos ou contemporâneos os pólos estilísticos do sublime e do grotesco ou também outras contradições éticas ou estéticas e o faz com lanto vigor que êles se chocam entre si com violências desta forma embora surjam efeitos fortes pois a fôrça de expressão de Hugo é poderosa e sugestiva são inverossímeis e como reprodução da vida humana falsos Outro escritor da geração romântica Balzac que possuía lanta capacidade criadora e muito maior proximidade do real tomou a representação da vida contemporânea como a tarefa mais própria e pode ser considerado juntamente com Stendhal como 0 criador do realismo moderno É dezesseis anos mais nôvo do que êste mas os seus primeiros romances característicos apa recem bastante simultâneamente com os de Stendhal isto é ao redor de 1830 Como exemplo da sua maneira de representar mostraremos primeiramente o retrato de Mme Vauquer a dona ila pensão do romance Le Père Goriot surgido em começos de 1834 Antecedeo uma descrição muito exata do bairro em que se encontra a pensão da casa em si das duas habitações do térreo dêste conjunto todo resulta a impressão intensa de descon solada pobreza desgaste e rancidez sendo que juntamente com a descrição material sugerese também a atmosfera moral Depois ila descrição da instalação da sala de jantar aparece finalmente a dona da casa em pessoa Cette pièce est dans tout son lustre au moment où vers sept heures du matin le chat de Mme Vauquer précède sa maîtresse unité sur les buffets y flaire le lait que contiennent plusieurs jattes couvertes dassiettes et fait entendre son ronron matinal Ilientôt la veuve se montre attifée de son bonnet de tulle sous lequel pend un tour de faux cheveux mal mis elle marche en niinussant ses pantoufles grimacées Sa face vieillotte gras souillette du milieu de laquelle sort un nez à bec de perroquet seit petites mains potelées sa personne dodue comme un rat dé jiIiho son corsage trop plein et qui flotte sont en harmonie avec cette salle où suinte le malheur où sest blottie la spéculation el dont Mme Vauquer respire lair chaudement fétide sans en itie écœurée Sa figure fraîche comme une première gellée dautomne scs yeux ridés dont lexpression passe du sourire pres i it aux danseuses à lamer renfrognement de lescompteur enfin toute sa personne explique la pension comme la pension implique sa personne Le bagne ne va pas sans Pargousin vous nima limciiez pas lun sans lautre Lembonpoint blafard de cette petite femme est le produit de cette vie comme le typhus est la 1 uiiscqueiice des exhalaisons dun hôpital Son jupon de laine li notée qui dépasse sa première jupe faite avec une vieille robe et ilmit lu ouate séchappe par les fentes de létoffe lézardée résume le silo n la salle à manger le jardinet annonce la cuisine et luit piessentii les pensionnaires Q u a n d elle est lá ce spectacle 410 MIMESIS est complet Agée denviron cinquante ans Mme Vauquer ressem ble à toutes les femmes qui ont eu des malheurs Elle a loeil vitreux lair innocent dune entremetteuse qui va se gendarmer pour se faire payer plus cher mais dailleurs prête à tout pour adoucir son sort à livrer Georges ou Pichegru si Georges ou Pichegru étaient encore à livrer Néanmoins elle est bonne femme au fond disent les pensionnaires qui la croient sans fortune en lentendant geindre et tousser comme eux Quavait été M Vauquer Elle ne sexpliquait jamais sur le défunt Comment avaitil perdu sa fortune Dans les malheurs répondaitelle Il sétait mal conduit envers elle ne lui avait laissé que les yeux pour pleurer cette maison pour vivre et le droit de ne compatir à aucune infortune parce que disaitelle elle avait souffert tout ce quil est possible de souffrir2 O retrato da dona da pensão está ligado à sua aparição matutina na sala de jantar aparece neste ponto central de sua atividade introduzida um pouco à maneira das bruxas pelo gato que pula sôbre o aparador e imediatamente começa uma descri ção pormenorizada da sua pessoa A descrição é feita sob um motivo principal que é repetido várias vêzes o motivo da harmo nia entre a sua pessoa por um lado e o espaço em que se encontra a pensão que dirige a vida que leva pelo outro em poucas palavras a harmonia entre a sua pessoa e aquilo que nós e às vêzes também já Balzac chamamos de meio Esta harmonia é sugerida da forma mais penetrante em primeiro lugar o aspecto gasto gordo sujamente quente e repulsivamente sexual do seu corpo e das suas roupas o que concorda com o Z Êste cômodo está em todo o seu esplendor quando perto das sete horas de manhã o gato da senhora V auquer precede sua dona salta sôbre os apara dores para farejar o leite contido em várias jarras cobertas com pires e faz ouvir o seu romrom matinal Logo a viúva aparece ataviada com a sua touca de tule sob a qual pende um a mecha de cabelo postiço mal colocada cia anda arrastando os seu chinelos tortos Seu rosto velhote rechonchudo do meio do qual surge um nariz de bico de papagaio suas pequenas mãos roli ças sua pessoa redonda como um rato de igreja o seu corpete demasiado cheio e flutuante estão em harmonia com esta sala onde ressuma a desdita onde se acaçapa a especulação e cuio ar mormente fétido a senhora Vauouer respira sem repugnância Sua figura fresca como uma prim eira geada outonal seus olhos enrugados cuja expressão passa do sorriso prescrito às dançarinas ao franzimento amargo do usurário enfim tôda a sua pessoa explica a pensão como a pensão implica a sua pessoa As galés não ficam bem sem o comitre não imaginaríeis uma sem o outro A gordura baça desta peauena mulher é o produto desta vida como o tifo é a conseqüência das exalações de um hospi tal A sua anágua de lá tricofada que sobressai da sua saia feita de um velho vestido cujo recheio escapa pelos rasgos do tecido puído resume o alão a sala de jantar o jardinzinho anuncia a cozinha e faz pressentir os pen sionistas Quando ela está lá êste espetáculo está completo Com cèrca de cinqUenta anos a senhora Vauquer parecese com tôdas as mulheres que tiveram desgraças Tem os olhos vítreos o ar inocente de uma alcoviteira que se deixa irritar para se fazer pagar mais caro mas antes de mais nada disposta a tudo para adocicar a sua sorte disposta a entregar Jorge ou Pichegru se Jorge ou Pichegru pudessem ainda ser entregues NSo obstante ela é uma boa mttlhïr no fundot dizem os pensionistas que acham que ela não tem fortuna e a ouvem gemir e tossir como âles O que tinha lido o senhor Vauquer Ela nunca explicava a sorte do defunto Como havia perdido sua fortuna Na des graças respondia Êle tinha ie comportado mal para com la n lo lhe tinha deixado senão os olhos para chorar esta casa para viver e o direito d i nlo se compadecer com nenhum infortúnio porqu dlzlt la tinha sofrido tudo o que é possível sofrer NA MANSÃO DE LA MOLE 411 ar da habitação que ela respira sem nojo pouco mais tarde em ligação com o seu rosto e com os seus gestos faciais o motivo é considerado de forma um pouco mais moralista a saber acen tuando enèrgicamente a relação mútua entre pessoa e meio sa personne explique la pension comme la pension implique sa per sonne A isto juntase a comparação com as galés A isso segue se uma interpretação mais médica na qual o embonpoint blafard da senhora Vauquer como produto da sua vida é comparado com o tifo como conseqiiência das exalações de um hospital Final mente o seu saiote é valorizado como uma espécie de síntese das diferentes especialidades da pensão como antegosto dos produtos da cozinha e como préanúncio dos hóspedes da pensão Êste saiote tornase por um instante símbolo do meio e depois o conjunto todo é ainda resumido na frase quand elle est là ce spectacle est complet não é necessário esperar o desjejum e os hóspedes tudo isso já está incluído na sua pessoa Não parece existir uma ordenação consciente das diferentes retomadas do motivo da harmonia assim como não parece que Balzac tivesse seguido um plano sistemático na descrição da aparência de Mme Vauquer a seqüência das coisas mencionadas cobertura da cabeça penteado chinelos rosto mãos corpo novamente rosto olhos corpulência saiote não permite reconhecer qualquer iraço de composição também não é indicada nenhuma separação entre roupa e corpo nem entre um traço físico e o seu significado moral A descrição tôda até o ponto em que a consideramos dirigese para a fantasia recriativa do leitor às imagens lem brudas de pessoas semelhantes e de meios semelhantes que êle possa ter conhecido A tese da unidade de estilo do meio na qual são também incluídos os sêres humanos não é fundamentada racionalmente mas é apresentada como um estado de coisas sen nlvelmente penetrantes de forma imediata de maneira puramente sugestiva sem provas Numa frase como esta ses petites mains potelées sa personne dodue comme un rat déglise sont en harmonie avec cette salle où suinte le malheur et dont Mme Vauquer respire lair chaudement fétide pressupõe a tese du harmonia com tudo o que ela traz consigo significação ociológicomoral dos móveis e das peças de vestuário possibilida de de determinar os elementos ainda não visíveis do meio a partir dos que já foram dados etc Também a menção das galés e In tifo só são comparações sugestivas não são provas nem tenta tivas para tanto A falta de ordem e o desleixo racional do texto são conseqüências da pressa com que Balzac trabalhava mu mesmo assim não são casuais pois a própria pressa é em bon purte um resultado da própria possessão por imagens suges 11vim O motivo da unidade do meio apossouse do próprio lliiliic com tanto ímpeto que os objetos e as pessoas que aiiutltuem um meio ganham para êle freqüentemente uma espé cie de egundu lignificaço diferente da significação racionalmente cugnuictvcl mu muito mais essencial uma significação que é ilrflnliln du melhor miinelrn poível pelo adjetivo demoníaco 412 MIMESIS Na sala de jantar com os seus móveis e apetrechos gastos e mesquinhos mas que não deixam de ser tranqüilos e inofensivos para uma mente não influenciada pela fantasia ressuma a desgraça acaçapase a especulação em meio a esta quotidiani dade trivial ocultamse bruxas alegóricas e no lugar da viúva rechonchuda e desordenadamente vestida vêse surgir por um instante uma ratazana Tratase portanto da unidade de um espaço vital determinado sentida como uma visão de conjunto demoníacoorgânica e descrita com meios extremamente suges tivos e sensíveis A parte seguinte do nosso texto na qual o motivo da har monia não mais é mencionado ocupase do caráter e da história pregressa da senhora Vauquer Mas seria um êrro ver nesta separação entre por um lado a aparência e pelo outro o cará ter e a história pregressa um princípio proposital de compo sição Mesmo nesta segunda parte aparecem ainda caracterís ticas físicas ceiV vitreux e muito freqüentemente Balzac também ordena de forma diferente