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FOUCAULT M A arqueologia do saberMichel Foucault tradução de Luiz Felipe Baeta Neves 7ed Rio de Janeiro Forense Universitária 2008 P 992019 Para entender o texto final de Arqueologia do saber algumas explicações Para entender Arqueologia do saber seria interessante que pudéssemos ler outros três livros que foram produzidos anteriormente Como não temos este tempo nem se quer de ler o livro todo separei algumas ideias que servirão de base para a leitura O primeiro livro é História da Loucura 1961 Foucault descobre em suas investigações que o objeto loucura se constituiu na relação de vários discursos advindos da igreja da medicina da economia da tradição e não necessariamente das descobertas científicas Nesta obra o autor também demostra que o objeto loucura nasceu de rupturas de necessidades históricas que atravessaram a própria ciência e a história O segundo livro Nascimento da Clínica 1963 Foucault percebe não é a evolução da ciência no conhecimento do corpo que promove o nascimento da medicina mas os discursos advindos de várias fontes que trataram de definir o que é doença Discursos esses que estão perpassados por relações de poder Por exemplo homossexualidade era vista como doença até 17111990 quando a OMS a retirou do catálago de doenças O terceiro livro é As palavras e as coisas 1966 investiga como as ciências humanas produzem seus saberes A partir de Kant o homem se vê como objeto de si mesmo O homem passa a se representar a si mesmo em sua mente Esta representação se dá com palavras mas referemse à sua vida corpórea à sua existência em determinadas condições à sociedade onde realiza seu trabalho a produção e distribuição dos frutos desse trabalho Em cada um desses contextos as palavras adquirem significados diferentes e produzem representações diferentes Ex para o judaísmo mulher significa propriedade e assim é tratada Na legislação ocidental atual é cidadã de direitos iguais que deve ser respeitada em suas singularidades como o fato de ser mãe etc Arqueologia do saber Foucault busca um método de investigação para entender a organização interna dos discursos que produzem os sujeitos os objetos e os saberes que são produzidos em relações de poder e ao mesmo tempo produzem e reproduzem poderes O interesse de Foucault está nos discursos e suas variações já que para o autor não existem verdades existem discursos que em determinados momentos assumem o estatuto de verdade Foucault quer entender como aquilo que as pessoas dizem ou disseram são elevados ao estatuto de verdade e tomados como conhecimento Nesse livro Foucault entende que os sujeitos e os objetos problemas que estudamos são construídos pela linguagem Ex o corpo só passou a ser objeto de estudo quando alguém na passagem da idade média para a moderna decretou sua separação da mente e também a partir da ideia de que saúde e doença possuem íntima relação Desse discurso surge a figura daquele que cuida do corpo são o professor e do corpo doente o médico O médico e o professor passam a elaborar práticas e dizer coisas sobre o corpo que assumem o status de verdade A ciência colabora mas não é a única condição para a validade desses discursos Os elementos a serem investigados são Enunciados frases ou proposições ideiasteorias ligadas em um campo de saber que são objetivas reconhecidas por um coletivo ditas e reproduzidas como verdades a serem confirmadas ou refutadas Discursos conjunto de enunciados apoiados em uma mesma formação discursiva campo de saber ou conhecimento Toda formação discursiva está ligada a uma instituição que o legitima Os discursos se constroem nas práticas sociais no viver no se relacionar e são influenciados pelas relações de poder Práticas discursivas conjunto de regras que definem o que pode ser dito de que forma por quem é a relação entre o discurso e a materialidade que o sustenta Saberes são o conjunto de discursos enunciados práticas discursivas relacionadas a um objeto que são em até certo ponto independentes das ciências apesar de se utilizarem dela positividade tudo que existe capaz de produzir verdades PROVA DISCIPLINA Filosofia e Educação Epistemologia Profa Dra Zuleika Aparecida Claro Piassa Este instrumento de avaliação é composto de 12 questões que abordam os objetivos e conteúdos abordados durante a Disciplina Filosofia e Educação Epistemologia e possui valor 70 Para sua realização você pode utilizar seus registros escritos bem como os 3 textos bases que estudamos Responda as questões utilizando de sua redação pessoal e ou trechos do próprio autor para confirmar as suas afirmações e quando utilizálos não esqueça de colocar entre aspas e o número da página 1 Conceitue Epistemologia e relacione a importância de seu estudo para os pedagogos em formação e atuação 6 pontos 2 Leia o texto a seguir A Escola Municipal Aprende Quem Quiser está situada em uma cidade interiorana de um Estado brasileiro mediamente desenvolvido É reconhecida por ser uma escola de tradições Lá estudaram gerações das famílias que compõem a população da cidade que hoje que cresceu e tem mais de meio milhão de habitantes A cidade data do início do século XX e a história está presente em suas paredes de madeira nas ruas estreitas na parte central que aliás deixa o trânsito bem caótico durante a semana A cidade intercala poucos prédios históricos e muitos prédios modernos e sua geografia retrata uma cidade que cresceu naturalmente sem um projeto prévio assim não é estranho encontrar áreas com obras arquitetônicas monumentais com vários andares em ruas estreitas e sem estacionamento A escola está situada em um bairro de classe média possui cerca de 1000 alunos mas foi construída no final da década de 1960 inicialmente para abrigar 300 por isso passou por várias reformas Oferta Educação Infantil e anos Iniciais do Ensino Fundamental Os professores possuem graduação e pósgraduação em nível de Especialização em sua maioria O currículo está organizado por disciplinas e cada turma tem 3 professores para os componentes curriculares sendo um para Português e Matemática e Ciências outro para História Geografia Religião e Artes e outro para Educação Física Em termos metodológicos no projeto político pedagógico afirma que a escola adota metodologia dialéticas ativas com a mediação do professor focada na apropriação dos conteúdos científicos e no desenvolvimento de competências e habilidades No entanto observando as salas de aulas vêse que os alunos estão na maior parte do tempo enfileirados copiando conteúdos do quadro às vezes lendo resolvendo uma apostila de algoritmos continhas antiga contendo centenas de exercícios logicamente agrupados que vão desde os mais básicos até os mais complexos Alguns professores ousam um pouco mais iniciando as aulas com questionamentos levando os estudantes a pensar refletir depois registrar seus pensamentos e por fim chegar a conclusões gerais Mas poderia se dizer que é o máximo a que chegam em termos de atividade no sentido da ação Duas vezes por semana tem Educação Física que os alunos amam e por causa disso se manifestarem indisciplina durante as aulas são ameaçados de ficarem na sala de aula de castigo no horário dessa aula A disciplina e a obediência tem um alto valor ético para o corpo docente e para os pais dos alunos dessa escola Os alunos são muito exigidos quanto ao desenvolvimento intelectual por isso tem grandes quantidades de tarefas para fazer com inúmeros exercícios apostilados o que acreditam os pais ajuda muito no aprendizado das crianças Os professores defendem que seu papel é despertar o interesse dos alunos em aprender Aqueles que não aprendem é porque possuem algum distúrbio ou dificuldade de aprendizagem e nesses casos aconselham os pais a levar em algum especialista A maioria se encontra alfabetizada ao final da primeira série A escola adota um método sintético de alfabetização denominado fônico que se baseia na identificação e no ensino do princípio alfabético ou seja na relação entre grafemas letras e fonemas sons Nele o aprendizado iniciase com as vogais seguido pelas consoantes com foco em como as letras representam sons específicos ajudando os alunos a decifrar palavras a partir desses sons A escola se orgulha de ter excelentes notas no IDEB A partir desse texto responda 3 A escola é uma escola tradicional Ela se apoia em uma concepção de aprendizagem inatista ou empirista Comprove com fatos ou trechos do texto 4 pontos 4 Busque no texto fatos que demonstram os itens solicitados a seguir e justifique sua resposta 16 pontos 4 cada a A estética cartesiana b O dualismo cartesiano c O método cartesiano aplicado no contexto da educação d A moral cartesiana 5 Cite duas consequências atuais do pensamento cartesiano que representam um problema para as atuais gerações resolverem 6 pontos 6 No PPP está escrito que a metodologia é dialética O que significa isso em termos pedagógicos4 pontos 7 A obra A Arqueologia do Saber de Michel Foucault apresenta um inovador método de investigação nas ciências humanas denominado pelo autor de arqueologia ou método arqueológico Nesse livro Foucault explica o sentido da palavra arqueologia na busca de afastar o seu significado da ideia de algo do passado petrificado ou de outro tempo Ele enfatiza que o papel do método arqueológico é analisar o arquivo ou seja analisar o domínio das coisas ditas Explique o sentido desta expressão para Foucault 4 pontos 8 Elenque e defina com suas palavras as formações discursivas apresentadas por Foucault em Arqueologia do saber positividade saber ciência ideologia episteme 15 pontos 3 cada 9 Observe o trecho Foucault quer nos dizer que pensamos a partir de regras que estão socialmente dissolvidas que nosso pensamento obedece em cada época histórica a uma ordem que existe fora da nossa existência e que consequentemente existem coisas que são impossíveis de pensar mas que podem vir a se tornar possíveis De fato se analisarmos o passado podemos verificar momentos de ruptura no pensamento que permitem o surgimento de novas formas de pensamento que até então eram impossíveis de serem pensados coisas que não eram possíveis de serem ditas mas que hoje são Em cada época encontramos ideias que lhes caracterizam e quem nem sempre se sabe sua origem Daniel Luiz Gonçalves cidade 2018 A qual formação discursiva o autor se refere Explique5 pontos 10 Explique a frase A ideologia não dispensa a ciência ao contrário ela precisa da ciência para se estabelecer 3 pontos 11 Como diz Paul Ricoeur Não existe lugar não ideológico Isso quer dizer que todos nós compartilhamos de uma ideologia Nesse sentido quando é que a ideologia se torna um problema a ser investigado pelas ciências humanas 3 pontos 12 Considerando que vivemos em uma sociedade dividida em classes e que estamos em meio a uma luta pela hegemonia qual deve ser o posicionamento do Pedagogo diante da Ideologia que se manifestas nas práticas discursivas educacionais currículos livros didáticos manuais etc 4 pontos 13 Faça uma avaliação geral da disciplina colocando suas impressões pessoais e sugestões Considere a Conhecimento da docente b Forma de abordagem dos conteúdos didática c O nível de desafio d Sua participação e seu comprometimento com sua aprendizagem o que dificultou o que facilitou etc e Sugestões Foi uma honra ter sido sua professora Não gravo nomes infelizmente um problema neurológico que carece de investigação mas seus rostos ficarão em minha memória E espero do fundo do coração que eu tenha deixado pelo menos um ponto de interrogação em suas mentes aprendizes Um grande abraço em cada um de vocês Zu RENÉ DESCARTES DISCURSO DO MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1 O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada pois cada qual pensa estar tão bem provido dele que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar têlo mais do que o têm E não é verossímil que todos se enganem a tal respeito mas isso antes testemunha que o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso que é propriamente o que se denomina o bom senso ou a razão é naturalmente igual em todos os homens e destarte que a diversidade de nossas opiniões não provém do fato de serem uns mais racionais do que outros mas somente de conduzirmos nossos pensamentos por vias diversas e não considerarmos as mesmas coisas Pois não é suficiente ter o espírito bom o principal é aplicálo bem As maiores almas são capazes dos maiores vícios tanto quanto das maiores virtudes e os que só andam muito lentamente podem avançar muito mais se seguirem sempre o caminho reto do que aqueles que correm e dele se distanciam 2 Quanto a mim jamais presumi que meu espírito fosse em nada mais perfeito do que os do comum amiúde desejei mesmo ter o pensamento tão rápido ou a imaginação tão nítida e distinta ou a memória tão ampla ou tão presente quanto alguns outros E não sei de quaisquer outras qualidades exceto as que servem à perfeição do espírito pois quanto à razão ou ao senso posto que é a única coisa que nos torna homens e nos distingue dos animais quero crer que existe inteiramente em cada um e seguir nisso a opinião comum dos filósofos que dizem não haver mais nem menos senão entre os acidentes e não entre as formas ou naturezas dos indivíduos de uma mesma espécie2 3 Mas não temerei dizer que penso ter tido muita felicidade de me haver encontrado desde a juventude em certos caminhos que me conduziram a considerações e máximas de que formei um método pelo qual me parece que eu tenha meio de aumentar gradualmente meu conhecimento e de alçálo pouco a pouco ao mais alto ponto a que a mediocridade de meu espírito e a curta duração de minha vida lhe permitam atingir3 Pois já colhi dele tais frutos que embora no juízo que faço de mim próprio eu procure pender mais para o lado da desconfiança do que para o da presunção e que mirando com um olhar de filósofo as diversas ações e empreendimentos de todos os homens não haja quase nenhum que não me pareça vão e inútil não deixo de obter extrema satisfação do futuro que se entre as ocupações dos homens puramente homens4 há alguma que seja solidamente boa e importante ouso crer que é aquela que escolhi 4 Todavia pode acontecer que me engane e talvez não passe de um pouco de cobre e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes Sei como estamos sujeitos a nos equivocar no que nos tange e como também nos devem ser suspeitos os juízos de nossos amigos quando são a nosso favor Mas estimaria muito mostrar neste discurso quais os caminhos que segui e representar nele a minha vida como num quadro para que cada qual possa julgála e que informado pelo comentário geral das opiniões emitidas a respeito dela seja este um novo meio de me instruir que juntarei àqueles de que costumo me utilizar 5 Assim o meu desígnio não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razão mas apenas mostrar de que maneira me esforcei por conduzir a minha Os que se metem a dar preceitos devem considerarse mais hábeis do que aqueles a quem as dão e se falham na menor coisa são por isso censuráveis Mas não propondo este escrito senão como uma história ou se o preferirdes como uma fábula na qual entre alguns exemplos que se podem imitar se encontrarão talvez também muitos outros que se terá razão de não seguir espero que ele será útil a alguns sem ser nocivo a ninguém e que todos me serão gratos por minha franqueza 6 Fui nutrido nas letras5desde a infância e por me haver persuadido de que por meio delas se podia adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que é útil à vida sentia extraordinário desejo de aprendêlas Mas logo que terminei esse curso de estudos ao cabo do qual se costuma ser recebido na classe dos doutos mudei inteiramente de opinião Pois me achava enleado em tantas dúvidas e erros que me parecia não haver obtido outro proveito procurando instruirme senão o de ter descoberto cada vez mais a minha ignorância 2 É acidente o que pertence a um ser sem pertencer à sua essência Os filósofos designam como sempre em Descartes os escolásticos 3 Cf a definição de sabedoria assimilada à ciência no Prefácio dos Princípios O perfeito conhecimento de todas as coisas que o homem pode saber tanto para a conduta da vida quanto para a conservação da saúde e a invenção de todas as artes progresso que penso já ter feito na busca da verdade e de conceber tais esperanças para o 4 Os homens puramente homens são homens considerados ao nível da exclusiva luz natural abstraindose qualquer assistência que Deus possa proporcionarlhes É doutrina constante em Descartes que o filósofo deva deixar ao teólogo toda investigação do sobrenatural Para o filósofo basta considerar o homem na medida em que nas coisas naturais só depende de si e eu de meu lado escrevi minha filosofia de modo que possa ser recebida em toda parte mesmo entre os turcos e que eu não cause escândalo a ninguém Col com Burman AT VI 550 Não devemos submeter a teologia a raciocínios 5 Isto é a Gramática a História a Poesia a Retórica E no entanto estivera numa das mais célebres escolas da Europa6 onde pensava que deviam existir homens sapientes se é que existiam em algum lugar da Terra Aprendera aí tudo o que os outros aprendiam e mesmo não me tendo contentado com ciências que nos ensinavam percorrera todos os livros que tratam daquelas que são consideradas as mais curiosas e as mais raras que vieram a cair em minhas mãos Além disso eu conhecia os juízos que os outros faziam de mim e não via de modo algum que me julgassem inferior a meus condiscípulos embora entre eles houvesse alguns já destinados a preencher os lugares de nossos mestres E enfim o nosso século pareciame tão florescente e tão fértil em bons espíritos como qualquer dos precedentes O que me levava a tomar a liberdade de julgar por mim todos os outros e de pensar que não existia doutrina no mundo que fosse tal como dantes me haviam feito esperar 7 Não deixava todavia de estimar os exercícios com os quais se ocupam nas escolas Sabia que as línguas que nelas se aprendem são necessárias ao entendimento dos livros antigos que a gentileza das fábulas desperta o espírito que as realizações memoráveis das histórias o alevantam e que sendo lidas com discrição ajudam a formar o juízo que a leitura de todos os bons livros é igual a uma conversação com as pessoas mais qualificadas dos séculos passados que foram seus autores e até uma conversação premeditada na qual eles nos revelam tãosomente os melhores de seus pensamentos que a eloqüência tem forças e belezas incomparáveis que a poesia tem delicadezas e ternuras muito encantadoras que as Matemáticas têm invenções bastante sutis e que podem servir muito tanto para contentar os curiosos quanto para facilitar todas as artes e diminuir o trabalho dos homens que os escritos que tratam dos costumes contêm muitos ensinamentos e muitas exortações à virtude que são muito úteis que a Teologia ensina a ganhar o céu que a Filosofia dá meio de falar com verossimilhança de todas as coisas e de se fazer admirar pelos menos eruditos que a Jurisprudência a Medicina e as outras ciências trazem honras e riquezas àqueles que as cultivam e enfim que é bom têlas examinado a todas até mesmo as mais supersticiosas e as mais falsas a fim de conhecer lhes o justo valor e evitar ser por elas enganado 6 O colégio dos jesuítas de La Flèche fundado em 1604 onde Descartes entrou em 1606 Descartes nunca depreciou La Flèche como pretende a lenda permanecendo sempre em bons termos com seus mestres Assim a excelência do ensino em La Flèche só acusa melhor ainda a insuficiência da tradição cultural 8 Mas eu acreditava já ter dedicado bastante tempo às línguas e mesmo também à leitura dos livros antigos às suas histórias e às suas fábulas Pois quase o mesmo que conversar com os de outros séculos é o viajar É bom saber algo dos costumes de diversos povos a fim de que julguemos os nossos mais sãmente e não pensemos que tudo quanto é contra os nossos modos é ridículo e contrário à razão como soem proceder os que nada viram Mas quando empregamos demasiado tempo em viajar acabamos tornandonos estrangeiros em nossa própria terra e quando somos demasiado curiosos das coisas que se praticavam nos séculos passados ficamos ordinariamente muito ignorantes das que se praticam no presente Além do mais as fábulas fazem imaginar como possíveis muitos eventos que não o são e mesmo as histórias mais fiéis se não mudam nem alteram o valor das coisas para tornálas mais dignas de serem lidas ao menos omitem quase sempre as circunstâncias mais baixas e menos ilustres de onde resulta que o resto não parece tal qual é e que aqueles que regulam os seus costumes pelos exemplos que deles tiram estão sujeitos a cair nas extravagâncias dos paladinos de nossos romances e a conceber desígnios que ultrapassam suas forças7 9 Eu apreciava muito a eloqüência e estava enamorado da poesia mas pensava que uma e outra fossem dons do espírito mais do que frutos do estudo Aqueles cujo raciocínio é mais vigoroso e que melhor digerem8seus pensamentos a fim de tornálos claros e inteligíveis podem sempre persuadir melhor os outros daquilo que pro 32 põem ainda que falem apenas baixo bretão9e nunca tenham aprendido retórica E aqueles cujas invenções são mais agradáveis e que as sabem exprimir com o máximo de ornamento e doçura não deixariam de ser os melhores poetas ainda que a arte poética lhes fosse desconhecida10 7 Descartes dirá que as línguas a Geografia a História são adquiridas sem nenhum discurso da razão elas recorrem apenas à memória jamais à razão Essa distinção entre as ciências racionais e históricas é fundamental nos Clássicos será mantida por Kant 8 Digerem ordenam segundo o sentido primitivo do latim digerere cf Littré N do T 9 Sinal da pouca importância que Descartes concede à língua todo pensamento pode exprimirse em qualquer língua 10 As regras da arte não são de menosprezar mas em arte não há método e nela o aprendizado tem só uma pequena parte Este primado reconhecido à inspiração atesta a mutação ocorrida na condição do artista embora o século XVII ainda o denomine artesão 10 Compraziame sobretudo com as Matemáticas por causa da certeza e da evidência de suas razões mas não notava ainda seu verdadeiro emprego e pensando que serviam apenas às artes mecânicas espantavame de que sendo seus fundamentos tão firmes e tão sólidos não se tivesse edificado sobre eles nada de mais elevado11 Tal como ao contrário eu comparava os escritos dos antigos pagãos que tratam de costumes a palácios muito soberbos e magníficos erigidos apenas sobre a areia e a lama Erguem muito alto as virtudes e apresentamnas como as mais estimáveis entre todas as coisas que existem no mundo mas não ensinam bastante a conhecêlas e amiúde o que chamam com um nome tão belo não é senão uma insensibilidade ou um orgulho ou um desespero ou um parricídio12 11 Eu reverenciava a nossa Teologia e pretendia como qualquer outro ganhar o céu mas tendo aprendido como coisa muito segura que o seu caminho não está menos aberto aos mais ignorantes do que aos mais doutos e que as verdades reveladas que para lá conduzem estão acima de nossa inteligência não me ousaria submetêlas à fraqueza de meus raciocínios e pensava que para empreender seu exame e lograr êxito era necessário ter alguma extraordinária assistência do céu e ser mais do que homem 12 Da filosofia nada direi senão que vendo que foi cultivada pelos mais excelsos espíritos que viveram desde muitos séculos e que no entanto nela não se encontra ainda uma só coisa sobre a qual não se dispute e por conseguinte que não seja duvidosa eu não alimentava qualquer presunção de acertar melhor do que outros e que considerando quantas opiniões diversas sustentadas por homens doutos pode haver sobre uma e mesma matéria sem que jamais possa existir mais de uma que seja verdadeira reputava quase como falso tudo quanto era somente verossímil13 11 Parece que o ensino das Matemáticas era ministrado tendo sobretudo em mira as suas aplicações técnicas cartografia fortificações agrimensura Gilson observa que este caráter aplicado das matemáticas devia tornar ainda mais estranha a física aristotélica que era ensinada ao mesmo tempo Ele cita em apoio um texto antiaristotélico de Clavius autor de um compêndio de Matemática versado por Descartes 12 Alusão aos estóicos 13 Descartes visa aqui à disputa escolástica que se convertera em exercício escolar e ao hábito dos professores de citar e refutar as opiniões de diferentes autores Descartes que não haveria de apreciar os nossos manuais de Filosofia pensa que a verdade é uma só não havendo senão uma verdade de cada coisa e que ela compele todos os espíritos ao assentimento 13 Depois quanto às outras ciências na medida em que tomam seus princípios da Filosofia julgava que nada de sólido se podia construir sobre fundamentos tão pouco firmes E nem a honra nem o ganho que elas prometem eram suficientes para me incitar a aprendê las pois não me sentia de modo algum graças a Deus numa condição que me obrigasse a converter a ciência num mister para o alívio de minha fortuna e conquanto não fizesse profissão de desprezar a glória como um cínico fazia entretanto muito pouca questão daquela que eu só podia esperar adquirir com falsos títulos E enfim quanto às más doutrinas pensava já conhecer bastante o que valiam para não mais estar exposto a ser enganado nem pelas promessas de um alquimista nem pelas predições de um astrólogo nem pelas imposturas de um mágico nem pelos artifícios ou jactâncias de qualquer dos que fazem profissão de saber mais do que sabem 14 Eis por que tão logo a idade me permitiu sair da sujeição de meus preceptores deixei inteiramente o estudo das letras E resolvendome a não mais procurar outra ciência além daquela que poderia achar em mim próprio ou então no grande livro do mundo empreguei o resto de minha mocidade em viajar em ver cortes e exércitos em freqüentar gente de diversos humores e condições em recolher diversas experiências em provar a mim mesmo nos reencontros que a fortuna me propunha e por toda parte em fazer tal reflexão sobre as coisas que se me apresentavam que eu pudesse delas tirar algum proveito Pois afiguravaseme poder encontrar muito mais verdade nos raciocínios que cada qual efetua no que respeitante aos negócios que lhe importam e cujo desfecho se julgou mal deve puni lo logo em seguida do que naqueles que um homem de letras faz em seu gabinete sobre especulações que não produzem efeito algum e que não lhe trazem outra conseqüência senão talvez a de lhe proporcionarem tanto mais vaidade quanto mais distanciadas do senso comum por causa do outro tanto de espírito e artifício que precisou empregar no esforço de tornálas verossímeis14 E eu sempre tive um imenso desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso para ver claro nas minhas ações e caminhar com segurança nesta vida 15 É certo que enquanto me limitava a considerar os costumes dos outros homens pouco encontrava que me satisfizesse pois advertia neles quase tanta diversidade como a que notara anteriormente entre as opiniões dos filósofos De modo que o maior proveito que daí tirei foi que vendo uma porção de coisas que embora nos pareçam muito extravagantes e ridículas não deixam de ser comumente acolhidas e aprovadas por outros grandes povos aprendi a não crer demasiado firmemente em nada do que me fora inculcado só pelo exemplo e pelo costume e assim pouco a pouco livreime de muitos erros que podem ofuscar a nossa luz natural e nos tornar menos capazes de ouvir a razão 14 Notar bem que toda essa passagem constitui a mais brutal e desdenhosa condenação da Filosofia como disciplina e como profissão tal como a concebemos ainda atualmente Mas depois que empreguei alguns anos em estudar assim no livro do mundo e em procurar adquirir alguma experiência tomei um dia a resolução de estudar também a mim próprio e de empregar todas as forças de meu espírito na escolha dos caminhos que devia seguir15 O que me deu muito mais resultado pareceme do que se jamais tivesse me afastado de meu país e de meus livros SEGUNDA PARTE 1 Achavame então na Alemanha para onde fora atraído pela ocorrência das guerras que ainda não findaram e quando retornava da coroação do imperador16 para o exército o início do inverno me deteve num quartel onde não encontrando nenhuma freqüentação que me distraísse e não tendo além disso por felicidade quaisquer solicitudes ou paixões que me perturbassem permanecia o dia inteiro fechado sozinho num quarto bem aquecido onde dispunha de todo o vagar para me entreter com os meus pensamentos Entre eles um dos primeiros foi que me lembrei de considerar que amiúde não há tanta perfeição nas obras compostas de várias peças e feitas pela mão de diversos mestres como naquelas em que um só trabalhou Assim vêse que os edifícios empreendidos e concluídos por um só arquiteto costumam ser mais belos e melhor ordenados do que aqueles que muitos procuraram reformar fazendo uso de velhas paredes construídas para outros fins Assim essas antigas cidades que tendo sido no começo pequenos burgos tornaramse no decorrer do tempo grandes centros são ordinariamente tão mal compassadas em comparação com essas praças regulares traçadas por um engenheiro à sua fantasia numa planície que embora considerando seus edifícios cada qual à parte se encontre neles muitas vezes tanta ou mais arte que nos das outras todavia a ver como se acham arranjados aqui um grande ali um pequeno e como tornam as ruas curvas e desiguais dirseia que foi mais o acaso do que a vontade de alguns homens usando da razão que assim os dispôs E se se considerar que apesar de tudo sempre houve funcionários com o encargo de fiscalizar as construções dos particulares para tornálas úteis ao ornamento do público reconhecerseá realmente que é penoso trabalhando apenas nas obras de outrem fazer coisas muito acabadas 15 Após a experiência do mundo e a observação dos costumes a fundação da ciência Na realidade os cortes não foram inopinados Os anos de que nos fala Descartes não foram anos de preguiça intelectual cf G Milhaud Descartes Savant Les premiers essais scientifiques de Descartes 16 As festas da coroação celebraramse de julho a setembro de 1619 O episódio da poêle é em geral situado nos primeiros dias de novembro de 1619 Assim imaginei que os povos que tendo sido outrora semiselvagens e só pouco a pouco se tendo civilizado não elaboraram suas leis senão à medida que a incomodidade dos crimes e das querelas a tanto os compeliu não poderiam ser tão bem policiados17 como aqueles que a começar do momento em que se reuniram observaram as constituições de algum prudente legislador Tal como é bem certo que o estado da verdadeira religião cujas ordenanças só Deus fez deve ser incomparavelmente melhor regulamentado do que todos os outros E para falar das coisas humanas creio que se Esparta foi outrora muito florescente não o deveu à bondade de cada uma de suas leis em particular visto que muitas eram bastante alheias e mesmo contrárias aos bons costumes mas ao fato de que havendo sido inventadas apenas por um só tendiam todas ao mesmo fim E assim pensei que as ciências dos livros ao menos aquelas cujas razões são apenas prováveis e que não apresentam quaisquer demonstrações pois se compuseram e avolumaram pouco a pouco com opi 35 niões de mui diversas pessoas não se acham de modo algum tão próximas da verdade quanto os simples raciocínios que um homem de bom senso pode fazer naturalmente com respeito às coisas que se lhe apresentam E assim ainda pensei que como todos nós fomos crianças antes de sermos homens e como nos foi preciso por muito tempo sermos governados por nossos apetites e nossos preceptores que eram amiúde contrários uns aos outros e que nem uns nem outros nem sempre talvez nos aconselhassem o melhor é quase impossível que nossos juízos sejam tão puros ou tão sólidos como seriam se tivéssemos o uso inteiro de nossa razão desde o nascimento e se não tivéssemos sido guiados senão por ela18 2 É certo que não vemos em parte alguma lançaremse por terra todas as casas de uma cidade com o exclusivo propósito de refazêlas de outra maneira e de tornar assim suas ruas mais belas mas vêse na realidade que muitos derrubam as suas para reconstruí las sendo mesmo algumas vezes obrigados a fazêlo quando elas correm o perigo de cair por si próprias por seus alicerces não se estarem muito firmes A exemplo disso persuadi me de que verdadeiramente não seria razoável que um particular intentasse reformar um Estado mudandoo em tudo desde os fundamentos e derrubandoo para reerguêlo nem tampouco reformar o corpo das ciências ou a ordem estabelecida nas escolas para ensiná las mas que no tocante a todas as opiniões que até então acolhera em meu crédito o melhor a fazer seria 17 Policiados de policiar policer no sentido de amenizar os costumes pela civilização N do T 18 Desprezo pela erudição livresca oposição da razão à história da evidência conquistada por nós mesmos ao preconceito herdado da tradição estes leitmotiv cartesianos em parte alguma se acham melhor concentrados disporme de uma vez para sempre a retirarlhes essa confiança a fim de substituílas em seguida ou por outras melhores ou então pelas mesmas após têlas ajustado ao nível da razão E acreditei firmemente que por este meio lograria conduzir minha vida muito melhor do que se a edificasse apenas sobre velhos fundamentos e me apoiasse tãosomente sobre princípios de que me deixara persuadir em minha juventude sem ter jamais examinado se eram verdadeiros Pois embora notasse nesta tarefa diversas dificuldades não eram todavia irremediáveis nem comparáveis às que se encontram na reforma das menores coisas atinentes ao público Esses grandes corpos são demasiado difíceis de reerguer quando abatidos ou mesmo de suster quando abalados e suas quedas não podem deixar de ser muito rudes Pois quanto às suas imperfeições se as têm como a mera diversidade existente entre eles basta para assegurar que as têm numerosas o uso sem dúvida as suavizou e mesmo evitou e corrigiu insensivelmente um grande número às quais não se poderia tão bem remediar por prudência E enfim são quase sempre mais suportáveis do que o seria a sua mudança da mesma forma que os grandes caminhos que volteiam entre montanhas se tornam pouco a pouco tão batidos e tão cômodos à força de serem frequentados que é bem melhor seguilos do que tentar ir mais reto escalando por cima dos rochedos e descendo até o fundo dos precipícios 3 Eis por que não poderia de forma alguma aprovar esses temperamentos perturbadores e inquietos que não sendo chamados nem pelo nascimento nem pela fortuna ao manejo dos negócios públicos não deixam de neles praticar sempre em idéia alguma nova reforma E se eu pensasse haver neste escrito a menor coisa que pudesse tornarme suspeito de tal loucura ficaria muito pesaroso de ter aceito publicálo Nunca o meu intento foi além de procurar reformar meus próprios pensamentos e construir num terreno que é todo meu De maneira que se tendo minha obra me agradado bastante eu vos mostro aqui o seu modelo nem por isso quero aconselhar alguém a imitálo Aqueles a quem Deus melhor partilhou suas graças alimentarão talvez desígnios mais elevados mas temo bastante que já este seja ousado demais para muitos A simples resolução de se desfazer de todas as opiniões a que se deu antes crédito não é um exemplo que cada qual deva seguir e o mundo compõese quase tãosomente de duas espécies de espíritos aos quais ele não convém de modo algum A saber daqueles que crendose mais hábeis do que são não podem impedir se de precipitar seus juízos nem ter suficiente paciência para conduzir por ordem todos os seus pensamentos daí resulta que se houvessem tomado uma vez a liberdade de duvidar dos princípios que aceitaram e de se apartar do caminho comum nunca poderiam aterse à senda que é preciso tomar para ir mais direito e permaneceriam extraviados durante toda a vida depois daqueles que tendo bastante razão ou modéstia para julgar que são menos capazes de distinguir o verdadeiro do falso do que alguns outros pelos quais podem ser instruídos devem antes contentarse em seguir as opiniões desses outros do que procurar por si próprios outras melhores 4 E quanto a mim estaria sem dúvida no número destes últimos se eu tivesse tido um único mestre ou se nada soubesse das diferenças havidas em todos os tempos entre as opiniões dos mais doutos Mas tendo aprendido desde o Colégio que nada se poderia imaginar tão estranho e tão pouco crível que algum dos filósofos já não houvesse dito e depois ao viajar tendo reconhecido que todos os que possuem sentimentos muito contrários aos nossos nem por isso são bárbaros ou selvagens mas que muitos usam tanto ou mais do que nós a razão e tendo considerado o quanto um mesmo homem com o seu mesmo espírito sendo criado desde a infância entre franceses ou alemães tornase diferente do que seria se vivesse sempre entre chineses ou canibais e como até nas modas de nossos trajes a mesma coisa que nos agradou há dez anos e que talvez nos agrade ainda antes de decorridos outros dez nos parece agora extravagante e ridícula de sorte que são bem mais o costume e o exemplo que nos persuadem do que qualquer conhecimento certo e que não obstante a pluralidade das vozes não é prova que valha algo para as verdades um pouco difíceis de descobrir por ser bem mais verossímil que um só homem as tenha encontrado do que todo um povo eu não podia escolher ninguém cujas opiniões me parecessem dever ser preferidas às de outrem e achavame como compelido a tentar eu próprio conduzirme 5 Mas como um homem que caminha só e nas trevas resolvi ir tão lentamente e usar de tanta circunspecção em todas as coisas que mesmo se avançasse muito pouco evitaria pelo menos cair Não quis de modo algum começar rejeitando inteiramente qualquer das opiniões que porventura se insinuaram outrora em minha confiança sem que aí fossem introduzidas pela razão antes de despender bastante tempo em elaborar o projeto da obra que ia empreender e em procurar o verdadeiro método para chegar ao conhecimento de todas as coisas de que meu espírito fosse capaz19 6 Eu estudara um pouco sendo mais jovem entre as partes da Filosofia a Lógica e entre as Matemáticas a Análise dos geômetras20e a Álgebra três artes ou ciências que pareciam dever contribuir com algo para o meu desígnio 19 Houve portanto um intervalo entre as reflexões de novembro de 1619 e a elaboração do método Aliás este não resulta daquelas porém bem mais dos trabalhos matemáticos em curso construção por meio de uma parábola de todos os problemas dos sólidos do terceiro e quarto graus 20 A Análise designa aqui o método que consiste em supor conhecida a linha desconhecida em estabelecer as relações que a ligam a grandezas conhecidas até que se possa construíla a partir destas relações Entre os Antigos esse método válido para outros domínios além da Geometria se apresenta sob a forma geométrica 21 Leibniz foi o primeiro a zombar da banalidade deste método E é verdade que o Método está contido mais nas Regulae do que nessa apresentação esotérica Não obstante a leitura da Geometria o único dos três ensaios que segundo o Autor prova a validade do método mostra o quanto esta banalidade é aparente Separadas desta referência compreendidas como preceitos gerais as regras seriam na verdade pouco proveitosas é o que se esquece com demasiada freqüência Mas examinandoas notei que quanto à Lógica os seus silogismos e a maior parte de seus outros preceitos servem mais para explicar a outrem as coisas já se sabem ou mesmo como a arte de Lúlio para falar sem julgamento daquelas que se ignoram do que para aprendê las E embora ela contenha com efeito uma porção de preceitos muito verdadeiros e muito bons há todavia tantos outros misturados de permeio que são ou nocivos ou supérfluos que é quase tão difícil separálos quanto tirar uma Diana ou uma Minerva de um bloco de mármore que nem sequer está esboçado Depois com respeito à Análise dos Antigos e à Álgebra dos modernos além de se estenderem apenas a matérias muito abstratas e de não parecerem de nenhum uso a primeira permanece sempre tão adstrita à consideração das figuras que não pode exercitar o entendimento sem fatigar muito a imaginação e estevese de tal forma sujeito na segunda a certas regras e certas cifras que se fez dela uma arte confusa e obscura que embaraça o espírito em lugar de uma ciência que o cultiva Por esta causa pensei ser mister procurar algum outro método que compreendendo as vantagens desses três fosse isento de seus defeitos E como a multidão de leis fornece amiúde escusas aos vícios de modo que um Estado é bem melhor dirigido quando tendo embora muito poucas são estritamente cumpridas assim em vez desse grande número de preceitos de que se compõe a Lógica julguei que me bastariam os quatro seguintes21 desde que tomasse a firme e constante resolução de não deixar uma só vez de observálos 7 O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal isto é de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção22 e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente23 a meu espírito que eu não tivesse nenhuma ocasião de pôlo em dúvida 22 A precipitação consiste em julgar antes de ter chegado à evidência e a prevenção na persistência dos prejuízos de infância 23 Cf Princípios I 45 Denomino claro o que é presente e manifesto a um espírito atento e distinto o que é de tal modo que compreende em si apenas o que parece manifestamente a quem o considere como se deve 8 O segundo o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvêlas24 9 O terceiro o de conduzir por ordem meus pensamentos começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer para subir pouco a pouco como por degraus até o conhecimento dos mais compostos e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros25 10 E o último o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais que eu tivesse a certeza de nada omitir26 24 As palavras dificuldade que significa problema matemático e resolver devem remeternos à Geometria nomeadamente à primeira parte do Livro III onde se trata da resolução de equações mediante dois métodos quer realizando o produto de binômios compostos da incógnita menos cada uma das raízes quer quando não se encontra nenhum binômio que possa assim dividir a soma toda da equação proposta considerando a equação como o produto de dois polinômios método das indeterminadas Suporseá por exemplo que a equação do quarto grau é fruto da multiplicação de duas equações arbitrárias do segundo grau Não é pois questão somente de dividir mas também de decompor até os elementos mais simples cuja combinação engendrará solução 25 Constituição de uma série em que cada termo ficará colocado antes dos que dele dependem e depois daqueles de que ele depende A geometria na sua classificação das curvas ilustra a importância da ordem assim concebida as linhas mais compostas serão nela recebidas tanto como as mais simples contanto que possamos imaginálas descritas por um movimento contínuo ou por vários que se seguem e dos quais os últimos sejam inteiramente regrados pelos que os precedem pois mediante isso podemos sempre ter um conhecimento exato de sua medida AT VI 389 A ordem é o garante da homogeneidade de um domínio e da possibilidade de determinar com certeza os seres que ele inclui ou exclui Isto será válido tanto em Metafísica como em Geometria 26 Pode parecer que esta regra repita a segunda visto que a divisão em parcelas é a mesma coisa que a enumeração das variáveis Vuillemin que evoca esta dificuldade em seu livro Mathématiques et Métaphysique chez Descartes pág 137 pensa que tal regra é antes ilustrada pela enumeração de todos os casos possíveis para a solução de uma equação o que possibilita a escolha de uma solução mais geral Preceito reflexivo e regulador que versa sobre os métodos e não sobre os problemas 11 Essas longas cadeias de razões27 todas simples e fáceis28 de que os geômetras costumam servirse para chegar às suas mais difíceis demonstrações haviamme dado ocasião de imaginar que todas as coisas possíveis de cair sob o conhecimento dos homens seguemse umas às outras da mesma maneira e que contanto que nos abstenhamos somente de aceitar por verdadeira qualquer que não o seja e que guardemos sempre a ordem necessária para deduzilas umas das outras não pode haver quaisquer tão afastadas a que não se chegue por fim nem tão ocultas que não se descubram E não me foi muito penoso procurar por quais devia começar pois já sabia que haveria de ser pelas mais simples e pelas mais fáceis de conhecer e considerando que entre todos os que precedentemente buscaram a verdade nas ciências só os matemáticos puderam encontrar algumas demonstrações isto é algumas razões certas e evidentes não duvidei de modo algum que não fosse pelas mesmas que eles examinaram29 embora não esperasse disso nenhuma outra utilidade exceto a de que acostumariam o meu espírito a se alimentar de verdades e a não se contentar com falsas razões 27 Por razões devese entender proporções Como mostra Vuillemin no capítulo IV de sua obra a ciência cartesiana é uma teoria das proporções multiplicação divisão e extração de raiz são três meios de construção de uma quarta proporcional o grau de uma equação é definido pelo número de proporções requeridas entre as quantidades seu gênero pelo número mínimo dessas proporções em geral uma proporção contínua é o modelo da ordem Uma série como 36 612 1224 mostranos de que maneira estão envolvidas todas as questões referentes às proporções ou razões das coisas e em que ordem devem ser procuradas o que por si só constitui o essencial de toda ciência da matemática pura Reg VI AT X pág 385 28 Vuillemin observa que simples e fácil não são sinônimos É fácil o que é simples segundo nós e por assim dizer do ponto de vista psicológico É simples o que é primeiro pela ordem das coisas Op cit pág 118 O raciocínio mais fácil pedagógica e sinteticamente nem sempre é o mais simples segundo a ordem e analiticamente 29 Acrescentese para a claridade do texto que era preciso começar Cf Col com Burman A Matemática acostuma o espírito a reconhecer a verdade porque sempre encontramos nela raciocínios rigorosos que não encontraríamos alhures Em conseqüência uma vez afeito o espírito aos raciocínios matemáticos tê loemos tornado também próprio à pesquisa de outras verdades posto que em toda parte há somente uma e mesma forma de raciocinar AT VI 55051 Mas não foi meu intuito para tanto procurar aprender todas essas ciências particulares que se chamam comumente matemáticas30 e vendo que embora seus objetos sejam diferentes não deixam de concordar todas pelo fato de não conferirem nesses objetos senão as diversas relações ou proporções que neles se encontram pensei que valia mais examinar somente estas proporções em geral31 e supondoas apenas nos suportes que servissem para me tornar o seu conhecimento mais fácil mesmo assim sem restringilas de forma nenhuma a tais suportes a fim de poder aplicálas tão melhor em seguida a todos os outros objetos a que conviessem Depois tendo notado que para conhecêlas teria algumas vezes necessidade de considerálas cada qual em particular e outras vezes somente de reter ou de compreender várias em conjunto pensei que para melhor considerálas em particular deveria supôlas em linhas32 porquanto não encontraria nada mais simples nem que pudesse representar mais distintamente à minha imaginação e aos meus sentidos33 mas que para reter ou compreender várias em conjunto cumpria que eu as designasse por alguns signos os mais breves possíveis34 e que por esse meio tomaria de empréstimo o melhor da Análise geométrica e da Álgebra e corrigiria todos os defeitos de uma pela outra 30 Alusão à divisão escolástica das Matemáticas Matemáticas Puras Geometria Aritmética e Mistas Astronomia Música Óptica O que interessa a Descartes é o denominador comum dessas ciências a ordem e a medida ao passo que os Escolásticos desejavam separálas com respeito a seus objetos Particularização que impedia de distinguir como faz Descartes esta Matemática comum que requer apenas memória e a ciência matemática que não é bebida nos livros 31 Tratase portanto da mathesis universalis ciência inteiramente nova pela qual poderão ser resolvidos todos os problemas relativos a qual gênero de quantidade contínua ou discreta AT X 156 e primeiro fruto do método Na verdade o método foi concebido com vistas a ela Sobre esta interpenetração da mathesis e do método cf Regulae quarta regra Não se trata aqui de modo algum da geometria analítica como às vezes se pretende falsamente 32 Lineis rectis diz o texto latino A linha reta é escolhida como figuração universal da grandeza porque ela é o suporte mais flexível para a teoria das proporções pode representar um produto um quociente uma raiz bem como a soma ou uma diferença mas também porque permite evitar o incomensurável O fato de as letras algébricas representarem linhas e não números e em geral a desconfiança de Descartes para com a aritmética atesta o que Belaval denomina em Leibniz critique de Descartes a limitação da Álgebra pela Geometria Descartes libertouse do realismo intuitivo dos gregos por exemplo colocando que o resultado de todo cálculo sobre quantidades figuradas por grandezas retilíneas corresponde por sua vez a uma grandeza retilínea mas foi só pela metade 33 Indispensável ao entendimento em Matemática a imaginação a consideração das figuras não é entretanto senão uma auxiliar Cf Regulae regra catorze 34 A simplificação da Álgebra consiste em designar todas as grandezas por letras do alfabeto em representar as potências pelas cifras escritas em expoentes salvo para x2 que Descartes ainda escreve xx e o equacionamento pela igualdade a zero 12 E como efetivamente ouso dizer que a exata observação desses poucos preceitos que eu escolhera me deu tal facilidade de deslindar todas as questões às quais se estendem essas duas ciências que nos dois ou três meses que empreguei em examinálas tendo começado pelas mais simples e mais gerais e constituindo cada verdade que eu achava uma regra que me servia em seguida para achar outras não só consegui resolver muitas que julgava antes muito difíceis35 como me pareceu também perto do fim que podia determinar até mesmo naquelas que ignorava por quais meios e até onde seria possível resolvêlas36 No que não vos parecerei talvez muito vaidoso se considerardes que havendo somente uma verdade de cada coisa todo aquele que a encontrar sabe a seu respeito tanto quanto se pode saber e que por exemplo uma criança instruída na aritmética que haja realizado uma adição segundo as regras pode estar certa de ter achado quanto à soma que examinava tudo o que o espírito humano poderia achar Pois enfim o método que ensina a seguir a verdadeira ordem e a enumerar exatamente todas as circunstâncias daquilo que se procura contém tudo quanto dá certeza às regras da aritmética 13 Mas o que me contentava mais nesse método era o fato de que por ele estava seguro de usar em tudo minha razão se não perfeitamente ao menos o melhor que eu pudesse além disso sentia ao praticálo que meu espírito se acostumava pouco a pouco a conceber mais nítida e distintamente seus objetos e que não o tendo submetido a qualquer matéria particular prometia a mim mesmo aplicálo tão utilmente às dificuldades das outras ciências como o fizera com as da Álgebra Não que para tanto ousasse empreender primeiramente o exame de todas as que se me apresentassem pois isso mesmo seria contrário à ordem que ele prescreve Porém tendo notado que os seus princípios deviam ser todos tomados à Filosofia na qual não encontrava ainda quaisquer que fossem certos 35 Segundo G Milhaud Descartes Savant alusão à solução dos problemas dos sólidos do terceiro e quarto graus por meio da interseção de um círculo e de uma parábola Milhaud mostra a este propósito o quanto Descartes em 1620 é ainda o continuado da geometria grega Para resolver o que nós formulamos pela equação x3 a2 b Arquimedes introduzia uma segunda variável y tal que x2 ay o que significa procurar das médias proporcionais entre a e b Para solucionar este problema serviase de duas parábolas definidas por duas razões das ordenadas com as abscissas É este método que Descartes sistematiza para as equações do terceiro e do quarto graus ponto de partida do que será denominado mais tarde Geometria Analítica Descartes não toma pois aos gregos o método analítico como procedimento lógico mas antes o próprio conteúdo desta análise e seu gênio consiste mais em explorar os recursos de um processo já utilizado do que em descobrir este processo Tanto é que Descartes nunca se vangloriou da Geometria Analítica 36 Exemplo dessa determinação dos limites a classificação dos problemas do livro II da Geometria onde são delimitados os problemas resolúveis com régua e compasso com curvas mais complicadas mas que é possível construir de maneira exata e por um movimento contínuo enfim os problemas para os quais as curvas só podem ser construídas por pontos discretos as transcendentes como a espiral ou quadratriz que não pertencem de modo algum ao número das que penso que devem ser aqui recebidas porque as imaginamos descritas por dois movimentos separados e que não têm entre si nenhuma relação que se possa medir exatamente AT VI 390 pensei que seria mister antes de tudo procurar ali estabelecêlos e que sendo isso a coisa mais importante do mundo e onde a precipitação e a prevenção eram mais de recear não devia empreender sua realização antes de atingir uma idade bem mais madura do que a dos vinte e três anos que eu então contava e antes de ter despendido muito tempo em preparar me para isso tanto desenraizando de meu espírito todas as más opiniões que nele acolhera até essa época como acumulando muitas experiências para servirem em seguida de matéria aos meus raciocínios e exercitandome sempre no método que me prescrevera a fim de me firmar nele cada vez mais TERCEIRA PARTE 1 E enfim como não basta antes de começar a reconstruir a casa onde se mora derrubála ou proverse de materiais e arquitetos ou adestrarse a si mesmo na arquitetura nem além disso ter traçado cuidadosamente o seu projeto mas cumpre também terse provido de outra qualquer onde a gente possa alojarse comodamente durante o tempo em que nela se trabalha assim para não permanecer irresoluto37 em minhas ações enquanto a razão me obrigasse a sêlo em meus juízos e de não deixar de viver desde então de o mais felizmente possível formei para mim mesmo uma moral provisória que consistia apenas em três ou quatro máximas que eu quero vos participar38 2 A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país retendo constantemente a religião em que Deus me concedeu a graça de ser instruído desde a infância e governandome em tudo o mais segundo as opiniões mais moderadas e as mais distanciadas do excesso que fossem comumente acolhidas em prática pelos mais sensatos daqueles com os quais teria de viver Pois começando desde então a não contar para nada com as minhas próprias opiniões porque eu as queria submeter todas a exame estava certo de que o melhor a fazer era seguir as dos mais sensatos E embora haja talvez entre os persas e chineses homens tão sensatos como entre nós pareciame que o mais útil seria 37 Sobre a irresolução como o pior dos males cf Paixões art 60 e Cartas a Elisabeth de 1º de setembro de 1645 38 Col com Burman AT VI 552 O autor não gosta de escrever sobre a Moral mas viuse forçado por causa dos pedantes e gente desta espécie a adicionar estas regras de outro modo diriam dele que se trata de um homem sem religião sem fé e que com o seu método quer derrubar tudo isso pautarme por aqueles entre os quais teria de viver e que para saber quais eram verdadeiramente as suas opiniões devia tomar nota mais daquilo que praticavam do que daquilo que diziam não só porque na corrupção de nossos costumes há poucas pessoas que queiram dizer tudo o que acreditam mas também porque muitos o ignoram por sua vez pois sendo a ação do pensamento pela qual se crê uma coisa diferente daquela pela qual se conhece que se crê nela amiúde uma se apresenta sem a outra39 E entre várias opiniões igualmente aceites escolhia apenas as mais moderadas tanto porque são sempre as mais cômodas para a prática e verossimilmente40as melhores pois todo excesso costuma ser mau como também a fim de me desviar menos do verdadeiro caminho caso eu falhasse do que tendo escolhido um dos extremos fosse o outro o que deveria ter seguido E particularmente colocava entre os excessos todas as promessas pelas quais se cerceia em algo a própria liberdade41 Não que desaprovasse as leis que para remediar a inconstância dos espíritos fracos permitem quando se alimenta algum bom propósito ou mesmo para a segurança do comércio algum desígnio que seja apenas indiferente que se façam votos ou contratos que obriguem a perseverar nele mas porque não via no mundo nada que permanecesse sempre no mesmo estado e porque no meu caso particular como prometia a mim mesmo aperfeiçoar cada vez mais os meus juízos e de modo algum torná los piores pensaria cometer grande falta contra o bom senso se pelo fato de ter aprovado então alguma coisa me sentisse na obrigação de tomála como boa ainda depois quando deixasse talvez de sêlo ou quando eu cessasse de considerála tal 39 Existe uma diferença entre um juízo e o conhecimento deste juízo Assim eu não duvido de modo algum que cada um tenha em si a idéia de Deus pelo menos implícita não me surpreendo no entanto de ver homens que não sentem ter em si esta idéia ou melhor que dela não se apercebem absolutamente Cartas a Hyperaspistes agosto de 1641 40 A verossimilhança excluída da ordem teórica recobrará valor na ordem prática 41 Não será rebaixar os votos religiosos como pergunta Gilson encarálos como simples remédio para a inconstância dos espíritos fracos Notarseá aqui o desprezo de Descartes para com o engajamento sob todas as suas formas 3 Minha segunda máxima consistia em ser o mais firme e o mais resoluto possível em minhas ações e em não seguir menos constantemente do que se fossem muito seguras as opiniões mais duvidosas sempre que eu me tivesse decidido a tanto42 Imitando nisso os viajantes que vendose extraviados nalguma floresta não devem errar volteando ora para um lado ora para outro nem menos ainda deterse num sítio mas caminhar sempre o mais reto possível para um mesmo lado e não mudálo por fracas razões ainda que no começo só o acaso talvez haja determinado a sua escolha pois por este meio se não vão exatamente aonde desejam ao menos chegarão no fim a alguma parte onde verossimilmente estarão melhor do que no meio de uma floresta E assim como as ações da vida não suportam às vezes qualquer delonga é uma verdade muito certa que quando não está em nosso poder o discernir as opiniões mais verdadeiras devemos seguir as mais prováveis e mesmo ainda que não notemos em umas mais probabilidades do que em outras devemos não obstante decidirnos por algumas e considerálas depois não mais como duvidosas na medida em que se relacionam com a prática mas como muito verdadeiras e muito certas porquanto a razão que a isso nos decidiu se apresenta como tal43 E isto me permitiu desde então libertarme de todos os arrependimentos e remorsos que costumam agitar as consciências desses espíritos fracos e vacilantes que se deixam levar inconstantemente a praticar como boas as coisas que depois julgam más 4 Minha terceira máxima era a de procurar sempre antes vencer a mim próprio do que à fortuna e de antes modificar os meus desejos do que a ordem do mundo e em geral a de acostumarme a crer que nada há que esteja inteiramente em nosso poder exceto os nossos pensamentos de sorte que depois de termos feito o melhor possível no tocante às coisas que nos são exteriores tudo em que deixamos de nos sair bem é em relação a nós absolutamente impossível E só isso me parecia suficiente para impedirme no futuro de desejar algo que eu não pudesse adquirir e assim para me tornar contente Pois inclinando se a nossa vontade naturalmente a desejar só aquelas coisas que nosso entendimento lhe representa de alguma forma como possíveis é certo que se considerarmos todos os 42 A fim de evitar um malentendido Descartes formulará esta regra de maneira mais precisa Não agir menos constantemente segundo as opiniões que julgamos duvidosas quando consideramos não haver outras que soubéssemos que aquelas são as melhores A XXX março de 1638 Não se trata portanto de um voluntarismo cego além do que relaciono principalmente esta regra às ações da vida que não sofrem qualquer delonga e me sirvo dela apenas provisoriamente 43 Tudo se passa como se essas opiniões fossem muito verdadeiras e para nós elas o são efetivamente visto que não pudemos encontrar outras melhores bens que se acham fora de nós como igualmente afastados de nosso poder não lamentaremos mais a falta daqueles que parecem deverse ao nosso nascimento quando deles formos privados sem culpa nossa do que lamentamos não possuir os reinos da China ou do México e que fazendo como se diz da necessidade virtude não desejaremos mais estar sãos estando doentes ou estar livres estando na prisão do que desejamos ter agora corpos de uma matéria tão pouco corruptível quanto os diamantes ou asas para voar como as aves Mas confesso que é preciso um longo exercício e uma meditação amiúde reiterada para nos acostumarmos a olhar por este ângulo todas as coisas e creio que é principalmente nisso que consistia o segredo desses filósofos44 que puderam outrora subtrairse ao império da fortuna e malgrado as dores e a pobreza disputar felicidade aos seus deuses Pois ocupandose incessantemente em considerar os limites que lhes eram prescritos pela natureza persuadiramse tão perfeitamente de que nada estava em seu poder além dos seus pensamentos que só isso bastava para impedilos de sentir qualquer afecção por outras coisas e dispunham deles tão absolutamente que tinham neste caso especial certa razão de se julgarem mais ricos mais poderosos mais livres e mais felizes que quaisquer outros homens os quais não tendo esta filosofia por mais favorecidos que sejam pela natureza e pela fortuna jamais dispõem assim de tudo quanto querem45 5 Enfim para a conclusão dessa moral decidi passar em revista as diversas ocupações que os homens exercem nesta vida para procurar escolher a melhor e sem que pretenda dizer nada sobre as dos outros pensei que o melhor a fazer seria continuar naquela mesma em que me achava isto é empregar toda a minha vida em cultivar minha razão e adiantarme o mais que pudesse no conhecimento da verdade segundo o método que me prescrevera Eu sentira tão extremo contentamento desde quando começara a servirme deste método que não acreditava que nesta vida se pudessem receber outros mais doces nem mais inocentes e descobrindo todos os dias por seu meio algumas verdades que me pareciam assaz importantes e comumente ignoradas pelos outros homens a satisfação que isso me dava enchia de tal modo meu espírito que tudo o mais não me tocava Além do que as três máximas precedentes não se baseavam senão no meu intuito de 44 Filósofos estóicos N do T 45 A respeito do acento estóico da passagem e do destino desta regra na moral definitiva cf Cartas a Elisabeth de continuar a me instruir pois tendo Deus concedido a cada um de nós alguma luz para discernir o verdadeiro do falso não julgaria dever contentarme um só momento com as opiniões de outrem se não me propusesse empregar o meu próprio juízo em examinálas quando fosse tempo46 e não saberia isentarme de escrúpulos ao seguilas se não esperasse não perder com isso ocasião alguma de encontrar outras melhores caso as houvesse E enfim não saberia limitar os meus desejos nem estar contente se não tivesse trilhado um caminho pelo qual pensando estar seguro da aquisição de todos os conhecimentos de que fosse capaz julgava estar seguro da aquisição de todos os verdadeiros bens que alguma vez viessem a estar em meu alcance tanto mais que não se inclinando a nossa vontade a seguir ou fugir a qualquer coisa senão conforme o nosso entendimento lha represente como boa ou má basta bem julgar para bem proceder e julgar o melhor possível para proceder também da melhor maneira47 isto é para adquirir todas as virtudes e conjuntamente todos os outros bens que se possam adquirir e quando se está certo de que é assim não se pode deixar de ficar contente 6 Depois de me ter assim assegurado destas máximas e de as ter posto à parte com as verdades da fé que sempre foram as primeiras na minha crença julguei que quanto a todo o restante de minhas opiniões podia livremente tentar desfazerme delas E como esperava chegar melhor ao cabo dessa tarefa conversando com os homens do que continuando por mais tempo encerrado no quarto aquecido onde me haviam ocorrido esses pensamentos recomecei a viajar quando o inverno ainda não acabara E em todos os nove anos seguintes não fiz outra coisa senão rolar pelo mundo daqui para ali procurando ser mais espectador do que ator em todas as comédias que nele se representam48 e efetuando particular reflexão em cada matéria sobre o que podia tornála suspeita e dar ocasião de nos equivocarmos desenraizava entrementes do meu espírito todos os erros que até então nele se houvessem insinuado Não que imitasse para tanto os céticos que duvidam apenas por duvidar e afetam ser sempre irresolutos pois ao contrário todo o meu intuito tendia tão somente a me certificar e remover a terra movediça e a areia para encontrar a rocha ou a 46 Isto é elas só se justificam como condições provisórias da busca da verdade 47 As duas fórmulas não são equivalentes No primeiro caso o entendimento esclarecido por idéias claras e distintas compele a vontade no segundo não estando assegurada a verdade do juízo eu deveria envidar esforço para seguir sempre o que o entendimento me representa como melhor 48 Acerca do tema do espectador cf Cartas a Elisabeth de 18 de maio de 1645 Poderseá comparálo ao tema do ator nos Estóicos Cf Goldschmidt Système Stoïcien págs 150 e segs e 178 e segs encontrar a rocha ou a argila O que consegui muito bem pareceme tanto mais que procurando descobrir a falsidade ou a incerteza das proposições que examinava não por fracas conjeturas mas por raciocínios claros e seguros não deparava quaisquer tão duvidosas que delas não tirasse sempre alguma conclusão bastante certa quando mais 45 não fosse a de que não continha nada de certo E como ao demolir uma velha casa reservamse comumente os escombros para servir à construção de outra nova assim ao destruir todas as minhas opiniões que julgava mal fundadas fazia diversas observações e adquiria muitas experiências que me serviram depois para estabelecer outras mais certas E ademais continuava a exercitarme no método que me prescrevera pois não só tomava o cuidado de conduzir geralmente todos os meus pensamentos segundo as suas regras como reservava de tempos em tempos algumas horas que empregava particularmente em aplicálo nas dificuldades de Matemática ou mesmo também em algumas outras que eu podia tornar quase semelhantes às das Matemáticas separandoas de todos os princípios das outras ciências que eu não achava bastante firmes como vereis que procedi com várias que são explicadas neste volume49 E assim sem viver aparentemente de forma diferente daqueles que não tendo outro emprego senão passar uma vida doce e inocente procuram separar os prazeres dos vícios e que para gozar de seus lazeres sem se aborrecer usam todos os divertimentos que são honestos não deixava de persistir em meu desígnio e de progredir no conhecimento da verdade mais talvez do que se me limitasse a ler livros ou freqüentar homens de letras 7 Todavia esses nove anos escoaramse antes que eu tivesse tomado qualquer partido com respeito às dificuldades que costumam ser disputadas entre os doutos ou começado a procurar os fundamentos de alguma Filosofia mais certa do que a vulgar50 E o exemplo de muitos espíritos excelsos que tendo alimentado precedentemente esse intento não haviam logrado pareciame realizálo levavame a imaginar tantas dificuldades que não teria talvez ousado empreendêlo tão cedo se não soubesse de que alguns já faziam correr o rumor de que eu já o levara a termo Não poderia dizer em que baseavam esta opinião e se para isso contribuí com algo em meus discursos deve ter sido por confessar neles mais ingenuamente o que eu ignorava do que costumam fazer aqueles que estudaram um pouco e talvez também por mostrar as razões que tinha de duvidar de muitas coisas que os outros consideram certas do que por me jactar de qualquer doutrina Mas tendo o coração 49 Deve referirse aos problemas versados em Os Meteoros explicação dos ventos das nuvens do arco íris e na Dióptrica G Milhaud estabelece que Descartes formulou a lei da refração por volta de 1626 Sobre a concepção cartesiana da Física Matemática cf Cartas a Mersenne de 17 de maio de 1638 11 de março de 1640 bem como a de 27 de julho de 1638 Pois se lhe apraz considerar o que escrevi do solo da neve do arcoíris etc saberá efetivamente que toda a minha Física não é mais do que Geometria 50 A Filosofia escolástica bastante altivo para não querer que me tomassem por alguém que eu não era pensei que cumpria esforçarme por todos os meios para tornarme digno da reputação que me atribuíam e faz justamente oito anos que esse desejo me decidiu a afastarme de todos os lugares em que pudesse ter conhecimentos e a retirarme para aqui51 para um país onde a longa duração da guerra levou a estabelecer tais ordens que os exércitos nele mantidos parecem servir apenas para que os frutos da paz sejam gozados com tanto mais segurança e onde dentre a multidão um grande povo muito ativo e mais zeloso de seus pró 46 prios negócios do que curioso dos assunto dos de outrem sem carecer de nenhuma das comodidades que existem nas cidades mais freqüentadas pude viver tão solitário e retirado como nos desertos mais remotos QUARTA PARTE 1 Não sei se deva falarvos das primeiras meditações que aí realizei pois são tão metafísicas e tão pouco comuns que não serão talvez do gosto de todo mundo E todavia a fim de que se possa julgar se os fundamentos que escolhi são bastante firmes vejome de alguma forma compelido a falarvos delas De há muito observara que quanto aos costumes é necessário às vezes seguir opiniões que sabemos serem muito incertas tal como se fossem indubitáveis como já foi dito acima mas por desejar então ocuparme somente com a pesquisa da verdade pensei que era necessário agir exatamente ao contrário e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida52 a fim de ver se após isso não restaria algo em meu crédito que fosse inteiramente indubitável Assim porque os nossos sentidos nos enganam às vezes quis supor que não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar E porque há homens que se equivocam ao raciocinar mesmo no tocante às mais simples matérias de Geometria e cometem aí paralogismos rejeitei como falsas julgando que estava sujeito a falhar como qualquer outro todas as razões que eu tomara até então por demonstrações E enfim considerando que todos os mesmos pensamentos que temos quando despertos nos podem também ocorrer quando dormimos sem que haja nenhum nesse caso que seja verdadeiro resolvi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que 51 Início da estada na Holanda no outono de 1628 que durará até a partida para a Suécia em 1649 52 Está portanto sujeito à dúvida não só aquilo de que eu duvido de fato mas também aquilo de que poderia duvidar de direito espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos Mas logo em seguida adverti que enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso cumpria necessariamente que eu que pensava53 fosse alguma coisa E notando que esta verdade eu penso logo existo54 era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar julguei que podia aceitála sem escrúpulo como o primeiro princípio da Filosofia que procurava 2 Depois examinado com atenção o que eu era e vendo que podia supor que não tinha corpo algum e que não havia qualquer mundo ou qualquer lugar onde eu existisse mas que nem por isso podia supor que não existia e que ao contrário pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas seguiase mui evidente e mui certamente que eu existia ao passo que se apenas houvesse cessado de pensar embora tudo o mais que alguma vez imaginara fosse verdadeiro já não teria razão alguma de crer que eu tivesse existido compreendi por aí que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar e que para ser não necessita de nenhum lugar nem depende de qualquer coisa material De sorte que esse eu isto é a alma55 pela qual sou o que sou é inteiramente distinta do corpo e mesmo que é mais fácil de conhecer do que ele e ainda que este nada fosse ela não deixaria de ser tudo o que é 3 Depois disso considerei em geral o que é necessário a uma proposição para ser verdadeira e certa pois como acabava de encontrar uma que eu sabia ser exatamente assim pensei que devia saber também em que consiste essa certeza56 E tendo notado que nada há no eu penso logo existo que me assegure de que digo a verdade exceto que vejo muito claramente que para pensar é preciso existir57 julguei poder tomar por regra geral que as coisas que concebemos mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras havendo apenas alguma dificuldade em notar bem quais são as que concebemos 4 Em seguida tendo refletido sobre aquilo que eu duvidava e que por conseqüência meu ser não era totalmente perfeito pois via claramente que o conhecer é perfeição maior do que o duvidar deliberei procurar de onde aprendera a pensar em algo 53 Cumpre notar que Descartes não diz duvido logo sou A dúvida não importa como ato mas como conhecimento do fato de que eu duvido 54 O Cogito não é um raciocínio é uma constatação de fato Por que então se emprega aqui o termo logo Descartes dá ao Cogito o aspecto de um raciocínio toda vez que deseja pôr em relevo o caráter necessário da ligação que o mesmo contém Gueroult op cit II 309 55 Descartes nas Segundas Respostas declara que preferiu mens a anima no texto latino Mens designa apenas o entendimento Neste parágrafo Descartes insiste na substancialidade da alma como puro pensamento heterógena à substância do corpo mas estabelece também a natureza puramente intelectual da alma mais perfeito do que eu era e conheci com evidência que devia ser de alguma natureza que fosse de fato mais perfeita No concernente aos pensamentos que tinha de muitas outras coisas fora de mim como do céu da terra da luz do calor e de mil outras não me era tão difícil saber de onde vinham porque não advertindo neles nada que me parecesse tornálos superiores a mim podia crer que se fossem verdadeiros seriam dependências de minha natureza na medida em que esta possuía alguma perfeição e se não o eram que eu os tinha do nada isto é que estavam em mim pelo que eu possuía de falho Mas não podia acontecer o mesmo com a idéia de um ser mais perfeito do que o meu pois tirála do nada era manifestamente impossível e visto que não há menos repugnância em que o mais perfeito seja uma conseqüência e uma dependência do menos perfeito do que em admitir que do nada procede alguma coisa eu não podia tirála tampouco de mim próprio De forma que restava apenas que tivesse sido posta em mim por uma natureza que fosse verdadeiramente mais perfeita do que a minha e que mesmo tivesse em si todas as perfeições de que eu poderia ter alguma idéia isto é para explicarme numa palavra que fosse Deus58 A isso acrescentei que dado que conhecia algumas perfeições que não possuía eu não era o único ser que existia usarei aqui livremente se vos aprouver alguns termos da Escola mas que devia necessariamente haver algum outro mais perfeito do qual eu dependesse e de quem eu tivesse recebido tudo o que possuía59 Pois se eu fosse só e independente de qualquer outro de modo que tivesse recebido de mim próprio todo esse pouco pelo qual participava do Ser perfeito poderia receber de mim pela mesma razão todo o restante que sabia faltarme e ser assim eu próprio infinito eterno imutável onisciente todopoderoso e enfim ter todas as perfeições que podia notar existirem em Deus Pois segundo os raciocínios que acabo de fazer para conhecer a natureza de Deus tanto quanto a minha o era capaz bastava considerar acerca de todas as coisas de que achava em mim qualquer idéia se era ou não perfeição possuílas e estava seguro de que nenhuma das que eram marcadas por alguma imperfeição existia nele mas que todas as outras existiam Assim eu via que a dúvida a inconstância a tristeza e coisas semelhantes não podiam existir nele dado que eu próprio estimaria muito estar isento delas Além disso eu tinha idéias de muitas 57 Gueroult op cit II 30710 mostra que o princípio Para pensar é preciso ser não é a premissa maior de um raciocínio como seria Tudo o que pensa é Tratase de um adágio sem o qual eu não teria consciência da ligação necessária entre Cogito e Sum mas em contrapartida sem o Cogito eu tampouco teria consciência deste adágio Por que supor pergunta Descartes que o conhecimento das proposições particulares deve sempre ser deduzido de universais 58 Interrogação sobre a origem da idéia do perfeito que há em meu espírito Fica estabelecido que 1º esta idéia não pode provir do nada que há em mim em virtude do princípio ex nihilo nihil gignit 2º que ela não pode vir de mim ser imperfeito não pode haver mais realidade no efeito do que na causa ao passo que esta solução seria possível para as idéias que eu tenho das coisas externas Donde 1º existência de outra natureza fora de mim 2º que contém todas as perfeições coisas sensíveis e corporais pois embora supusesse que estava sonhando e que tudo quanto via e imaginava era falso não podia negar contudo que as idéias a respeito não existissem verdadeiramente em meu pensamento mas por já ter reconhecido em mim mui claramente que a natureza inteligente é distinta da corporal considerando que toda a composição testemunha dependência e que a dependência é manifestamente um defeito60 julguei por aí que não podia ser uma perfeição em Deus o ser composto dessas duas naturezas e que por conseguinte ele não o era61 mas que se haviam alguns corpos no mundo ou então algumas inteligências ou outras naturezas que não fossem inteiramente perfeitos seu ser deveria depender do poder de Deus de tal sorte que não pudessem subsistir sem ele um só momento62 5 Quis procurar depois disso outras verdades e tendome proposto o objeto dos geômetras que eu concebia como um corpo contínuo63 ou um espaço infinitamente extenso em comprimento largura e altura ou profundidade divisível em diversas partes que podiam ter diferentes figuras e grandezas e ser movidas ou transpostas de todas as maneiras pois os geômetras supõem tudo isto em seu objeto percorria algumas de suas mais simples demonstrações E tendo notado que essa grande certeza que todo o mundo lhes atribui se funda apenas no fato de serem concebidas com evidência segundo a regra que há pouco expressei notei também que nada havia nelas que me assegurasse a existência de seu objeto Pois por exemplo eu via muito bem que supondo um triângulo cumpria que seus três ângulos fossem iguais a dois retos mas apesar disso nada via que garantisse haver no mundo qualquer triângulo Ao passo que voltando a examinar a idéia que tinha de um Ser perfeito verificava que a existência estava aí inclusa da mesma forme como na de um triângulo está incluso serem seus três ângulos iguais a dois retos ou na de uma esfera serem todas as suas partes igualmente distantes do seu centro ou mesmo ainda 59 Deus é agora considerado como o meu Criador que me mantém no ser e não mais como o autor da idéia de Deus em mim existente 60 Composição implica dependência das partes umas em relação às outras e do todo em relação às partes 61 Para conceber a infinita perfeição de Deus cumpre atribuirlhes todas as perfeições das quais possuímos apenas fragmentos e excluir dele as imperfeições que há em nós 62 Evocação da doutrina da criação contínua a o tempo é radicalmente descontínuo o tempo presente não depende do precedente b em cada um desses momentos descontínuos o estado do mundo e meu pensamento são conservados no ser por Deus Tese ligada à negação das formas substanciais Enquanto para Santo Tomás Deus instituiu uma ordem das coisas tal que algumas dependem de outras pelas quais elas são secundariamente conservadas no ser Descartes afirma não haver nenhuma virtude por meio da qual eu possa fazer com que eu que sou agora seja ainda um instante após mais evidentemente e que por conseguinte é pelo menos tão certo64 que Deus que é esse Ser perfeito é ou existe quanto sêloia qualquer demonstração de Geometria 6 Mas o que leva muitas pessoas a se persuadirem de que há dificuldade conhecê lo e mesmo também em conhecer o que é sua alma é o fato de nunca elevarem o espírito além das coisas sensíveis e de estarem de tal forma acostumados a nada considerar senão imaginando que é uma forma de pensar particular às coisas materiais que tudo quanto não é imaginável lhes parece não ser inteligível E isto é assaz manifesto pelo fato de os próprios filósofos terem por máxima nas escolas que nada há no entendimento que não haja estado primeiramente nos sentidos65 onde todavia é certo que as idéias de Deus e da alma jamais estiveram E me parece que todos os que querem usar a imaginação para compreendêlas procedem do mesmo modo que se para ouvir os sons ou sentir os odores quisessem servirse dos olhos exceto com esta diferença ainda que o sentido da vista não nos garante menos a verdade de seus objetos do que os do olfato ou da audição ao passo que a nossa imaginação ou os nossos sentidos nunca poderiam assegurarnos de qualquer coisa se o nosso entendimento não interviesse 7 Enfim se há ainda homens que não estejam bem persuadidos da existência de Deus e da alma com as razões que apresentei quero que saibam que todas as outras coisas das quais se julgam talvez certificados como a de terem um corpo haver astros e uma terra e coisas semelhantes são ainda menos certas Pois embora se possua dessas coisas uma certeza moral que é de tal ordem que exceto sendose extravagante parece impossível pôla em dúvida todavia quando se trata de certeza metafísica66 não se pode negar a não ser que sejamos desarrazoados que é motivo suficiente para não estarmos inteiramente seguros a respeito o fato de se advertir que podemos do mesmo modo imaginar quando adormecidos que temos outro corpo que vemos outros astros e outra terra sem que na realidade assim o seja Pois de onde sabemos que os pensamentos que ocorrem em sonhos são mais falsos do que os outros se muitos não são amiúde menos vivos e nítidos 63 Um corpo absolutamente pleno não sendo o corpo senão extensão a extensão que separasse duas partes de matéria seria ela própria um corpo 64 Exposição da prova a priori ainda mais evidente porque a inclusão da existência necessária na essência de Deus é uma relação ainda mais simples do que as relações geométricas citadas ela é antes comparável às verdades matemáticas indemonstráveis Pelo menos tão certo significa mais certo é possível estar seguro da existência de Deus sem o estar da verdade dos teoremas matemáticos não sendo o inverso verdadeiro 65 Adágio escolástico Toda essa passagem constitui um ataque ao excessivo papel concedido pelo aristotelismo e pelo tomismo à imaginação Em Metafísica e na Matemática