ou mistura totalmente entre si os elementos físicos morais e históricos de um retrato O tratamento do caráter e da história pregressa não tem no nosso caso a finalidade de esclarecer algo disso tudo mas serve para colocar a obscuridade de Mme Vauquer sob uma luz apro priada isto é sob o luscofusco do demonismo subalterno e trivial No que se refere à história pregressa a dona da pensão integra a categoria das mulheres aproximadamente cinqüentonas qui ont eu des malheurs plural Balzac não dá explicação alguma acêrca da sua vida pregressa mas reproduz parcialmen te em discurso indireto a tagarelice informemente plangente perdidamente coloquial que ela mesma sói apresentar diante de inquirições compadecidas Também aqui apresenta o plural suspeito que se exime da informação precisa o seu falecido marido teria perdido a sua fortuna dans les malheurs de forma totalmente semelhante àquela em que mais tarde outra viúva suspeita indica que o seu marido que tinha sido conde e general morrera sur les champs de bataille A isto corresponde o baixo demonismo do caráter de Mme Vauquer parece bonne femme au fond parece ser pobre mas possui como é dito mais tarde uma bela fortuninha e é capaz de qualquer baixeza vulgar para melhorar um pouco a própria sorte a limitação baixa e vulgar das metas dêste egoísmo a mistura de tolice astúcia e fôrça vital escondida dá novamente a impressão de algo repulsivamente fantasmagórico novamente impõese a comparação com um rato ou comi um outro animal que tem sôbre a fôrça imaginativa dos homens um efeito demoníaco e vil A segunda parte da descrição é portanto uma complementação da primeira depois de Mme Vauquer ter sido apresentada na primeira parte como síntese da unidade do espaço vital por ela dominado na segundn aprofundase a opacidade e a baixeza do seu ser que deve agir no mencionado espaço NA MANSÃO DE LA MOLE 413 Em tôda a sua obra como neste texto Balzac sentiu os meios por mais diferentes que fôssem como unidades orgânicas demoníacas até e tentou transmitir esta sensação ao leitor Êle não somente localizou os sêres cujo destino contava sèriamente na sua moldura histórica e social perfeitamente determinada como o fazia Stendhal mas também considerou esta relação como necessária todo espaço vital tornase para êle uma atmos fera éticosensível cuja paisagem habitação móveis acessórios vestuário corpo caráter trato ideologia atividade e destino permeiam o ser humano ao mesmo tempo que a situação histó rica geral aparece novamente como atmosfera geral que abrange todos os espaços vitais individuais É digno de ser notado que conseguiu isto da maneira mais perfeita e legítima com referên cia aos círculos da burguesia média e pequena de Paris e da província enquanto que a sua representação da sociedade dis tinta é amiúde melodramática ilegítima e às vêzes até de um efeito cômico contrário às suas intenções Em geral Balzac não está isento de exageros melodramáticos mas enquanto isto só raramente prejudica a legitimidade do conjunto nas esferas baixas ou médias não é capaz de criar a atmosfera certa para as zonas mais elevadas da vida também não para as espirituais O realismo atmosférico de Balzac é um produto da sua época é êle próprio parte e produto de uma atmosfera A mes ma forma espiritual isto é a romântica que começava a perceber sensivelmente com tanta intensidade a unidade atmos férica de estilo das épocas anteriores que descobria a Idade Mé dia o Renascimento e também a forma historicamente peculiar das culturas estranhas Espanha o Oriente esta mesma forma espiritual desenvolveu também a compreensão orgânica para a peculiaridade atmosférica da própria época em tôdas as suas variadas formas O historicismo atmosférico e o realismo atmos lérico estão em estreita correlação Michelet e Balzac são arras Imlos pelas mesmas correntes Os acontecimentos que tiveram lugiir na França precisamente entre 1789 e 1815 e as suas conseqüências nos anos sucessivos trouxeram como seqüela o Imo de ser precisamente na França onde o realismo moderno contemporâneo chegou mais cedo e mais fortemente se desen volvcu e a unidade políticocultural do país deulhe neste sen lido um avanço importante com respeito à Alemanha A rea lidade francesa podia ser abrangida em tôda a sua variedade como um todo Em grau não menor do que a simpatia român tica pelu totalidade atmosférica dos espaços vitais também uma outrii corrente romântica contribuiu para o desenvolvimento do iciilismo moderno a saber aquela da qual já falamos tão repe tiiliimciilc a mistura de estilos Foi ela que permitiu que perso nagens de qualquer classe social com todos os seus entrelaça mentos vitais práticoquotidiunos tanto Julien Sorel como o velho íoiiot ou Mmc Viiuquer se tornassem objetos da representação litcniriii sórin 414 MIMESIS Estas considerações gerais parecemme evidentes é muito mais difícil descrever com alguma exatidão a ideologia que domina precisamente a especial maneira de representar de Bal zac As indicações que êle próprio faz a respeito são numerosas e dão também muitos pontos de apoio mas são confusas e contraditórias Por mais que êle seja rico em idéias e em ima ginação não possui a qualidade de separar entre si os diversos elementos da sua própria ideologia não é capaz de represar a irrupção de imagens e comparações sugestivas mas carentes de clareza em meio a análises racionais e em geral não conse gue adotar uma posição crítica diante da corrente da sua própria inspiração Tôdas as suas análises racionais embora estejam cheias de observações isoladas agudas e originais levam a uma fantasiosa macroscopia que lembra o seu contemporâneo Hugo No entanto para uma explicação de sua arte realista é neces sária precisamente uma nítida separação das correntes que nela confluem No Avantprapos à Comédie humaine publicada em 1842 Balzac começa a explicação da sua obra com uma comparação entre o reino animal e a sociedade humana para a qual se deixa inspirar pelas teorias de Geoffroy SaintHiiaire Êste biólogo sustentava sob a influência da filosofia natural especu lativa alemã da época o princípio da unidade típica na organi zação isto é a idéia de que na organização das plantas e dos animais haveria um plano geral Balzac lembra nesta ocasião os sistemas de outros místicos filósofos e biólogos Swedenborg SaintMartin Leibniz Buffon Bonnet Needham para formu lar finalmente os seus pensamentos da seguinte forma Le créateur ne sest servi que dun seul et même patron pour tous les êtres organisés Lanimal est un principe qui prend sa forme extérieure ou pour parler plus exactement les différences de sa forme dans les milieux où il est appelé à se développer A Êste princípio é transferido imediatamente à sociedade humana La Société com maiúscula como pouco antes Nature ne faitelle pas de lhomme suivant les milieux où son action se déploie autant dhommes différents quil y a de variétés en zoologie4 E depois compara as diferenças entre um soldado um trabalha dor um funcionário um advogado um vadio um sábio um estadista um comerciante um marinheiro um poeta um pobre 3 O Crlador nSo se serviu senão de um só modêlo para todos os sire organizados O animal é um princípio que assume sua forma exterior ou para falar mais exatamente as diferençai de sua forma nos meios onde chamado a se desenvolver 4 A Sociedade nlo faz do homem legundo os melos onde sua aclo 0 desenvolve tanto homens diferentes quantas há variedades zoológicas NA MANSÃO DE LA MOLE 415 um sacerdote com as que existem entre lôbo leão burro corvo tubarão e assim por diante Disto surge em primeiro lugar que Balzac tenta funda mentar as suas opiniões acêrca da sociedade humana tipo huma no diferenciado pelo meio mediante analogias biológicas A palavra meio milieu que aparece aqui pela primeira vez em sentido sociológico e à qual estava destinada uma tão grande carreira Taine parece têla recebido de Balzac Balzac apren deua de Geoffroy SaintHilaire o qual por sua vez a tinha transferido do campo da física para o da biologia Agora ela emigra da biologia para a sociologia O biologismo que Balzac tem em mente é como pode ser deduzido dos nomes por êle citados místico especulativo e vitalista com isto a representa ção ideal o princípio animal ou homem não está conce bido de modo algum de forma imanente mas como que uma idéia real platônica As diferentes espécies e gêneros são só formes extérieures E além do mais elas próprias não são vistas como historicamente mutantes mas como fixas um sol dado um trabalhador etc assim como um leão um burro A significação própria da idéia de meio assim como a apli cava na prática nos seus romances Balzac não parece têla reconhecido totalmente aqui Não a palavra mas a coisa o meio em sentido social já existiu muito antes dêle Montes quieu possui esta idéia inconfundivelmente mas enquanto Mon tesquieu dá muito maior consideração às condições naturais clima solo do que às que surgiram da história da humanidade c enquanto se afana em construir os diferentes meios como representações modelares inamovíveis às quais é possível aplicar cuso por caso o modêlo de constituição e de legislação apro priado para elas Balzac está na prática inteiramente sob o sortilégio dos elementos estruturais históricos e constantemente mutantes do seu meio E nenhum leitor chega de per si à idéia que Balzac parece defender no Avantpropos ou seja que o que lhe interessa é o tipo homem ou até mesmo somente os lipos especiais soldado comerciante o que se vê é a figura individual concreta internamente corpórea e histórica surgidu da imanência da situação histórica social física etc o cm constante mutação não o soldado mas por exemplo o coronel Bridau em Issoudun La Rabouilleuse licenciado após ii queda de Napoleão desmoralizado e entregue à aventura Após a audaciosa comparação entre a diferenciação zooló gica c sociológica Balzac se esforça contudo em salientar as peculiaridades da Société em contraste com a Nature Êle as vê mites de mais nada na muito maior variedade da vida humana c dos costumes humanos assim como na possibilidade inexistente no reino animal de se transformar uma espécie em ontra Lépicier devient pair de France et le noble descend parfois au dernier rang social outrossim há o acasalamento de ripéeie diferentes la femme dun marchand est quelquefois ililtnr dêtre celle dun prince dam la Société la femme ne 416 MIMESIS se trouve pas toujours être la femelle dun mâle também são mencionados os dramáticos conflitos amorosos raramente exis tentes no reino animal e os diferentes graus de inteligência de diferentes sêres humanos A oração que resume tudo diz LEtat social a des hasards que ne se permet pas la Nature car il est la Nature plus la Société Por mais inexato e macroscópico que seja êste período por mais que sofra por causa do proton