a imaginação não poderia se de qualquer serventia 66 Distinção entre certeza moral suficiente para a vida prática e metafísica quando pensamos que não é de modo algum possível que a coisa seja diferente do que julgamos No primeiro plano seria loucura duvidar da existência das coisas sensíveis no segundo é leviandade estar seguro delas E ainda que os melhores espíritos estudem o caso tanto quanto lhes aprouver não creio que possam dar qualquer razão que seja suficiente para desfazer essa dúvida se não pressupuserem a existência de Deus Pois em primeiro lugar aquilo mesmo que há pouco tomei como regra a saber que as coisas que concebemos mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras não é certo senão ser porque Deus é ou existe e é um ser perfeito e porque tudo o que existe em nós nos vem dele Donde se segue que as nossas idéias ou noções sendo coisas reais e provenientes de Deus em tudo em que são claras e distintas só podem por isso ser verdadeiras De sorte que se temos muitas vezes outras que contêm falsidade só podem ser as que possuem algo de confuso e obscuro porque nisso participam do nada isto é são assim confusas em nós porque nós não somos de todo perfeitos E é evidente que não repugna menos admitir que a falsidade ou a imperfeição procedam de Deus como tal do que admitir que a verdade ou a perfeição procedam do nada Ma se não soubéssemos de modo algum que tudo quanto existe em nós de real e verdadeiro provém de um ser perfeito e infinito por claras e distintas que fossem nossas idéias não teríamos qualquer razão que nos assegurasse que elas possuem a perfeição de serem verdadeiras67 8 Ora depois que o conhecimento de Deus e da alma nos tenha assim dado certeza dessa regra é muito fácil compreender que os sonhos que imaginamos quando dormimos não devem de modo algum levarnos a duvidar da verdade dos pensamentos que temos quando acordados Pois se acontecesse que mesmo dormindo tivéssemos alguma idéia muito distinta como por exemplo que um geômetra inventasse qualquer nova demonstração o sono deste não a impediria de ser verdadeira E quanto ao erro mais comum de nossos sonhos que consiste em nos representarem diversos objetos tal como fazem nossos sentidos exteriores não importa que ele nos dê ocasião de desconfiar da verdade de tais idéias porque estas também podem nos enganar repetidas vezes sem que estejamos dormindo como sucede quando os que têm icterícia vêem tudo da cor amarela ou quando os astros ou outros corpos fortemente afastados de nós se nos afiguram muito menores do que são Pois enfim quer estejamos em vigília quer dormindo nunca nos devemos deixar persuadir senão pela evidência de nossa razão68 67 Somente após a prova da existência de um Deus perfeito logo imutável e não enganador portanto garante das idéias claras e distintas é que a regra da evidência e as outras anteriormente descobertas podem ser colocadas como verdadeiras Antes disso gozam apenas de uma certeza subjetiva verdadeiras só quando penso nelas efetivamente 68 Todos os argumentos possíveis do ceticismo são doravante varridos não poderíamos ser sensíveis ao argumento do sonho por exemplo a não ser que ainda concedêssemos nosso crédito às imagens sensíveis Agora só as idéias claras e distintas têm força constrangedora E devese observar que digo de nossa razão e de modo algum de nossa imaginação ou de nossos sentidos Porque da grandeza que o vemos e bem podemos imaginar distintamente uma cabeça de leão enxertada no corpo de uma cabra sem que devamos concluir por isso que no mundo há uma quimera pois a razão não nos dita que tudo quanto vemos ou imaginamos assim seja verdadeiro mas nos dita realmente que todas as nossas idéias ou noções devem ter algum fundamento de verdade pois não seria possível que Deus que é todo perfeito e verídico as houvesse posto em nós sem isso E pelo fato de nossos raciocínios jamais serem tão evidentes nem tão completos durante o sono como durante a vigília ainda de que às vezes nossas imaginações sejam tanto ou mais vivas e expressas ela nos dita também que não podendo nossos pensamentos serem inteiramente verdadeiros porque não somos de todo perfeitos tudo o que eles encerram de verdade deve encontrarse infalivelmente naquele que temos quando acordados mais do que em nossos sonhos embora vejamos o sol mui claramente não devemos julgar por isso que ele seja apenas empregos da terra MICHEL Foucault A Arqueologia DO Saber FORENSE UNIVERSITÁRIA 7ª EDIÇÃO A Arqueologia DO Saber Coleção Campo Teórico Dirigida por Manoel Barros da Motta e Severino Bezerra Cabral Filho Da mesma coleção Do Mundo Fechado ao Universo Infinito Alexandre Koyré Estudos de História do Pensamento Científico Alexandre Koyré Estudos de História do Pensamento Filosófico Alexandre Koyré O Normal e o Patológico Georges Canguilhem O Nascimento da Clínica Michel Foucault Da Psicose Paranóica em suas Relações com a Personalidade Jacques Lacan Teoria e Clínica da Psicose Antonio Quinet Michel Foucault Uma Trajetória Filosófica Paul Rabinow e Hubert Dreyfus Raymond Roussel Michel Foucault MICHEL Foucault A Arqueologia DO Saber 7ª EDIÇÃO Tradução Luiz Felipe Baeta Neves FORENSE UNIVERSITÁRIA 7ª edição 3ª reimpressão 2008 Copyright Éditions Gallimard 1969 Traduzido de LArchéologie du Savoir Capa Mello Mayer Editoração eletrônica Textos Formas CIPBrasil Catalogaçãonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ FS6a Foucault Michel 19261984 7ed A arqueologia do sabeiMichel Foucault tradução de Luiz Felipe Baeta Neves 7ed Rio de Janeiro Forense Universitária 2008 Campo Teórico Tradução de Larchéologie du Savoir ISBN 9788521803447 1 Teoria do conhecimento I Titulo II Série 032742 CDD 121 CDU 165 Proibida a reprodução total ou parcial de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico ou mecânico sem permissão expressa do Editor Lei n 9610 de 1921998 Reservados os direitos de propriedade desta edição pela EDITORA FORENSE UNIVERSITÁRIA Rio de Janeiro Rua do Rosário 100 Centro CEP 20041002 TelsFax 2509314825097395 São Paulo 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preferência para longos períodos como se sob as peripécias políticas e seus episódios eles se dispusessem a revelar os equilíbrios estáveis e difíceis de serem rompidos os processos irreversíveis as regulações constantes os fenômenos tendenciais que culminam e se invertem após continuidades seculares os movimentos de acumulação e as saturações lentas as grandes bases imóveis e mudas que o emaranhado das narrativas tradicionais recobrira com toda uma densa camada de acontecimentos Para conduzir essa análise os historiadores dispõem de instrumentos que criaram ou receberam modelos de crescimento econômico análise quantitativa dos fluxos de trocas perfis dos desenvolvimentos e das regressões demográficas estudo do clima e de suas oscilações identificação das constantes sociológicas descrição dos ajustamentos técnicos de sua difusão e persistência Estes instrumentos permitiramlhes distinguir no campo da história camadas sedimentares diversas as sucessões lineares que até então tinham sido o objeto da pesquisa foram substituídas por um jogo de interrupções em profundidade Da mobilidade política às lentidões próprias da civilização material os níveis de análises se multiplicaram cada um tem suas rupturas específicas cada um permite um corte que só a ele pertence e à medida que se desce para bases mais profundas as escansões se tornam cada vez maiores Por trás da história desordenada dos governos das guerras e da fome desenhamse histórias quase imóveis ao olhar histórias com um suave declive história dos caminhos marítimos história do trigo ou das minas de ouro história da seca e da irrigação história da rotação das culturas história do equilíbrio obtido pela espécie humana entre a fome e a proliferação As velhas questões de análise tradicional Que ligação estabelecer entre 4 Michel Foucault acontecimentos díspares Como estabelecer entre eles uma sequência necessária Que continuidade os atravessa ou que significação de conjunto acabamos por formar Podese definir uma totalidade ou é preciso limitarse a reconstituir encadeamentos são substituídas de agora em diante por interrogações de outro tipo Que estratos é preciso isolar uns dos outros Que tipos de séries instaurar Que critérios de periodização adotar para cada uma delas Que sistema de relações hierarquia dominância escalonamento determinação unívoca causalidade circular pode ser descrito entre uma e outra Que séries de séries podem ser estabelecidas E em que quadro de cronologia ampla podem ser determinadas sequências distintas de acontecimentos Ora mais ou menos na mesma época nessas disciplinas chamadas histórias das idéias das ciências da filosofia do pensamento e da literatura a especificidade de cada uma pode ser negligenciada por um instante nessas disciplinas que apesar de seu título escapam em grande parte ao trabalho do historiador e a seus métodos a atenção se deslocou ao contrário das vastas unidades descritas como épocas ou séculos para fenômenos de ruptura Sob as grandes continuidades do pensamento sob as manifestações maciças e homogêneas de um espírito ou de uma mentalidade coletiva sob o devir obstinado de uma ciência que luta apaixonadamente por existir e por se aperfeiçoar desde seu começo sob a persistência de um gênero de uma forma de uma disciplina de uma atividade teórica procurase agora detectar a incidência das interrupções cuja posição e natureza são aliás bastante diversas Atos e liminares epistemológicos descritos por G Bachelard suspendem o acúmulo indefinido dos conhecimentos quebram sua lenta maturação e os introduzem em um tempo novo os afastam de sua origem empírica e de suas motivações iniciais e os purificam de suas cumplicidades imaginárias prescrevem desta forma para a análise histórica não mais a pesquisa dos começos silenciosos não mais a regressão sem fim em direção aos primeiros precursores mas a identificação de um novo tipo de racionalidade e de seus efeitos múltiplos Deslocamentos e transformações dos conceitos as análises de G Canguilhem podem servir de modelo pois mostram que a história de um conceito não é de forma A Arqueologia do Saber 5 alguma a de seu refinamento progressivo de sua racionalidade continuamente crescente de seu gradiente de abstração mas a de seus diversos campos de constituição e de validade a de suas regras sucessivas de uso a dos meios teóricos múltiplos em que foi realizada e concluída sua elaboração Distinção feita igualmente por G Canguilhem entre as escalas micro e macroscópicas da história das ciências onde os acontecimentos e suas consequências não se distribuem da mesma forma assim uma descoberta o remanejamento de um método a obra de um intelectual e também seus fracassos não têm a mesma incidência e não podem ser descritos da mesma forma em um e em outro nível onde a história contada não é a mesma Redistribuições recorrentes que fazem aparecer vários passados várias formas de encadeamento várias hierarquias de importância várias redes de determinações várias ideologias para uma única e mesma ciência à medida que seu presente se modifica assim as descrições históricas se ordenam necessariamente pela atualidade do saber se multiplicam com suas transformações e não deixam por sua vez de romper com elas próprias M Serres acaba de apresentar a teoria desse fenômeno no domínio da matemática Unidades arquitetônicas dos sistemas tais como foram analisadas por M Guéroult e para as quais a descrição das influências das tradições das continuidades culturais não é pertinente como o é a das coerências internas a dos axiomas das cadeias dedutivas das compatibilidades Finalmente as escansões mais radicais são sem dúvida os cortes efetuados por um trabalho de transformação teórica quando funda uma ciência destacandoa da ideologia de seu passado e revelando este passado como ideológico1 A isso seria necessário acrescentar é evidente a análise literária considerada daqui por diante como unidade não a alma ou a sensibilidade de uma época nem os grupos as escolas as gerações ou os movimentos nem mesmo o personagem do autor no jogo de trocas que ligou sua vida à sua criação mas sim a estrutura própria de uma obra de um livro de um texto 1Althusser Ponr Marx p 168 6 Michel Foucault E assim o grande problema que se vai colocar que se coloca a tais análises históricas não é mais saber por que caminhos as continuidades se puderam estabelecer de que maneira um único e mesmo projeto pôdese manter e constituir para tantos espíritos diferentes e sucessivos um horizonte único que modo de ação e que suporte implica o jogo das transmissões das retomadas dos esquecimentos e das repetições como a origem pode estender seu reinado bem além de si própria e atingir aquele desfecho que jamais se deu o problema não é mais a tradição e o rastro mas o recorte e o limite não é mais o fundamento que se perpetua e sim as transformações que valem como fundação e renovação dos fundamentos Vêse então o espraiamento de todo um campo de questões algumas já familiares pelas quais essa nova forma de história tenta elaborar sua própria teoria como especificar os diferentes conceitos que permitem avaliar a descontinuidade limiar ruptura corte mutação transformação Através de que critérios isolar as unidades com que nos relacionamos O que é uma ciência O que é uma obra O que é uma teoria O que é um conceito O que é um texto Como diversificar os níveis em que podemos colocarnos cada um deles compreendendo suas escansões e sua forma de análise Qual é o nível legítimo da formalização Qual é o da interpretação Qual é o da análise estrutural Qual é o das determinações de causalidade Em suma a história do pensamento dos conhecimentos da filosofia da literatura parece multiplicar as rupturas e buscar toda as perturbações da continuidade enquanto a história propriamente dita a história pura e simplesmente parece apagar em benefício das estruturas fixas a irrupção dos acontecimentos Mas que este entrecruzamento não nos iluda Não imaginemos com fé nas aparências que algumas das disciplinas históricas caminharam do contínuo ao descontínuo enquanto outras iam do formigamento das descontinuidades às grandes unidades ininterruptas não imaginemos que na análise da política das instituições ou da economia fomos cada vez mais sensíveis às determinações globais mas sim que na A Arqueologia do Saber 7 análise das idéias e do saber prestamos uma atenção cada vez maior aos jogos da diferença não acreditemos que ainda uma vez essas duas grandes formas de descrição se cruzaram sem se reconhecerem Na verdade os problemas colocados são os mesmos provocando entretanto na superfície efeitos inversos Podemse resumir esses problemas em uma palavra a crítica do documento Nada de malentendidos é claro que desde que existe uma disciplina como a história temonos servido de documentos interrogamolos interrogamonos a seu respeito indagamoslhes não apenas o que eles queriam dizer mas se eles diziam a verdade e com que direito podiam pretendêlo se eram sinceros ou falsificadores bem informados ou ignorantes autênticos ou alterados Mas cada uma dessas questões e toda essa grande inquietude crítica apontavam para um mesmo fim reconstituir a partir do que dizem estes documentos às vezes com meiaspalavras o passado de onde emanam e que se dilui agora bem distante deles o documento sempre era tratado como a linguagem de uma voz agora reduzida ao silêncio seu rastro frágil mas por sorte decifrável Ora por uma mutação que não data de hoje mas que sem dúvida ainda não se concluiu a história mudou sua posição acerca do documento ela considera como sua tarefa primordial não interpretálo não determinar se diz a verdade nem qual é seu valor expressivo mas sim trabalhálo no interior e elaborálo ela o organiza recorta distribui ordena e reparte em níveis estabelece séries distingue o que é pertinente do que não é identifica elementos define unidades descreve relações O documento pois não é mais para a história essa matéria inerte através da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram o que é passado e o que deixa apenas rastros ela procura definir no próprio tecido documental unidades conjuntos séries relações É preciso desligar a história da imagem com que ela se deleitou durante muito tempo e pela qual encontrava sua justificativa antropológica a de uma memória milenar e coletiva que se servia de documentos materiais para reencontrar o frescor de suas lembranças ela é o trabalho e a utilização de uma materialidade documental livros textos narrações registros atas edifícios instituições regulamentos técnicas objetos costumes etc que apresenta sempre e em toda a parte em qualquer 8 Michel Foucault sociedade formas de permanências quer espontâneas quer organizadas O documento não é o feliz instrumento de uma história que seria em si mesma e de pleno direito memória a história é para uma sociedade uma certa maneira de dar status e elaboração à massa documental de que ela não se separa Digamos para resumir que a história em sua forma tradicional se dispunha a memorizar os monumentos do passado transformálos em documentos e fazer falarem estes rastros que por si mesmos raramente são verbais ou que dizem em silêncio coisa diversa do que dizem em nossos dias a história é o que transforma os documentos em monumentos e que desdobra onde se decifravam rastros deixados pelos homens onde se tentava reconhecer em profundidade o que tinham sido uma massa de elementos que devem ser isolados agrupados tornados pertinentes interrelacionados organizados em conjuntos Havia um tempo era que a arqueologia como disciplina dos monumentos mudos dos rastros inertes dos objetos sem contexto e das coisas deixadas pelo passado se voltava para a história e só tomava sentido pelo restabelecimento de um discurso histórico poderíamos dizer jogando um pouco com as palavras que a história em nossos dias se volta para a arqueologia para a descrição intrínseca do monumento Isso tem várias consequências Inicialmente o efeito de superfície que já se assinalou a multiplicação das rupturas na história das idéias a exposição dos períodos longos na história propriamente dita Esta na verdade sob sua forma tradicional se atribuía como tarefa definir relações de causalidade simples de determinação circular de antagonismo de expressão entre fatos ou acontecimentos datados sendo dada a série tratavase de precisar a vizinhança de cada elemento De agora em diante o problema é constituir séries definir para cada uma seus elementos fixarlhes os limites descobrir o tipo de relações que lhe é específico formularlhes a lei e além disso descrever as relações entre as diferentes séries para constituir assim séries de séries ou quadros daí a multiplicação dos estratos seu desligamento a especificidade do tempo e das cronologias que lhes são próprias daí a necessidade de distinguir não mais apenas acontecimentos importantes com uma longa cadeia de consequências e A Arqueologia do Saber 9 acontecimentos mínimos mas sim tipos de acontecimentos de nível inteiramente diferente alguns breves outros de duração média como a expansão de uma técnica ou uma rarefação da moeda outros finalmente de ritmo lento como um equilíbrio demográfico ou o ajustamento progressivo de uma economia a uma modificação do clima daí a possibilidade de fazer com que apareçam séries com limites amplos constituídas de acontecimentos raros ou de acontecimentos repetitivos O aparecimento dos períodos longos na história de hoje não é um retorno às filosofias da história às grandes eras do mundo ou às fases prescritas pelo destino das civilizações é o efeito da elaboração metodologicamente organizada das séries Ora na história das idéias do pensamento e das ciências a mesma mutação provocou um efeito inverso dissociou a longa série constituída pelo progresso da consciência ou a teleologia da razão ou a evolução do pensamento humano pôs em questão novamente os temas da convergência e da realização colocou em dúvida as possibilidades da totalização Ela ocasionou a individualização de séries diferentes que se justapõem se sucedem se sobrepõem se entrecruzam sem que se possa reduzilas a um esquema linear Assim apareceram em lugar dessa cronologia contínua da razão que se fazia remontar invariavelmente à inacessível origem à sua abertura fundadora escalas às vezes breves distintas umas das outras rebeldes diante de uma lei única frequentemente portadoras de um tipo de história que é própria de cada uma e irredutíveis ao modelo geral de uma consciência que adquire progride e que tem memória Segunda consequência a noção de descontinuidade toma um lugar importante nas disciplinas históricas Para a história em sua forma clássica o descontínuo era ao mesmo tempo o dado e o impensável o que se apresentava sob a natureza dos acontecimentos dispersos decisões acidentes iniciativas descobertas e o que devia ser pela análise contornado reduzido apagado para que aparecesse a continuidade dos acontecimentos A descontinuidade era o estigma da dispersão temporal que o historiador se encarregava de suprimir da história Ela se tornou agora um dos elementos fundamentais da análise histórica onde aparece com um triplo papel Constitui de início uma operação deliberada do historiador e não mais o que recebe involuntariamente do material 10 Michel Foucault que deve tratar pois ele deve pelo menos a título de hipótese sistemática distinguir os níveis possíveis da análise os métodos que são adequados a cada um e as periodizações que lhes convém É também o resultado de sua descrição e não mais o que se deve eliminar sob o efeito de uma análise pois o historiador se dispõe a descobrir os limites de um processo o ponto de inflexão de uma curva a inversão de um movimento regulador os limites de uma oscilação o limiar de um funcionamento o instante de funcionamento irregular de uma causalidade circular Ela é enfim o conceito que o trabalho não deixa de especificar em lugar de negligenciálo como uma lacuna uniforme e indiferente entre duas figuras positivas ela toma uma forma e uma função específica de acordo com o domínio e o nível em que é delimitada não se fala da mesma descontinuidade quando se descreve um limiar epistemológico a reversão de uma curva de população ou a substituição de uma técnica por outra Paradoxal noção de descontinuidade é ao mesmo tempo instrumento e objeto de pesquisa delimita o campo de que é o efeito permite individualizar os domínios mas só pode ser estabelecida através da comparação desses domínios Enfim não é simplesmente um conceito presente no discurso do historiador mas este secretamente a supõe de onde poderia ele falar na verdade senão a partir dessa ruptura que lhe oferece como objeto a história e sua própria história Um dos traços mais essenciais da história nova é sem dúvida esse deslocamento do descontínuo sua passagem do obstáculo à prática sua integração no discurso do historiador no qual não desempenha mais o papel de uma fatalidade exterior que é preciso reduzir e sim o de um conceito operatório que se utiliza por isso a inversão de signos graças à qual ele não é mais o negativo da leitura histórica seu avesso seu fracasso o limite de seu poder mas o elemento positivo que determina seu objeto e valida sua análise Terceira consequência o tema e a possibilidade de uma história global começam a se apagar e vêse esboçar o desenho bem diferente do que se poderia chamar uma história geral O projeto de uma história global é o que procura reconstituir a forma de conjunto de uma civilização o princípio material ou espiritual de uma sociedade a significação comum a todos os fenômenos de um período a lei que explica sua coesão o que se chama metaforicamente o rosto de A Arqueologia do Saber 11 uma época Tal projeto está ligado a duas ou três hipóteses supõese que entre todos os acontecimentos de uma área espaçotemporal bem definida entre todos os fenômenos cujo rastro foi encontrado será possível estabelecer um sistema de relações homogêneas rede de causalidade permitindo derivar cada um deles relações de analogia mostrando como eles se simbolizam uns aos outros ou como todos exprimem um único e mesmo núcleo central supõese por outro lado que uma única e mesma forma de historicidade compreenda as estruturas econômicas as estabilidades sociais a inércia das mentalidades os hábitos técnicos os comportamentos políticos e os submeta ao mesmo tipo de transformação supõese enfim que a própria história possa ser articulada em grandes unidades estágios ou fases que detêm em si mesmas seu princípio de coesão São estes postulados que a história nova põe em questão quando problematiza as séries os recortes os limites os desníveis as defasagens as especificidades cronológicas as formas singulares de permanência os tipos possíveis de relação Mas não que ela procure obter uma pluralidade de histórias justapostas e independentes umas das outras a da economia ao lado da das instituições e ao lado delas ainda as das ciências das religiões ou das literaturas não tampouco que ela busque somente assinalar entre essas histórias diferentes coincidências de datas ou analogias de forma e de sentido O problema que se apresenta e que define a tarefa de uma história geral é determinar que forma de relação pode ser legitimamente descrita entre essas diferentes séries que sistema vertical podem formar qual é de umas às outras o jogo das correlações e das dominâncias de que efeito podem ser as defasagens as temporalidades diferentes as diversas permanências em que conjuntos distintos certos elementos podem figurar simultaneamente em resumo não somente que séries mas que séries de séries ou em outros termos que quadros2 é possível constituir Uma descrição global 2 Será preciso assinalar para os mais desatentos que um quadro e sem dúvida em todos os sentidos do termo é formalmente uma série de séries De qualquer forma não se trata de uma pequena imagem fixa que se coloca diante de uma lanterna mágica para grande decepção das crianças que nessa idade preferem é claro a vivacidade do cinema 12 Michel Foucault cinge todos os fenômenos em torno de um centro único princípio significação espírito visão do mundo forma de conjunto uma história geral desdobraria ao contrário o espaço de uma dispersão Finalmente última consequência a história nova encontra um certo número de problemas metodológicos muitos dos quais sem dúvida a antecediam há muito mas cujo feixe agora a caracteriza Entre eles podemse citar a constituição de corpus coerentes e homogêneos de documentos corpus abertos ou fechados acabados ou indefinidos o estabelecimento de um princípio de escolha conforme se queira tratar exaustivamente a massa documental ou se pratique uma amostragem segundo métodos de levantamento estatístico ou se tente determinar antecipadamente os elementos mais representativos a definição do nível de análise e dos elementos que lhe são pertinentes no material estudado podemse salientar as indicações numéricas as referências explícitas ou não a acontecimentos a instituições a práticas as palavras empregadas com suas regras de uso e os campos semânticos por elas traçados ou ainda a estrutura formal das proposições e os tipos de encadeamento que as unem a especificação de um método de análise tratamento quantitativo dos dados decomposição segundo um certo número de traços assinaláveis cujas correlações são estudadas decifração interpretativa análise das frequências e das distribuições a delimitação dos conjuntos e dos subconjuntos que articulam o material estudado regiões períodos processos unitários a determinação das relações que permitem caracterizar um conjunto pode tratarse de relações numéricas ou lógicas de relações funcionais causais analógicas pode tratarse da relação significantesignificado Todos estes problemas fazem parte de agora em diante do campo metodológico da história campo que merece atenção por duas razões Inicialmente porque vemos até que ponto se libertou do que constituía ainda há pouco a filosofia da história e das questões que ela colocava sobre a racionalidade ou a teleologia do devir sobre a relatividade do saber histórico sobre a possibilidade de descobrir ou de dar um sentido à inércia do passado e à totalidade inacabada do presente Em seguida porque coincide em alguns de seus pontos com problemas que se encontram em alguma outra parte nos A Arqueologia do Saber 13 domínios por exemplo da linguística da etnologia da economia da análise literária da mitologia A estes problemas podese atribuir a sigla do estruturalismo Sob várias condições entretanto eles estão longe de cobrir sozinhos o campo metodológico da história de que só ocupam uma parte cuja importância varia com os domínios e os níveis de análises salvo em certo número de casos relativamente limitados eles não foram importados da linguística ou da etnologia conforme o percurso hoje frequente mas nasceram no campo da própria história essencialmente no da história econômica e em virtude das questões que ela colocava enfim não autorizam de modo algum que se fale de uma estruturalização da história ou ao menos de uma tentativa para superar um conflito ou uma oposição entre estrutura e devir já há bastante tempo que os historiadores identificam descrevem e analisam estruturas sem jamais se terem perguntado se não deixavam escapar a viva frágil e fremente história A oposição estruturadevir não é pertinente nem para a definição do campo histórico nem sem dúvida para a definição de um método estrutural Esta mutação epistemológica da história não está ainda acabada Não data de ontem entretanto pois se pode sem dúvida fazer remontar a Marx o seu primeiro momento Mas seus efeitos demoraram Ainda em nossos dias e sobretudo para a história do pensamento ela não foi registrada nem refletida enquanto outras transformações mais recentes puderam sêlo as da linguística por exemplo como se fosse particularmente difícil nesta história que os homens retraçam com suas próprias idéias e com seus próprios conhecimentos formular uma teoria geral da descontinuidade das séries dos limites das unidades das ordens específicas das autonomias e das dependências diferenciadas É como se aí onde estivéramos habituados a procurar as origens a percorrer de volta indefinidamente a linha dos antecedentes a reconstituir tradições a seguir curvas evolutivas a projetar teleologias e a recorrer continuamente às metáforas da vida experimentássemos uma repugnância singular em pensar a diferença em descrever os afastamentos e as dispersões em 14 Michel Foucault desintegrar a forma tranquilizadora do idêntico Ou mais exatamente é como se a partir desses conceitos de limiares mutações sistemas independentes séries limitadas tais como são utilizados de fato pelos historiadores tivéssemos dificuldade em fazer a teoria em deduzir as consequências gerais e mesmo em derivar todas as implicações possíveis É como se tivéssemos medo de pensar o outro no tempo de nosso próprio pensamento Há uma razão para isso Se a história do pensamento pudesse permanecer como o lugar das continuidades ininterruptas se ela unisse continuamente encadeamentos que nenhuma análise poderia desfazer sem abstração se ela tramasse em torno do que os homens dizem e fazem obscuras sínteses que a isso se antecipam o preparam e o conduzem indefinidamente para seu futuro ela seria para a soberania da consciência um abrigo privilegiado A história contínua é o correlato indispensável à função fundadora do sujeito a garantia de que tudo que lhe escapou poderá ser devolvido a certeza de que o tempo nada dispersará sem reconstituílo em uma unidade recomposta a promessa de que o sujeito poderá um dia sob a forma da consciência histórica se apropriar novamente de todas essas coisas mantidas a distância pela diferença restaurar seu domínio sobre elas e encontrar o que se pode chamar sua morada Fazer da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da consciência humana o sujeito originário de todo o devir e de toda prática são as duas faces de um mesmo sistema de pensamento O tempo é aí concebido em termos de totalização onde as revoluções jamais passam de tomadas de consciência Sob formas diferentes esse tema representou um papel constante desde o século XIX proteger contra todas as descentralizações a soberania do sujeito e as figuras gêmeas da antropologia e do humanismo Contra a descentralização operada por Marx pela análise histórica das relações de produção das determinações econômicas e da luta de classes ele deu lugar no final do século XIX à procura de uma história global em que todas as diferenças de uma sociedade poderiam ser conduzidas a uma forma única à organização de uma visão do mundo ao estabelecimento de um sistema de valores a um tipo coerente de civilização À descentralização operada pela genealogia nietzschiana o tema opôs a busca de um A Arqueologia do Saber 15 fundamento originário que fizesse da racionalidade o telos da humanidade e que prendesse a história do pensamento à salvaguarda dessa racionalidade à manutenção dessa teleologia e à volta sempre necessária a este fundamento Enfim mais recentemente quando as pesquisas da psicanálise da linguística da etnologia descentraram o sujeito em relação às leis de seu desejo às formas de sua linguagem às regras de sua ação ou aos jogos de seus discursos míticos ou fabulosos quando ficou claro que o próprio homem interrogado sobre o que era não podia explicar sua sexualidade e seu inconsciente as formas sistemáticas de sua língua ou a regularidade de suas ficções novamente o tema de uma continuidade da história foi reativado uma história que não seria escansão mas devir que não seria jogo de relações mas dinamismo interno que não seria sistema mas árduo trabalho da liberdade que não seria forma mas esforço incessante de uma consciência em se recompor e em tentar readquirir o domínio de si própria até as profundezas de suas condições uma história que seria ao mesmo tempo longa paciência ininterrupta e vivacidade de um movimento que acabasse por romper todos os limites Para tornar válido este tema que opõe à imobilidade das estruturas a seu sistema fechado à sua necessária sincronia a abertura viva da história é preciso evidentemente contestar nas próprias análises históricas o uso da descontinuidade a definição dos níveis e dos limites a descrição das séries específicas a revelação de todo o jogo das diferenças Somos então levados a antropologizar Marx a fazer dele um historiador das totalidades e a reencontrar nele o propósito do humanismo somos levados a interpretar Nietzsche nos termos da filosofia transcendental e a rebaixar sua genealogia no plano de uma pesquisa do originário finalmente somos levados a deixar de lado como se jamais tivesse aflorado todo este campo de problemas metodológicos que a história nova propõe hoje Pois se era tido como certo que a questão das descontinuidades dos sistemas e das transformações das séries e dos limiares se colocava em todas as disciplinas históricas e nas que dizem respeito às idéias ou às ciências tanto quanto nas que dizem respeito à economia e às sociedades como se poderia opor com qualquer aspecto de legitimidade o devir ao sistema o movimento às regulações circulares ou como 16 Michel Foucault se diz era uma irreflexão bem ligeira a história à estrutura É a mesma função conservadora que se encontra em atividade no tema das totalidades culturais pelo qual se criticou e depois distorceu Marx no tema de uma busca do originário que se opôs a Nietzsche antes de se querer transpôlo e no tema de uma história viva contínua e aberta Denunciaremos então a história assassinada cada vez que em uma análise histórica e sobretudo se se trata do pensamento das idéias ou dos conhecimentos virmos serem utilizadas de maneira demasiado manifesta as categorias da descontinuidade e da diferença as noções de limiar de ruptura e de transformação a descrição das séries e dos limites Denunciaremos um atentado contra os direitos imprescritíveis da história e contra o fundamento de toda historicidade possível Mas não devemos nos enganar o que tanto se lamenta não é o desaparecimento da história e sim a supressão desta forma de história que era em segredo mas totalmente referida à atividade sintética do sujeito o que se lamenta é o devir que deveria fornecer à soberania da consciência um abrigo mais seguro menos exposto que os mitos os sistemas de parentesco as línguas a sexualidade ou o desejo o que se lamenta é a possibilidade de reanimar pelo projeto o trabalho do sentido ou o movimento da totalização o jogo das determinações materiais das regras de prática dos sistemas inconscientes das relações rigorosas mas não refletidas das correlações que escapam a qualquer experiência vivida o que se lamenta é o uso ideológico da história pelo qual se tenta restituir ao homem tudo o que há mais de um século continua a lhe escapar Acumulamos todos os tesouros de outrora na velha cidadela desta história acreditamos que ela fosse sólida sacralizamola fizemos dela o lugar último do pensamento antropológico acreditamos poder aí capturar até mesmo aqueles que se tinham encarniçado contra ela acreditamos poder tornálos guardiões vigilantes Mas os historiadores desertaram há muito tempo dessa velha fortaleza e partiram para trabalhar em outro campo percebese mesmo que Marx ou Nietzsche não asseguram a salvaguarda que se lhes tinha confiado Não se deve mais contar com eles para proteger os privilégios nem para afirmar uma vez mais e entretanto só Deus sabe se se teria necessidade disso na aflição de hoje que a história A Arqueologia do Saber 17 pelo menos ela é viva e contínua que ela é para o tema em questão o lugar do repouso da certeza da reconciliação do sono tranquilizado Neste ponto se determina uma empresa cujo perfil foi traçado por Histoire de la folie Naissance de la clinique Les mots et les choses muito imperfeitamente Tratase de uma empresa pela qual se tenta medir as mutações que se operam em geral no domínio da história empresa onde são postos em questão os métodos os limites os temas próprios da história das idéias empresa pela qual se tenta desfazer as últimas sujeições antropológicas empresa que quer em troca mostrar como essas sujeições puderamse formar Estas tarefas foram esboçadas em uma certa desordem e sem que sua articulação geral fosse claramente definida Era tempo de lhes dar coerência ou pelo menos de colocálas em prática O resultado desse exercício é este livro Eis algumas observações antes de começar e para evitar qualquer malentendido Não se trata de transferir para o domínio da história e singularmente da história dos conhecimentos um método estruturalista que foi testado em outros campos de análise Tratase de revelar os princípios e as consequências de uma transformação autóctone que está em vias de se realizar no domínio do saber histórico É bem possível que essa transformação os problemas que ela coloca os instrumentos que utiliza os conceitos que aí se definem os resultados que ela obtém não sejam até certo ponto estranhos ao que se chama análise estrutural Mas não é essa análise que aqui se encontra especificamente em jogo Não se trata e ainda menos de utilizar as categorias das totalidades culturais sejam as visões de mundo os tipos ideais ou o espírito singular das épocas para impor à história e apesar dela as formas da análise estrutural As séries descritas os limites fixados as comparações e as correlações estabelecidas não se apóiam nas antigas filosofias da história mas têm por finalidade colocar novamente em questão as teleologias e as totalizações 18 Michel Foucault Na medida em que se trata de definir um método de análise histórica que esteja liberado do tema antropológico vêse que a teoria que vai ser esboçada agora se encontra com as pesquisas já feitas em uma dupla relação Ela tenta formular em termos gerais e não sem muitas retificações e elaborações os instrumentos que essas pesquisas utilizaram ou criaram para atender às necessidades da causa Mas por outro lado ela se reforça com os resultados então obtidos para definir um método de análise que esteja isento de qualquer antropologismo O solo sobre o qual repousa é o que ela descobriu As pesquisas sobre a loucura e o aparecimento de uma psicologia sobre a doença e o nascimento de uma medicina clínica sobre as ciências da vida da linguagem e da economia foram tentativas de certa forma cegas mas elas se esclareciam sucessivamente não somente porque precisavam pouco a pouco seu método mas porque descobriram neste debate sobre o humanismo e antropologia o ponto de sua possibilidade histórica Em uma palavra esta obra como as que a precederam não se inscreve pelo menos diretamente ou em primeira instância no debate sobre a estrutura confrontada com a gênese a história o devir mas sim no campo em que se manifestam se cruzam se emaranham e se especificam as questões do ser humano da consciência da origem e do sujeito Mas sem dúvida não estaríamos errados em dizer que aqui também se coloca o problema da estrutura Este trabalho não é a retomada e a descrição exata do que se pode ler em Histoire de la folie Naissance de la clinique ou Les mots et les choses Em muitos pontos ele é diferente permitindo também diversas correções e criticas internas De maneira geral Histoire de la folie dedicava uma parte bastante considerável e aliás bem enigmática ao que se designava como uma experiência mostrando assim o quanto permanecíamos próximos de admitir um sujeito anônimo e geral da história Em Naissance de la clinique o recurso à análise estrutural tentado várias vezes ameaçava subtrair a especificidade do problema colocado e o nível característico da arqueologia Enfim em Les mots et les choses a ausência da balizagem metodológica