pseudos falsidade inicial da comparação que lhe serve de fundamento não deixa de conter uma compreensão histórica instintiva les habitudes les vêtements les paroles les demeures changent au gré des civilisations e algo de dinamismo vitalista si quel ques savants nadmettent pas encore que lAnimalité se trans borde dans lHumanité par un immense courant de vie Não se fala nas especiais possibilidades de compreensão de que o homem dispõe frente ao homem também não em uma formu lação negativa isto é que comparados com êle osanimais não a possuem pelo contrário a simplicidade relativa da vida social e espiritual dos animais é colocada como fato objetivo e só no fim encontrase uma insinuação do caráter subjetivo de tais conhecimentos les habitudes de chaque animal sont à nos yeux du moins constamment semblables en tout temps Depois desta transfusão do biológico ao históricohumano Balzac prossegue com uma polêmica contra a historiografia habi tual à qual lança em rosto ter negligenciado até então a histó ria dos costumes esta seria a tarefa à qual êle terseia avocado Com isto não menciona os ensaios de história dos costumes que foram feitos a partir do século XVIII Voltaire portanto não se chega também a uma análise que explicasse a diferença entre a sua representação dos costumes e a dos seus eventuais predecessores somente menciona Petrônio Ao observar as di ficuldades da sua tarefa um drama com três ou quatro mil personagens sentese encorajado pelo exemplo dos romances de Walter Scott movimentamonos estritamente no mundo do his toricismo romântico Também aqui a clareza do pensamento vêse prejudicada pelas formulações cheias de efeitos e fantasia por exemplo faire concurrence à lEtatCivil é incompreensível e a frase le hasard est le plus grand romancier du monde neces sita dentro de uma mentalidade histórica ao menos de um comentário Contudo alguns motivos significativos e caracte rísticos ressaltam bem antes de mais nada a concepção do romance de costumes como história filosófica e em geral a interpretação sustentada enèrgicamente por Balzac também alhu res de que a sua atividade deve ser considerada como historio grafia ainda voltaremos a êste ponto outrossim a justificação de tôdas as espécies e de todos os níveis estilísticos em obras dêste gênero e finalmente a sua intenção de superar Walter Scott na medida em que encerra todos os seus romances num conjunto único numa representação global da sociedade fran cesa do século XIX o que volta a designar aqui como obra histórica NA MANSÃO DE LA MOLE 417 Mas com isto o seu plano não se esgota quer prestar con tas pormenorizadas ainda acêrca de les raisons ou la raison de ces effets sociaux e se teve êxito pelo menos na procura de ce moteur social quer finalmente também méditer sur les principes naturels et voir en quoi les Sociétés sécartent ou se rapprochent de la règle éternelle du vrai du beau Não é necessário que insistamos acêrca da sua incapacidade de tecer considerações teóricas fora dos limites de uma narração nem acêrca do fato de que portanto só poderia tentar a realização dos seus planos em forma de romances Aqui somente interessa constatar que não lhe bastava a filosofia imanente dos seus romances de costumes e que esta insatisfação o induz aqui após tanta dis cussão biológica e histórica a empregar imagens modelares clás sicas la règle éternelle le vrai le beau categorias que não mais pode aproveitar de forma prática era seus romances Todos êstes motivos biológicos históricos clàssicamente morais encontramse espargidos efetivamente pela sua obra Gosta muito de comparações biológicas fala em fisiologia ou zoologia motivado por fenômenos sociais fala da anatomie du cœur humain no texto acima citado compara os efeitos de determinado meio social com as exalações que produzem o tifo e numa outra passagem do Père Goriot diz que Rastignac se leria entregue aos ensinamentos e seduções do luxo avec lardeur dont est saisi limpatient calice dun dattier femelle pour les fécondantes poussières de son hyménée É desnecessário enume rar motivos históricos pois o espírito atmosféricoindividuali zante do historicismo é o espírito de tôda a sua obra mas quero citar pelo menos uma de muitas passagens para mostrar que cru constantemente consciente das concepções historicistas A passagem consta do seu romance de província La vieille fille tratase de dois senhores de certa idade que moram em Alen çon um dêles é um típico cidevant o outro um oportunista da revolução falido Les époques déteignent sur les hommes qui les traversent Ces deux personnages prouvaient la vérité de cet axiome par lopposition des teintes historiques empreintes dans leurs physio nomies dans leurs discours dans leurs idées et leurs coutumes5 r numa outra passagem do mesmo romance fala por ocasião île uma casa de Alençon do archétype que ela representaria aqui não se trata do arquétipo de um ente abstrato histórico mas laqueie das maisons bourgeoises de uma grande parte da Irança A casa cujo saboroso caráter local descreveu anterior mente mereceria o seu lugar nesta obra tanto mais quil expliiue de tnarurs et représente des idées Elementos bioló Ah época dcftboinnt Abre ou homens que as atravessam Estas duas IHHtnnnycn ptnvitvmn a verdade díxle axioma pela oposiço das tintas hís irtih m impie cm iuai ÍU ionom lai nai ftuan palavras nas siuls icfâias e t nlttHIH 418 MIMESIS gicos e historicistas reúnemse na obra de Balzac e o fazem bastante bem não obstante algumas faltas de clareza e de muitos exageros pois ambos encaixam no caráter românticodinâmico da mesma caráter que por vêzes transborda no românticomá gico e demoníaco Em ambos os casos sentese a ação de fôrças irracionais Em contraste o elemento clássicomora lista age freqüentemente com um corpo estranho Manifestase particularmente na propensão de Balzac para a formulação de sentenças morais de caráter generalizador Por vêzes e como observações isoladas são engenhosas mas sofrem em geral de uma generalização desmedida por vêzes nem são engenhosas e quando crescem até se converterem em análises mais prolonga das surge o que vulgarmente se denomina de palavrório Quero citar aqui algumas máximas que se encontram no Père Goriot i Le bonheur est la poésie des femmes comme la toilette en est le fard La science et lamour sont des asymptotes que ne peuvent jamais se rejoindre Sil est un sentiment inné dans le cœur de lhomme nestce pas lorgueil de la protec tion exercé à tout moment en faveur dun être faible Quand ou connaît Paris on ne croit à rien de ce qui sy dit et lon ne dit rien de ce qui sy fait Un sentiment nest ce pas le monde dans une pensée O mínimo que pode ser dito sôbre tais sentenças é que não merecem em sua maioria a generalização de que gozam São as ocorrências surgidas da situação do instante por vêzes muito oportunas por vêzes absurdas nem sempre de bom gôsto Balzac ambiciona ser um moralista clássico ocasionalmente en contramse nêle até reminiscências de La Bruyère por exemplo uma passagem no Père Goriot onde são descritos os efeitos físi cos e espirituais da posse de dinheiro por ocasião da remessa de dinheiro que Rastignac recebe de sua família Mas isto não casa nem com o seu estilo nem com o seu temperamento As melhores formulações encontraas em meio às narrações quan do nem pensa em moralizar assim quando na Vieille Fille diz acerca de Mlle Cormon aproveitando a oportunidade do ins tante Honteuse ellemême elle ne devinait pas la honte dautrui Acêrca do plano do conjunto que ia se formando paula tinamente dentro dêle há ainda outras interessantes declarações dêle próprio sobretudo do tempo em que o fixou definitivamente nas cartas escritas ao redor de 1834 Há três motivos que devem ser salientados especialmente nestas autointerpretações 6 A felicidade é a poesia das mulheres assim como a toilette é seu disfarce A ciência e o am or são assíntotas que nunca podem se encon trar Se há um sentimento inato no coração do homem não 6 êle o orgulho da proteção exercida em favor de um ser débil Quando ne conhece Pariu não se acredita em nada do que dizem a seu respeito o nfto w dit nndn acêrtn do que lá se faz Um sentimento não é o mundo num pcnanmcnln NA MANSÃO DE LA MOLE 419 encontramse todos os três juntos numa carta à senhora von Hanska Lettres à FEtrangère Paris 1899 carta de 26 de outu hro de 1834 pp 200206 onde diz p 205 Les Etudes de Mœurs représenteront tous les effets sociaux sans que ni une situation de la vie ni une physionomie ni un caractère dhomme ou de femme ni une manière de vivre ni une profession ni une zone sociale ni un pays français ni quoi que ce soit de lenfance de la vieillesse de lâge mur de la politique de la justice de la guerre ait été oublié Cela posé lhistorié du coeur humain tracée fil à fil lhis toire sociale faite dans toutes ses parties voilà la base Ce ne seront pas des faits imaginaires ce sera ce qui se passe partout7 Dos três motivos que tenho em mente dois podem ser reconhecidos imediatamente primeiramente o caráter universal c vitalmente enciclopédico da intenção nenhuma parte da vida deve faltar logo depois o caráter realqualquer da mesma ce qui se passe partout O terceiro motivo reside na palavra histoire Nesta histoire du coeur humain ou histoire sociale não se trata de História no sentido corrente não da investigação científica de acontecimentos ocorridos mas de uma invenção relativamente livre não se trata de history mas de fiction os têrmos inglêses são especialmente claros não se trata de forma alguma do passado mas do presente contemporâneo que se estende quando muito por alguns anos ou décadas no passado Quando Balzac designa os seus Etudes de Mœurs au dixneuvième siècle como história de forma semelhante Stendhal já tinha dado ao seu romance Le Rouge et le Noir o subtítulo Chronique du dixneu vième siècle isto significa em primeiro lugar que considéra a sua atividade inventiva artisticamente conformadora como xendo uma atividade historicamente interpretativa até como uma atividade de filosofia da história como já podia ser apreen dido no Avantpropos em segundo lugar significa que consi dera o presente como história isto é o presente é algo que ocorre surgindo da história De fato os seus homens e os seus ambientes por mais presentes que sejam estão sempre represen I lidos como fenômenos que emanaram dos acontecimentos e das íórçiis históricas Basta reler por exemplo a descrição da ori gem da fortuna de Grandet Eugénie Grandet ou a carreira île Du Bousquier La vieille Fille ou a do velho Goriot para se aperceber disso nada semelhantemente consciente nem exato se encontra em parte alguma antes do aparecimento de Stendhal c de Halzac c êste último ultrapassa o primeiro de longe no 7 O fCstuüos de Costumes representarão todos os efeitos sociais sem liir nenhuma