permitiu que se acreditasse em A Arqueologia do Saber 19 análises em termos de totalidade cultural Entristeceme o fato de que eu não tenha sido capaz de evitar esses perigos consolome dizendo que eles estavam inscritos na própria empresa já que para tomar suas medidas ela mesma tinha de se livrar desses métodos diversos e dessas diversas formas de história e depois sem as questões que me foram colocadas3 sem as dificuldades levantadas sem as objeções eu sem dúvida não teria visto desenharse tão clara a empresa à qual quer queira quer não me encontro ligado de agora em diante Daí a maneira precavida claudicante deste texto a cada instante ele se distancia estabelece suas medidas de um lado e de outro tateia em direção a seus limites se choca com o que não quer dizer cava fossos para definir seu próprio caminho A cada instante denuncia a confusão possível Declina sua identidade não sem dizer previamente não sou isto nem aquilo Não se trata de uma crítica na maior parte do tempo nem de uma maneira de dizer que todo mundo se enganou a torto e a direito mas sim de definir uma posição singular pela exterioridade de suas vizinhanças mais do que querer reduzir os outros ao silêncio fingindo que seu propósito é vão tentar definir esse espaço branco de onde falo e que toma forma lentamente em um discurso que sinto como tão precário tão incerto ainda Você não está seguro do que diz Vai novamente mudar deslocarse em relação às questões que lhe são colocadas dizer que as objeções não apontam realmente para o lugar em que você se pronuncia Você se prepara para dizer ainda uma vez que você nunca foi aquilo que era você se critica Você já arranja a saída que lhe permitirá em seu próximo livro ressurgir em outro lugar e zombar como o faz agora não não eu não estou onde você me espreita mas aqui de onde o observo rindo 3 As primeiras páginas deste texto especialmente constituíram sob forma um pouco diferente uma resposta às questões formuladas pelo Cercle dépistémologie de ENS v Colliers pour Vanalyse nº 9 Por outro lado um esboço de certas exposições foi apresentado em resposta aos leitores de Esprit abril 1968 20 Michel Foucault Como Você pensa que eu teria tanta dificuldade e tanto prazer em escrever que eu me teria obstinado nisso cabeça baixa se não preparasse com as mãos um pouco febris o labirinto onde me aventurar deslocar meu propósito abrirlhe subterrâneos enterrálo longe dele mesmo encontrarlhe desvios que resumem e deformam seu percurso onde me perder e aparecer finalmente diante de olhos que eu não terei mais que encontrar Vários como eu sem dúvida escrevem para não ter mais um rosto Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo é uma moral de estado civil ela rege nossos papéis Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever II AS REGULARIDADES DISCURSIVAS 1 AS UNIDADES DO DISCURSO O emprego dos conceitos de descontinuidade de ruptura de limiar de limite de série de transformação coloca a qualquer análise histórica não somente questões de procedimento mas também problemas teóricos São estes os problemas que vão ser aqui estudados as questões de procedimento serão consideradas no curso das próximas pesquisas empíricas se eu tiver pelo menos a oportunidade o desejo e a coragem de empreendêlas Entretanto só serão considerados em um campo particular nessas disciplinas tão incertas de suas fronteiras tão indecisas em seu conteúdo que se chamam história das idéias ou do pensamento ou das ciências ou dos conhecimentos Há em primeiro lugar um trabalho negativo a ser realizado libertarse de todo um jogo de noções que diversificam cada uma à sua maneira o tema da continuidade Elas sem dúvida não têm uma estrutura conceitual bastante rigorosa mas sua função é precisa Assim é a noção de tradição ela visa a dar uma importância temporal singular a um conjunto de fenômenos ao mesmo tempo sucessivos e idênticos ou pelo menos análogos permite repensar a dispersão da história na forma desse conjunto autoriza reduzir a diferença característica de qualquer começo para retroceder sem interrupção na atribuição indefinida da origem graças a ela as 24 Michel Foucault novidades podem ser isoladas sobre um fundo de permanência e seu mérito transferido para a originalidade o gênio a decisão própria dos indivíduos O mesmo ocorre com a noção de influência que fornece um suporte demasiado mágico para poder ser bem analisado aos fatos de transmissão e de comunicação que atribui a um processo de andamento causai mas sem delimitação rigorosa nem definição teórica os fenômenos de semelhança ou de repetição que liga a distância e através do tempo como por intermédio de um meio de propagação unidades definidas como indivíduos obras noções ou teorias Assim também ocorre com as noções de desenvolvimento e de evolução elas permitem reagrupar uma sucessão de acontecimentos dispersos relacionálos a um único e mesmo princípio organizador submetêlos ao poder exemplar da vida com seus jogos de adaptação sua capacidade de inovação a incessante correlação de seus diferentes elementos seus sistemas de assimilação e de trocas descobrir já atuantes em cada começo um princípio de coerência e o esboço de uma unidade futura controlar o tempo por uma relação continuamente reversível entre uma origem e um termo jamais determinados sempre atuantes O mesmo acontece ainda com as noções de mentalidade ou de espírito que permitem estabelecer entre os fenômenos simultâneos ou sucessivos de uma determinada época uma comunidade de sentido ligações simbólicas um jogo de semelhança e de espelho ou que fazem surgir como princípio de unidade e de explicação a soberania de uma consciência coletiva É preciso pôr em questão novamente essas sínteses acabadas esses agrupamentos que na maioria das vezes são aceitos antes de qualquer exame esses laços cuja validade é reconhecida desde o início é preciso desalojar essas formas e essas forças obscuras pelas quais se tem o hábito de interligar os discursos dos homens é preciso expulsálas da sombra onde reinam E ao invés de deixálas ter valor espontaneamente aceitar tratar apenas por questão de cuidado com o método e em primeira instância de uma população de acontecimentos dispersos É preciso também que nos inquietemos diante de certos recortes ou agrupamentos que já nos são familiares É possível admitir tais como são a distinção dos grandes tipos de discurso ou a das formas ou dos gêneros que opõem umas às outras ciência literatura filosofia religião história ficção etc A Arqueologia do Saber 25 e que as tornam espécies de grandes individualidades históricas Nós próprios não estamos seguros do uso dessas distinções no nosso mundo de discursos e ainda mais quando se trata de analisar conjuntos de enunciados que eram na época de sua formulação distribuídos repartidos e caracterizados de modo inteiramente diferente afinal a literatura e a política são categorias recentes que só podem ser aplicadas à cultura medieval ou mesmo à cultura clássica por uma hipótese retrospectiva e por um jogo de analogias formais ou de semelhanças semânticas mas nem a literatura nem a política nem tampouco a filosofia e as ciências articulavam o campo do discurso nos séculos XVII ou XVIII como o articularam no século XIX De qualquer maneira esses recortes quer se trate dos que admitimos ou dos que são contemporâneos dos discursos estudados são sempre eles próprios categorias reflexivas princípios de classificação regras normativas tipos institucionalizados são por sua vez fatos de discurso que merecem ser analisados ao lado dos outros que com eles mantêm certamente relações complexas mas que não constituem seus caracteres intrínsecos autóctones e universalmente reconhecíveis Mas sobretudo as unidades que é preciso deixar em suspenso são as que se impõem da maneira mais imediata as do livro e da obra Aparentemente podese apagálas sem um extremo artifício Não são elas apresentadas da maneira mais exata possível Individualização material do livro que ocupa um espaço determinado que tem um valor econômico e que marca por si mesmo por um certo número de signos os limites de seu começo e de seu fim estabelecimento de uma obra que se reconhece e que se delimita atribuindo um certo número de textos a um autor E no entanto assim que são observadas um pouco mais de perto começam as dificuldades Unidade material do livro Será a mesma quando se trata de uma antologia de poemas de uma coletânea de fragmentos póstumos do Traité des coniques ou de um tomo da Histoire de France de Michelet Será a mesma quando se trata de Un coup de dés do processo de Gilles de Rais do San Marco de Butor ou de um missal católico Em outros termos a unidade material do volume não será uma unidade fraca acessória em relação à unidade discursiva a que ela dá apoio Mas essa unidade discursiva por sua vez será homogênea e 26 Michel Foucault uniformemente aplicável Um romance de Stendhal ou um romance de Dostoiévski não se individualizam como os de La comédie humaine e estes por sua vez não se distinguem uns dos outros como Ulisses da Odisséia É que as margens de um livro jamais são nítidas nem rigorosamente determinadas além do título das primeiras linhas e do ponto final além de sua configuração interna e da forma que lhe dá autonomia ele está preso em um sistema de remissões a outros livros outros textos outras frases nó em uma rede E esse jogo de remissões não é homólogo conforme se refira a um tratado de matemática a um comentário de textos a uma narração histórica a um episódio em um ciclo romanesco em qualquer um dos casos a unidade do livro mesmo entendida como feixe de relações não pode ser considerada como idêntica Por mais que o livro se apresente como um objeto que se tem na mão por mais que ele se reduza ao pequeno paralelepípedo que o encerra sua unidade é variável e relativa Assim que a questionamos ela perde sua evidência não se indica a si mesma só se constrói a partir de um campo complexo de discursos Quanto à obra os problemas por ela levantados são mais difíceis ainda Aparentemente entretanto o que há de mais simples Uma soma de textos que podem ser denotados pelo signo de um nome próprio Ora essa denotação mesmo se forem deixados de lado os problemas da atribuição não é uma função homogênea o nome de um autor denota da mesma maneira um texto que ele próprio publicou com seu nome um texto que apresentou sob pseudônimo um outro que será descoberto após sua morte em rascunho um outro ainda que não passa de anotações uma caderneta de notas um papel A constituição de uma obra completa ou de um opus supõe um certo número de escolhas difíceis de serem justificadas ou mesmo formuladas será que basta juntar aos textos publicados pelo autor os que ele planejava editar e que só permaneceram inacabados pelo fato de sua morte Será preciso incluir também tudo que é rascunho primeiro projeto correções e rasuras dos livros Será preciso reunir esboços abandonados E que importância dar às cartas às notas às conversas relatadas aos propósitos transcritos por seus ouvintes enfim a este imenso formigamento de vestígios verbais que um indivíduo deixa em torno de si no momento de morrer e que falam em um entrecruzamento indefinido tantas A Arqueologia do Saber 27 linguagens diferentes De qualquer forma o nome Mallarmé não se refere da mesma maneira às versões inglesas às traduções de Edgar Poe aos poemas ou às respostas a pesquisas assim não é a mesma relação que existe entre o nome de Nietzsche por um lado e por outro as autobiografias de juventude as dissertações escolares os artigos filológicos Zaratustra Ecce Homo as cartas os últimos cartõespostais assinados por Dionysos ou Kaiser Nietzsche as inumeráveis cadernetas em que se misturam notas de lavanderia e projetos de aforismos Na verdade se se fala com tanto prazer e sem maiores questionamentos sobre a obra de um autor é porque a supomos definida por uma certa função de expressão Admitese que deve haver um nível tão profundo quanto é preciso imaginar no qual a obra se revela em todos os seus fragmentos mesmo os mais minúsculos e os menos essenciais como a expressão do pensamento ou da experiência ou da imaginação ou do inconsciente do autor ou ainda das determinações históricas a que estava preso Mas vêse logo que tal unidade longe de ser apresentada imediatamente é constituída por uma operação que essa operação é interpretativa já que decifra no texto a transcrição de alguma coisa que ele esconde e manifesta ao mesmo tempo que finalmente a operação que determina o opus em sua unidade e por conseguinte a própria obra não será a mesma no caso do autor do Théâtre et son double ou no caso do autor do Tractatus e que assim não é no mesmo sentido que se falará uma obra A obra não pode ser considerada como unidade imediata nem como unidade certa nem como unidade homogênea Finalmente eis a última precaução para colocar fora de circuito as continuidades irrefletidas pelas quais se organizam de antemão os discursos que se pretende analisar renunciar a dois temas que estão ligados um ao outro e que se opõem Um quer que jamais seja possível assinalar na ordem do discurso a irrupção de um acontecimento verdadeiro que além de qualquer começo aparente há sempre uma origem secreta tão secreta e tão originária que dela jamais poderemos nos reapoderar inteiramente Desta forma seríamos fatalmente reconduzidos através da ingenuidade das cronologias a um ponto indefinidamente recuado jamais presente em qualquer história ele mesmo não passaria de seu próprio vazio e a partir dele todos os começos jamais poderiam deixar 28 Michel Foucault de ser recomeço ou ocultação na verdade em um único e mesmo gesto isto e aquilo A esse tema se liga um outro segundo o qual todo discurso manifesto repousaria secretamente sobre um jádito e que este jádito não seria simplesmente uma frase já pronunciada um texto já escrito mas um jamaisdito um discurso sem corpo uma voz tão silenciosa quanto um sopro uma escrita que não é senão o vazio de seu próprio rastro Supõese assim que tudo que o discurso formula já se encontra articulado nesse meiosilêncio que lhe é prévio que continua a correr obstinadamente sob ele mas que ele recobre e faz calar O discurso manifesto não passaria afinal de contas da presença repressiva do que ele diz e esse nãodito seria um vazio minando do interior tudo que se diz O primeiro motivo condena a análise histórica do discurso a ser busca e repetição de uma origem que escapa a toda determinação histórica o outro a destina a ser interpretação ou escuta de um jádito que seria ao mesmo tempo um nãodito É preciso renunciar a todos esses temas que têm por função garantir a infinita continuidade do discurso e sua secreta presença no jogo de uma ausência sempre reconduzida É preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua irrupção de acontecimentos nessa pontualidade em que aparece e nessa dispersão temporal que lhe permite ser repetido sabido esquecido transformado apagado até nos menores traços escondido bem longe de todos os olhares na poeira dos livros Não é preciso remeter o discurso à longínqua presença da origem é preciso tratálo no jogo de sua instância Essas formas prévias de continuidade todas essas sínteses que não problematizamos e que deixamos valer de pleno direito é preciso pois mantêlas em suspenso Não se trata é claro de recusálas definitivamente mas sacudir a quietude cora a qual as aceitamos mostrar que elas não se justificam por si mesmas que são sempre o efeito de uma construção cujas regras devem ser conhecidas e cujas justificativas devem ser controladas definir em que condições e em vista de que análises algumas são legítimas indicar as que de qualquer forma não podem mais ser admitidas Seria bem possível por exemplo que as noções de influência ou de evolução originassem uma crítica que as colocasse por um tempo mais ou menos longo fora de uso Mas a obra o livro ou ainda estas unidades como a ciência ou a literatura será A Arqueologia do Saber 29 preciso sempre dispensálas Será preciso tomálas por ilusões construções sem legitimidade resultados mal alcançados Será preciso desistir de se buscar qualquer apoio nelas mesmo provisoriamente e de lhes dar uma definição Tratase de fato de arrancálas de sua quaseevidência de liberar os problemas que colocam reconhecer que não são o lugar tranquilo a partir do qual outras questões podem ser levantadas sobre sua estrutura sua coerência sua sistematicidade suas transformações mas que colocam por si mesmas todo um feixe de questões Que são Como definilas ou limitálas A que tipos distintos de leis podem obedecer De que articulação são suscetíveis A que subconjuntos podem dar lugar Que fenômenos específicos fazem aparecer no campo do discurso Tratase de reconhecer que elas talvez não sejam afinal de contas o que se acreditava que fossem à primeira vista Enfim que exigem uma teoria e que essa teoria não pode ser elaborada sem que apareça em sua pureza não sintética o campo dos fatos do discurso a partir do qual são construídas E eu mesmo de minha parte nada farei senão isso certamente tomarei por marco inicial unidades inteiramente formadas como a Psicopatologia ou a medicina ou a economia política mas não me colocarei no interior dessas unidades duvidosas para estudarlhes a configuração interna ou as secretas contradições Não me apoiarei nelas senão o tempo necessário para me perguntar que unidades formam com que direito podem reivindicar um domínio que as especifique no espaço e uma continuidade que as individualize no tempo segundo que leis elas se formam sobre o pano de fundo de que acontecimentos discursivos elas se recortam e se finalmente não são em sua individualidade aceita e quase institucional o efeito de superfície de unidades mais consistentes Aceitarei os conjuntos que a história me propõe apenas para questionálos imediatamente para desfazêlos e saber se podemos recompôlos legitimamente para saber se não é preciso reconstituir outros para recolocálos em um espaço mais geral que dissipando sua aparente familiaridade permita fazer sua teoria Uma vez suspensas essas formas imediatas de continuidade todo ura domínio encontrase de fato liberado Tratase de um domínio imenso mas que se pode definir é constituído pelo conjunto de todos os enunciados efetivos quer tenham 30 Michel Foucault sido falados ou escritos em sua dispersão de acontecimentos e na instância própria de cada um Antes de se ocupar com toda certeza de uma ciência ou de romances ou de discursos políticos ou da obra de um autor ou mesmo de um livro o material que temos a tratar em sua neutralidade inicial é uma população de acontecimentos no espaço do discurso em geral Aparece assim o projeto de uma descrição dos acontecimentos discursivos como horizonte para a busca das unidades que aí se formam Essa descrição se distingue facilmente da análise da língua Certamente só podemos estabelecer um sistema linguístico se não o construímos artificialmente utilizando um corpo de enunciados ou uma coleção de fatos de discurso mas tratase então de definir a partir desse conjunto que tem valor de amostra regras que permitam construir eventualmente outros enunciados diferentes daqueles mesmo que tenha desaparecido há muito tempo mesmo que ninguém a fale mais e que tenha sido restaurada a partir de raros fragmentos uma língua constitui sempre um sistema para enunciados possíveis um conjunto finito de regras que autoriza um número infinito de desempenhos O campo dos acontecimentos discursivos em compensação é o conjunto sempre finito e efetivamente limitado das únicas sequências linguísticas que tenham sido formuladas elas bem podem ser inumeráveis e podem por sua massa ultrapassar toda capacidade de registro de memória ou de leitura elas constituem entretanto um conjunto finito Eis a questão que a análise da língua coloca a propósito de qualquer fato de discurso segundo que regras um enunciado foi construído e consequentemente segundo que regras outros enunciados semelhantes poderiam ser construídos A descrição de acontecimentos do discurso coloca uma outra questão bem diferente como apareceu um determinado enunciado e não outro em seu lugar Vêse igualmente que essa descrição do discurso se opõe à história do pensamento Aí também não se pode reconstituir um sistema de pensamento a partir de um conjunto definido de discursos Mas esse conjunto é tratado de tal maneira que se tenta encontrar além dos próprios enunciados a intenção do sujeito falante sua atividade consciente o que ele quis dizer ou ainda o jogo inconsciente que emergiu involuntariamente do que disse ou da quase imperceptível fratura de suas palavras manifestas de qualquer forma tratase de A Arqueologia do Saber 31 reconstituir ura outro discurso de descobrir a palavra muda murmurante inesgotável que anima do interior a voz que escutamos de restabelecer o texto miúdo e invisível que percorre o interstício das linhas escritas e às vezes as desarruma A análise do pensamento é sempre alegórica em relação ao discurso que utiliza Sua questão infalivelmente é o que se dizia no que estava dito A análise do campo discursivo é orientada de forma inteiramente diferente tratase de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação de determinar as condições de sua existência de fixar seus limites da forma mais justa de estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode estar ligado de mostrar que outras formas de enunciação exclui Não se busca sob o que está manifesto a conversa semisilenciosa de um outro discurso devese mostrar por que não poderia ser outro como exclui qualquer outro como ocupa no meio dos outros e relacionado a eles um lugar que nenhum outro poderia ocupar A questão pertinente a uma tal análise poderia ser assim formulada que singular existência é esta que vem à tona no que se diz e em nenhuma outra parte Devemos perguntarnos para que finalmente pode servir essa atitude de manter em suspenso todas as unidades admitidas se se trata em suma de reencontrar as unidades que fingimos questionar no início Na verdade a supressão sistemática das unidades inteiramente aceitas permite inicialmente restituir ao enunciado sua singularidade de acontecimento e mostrar que a descontinuidade não é somente um desses grandes acidentes que produzem uma falha na geologia da história mas já no simples fato do enunciado fazse assim com que ele surja em sua irrupção histórica o que se tenta observar é essa incisão que ele constitui essa irredutível e muito frequentemente minúscula emergência Por mais banal que seja por menos importante que o imaginemos em suas consequências por mais facilmente esquecido que possa ser após sua aparição por menos entendido ou mal decifrado que o suponhamos um enunciado é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente Tratase de um acontecimento estranho por certo inicialmente porque está ligado de um lado a um gesto de escrita ou à articulação de uma palavra mas por outro lado abre para si mesmo uma existência remanescente no campo de uma memória ou na 32 Michel Foucault materialidade dos manuscritos dos livros e de qualquer forma de registro em seguida porque é único como todo acontecimento mas está aberto à repetição à transformação à reativação finalmente porque está ligado não apenas a situações que o provocam e a consequências por ele ocasionadas mas ao mesmo tempo e segundo uma modalidade inteiramente diferente a enunciados que o precedem e o seguem Mas se isolamos em relação à língua e ao pensamento a instância do acontecimento enunciativo não é para disseminar uma poeira de fatos e sim para estarmos seguros de não relacionála com operadores de síntese que sejam puramente psicológicos a intenção do autor a forma de seu espírito o rigor de seu pensamento os temas que o obcecam o projeto que atravessa sua existência e lhe dá significação e podermos apreender outras formas de regularidade outros tipos de relações Relações entre os enunciados mesmo que escapem à consciência do autor mesmo que se trate de enunciados que não têm o mesmo autor mesmo que os autores não se conheçam relações entre grupos de enunciados assim estabelecidos mesmo que esses grupos não remetam aos mesmos domínios nem a domínios vizinhos mesmo que não tenham o mesmo nível formal mesmo que não constituam o lugar de trocas que podem ser determinadas relações entre enunciados ou grupos de enunciados e acontecimentos de uma ordem inteiramente diferente técnica econômica social política Fazer aparecer em sua pureza o espaço em que se desenvolvem os acontecimentos discursivos não é tentar restabelecêlo em um isolamento que nada poderia superar não é fechálo em si mesmo é tornarse livre para descrever nele e fora dele jogos de relações Eis o terceiro interesse de tal descrição dos fatos de discurso libertandoos de todos os grupamentos considerados como unidades naturais imediatas e universais temos a possibilidade de descrever outras unidades mas dessa vez por um conjunto de decisões controladas Contanto que se definam claramente as condições poderia ser legítimo constituir a partir de relações corretamente descritas conjuntos que não seriam arbitrários mas que entretanto teriam permanecido invisíveis Certamente essas relações jamais teriam sido formuladas por elas mesmas nos enunciados em questão diferentemente por exemplo dessas relações explícitas que são A Arqueologia do Saber 33 colocadas e ditas pelo próprio discurso quando assume a forma do romance ou quando se inscreve numa série de teoremas matemáticos Elas entretanto não constituiriam de maneira alguma uma espécie de discurso secreto animando do interior os discursos manifestos não é pois uma interpretação dos fatos enunciativos que poderia trazêlos à luz mas a análise de sua coexistência de sua sucessão de seu funcionamento mútuo de sua determinação recíproca de sua transformação independente ou correlativa Fora de cogitação entretanto está o fato de se poder descrever sem limites todas as relações que possam assim aparecer É preciso numa primeira aproximação aceitar um recorte provisório uma região inicial que a análise revolucionará e reorganizará se houver necessidade Mas como circunscrever essa região Por um lado é preciso empiricamente escolher um domínio em que as relações corram o risco de ser numerosas densas e relativamente fáceis de descrever e em que outra região os acontecimentos discursivos parecem estar mais ligados uns aos outros e segundo relações mais decifráveis senão nesta que se designa em geral pelo termo ciência Mas por outro lado como se dar o máximo de chances de tornar a apreender em um enunciado não o momento de sua estrutura formal e de suas leis de construção mas o de sua existência e das regras de seu aparecimento a menos que nos dirijamos a grupos de discursos pouco formalizados onde os enunciados não pareçam se engendrar necessariamente segundo regras de mera sintaxe Como estarmos certos de que escaparemos de recortes como os da obra de categorias como as da influência a menos que proponhamos desde o início domínios bastante amplos escalas cronológicas bastante vastas Finalmente como estarmos certos de que não nos prenderemos a todas essas unidades ou sínteses pouco refletidas que se referem ao sujeito falante ao sujeito do discurso ao autor do texto enfim a todas essas categorias antropológicas A menos talvez que consideremos o conjunto dos enunciados através dos quais essas categorias se constituíram o conjunto dos enunciados que escolheram como objeto o sujeito dos discursos seu próprio sujeito e que se dispuseram a desenvolvêlo como campo de conhecimentos Assim se explica o privilégio real que dei a discursos dos quais se pode dizer muito esquematicamente que definem as 34 Michel Foucault ciências do homem Mas isso não passa de um privilégio inicial É preciso ter em mente dois fatos a análise dos acontecimentos discursivos não está de maneira alguma limitada a semelhante domínio e por outro lado o recorte do próprio domínio não pode ser considerado como definitivo nem como válido de forma absoluta tratase de uma primeira aproximação que deve permitir o aparecimento de relações que correm o risco de suprimir os limites desse primeiro esboço 2 AS FORMAÇÕES DISCURSIVAS Tentei descrever relações entre enunciados Tive o cuidado de não admitir como válida nenhuma dessas unidades que me podiam ser propostas e que o hábito punha à minha disposição Decidime a não negligenciar nenhuma forma de descontinuidade de corte de limiar ou de limite Decidime a descrever enunciados no campo do discurso e as relações de que são suscetíveis Vejo que duas séries de problemas se apresentam de imediato uma vou deixála em suspenso no momento e a retomarei mais tarde se refere à utilização grosseira que fiz dos termos enunciado acontecimento discurso a outra às relações que podem ser legitimamente descritas entre esses enunciados deixados em seu grupamento provisório e visível Há por exemplo enunciados que se apresentam e isso a partir de uma data que se pode determinar facilmente como referentes à economia política ou à biologia ou à Psicopatologia há também os que se apresentam como pertencentes a essas continuidades milenárias quase sem origem que chamamos gramática ou medicina Mas o que são essas unidades Como se pode dizer que a análise das doenças mentais feita por Willis e pelos clínicos de Charcot pertencem à mesma ordem de discurso Que as invenções de Petty estão numa relação de continuidade com a economia de Neumann Que a análise do juízo feita pelos gramáticos de PortRoyal pertence 36 Michel Foucault ao mesmo domínio da identificação das alternâncias vocálicas nas línguas indoeuropéias O que é então a medicina a gramática a economia política Será que não passam de um reagrupamento retrospectivo pelo qual as ciências contemporâneas se iludem sobre seu próprio passado São formas que se instauraram definitivamente e se desenvolveram soberanamente através do tempo Encobrem outras unidades E que espécie de laços reconhecer validamente entre todos esses enunciados que formam de um modo ao mesmo tempo familiar e insistente uma massa enigmática Primeira hipótese a que me pareceu inicialmente a mais verossímil e a mais fácil de provar os enunciados diferentes em sua forma dispersos no tempo formam um conjunto quando se referem a um único e mesmo objeto Assim parece que os enunciados pertinentes à Psicopatologia referemse a esse objeto que se perfila de diferentes maneiras na experiência individual ou social e que se pode designar por loucura Ora logo percebi que a unidade do objeto loucura não nos permite individualizar um conjunto de enunciados e estabelecer entre eles uma relação ao mesmo tempo descritível e constante E isso ocorre por duas razões Cometeríamos um erro seguramente se perguntássemos ao próprio ser da loucura ao seu conteúdo secreto à sua verdade muda e fechada em si mesma o que se pôde dizer a seu respeito e em um momento dado a doença mental foi constituída pelo conjunto do que foi dito no grupo de todos os enunciados que a nomeavam recortavam descreviam explicavam contavam seus desenvolvimentos indicavam suas diversas correlações julgavamna e eventualmente emprestavamlhe a palavra articulando em seu nome discursos que deviam passar por seus Mas há mais ainda esse conjunto de enunciados está longe de se relacionar com um único objeto formado de maneira definitiva e de conserválo indefinidamente como seu horizonte de idealidade inesgotável o objeto que é colocado como seu correlato pelos enunciados médicos dos séculos XVII ou XVIII não é idêntico ao objeto que se delineia através das sentenças jurídicas ou das medidas policiais da mesma forma todos os objetos do discurso psicopatológico foram modificados desde Pinel ou Esquirol até Bleuler não se trata das mesmas doenças não se trata dos mesmos loucos A Arqueologia do Saber 37 Poderíamos deveríamos talvez concluir a partir dessa multiplicidade dos objetos que não é possível admitir como uma unidade válida para constituir um conjunto de enunciados o discurso referente à loucura Talvez fosse necessário que nos ativássemos apenas aos grupos de enunciados que têm um único e mesmo objeto os discursos sobre a melancolia ou sobre a neurose Mas logo nos daríamos conta de que cada um desses discursos por sua vez constituiu seu objeto e o elaborou até transformálo inteiramente Assim a questão é saber se a unidade de um discurso é feita pelo espaço onde diversos objetos se perfilam e continuamente se transformam e não pela permanência e singularidade de um objeto A relação característica que permitiria individualizar ura conjunto de enunciados referentes à loucura não seria então a regra de emergência simultânea ou sucessiva dos diversos objetos que aí são nomeados descritos analisados apreciados ou julgados A unidade dos discursos sobre a loucura não estaria fundada na existência do objeto loucura ou na constituição de um único horizonte de objetividade seria esse o jogo das regras que tornam possível durante um período dado o aparecimento dos objetos objetos que são recortados por medidas de discriminação e de repressão objetos que se diferenciam na prática cotidiana na jurisprudência na casuística religiosa no diagnóstico dos médicos objetos que se manifestam em descrições patológicas objetos que são limitados por códigos ou receitas de medicação de tratamento de cuidados Além disso a unidade dos discursos sobre a loucura seria o jogo das regras que definem as transformações desses diferentes objetos sua nãoidentidade através do tempo a ruptura que neles se produz a descontinuidade interna que suspende sua permanência De modo paradoxal definir um conjunto de enunciados no que ele tem de individual consistiria em descrever a dispersão desses objetos apreender todos os interstícios que os separam medir as distâncias que reinam entre eles em outras palavras formular sua lei de repartição Segunda hipótese para definir um grupo de relações entre enunciados sua forma e seu tipo de encadeamento Parecerame por exemplo que a ciência médica a partir do século XIX se caracterizava menos por seus objetos ou conceitos do que por um certo estilo um certo caráter constante da 38 Michel Foucault enunciação Pela primeira vez a medicina não se constituía mais de um conjunto de tradições de observações de receitas heterogêneas mas sim de um corpus de conhecimentos que supunha uma mesma visão das coisas um mesmo esquadrinhamento do campo perceptivo uma mesma análise do fato patológico segundo o espaço visível do corpo um mesmo sistema de transcrição do que se percebe no que se diz mesmo vocabulário mesmo jogo de metáforas enfim parecerame que a medicina se organizava como uma série de enunciados descritivos Mas ainda aí foi preciso abandonar essa hipótese inicial e reconhecer que o discurso clínico era não só um conjunto de hipóteses sobre a vida e a morte de escolhas éticas de decisões terapêuticas de regulamentações institucionais de modelos de ensino mas também um conjunto de descrições que este não podia de forma alguma ser abstraído daqueles e que a enunciação descritiva não passava de uma das formulações presentes no discurso médico Foi preciso também reconhecer que essa descrição não parou de se deslocar seja porque de Bichat à patologia celular deslocaramse as escalas e os marcos seja porque da inspeção visual da auscultação e da palpação ao uso do microscópio e dos testes biológicos o sistema da informação foi modificado seja ainda porque da simples correlação anatomoclínica à análise refinada dos processos fisiopatológicos o léxico dos signos e sua decifração foram inteiramente reconstituídos seja finalmente porque o médico pouco a pouco deixou de ser o lugar de registro e de interpretação da informação e porque ao lado dele fora dele constituíramse massas documentárias instrumentos de correlação e técnicas de análise que ele tem certamente de utilizar mas que modificam em relação ao doente sua posição de sujeito observante Todas essas alterações que nos conduzem talvez hoje ao limiar de uma nova medicina depositaramse lentamente no discurso médico no decorrer do século XIX Se se quisesse definir esse discurso por um sistema codificado e normativo de enunciação seria preciso reconhecer que essa medicina se desfez tão logo apareceu e que só conseguiu se formular com Bichat e Laennec Se há unidade o princípio não é pois uma forma determinada de enunciados não seria talvez o conjunto das regras que tornaram possíveis simultânea ou sucessivamente descrições puramente perceptivas mas também A Arqueologia do Saber 39 observações tornadas mediatas por instrumentos protocolos de experiências de laboratórios cálculos estatísticos constatações epidemiológicas ou demográficas regulamentações institucionais prescrições terapêuticas Seria preciso caracterizar e individualizar a coexistência desses enunciados dispersos e heterogêneos o sistema que rege sua repartição como se apóiam uns nos outros a maneira pela qual se supõem ou se excluem a transformação que sofrem o jogo de seu revezamento de sua posição e de sua substituição Outra direção de pesquisa outra hipótese não se poderiam estabelecer grupos de enunciados determinandolhes o sistema dos conceitos permanentes e coerentes que aí se encontram em jogo Por exemplo a análise da linguagem e dos fatos gramaticais não repousaria com os clássicos desde Lancelot até o fim do século XVIII em um número definido de conceitos cujo conteúdo e uso eram estabelecidos de forma definitiva o conceito de juízo definido como a forma geral e normativa de qualquer frase os conceitos de sujeito e de predicativo reagrupados sob a categoria mais geral de nome o conceito de verbo utilizado como equivalente do de ligação lógica o conceito de palavra definido como signo de uma representação etc Seria possível assim reconstituir a arquitetura conceitual da gramática clássica Mas ainda aí logo encontraríamos limites sem dúvida poderíamos descrever com tais elementos apenas as análises feitas pelos autores de PortRoyal logo seríamos obrigados a constatar o aparecimento de novos conceitos alguns entre eles derivaramse talvez dos primeiros mas outros lhes são heterogêneos e alguns até incompatíveis A noção de ordem sintática natural ou inversa a de complemento introduzida no decorrer do século XV11I por Beauzée podem sem dúvida integrarse ainda ao sistema conceitual da gramática de PortRoyal Mas nem a idéia de um valor originariamente expressivo dos sons nem a de um saber primitivo guardado nas palavras e transmitido obscuramente por elas nem a de uma regularidade na mutação das consoantes nem a concepção do verbo como simples nome que permite designar uma ação ou uma operação é compatível com o conjunto dos conceitos que Lancelot ou Duclos podiam usar Será necessário admitir nessas condições que a gramática só aparentemente constitui uma figura coerente e que é uma falsa unidade esse conjunto de enuncia 40 Michel Foucault dos análises descrições princípios e consequências deduções que se perpetuou com esse nome durante mais de um século Entretanto talvez fosse descoberta uma unidade discursiva se a buscássemos não na coerência dos conceitos mas em sua emergência simultânea ou sucessiva em seu afastamento na distância que os separa e eventualmente em sua incompatibilidade Não buscaríamos mais então uma arquitetura de conceitos suficientemente gerais e abstratos para explicar todos os outros e introduzilos no mesmo edifício dedutivo tentaríamos analisar o jogo de seus aparecimentos e de sua dispersão Finalmente a quarta hipótese para reagrupar os enunciados descrever seu encadeamento e explicar as formas unitárias sob as quais eles se apresentam a identidade e a persistência dos temas Em ciências como a economia e a biologia tão voltadas para a polêmica tão permeáveis a opções filosóficas ou morais tão prontas em certos casos à utilização política é legítimo em primeira instância supor que uma certa temática seja capaz de ligar e de animar como um organismo que tem suas necessidades sua força interna e suas capacidades de sobrevivência um conjunto de discursos Será que não se poderia por exemplo constituir como unidade tudo que de Buffon a Darwin constituiu o tema evolucionista Tema de início mais filosófico que científico mais próximo da cosmologia que da biologia tema que dirigiu de longe pesquisas mais do que nomeou recobriu e explicou resultados tema que supunha sempre mais do que dele se sabia mas que forçava a partir dessa escolha fundamental a transformar em saber discursivo o que fora esboçado como hipótese ou como exigência Será que não se poderia falar da mesma forma do tema fisiocrático Idéia que postulava além de qualquer demonstração e antes de qualquer análise o caráter natural das três rendas fundiárias que supunha em consequência o primado econômico e político da propriedade agrária que excluía qualquer análise dos mecanismos da produção industrial que implicava em compensação a descrição do circuito do dinheiro no interior de um Estado de sua distribuição entre as diferentes categorias sociais e dos canais pelos quais voltava à produção que finalmente conduziu Ricardo a se interrogar sobre os casos em que essa tripla renda não aparecia nas condições A Arqueologia do Saber 41 era que poderia formarse e a denunciar em consequência disso o arbitrário do tema fisiocrático Mas a partir de semelhante tentativa somos levados a fazer duas constatações inversas e complementares Em um caso a mesma temática se articula a partir de dois jogos de conceitos de dois tipos de análise de dois campos de objetos perfeitamente diferentes a idéia evolucionista em sua formulação mais geral talvez seja a mesma em Benoit de Maillet Bordeu ou Diderot e em Darwin mas na verdade o que a torna possível e coerente não é de forma alguma da mesma ordem No