aituaçfio da vida nenhum fisionomia nenhum caráter de homem uii ile mulher nenhuma maneira de viver nenhuma profissão nenhuma zona ocinl nenhuma província francesa nada do que disser respeito à infância à vrlhUc h idade madura i política justiça à guerra tenha sido esquecido Uto pAftto ii hifttárlu do coraçfto humano traçada fio por fio a história um In feiu cm Adiu n Minn piirtc ei n bane N lo wrflo fatos imaginários oiA n ir um nlcrr rm Mn parte 420 MIMESIS que se refere à ligação orgânica entre homem e história Uma tal concepção e uma tal prática são totalmente historicistas Voltemos ainda uma vez ao segundo motivo ce ne seront pas des faits imaginaires ce sera ce qui se passe partout Com isto fica dito que a invenção não haure da livre fôrça imaginativa mas da vida real tal como se apresenta em tôda parte Ora Balzac possui diante desta vida múltipla embebida de história representada sem rebuços com tudo o que tiver de quotidiano prático feio e comum uma posição semelhante à que Stendhal já possuíra levaa a sério e até a considera tràgicamente nesta forma real quotidiana intrahistórica Isto não existiu em parte alguma no tempo posterior ao surgimento do gôsto clássico nem antes nesta forma prática e intrahistórica dirigida para uma autoresponsabilização social do homem A partir do classicismo francês e sobretudo após o absolutismo não somente o trata mento do quotidianoreal tinha se tornado muito mais limitado e decoroso mas também a atitude que se tinha diante dêle privavase por assim dizer fundamentalmente do trágico e do problemático Tentamos analisar isto nos capítulos precedentes um objeto da realidade prática podia ser tratado de forma cômi ca satírica didáticomoralizante certos objetos de campos bem circunscritos e determinados do contemporâneo e quotidiano atingiam até o nível estilístico mediano do comovente mas não se ia para além disto A vida realquotidiana mesmo das cama das médias da sociedade era considerada como de estilo baixo 0 engenhoso e importante Henry Fielding que toca tantos pro blemas morais estéticos e sociais mantém a representação sem pre nos limites do tom satíricomoralista e diz no Tom Jones livro XIV cap I that kind of novels which like this 1 am vriting is of the comic class A irrupção da seriedade trágica e existencial no realismo tal como a constatamos em Stendhal e Balzac está sem dúvida em estreita correlação com o grande movimento romântico da mistura dos estilos designado pelo slogan Shakespeare contra Racine e considero a forma stendhalbalzaquiana a mistura do sério com a realidade quotidiana muito mais decisiva autêntica importante do que a do grupo de Victor Hugo que queria unir o sublime ao grotesco A novidade da atitude e a nova espécie de objetos que eram tratados séria problemática tràgicamente tiveram como efeito o desenvolvimento progressivo de uma espécie totalmente nova de estilo sério ou se se quiser elevado não seria possível trans ferir para os novos objetos sem mais nem menos os níveis antigos nem os cristãos nem os shakesperianos nem os níveis racinianos de percepção e de expressão num primeiro momento mostravase uma certa insegurança nesta nova espécie de atitude grave Stendhal cujo realismo surgira a partir de umn resistência contra um presente que lhe era desprezível ainda conservou nu NA MANSÃO DE LA MOLE 421 sua atitude muito dos instintos do século XVIII Nos seus heróis ainda aparecem os espectros das lembranças de figuras tais como Romeo Don Juan Valmont das Liaisons Dangeu reses e SaintPreux sobretudo vive nêle a figura de Napoleão os heróis dos seus romances pensam e sentem contra o tempo rcbaixamse sòmente com desprêzo às intrigas e maquinações do presente pósnapoleônico embora se imiscuam constante mente motivos que segundo as concepções anteriores teriam caráter cômico não deixa de prevalecer para êle o conceito de que uma figura pela qual sente uma participação trágica parti cipação que também exige do leitor deve ser um herói autên tico grande e audacioso nos seus pensamentos e paixões A liberdade do coração grande a liberdade da paixão ainda têm no caso de Stendhal muito da altura aristocrática e do jôgo com a vida que pertencem antes ao ancien régime do que à burguesia do século XIX Balzac submerge os seus heróis bem mais profundamente na temporalidade com isto perdemselhe a medida e os limites da quilo que anteriormente era considerado trágico e a seriedade objetiva diante da realidade moderna que se desenvolveu mais tarde esta êle ainda não possui Qualquer enrêdo por mais tri vial ou corriqueiro que fôr é por êle tratado grandiloqüente mente como se fôsse trágico qualquer mania é por êle vista como paixão Está sempre disposto a marcar qualquer infeliz tomo herói ou como santo se se tratar de uma mulher com pitrun com um anjo ou com uma madona Demoniza todo e qualquer malvado enérgico e em geral qualquer figura leve mente sombria e chega até a chamar o coitado do velho Goriot d Christ de la paternité Correspondia ao seu temperamento agitado cálido e carente de crítica correspondia também à moda ilr vida romântica farejar por tôda parte fôrças demoníacas wiictas c exacerbar a expressão até o melodramático Na geração seguinte que faz sua aparição nos anos cin qüenta apresentase neste sentido uma violenta reação com Haubert o realismo tornase apartidário impessoal e objetivo Num Irabulho preparatório sôbre a imitação séria do quotidia no analisei um trecho de Madame Bovary a partir dêste pon lo ile vista c repetirei aqui aquelas páginas com poucas modi tliaçrteii c abreviações pois encaixam perfeitamente na atual roiientc de idéias e porque o local e a data da sua publicação I litiimbiil 1937 devem ter impedido que chegassem a ter mui ion leitores O trecho em questão está no nono capítulo da iimieim parte de Madame Bovary e diz assim Mai cétait surtout aux heures des repas quelle nen pou vait plim dan cette petite salle au rezdechaussée avec le poêle iin Imitait la porte qui criait les murs qui suintaient les pavés I i i i i i i i i Ii h toute lamertume de lexistence lui semblait servie sur on umtlcllc et il la fumée du bouilli il montait du fond de son imii iiimiuc dmitie bouffées daffadissement Charles était 422 MIMESIS long à manger elle grignotait quelques noisettes ou bien ap puyée du coude samusait avec la pointe de sou couteau de faire des raies sur la toile cirée8 A passagem constitui o ponto culminante de uma descrição cujo objeto é a insatisfação de Emma Bovary com a sua vida em Tostes Longo tempo esperou um acontecimento repentino que imprimisse uma nova direção a essa vida sem elegância aventura nem amor no mais profundo da província ao lado de um homem medíocre e enfadonho Ela até se preparou para êsse acontecimento cuidou de si e da sua casa como que para merecer essa virada do destino e para ser digna dela como ela não ocorre o desassossêgo e a desesperação apoderamse dela Isto é descrito por Flaubert em várias imagens que pintam o ambiente que rodeia Emma tal como êle se lhe apresenta somen te quando não vê mais esperança alguma de fugir dêsse mundo apareceselhe nitidamente o que êle tem de desconsolado mo nótono cinzento enfadonho asfixiante e irremediável A pas sagem que transcrevemos é o ponto culminante da descrição do seu desespêro Depois narrase como desleixa tudo na sua casa como deixa de se cuidar a si mesma e começa a ficar adoentada de tal forma que o seu marido se decide a deixar Tostes pois acredita que o clima não lhe faz bem A própria passagem mostra um quadro marido e mulher juntos durante uma refeição Mas êste quadro não é mostrado de forma alguma em si ou por si mesmo mas está subordinado ao objeto dominante ao desespêro de Emma Por isso mesmo também não é apresentado ao leitor de forma imediata eis duas pessoas sentadas à mesa e lá está o leitor que as observa mas o leitor vê em primeiro lugar Emma da qual muito se falou nas páginas anteriores e sòmente através dela é que vê o quadro De forma imediata o leitor vê apenas o estado interno de Emma e de forma mediata a partir dêste estado à luz da sua sensação vê o processo da refeição à mesa As primeiras palavras do trecho Mais cétait surtout aux heures des repas quelle nen pouvait plus anunciam o tema e tudo o que se segue só é desenvolvimento do tema Não só as determinações dependentes de dans e avec que indicam as espacialidades se constituem com o seu amontoado de pormenores do maltstar num comentário para elle nen pouvait plus mas também a ora ção seguinte que fala do nojo que lhe causam as comidas su jeitase no seu sentido e no seu ritmo à intenção principal Quando mais tarde se lê Charles était long à manger embora se trate gramaticalmente de uma nova oração e ritmicamente 8 M as era sobretudo às horas de refeição que ela não agüentava mais nesta pequena sala do andar térreo com a estufa que fumegava a porta que rangia os muros que ressumavam os pavimentos úmidos tôda a amargura dn existência parecialhe servida no seu prato e como a fumaça do cozido lubiont do fundo de sua alma como que outras baforadas de enjôo Carlos era domo rado a comer ela mordiscava ulgumn avelA ou bem apoiada no cotavéln divertlasc a fiter riscoa com w poniu dn facti nôbre o oleado NA MANSÃO DE LA MOLE 423 dc um nôvo movimento não deixa de ser apenas uma retomada uma variante do movimento principal somente a partir do con traste entre o seu tranqüilo comer e a sua repugnância e os movimentos descritos logo a seguir do seu nervoso desespêro h oração ganha a sua significação própria O homem que come despreocupado tornase ridículo e algo espectral quando Emma olha para êle assim como está sentado e come tornase o mo tivo principal propriamente dito do elle rien pouvait plus pois tudo o mais que origina o desespêro o triste recinto a comida habitual a falta de toalha de mesa o desconsolador do conjun to todo parece a ela e por conseguinte também ao leitor algo que tem a ver com Charles Bovary que emana dêle algo que seria totalmente diferente se êle fôsse diferente Desta forma a situação não é apresentada simplesmente como quadro mas o que é apresentado em primeiro lugar é a personagem Emma e através dela apresentase a situação Ain ilii não se trata contudo como em alguns romances em primei iii pessoa e em outras obras posteriores de espécie semelhante tlii simples reprodução do conteúdo da consciência de Emma daquilo que ela sente e do modo como ela o sente Embora wju dela que se irradie a luz que ilumina o quadro ela própria mio deixa de ser uma parte do quadro está em meio a êle Lem lua assim o falante da cena de Petrônio no nosso segundo ca pitulo só que os meios que Flaubert emprega são diferentes Niio é Emma quem fala aqui mas o escritor Le poêle qui fu niiilt la porte qui criait les murs qui suintaient les pavés hu niltlrx certamente Emma sente e vê tudo isto mas ela não unia capa de ajuntálo desta forma Toute 1amertume de Fexis írK c lui semblait servie sur son assiette ela certamente tem uma ui sensução mas se quisesse exprimila não sairia desta forma iiini chegar a esta formulação faltamlhe a agudeza e a fria ho nestidade que resulta de uma prestação de contas consigo mesmo Indavia não é de modo algum a existência de Flaubert mas a ilo Im m a a única que se apresenta nestas palavras Flaubert mui la senão tornar lingüisticamente maduro o material que ela nlricce em sua plena subjetividade Se Emma pudesse fazêlo uinlm não mais seria o que é terseia emancipado de si mes ma o com isto estaria salva Mas ela não somente não vê as nti mas é vista como vidente c através disto pela mera desig 111111111 nftidn da sua existência subjetiva a partir das suas pro pilas sensações é julgada Quando se lê uma passagem poste imi 2 parte capítulo 12 perto da segunda página jamais luirlfx nc lui paraissait aussi désagréable avoir les doigts aussi i wn iM 1txprlt aussi lourd les façons si communes pensase tiilvr por um instunte que esta singular justaposição seja o re mitindo de um amontoamento afetivo dos motivos que fazem jmiiii o desgôsto de Emma pelo seu marido que seja ela pró piin quem por assim dizer pronunciasse internamente estas pa lavra que se trate de um caso de discurso indireto Mas isto p i I m um érro Irutasc dc fnto dc alguns motivos paradigmá 424 MIMESIS ticos do desgosto de Emma mas foram concatenados muito pre meditadamente pelo autor e não por Emma movida pelas suas emoções Pois Emma sente muito mais e de maneira muito mais confusa vê também outras coisas afora estas no seu cor po nos seus modos nas suas vestimentas misturamse lembran ças entrementes ouveo dizer alguma coisa sente talvez sua mão a sua respiração vêo andar de cá para lá bonachão limitado inapetitoso e despreocupado é um semnúmero de impressões confusas A única coisa que aparece com contornos nítidos é a repugnância que sente por êle e que deve ocultar Flaubert transpõe a agudeza nas impressões escolhe três dentre elas de forma aparentemente involuntária mas que são tiradas de forma exemplar do físico do espiritual e do comportamento e coloca as assim como se fôssem três choques que atingem Emma um após o outro Isto evidentemente não é uma reprodução natu ralista da consciência Os choques naturais ocorrem sempre de forma totalmente diferente Há nisto a mão ordenadora do escritor que compendia de forma fechada a confusão do con teúdo interno e o dirige no sentido em que êle próprio avança na direção repugnância diante de Charles Bovary Esta orde nação do conteúdo interno evidentemente não recebe as suas escalas de fora mas do próprio material de que se constitui É pôsto em ordem aquilo que deve ser empregado para que o próprio conteúdo se transforme em linguagem sem mistura alguma Quando se compara esta forma de representação com as de Stendhal ou Balzac devese expor preliminarmente que também aqui podem ser encontradas as duas características decisivas do realismo moderno também aqui acontecimentos quotidianos e reais de uma camada social baixa da burguesia provinciana são levados muito a sério ainda falaremos sôbre o caráter especial desta seriedade e também aqui os acontecimentos quotidia nos estão submersos muito exata e profundamente numa época históricocontemporânea determinada a época da monarquia burguesa embora isto ocorra de forma menos evidente do que no caso de Stendhal ou de Balzac não deixa de ser incontestá vel Nestas duas características fundamentais existe em con traste com todo o realismo anterior unanimidade entre os três escritores mas a posição de Flaubert diante do seu objeto é to talmente diferente No caso de Stendhal e de Balzac ouvimos com freqüência quase sempre aliás como o autor pensa acêrca das suas personagens e dos acontecimentos sobretudo Balzac acompanha as suas narrações constantemente com comentários comovidos ou irónicos ou morais ou históricos ou econômi cos Ouvimos também muito amiúde o que as próprias perso nagens pensam ou sentem e isto ocorre freqüentemente de tal maneira que o autor se identifica com a personagem numa si tuação dada Estas duas coisas faltam em Flaubert quitsc intei ramente A sua opinião sôbrc os acontecimentos e as pcrsonii NA MANSÃO DE LA MOLE 425 gens não é expressa e quando as próprias personagens se ma nifestam isto nunca ocorre de tal forma que o autor se identi fique com a sua opinião ou com a intenção de levar o leitor a se identificar com ela Embora ouçamos o autor falar êle não exprime qualquer opinião e não comenta O seu papel limitase a escolher os acontecimentos e a traduzilos em linguagem e isto ocorre com a convicção de que qualquer acontecimento se fôr possível exprimilo limpa e integralmente interpretaria intei ramente a si próprio e os sêres humanos que dêle participassem muito melhor e mais inteiramente do que o poderia fazer qual quer opinião ou juízo que lhe fôsse acrescentado Sôbre esta convicção isto é sôbre a profunda confiança na verdade da linguagem empregada com responsabilidade honestidade e es mfiro repousa a arte de Flaubert Isto é uma tradição muito antiga clàssicamente francesa Já no verso de Boileau sôbre o poder da palavra bem empregada ucêrca de Malherbe dun mot mis en sa place enseigna le pouvoir há algo disto considerações semelhantes encontramse cm Ja Bruyère Vauvenargues disse Il riy aurait point derreurs qui ne périssent dellesmêmes exprimées clairement A con litinçu de Flaubert na linguagem vai além da de Vauvenargues iicrcdita que também a realidade do acontecimento se desvende nu expressão lingüística Flaubert é um homem que trabalha muito conscientemente e possui senso artístico crítico num grau pouco comum até na França Por isso encontramse em sua cor icipondência especialmente a dos anos 1852 a 1854 durante n quais escreveu Madame Bovary Troisième Série na Nouvelle 1illtlon augmentée da Correspondance 1927 muitas manifesta nte esclarecedoras acêrca das suas intenções artísticas Elas ilcKcmbocam numa teoria que é em última análise mística mas que repousa na prática como tôda mística legítima sôbre a mAo u experiência e a disciplina uma teoria da submersão mm objetos da realidade esquecendose de si mesmo através ilu qiml êstes objetos seriam transformados par une chimie merveilleuse e evoluiriam até atingir a maturidade verbal Des tu forum os objetos preenchem inteiramente o escritor êle se qticcc a si próprio o seu coração servelhe tão sòmente para iilir o dos outros e quando êste estado atingível sòmente pela viol6nciu dc uma paciência fanática fôr alcançado a expressão linguistica plena que ao mesmo tempo apanha integralmente o ohjcln cm questão e o julga imparcialmente apresentase de per m o objetos são vistos como Deus os vê na sua verdadeira idiiliiliulc A isto juntase uma concepção da mistura de estilos que Hiirgc du mesma visão místicorealista não haveria objetos ilivuloM e baixos a criação seria uma obra de arte criada sem piiidiiltdiKlc o artista realista deveria imitar os processos da iiiiiVtto c ciidu objeto conteria na sua peculiaridade perante o Alfii dc Deu Imilo a seriedade quanto a comicidade tanto a tllgniilmlr quiinto n baixeza Sc fôr reproduzido correta e exa iiiiiunic ciilúo também será utingido exutumente o nível dc esti 426 MIMESIS lo que lhe corresponde não é necessária nem uma teoria geral dos níveis pela qual os objetos seriam graduados segundo a sua dignidade nem qualquer análise por parte do escritor que comente o objeto após sua apresentação para fins de melhor compreensão e mais exata ordenação tudo isto deveria surgir por si próprio a partir da representação do objeto É evidente o contraste que existe entre esta concepção e a evidenciação grandiloqüente e ostentatória do próprio sentimen to e das escalas por êle conferidas tal como tinha surgido a partir de Rousseau e por sua causa uma interpretação compara tiva entre a frase de Flaubert Notre coeur ne doit être bon quà sentir celui des autres e a de Rousseau no início das Con fessions Je sens mon coeur et je connais les hommes podfria representar exaustivamente a mudança de posição que acabava de se completar Porém da correspondência também surge com clareza quão penosamente e com que convulsionado esfôrçó Flau bert chegou às suas convicções Os grandes objetos e a atuação livre e carente de responsabilidades da fantasia criadora ainda têm um grande atrativo para êle sob êste ponto de vista vê Shakespeare Cervantes e até Hugo com olhos totalmente ro mânticos e maldiz por vêzes o seu próprio objeto estreito e pequenoburguês que o obriga a realizar um trabalho estilístico miniatural dos mais penosos dire à la fois simplement et pro prement des choses vulgaires Isto vai por vêzes tão longe que diz coisas que contradizem as suas posições fundamentais et ce quil y a de désolant cest de penser que même réussi dans la perfection cela Madame Bovary ne peut être que passable et ne sera jamais beau à cause du fond même Juntase ainda a isto o fato de êle como tantos importantes artistas do século XIX odiar o seu tempo vê com grande agudeza os seus pro blemas e as crises que estão em preparação vê a anarquia inter na o manque de base théologique o comêço da massificação o historicismo corrompido e eclético o domínio do chavão não vê contudo qualquer solução qualquer escapatória o seu faná tico misticismo artístico é quase como uma religião sucedânea à qual se aferra convulsivamente e a sua honestidade tornase muito freqüentemente resmungona mesquinha colérica e ner vosa Com isto sofre por vêzes o amor imparcial pelos objetos comparável ao amor do criador Todavia a passagem que ana lisamos está intata por essas lacunas e debilidades do seu ser permitenos observar limpamente o efeito da sua intenção ar tística A cena mostra marido e mulhec à mesa a mais quotidiana das situações que possam ser imaginadas anteriormente só se riam concebíveis literariamente como parte de uma farsa de um idílio de uma sátira Aqui é um retrato do malestar a sa ber não de um malestar momentâneo e passageiro mas de um malestar crônico que domina inteiramente tôda uma existência a de Emma Bovary Embora mais arde apareçam tôda classe de acontecimentos inclusive histórins amorosiis ninguém pode NA MANSÃO DE LA MOLE 427 rá ver nesta cena à mesa só uma parte da exposição de uma his tória de amor nem quererá designar Madame Bovary como um romance de amor O romance é a representação de tôda uma existência humana sem escapatória e o nosso trecho é uma par te disso que contém contudo o todo em seu bôjo Nesta cena não acontece nada de extraordinário e nada de extraordinário aconteceu no passado imediato É um instante qualquer da hora regularmente recorrente em que marido e mulher comem jun