século XVIII a idéia evolucionista é definida a partir de um parentesco das espécies que forma um continuum prescrito desde o início só as catástrofes da natureza o teriam interrompido ou progressivamente constituído pelo passar do tempo No século XIX o tema evolucionista se refere menos à constituição do quadro contínuo das espécies do que à descrição de grupos descontínuos e à análise das modalidades de interação entre um organismo cujos elementos são solidários e um meio que lhe oferece suas condições reais de vida Tratase de um único tema mas a partir de dois tipos de discurso No caso da fisiocracia ao contrário a escolha de Quesnay repousa exatamente sobre o mesmo sistema de conceitos que a opinião inversa sustentada pelos que podem ser chamados utilitaristas Nessa época a análise das riquezas compreendia um jogo de conceitos relativamente limitado e que era admitido por todos davase a mesma definição da moeda davase a mesma explicação sobre os preços fixavase da mesma maneira o custo de um trabalho Ora a partir desse jogo conceitual único havia duas maneiras de explicar a formação do valor analisandoo a partir da troca ou da remuneração pela jornada de trabalho Essas duas possibilidades inscritas na teoria econômica e nas regras de seu jogo conceitual deram lugar a partir dos mesmos elementos a duas opções diferentes Estaríamos errados sem dúvida em procurar na existência desses temas os princípios de individualização de um discurso Não seria mais indicado buscálos na dispersão dos pontos de escolha que ele deixa livres Não seriam as diferentes possibilidades que ele abre no sentido de reanimar temas já existentes de suscitar estratégias opostas de dar lugar a interesses inconciliáveis de permitir com um jogo de concei 42 Michel Foucault tos determinados desempenhar papéis diferentes Mais do que buscar a permanência dos temas das imagens e das opiniões através do tempo mais do que retraçar a dialética de seus conflitos para individualizar conjuntos enunciativos não poderíamos demarcar a dispersão dos pontos de escolha e definir antes de qualquer opção de qualquer preferência temática um campo de possibilidades estratégicas Eisme pois em presença de quatro tentativas de quatro fracassos e de quatro hipóteses que se revezam Será preciso agora proválas A propósito dessas grandes famílias de enunciados que se impõem a nosso hábito e que designamos como a medicina ou a economia ou a gramática eu me perguntara em que poderiam fundar sua unidade Em um domínio de objetos cheio fechado contínuo geograficamente bem recortado Depareime entretanto com séries lacunares e emaranhadas jogos de diferenças de desvios de substituições de transformações Em um tipo definido e normativo de enunciação Mas encontrei formulações de níveis demasiado diferentes e de funções demasiado heterogêneas para poderem se ligar e se compor em uma figura única e para simular através do tempo além das obras individuais uma espécie de grande texto ininterrupto Em um alfabeto bem definido de noções Mas nos encontramos na presença de conceitos que diferem em estrutura e regras de utilização que se ignoram ou se excluem uns aos outros e que não podem entrar na unidade de uma arquitetura lógica Na permanência de uma temática Ora encontramos em vez disso possibilidades estratégicas diversas que permitem a ativação de temas incompatíveis ou ainda a introdução de um mesmo tema em conjuntos diferentes Daí a idéia de descrever essas dispersões de pesquisar se entre esses elementos que seguramente não se organizam como um edifício progressivamente dedutivo nem como um livro sem medida que se escreveria pouco a pouco através do tempo nem como a obra de um sujeito coletivo não se poderia detectar uma regularidade uma ordem em seu aparecimento sucessivo correlações em sua simultaneidade posições assinaláveis em um espaço comum funcionamento recíproco transformações ligadas e hierarquizadas Tal análise não tentaria isolar para descrever sua estrutura interna pequenas ilhas de coerência não se disporia a suspeitar e trazer à luz os conflitos latentes mas estudaria A Arqueologia do Saber 43 formas de repartição Ou ainda em lugar de reconstituir cadeias de inferência como se faz frequentemente na história das ciências ou da filosofia em lugar de estabelecer quadros de diferenças como fazem os linguistas descreveria sistemas de dispersão No caso em que se puder descrever entre um certo número de enunciados semelhante sistema de dispersão e no caso em que entre os objetos os tipos de enunciação os conceitos as escolhas temáticas se puder definir uma regularidade uma ordem correlações posições e funcionamentos transformações diremos por convenção que se trata de uma formação discursiva evitando assim palavras demasiado carregadas de condições e consequências inadequadas aliás para designar semelhante dispersão tais como ciência ou ideologia ou teoria ou domínio de objetividade Chamaremos de regras deformação as condições a que estão submetidos os elementos dessa repartição objetos modalidade de enunciação conceitos escolhas temáticas As regras de formação são condições de existência mas também de coexistência de manutenção de modificação e de desaparecimento em uma dada repartição discursiva Eis o campo que agora é preciso percorrer eis as noções que é preciso testar e as análises que é preciso empreender Sei que os riscos não são pequenos Eu havia usado para uma primeira marcação certos agrupamentos bastante soltos mas bastante familiares nada me garante que os reencontre no fim da análise nem que descubra o princípio de sua delimitação e de sua individualização não estou certo de que as formações discursivas que isolarei definam a medicina em sua unidade global a economia e a gramática na curva de conjunto de sua destinação histórica não estou certo de que elas não introduzam recortes imprevistos Da mesma forma nada me garante que semelhante discussão poderá dar conta da cientificidade ou da nãocientificidade desses conjuntos discursivos que tomei como ponto de partida e que se apresentam de início com uma certa presunção de racionalidade científica nada me garante que minha análise não se situe em um nível inteiramente diferente constituindo uma descrição irredutível à epistemologia ou à história das ciências Será ainda possível que ao fim de tal empresa não se recuperem essas unidades mantidas em suspenso por zelo metodológico 44 Michel Foucault que sejamos obrigados a dissociar as obras ignorar as influências e as tradições abandonar definitivamente a questão da origem deixar que se apague a presença imperiosa dos autores e que assim desapareça tudo aquilo que constituía a história das idéias O perigo em suma é que em lugar de dar fundamento ao que já existe em lugar de reforçar com traços cheios linhas esboçadas em lugar de nos tranquilizarmos com esse retorno e essa confirmação final em lugar de completar esse círculo feliz que anuncia finalmente após mil ardis e igual número de incertezas que tudo se salvou sejamos obrigados a continuar fora das paisagens familiares longe das garantias a que estamos habituados em um terreno ainda não esquadrinhado e na direção de um final que não é fácil prever O que até então velava pela segurança do historiador e o acompanhava até o crepúsculo o destino da racionalidade e da teleologia das ciências o longo trabalho contínuo do pensamento através do tempo o despertar e o progresso da consciência sua perpétua retomada por si mesma o movimento inacabado mas ininterrupto das totalizações o retorno a uma origem sempre aberta e finalmente a temática históricotranscendental tudo isso não corre o risco de desaparecer liberando à análise um espaço branco indiferente sem interioridade nem promessa 3 A FORMAÇÃO DOS OBJETOS É preciso fazer agora um levantamento das direções abertas e saber se podemos dar conteúdo a esta noção apenas esboçada de regras de formação Vejamos inicialmente a formação dos objetos Para analisála mais facilmente tomemos o exemplo do discurso da Psicopatologia a partir do século XIX corte cronológico que podemos admitir facilmente numa primeira abordagem Signos suficientes nolo indicam Retenhamos apenas dois deles a colocação no início do século de um novo modo de exclusão e de inserção do louco no hospital psiquiátrico e a possibilidade de percorrer de volta a fieira de certas noções atuais até Esquirol Heinroth ou Pinel da paranóia podemos retroceder até a monomania do quociente intelectual à noção primeira da imbecilidade da paralisia geral à encefalite crônica da neurose de caráter à loucura sem delírio enquanto se quisermos seguir mais acima o fio do tempo perdemos logo as pistas os fios se emaranham e a projeção de Du Laurens ou mesmo Van Swieten sob a patologia de Kraepelin ou de Bleuler nada proporciona além de coincidências aleatórias Ora os objetos dos quais a Psicopatologia se ocupou desde essa cesura são muito numerosos em grande parte muito novos mas também bastante precários cambiantes e condenados alguns deles a um rápido desaparecimento ao lado das agitações motoras alucinações e 46 Michel Foucault discursos que se desviam que já eram considerados como manifestações de loucura se bem que fossem reconhecidos delimitados descritos e analisados de outro modo vimos surgir alguns que se referiam a registros até então não utilizados perturbações ligeiras de comportamento aberrações e problemas sexuais fatos de sugestão e de hipnose lesões do sistema nervoso central deficits de adaptação intelectual ou motora criminalidade Em cada um desses registros múltiplos objetos foram nomeados circunscritos analisados depois corrigidos novamente definidos contestados suprimidos Podese estabelecer a regra a que seu aparecimento estava submetido Podese saber segundo que sistema não dedutivo esses objetos puderam se justapor e se suceder para formar o campo retalhado lacunar ou pictórico segundo os pontos da Psicopatologia Qual foi seu regime de existência enquanto objetos de discurso A Seria preciso inicialmente demarcar as superfícies primeiras de sua emergência mostrar onde podem surgir para que possam em seguida ser designadas e analisadas essas diferenças individuais que segundo os graus de racionalização os códigos conceituais e os tipos de teoria vão receber a qualificação de doença alienação anomalia demência neurose ou psicose degenerescência etc Essas superfícies de emergência não são as mesmas nas diferentes sociedades em diferentes épocas e nas diferentes formas de discurso Permanecendo na Psicopatologia do século XIX é provável que elas fossem constituídas pela família pelo grupo social próximo o meio de trabalho a comunidade religiosa que são todos normativos suscetíveis ao desvio que têm uma margem de tolerância e um limiar a partir do qual a exclusão é requerida que têm um modo de designação e de rejeição da loucura que se não transferem para a medicina a responsabilidade da cura e do tratamento pelo menos o fazem com a carga da explicação se bem que organizadas de modo específico essas superfícies de emergência não são novas no século XIX Em compensação foi nessa época sem dúvida que se puseram a funcionar novas superfícies de aparecimento a arte com sua normatividade própria a sexualidade seus desvios em relação a proibições habituais tornamse pela primeira vez objeto de demarcação de descrição e de análise para o discurso psiquiátrico a penalidade enquanto a loucura nas épocas precedentes era cuidadosamente destacada da conduta criminosa e valia como desculpa a criminalidade tornase ela própria e isso desde as famosas monomanias homicidas uma forma de desvio mais ou menos aparentada à loucura Nesses A Arqueologia do Saber 47 campos de diferenciação primeira nas distâncias descontinuidades e limiares que então se manifestam o discurso psiquiátrico encontra a possibilidade de limitar seu domínio de definir aquilo de que fala de darlhe o status de objeto ou seja de fazêlo aparecer de tornálo nomeável e descritível B Seria necessário descrever além disso instâncias de delimitação a medicina como instituição regulamentada como conjunto de indivíduos que constituem o corpo médico como saber e prática como competência reconhecida pela opinião pública a justiça e a administração tornouse no século XIX a instância superior que na sociedade distingue designa nomeia e instaura a loucura como objeto mas não foi a única a representar esse papel a justiça e particularmente a justiça penal com as definições da escusa da irresponsabilidade das circunstâncias atenuantes e com o uso de noções como as de crime passional de hereditariedade de perigo social a autoridade religiosa na medida cm que se estabelece como instância de decisão que separa o místico do patológico o espiritual do corporal o sobrenatural do anormal e na medida em que pratica a direção de consciência mais para um conhecimento dos indivíduos do que para uma classificação casuística das ações e das circunstâncias a crítica literária e artística que no curso do século XIX trata a obra cada vez menos como um objeto de apreciação que deve ser julgado e cada vez mais como uma linguagem que deve ser interpretada e cm que é preciso reconhecer os jogos de expressão de um autor C Analisar finalmente as grades de especificação tratase dos sistemas segundo os quais separamos opomos associamos reagrupamos classificamos derivamos umas das outras as diferentes loucuras como objetos do discurso psiquiátrico essas grades de diferenciação foram no século XIX a alma como grupo de faculdades hierarquizadas vizinhas e mais ou menos interpenetráveis o corpo como volume tridimensional de órgãos ligados por esquemas de dependência e de comunicação a vida e a história dos indivíduos como sequência linear de fases emaranhado de traços conjunto de reativações virtuais repetições cíclicas os jogos das correlações neuropsicológicas como sistemas de projeções recíprocas e campo de causalidade circular Semelhante descrição é por si mesma ainda insuficiente por dois motivos Os planos de emergência que acabamos de demarcar essas instâncias de delimitação ou essas formas de especificação não fornecem inteiramente constituídos e armados objetos que o discurso da Psicopatologia só teria cm seguida que relacionar classificar e nomear eleger recobrir finalmente de uma trama de palavras e frases não são as 48 Michel Foucault famílias com suas normas suas proibições seus limiares de sensibilidade que determinam os loucos e propõem doentes para a análise ou decisão dos psiquiatras não é a jurisprudência que denuncia por ela mesma à medicina mental um delírio paranóico sob um assassinato ou que suspeita de uma neurose em um delito sexual O discurso é algo inteiramente diferente do lugar em que vêm se depositar e se superpor como em uma simples superfície de inscrição objetos que teriam sido instaurados anteriormente Mas a enumeração que acabamos de fazer é insuficiente também por uma segunda razão Ela demarcou uns após outros vários planos de diferenciação em que os objetos do discurso podem aparecer Mas entre eles que relações existem Por que esta enumeração e não outra Que conjunto definido e fechado acreditamos circunscrever desta maneira E como podemos falar de um sistema de formação se conhecemos apenas uma série de determinações diferentes e heterogêneas sem ligações ou relações assinaláveis Na verdade estas duas séries de questões remetem ao mesmo ponto Para compreendêlo restrinjamos ainda o exemplo precedente No domínio com o qual a Psicopatologia se ocupou no século XIX vemos aparecer muito cedo desde Esquirol toda uma série de objetos pertencentes ao registro de delinquência o homicídio e o suicídio os crimes passionais os delitos sexuais certas formas de roubo a vagabundagem e depois através deles a hereditariedade o meio neurógeno os comportamentos de agressão ou de autopunição as perversidades os impulsos criminosos a sugestibilidade etc Não seria adequado dizer que se trata das consequências de uma descoberta descoberta feita um belo dia por um psiquiatra de uma semelhança entre condutas criminosas e comportamento patológico revelação de uma presença dos sinais clássicos da alienação em certos delinquentes Tais fatos estão além da pesquisa atual o problema na realidade é saber o que os tornou possíveis e como essas descobertas puderam ser seguidas de outras que as retomaram corrigiram modificaram ou eventualmente anularam Da mesma forma não seria pertinente atribuir o aparecimento desses objetos novos às normas características da sociedade burguesa do século XIX a um sistema policial e penal reforçado ao estabelecimento de um novo código de justiça criminal à introdução e A Arqueologia do Saber 49 ao uso das circunstâncias atenuantes ao aumento da criminalidade Sem dúvida todos esses processos efetivamente ocorreram mas não puderam por si mesmos formar objetos para o discurso psiquiátrico prosseguindo a descrição nesse nível permaneceríamos desta vez aquém do que se procura Se em nossa sociedade em uma época determinada o delinquente foi psicologizado e patologizado se a conduta transgressora pôde dar lugar a toda uma série de objetos de saber devese ao fato de que no discurso psiquiátrico foi empregado um conjunto de relações determinadas Relação entre planos de especificação como as categorias penais e os graus de responsabilidade diminuída e planos psicológicos de caracterização as faculdades as aptidões os graus de desenvolvimento ou de involução os modos de reagir ao meio os tipos de caracteres adquiridos inatos ou hereditários Relação entre a instância de decisão médica e a instância de decisão judiciária relação complexa para dizer a verdade já que a decisão médica reconhece totalmente a instância judiciária para a definição do crime o estabelecimento das circunstâncias em que se deu e a sanção que merece mas se reserva a análise de sua gênese e a estimativa da responsabilidade envolvida Relação entre o filtro constituído pela interrogação judiciária as informações policiais a investigação e todo o aparelho de informação jurídica e o filtro constituído pelo questionário médico os exames clínicos a pesquisa dos antecedentes e as narrações biográficas Relação entre as normas familiares sexuais penais do comportamento dos indivíduos e o quadro dos sintomas patológicos e doenças de que eles são os sinais Relação entre a restrição terapêutica no meio hospitalar com seus limiares particulares seus critérios de cura sua maneira de delimitar o normal e o patológico e a restrição punitiva na prisão com seu sistema de castigo e de pedagogia seus critérios de boa conduta de recuperação e de libertação São essas relações que atuando no discurso psiquiátrico permitiram a formação de todo um conjunto de objetos diversos Generalizemos o discurso psiquiátrico no século XIX caracterizase não por objetos privilegiados mas pela maneira pela qual forma seus objetos de resto muito dispersos Essa formação é assegurada por um conjunto de relações estabelecidas entre instâncias de emergência de delimitação e de especificação Diremos pois que uma formação discursiva se 50 Michel Foucault define pelo menos quanto a seus objetos se se puder estabelecer um conjunto semelhante se se puder mostrar como qualquer objeto do discurso em questão aí encontra seu lugar e sua lei de aparecimento se se puder mostrar que ele pode dar origem simultânea ou sucessivamente a objetos que se excluem sem que ele próprio tenha de se modificar Daí um certo número de observações e consequências 1 As condições para que apareça um objeto de discurso as condições históricas para que dele se possa dizer alguma coisa e para que dele várias pessoas possam dizer coisas diferentes as condições para que ele se inscreva em um domínio de parentesco com outros objetos para que possa estabelecer com eles relações de semelhança de vizinhança de afastamento de diferença de transformação essas condições como se vê são numerosas e importantes Isto significa que não se pode falar de qualquer coisa em qualquer época não é fácil dizer alguma coisa nova não basta abrir os olhos prestar atenção ou tomar consciência para que novos objetos logo se iluminem e na superfície do solo lancem sua primeira claridade Mas esta dificuldade não é apenas negativa não se deve associála a um obstáculo cujo poder seria exclusivamente de cegar perturbar impedir a descoberta mascarar a pureza da evidência ou a obstinação muda das próprias coisas o objeto não espera nos limbos a ordem que vai liberálo e permitirlhe que se encarne em uma visível e loquaz objetividade ele não preexiste a si mesmo retido por algum obstáculo aos primeiros contornos da luz mas existe sob as condições positivas de um feixe complexo de relações 2 Essas relações são estabelecidas entre instituições processos econômicos e sociais formas de comportamentos sistemas de normas técnicas tipos de classificação modos de caracterização e essas relações não estão presentes no objeto não são elas que são desenvolvidas quando se faz sua análise elas não desenham a trama a racionalidade imanente essa nervura ideal que reaparece totalmente ou em parte quando o imaginamos na verdade de seu conceito Elas não definem a constituição interna do objeto mas o que lhe permite aparecer justaporse a outros objetos situarse em relação a eles definir sua diferença sua irredutibilidade e A Arqueologia do Saber 51 eventualmente sua heterogeneidade enfim ser colocado em um campo de exterioridade 3 Essas relações se distinguem de início das relações que poderiam ser chamadas primárias e que independentemente de qualquer discurso ou de qualquer objeto de discurso podem ser descritas entre instituições técnicas formas sociais etc Afinal sabese que entre a família burguesa e o funcionamento das instâncias e das categorias judiciárias do século XIX há relações analisáveis em si mesmas Ora elas nem sempre podem ser sobrepostas às relações que são formadoras de objetos as relações de dependência que podem ser assinaladas nesse nível primário não se exprimem forçosamente no relacionamento que torna possíveis objetos de discurso Mas é preciso distinguir além disso as relações secundárias que podem estar formuladas no próprio discurso o que por exemplo os psiquiatras do século XIX puderam dizer sobre as relações entre a família e a criminalidade não reproduz sabemos bem o jogo das dependências reais mas não reproduz tampouco o jogo das relações que tornam possíveis e sustentam os objetos do discurso psiquiátrico Assim se abre todo um espaço articulado de descrições possíveis sistema das relações primárias ou reais sistema das relações secundárias ou reflexivas e sistema das relações que podem ser chamadas propriamente de discursivas O problema é fazer com que apareça a especificidade dessas últimas e seu jogo com as outras duas 4 As relações discursivas como se vê não são internas ao discurso não ligam entre si os conceitos ou as palavras não estabelecem entre as frases ou as proposições uma arquitetura dedutiva ou retórica Mas não são entretanto relações exteriores ao discurso que o limitariam ou lhe imporiam certas formas ou o forçariam em certas circunstâncias a enunciar certas coisas Elas estão de alguma maneira no limite do discurso oferecemlhe objetos de que ele pode falar ou antes pois essa imagem da oferta supõe que os objetos sejam formados de um lado e o discurso do outro determinam o feixe de relações que o discurso deve efetuar para poder falar de tais ou tais objetos para poder abordálos nomeálos analisálos classificálos explicálos etc Essas relações 52 Michel Foucault caracterizam não a língua que o discurso utiliza não as circunstâncias era que ele se desenvolve mas o próprio discurso enquanto prática Podese agora encerrar a análise e avaliar até que ponto ela realiza ou igualmente modifica o projeto inicial A propósito dessas figuras de conjunto que de maneira insistente mas confusa se apresentavam como a Psicopatologia a economia a gramática a medicina perguntamonos que espécie de unidade poderia constituílas não seriam elas apenas uma reconstrução extemporânea a partir de obras singulares de teorias sucessivas de noções ou temas alguns dos quais abandonados outros mantidos pela tradição outros ainda encobertos pelo esquecimento e depois redescobertos Não passariam de uma série de empresas ligadas Havíamos procurado a unidade do discurso junto aos próprios objetos à sua distribuição ao jogo de suas diferenças de sua proximidade ou de seu afastamento em resumo junto ao que é dado ao sujeito falante e fomos mandados de volta finalmente para um relacionamento que caracteriza a própria prática discursiva descobrimos assim não uma configuração ou uma forma mas um conjunto de regras que são imanentes a uma prática e a definem em sua especificidade Por outro lado tínhamos usado a título de marco uma unidade como a Psicopatologia se tivéssemos desejado fixarlhe uma data de nascimento e um domínio preciso teria sido necessário sem dúvida reencontrar o aparecimento da palavra definir a que estilo de análise ela poderia aplicarse e como se estabeleceria sua separação por um lado da neurologia e por outro da psicologia O que se descobriu foi uma unidade de um outro tipo que não tem provavelmente as mesmas datas nem a mesma superfície nem as mesmas articulações mas que pode dar conta de um conjunto de objetos para os quais o termo Psicopatologia não passava de uma rubrica reflexiva secundária e classificatória Finalmente a Psicopatologia se apresentava como uma disciplina sempre se renovando sempre marcada por descobertas críticas erros corrigidos o sistema de formação que se definiu permanece estável Mas entendamos não são os objetos que permanecem constantes nem o domínio que formam nem mesmo seu ponto de emergência ou seu modo de caracterização mas o estabelecimento de relação entre as superfícies em que podem A Arqueologia do Saber 53 aparecer em que podem ser delimitados analisados e especificados Nas descrições cuja teoria acabo de tentar fornecer não se trata de interpretar o discurso para fazer através dele uma história do referente No exemplo escolhido não se procura saber quem era louco em tal época em que consistia sua loucura nem se suas perturbações eram idênticas às que nos são hoje familiares Não se questiona se os feiticeiros eram loucos ignorados e perseguidos ou se em um outro momento uma experiência mística ou estética não foi indevidamente medicalizada Não se procura reconstituir o que podia ser a própria loucura tal como se apresentaria inicialmente em alguma experiência primitiva fundamental surda apenas articulada1 e tal como teria sido organizada em seguida traduzida deformada deturpada reprimida talvez pelos discursos e pelo jogo oblíquo frequentemente retorcido de suas operações Sem dúvida semelhante história do referente é possível não se exclui de imediato o esforço para desenterrar e libertar do texto essas experiências prédiscursivas Mas não se trata aqui de neutralizar o discurso transformálo em signo de outra coisa e atravessarlhe a espessura para encontrar o que permanece silenciosamente aquém dele e sim pelo contrário mantêlo em sua consistência fazêlo surgir na complexidade que lhe é própria Em uma palavra querse na verdade renunciar às coisas despresentificálas conjurar sua rica relevante e imediata plenitude que costumamos considerar como a lei primitiva de um discurso que dela só se afastaria pelo erro esquecimento ilusão ignorância ou inércia das crenças e das tradições ou ainda desejo inconsciente talvez de não ver e de não dizer substituir o tesouro enigmático das coisas anteriores ao discurso pela formação regular dos objetos que só nele se delineiam definir esses objetos sem referência ao fundo das coisas mas relacionandoos ao conjunto de regras que permitem formálos como objetos de um discurso e que constituem assim suas condições de aparecimento histórico fazer uma história dos objetos discursivos 1 Isto é escrito contra um tema explícito na Histoire de la folie e presente repetidas vezes no Prefácio 54 Michel Foucault que não os enterre na profundidade comum de um solo originário mas que desenvolva o nexo das regularidades que regem sua dispersão Entretanto elidir o momento das próprias coisas não é remeter necessariamente à análise linguística da significação Quando se descreve a formação dos objetos de um discurso tentase identificar os relacionamentos que caracterizam uma prática discursiva e não se determina uma organização léxica nem as escansões de um campo semântico não se questiona o sentido dado em sua época às palavras melancolia ou loucura sem delírio nem a oposição de conteúdo entre psicose e neurose Não que tais análises sejam consideradas ilegítimas ou impossíveis mas não são pertinentes quando se trata de saber por exemplo como a criminalidade pôde tornarse objeto de parecer médico ou como o desvio sexual pôde delinearse como um objeto possível do discurso psiquiátrico A análise dos conteúdos léxicos define tanto os elementos de significação de que dispõem os sujeitos falantes em uma dada época como a estrutura semântica que aparece na superfície dos discursos já pronunciados ela não se refere à prática discursiva como lugar onde se forma ou se deforma onde aparece e se apaga uma pluralidade emaranhada ao mesmo tempo superposta e lacunar de objetos A sagacidade dos críticos não se enganou de uma análise como a que empreendo as palavras estão tão deliberadamente ausentes quanto as próprias coisas não há nem descrição de um vocabulário nem recursos à plenitude viva da experiência Não se volta ao aquém do discurso lá onde nada ainda foi dito e onde as coisas apenas despontam sob uma luminosidade cinzenta não se vai além para reencontrar as formas que ele dispôs e deixou atrás de si ficase tentase ficar no nível do próprio discurso Já que é preciso às vezes acentuar ausências embora as mais evidentes direi que em todas essas pesquisas em que avancei ainda tão pouco gostaria de mostrar que os discursos tais como podemos ouvilos tais como podemos lêlos sob a forma de texto não são como se poderia esperar um puro e simples entrecruzamento de coisas e de palavras trama obscura das coisas cadeia manifesta visível e colorida das palavras gostaria de mostrar que o discurso não é uma estreita superfície de contato ou de confronto entre uma realidade e uma língua o intrincamento A Arqueologia do Saber 55 entre um léxico e uma experiência gostaria de mostrar por meio de exemplos precisos que analisando os próprios discursos vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas e destacarse um conjunto de regras próprias da prática discursiva Essas regras definem não a existência muda de uma realidade não o uso canônico de um vocabulário mas o regime dos objetos As palavras e as coisas é o título sério de um problema é o título irônico do trabalho que lhe modifica a forma lhe desloca os dados e revela afinal de contas uma tarefa inteiramente diferente que consiste em não mais tratar os discursos como conjuntos de signos elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam Certamente os discursos são feitos de signos mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala É esse mais que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever 4 A FORMAÇÃO DAS MODALIDADES ENUNCIATIVAS Descrições qualitativas narrações biográficas demarcação interpretação e recorte dos signos raciocínios por analogia dedução estimativas estatísticas verificações experimentais e muitas outras formas de enunciados eis o que se pode encontrar no século XIX no discurso dos médicos Que encadeamento que determinismo há entre uns e outros Por que estes e não outros Seria necessário encontrar a lei de todas essas enunciações diversas e o lugar de onde vêm A Primeira questão quem fala Quem no conjunto de todos os sujeitos falantes tem boas razões para ter esta espécie de linguagem Quem é seu titular Quem recebe dela sua singularidade seus encantos e de quem em troca recebe se não sua garantia pelo menos a presunção de que é verdadeira Qual é o status dos indivíduos que têm e apenas eles o direito regulamentar ou tradicional juridicamente definido ou espontaneamente aceito de proferir semelhante discurso O status do médico compreende critérios de competência e de saber instituições sistemas normas pedagógicas condições legais que dão direito não sem antes lhe fixar limites à prática e à experimentação do saber Compreende também um sistema de diferenciação e de relações divisão das atribuições subordinação hierárquica complementaridade funcional demanda transmissão e troca de informações com outros indivíduos ou outros grupos que têm eles próprios seu status com o poder político e seus A Arqueologia do Saber 57 representantes com o Poder Judiciário com diferentes corpos profissionais com os grupos religiosos e se for o caso com os sacerdotes Compreende também um certo número de traços que definem seu funcionamento em relação ao conjunto da sociedade o papel que se reconhece no médico conforme seja chamado por uma pessoa ou requisitado de maneira mais ou menos obrigatória pela sociedade conforme exerça uma profissão ou seja encarregado de uma função os direitos de intervenção e de decisão que lhe são reconhecidos nestes diferentes casos o que lhe é pedido como vigia guardião e responsável pela saúde de uma população de um grupo de uma família de um indivíduo a parte que recebe da riqueza pública ou da de particulares a forma de contrato explícito ou implícito que estabelece seja com o grupo no qual exerce sua profissão seja com o poder que lhe confiou uma tarefa seja com o cliente que lhe pediu um conselho uma terapêutica uma cura Esse status dos médicos é em geral bastante singular em todas as formas de sociedade e de civilização ele não é quase nunca um personagem indiferenciado ou intercambiável A fala médica não pode vir de quem quer que seja seu valor sua eficácia seus próprios poderes terapêuticos e de maneira geral sua existência como fala médica não são dissociáveis do personagem definido por status que tem o direito de articulálo reivindicando para si o poder de conjurar o sofrimento e a morte Mas sabese também que esse status foi profundamente modificado na civilização ocidental no final do século XVIII e no início do século XIX quando a saúde das populações tornouse uma das normas econômicas requeridas pela sociedade industrial B É preciso descrever também os lugares institucionais de onde o médico obtém seu discurso e onde este encontra sua origem legítima e seu ponto de aplicação seus objetos específicos e seus instrumentos de verificação Esses lugares são para nossa sociedade o hospital local de uma observação constante codificada sistemática assegurada por pessoal médico diferenciado e hierarquizado e que pode assim constituir um campo quantificável de frequências a prática privada que oferece um domínio de observações mais aleatórias mais lacunares muito mais numerosas mas que permitem às vezes constatações de alcance cronológico mais amplo com melhor conhecimento dos antecedentes e do meio o laboratório local autônomo por muito tempo distinto do hospital no qual se estabelecem certas verdades de ordem geral sobre o corpo humano a vida as doenças as lesões que fornece certos elementos de diagnóstico certos sinais de evolução certos critérios de cura e que permite experimentações terapêuticas finalmente o que se poderia chamar a biblioteca ou o campo documentário que compreende não somente os livros ou tratados tradicionalmente reconhecidos como válidos mas 58 Michel Foucault também o conjunto dos relatórios e observações publicadas e transmitidas e ainda a massa das informações estatísticas referentes ao meio social ao clima às epidemias à taxa de mortalidade à frequência das doenças aos focos de contágio às doenças profissionais que podem ser fornecidas ao médico pelas administrações por outros médicos por sociólogos por geógrafos Ainda aí esses diversos lugares do discurso médico foram profundamente modificados no século XIX a importância do documento não deixa de crescer diminuindo proporcionalmente a autoridade do livro ou da tradição o hospital que não passava de um local de apoio para o discurso sobre as doenças e que era inferior em importância e valor à prática privada em que as doenças deixadas em seu meio natural deviam no século XVIII se revelar em sua verdade vegetal tornase então o local das observações sistemáticas e homogêneas confrontos em larga escala estabelecimento das frequências e das probabilidades anulação das variantes individuais em resumo o local de aparecimento da doença não mais como espécie singular que desdobra seus traços essenciais sob o olhar do médico mas como processo intermediário com seus marcos significativos seus limites suas oportunidades de evolução Da mesma forma foi no século XIX que a prática médica cotidiana integrou o laboratório como local de um discurso que tem as mesmas normas experimentais da física química ou biologia C As posições do sujeito se definem igualmente pela situação que lhe é possível ocupar em relação aos diversos domínios ou grupos de objetos ele é sujeito que questiona segundo uma certa grade de interrogações explícitas ou não e que ouve segundo um certo programa de informação é sujeito que observa segundo um quadro de traços característicos e que anota segundo um tipo descritivo está situado a uma distância perceptiva ótica cujos limites demarcam a parcela de informação pertinente utiliza intermediários instrumentais que modificam a escala da informação deslocam o sujeito em relação ao nível perceptivo médio ou imediato asseguram sua passagem de um nível superficial a um nível profundo o fazem circular no espaço interior do corpo dos sintomas manifestos aos órgãos dos órgãos aos tecidos e dos tecidos finalmente às células A essas situações perceptivas é preciso somar as posições que o sujeito pode ocupar na rede de informações no ensino teórico ou na pedagogia hospitalar no sistema da comunicação oral ou da documentação escrita como emissor e receptor de observações de relatórios de dados estatísticos de proposições teóricas gerais de projetos ou de decisões As diversas situações que podem ser ocupadas pelo sujeito do discurso médico foram redefinidas no início do século XIX com a A Arqueologia do Saber 59 organização de um campo perceptivo totalmente diferente disposto em profundidade expresso por inovações instrumentais desenvolvido pelas técnicas cirúrgicas ou pelos métodos da autópsia centrado nos focos de lesão e com a utilização de novos sistemas de registro de notação de descrição de classificação de integração em séries numéricas e em estatísticas com a instituição de novas formas de ensino de circulação das informações de relação com os outros domínios teóricos ciências ou filosofia e com as outras instituições quer elas sejam de ordem administrativa política ou econômica Se no discurso clínico o médico é sucessivamente o questionador soberano e direto o olho que observa o dedo que toca o órgão de decifração dos sinais o ponto de integração de descrições já feitas o técnico de laboratório é porque todo um feixe de relações se encontra em jogo relações entre o espaço hospitalar como local ao mesmo tempo de assistência de observação purificada e sistemática e de terapêutica parcialmente testada parcialmente experimental e todo um grupo de técnicas e de códigos de percepção do corpo humano tal como é definido pela anatomia patológica relações entre o campo das observações imediatas e o domínio das informações já adquiridas relações entre o papel do médico como terapeuta seu papel de pedagogo seu papel de transmissor na difusão do saber médico e seu papel de responsável pela saúde pública no espaço social Entendida como renovação dos pontos de vista conteúdos formas e do próprio estilo da descrição utilização dos raciocínios indutivos ou probabilísticos tipos de atribuição da causalidade em resumo como renovação das modalidades de enunciação a medicina clínica não deve ser tomada como o resultado de uma nova técnica de observação a da autópsia que era praticada desde muito antes do século XIX nem como o resultado da pesquisa das causas patogênicas nas profundezas do organismo Morgagni já o fazia nos meados do século XVIII nem como o efeito desta nova instituição que era a clínica hospitalar ela já existia há dezenas de anos na Áustria e na Itália nem como o resultado da introdução do conceito de tecido no Traité de membranes de Bichat Deve sim ser considerada como o relacionamento no discurso médico de um certo número de elementos distintos dos quais uns se referiam ao status dos médicos outros ao lugar institucional e técnico de onde falavam outros à sua 60 Michel Foucault posição como sujeitos que percebem observam descrevem ensinam etc Podese dizer que esse relacionamento de elementos diferentes alguns são novos outros preexistentes é efetuado pelo discurso clínico é ele enquanto prática que instaura entre eles todos um sistema de relações que não é realmente dado nem constituído a priori e se tem uma unidade se as modalidades de enunciação que utiliza ou às quais dá lugar não são simplesmente justapostas por uma série de contingências históricas é porque emprega de forma constante esse feixe de relações Convém observar ainda que após se ter constatado a disparidade dos tipos de enunciação no discurso clínico não se tentou reduzila fazendo aparecer as estruturas formais categorias modos de encadeamento lógico tipos de raciocínio e indução formas de análise e síntese que puderam ser empregados em um discurso não se quis separar a organização racional que é capaz de dar a enunciados como os da medicina o que comportam em termos de necessidade intrínseca Não se quis tampouco relacionar a um ato fundador ou a uma