tos Os dois não brigam não se apresenta nenhum conflito tan gível Emma está totalmente desesperada mas o seu desespêro não é causado por qualquer catástrofe determinada não há nada lc totalmente concreto que tenha perdido ou desejado Embora tenha muitps desejos êstes são totalmente vagos elegância ámor uma vida cheia de variações Um tal desespêro carente de con creção pode ter existido sempre mas antes nunca se pensou em leválo a sério em obras literárias Uma tal tragicidade carente dc forma se fôr possível chamála de tragicidade que é desen cadeada pela própria situação como um todo só se tornou apreen aível literàriamente através do romantismo Flaubert deve ter ido o primeiro a representála junto a sêres humanos de baixa formação espiritual e de baixo nível social E certamente é o primeiro a apreender imediatamente o caráter circunstancial des ta situação anímica Nada acontece mas êste nada tornouse um algo pesado surdo e ameaçador Já vimos como Flaubert consegue isto ordena na linguagem as confusas impressões do malestar que surgem em Emma pela observação do recinto da comida e do marido até conferirlhes uma densa univocidade lim cral também narra só raramente acontecimentos que impe lem h ação ràpidamente mediante uma série de meros quadros que fazem do nada do diaadia indiferente uma duradoura pre cnça do desgosto do enfado de falsas esperanças de decepções imraliftuntcs e de lastimáveis temores um destino humano cin zento qualquer arrastase lentamente para o seu fim lambém a interpretação da situação está contida em si menina Os dois estão sentados juntos à mesa o homem nada niiiHitu do estado interno da mulher têm tão pouco em comum que nem chega a haver uma disputa uma discussão um conflito nlieiio Cada um dêlcs está de tal modo encasulado no seu pró mundo ela no desespêro e nos vagos sonhos desejosos êle nu m u i tAla satisfação provinciana que os dois estão totalmente tnilillírioi Nada têm em comum mas nada também de próprio im cuja causa valesse a pena ficar sozinho Pois cada um tem puni i um mundo falso e néscio que não é possível coadunar mm a realidade da sua situação de tal modo que cada um dêles iltHnliça as possibilidades da vida que se lhes oferecem O iiie iioinlcec com êstes dois vale para quase tôdas as personagens lo lomimcc Cada um dos muitos sêres humanos medíocres itie nôlc o movimentam tem o seu próprio mundo de estupidez n6ilii r medíocre um mundo de ilusões hábitos impulsos e i liuvfton aula um catá nà nenhum pode compreender o outro 428 MIMESIS nenhum pode ajudar o outro a atingir a compreensão Não existe um mundo comum dos sêres humanos porque êste so mente poderia surgir quando muitos dêles encontrassem o cami nho para a realidade autêntica e própria conferida a cada um dêles realidade esta que seria também então a autêntica realidade comum Certamente os homens se encontram para os seus afazeres e divertimentos mas êste encontro não dá ne nhum sinal de comunidade tornase esquerdo ridículo penoso e está carregado de incompreensão vaidade mentira e ódio estúpido O que seria realmente o mundo o mundo dos sábios isto Flaubert nunca nos diz No seu livro o mundo é feito de mera estupidez que não atina para a verdadeira realidade de tal forma que esta nem poderia ser encontrável Todavia ela existe Existe na linguagem do escritor que desmascara a estu pidez pelo seu mero relato A linguagem tem pois uma escaia para a estupidez e com isto tem também parte daquela realida de dos sábios que não aparece em nenhuma outra forma nes te livro Também Emma Bovary a figura principal do romance está totalmente enfiada na falsa realidade na bêtise humaine assim como o herói do outro romance realista de Flaubert Frédéric Moreau da Education sentimentale Como encaixa a modalidade da representação flaubertiana de tais personagens nas categorias tradicionais do trágico e do cômico Sem dúvida a existência de Emma é apreendida em tôda a sua pro fundidade sem dúvida as categorias intermediárias que antes existiram como por exemplo comovente ou satírico ou talvez didático não são aplicáveis e muito amiúde o leitor é arrebatado pelo seu destino de uma forma que se parece muito com a compaixão trágica Mas ela não é um autêntico herói trá gico A maneira como a linguagem desnuda o tolo o imaturo e o desordenado da sua vida até o miserável defcta vida no qual fica prêsa toute lamertume de F existence lui semblait servie sur son assiette exclui a idéia da autêntica tragicidade e o autor e o leitor nunca podem se sentir de tal forma unos com ela como deve ser o caso com o herói trágico Ele é sem pre posta à prova julgada e juntamente com todo o mundo em que está prêsa condenada Mas também não é cômica não o é com tôda certeza para tanto é compreendida muito profun damente demais a partir do envolvimento do seu destino em bora Flaubert não leve a cabo qualquer espécie de psicologia da compreensão mas deixe falar simplesmente os fatos En controu uma posição diante da realidade da vida contemporânea que difere totalmente das posições e dos níveis estilísticos ante riores mesmo dos de Stendhal e de Balzac aliás precisamente dos destes dois Poderiam ser chamados muito simplesmente dc seriedade objetiva Isto parece estranho como denominação estilística para uma obra de arte literária Seriedade objetiva que procura penetrar até as profundezas dus paixões c enredos dc uma vida humana sem contudo entrar cia própriu num cs NA MANSÃO DE LA MOLE 429 tado de excitação ou pelo menos sem delatar essa excitação esta é uma posição que se pode esperar mais de um clérigo de um educador ou de um psicólogo do que de um artista Mas êstes querem agir de forma imediatamente prática o que está longe das intenções de Flaubert Através da sua atitude pas de cris pas de convulsion rien que la fixité dun regard pensif quer obrigar a linguagem a produzir a verdade acêrca dos objetos da sua observação le style étant à lui tout seul une nwnière absolue de voir les choses Corr II 346 Em todo caso atingese também através disto no fim das contas uma intenção pedagógica e de crítica do seu tempo não se deve ter receio de exprimir isto assim por mais que Flaubert faça ques tão de ser artista e nada mais que artista Quanto mais a gente sc ocupa com Flaubert tanto mais se evidencia a profundidade du sua visão da problemática e da socavação da cultura bur guesa do século XIX contida nas suas obras realistas e muitas pussagens importantes da sua correspondência confirmam êste fulo A demonização dos processos sociais que se encontra em Hulzac falta evidentemente em Flaubert de forma total e ab soluta A vida não mais embate e escuma mas flui viscosa e pesadamente Para Flaubert o peculiar dos acontecimentos quotidianos e contemporâneos não parecia estar nas ações e nus paixões muito movimentadas não em sêres ou fôrças de moníacas mas no que se faz presente durante longo tempo aquilo cujo movimento superficial não é senão burburinho vão entrementes por baixo ocorre um outro movimento quase im perceptível mas universal e ininterrupto de tal forma que o Mibsolo político econômico e social parece ser relativamente cutAvcl mas ao mesmo tempo parece também estar insuportá vel mente carregado de tensão Todos os acontecimentos pare cem modificálo muito pouco mas na concreção da duração li qual Flaubert sabe sugerir tanto no acontecimento isolado como no nosso exemplo quanto no conjunto do panorama da ópoeu mostrase algo como uma ameaça oculta é um tempo ipio com a sua estúpida falta de escapatórias parece carregado como com um explosivo Através do nível estilístico de uma seriedade fundamental i objetiva a partir da qual as coisas falam de per si e se orde nam dc per si diante do leitor sem importunálo segundo 0 eu valor como sendo trágicas ou cômicas e até mesmo na maioria dos casos como sendo as duas coisas simultâneamente rlmihcrt superou o ímpeto romântico e a romântica insegurança no tratamento dos objetos contemporâneos já se vê claramente ulgo ilo positivismo mais antigo no seu critério artístico embora oriiaioniilmcntc pronuncie acêrca de Comte um juízo muito ilmlnvorávcl Sôbrc a base desta objetividade tornaramse pos nlvciii desenvolvimentos posteriores dos quais trataremos em ca pitulo subseqüentes Aliás poucos dos que o seguiram avo 1 ui mu i a tiircfa du representação da realidade contemporâ 430 MIMESIS nea com a mesma clareza e responsabilidade sem dúvida po rém houve entre êles espíritos mais livres espontâneos e ricos do que o seu O tratamento sério da realidade quotidiana a ascensão de camadas humanas mais largas e socialmente inferiores à posição de objetos de representação problemáticoexistencial por um la do e pelo outro o engarçamento de personagens e aconteci mentos quotidianos quaisquer no decurso geral da história con temporânea do pano de fundo historicamente agitado êstes são segundo nos parece os fundamentos do realismo moderno e é natural que a forma ampla e elástica do romance em prosa se impusesse cada vez mais para uma reprodução que abarcava tantos elementos Se observamos corretamente a França teve durante todo o século XIX a mais importante participação no surgimento e no desenvolvimento do moderno realismo A si tuação d Alemanha foi por nós ventilada no fim do último capítulo Na Inglaterra embora a evolução fôsse fundamental mente a mesma da França ela se desenvolveu mais calma e gradualmente sem a quebra brusca entre 1780 e 1830 já se inicia muito antes e preserva durante muito mais tempo até bem entrados os tempos vitorianos formas e modos de ver tra dicionais Já na arte de Fielding Tom Jones apareceu em 1749 há muito mais enérgico realismo contemporâneo da vida como um todo do que nos romances franceses do mesmo perío do também a agitação do panodefundo histórico contempo râneo não falta inteiramente Mas o conjunto é concebido de forma mais moralista e mantémse afastado da seriedade pro blemática e existencial Por outro lado ainda em Dickens cu jas obras foram publicadas a partir dos anos trinta do século XIX não obstante o forte sentimento social e a sugestiva densi dade do seu meio quase nada se faz sentir da agitação do panodefundo políticohistórico Entrementes Thackeray que embute os acontecimentos de Vanity Fair 18478 muito con cretamente na história do seu tempo os anos anteriores e pos teriores a Waterloo conserva em conjunto a espécie de visão moralista meio satírica e meio sentimental que foi transmitida sem muitas mudanças já a partir do século XVIII Infelizmente devemos renunciar a falar ainda que seja com indicações as mais vagas do surgimento do moderno realismo russo As almas mortas de Gogol apareceu em 1842 a narração O capote já em 1835 isto é impossível para o nosso fim quando não po demos ler as obras na sua própria língua Deveremos conten tarnos com falar da influência que exerceu mais tarde 1 Introdução ao Contexto do Livro 11 Mímesis de Erich Auerbach Erich Auerbach em sua obra monumental Mímesis A Representação da Realidade na Literatura Ocidental oferece uma análise profunda e abrangente de como a realidade é representada na literatura ocidental ao longo dos séculos Publicado pela primeira vez em 1946 Mímesis examina as técnicas e os métodos usados por escritores de diversas épocas para retratar a realidade em suas obras literárias Auerbach investiga como diferentes autores lidam com a representação da realidade explorando temas como a interação entre personagens o tratamento da subjetividade e a influência do contexto histórico na narrativa Sua abordagem é notável pela análise detalhada de passagens literárias selecionadas que ele interpreta dentro de seus contextos culturais e históricos específicos O conceito de mímesis ou imitação da realidade é central ao seu estudo e Auerbach demonstra como essa representação evoluiu e se diversificou ao longo da história da literatura ocidental Ele considera não apenas o conteúdo das obras mas também as técnicas narrativas utilizadas pelos autores para representar a realidade o que confere à sua análise uma profundidade única 12 Estrutura Geral do Livro Mímesis é organizado em vinte capítulos cada um dedicado a uma análise detalhada de um excerto literário específico que exemplifica diferentes maneiras de representar a realidade A obra começa com uma análise da Odisseia de Homero contrastando o estilo detalhado e direto do poema épico com a técnica narrativa mais indireta e sugestiva da Bíblia Hebraica Essa comparação inicial estabelece o tom para as análises subsequentes que seguem uma ordem cronológica Os capítulos que seguem abrangem uma vasta gama de períodos e estilos literários desde a Antiguidade Clássica até o Modernismo do século XX Auerbach analisa autores clássicos como Dante Cervantes e Montaigne passando por Shakespeare Molière e Goethe até chegar aos modernistas como Marcel Proust e Virginia Woolf Cada capítulo é uma unidade autônoma que permite uma análise aprofundada da obra em seu próprio contexto mas juntos eles compõem um panorama abrangente da evolução da técnica narrativa e da representação da realidade na literatura ocidental 13 Introdução ao Capítulo Na Mansão de La Mole O capítulo intitulado Na Mansão de La Mole examina o romance Le Rouge et le Noir O Vermelho e o Negro escrito por Stendhal e publicado em 1830 Auerbach utiliza este capítulo para explorar como Stendhal representa a complexidade social e política da França do século XIX através da psicologia dos personagens e da trama narrativa Em Le Rouge et le Noir Stendhal narra a trajetória de Julien Sorel um jovem ambicioso que busca ascender socialmente utilizando seu talento e astúcia O romance é reconhecido como uma das primeiras grandes obras do realismo literário e Auerbach destaca como Stendhal utiliza a história de Julien para criticar e expor as tensões e hipocrisias da sociedade francesa durante a Restauração O período pósnapoleônico é marcado por tentativas de restabelecer a ordem aristocrática em meio a uma burguesia emergente criando um cenário de conflito e mudança social que é ricamente explorado na narrativa de Stendhal No capítulo Na Mansão de La Mole Auerbach foca na dinâmica entre Julien e os membros da família La Mole Esta análise revela como Stendhal usa os personagens e suas interações para ilustrar as complexas relações de poder e status social A mansão do Marquês de La Mole serve como um microcosmo da sociedade francesa onde as ambições pessoais de Julien entram em confronto com as rígidas estruturas sociais e expectativas da aristocracia A análise de Auerbach neste capítulo permite uma discussão profunda sobre como Stendhal utiliza a narrativa realista para abordar questões de mobilidade social identidade pessoal e conflito de classes O detalhamento psicológico e social presente no texto de Stendhal exemplifica como a literatura pode oferecer uma representação crítica e multifacetada da realidade contemporânea alinhandose aos temas centrais de Mímesis 2 Desmontagem e Análise do Capítulo 21 Contexto Histórico e Social O capítulo Na Mansão de La Mole analisado por Auerbach em Mímesis está situado na França pósnapoleônica um período turbulento conhecido como a Restauração Após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815 a monarquia Bourbon foi restaurada ao poder tentando reverter as mudanças sociais e políticas ocorridas durante a Revolução Francesa e o Império Napoleônico Este período é marcado por esforços da nobreza para restabelecer sua supremacia enquanto enfrentava o desafio da emergente burguesia que estava ganhando influência econômica e política A sociedade da época se caracterizava por uma rígida estratificação social onde a aristocracia tentava manter seu prestígio e controle mesmo diante da ascensão de novas forças sociais representadas pela burguesia A tensão entre estas classes cria um pano de fundo de conflito e transformação refletindo as mudanças profundas na estrutura social da França No romance de Stendhal essa tensão é claramente observada através da interação entre os personagens principais e o ambiente em que se encontram Julien Sorel o protagonista é um filho de carpinteiro que por meio de sua ambição e astúcia busca ascender socialmente espelhando a luta da burguesia para se afirmar em uma sociedade dominada pela nobreza Sua trajetória no romance simboliza a possibilidade de mobilidade social ainda que repleta de obstáculos e desafios A nobreza por outro lado é representada pelo marquês de La Mole e sua família que tentam preservar sua posição e valores em um mundo em mudança 22 Caracterização dos Personagens Principais Julien Sorel o protagonista de Le Rouge et le Noir é um jovem de origem humilde que ambiciona escalar a hierarquia social Filho de um carpinteiro Julien é inteligente e determinado qualidades que o ajudam a se destacar em uma sociedade que valoriza a linhagem e o status Sua posição como secretário do marquês de La Mole em Paris reflete sua tentativa de superar sua origem e se integrar à alta sociedade usando sua educação e habilidades para se afirmar A trajetória de Julien simboliza a possibilidade de ascensão social mas também os dilemas morais e pessoais que essa busca acarreta Ele enfrenta a constante pressão de se adequar às expectativas da nobreza enquanto luta para manter sua identidade e objetivos pessoais Matilde de La Mole filha do marquês representa a juventude aristocrática do período desiludida com os valores tradicionais e em busca de novos sentidos de vida e identidade Ela é espirituosa independente e rebelde sentindose entediada e sufocada pelas convenções da alta sociedade A atração de Matilde por Julien é uma combinação de fascínio e rebelião contra o status quo ela se sente atraída por sua independência e ambição características que contrastam com a apatia e conformismo ao seu redor A relação de Matilde com Julien é central para a trama pois revela as complexas interações de poder desejo e status social Marquês de La Mole o patriarca da família personifica a velha aristocracia apegada às tradições e ao status Ele é uma figura respeitável e autoritária simbolizando a estabilidade e a rigidez das estruturas sociais tradicionais O marquês representa a classe que luta para manter sua relevância e controle em um mundo que está mudando rapidamente Sua interação com Julien e outros personagens reflete a tensão entre a preservação das tradições aristocráticas e a inevitável modernização da sociedade 23 Principais Cenas e Suas Funções Uma das cenas mais reveladoras do capítulo é a Cena da Biblioteca Nesta passagem Julien questiona seu papel na casa do marquês de La Mole demonstrando sua tensão interna entre sua posição subordinada e suas ambições de ascensão social Ele se sente constrangido pelas formalidades e pelas expectativas impostas sobre ele devido ao seu papel o que leva Matilde a vêlo sob uma nova luz Ela começa a perceber Julien não apenas como um servo mas como alguém com vontade própria e independência de pensamento o que a fascina e a aproxima dele Essa cena estabelece a dinâmica de poder entre Julien e a família La Mole e revela o conflito entre suas aspirações pessoais e as limitações impostas pela sociedade Outra cena significativa é o Jantar com a Família Este evento ilustra a opressão social sentida por Julien ao ser forçado a se conformar às normas e expectativas da alta sociedade destacando a desconexão entre sua origem humilde e o ambiente aristocrático em que se encontra A formalidade e a superficialidade das interações durante o jantar enfatizam a alienação de Julien e sua luta para encontrar um lugar nesse mundo Essa cena reflete a tensão entre os valores e a etiqueta da nobreza e o desejo de Julien de se afirmar e ser reconhecido por suas próprias qualidades As Reflexões de Matilde também desempenham um papel crucial Ela sente uma crescente atração por Julien que se destaca por sua independência e rejeição das convenções aristocráticas Matilde desiludida com os valores de sua própria classe encontra em Julien uma forma de rebeldia e autenticidade que ela mesma anseia Suas reflexões revelam o fascínio por Julien como um símbolo de liberdade e desafio às normas estabelecidas aprofundando a complexidade de sua relação e os conflitos internos de Matilde 24 Estrutura Narrativa e Estilo Auerbach destaca que a narrativa de Stendhal em Le Rouge et le Noir é uma crítica incisiva à sociedade de seu tempo utilizando o personagem Julien para expor as hipocrisias e tensões sociais Stendhal emprega um estilo realista que se foca nos detalhes psicológicos e sociais oferecendo uma análise profunda das motivações e interações dos personagens Através de descrições meticulosas e diálogos realistas Stendhal revela a complexidade da vida interior de Julien e dos outros personagens bem como as influências do contexto social e histórico em suas ações e decisões O estilo realista de Stendhal permite que os leitores compreendam as nuances das relações sociais e as contradições internas dos personagens Ele retrata a realidade com uma precisão que enfatiza a verossimilhança das experiências humanas e as pressões sociais tornando a narrativa uma ferramenta poderosa para a crítica social A atenção aos detalhes e a exploração das emoções e conflitos internos dos personagens ajudam a construir uma representação rica e multifacetada da sociedade francesa do século XIX 3 Relação do Capítulo com o Todo 31 Integração Temática com a Obra O capítulo Na Mansão de La Mole de Mímesis exemplifica de maneira clara como Erich Auerbach utiliza textos literários para analisar a evolução da representação da realidade na literatura ocidental Auerbach