consciência constituinte o horizonte geral de racionalidade no qual se destacaram pouco a pouco os progressos da medicina seus esforços para se alinhar entre as ciências exatas a condensação de seus métodos de observação a lenta e difícil expulsão das imagens ou dos fantasmas que a habitam a purificação de seu sistema de raciocínio Enfim não se tentou descrever nem a gênese empírica nem os diversos componentes da mentalidade médica como se deslocou o interesse dos médicos por qual modelo teórico ou experimental foram influenciados que filosofia ou temática moral definiu o clima de sua reflexão a que questões a que perguntas tiveram de responder que esforços tiveram de fazer para se libertarem dos preconceitos tradicionais que caminhos percorreram na direção da unificação e coerência jamais acabadas jamais atingidas de seu saber Em suma as modalidades diversas da enunciação não estão relacionadas à unidade de um sujeito quer se trate do sujeito tomado como pura instância fundadora de racionalidade ou do sujeito tomado como função empírica de síntese Nem o conhecer nem os conhecimentos A Arqueologia do Saber 61 Na análise proposta as diversas modalidades de enunciação em lugar de remeterem à síntese ou à função unificante de um sujeito manifestam sua dispersão2 nos diversos status nos diversos lugares nas diversas posições que pode ocupar ou receber quando exerce um discurso na descontinuidade dos planos de onde fala Se esses planos estão ligados por um sistema de relações este não é estabelecido pela atividade sintética de uma consciência idêntica a si muda e anterior a qualquer palavra mas pela especificidade de uma prática discursiva Renunciaremos pois a ver no discurso um fenômeno de expressão a tradução verbal de uma síntese realizada em algum outro lugar nele buscaremos antes um campo de regularidade para diversas posições de subjetividade O discurso assim concebido não é a manifestação majestosamente desenvolvida de um sujeito que pensa que conhece e que o diz é ao contrário um conjunto em que podem ser determinadas a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo É um espaço de exterioridade em que se desenvolve uma rede de lugares distintos Ainda há pouco mostramos que não eram nem pelas palavras nem pelas coisas que era preciso definir o regime dos objetos característicos de uma formação discursiva da mesma forma é preciso reconhecer agora que não é nem pelo recurso a um sujeito transcendental nem pelo recurso a uma subjetividade psicológica que se deve definir o regime de suas enunciações 2 Por isso a expressão olhar médico empregada em Naissance de la clinique não era muito feliz 5 A FORMAÇÃO DOS CONCEITOS Talvez a família de conceitos que se delineia na obra de Lineu mas também a que se encontra em Ricardo ou na gramática de PortRoyal possa se organizar em um conjunto coerente Talvez se pudesse reconstituir a arquitetura dedutiva por ela formada A experiência de qualquer forma merece ser tentada e ela o foi diversas vezes Em compensação se tomamos uma escala maior e se escolhemos como marcos disciplinas como a gramática ou a economia ou o estudo dos seres vivos o jogo de conceitos que vemos aparecer não obedece a condições tão rigorosas sua história não é pedra por pedra a construção de um edifício Será preciso abandonar essa dispersão à aparência de sua desordem Ver aí uma sequência de sistemas conceituais tendo cada um sua organização própria e se articulando somente seja com a permanência dos problemas seja com a continuidade da tradição seja com o mecanismo das influências Não se poderia encontrar uma lei que desse conta da emergência sucessiva ou simultânea de conceitos discordantes Não se pode encontrar entre eles um sistema de ocorrência que não seja uma sistematicidade lógica Antes de querer repor os conceitos em um edifício dedutivo virtual seria necessário descrever a organização do campo de enunciados em que aparecem e circulam A Arqueologia do Saber 63 A Essa organização compreende inicialmente formas de sucessão e entre elas as diversas disposições das séries enunciativas quer seja a ordem das inferências das implicações sucessivas e dos raciocínios demonstrativos ou a ordem das descrições os esquemas de generalização ou de especificação progressiva aos quais obedecem as distribuições espaciais que percorrem ou a ordem das narrativas e a maneira pela qual os acontecimentos do tempo estão repartidos na sequência linear dos enunciados os diversos tipos de correlação dos enunciados que nem sempre são idênticos ou passíveis de ser superpostos às sucessões manifestas da série enunciativa como a correlação hipóteseverlficação asserçãocrítica lei geralaplicação particular os diversos esquemas retóricos segundo os quais se podem combinar grupos de enunciados como se encadeiam umas às outras descrições deduções definições cuja sequência caracteriza a arquitetura de um texto Tomemos por exemplo o caso da história natural na época clássica ela não se serve dos mesmos conceitos do século XVI alguns que são antigos gênero espécie sinais mudam de utilização outros como o de estrutura aparecem outros ainda o de organismo se formarão mais tarde Mas o que foi modificado no século XVII e vai reger o aparecimento e a recorrência dos conceitos para toda a história natural é a disposição geral dos enunciados e sua seriação em conjuntos determinados é a maneira de transcrever o que se observa e de reconstituir no fio dos enunciados um percurso perceptivo é a relação e o jogo de subordinações entre descrever articular em traços distintivos caracterizar e classificar é a posição recíproca das observações particulares e dos princípios gerais é o sistema de dependência entre o que se aprendeu o que se viu o que se deduz o que se admite como provável o que se postula A história natural nos séculos XVII e XVIII não é simplesmente uma forma de conhecimento que deu uma nova definição aos conceitos do gênero ou de caráter e que introduziu conceitos novos como o de classificação natural ou de mamífero é antes de tudo um conjunto de regras para dispor em série enunciados um conjunto obrigatório de esquemas de dependências de ordem e de sucessões em que se distribuem os elementos recorrentes que podem valer como conceitos B A configuração do campo enunciativo compreende também formas de coexistência Estas delineiam inicialmente um campo de presença isto é todos os enunciados já formulados em alguma outra parte e que são retomados em um discurso a título de verdade admitida de descrição exata de raciocínio fundado ou de pressuposto necessário e também os que são criticados discutidos e julgados assim como os que são rejeitados ou excluídos nesse campo de presença as relações instauradas podem ser da ordem da verificação 64 Michel Foucault experimental da validação lógica da repetição pura e simples da aceitação justificada pela tradição e pela autoridade do comentário da busca das significações ocultas da análise do erro essas relações podem ser explícitas e por vezes formuladas em tipos de enunciados especializados referências discussões críticas ou implícitas e introduzidas nos enunciados correntes Ainda aí é fácil constatar que o campo de presença da história natural na época clássica não obedece às mesmas formas nem aos mesmos critérios de escolha nem aos mesmos princípios de exclusão da época em que Aldrovandi recolhia em um único e mesmo texto tudo que sobre os monstros podia ser visto observado contado mil vezes relatado ao pé do ouvido até imaginado pelos poetas Distinto desse campo de presença podemos descrever um campo de concomitância tratase então dos enunciados que se referem a domínios de objetos inteiramente diferentes e que pertencem a tipos de discurso totalmente diversos mas que atuam entre os enunciados estudados seja porque valem como conformação analógica seja porque valem como princípio geral e como premissas aceitas para um raciocínio ou porque valem como modelos que podemos transferir a outros conteúdos ou ainda porque funcionam como instância superior com a qual é preciso confrontar e submeter pelo menos algumas proposições que são afirmadas assim o campo de concomitância da história natural na época de Lineu e de Buffon se define por um certo número de relações com a cosmologia história da terra filosofia teologia Escrituras Sagradas e exegese bíblica matemática sob a forma bem geral de uma ciência da ordem e todas estas relações o opõem tanto ao discurso dos naturalistas do século XVI quanto ao dos biólogos do século XIX Finalmente o campo enunciativo compreende o que se poderia chamar um domínio de memória tratase dos enunciados que não são mais nem admitidos nem discutidos que não definem mais consequentemente nem um corpo de verdades nem um domínio de validade mas em relação aos quais se estabelecem laços de filiação gênese transformação continuidade e descontinuidade histórica É assim que o campo de memória da história natural desde Tournefort aparece como singularmente estreito e pobre em suas formas quando o comparamos ao campo de memória tão amplo tão cumulativo tão bem especificado da biologia a partir do século XIX aparece em compensação como mais bem definido e articulado que o campo de memória que envolve no Renascimento a história das plantas e dos animais pois na época mal se distinguia do campo de presença tinha a mesma extensão e a mesma forma e implicava as mesmas relações C Tornase possível enfim definir os procedimentos de intervenção que podem ser legitimamente aplicados aos enunciados Esses A Arqueologia do Saber 65 procedimentos na verdade não são os mesmos para todas as formações discursivas os que são ai utilizados à exceção de todos os outros as relações que os ligam e o conjunto que assim constituem permitem especificar cada uma delas Tais procedimentos podem aparecer nas técnicas de reescrita como por exemplo as que permitiram aos naturalistas do período clássico reescrever descrições lineares em quadros classificatórios que não têm as mesmas leis nem a mesma configuração das listas e dos grupos de parentesco estabelecidos na Idade Média ou durante o Renascimento em métodos de transcrição dos enunciados articulados na língua natural segundo uma língua mais ou menos formalizada e artificial encontramos seu projeto e até certo ponto sua realização em Lineu e em Adanson os modos de tradução dos enunciados quantitativos em formulações qualitativas e viceversa relacionamento das medidas e descrições puramente perceptivas os meios utilizados para aumentar a aproximação dos enunciados e refinar sua exatidão a análise estrutural segundo a forma o número a disposição e a grandeza dos elementos permitiu a partir de Tournefort aproximação maior e sobretudo mais constante dos enunciados descritivos a maneira pela qual se delimita novamente por extensão ou restrição o domínio de validade dos enunciados a enunciação dos caracteres estruturais foi limitada de Tournefort a Lineu ampliandose novamente de Buffon a Jussieu a maneira pela qual se transfere um tipo de enunciado de um campo de aplicação a outro como a transferência da caracterização vegetal à taxinomia animal ou da descrição dos traços superficiais aos elementos internos do organismo os métodos de sistematização de proposições que já existem por terem sido formuladas anteriormente mas em separado ou ainda os métodos de redistribuição de enunciados já ligados uns aos outros mas que são recompostos em um novo conjunto sistemático assim o fez Adanson retomando as caracterizações naturais que puderam ser feitas antes dele ou por ele próprio em um conjunto de descrições artificiais cujo esquema prévio ele tinha tomado por uma combinatória abstrata Os elementos que nos propomos a analisar são bastante heterogêneos Alguns constituem regras de construção formal outros hábitos retóricos alguns definem a configuração interna de um texto outros os modos de relações e de interferência entre textos diferentes alguns são característicos de uma época determinada outros têm uma origem longínqua e um alcance cronológico muito grande Mas o que pertence propriamente a uma formação discursiva e o que permite delimitar o grupo de conceitos embora discordantes que lhe são específicos é a maneira pela qual esses diferentes elementos 66 Michel Foucault estão relacionados uns aos outros a maneira por exemplo pela qual a disposição das descrições ou das narrações está ligada às técnicas de reescrita a maneira pela qual o campo de memória está ligado às formas de hierarquia e de subordinação que regem os enunciados de um texto a maneira pela qual estão ligados os modos de aproximação e de desenvolvimento dos enunciados e os modos de critica de comentários de interpretação de enunciados já formulados etc É esse feixe de relações que constitui um sistema de formação conceitual A descrição de semelhante sistema não poderia valer por uma descrição direta e imediata dos próprios conceitos Não se trata de fazer seu levantamento exaustivo de estabelecer os traços que podem ter em comum de tentar classificálos de medirlhes a coerência interna ou testar sua compatibilidade mútua não se toma como objeto de análise a arquitetura conceitual de um texto isolado de uma obra individual ou de uma ciência em um dado momento Colocamonos na retaguarda em relação a esse jogo conceitual manifesto e tentamos determinar segundo que esquemas de seriação de grupamentos simultâneos de modificação linear ou recíproca os enunciados podem estar ligados uns aos outros em um tipo de discurso tentamos estabelecer assim como os elementos recorrentes dos enunciados podem reaparecer se dissociar se recompor ganhar em extensão ou em determinação ser retomados no interior de novas estruturas lógicas adquirir em compensação novos conteúdos semânticos constituir entre si organizações parciais Esses esquemas permitem descrever não as leis de construção interna dos conceitos não sua gênese progressiva e individual no espírito de um homem mas sua dispersão anônima através de textos livros e obras dispersão que caracteriza um tipo de discurso e que define entre os conceitos formas de dedução de derivação de coerência e também de incompatibilidade de entrecruzamento de substituição de exclusão de alteração recíproca de deslocamento etc Tal análise referese pois em um nível de certa forma préconceitual ao campo em que os conceitos podem coexistir e às regras às quais esse campo está submetido Para precisar o que se deve entender aqui por préconceitual retomarei o exemplo dos quatro esquemas teóricos estudados em Les mots et les choses e que caracterizam nos A Arqueologia do Saber 67 séculos XVII e XVIII a gramática geral Esses quatro esquemas atribuição articulação designação e derivação não designam conceitos efetivamente utilizados por gramáticos clássicos não permitem tampouco reconstituir acima de diferentes obras de gramática uma espécie de sistema mais geral mais abstrato mais pobre mas que descobriria por isso mesmo a compatibilidade profunda desses diferentes sistemas aparentemente opostos Eles permitem descrever 1 Como se podem ordenar e desenrolar as diferentes análises gramaticais e que formas de sucessão são possíveis entre as análises do nome as do verbo e as dos adjetivos as que se referem à fonética e as que se referem à sintaxe as que dizem respeito à língua originária e as que projetam uma língua artificial Essas diferentes ordens possíveis são prescritas pelas relações de dependência que podem ser demarcadas entre as teorias da atribuição da articulação da designação e da derivação 2 Como a gramática geral define um domínio de validade segundo que critérios se pode discutir a verdade ou a falsidade de uma proposição como constitui um domínio de normatividade segundo que critérios certos enunciados são excluídos como não pertinentes ao discurso ou como irrelevantes e marginais ou como não científicos como constitui um domínio de atualidade compreendendo as soluções adquiridas definindo os problemas presentes situando os conceitos e as afirmações caídas em desuso 3 Que relações a gramática geral mantém com a Mathesis com a álgebra cartesiana e póscartesiana com o projeto de uma ciência geral da ordem com a análise filosófica da representação e as teorias dos signos com a história natural os problemas da caracterização e da taxionomia com a análise das riquezas e os problemas dos signos arbitrários de medida e de troca demarcando essas relações podemse determinar os caminhos que de um domínio a outro asseguram a circulação a transferência as modificações dos conceitos a alteração de sua forma ou a mudança de seu terreno de aplicação A rede constituída pelos quatro segmentos teóricos não define a 68 Michel Foucault arquitetura lógica de todos os conceitos utilizados pelos gramáticos ela delineia o espaço regular de sua formação 4 Como foram simultânea ou sucessivamente possíveis sob a forma da escolha alternativa da modificação ou da substituição as diversas concepções do verbo ser da ligação do radical verbal e da desinência para o esquema teórico da atribuição as diversas concepções dos elementos fonéticos do alfabeto do nome dos substantivos e dos adjetivos para o esquema teórico da articulação os diversos conceitos de substantivo e de substantivo comum de demonstrativo de raiz nominal de sílaba ou de sonoridade expressiva para o segmento teórico da designação os diversos conceitos de linguagem originária e derivada de metáfora e de figura de linguagem poética para o segmento teórico da derivação O nível préconceitual que assim destacamos não remete nem a um horizonte de idealidade nem a uma gênese empírica das abstrações De um lado não é um horizonte de idealidade colocado descoberto ou instaurado por um gesto fundador e de tal forma originário que escaparia a qualquer inserção cronológica não é nos confins da história um a priori inesgotável ao mesmo tempo na retaguarda porque escaparia a qualquer começo a qualquer reconstituição genética e afastado porque jamais poderia ser contemporâneo de si mesmo em uma totalidade explícita Na verdade colocamos a questão no nível do próprio discurso que não é mais tradução exterior mas lugar de emergência dos conceitos não associamos as constantes do discurso às estruturas ideais do conceito mas descrevemos a rede conceitual a partir das regularidades intrínsecas do discurso não submetemos a multiplicidade das enunciações à coerência dos conceitos nem esta ao recolhimento silencioso de uma idealidade metaistórica estabelecemos a série inversa recolocamos as intenções livres de nãocontradição em um emaranhado de compatibilidade e incompatibilidade conceituais e relacionamos esse emaranhado com as regras que caracterizam uma prática discursiva Por isso mesmo não é mais necessário apelar para os temas da origem indefinidamente recuada e do horizonte inesgotável a organização de um conjunto de regras na prática do discurso mesmo se ela não constitui um acontecimento tão fácil de ser situado quanto uma formulação ou uma descoberta pode no entanto ser A Arqueologia do Saber 69 determinada no elemento da história e se ele é inesgotável é no sentido de que o sistema perfeitamente descritível por ele constituído dá conta de um jogo considerável de conceitos e de um número muito importante de transformações que afetam ao mesmo tempo esses conceitos e suas relações O préconceitual assim descrito em lugar de delinear um horizonte que viria do fundo da história e se manteria através dela é pelo contrário no nível mais superficial no nível dos discursos o conjunto das regras que aí se encontram efetivamente aplicadas Vêse que não se trata tampouco de uma gênese das abstrações tentando reencontrar a série das operações que permitiram constituílas intuições globais descobertas de casos particulares exclusão dos temas imaginários reencontro de obstáculos teóricos ou técnicos empréstimos sucessivos a modelos tradicionais definição da estrutura formal adequada etc Na análise que aqui se propõe as regras de formação têm seu lugar não na mentalidade ou na consciência dos indivíduos mas no próprio discurso elas se impõem por conseguinte segundo um tipo de anonimato uniforme a todos os indivíduos que tentam falar nesse campo discursivo Por outro lado não são consideradas universalmente válidas para todos os domínios indiscriminadamente são sempre descritas em campos discursivos determinados e suas possibilidades indefinidas de extensão não são reconhecidas antecipadamente Podemse no máximo por uma comparação sistemática confrontar de uma região a outra as regras de formação dos conceitos foi assim que se tentou salientar as identidades e as diferenças que esses conjuntos de regras podem apresentar na época clássica na gramática geral na história natural e na análise das riquezas Esses conjuntos de regras são bastante específicos em cada um desses domínios para caracterizar uma formação discursiva singular e bem individualizada mas apresentam analogias suficientes para que vejamos essas diversas formações constituírem um grupamento discursivo mais vasto e de um nível mais elevado De qualquer forma as regras de formação dos conceitos qualquer que seja sua generalidade não são o resultado depositado na história e sedimentado na espessura dos hábitos coletivos de operações efetuadas pelos indivíduos não constituem o esquema descarnado de todo um trabalho obscuro ao longo do qual os 70 Michel Foucault conceitos se teriam mostrado através de ilusões preconceitos erros tradições O campo préconceitual deixa aparecerem as regularidades e coações discursivas que tornaram possível a multiplicidade heterogênea dos conceitos e em seguida mais além ainda a abundância desses temas dessas crenças dessas representações às quais nos dirigimos naturalmente quando fazemos a história das idéias Para analisar as regras de formação dos objetos vimos que não seria necessário nem enraizálos nas coisas nem relacionálos ao domínio das palavras para analisar a formação dos tipos enunciativos não seria necessário relacionálos nem ao sujeito cognoscente nem a uma individualidade psicológica Da mesma forma para analisar a formação dos conceitos não é preciso relacionálos nem ao horizonte da idealidade nem ao curso empírico das idéias 6 A FORMAÇÃO DAS ESTRATÉGIAS Discursos como a economia a medicina a gramática a ciência dos seres vivos dão lugar a certas organizações de conceitos a certos reagrupamentos de objetos a certos tipos de enunciação que formam segundo seu grau de coerência de rigor e de estabilidade temas ou teorias tema na gramática do século XVIII de uma língua originária de que todas as outras derivariam e manteriam a lembrança por vezes decifrável teoria na filologia do século XIX de um parentesco direito ou colateral entre todas as línguas indoeuropéias e de um idioma arcaico que lhes teria servido de ponto de partida comum tema no século XVIII de uma evolução das espécies que desenvolve no tempo a continuidade da natureza e explica as lacunas atuais do quadro taxionômico teoria entre os fisiocratas de uma circulação das riquezas a partir da produção agrícola Qualquer que seja seu nível formal chamaremos convencionalmente de estratégias esses temas e essas teorias O problema é saber como se distribuem na história Será por um determinismo que as encadeia as torna inevitáveis as chama exatamente a seu lugar umas após outras e de fato como as soluções sucessivas de um único e mesmo problema Ou por encontros aleatórios entre idéias de origem diversa influências descobertas climas especulativos modelos teóricos que a paciência ou o gênio dos indivíduos 72 Michel Foucault disporia em conjuntos mais ou menos bem constituídos A menos que seja possível encontrar entre elas uma regularidade e que sejamos capazes de definir o sistema comum de sua formação Na análise dessas estratégias tenho bastante dificuldade de entrar em detalhes A razão é simples nos diferentes domínios discursivos que enumerei de uma forma bastante hesitante e sobretudo no início sem controle metódico suficiente tratavase de descrever cada vez a formação discursiva em todas as suas dimensões e segundo suas características próprias era preciso pois definir cada vez as regras de formação dos objetos das modalidades enunciativas dos conceitos das escolhas teóricas Mas chegouse à conclusão de que o ponto difícil da análise e aquele que exigia mais atenção não eram sempre os mesmos Na Histoire de la folie tratei de uma formação discursiva cujos pontos de escolha teóricos eram bastante fáceis de ser demarcados cujos sistemas conceituais eram relativamente pouco numerosos e sem complexidade cujo regime enunciativo enfim era bastante homogêneo e monótono em compensação o problema era a emergência de todo um conjunto de objetos muito enredados e complexos tratavase de descrever antes de tudo a formação desses objetos para demarcar em sua especificidade o conjunto do discurso psiquiátrico Na Naissance de la clinique o ponto essencial da pesquisa era a maneira pela qual se modificaram no fim do século XVIII e início do XIX as formas de enunciação do discurso médico a análise então haviase voltado menos para a formação dos sistemas conceituais ou para a das escolhas teóricas do que para o status o lugar institucional a situação e os modos de inserção do sujeito falante Finalmente em Les mots et les choses o estudo se referia em sua parte principal às redes de conceitos e suas regras de formação idênticas ou diferentes tais como podiam ser demarcadas na gramática geral na história natural e na análise das riquezas Quanto às escolhas estratégicas sua posição e suas implicações foram indicadas seja por exemplo a propósito de Lineu e de Buffon ou dos fisiocratas e dos utilitaristas mas sua demarcação permaneceu sumária e a análise quase não se deteve em sua formação Digamos que a análise das escolhas teóricas ainda continuará incipiente até que se realize um estudo ulterior em que ela possa reter o essencial da atenção A Arqueologia do Saber 73 No momento só é possível indicar as direções da pesquisa Poderiam assim se resumir 1 Determinar os pontos de difração possíveis do discurso Tais pontos se caracterizam inicialmente como pontos de incompatibilidade dois objetos ou dois tipos de enunciação ou dois conceitos podem aparecer na mesma formação discursiva sem poderem entrar sob pena de contradição manifesta ou inconsequência em uma única e mesma série de enunciados Caracterizamse em seguida como pontos de equivalência os dois elementos incompatíveis são formados da mesma maneira e a partir das mesmas regras suas condições de aparecimento são idênticas situamse em um mesmo nível e ao invés de constituírem uma pura e simples falta de coerência formam uma alternativa mesmo que segundo a cronologia não apareçam ao mesmo tempo que não tenham tido a mesma importância e que não tenham sido representados de modo igual na população dos enunciados efetivos apresentamse sob a forma de ou bem isso ou bem aquilo Finalmente caracterizamse como pontos de ligação de uma sistematização a partir de cada um desses elementos ao mesmo tempo equivalentes e incompatíveis uma série coerente de objetos formas enunciativas conceitos foram derivados eventualmente com novos pontos de incompatibilidade em cada série Em outros termos as dispersões estudadas nos níveis precedentes não constituem simplesmente desvios nãoidentidades séries descontínuas lacunas podem chegar a formar subconjuntos discursivos os mesmos aos quais habitualmente se dá uma importância maior como se fossem a unidade imediata e a matériaprima de que são feitos os conjuntos discursivos mais vastos teorias concepções temas Por exemplo não se considera em uma análise como esta que a análise das riquezas no século XVIII seja a resultante por composição simultânea ou sucessão cronológica de diversas concepções diferentes da moeda da troca dos objetos de uso da formação do valor e dos preços ou da renda fundiária não se considera que ela seja feita das idéias de Cantillon que substituem as de Petty da experiência de Law refletida sucessivamente por teóricos diversos e do sistema fisiocrático que se opõe às concepções utilitaristas Ela é descrita mais exatamente como uma unidade de distribuição que abre um campo de opções possíveis e permite a arquiteturas diversas que se excluem aparecerem lado a lado ou cada uma por sua vez 2 Mas todos os jogos possíveis não estão efetivamente realizados há muitos conjuntos parciais compatibilidades regionais arquiteturas coerentes que poderiam ter aparecido e que não se manifestaram Para dar conta das escolhas e apenas delas que foram realizadas entre todas as que o poderiam ter sido é preciso descrever 74 Michel Foucault instâncias específicas de decisão em primeiro lugar o papel desempenhado pelo discurso estudado em relação aos que lhe são contemporâneos e vizinhos É preciso pois estudar a economia da constelação discursiva à qual ele pertence Esse discurso pode desempenhar na verdade o papel de um sistema formal de que outros discursos seriam as aplicações em campos semânticos diversos pode ser ao contrário o de um modelo concreto que é preciso levar a outros discursos de um nível de abstração mais elevado assim a gramática geral nos séculos XVII e XVIII aparece como um modelo particular da teoria geral dos signos e da representação O discurso estudado pode estar também em uma relação de analogia de oposição ou de complementaridade com alguns outros discursos há por exemplo relação de analogia na época clássica entre a analise das riquezas e a história natural a primeira é para a representação da necessidade e do desejo o que a segunda é para a representação das percepções e dos juízos podese notar também que a história natural e a gramática geral se opõem entre si como uma teoria dos caracteres naturais e uma teoria dos signos de convenção todas as duas por sua vez se opõem à análise das riquezas como o estudo dos signos qualitativos se opõe ao dos signos quantitativos de medida cada uma enfim desenvolve um dos três papéis complementares do signo representativo designar classificar trocar Podemse finalmente descrever entre diversos discursos relações de delimitação recíproca cada um deles apresentando as marcas distintivas de sua singularidade pela diferenciação de seu domínio seus métodos seus instrumentos seu domínio de aplicação isso vale para a psiquiatria e a medicina orgânica que praticamente não se distinguiam uma da outra antes do final do século XVIII e que estabelecem a partir desse momento uma separação que as caracteriza Todo esse jogo de relações constitui um princípio de determinação que admite ou exclui no interior de um dado discurso um certo número de enunciados há sistematizações conceituais encadeamentos enunciativos grupos e organizações de objetos que teriam sido possíveis e cuja ausência não pode ser justificada no nível de suas regras próprias de formação mas que são excluídos por uma constelação discursiva de um nível mais elevado e de maior extensão Uma formação discursiva não ocupa assim todo o volume possível que lhe abrem por direito os sistemas de formação de seus objetos de suas enunciações de seus conceitos ela é essencialmente lacunar em virtude do sistema de formação de suas escolhas estratégicas Daí o fato de que uma vez retomada situada e interpretada em uma nova constelação uma dada formação discursiva pode fazer aparecerem possibilidades novas assim na distribuição atual dos discursos científicos a gramática de PortRoyal ou a taxionomia de Lineu podem liberar A Arqueologia do Saber 75 elementos que são em relação a elas ao mesmo tempo intrínsecos e inéditos mas não se trata de um conteúdo silencioso que teria permanecido implícito que teria sido dito sem sêlo e que constituiria sob enunciados manifestos uma espécie de subdiscurso mais fundamental voltando agora à luz do dia tratase de uma modificação no princípio de exclusão e de possibilidade das escolhas modificação que é devida à inserção em uma nova constelação discursiva 3 A determinação das escolhas teóricas realmente efetuadas depende também de uma outra instância Essa instância se caracteriza de início pela função que deve exercer o discurso estudado em um campo de práticas não discursivas Assim a gramática geral desempenhou um papel na prática pedagógica de um modo muito mais manifesto e muito mais importante a análise das riquezas desempenhou um papel não só nas decisões políticas e econômicas dos governos mas nas práticas cotidianas pouco conceitualizadas e pouco teorizadas do capitalismo nascente e nas lutas sociais e políticas que caracterizaram a época clássica Essa instância compreende também o regime e os processos de apropriação do discurso pois em nossas sociedades e em muitas outras sem dúvida a propriedade do discurso entendida ao mesmo tempo como direito de falar competência para compreender acesso lícito e imediato ao corpus dos enunciados já formulados capacidade enfim de investir esse discurso em decisões instituições ou práticas está reservada de fato às vezes mesmo de modo regulamentar a um grupo determinado de indivíduos nas sociedades burguesas que conhecemos desde o século XVI o discurso econômico jamais foi um discurso comum não mais que o discurso médico ou o discurso literário ainda que de outro modo Finalmente essa instância se caracteriza pelas posições possíveis do desejo em relação do discurso este na verdade pode ser o local de uma encenação fantasmática elemento de simbolização forma do proibido instrumento de satisfação derivada essa possibilidade de estar relacionado com o desejo não é apenas o fato do exercício poético romanesco ou imaginário do discurso os discursos sobre a riqueza linguagem natureza loucura vida e morte e muitos outros talvez que são muito mais abstratos podem ocupar em relação ao desejo relações bem determinadas De qualquer modo a análise dessa instância deve mostrar que nem a relação do discurso com o desejo nem os processos de sua apropriação nem seu papel entre as práticas não discursivas são extrinsecos à sua unidade à sua caracterização e às leis de sua formação Não são elementos perturbadores que superpondose à sua forma pura neutra intemporal e silenciosa a reprimiriam e fariam falar em seu lugar um discurso mascarado mas sim elementos formadores 76 Michel Foucault Uma formação discursiva será individualizada se se puder definir o sistema de formação das diferentes estratégias que nela se desenrolam em outros termos se se puder mostrar como todas derivam malgrado sua diversidade por vezes extrema malgrado sua dispersão no tempo de um mesmo jogo de relações Por exemplo a análise das riquezas nos séculos XVII e XVIII é caracterizada pelo sistema que pôde formar ao mesmo tempo o mercantilismo de Colbert e o neomercantilismo de Cantillon a estratégia de Law e a de ParisDuverney a opção fisiocrática e a opção utilitarista Esse sistema será definido se se puder descrever como os pontos de difração do discurso econômico derivam uns dos outros se comandam e se pressupõem como de uma decisão a propósito do conceito de valor deriva um ponto de escolha a propósito dos preços como as escolhas efetuadas dependem da constelação geral em que figura o discurso econômico a escolha em favor da moedasigno está ligada ao lugar ocupado pela análise das riquezas ao lado da teoria da linguagem da análise das representações das mathesis e da ciência da ordem como essas escolhas estão ligadas à função exercida pelo discurso econômico na prática do capitalismo nascente ao processo de apropriação de que é objeto por parte da burguesia ao papel que pode desempenhar na realização dos interesses e dos desejos O discurso econômico na época clássica definese por uma certa maneira constante de relacionar possibilidades de sistematização interiores a um discurso outros discursos que lhe são exteriores e todo um campo não discursivo de práticas de apropriação de interesses e de desejos É preciso notar que as estratégias assim descritas não se enraízam aquém do discurso na profundidade muda de uma escolha ao mesmo tempo preliminar e fundamental Todos esses grupamentos de enunciados que devemos descrever não são a expressão de uma visão do mundo que teria sido cunhada sob a forma de palavras nem a tradução hipócrita de um interesse abrigado sob o pretexto de uma teoria a história natural na época clássica é diferente do confronto nos limbos que precedem a história manifesta entre uma visão lineana de um universo estático ordenado compartimentado e sabiamente oferecido desde sua origem ao esquadrinhamento classificatório e a percepção ainda um pouco confusa de uma natureza herdeira do tempo com o peso de seus acidentes e A Arqueologia do Saber 77 aberta à possibilidade de uma evolução da mesma forma a análise das riquezas é diferente do conflito de interesses entre uma burguesia que se tornou proprietária fundiária e exprime suas reivindicações econômicas ou políticas pela voz dos fisiocratas e uma burguesia comerciante que pedia medidas protecionistas ou liberais por meio dos utilitaristas Se as interrogarmos no nível de sua existência unidade permanência e transformações nem a análise das riquezas nem a história natural poderão ser consideradas como a soma dessas opções diversas Estas ao contrário devem ser descritas como maneiras sistematicamente diferentes de tratar objetos de discurso de delimitálos reagrupálos ou separálos encadeálos e fazêlos derivar uns dos outros de dispor formas de enunciações de escolhêlas organizálas constituir séries compôlas em grandes unidades retóricas de manipular conceitos de lhes dar regras de utilização fazêlos entrar em coerências regionais e constituir assim arquiteturas conceituais Essas opções não são germes de discursos onde estes seriam determinados com antecedência e prefigurados sob uma forma quase microscópica são maneiras reguladas e descritíveis como tais de utilizar possibilidades de discursos Mas estas estratégias não devem ser analisadas tampouco como elementos secundários que viriam sobrecarregar uma racionalidade discursiva por direito independente deles Não há ou pelo menos não se pode admitir para a descrição histórica cuja possibilidade aqui traçamos uma espécie de discurso ideal ao mesmo tempo último e intemporal que escolhas de origem extrínseca teriam pervertido desordenado reprimido lançado para um futuro talvez muito longínquo não se deve supor por exemplo que existam sobre a natureza ou sobre a economia dois discursos superpostos e misturados um que prossegue lentamente que acumula suas aquisições e pouco a pouco se completa discurso verdadeiro mas que só existe em sua pureza nos confins teleológicos da história o outro sempre arruinado sempre recomeçado em contínua ruptura consigo mesmo composto de fragmentos heterogêneos discursos de opinião que a história ao longo do tempo lança para o passado Não há uma taxionomia natural que tenha sido exata excetuandose o fixismo não há uma economia da troca e do uso que tenha sido verdadeira sem as preferências e as ilusões de uma burguesia mercantil 78 Michel Foucault A taxionomia clássica ou a análise das riquezas tais como existiram efetivamente e tais como constituíram figuras históricas compreendem em um sistema articulado mas indissociável objetos enunciações conceitos e escolhas teóricas E assim como não seria preciso relacionar a formação dos objetos nem às palavras nem às coisas a das enunciações nem à forma pura do conhecimento nem ao sujeito psicológico a dos conceitos nem à estrutura da idealidade nem à sucessão das idéias não é preciso relacionar a formação das escolhas teóricas nem a um projeto fundamental nem ao jogo secundário das opiniões 7 OBSERVAÇÕES E CONSEQUÊNCIAS É preciso agora retomar um certo número de indicações esparsas nas análises precedentes responder a algumas questões por elas colocadas e considerar antes de tudo a objeção que ameaça apresentarse pois o paradoxo da empresa logo aparece De início eu havia questionado as unidades preestabelecidas segundo as quais escandimos tradicionalmente o domínio indefinido monótono abundante do discurso Não se tratava de contestar o valor de tais unidades ou de querer proibir seu uso mas de mostrar que elas reclamam para serem definidas exatamente uma elaboração teórica Entretanto e é neste ponto que todas as análises precedentes parecem bastante problemáticas seria necessário sobrepor a essas unidades talvez na verdade um pouco incertas uma outra categoria de unidades menos visíveis mais abstratas e sem dúvida bem mais problemáticas Mesmo no caso em que seus limites históricos e a especificidade de sua organização são bastante fáceis de ser percebidos como prova a gramática geral ou a história natural essas formações discursivas colocam problemas de demarcação bem mais difíceis que o livro ou a obra Por que então proceder a reagrupamentos tão duvidosos justamente no momento em que se problematizam aqueles que pareciam os mais evidentes Que domínio novo se espera 80 Michel Foucault descobrir Que relações permanecem ainda obscuras ou implícitas Que transformações ainda permaneceram fora do alcance dos historiadores Em suma que eficácia descritiva se pode atribuir a essas novas análises Tentarei responder a todas essas perguntas mais adiante Mas é preciso desde já responder a uma questão primordial em relação às análises ulteriores e terminal em relação às precedentes na verdade temse o direito de falar de unidades a propósito das formações discursivas que tentei definir O recorte que se propõe é capaz de individualizar conjuntos E qual é a natureza da unidade assim descoberta ou construída Havíamos partido de uma constatação com a unidade de um discurso como o da medicina clínica ou da economia política ou da história natural tratamos de uma dispersão de elementos Ora essa própria