examina a forma como Stendhal retrata a sociedade francesa do século XIX destacando como a literatura reflete e se engaja com as complexidades sociais e políticas da época O enfoque na narrativa de Stendhal em Le Rouge et le Noir revela como os escritores desse período começaram a abordar a realidade de maneira mais direta e detalhada contribuindo para o desenvolvimento do realismo literário No capítulo Auerbach demonstra como Stendhal utiliza seus personagens e a trama para ilustrar as tensões entre classes sociais e as mudanças na estrutura social francesa A narrativa de Stendhal é rica em detalhes que capturam a luta entre a antiga nobreza e a emergente burguesia bem como a mobilidade social e os conflitos internos dos indivíduos que tentam navegar por essas transformações Auerbach usa o exemplo de Stendhal para mostrar como a literatura do século XIX começa a se distanciar das representações idealizadas e heróicas do passado focando em uma representação mais fiel e crítica da vida cotidiana e das dinâmicas sociais 32 Reflexão sobre os Temas Abordados em Mímesis Os temas abordados no capítulo Na Mansão de La Mole ressoam profundamente com os principais tópicos discutidos ao longo de Mímesis Auerbach aborda questões como a mobilidade social a luta de classes e a crise da identidade aristocrática em face das mudanças sociais A análise do capítulo revela como Stendhal retrata as pressões sociais e as tensões individuais através de seus personagens especialmente Julien Sorel que simboliza a ambição e o conflito interno em um período de grandes transformações sociais Auerbach demonstra como a literatura pode capturar as complexidades das relações sociais e as mudanças de poder oferecendo uma visão crítica e perspicaz das condições humanas em diferentes épocas No caso de Le Rouge et le Noir a tensão entre Julien e a família La Mole reflete as dificuldades enfrentadas por aqueles que buscam ascender socialmente em um sistema rigidamente estruturado Matilde de La Mole por sua vez personifica a desilusão e a busca de identidade entre os jovens aristocratas destacando o impacto das mudanças sociais na percepção de si mesmos e de seus papéis na sociedade Essa reflexão sobre os temas abordados em Mímesis mostra como Auerbach usa o capítulo para exemplificar a maneira como a literatura do século XIX começa a se envolver mais profundamente com as questões sociais e políticas de sua época oferecendo uma crítica incisiva das estruturas de poder e das experiências humanas em um contexto de rápida mudança 33 Contribuição do Capítulo para o Argumento Geral da Obra A análise do capítulo Na Mansão de La Mole contribui significativamente para o argumento geral de Mímesis ilustrando como a representação literária da realidade se torna mais complexa e psicológica com o advento do realismo Auerbach usa a narrativa de Stendhal para demonstrar como os escritores realistas capturam a intricada rede de relações sociais e as profundas motivações psicológicas de seus personagens Isso marca uma evolução da representação literária que se afasta da idealização e se aproxima de uma análise crítica e detalhada das condições humanas O enfoque em Julien Sorel por exemplo permite a Auerbach explorar temas mais amplos de mudança social e identidade Julien é uma figura através da qual Stendhal examina a tensão entre as aspirações pessoais e as limitações impostas pela sociedade Sua trajetória de ascensão social e os conflitos que enfrenta ao tentar integrarse na alta sociedade refletem as complexidades e desafios da mobilidade social um tema central no realismo literário Além disso a interação de Julien com os membros da família La Mole especialmente com Matilde serve como uma lente para examinar as crises de identidade e os dilemas morais enfrentados pela aristocracia em um mundo em transformação A análise de Auerbach mostra como Stendhal utiliza a trama e os personagens para expor as contradições e as tensões internas da sociedade francesa do século XIX oferecendo uma representação rica e multifacetada da realidade Essa contribuição do capítulo reforça a argumentação de Auerbach de que a literatura realista proporciona uma ferramenta poderosa para a crítica social ao capturar com precisão e profundidade as experiências humanas e as estruturas sociais de seu tempo Ao explorar esses temas através de Le Rouge et le Noir Auerbach exemplifica como o realismo literário se torna um meio de entender e questionar as dinâmicas sociais e políticas ampliando a capacidade da literatura de refletir e influenciar a percepção da realidade 4 Discussão e Conclusão 41 Reflexões Finais sobre o Capítulo O capítulo Na Mansão de La Mole é um estudo minucioso de como Stendhal em Le Rouge et le Noir usa a narrativa para refletir e criticar as complexas dinâmicas sociais e psicológicas da França pósnapoleônica A relação entre Julien Sorel e Matilde de La Mole é central para essa análise revelando não apenas as tensões entre diferentes classes sociais mas também os desafios pessoais enfrentados pelos indivíduos ao navegarem por um sistema social rígido e em transição Julien Sorel como filho de um carpinteiro que se esforça para ascender socialmente é emblemático das possibilidades e dos limites da mobilidade social durante a Restauração Sua ambição de se elevar além de sua origem humilde e ser aceito na alta sociedade o coloca em um constante estado de conflito interno e externo Ele deve equilibrar suas aspirações pessoais com as expectativas e normas da aristocracia o que muitas vezes resulta em sentimentos de inadequação e alienação A posição de Julien como secretário do marquês de La Mole permitelhe observar e interagir com a nobreza mas também o coloca em situações que expõem as desigualdades e as injustiças do sistema social A dinâmica entre Julien e Matilde de La Mole acrescenta outra camada de complexidade à narrativa Matilde uma jovem aristocrata se vê entediada e desiludida com os valores e as restrições de sua classe Sua atração por Julien é tanto uma expressão de fascínio por sua autenticidade e independência quanto uma forma de rebelião contra as convenções que a sufocam Essa relação ambígua revela as contradições e os dilemas enfrentados pela juventude aristocrática que embora privilegiada busca um sentido de propósito e identidade em um mundo em mudança Stendhal utiliza a relação entre Julien e Matilde para ilustrar as tensões entre o desejo de ascensão social e os desafios de conformidade com as normas aristocráticas Julien apesar de sua habilidade e inteligência enfrenta constantemente os preconceitos e as expectativas da nobreza que o vê como um intruso Matilde por outro lado luta contra o tédio e a falta de autenticidade em sua própria classe vendo em Julien uma possibilidade de escape e um meio de confrontar as limitações de sua posição social Erich Auerbach em sua análise destaca como Stendhal captura essas nuances através de um estilo realista que se concentra nos detalhes da psicologia e das interações sociais dos personagens Auerbach argumenta que essa abordagem representa uma mudança significativa na representação literária da realidade que se torna mais complexa e psicológica no século XIX O estilo de Stendhal com sua atenção aos detalhes e seu foco nas motivações e conflitos internos dos personagens permite uma crítica incisiva das estruturas sociais e dos valores da época Através de Le Rouge et le Noir Stendhal não apenas narra a história de um jovem ambicioso mas também oferece uma visão crítica das tensões e contradições da sociedade francesa pósnapoleônica Auerbach mostra como a literatura pode servir como um espelho para refletir e questionar as dinâmicas sociais fornecendo uma representação mais verdadeira e multifacetada da realidade A relação entre Julien e Matilde com todas as suas complexidades e ambiguidades é um exemplo poderoso de como a literatura pode explorar os desafios pessoais e sociais de maneira profunda e significativa Em suma o capítulo Na Mansão de La Mole exemplifica como Auerbach usa a narrativa de Stendhal para discutir a evolução do realismo literário e sua capacidade de capturar a complexidade da vida social e psicológica Julien Sorel e Matilde de La Mole personificam as lutas e os conflitos de um período em transformação oferecendo uma crítica perspicaz das estruturas de poder e das experiências humanas em um contexto de mudanças sociais profundas 42 Perguntas para Discussão 1 Como Julien Sorel representa as mudanças sociais da França pósnapoleônica Julien Sorel é um retrato das forças de mobilidade social emergentes na França após a era napoleônica Ele personifica a luta de indivíduos talentosos e ambiciosos para superar suas origens humildes e se integrar em uma sociedade dominada por uma aristocracia resistente à mudança Julien enfrenta os preconceitos e as barreiras impostas pela nobreza mas sua ascensão embora cheia de obstáculos reflete o impacto da burguesia em ascensão que começa a desafiar as hierarquias tradicionais 2 Quais são as principais críticas sociais que Stendhal faz através dos personagens do marquês de La Mole e de Matilde Stendhal utiliza os personagens do marquês de La Mole e de Matilde para criticar as hipocrisias e a rigidez da aristocracia francesa O marquês de La Mole simboliza a velha nobreza que está desconectada das realidades emergentes e se apega a valores obsoletos Sua rigidez e conservadorismo ilustram a resistência da classe aristocrática às mudanças sociais e políticas Matilde por outro lado representa a juventude aristocrática que se sente sufocada pelos valores tradicionais e busca um sentido de autenticidade e propósito Sua atração por Julien e seu desejo de escapar das convenções sociais refletem uma crítica ao conformismo e à superficialidade da alta sociedade 3 De que maneira o estilo narrativo de Stendhal contribui para o desenvolvimento do realismo literário O estilo narrativo de Stendhal caracterizado por uma abordagem detalhada e psicológica contribui significativamente para o desenvolvimento do realismo literário Ele se concentra em personagens complexos e multifacetados cujas ações e pensamentos são moldados por suas circunstâncias sociais e internas Stendhal usa descrições precisas e diálogos realistas para capturar as motivações e os conflitos internos dos personagens o que proporciona uma visão rica e verdadeira da realidade Sua ênfase na verossimilhança e na representação fiel das experiências humanas marca uma evolução do realismo literário que se afasta das idealizações e se aproxima de uma análise crítica e detalhada da vida cotidiana 5 Discussão e Conclusão AUERBACH Erich Mímesis A Representação da Realidade na Literatura Ocidental 5 ed São Paulo Perspectiva 2013 STENDHAL Le Rouge et le Noir 2 ed Paris Gallimard 1985