dispersão com suas lacunas falhas desordens superposições incompatibilidades trocas e substituições pode ser descrita em sua singularidade se formos capazes de determinar as regras específicas segundo as quais foram formados objetos enunciações conceitos opções teóricas se há unidade ela não está na coerência visível e horizontal dos elementos formados reside muito antes no sistema que torna possível e rege sua formação Mas com que direito se pode falar de unidades e de sistemas Como afirmar que individualizamos bem conjuntos discursivos se por trás da multiplicidade aparentemente irredutível dos objetos enunciações conceitos e escolhas utilizamos de maneira bastante temerária uma massa de elementos que não eram menos numerosos nem menos dispersos mas que além disso eram heterogêneos entre si Se repartimos todos esses elementos em quatro grupos distintos cujo modo de articulação quase não foi definido E em que sentido podemos dizer que todos esses elementos descobertos por trás dos objetos enunciações conceitos e estratégias dos discursos asseguram a existência de conjuntos não menos individualizáveis que obras ou livros 1 Vimos que e sem dúvida não há necessidade de voltarmos ao assunto quando se fala de um sistema de formação não se compreende somente a justaposição a coexistência ou a interação de elementos heterogêneos instituições técnicas grupos sociais organizações perceptivas relações entre A Arqueologia do Saber 81 discursos diversos mas seu relacionamento sob uma forma bem determinada estabelecido pela prática discursiva Mas o que são por sua vez esses quatro sistemas ou melhor esses quatro feixes de relações Como podem definir para todos eles um sistema único de formação É que os diferentes níveis assim definidos não são independentes uns dos outros Mostramos que as escolhas estratégicas não surgem diretamente de uma visão de mundo ou de uma predominância de interesses que pertenceriam a este ou àquele sujeito falante mas que sua própria possibilidade é determinada por pontos de divergência no jogo dos conceitos mostramos também que os conceitos não eram formados diretamente sobre o fundo aproximativo confuso e vivo das idéias mas a partir das formas de coexistência entre os enunciados quanto às modalidades de enunciação vimos que eram descritas a partir da posição que o sujeito ocupa em relação ao domínio de objetos de que fala Desta maneira existe um sistema vertical de dependências todas as posições do sujeito todos os tipos de coexistência entre enunciados todas as estratégias discursivas não são igualmente possíveis mas somente as que são autorizadas pelos níveis anteriores considerandose por exemplo o sistema de formação que rege no século XVIII os objetos da história natural como individualidades portadoras de caracteres e por isso classificáveis como elementos estruturais suscetíveis de variações como superfícies visíveis e analisáveis como campo de diferenças contínuas e regulares certas modalidades de enunciação são excluídas por exemplo a decifração dos signos outras estão implícitas por exemplo a descrição segundo um código determinado da mesma forma considerandose as diferentes posições que o sujeito do discurso pode ocupar como sujeito que observa sem mediação instrumental como sujeito que tira da pluralidade perceptiva os únicos elementos da estrutura como sujeito que transcreve esses elementos em um vocabulário codificado etc há um certo número de coexistências entre os enunciados que são excluídas como por exemplo a reativação erudita do já dito ou o comentário exegético de um texto sacralizado outras ao contrário que são possíveis ou requeridas com a integração de enunciados total ou parcialmente análogos em um quadro classificatório Os níveis não são pois livres uns em relação aos outros e não se 82 Michel Foucault desenvolvem segundo uma autonomia sem limite da diferenciação primária dos objetos à formação das estratégias discursivas existe toda uma hierarquia de relações Mas as relações se estabelecem igualmente em uma direção inversa Os níveis inferiores não são independentes dos que lhes são superiores As escolhas teóricas excluem ou implicam nos enunciados que as efetuam a formação de certos conceitos isto é certas formas de coexistência entre os enunciados assim nos textos dos fisiocratas não encontraremos modos de integração dos dados quantitativos e das medidas semelhantes aos das análises feitas pelos utilitaristas Não é que a opção fisiocrática possa modificar o conjunto das regras que asseguram a formação dos conceitos econômicos do século XVIII mas ela pode utilizar ou excluir algumas dessas regras e em consequência disso fazer com que apareçam certos conceitos que não se apresentam em nenhum outro lugar como por exemplo o de produto líquido Não foi a escolha teórica que regulou a formação do conceito mas ela o produziu por intermédio das regras específicas de formação dos conceitos e pelo jogo das relações que mantém com esse nível 2 Esses sistemas de formação não devem ser tomados como blocos de imobilidade formas estáticas que se imporiam do exterior ao discurso e definiriam de uma vez por todas seus caracteres e possibilidades Não são coações que teriam sua origem nos pensamentos dos homens ou no jogo de suas representações mas não são tampouco determinações que formadas no nível das instituições ou das relações sociais ou da economia viriam transcreverse à força na superfície dos discursos Esses sistemas já insistimos nisso residem no próprio discurso ou antes já que não se trata de sua interioridade e do que ela pode conter mas de sua existência específica e de suas condições em suas fronteiras nesse limite em que se definem as regras específicas que fazem com que exista como tal Por sistema de formação é preciso pois compreender um feixe complexo de relações que funcionam como regra ele prescreve o que deve ser correlacionado em uma prática discursiva para que esta se refira a tal ou tal objeto para que empregue tal ou tal enunciação para que utilize tal ou tal conceito para que organize tal ou tal estratégia Definir em sua individualidade singular um sistema de formação é A Arqueologia do Saber 83 assim caracterizar um discurso ou um grupo de enunciados pela regularidade de uma prática Conjunto de regras para uma prática discursiva o sistema de formação não é estranho ao tempo Não reúne tudo que pode aparecer através de uma série secular de enunciados em um ponto inicial que seria ao mesmo tempo começo origem fundamento sistema de axiomas e a partir do qual as peripécias da história real só se desenrolariam de maneira inteiramente necessária O que ele delineia é o sistema de regras que teve de ser colocado em prática para que tal objeto se transformasse tal enunciação nova aparecesse tal conceito se elaborasse metamorfoseado ou importado tal estratégia fosse modificada sem deixar de pertencer a esse mesmo discurso e o que delineia também é o sistema de regras que teve de ser empregado para que uma mudança em outros discursos em outras práticas nas instituições relações sociais processos econômicos pudesse ser transcrita no interior de um discurso dado constituindo assim um novo objeto suscitando uma nova estratégia dando lugar a novas enunciações ou novos conceitos Uma formação discursiva não desempenha pois o papel de uma figura que pára o tempo e o congela por décadas ou séculos ela determina uma regularidade própria de processos temporais coloca o princípio de articulação entre uma série de acontecimentos discursivos e outras séries de acontecimentos transformações mutações e processos Não se trata de uma forma intemporal mas de um esquema de correspondência entre diversas séries temporais Essa mobilidade do sistema de formação ocorre de duas formas Inicialmente no nível dos elementos que estão relacionados estes na verdade podem sofrer um certo número de mutações intrínsecas que são integradas à prática discursiva sem que seja alterada a forma geral de sua regularidade assim durante todo o século XIX a jurisprudência criminal a pressão demográfica a demanda de mãodeobra as formas de assistência o status e as condições jurídicas do internamente não deixaram de se modificar entretanto a prática discursiva da psiquiatria continuou a estabelecer entre estes elementos um mesmo conjunto de relações de modo que o sistema conservou os caracteres de sua individualidade através das mesmas leis de formação novos objetos aparecem novos tipos de indivíduos novas classes de comportamento 84 Michel Foucault são caracterizadas como patológicas novas modalidades de enunciação são empregadas notações quantitativas e cálculos estatísticos novos conceitos são delineados como os de degenerescência perversidade neurose e certamente novos edifícios teóricos podem ser construídos Mas inversamente as práticas discursivas modificam os domínios por elas relacionados Por mais que se esforçassem em instaurar relações específicas que só podem ser analisadas em seu próprio nível essas relações não exercem seus efeitos apenas no discurso inscrevemse também nos elementos por elas articulados uns com os outros O campo hospitalar por exemplo não permaneceu imutável uma vez que pelo discurso clínico foi relacionado ao laboratório sua ordenação o status que é atribuído ao médico a função de sua observação o nível de análise que aí se pode efetuar viramse necessariamente modificados 3 O que se descreve como sistemas de formação não constitui a etapa final dos discursos se por este termo entendemos os textos ou as falas tais como se apresentam com seu vocabulário sintaxe estrutura lógica ou organização retórica A análise permanece aquém desse nível manifesto que é o da construção acabada definindo o princípio de distribuição dos objetos em um discurso ela não dá conta de todas as suas conexões de sua estrutura delicada nem de suas subdivisões internas buscando a lei de dispersão dos conceitos não dá conta de todos os processos de elaboração nem de todas as cadeias dedutivas nas quais eles podem figurar se ela estuda as modalidades de enunciação não põe em questão nem o estilo nem o encadeamento das frases em suma deixa em pontilhado a disposição final do texto Mas é preciso que fique claro que se ela permanece na retaguarda em relação a esta construção última não é para se desviar do discurso e apelar para o trabalho mudo do pensamento não é tampouco para se desviar do sistemático e revelar a desordem viva dos ensaios tentativas erros e recomeços Quanto a isso a análise das formações discursivas se opõe a muitas descrições habituais Na verdade temos o costume de considerar que os discursos e sua ordenação sistemática não são mais que o estado final o resultado em última instância de uma elaboração há muito tempo sinuosa em que estão em jogo a língua e o pensamento a experiência empírica e as A Arqueologia do Saber 85 categorias o vivido e as necessidades ideais a contingência dos acontecimentos e o jogo das coações formais Atrás da fachada visível do sistema supomos a rica incerteza da desordem e sob a fina superfície do discurso toda a massa de um devir em parte silencioso um présistemático que não é da ordem do sistema um prédiscursivo que se apóia em um essencial mutismo Discurso e sistema só se produziriam e conjuntamente na crista dessa imensa reserva Ora o que se analisa aqui não são certamente os estados terminais do discurso mas sim os sistemas que tornam possíveis as formas sistemáticas últimas são regularidades préterminais em relação às quais o estado final longe de constituir o lugar de nascimento do sistema se define antes por suas variantes Atrás do sistema acabado o que a análise das formações descobre não é a própria vida em efervescência a vida ainda não capturada mas sim uma espessura imensa de sistematicidades um conjunto cerrado de relações múltiplas Além disso essas relações por mais que se esforcem para não serem a própria trama do texto não são por natureza estranhas ao discurso Podese mesmo qualificálas de prédiscursivas mas com a condição de que se admita que esse prédiscursivo pertence ainda ao discursivo isto é que elas não especificam um pensamento uma consciência ou um conjunto de representações que seriam mais tarde e de uma forma jamais inteiramente necessária transcritas em um discurso mas que caracterizam certos níveis do discurso definem regras que ele atualiza enquanto prática singular Não procuramos pois passar do texto ao pensamento da conversa ao silêncio do exterior ao interior da dispersão espacial ao puro recolhimento do instante da multiplicidade superficial à unidade profunda Permanecemos na dimensão do discurso III O ENUNCIADO E O ARQUIVO 1 DEFINIR O ENUNCIADO Suponho agora que o risco tenha sido aceito que se tenha admitido de bom grado para articular a grande superfície dos discursos essas figuras um pouco estranhas um pouco longínquas que chamei formações discursivas que se tenha posto de lado não de forma definitiva mas por algum tempo e por uma questão de método as unidades tradicionais do livro e da obra que se deixe de tomar como princípio de unidade as leis de construção do discurso com a organização formal que daí resulta ou a situação do sujeito falante com o contexto e o núcleo psicológico que a caracterizam que não mais se relacione o discurso ao solo inicial de uma experiência nem à instância a priori de um conhecimento mas que nele mesmo o interroguemos sobre as regras de sua formação Suponho que se aceite empreender essas longas pesquisas sobre o sistema de emergência dos objetos de aparecimento e de distribuição dos modos enunciativos de posicionamento e de dispersão dos conceitos de desenvolvimento das escolhas estratégicas Suponho que se queira construir unidades igualmente abstratas e problemáticas ao invés de acolher as que eram apresentadas com indubitável evidência ou pelo menos com uma familiaridade quase perceptiva Mas de fato de que falei até aqui Qual foi o objeto de minha pesquisa E estava em meus propósitos descrever o quê 90 Michel Foucault Enunciados nessa descontinuidade que os liberta de todas as formas em que tão facilmente aceitavase fossem tomados e ao mesmo tempo no campo geral ilimitado aparentemente sem forma do discurso Ora tive o cuidado de não dar uma definição preliminar de enunciado Não tentei construíla à medida que avançava para justificar a ingenuidade de meu ponto de partida Muito mais e esta é sem dúvida a sanção para tanta negligência eu me pergunto se ao longo do caminho não mudei de orientação se não substituí o horizonte inicial por outra pesquisa se analisando objetos ou conceitos e principalmente estratégias era ainda dos enunciados que eu falava se os quatro conjuntos de regras pelos quais eu caracterizava uma formação discursiva definem grupos de enunciados Finalmente em lugar de estreitar pouco a pouco a significação tão flutuante da palavra discurso creio terlhe multiplicado os sentidos ora domínio geral de todos os enunciados ora grupo individualizável de enunciados ora prática regulamentada dando conta de um certo número de enunciados e a própria palavra discurso que deveria servir de limite e de invólucro ao termo enunciado não a fiz variar à medida que deslocava minha análise ou seu ponto de aplicação à medida que perdia de vista o próprio enunciado Eis portanto a tarefa atual retomar em sua raiz a definição do enunciado e ver se ela é efetivamente empregada nas descrições anteriores ver se é mesmo do enunciado que se trata na análise das formações discursivas Repetidas vezes usei o termo enunciado seja para falar como se se tratasse de indivíduos ou acontecimentos singulares de uma população de enunciados seja para opôlo como a parte se distingue do todo aos conjuntos que seriam os discursos À primeira vista o enunciado aparece como um elemento último indecomponível suscetível de ser isolado em si mesmo e capaz de entrar em um jogo de relações com outros elementos semelhantes a ele como um ponto sem superfície mas que pode ser demarcado em planos de repartição e em formas específicas de grupamentos como um grão que aparece na superfície de um tecido de que é o elemento constituinte como um átomo do discurso E logo o problema se coloca se o enunciado é a unidade elementar do discurso em que consiste Quais são os seus A Arqueologia do Saber 91 traços distintivos Que limites devemos nele reconhecer Essa unidade é ou não idêntica à que os lógicos designaram pelo termo proposição à que os gramáticos caracterizam como frase ou ainda à que os analistas tentam demarcar sob o título speech act Que lugar ocupa entre todas as unidades já descobertas pela investigação da linguagem mas cuja teoria muito frequentemente está longe de ser acabada tão difíceis os problemas que colocam tão penoso em muitos casos delimitálas de forma rigorosa Não acredito que a condição necessária e suficiente para que haja enunciado seja a presença de uma estrutura proposicional definida e que se possa falar de enunciado todas as vezes em que houver proposição e apenas neste caso Podese na verdade ter dois enunciados perfeitamente distintos que se referem a grupamentos discursivos bem diferentes onde não se encontra mais que uma proposição suscetível de um único e mesmo valor obedecendo a um único e mesmo conjunto de leis de construção e admitindo as mesmas possibilidades de utilização Ninguém ouviu e é verdade que ninguém ouviu são indiscerníveis do ponto de vista lógico e não podem ser consideradas como duas proposições diferentes Ora enquanto enunciados estas duas formulações não são equivalentes nem intercambiáveis Não se podem encontrar em um mesmo lugar no plano do discurso nem pertencer exatamente ao mesmo grupo de enunciados Se encontramos a fórmula Ninguém ouviu na primeira linha de um romance sabese até segunda ordem que se trata de uma constatação feita seja pelo autor seja por um personagem em voz alta ou sob a forma de um monólogo interior se encontramos a segunda formulação É verdade que ninguém ouviu só podemos estar em um jogo de enunciados que constitui um monólogo interior uma discussão muda uma contestação consigo mesmo ou um fragmento de diálogo um conjunto de questões e de respostas Nos dois casos tratase da mesma estrutura proposicional mas de caracteres enunciativos bastante distintos Pode haver ao contrário formas proposicionais complexas e redobradas ou ao contrário proposições fragmentárias e inacabadas aí onde evidentemente se trata de um enunciado simples completo e autônomo mesmo se fizer parte de todo um conjunto de outros enunciados conhecemos o exemplo O atual rei da França é careca que só pode 92 Michel Foucault ser analisado do ponto de vista lógico se se reconhecer sob as formas de um enunciado único duas proposições distintas cada uma suscetível de ser verdadeira ou falsa em si mesma ou ainda o exemplo de uma proposição como Minto que só pode ser verdadeira em sua relação com uma asserção de nível inferior Os critérios que permitem definir a identidade de uma proposição distinguir várias delas sob a unidade de uma formulação caracterizar sua autonomia ou sua propriedade de ser completa não servem para descrever a unidade singular de um enunciado E a frase Não seria preciso admitir uma equivalência entre frase e enunciado Sempre que existe uma frase gramaticalmente isolável podese reconhecer a existência de um enunciado independente mas em compensação não se pode mais falar de enunciado quando sob a própria frase chegase ao nível de seus constituintes De nada adiantaria alegar contra essa equivalência que alguns enunciados podem ser compostos fora da forma canônica sujeitoligaçãopredicado por um simples sintagma nominal Este homem ou por um advérbio Perfeitamente ou por um pronome pessoal Você Os próprios gramáticos reconhecem em semelhantes formulações frases independentes mesmo que tenham sido obtidas por uma série de transformações a partir do esquema sujeitopredicado Além disso atribuem o status de frases aceitáveis a conjuntos de elementos linguísticos que não foram corretamente construídos contanto que sejam interpretáveis atribuem em compensação o status de frases gramaticais a conjuntos interpretáveis contanto que tenham sido corretamente formados Com uma definição tão vasta e em um sentido tão laxista da frase não se vê como reconhecer frases que não sejam enunciados ou enunciados que não sejam frases Entretanto a equivalência está longe de ser total e é relativamente fácil citar enunciados que não correspondem à estrutura linguística das frases Quando encontramos em uma gramática latina uma série de palavras dispostas em coluna amo amas amat não lidamos com uma frase mas com o enunciado das diferentes flexões pessoais do indicativo presente do verbo amare Talvez se ache o exemplo discutível talvez se possa dizer que se trata de um simples artifício de apresentação que esse enunciado é uma frase elítica A Arqueologia do Saber 93 abreviada espacializada de modo relativamente não usual e que é preciso lêlo como a frase O presente do indicativo do verbo amare é amo para a primeira pessoa etc De qualquer forma outros exemplos são menos ambíguos um quadro classificatório das espécies botânicas é constituído de enunciados não de frases Genera plantarum de Lineu é um livro inteiramente constituído de enunciados em que não podemos reconhecer mais que um número restrito de frases uma árvore genealógica um livro contábil as estimativas de um balanço comercial são enunciados onde estão as frases Podese ir mais longe uma equação de enésimo grau ou a fórmula algébrica da lei da refração devem ser consideradas como enunciados e se possuem uma gramaticalidade muito rigorosa já que são compostas de símbolos cujo sentido é determinado por regras de uso e pela sucessão regida por leis de construção não se trata dos mesmos critérios que permitem em uma língua natural definir uma frase aceitável ou interpretável Finalmente um gráfico uma curva de crescimento uma pirâmide de idades um esboço de repartição formam enunciados quanto às frases de que podem estar acompanhados elas são sua interpretação ou comentário não são o equivalente deles a prova é que em muitos casos apenas um número infinito de frases poderia equivaler a todos os elementos que estão explicitamente formulados nessa espécie de enunciados Não parece possível assim definir um enunciado pelos caracteres gramaticais da frase Permanece uma última possibilidade à primeira vista a mais verossímil de todas Seria possível dizer que existe enunciado sempre que se possa reconhecer e isolar um ato de formulação algo como o speech act esse ato ilocutório de que falam os analistas ingleses É claro que não se visa com isso ao ato material que consiste em falar em voz alta ou baixa e em escrever à mão ou à máquina não se visa tampouco à intenção do indivíduo que está falando o fato de que quer convencer que deseja ser obedecido que procura descobrir a solução de um problema ou que deseja dar notícias não se designa tampouco o resultado eventual do que ele disse se convenceu ou suscitou desconfiança se foi ouvido e se suas ordens foram cumpridas se sua prece foi compreendida descrevese a operação que foi efetuada pela própria fórmula em sua emergência promessa ordem decreto contrato 94 Michel Foucault compromisso constatação O ato ilocutório não é o que ocorreu antes do momento do enunciado no pensamento do autor ou no jogo de suas intenções não é o que se pôde produzir depois do próprio enunciado no sulco que deixou atrás de si e nas consequências que provocou mas sim o que se produziu pelo próprio fato de ter sido enunciado e precisamente esse enunciado e nenhum outro em circunstâncias bem determinadas Podese então supor que a individualização dos enunciados depende dos mesmos critérios que a demarcação dos atos de formulação cada ato tomaria corpo em um enunciado e cada enunciado seria internamente habitado por um desses atos Existiriam um pelo outro e em uma exata reciprocidade Semelhante correlação entretanto não resiste à crítica É preciso frequentemente mais de um enunciado para efetuar um speech act juramento prece contrato promessa demonstração exigem na maior parte do tempo um certo número de fórmulas distintas ou de frases separadas seria difícil contestar em cada uma delas o status de enunciado sob o pretexto de que são todas atravessadas por um único e mesmo ato ilocutório Talvez se diga que nesse caso o próprio ato não permanece único ao longo da série dos enunciados que há em uma prece tantos atos de prece limitados sucessivos e justapostos quantas forem as exigências formuladas por enunciados distintos e que há em uma promessa tantos comprometimentos quantas forem as sequências individualizáveis em enunciados separados Não poderíamos entretanto nos satisfazer com esta resposta inicialmente porque o ato de formulação não serviria mais para definir o enunciado mas deveria ser ao contrário definido por este que justamente constitui problema e requer critérios de individualização Além disso certos atos ilocutórios só podem ser considerados como acabados em sua unidade singular se vários enunciados tiverem sido articulados cada um no lugar que lhe convém Esses atos são pois constituídos pela série ou soma desses enunciados por sua necessária justaposição não se pode considerar que estejam inteiramente presentes no menor deles e que se renovem com cada um Aqui também não se poderia estabelecer uma relação biunívoca entre o conjunto dos enunciados e o dos atos ilocutórios Quando se quer individualizar os enunciados não se pode admitir sem reservas nenhum dos modelos tomados de A Arqueologia do Saber 95 empréstimo à gramática à lógica ou à análise Nos três casos percebese que os critérios propostos são demasiado numerosos e pesados que não deixam ao enunciado toda a sua extensão e que se às vezes o enunciado assume as formas descritas e a elas se ajusta exatamente acontece também que não lhes obedece encontramos enunciados sem estrutura proposicional legítima encontramos enunciados onde não se pode reconhecer nenhuma frase encontramos mais enunciados do que os speech acts que podemos isolar como se o enunciado fosse mais tênue menos carregado de determinações menos fortemente estruturado mais onipresente também que todas essas figuras como se seus caracteres fossem em número menor e menos difíceis de serem reunidos mas como se por isso mesmo ele recusasse toda possibilidade de descrição E isso se acentua na medida em que não se vê bem em que nível situálo nem por que método abordálo para todas as análises que acabamos de evocar ele nunca passa de suporte ou substância acidental na análise lógica é o que resta quando se extrai e define a estrutura de proposição para a análise gramatical é a série de elementos linguísticos na qual se pode reconhecer ou não a forma de uma frase para a análise dos atos de linguagem aparece como o corpo visível no qual eles se manifestam Em relação a todas essas abordagens descritivas desempenha o papel de um elemento residual puro e simples de fato de material não pertinente Será preciso finalmente admitir que o enunciado não pode ter caráter próprio e que não é suscetível de definição adequada na medida em que é para todas as análises da linguagem a matéria extrínseca a partir da qual elas determinaram seu objeto Será preciso admitir que qualquer série de signos de figuras de grafismos ou de traços não importa qual seja sua organização ou probabilidade é suficiente para constituir um enunciado e que cabe à gramática dizer se se trata ou não de uma frase à lógica definir se ela comporta ou não uma forma proposicional e à análise precisar qual é o ato de linguagem que pode atravessála Neste caso seria necessário admitir que há enunciado desde que existam vários signos justapostos e por que não talvez desde que exista um e somente um O limiar do enunciado seria o limiar da existência dos signos Entretanto ainda aqui as coisas não são tão simples e o sentido que é preciso dar a uma expressão como 96 Michel Foucault a existência dos signos precisa ser elucidado O que queremos dizer quando afirmamos que há signos e que basta que haja signos para que haja enunciado Que status singular atribuir a esse há É evidente que os enunciados não existem no sentido em que uma língua existe e com ela um conjunto de signos definidos por seus traços oposicionais e suas regras de utilização a língua na verdade jamais se apresenta em si mesma e em sua totalidade só poderia sêlo de uma forma secundária e pelo expediente de uma descrição que a tomaria por objeto os signos que constituem seus elementos são formas que se impõem aos enunciados e que os regem do interior Se não houvesse enunciados a língua não existiria mas nenhum enunciado é indispensável à existência da língua e podemos sempre supor em lugar de qualquer enunciado um outro enunciado que nem por isso modificaria a língua A língua só existe a título de sistema de construção para enunciados possíveis mas por outro lado ela só existe a título de descrição mais ou menos exaustiva obtida a partir de um conjunto de enunciados reais Língua e enunciado não estão no mesmo nível de existência e não podemos dizer que há enunciados como dizemos que há línguas Mas basta então que os signos de uma língua constituam um enunciado uma vez que foram produzidos articulados delineados fabricados traçados de um modo ou de outro uma vez que apareceram em um momento do tempo e em um ponto do espaço uma vez que a voz que os pronunciou ou o gesto que os moldou lhes deram as dimensões de uma existência material Será que as letras do alfabeto por mim escritas ao acaso em uma folha de papel como exemplo do que não é um enunciado será que os caracteres de chumbo utilizados para imprimir os livros e não se pode negar sua materialidade que tem espaço e volume será que esses signos expostos visíveis manipuláveis podem ser razoavelmente considerados como enunciados Olhandose um pouco mais de perto esses dois exemplos caracteres de chumbo e signos por mim traçados não podem ser inteiramente superpostos O punhado de caracteres tipográficos que posso segurar na mão ou ainda as letras que estão indicadas no teclado de uma máquina de escrever não constituem enunciados são quando muito instrumentos com os quais poderemos escrever enunciados A Arqueologia do Saber 97 Em compensação as letras que traço ao acaso em uma folha de papel tal como me ocorrem e para mostrar que elas não podem em sua desordem constituir um enunciado o que são elas que figura formam Um quadro de letras escolhidas de maneira contingente o enunciado de uma série alfabética que só conhece a lei da probabilidade Da mesma forma o quadro aleatório de números que os estatísticos podem vir a utilizar é uma sequência de símbolos numéricos que não estão ligados entre si por nenhuma estrutura de sintaxe ele é entretanto um enunciado o de um conjunto de números obtidos por processos que eliminam tudo que poderia aumentar a probabilidade dos resultados sucessivos Voltemos ainda ao exemplo o teclado de uma máquina de escrever não é um enunciado mas a mesma série de letras A Z E R T enumerada em um manual de datilografia é o enunciado da ordem alfabética adotada pelas máquinas francesas Eisnos pois em presença de um certo número de consequências negativas não se requer uma construção linguística regular para formar um enunciado esse pode ser constituído de uma série de probabilidade mínima mas não basta tampouco qualquer realização material de elementos linguísticos ou qualquer emergência de signos no tempo e no espaço para que um enunciado apareça e passe a existir O enunciado portanto não existe nem do mesmo modo que a língua apesar de ser composto de signos que só são definíveis em sua individualidade no interior de um sistema linguístico natural ou artificial nem do mesmo modo que objetos quaisquer apresentados à percepção se bem que seja sempre dotado de uma certa materialidade e que se possa sempre situálo segundo coordenadas espaçotemporais Ainda não é hora de responder à questão geral do enunciado mas podemos de agora em diante delimitar o problema o enunciado não é uma unidade do mesmo gênero da frase proposição ou ato de linguagem não se apóia nos mesmos critérios mas não é tampouco uma unidade como um objeto material poderia ser tendo seus limites e sua independência Em seu modo de ser singular nem inteiramente linguístico nem exclusivamente material ele é indispensável para que se possa dizer se há ou não frase proposição ato de linguagem e para que se possa dizer se a frase está correta ou aceitável ou interpretável se a proposição é legítima e bem constituída se 98 Michel Foucault o ato está de acordo com os requisitos e se foi inteiramente realizado Não é preciso procurar no enunciado uma unidade longa ou breve forte ou debilmente estruturada mas tomada como as outras em um nexo lógico gramatical ou locutório Mais que um elemento entre outros mais que um recorte demarcável em um certo nível de análise tratase antes de uma função que se exerce verticalmente em relação às diversas unidades e que permite dizer a propósito de uma série de signos se elas estão aí presentes ou não O enunciado não é pois uma estrutura isto é um conjunto de relações entre elementos variáveis autorizando assim um número talvez infinito de modelos concretos é uma função de existência que pertence exclusivamente aos signos e a partir da qual se pode decidir em seguida pela análise ou pela intuição se eles fazem sentido ou não segundo que regra se sucedem ou se justapõem de que são signos e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação oral ou escrita Não há razão para espanto por não se ter podido encontrar para o enunciado critérios estruturais de unidade é que ele não é em si mesmo uma unidade mas sim uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam com conteúdos concretos no tempo e no espaço É essa função que é preciso descrever agora como tal ou seja em seu exercício em suas condições nas regras que a controlam e no campo em que se realiza 2 A FUNÇÃO ENUNCIATIVA Inútil procurar o enunciado junto aos grupamentos unitários de signos Ele não é nem sintagma nem regra de construção nem forma canônica de sucessão e de permutação mas sim o que faz com que existam tais conjuntos de signos e permite que essas regras e essas formas se atualizem Mas se as faz existirem é de um modo singular que não se poderia confundir com a existência dos signos enquanto elementos de uma língua nem tampouco com a existência material das marcas que ocupam um fragmento e duram um tempo mais ou menos longo É esse modo singular de existência característico de toda série de signos desde que seja enunciada que se trata agora de questionar a Consideremos mais uma vez o exemplo dos signos moldados ou delineados em uma materialidade definida e agrupados de um modo arbitrário ou não mas que de qualquer forma não é gramatical como o teclado de uma máquina de escrever ou um punhado de caracteres tipográficos Basta que eu recopie os signos assim apresentados em uma folha de papel e na mesma ordem em que se sucedem sem produzir nenhuma palavra para que constituam um enunciado enunciado das letras do alfabeto em uma ordem que facilite a impressão enunciado de um grupo aleatório de letras O que ocorreu para que houvesse enunciado O que esse segundo 100 Michel Foucault conjunto pode ter de novo era relação ao primeiro A reduplicação o fato de que é uma cópia Sem dúvida não já que todos os teclados das máquinas de escrever recopiam um certo modelo e não são por isso enunciados A intervenção de um sujeito A resposta seria duas vezes insatisfatória não basta que a reiteração de uma série seja atribuída à iniciativa de um indivíduo para que ela se transforme por esse fato em um enunciado e de qualquer forma o problema não está na causa ou na origem da reduplicação mas na relação singular entre essas duas séries idênticas A segunda série na verdade não é um enunciado apenas pelo simples fato de que se pode estabelecer uma relação biunívoca entre seus elementos e os elementos da primeira série essa relação caracteriza o fato da duplicação se se trata de uma pura e simples cópia bem como a exatidão do enunciado se já transpusemos o limiar da enunciação mas ela não permite definir esse limiar e o próprio fato do enunciado Uma série de signos se tornará enunciado com a condição de que tenha com outra coisa que lhe pode ser estranhamente semelhante e quase idêntica como no exemplo escolhido uma relação específica que se refira a ela mesma e não à sua causa nem a seus elementos Diremos sem dúvida que não há nada de enigmático nessa relação que ela é pelo contrário bastante familiar e que não deixou de ser analisada que se trata da relação do significante com o significado e do nome com o que designa da relação da frase com seu sentido ou da relação da proposição com seu referente Ora acredito que se possa mostrar que a relação do enunciado com o que é enunciado não pode ser superposta a qualquer dessas relações O enunciado mesmo se está reduzido a um sintagma nominal O barco ou se está reduzido a um nome próprio Pedro não tem com o que enuncia a mesma relação que o nome mantém com o que designa ou significa O nome é um elemento linguístico que pode ocupar diferentes lugares em conjuntos gramaticais seu sentido ê definido por suas regras de utilização quer se trate dos indivíduos que podem ser validamente designados por ele ou das estruturas sintáticas nas quais pode corretamente entrar um nome se define por sua possibilidade de recorrência Um enunciado existe fora de qualquer possibilidade de reaparecimento e a relação que mantém com o que enuncia não é idêntica a um conjunto de A Arqueologia do Saber 101 regras de utilização Tratase de uma relação singular se nessas condições uma formulação idêntica reaparece as mesmas palavras são utilizadas basicamente os mesmos nomes em suma a mesma frase mas não forçosamente o mesmo enunciado Não é preciso tampouco confundir a relação entre um enunciado e o que ele enuncia com a relação entre uma proposição e seu referente Sabemos que os lógicos dizem que uma proposição como A montanha de ouro está na Califórnia não pode ser verificada porque não tem referente sua negação não é pois nem mais nem menos verdadeira que sua afirmação Será preciso dizer da mesma forma que um enunciado não se liga a nada se a proposição a que dá existência não tiver referente Seria preciso afirmar o inverso e dizer não que a ausência de referente acarreta a ausência de correlato para o enunciado mas sim que é o correlato do enunciado aquilo a que se refere o que é posto em jogo por ele não apenas o que é dito mas aquilo de que fala seu tema que permite dizer se a proposição tem um referente ou não é ele que permite decidir quanto a isso de maneira definitiva Supondo que a formulação A montanha de ouro está na Califórnia não se encontre nem em manual de geografia nem em narrativa de viagem mas em um romance ou em uma obra de ficção qualquer poderemos reconhecerlhe um valor de verdade ou de erro caso o mundo imaginário ao qual ela se relaciona autorize ou não semelhante fantasia geológica e geográfica É preciso saber a que se refere o enunciado qual é seu espaço de correlações para poder dizer se uma proposição tem ou não um referente O atual rei de França é careca só carece de referente na medida em que se supõe que o enunciado se refira ao mundo da informação histórica de hoje A relação da proposição com o referente não pode servir de modelo e de lei à relação do enunciado com o que enuncia Esta última não só é de nível diferente como também a precede Finalmente ela não pode tampouco ser superposta à relação entre uma frase e seu sentido O afastamento entre essas duas formas de relação aparece claramente nas famosas frases que não têm sentido apesar da estrutura gramatical inteiramente correta como no exemplo Incolores idéias verdes dormem furiosamente De fato dizer que uma frase como essa não tem sentido supõe que já tenhamos excluído um 102 Michel Foucault certo número de possibilidades admitimos que não se trata da narração de um sonho que não se trata de um texto poético que não se trata de uma mensagem codificada ou da fala de um drogado mas de um certo tipo de enunciado que deve estar relacionado de modo definido a uma realidade visível É no interior de uma relação enunciativa determinada e bem estabilizada que a relação de uma frase com seu sentido pode ser assinalada Além disso essas frases mesmo se as tomamos no nível enunciativo em que elas não têm sentido não estão enquanto enunciados privadas de correlações de início as que permitem dizer que por exemplo idéias jamais são coloridas ou incolores e que por isso a frase não tem sentido e essas correlações se referem a um plano de realidade em que as idéias são invisíveis em que as cores podem ser vistas etc por outro lado as que fazem valer a frase em questão como menção de um tipo de organização sintática correta mas desprovida de sentido e essas correlações se referem ao plano da língua de suas leis e de suas propriedades Por mais que uma frase não seja significante ela se relaciona a alguma coisa na medida em que é um enunciado Como definir a relação que caracterizaria exclusivamente o enunciado relação que parece implicitamente suposta pela frase ou pela proposição e que lhes aparece como anterior Como separála em si mesma das relações de sentido ou dos valores de verdade com os quais usualmente a confundimos Um enunciado qualquer que seja e por mais simples que o imaginemos não tem como correlato um indivíduo ou objeto singular que seria designado por determinada palavra da frase no caso de um enunciado como A montanha de ouro está na Califórnia o correlato não é essa formação real ou imaginária possível ou absurda designada pelo sintagma nominal que exerce a função de sujeito Mas o correlato do enunciado não é tampouco um estado de coisas ou uma relação suscetível de verificar a proposição no exemplo escolhido seria a inclusão espacial de uma certa montanha em uma região determinada Em compensação o que se pode definir como correlato do enunciado é um conjunto de domínios em que tais objetos podem aparecer e em que tais relações podem ser assinaladas por exemplo um domínio de objetos materiais que possuem um certo número de propriedades físicas constatáveis relações de grandeza perceptível ou ao contrário um A Arqueologia do Saber 103 domínio de objetos fictícios dotados de propriedades arbitrárias mesmo que elas tenham uma certa constância e uma certa coerência sem instância de verificações experimentais ou perceptivas um domínio de localizações espaciais e geográficas com coordenadas distâncias relações de vizinhança e de inclusão ou ao contrário um domínio de dependências simbólicas e de parentescos secretos um domínio de objetos que existem no mesmo instante e na mesma escala de tempo em que se formula o enunciado ou um domínio de objetos que pertence a um presente inteiramente diferente aquele que é indicado e constituído pelo próprio enunciado e não aquele a que o enunciado também pertence Um enunciado não tem diante de si e numa espécie de conversa um correlato ou uma ausência de correlato assim como uma proposição tem um referente ou não ou como um nome próprio designa um indivíduo ou ninguém Está antes ligado a um referencial que não é constituído de coisas de fatos de realidades ou de seres mas de leis de possibilidade de regras de existência para os objetos que aí se encontram nomeados designados ou descritos para as relações que aí se encontram afirmadas ou negadas O referencial do enunciado forma o lugar a condição o campo de emergência a instância de diferenciação dos indivíduos ou dos objetos dos estados de coisas e das relações que são postas em jogo pelo próprio enunciado define as possibilidades de aparecimento e de delimitação do que dá à frase seu sentido à proposição seu valor de verdade É esse conjunto que caracteriza o nível enunciativo da formulação por oposição a seu nível gramatical e a seu nível lógico através da relação com esses diversos domínios de possibilidade o enunciado faz de um sintagma ou de uma série de símbolos uma frase a que se pode ou não atribuir um sentido uma proposição que pode receber ou não um valor de verdade Vêse de qualquer forma que a descrição do nível enunciativo não pode ser feita nem por uma análise formal nem por uma investigação semântica nem por uma verificação mas pela análise das relações entre o enunciado e os espaços de diferenciação em que ele mesmo faz aparecer as diferenças b Um enunciado além disso se distingue de uma série qualquer de elementos linguísticos porque mantém com um sujeito uma relação determinada que se deve isolar 104 Michel Foucault sobretudo das relações com as quais poderia ser confundida e cuja natureza é preciso especificar Não é preciso na verdade reduzir o sujeito do enunciado aos elementos gramaticais de primeira pessoa que estão presentes no interior da frase inicialmente porque o sujeito do enunciado não está dentro do sintagma linguístico em seguida porque um enunciado que não comporta primeira pessoa tem ainda assim um sujeito enfim e sobretudo todos os enunciados que têm uma forma gramatical fixa quer seja em primeira ou em segunda pessoa não têm um único e mesmo tipo de relação com o sujeito do enunciado Compreendese facilmente que essa relação não é a mesma em um enunciado do tipo A tarde começa a cair e Todo efeito tem uma causa quanto a um enunciado do tipo Deiteime cedo durante muito tempo a relação com o sujeito que enuncia não é a mesma se o ouvimos articulado no curso de uma conversa e se o lemos na primeira linha de um livro que se chama À la recherche du temps perda Esse sujeito exterior à frase não seria simplesmente o indivíduo real que a articulou ou escreveu Não há signos sem alguém para proferilos ou de qualquer forma sem alguma coisa como elemento emissor Para que uma série de signos exista é preciso segundo o sistema das causalidades um autor ou uma instância produtora Mas esse autor não é idêntico ao sujeito do enunciado e a relação de produção que mantém com a formulação não pode ser superposta à relação que une o sujeito enunciante e o que ele enuncia Não tomemos pois seria demasiado simples o caso de um conjunto de signos materialmente moldados ou traçados sua produção implica um autor não há entretanto nem enunciado nem sujeito do enunciado Poderíamos lembrar também para mostrar a dissociação entre o emissor de signos e o sujeito de um enunciado o caso de um texto lido por uma terceira pessoa ou do ator representando seu papel Mas esses são casos extremos De maneira geral parece pelo menos à primeira vista que o sujeito do enunciado é precisamente aquele que produziu seus diferentes elementos com uma intenção de significação Entretanto as coisas não são tão simples Sabese que em um romance o autor da formulação é o indivíduo real cujo nome figura na capa do livro ainda se coloca o problema dos elementos dialogados e das frases que se referem ao A Arqueologia do Saber 105 pensamento de um personagem ainda se coloca o problema dos textos publicados sob pseudônimo e sabemos todas as dificuldades que esses desdobramentos suscitam para os defensores da análise interpretativa quando querem relacionar de uma só vez todas essas formulações ao autor do texto ao que ele queria dizer ao que pensava enfim ao grande discurso mudo inaparente e uniforme sobre o qual se apóia toda essa pirâmide de níveis diferentes mas até fora dessas instâncias de formulação que não são idênticas ao indivíduoautor os enunciados do romance não têm o mesmo sujeito conforme dêem como se fosse do exterior os marcos históricos e espaciais da história contada ou descrevam as coisas como as veria um indivíduo anônimo invisível e neutro magicamente misturado às figuras da ficção ou ainda dêem como se fosse por decifração interior e imediata a versão verbal do que silenciosamente experimenta um personagem Esses enunciados ainda que o autor seja o mesmo ainda que só os atribua a si ainda que não invente relais suplementar entre o que ele é e o texto que se lê não supõem para o sujeito enunciante os mesmos caracteres não implicam a mesma relação entre o sujeito e o que ele está enunciando Talvez se diga que o exemplo tantas vezes citado do texto romanesco não tem valor probante ou antes que questiona a própria essência da literatura e não o status do sujeito dos enunciados em geral Seria uma particularidade da literatura que o autor dela se ausentasse se escondesse se destacasse ou se separasse e dessa dissociação não se deveria concluir universalmente que o sujeito do enunciado é distinto em tudo natureza status função identidade do autor da formulação Entretanto essa ruptura não está limitada apenas à literatura É absolutamente geral na medida em que o sujeito do enunciado é uma função determinada mas não forçosamente a mesma de um enunciado a outro na medida em que é uma função vazia podendo ser exercida por indivíduos até certo ponto indiferentes quando chegam a formular o enunciado e na medida em que um único e mesmo indivíduo pode ocupar alternadamente em uma série de enunciados diferentes posições e assumir o papel de diferentes sujeitos Consideremos o exemplo de um tratado de matemática Na frase do prefácio em que se explica por que o tratado foi escrito em que circunstâncias para responder a que problema não resolvido 106 Michel Foucault ou a que inquietação pedagógica utilizando que métodos depois de que tentativas e fracassos a posição de sujeito enunciativo só pode ser ocupada pelo autor ou autores da formulação as condições de individualização do sujeito são de fato muito estritas muito numerosas e autorizam nesse caso apenas um sujeito possível Em compensação se no próprio corpo do tratado encontramos uma proposição como Duas quantidades iguais a uma terceira são iguais entre si o sujeito do enunciado é a posição absolutamente neutra indiferente ao tempo ao espaço às circunstâncias idêntica em qualquer sistema linguístico em qualquer código de escrita ou de simbolização e que pode ser ocupada por qualquer indivíduo para afirmar tal proposição Por outro lado frases do tipo Já demonstramos que compreendem para que possam ser enunciadas condições contextuais precisas que não estavam compreendidas pela formulação precedente a posição é então fixada no interior de um domínio constituído por um conjunto finito de enunciados é localizada em uma série de acontecimentos enunciativos que já se devem ter produzido é estabelecida em um tempo demonstrativo cujos momentos anteriores jamais se perdem e que não têm pois necessidade de serem recomeçados e repetidos identicamente para se apresentarem de novo basta uma menção para reativálos em sua validade original é determinada pela existência prévia de um certo número de operações efetivas que talvez não tenham sido feitas por um único e mesmo indivíduo o que fala no momento mas que pertencem de direito ao sujeito enunciante e que estão à sua disposição podendo ser por ele retornadas quando necessário Definiremos o sujeito de tal enunciado pelo conjunto desses requisitos e possibilidades e não o descreveremos como indivíduo que tivesse realmente efetuado operações que vivesse num tempo sem esquecimento nem ruptura que tivesse interiorizado no horizonte de sua consciência todo um conjunto de proposições verdadeiras e que delas retivesse no presente vivo de seu pensamento o reaparecimento virtual nos indivíduos isso não passa quando muito do aspecto psicológico e vivido de sua posição enquanto sujeitos enunciantes Da mesma forma poderíamos descrever qual é a posição específica do sujeito enunciante em frases como Chamo de reta todo conjunto de pontos que ou Consideremos um A Arqueologia do Saber 107 conjunto finito de elementos quaisquer em ambas a posição do sujeito está ligada à existência de uma operação ao mesmo tempo determinada e atual em ambas o sujeito do enunciado é também o sujeito da operação aquele que estabelece a definição é também aquele que a enuncia aquele que coloca a existência é ao mesmo tempo quem coloca o enunciado em ambas finalmente o sujeito liga por essa operação e pelo enunciado em que ela toma corpo seus enunciados e suas operações futuros enquanto sujeito enunciante ele aceita o enunciado como sua própria lei Existe no entanto uma diferença No primeiro caso o que está enunciado é uma convenção de linguagem dessa linguagem que deve ser utilizada pelo sujeito enunciante e no interior da qual ele se define o sujeito enunciante e o que é enunciado estão no mesmo nível enquanto para uma análise formal um enunciado como esse implica o desnivelamento próprio da metalinguagem No segundo caso ao contrário o sujeito enunciante faz com que exista fora de si um objeto que pertence a um domínio já definido cujas leis de possibilidade já foram articuladas e cujos caracteres são anteriores à enunciação que o coloca Vimos há pouco que a posição do sujeito enunciante nem sempre é idêntica quando se trata de afirmar uma proposição verdadeira vêse agora que ela não é tampouco a mesma quando se trata de efetuar no próprio enunciado uma operação Não é preciso pois conceber o sujeito do enunciado como idêntico ao autor da formulação nem substancialmente nem funcionalmente Ele não é na verdade causa origem ou ponto de partida do fenômeno da articulação escrita ou oral de uma frase não é tampouco a intenção significativa que invadindo silenciosamente o terreno das palavras as ordena como o corpo visível de sua intuição não é o núcleo constante imóvel e idêntico a si mesmo de uma série de operações que os enunciados cada um por sua vez viriam manifestar na superfície do discurso É um lugar determinado e vazio que pode ser efetivamente ocupado por indivíduos diferentes mas esse lugar em vez de ser definido de uma vez por todas e de se manter uniforme ao longo de um texto de um livro ou de uma obra varia ou melhor é variável o bastante para poder continuar idêntico a si mesmo através de várias frases bem como para se modificar a cada uma Esse lugar é uma dimensão que caracteriza toda formulação enquanto enunciado 108 Michel Foucault constituindo um dos traços que pertencem exclusivamente à função enunciativa e permitem descrevêla Se uma proposição uma frase um Conjunto de signos podem ser considerados enunciados não é porque houve um dia alguém para proferilos ou para depositar em algum lugar seu traço provisório mas sim na medida em que pode ser assinalada a posição do sujeito Descrever uma formulação enquanto enunciado não consiste em analisar as relações entre o autor e o que ele disse ou quis dizer ou disse sem querer mas em determinar qual é a posição que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser seu sujeito c Terceira característica da função enunciativa ela não pode se exercer sem a existência de um domínio associado Isso faz do enunciado algo diferente e mais que um simples agregado de signos que precisaria para existir apenas de um suporte material superfície de inscrição substância sonora matéria moldável incisão vazia de um traço Mas isso o distingue também e sobretudo da frase e da proposição Consideremos um conjunto de palavras ou de símbolos Para decidir se eles constituem uma unidade gramatical como a frase ou uma unidade lógica como a proposição é necessário e suficiente determinar segundo que regras foi construído Pierre est arrivé hier forma uma frase mas Hier est Pierre arrivé não A B C D constitui uma proposição mas ABC D não Apenas o exame dos elementos e de sua distribuição em referência ao sistema natural ou artificial da língua permite estabelecer a diferença entre o que é proposição e o que não é entre o que é frase e o que é mero acúmulo de palavras Além disso esse exame basta para determinar a que tipo de estrutura gramatical pertence a frase em questão frase afirmativa no passado comportando um sujeito nominal etc ou a que tipo de proposição corresponde a série de signos visada uma equivalência entre duas adições Em casos extremos podese conceber uma frase ou uma proposição que se determina sozinha sem nenhuma outra para lhe servir de contexto sem nenhum conjunto de frases ou de proposições associadas o fato de serem nessas condições inúteis e inutilizáveis não impede que se possa reconhecêlas mesmo assim em sua singularidade Podese fazer sem dúvida um certo número de objeções como por exemplo a de que uma proposição só pode ser esta A Arqueologia do Saber 109 belecida e individualizada como tal caso se conheça o sistema de axiomas a que obedece essas definições regras convenções de escrita não formariam um campo associado inseparável da proposição do mesmo modo que as regras da gramática implicitamente atuantes na competência do sujeito são necessárias para que se possa reconhecer uma frase e uma frase de um certo tipo Entretanto é preciso notar que esse conjunto atual ou virtual não é do mesmo nível da proposição ou frase mas que versa sobre seus elementos encadeamento e distribuição possíveis Não é associado a estes é por ela suposto Poderíamos objetar também que muitas proposições não tautológicas não podem ser verificadas a partir apenas de suas regras de construção e que o recurso ao referente é necessário para decidir se elas são verdadeiras ou falsas mas verdadeira ou falsa uma proposição permanece uma proposição e não é o recurso ao referente que decide se ela é ou não uma proposição O mesmo acontece com as frases em muitos casos elas só podem produzir seu sentido pela relação com o contexto seja porque compreendem elementos dêiticos que remetem a uma situação concreta ou porque fazem uso de pronomes em primeira ou segunda pessoa que designam o sujeito falante e seus interlocutores ou ainda porque se servem de elementos pronominais ou de partículas de ligação que se referem a frases anteriores ou futuras mas o fato de que seu sentido não possa ser concluído não impede que a frase seja gramaticalmente completa e autônoma Certamente não se sabe muito bem o que quer dizer um conjunto de palavras como Isso eu lhe direi amanhã de qualquer modo não se pode datar esse amanhã nem nomear os interlocutores nem adivinhar o que deve ser dito Só resta dizer que se trata de uma frase perfeitamente delimitada conforme as regras de construção da língua Finalmente poderíamos objetar que sem contexto é às vezes difícil definir a estrutura de uma frase se ele está morto jamais saberei pode ser construída No caso de ele estar morto ignorarei sempre tal coisa ou Jamais serei avisado de sua morte Mas tratase de uma ambiguidade perfeitamente definível cujas possibilidades simultâneas podem ser enumeradas e que faz parte da estrutura própria da frase De maneira geral podese dizer que uma frase ou proposição mesmo isolada mesmo retirada do contexto natural que a esclarece mesmo 110 Michel Foucault libertada ou amputada de todos os elementos a que implicitamente ou não pode remeter continua a ser sempre uma frase ou proposição e é sempre possível reconhecêla como tal Em compensação a função enunciativa mostrando assim que não é pura e simples construção de elementos prévios não pode se exercer sobre uma frase ou proposição em estado livre Não basta dizer uma frase nem mesmo basta dizêla em uma relação determinada com um campo de objetos ou em uma relação determinada com um sujeito para que haja enunciado para que se trate de um enunciado é preciso relacionála com todo um campo adjacente Ou antes visto que não se trata de uma relação suplementar que vem se imprimir sobre as outras não se pode dizer uma frase não se pode fazer com que ela chegue a uma existência de enunciado sem que seja utilizado um espaço colateral um enunciado tem sempre margens povoadas de outros enunciados Essas margens se distinguem do que se entende geralmente por contexto real ou verbal isto é do conjunto dos elementos de situação ou de linguagem que motivam uma formulação e lhe determinam o sentido E elas dele se distinguem na medida em que o tornam possível a relação contextual não é a mesma entre uma frase e as que a envolvem caso se trate de um romance ou de um tratado de física não será a mesma entre uma formulação e o meio objetivo caso se trate de uma conversa ou de um relatório de experiência É sobre uma relação mais geral entre as formulações sobre toda uma rede verbal que o efeito de contexto pode ser determinado As margens não são tampouco idênticas aos diferentes textos às diferentes frases que o sujeito pode ter em mente quando fala ainda aí elas são mais extensas que o envolvimento psicológico e até certo ponto elas o determinam pois segundo a posição o status e o papel de uma formulação entre todas as outras conforme se inscreva no campo da literatura ou deva se dissipar como um propósito indiferente conforme faça parte de uma narração ou comande uma demonstração o modo de presença dos outros enunciados na consciência do sujeito não será o mesmo não é nem o mesmo nível nem a mesma forma de experiência linguística de memória verbal de evocação do já dito que são utilizados O halo psicológico de uma formulação é comandado de longe pela disposição do campo enunciativo A Arqueologia do Saber 111 O campo associado que faz de uma frase ou de uma série de signos um enunciado e que lhes permite ter um contexto determinado um conteúdo representativo específico forma uma trama complexa Ele é constituído de início pela série das outras formulações no interior das quais o enunciado se inscreve e forma um elemento um jogo de réplicas formando uma conversação a arquitetura de uma demonstração limitada de um lado por suas premissas do outro por sua conclusão a sequência das afirmações que constituem uma narração É constituído também pelo conjunto das formulações a que o enunciado se refere implicitamente ou não seja para repetilas seja para modificálas ou adaptálas seja para se opor a elas seja para falar de cada uma delas não há enunciado que de uma forma ou de outra não reatualize outros enunciados elementos rituais em uma narração proposições já admitidas em uma demonstração frases convencionais em uma conversa É constituído ainda pelo conjunto das formulações cuja possibilidade ulterior é propiciada pelo enunciado e que podem vir depois dele como sua consequência sua sequência natural ou sua réplica uma ordem não abre as mesmas possibilidades enunciativas que as proposições de uma axiomática ou o início de uma narração É constituído finalmente pelo conjunto das formulações cujo status é compartilhado pelo enunciado em questão entre as quais toma lugar sem consideração de ordem linear com as quais se apagará ou com as quais ao contrário será valorizado conservado sacralizado e oferecido como objeto possível a um discurso futuro um enunciado não é dissociável do status que lhe pode ser atribuído como literatura ou como propósito irrelevante próprio para ser esquecido ou como verdade científica adquirida para sempre ou como discurso profético etc Podese dizer de modo geral que uma sequência de elementos linguísticos só é enunciado se estiver imersa em um campo enunciativo em que apareça como elemento singular O enunciado não é a projeção direta sobre o plano da linguagem de uma situação determinada ou de um conjunto de representações Não é simplesmente a utilização por um sujeito falante de um certo número de elementos e de regras linguísticas De início desde sua raiz ele se delineia em um campo enunciativo onde tem lugar e status que lhe apresenta relações possíveis com o passado e que lhe abre um futuro 112 Michel Foucault eventual Qualquer enunciado se encontra assim especificado não há enunciado em geral enunciado livre neutro e independente mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto desempenhando um papel no meio dos outros neles se apoiando e deles se distinguindo ele se integra sempre em um jogo enunciativo onde tem sua participação por ligeira e ínfima que seja Enquanto a construção gramatical para se efetuar só necessita de elementos e de regras enquanto se poderia conceber em termos extremos uma língua certamente artificial que só serviria para construir no total uma única frase enquanto considerandose o alfabeto as regras de construção e de transformação de um sistema formal se pode perfeitamente definir a primeira proposição dessa linguagem o mesmo não acontece com o enunciado Não há enunciado que não suponha outros não há nenhum que não tenha em torno de si um campo de coexistências efeitos de série e de sucessão uma distribuição de funções e de papéis Se se pode falar de um enunciado é na medida em que uma frase uma proposição figura em um ponto definido com uma posição determinada em um jogo enunciativo que a extrapola Sobre esse cenário da coexistência enunciativa se destacam em um nível autônomo e descritível as relações gramaticais entre frases as relações lógicas entre proposições as relações metalinguísticas entre uma linguagemobjeto e aquela que lhe define as regras as relações retóricas entre grupos ou elementos de frases É lícito certamente analisar todas essas relações sem que se tome por tema o próprio campo enunciativo isto é o domínio de coexistência em que se exerce a função enunciativa Mas elas só podem existir e só são suscetíveis de análise na medida em que as frases tenham sido enunciadas em outros termos na medida em que se desenrolem em um campo enunciativo que permita que elas se sucedam se ordenem coexistam e desempenhem um papel umas em relação às outras O enunciado longe de ser o princípio de individualização dos conjuntos significantes o átomo significativo o mínimo a partir do qual existe sentido é o que situa essas unidades significativas em um espaço em que elas se multiplicam e se acumulam d Finalmente para que uma sequência de elementos linguísticos possa ser considerada e analisada como um A Arqueologia do Saber 113 enunciado é preciso que ela preencha uma quarta condição deve ter existência material Poderíamos falar de enunciado se uma voz não o tivesse enunciado se uma superfície não registrasse seus signos se ele não tivesse tomado corpo em um elemento sensível e se não tivesse deixado marca apenas alguns instantes em uma memória ou em um espaço Poderíamos falar de um enunciado como de uma figura ideal e silenciosa O enunciado é sempre apresentado através de uma espessura material mesmo dissimulada mesmo se apenas surgida estiver condenada a se desvanecer Além disso o enunciado tem necessidade dessa materialidade mas ela não lhe é dada em suplemento uma vez bem estabelecidas todas as suas determinações em parte ela o constitui Composta das mesmas palavras carregada exatamente do mesmo sentido mantida em sua identidade sintática e semântica uma frase não constitui o mesmo enunciado se for articulada por alguém durante uma conversa ou impressa em um romance se foi escrita um dia há séculos e se reaparece agora em uma formulação oral As coordenadas e o status material do enunciado fazem parte de seus caracteres intrínsecos Eis uma evidência ou quase pois desde que a isso se preste um pouco de atenção as coisas se embaralham e os problemas se multiplicam Claro somos tentados a dizer que se o enunciado é caracterizado pelo menos em parte por seu status material e se sua identidade é sensível a uma modificação desse status o mesmo acontece com as frases ou as proposições a materialidade dos signos na verdade não é inteiramente indiferente à gramática ou mesmo à lógica Conhecemos os problemas teóricos colocados a esta última pela constância material dos símbolos utilizados como definir a identidade de um símbolo através das diferentes substâncias em que pode tomar corpo e das variações de forma que tolera Como reconhecêlo e assegurar que é o mesmo se é preciso definilo como um corpo físico concreto conhecemos também os problemas que lhe são colocados pela própria noção de uma sequência de símbolos O que quer dizer preceder e seguir Vir antes e depois Em que espaço se situa semelhante ordenação São muito mais bem conhecidas ainda as relações da materialidade e da língua o papel da escrita e do alfabeto o fato de que nem a mesma sintaxe nem o mesmo vocabulário são empregados em um texto e em uma conversa em um jornal e em um 114 Michel Foucault livro em uma carta e em um cartaz além disso há sequências de palavras que formam frases bastante individualizadas e perfeitamente aceitáveis nas manchetes de um jornal e que no entanto no curso de uma conversa jamais poderiam ter valor de uma frase com sentido Entretanto a materialidade desempenha no enunciado um papel muito mais importante não é simplesmente princípio de variação modificação dos critérios de reconhecimento ou determinação de subconjuntos linguísticos Ela é constitutiva do próprio enunciado o enunciado precisa ter uma substância um suporte ura lugar e uma data Quando esses requisitos se modificam ele próprio muda de identidade Logo surge uma quantidade de questões Uma mesma frase repetida em voz alta e em voz baixa forma um único enunciado ou vários Quando se decora um texto cada recitação dá lugar a um enunciado ou devese considerar que o mesmo se repete Uma frase fielmente traduzida para uma língua estrangeira forma dois enunciados distintos ou apenas um E em uma récita coletiva prece ou lição devemse contar quantos enunciados Como estabelecer a identidade do enunciado através dessas ocorrências múltiplas dessas repetições dessas transcrições O problema se complica sem dúvida porque nele se confundem frequentemente níveis diferentes É necessário pôr de lado inicialmente a multiplicidade das enunciações Diremos que há enunciação cada vez que um conjunto de signos for emitido Cada uma dessas articulações têm sua individualidade espaçotemporal Duas pessoas podem dizer ao mesmo tempo a mesma coisa já que são duas haverá duas enunciações distintas Um único e mesmo sujeito pode repetir várias vezes a mesma frase haverá igual número de enunciações distintas no tempo A enunciação é um acontecimento que não se repete tem uma singularidade situada e datada que não se pode reduzir Essa singularidade entretanto deixa passar um certo número de constantes gramaticais semânticas lógicas pelas quais se pode neutralizando o momento da enunciação e as coordenadas que o individualizam reconhecer a forma geral de uma frase de uma significação de uma proposição O tempo e o lugar da enunciação o suporte material que ela utiliza tornamse então indiferentes pelo menos em grande parte o que se destaca é uma forma indefinidamente repetível e que pode dar lugar às enunciações mais A Arqueologia do Saber 115 dispersas Ora o próprio enunciado não pode ser reduzido a esse simples fato da enunciação pois ele pode ser repetido apesar de sua materialidade não teremos problemas em afirmar que uma mesma frase pronunciada por duas pessoas em circunstâncias entretanto um pouco diferentes constitui apenas um enunciado E no entanto ele não se reduz a uma forma gramatical ou lógica na medida em que mais do que ela e de modo diferente é sensível a diferenças de matéria substância tempo e lugar Qual é pois essa materialidade própria do enunciado e que autoriza certos tipos singulares de repetição Como se pode falar do mesmo enunciado onde há várias enunciações distintas enquanto devemos falar de vários enunciados onde podemos reconhecer formas estruturas regras de construção alvos idênticos Qual é pois esse regime de materialidade repetível que caracteriza o enunciado Sem dúvida não é uma materialidade sensível qualitativa apresentada sob a forma da cor do som ou da solidez e esquadrinhada pela mesma demarcação espaçotemporal que o espaço perceptivo Consideremos um exemplo muito simples um texto reproduzido várias vezes as edições sucessivas de um livro ou ainda melhor os diferentes exemplares de uma mesma tiragem não dão lugar a igual número de enunciados distintos cm todas as edições das Fleurs du mal com exceção das edições cujo texto diverge do original e dos textos condenados encontraremos o mesmo jogo de enunciados entretanto nem os caracteres nem a tinta nem o papel nem em qualquer que seja o caso a localização do texto e a posição dos signos são os mesmos toda a materialidade mudou Mas aqui pequenas diferenças não são eficazes para alterar a identidade do enunciado e para fazer surgir um outro elas estão todas neutralizadas no elemento geral material é claro mas igualmente institucional e econômico do livro Um livro qualquer que seja seu número de exemplares ou de edições quaisquer que sejam as substâncias diversas que ele pode utilizar é um lugar de equivalência exata para os enunciados uma instância de repetição sem mudança de identidade Vêse no primeiro exemplo que a materialidade do enunciado não é definida pelo espaço ocupado ou pela data da formulação mas por um status de coisa ou de objeto jamais definitivo mas codificável relativo e sempre suscetível de ser novamente posto em questão sabese por exemplo que para 116 Michel Foucault os historiadores da literatura a edição de um livro publicado sob os cuidados do autor não tem a mesma importância que as edições póstumas que os enunciados têm aí um valor singular que eles não são uma das manifestações de um único e mesmo conjunto mas sim o que é e deve ser repetido Da mesma forma entre o texto de uma Constituição de um testamento ou de uma revelação religiosa e todos os manuscritos ou impressos que os reproduzem exatamente com a mesma escrita nos mesmos caracteres e sobre temas análogos não se pode dizer que haja equivalência de um lado há os próprios enunciados do outro sua reprodução O enunciado não se identifica com um fragmento de matéria mas sua identidade varia de acordo com um regime complexo de instituições materiais Um enunciado pode ser o mesmo manuscrito em uma folha de papel ou publicado em um livro pode ser o mesmo pronunciado oralmente impresso em um cartaz reproduzido por um gravador em compensação quando um romancista pronuncia uma frase qualquer na vida cotidiana visto que a coloca tal qual no manuscrito que redige atribuindoa a um personagem ou mesmo deixandoa ser pronunciada pela voz anônima que representa a do autor não se pode dizer que se trate nos dois casos do mesmo enunciado O regime de materialidade a que obedecem necessariamente os enunciados é pois mais da ordem da instituição do que da localização espaçotemporal define antes possibilidades de reinscrição e de transcrição mas também limiares e limites do que individualidades limitadas e perecíveis A identidade de um enunciado está submetida a um segundo conjunto de condições e de limites os que lhe são impostos pelo conjunto dos outros enunciados no meio dos quais figura pelo domínio no qual podemos utilizálo ou aplicálo pelo papel ou função que deve desempenhar A afirmação de que a terra é redonda ou de que as espécies evoluem não constitui o mesmo enunciado antes e depois de Copérnico antes e depois de Darwin não é que para formulações tão simples o sentido das palavras tenha mudado o que se modificou foi a relação dessas afirmações com outras proposições suas condições de utilização e de reinvestimento o campo da experiência de verificações possíveis de problemas a ser resolvidos ao qual podemos remetêlas A frase os sonhos A Arqueologia do Saber 117 realizam os desejos pode ser repetida através dos séculos não é o mesmo enunciado em Platão e em Freud Os esquemas de utilização as regras de emprego as constelações em que podem desempenhar um papel suas virtualidades estratégicas constituem para os enunciados um campo de estabilização que permite apesar de todas as diferenças de enunciação repetilos em sua identidade mas esse mesmo campo pode também sob as identidades semânticas gramaticais ou formais as mais manifestas definir um limiar a partir do qual não há mais equivalência sendo preciso reconhecer o aparecimento de um novo enunciado Mas é possível sem dúvida ir mais longe podemos considerar que existe apenas um único e mesmo enunciado onde as palavras a sintaxe a própria língua não são idênticas Consideremos um discurso e sua tradução simultânea um texto científico em inglês e sua versão francesa uma informação em três colunas em três línguas diferentes não há tantos enunciados quantas são as línguas em jogo mas um único conjunto de enunciados em formas linguísticas diferentes Melhor ainda uma informação dada pode ser retransmitida com outras palavras com uma sintaxe simplificada ou em um código convencionado se o conteúdo informativo e as possibilidades de utilização são as mesmas poderemos dizer que ambos os casos constituem o mesmo enunciado Ainda aí não se trata de um critério de individualização do enunciado mas de seu princípio de variação ora é mais diverso que a estrutura da frase e sua identidade é então mais elaborada mais frágil mais facilmente modificável que a de um conjunto semântico ou gramatical ora mais constante que essa estrutura e sua identidade é então maior mais estável menos acessível às variações Ainda mais além do fato de que a identidade do enunciado não pode ser situada de forma definitiva em relação à da frase ela própria é relativa e oscila segundo o uso que se faz do enunciado e a maneira pela qual é manipulado Quando se utiliza um enunciado para ressaltar sua estrutura gramatical sua configuração retórica ou as conotações de que é portador é evidente que não se pode considerálo como idêntico em sua língua original e em sua tradução Em compensação se queremos que ele entre em um processo de verificação experimental então texto e tradução constituem o mesmo conjunto enunciativo Ou ainda em 118 Michel Foucault uma certa escala da macroistória podemos considerar que uma afirmação como As espécies evoluem forma o mesmo enunciado em Darwin e em Simpson em um nível mais elaborado e considerando campos de utilização mais limitados o neodarwinismo em oposição ao sistema darwiniano propriamente dito tratamos de dois enunciados diferentes A constância do enunciado a manutenção de sua identidade através dos acontecimentos singulares das enunciações seus desdobramentos através da identidade das formas tudo isso é função do campo de utilização no qual ele se encontra inserido Vêse que o enunciado não deve ser tratado como um acontecimento que se teria produzido em um tempo e lugar determinados e que poderia ser inteiramente lembrado e celebrado de longe e um ato de memória Mas vêse que não é tampouco uma forma ideal que se pode sempre atualizar em um corpo qualquer em um conjunto indiferente e sob condições materiais que não importam Demasiado repetível para ser inteiramente solidário com as coordenadas espaçotemporais de seu nascimento é algo diverso da data e do local de seu aparecimento demasiado ligado ao que o envolve e o suporta para ser tão livre quanto uma pura forma é algo diferente de uma lei de construção referente a um conjunto de elementos ele é dotado de uma certa lentidão modificável de um peso relativo ao campo em que está colocado de uma constância que permite utilizações diversas de uma permanência temporal que não tem a inércia de ura simples traço e que não dorme sobre seu próprio passado Enquanto uma enunciação pode ser recomeçada ou reevocada enquanto uma forma linguística ou lógica pode ser reatualizada o enunciado tem a particularidade de poder ser repetido mas sempre em condições estritas Essa materialidade repetível que caracteriza a função enunciativa faz aparecer o enunciado como um objeto específico e paradoxal mas também como um objeto entre os que os homens produzem manipulam utilizam transformam trocam combinam decompõem e recompõem eventualmente destroem Ao invés de ser uma coisa dita de forma definitiva e perdida no passado como a decisão de uma batalha uma catástrofe geológica ou a morte de um rei o enunciado ao mesmo tempo que surge em sua materialidade aparece com um status entra em redes se coloca em campos de utilização A Arqueologia do Saber 119 se oferece a transferências e a modificações possíveis se integra era operações e em estratégias onde sua identidade se mantém ou se apaga Assim o enunciado circula serve se esquiva permite ou impede a realização de um desejo é dócil ou rebelde a interesses entra na ordem das contestações e das lutas tornase tema de apropriação ou de rivalidade 3 A DESCRIÇÃO DOS ENUNCIADOS O front da análise encontrase consideravelmente deslocado quis retomar essa definição do enunciado que tinha sido no início deixada em suspenso Tudo se passara e tudo fora dito como se o enunciado fosse uma unidade fácil de ser estabelecida cujas possibilidades e leis de agrupamento era importante descrever Ora voltando atrás apercebime de que não podia definir o enunciado como uma unidade de tipo linguístico superior ao fenômeno e à palavra inferior ao texto mas que tinha de me ocupar de uma função enunciativa pondo em jogo unidades diversas elas podem coincidir às vezes com frases às vezes com proposições mas são feitas às vezes de fragmentos de frases séries ou quadros de signos jogo de proposições ou formulações equivalentes e essa função em vez de dar um sentido a essas unidades colocaas em relação com um campo de objetos em vez de lhes conferir um sujeito abrelhes um conjunto de posições subjetivas possíveis em vez de lhes fixar limites colocaas em um domínio de coordenação e de coexistência em vez de lhes determinar a identidade alojaas em um espaço em que são consideradas utilizadas e repetidas Em suma o que se descobriu não foi o enunciado atômico com seu efeito de sentido sua origem seus limites e sua individualidade mas sim o campo de exercício da função enunciativa e as condições segundo as A Arqueologia do Saber 121 quais ela faz aparecerem unidades diversas que podem ser mas não necessariamente de ordem gramatical ou lógica Mas encontrome agora diante da obrigação de responder a duas questões o que devemos entender daqui para a frente pela tarefa inicialmente proposta de descrever enunciados Como a teoria do enunciado podese ajustar à análise das formações discursivas que havia sido esboçada sem ela A 1 Primeiro cuidado fixar o vocabulário Se aceitamos chamar performance verbal ou talvez melhor performance linguística todo conjunto de signos efetivamente produzidos a partir de uma língua natural ou artificial poderemos chamar formulação o ato individual ou a rigor coletivo que faz surgir em um material qualquer e segundo uma forma determinada esse grupo de signos a formulação é um acontecimento que pelo menos de direito é sempre demarcável segundo coordenadas espaçotemporais que pode ser sempre relacionada a um autor e que eventualmente pode constituir por si mesma um ato específico um ato performativo dizem os analistas ingleses chamaremos frase ou proposição as unidades que a gramática ou a lógica podem reconhecer em um conjunto de signos essas unidades podem ser sempre caracterizadas pelos elementos que aí figuram e pelas regras de construção que as unem em relação à frase e à proposição as questões de origem de tempo e de lugar e de contexto não passam de subsidiárias a questão decisiva é a de sua correção ainda que sob a forma de aceitabilidade Chamaremos enunciado a modalidade de existência própria desse conjunto de signos modalidade que lhe permite ser algo diferente de uma série de traços algo diferente de uma sucessão de marcas em uma substância algo diferente de um objeto qualquer fabricado por um ser humano modalidade que lhe permite estar em relação com um domínio de objetos prescrever uma posição definida a qualquer sujeito possível estar situado Foucault chama de analistas os adeptos ou representantes da chamada filosofia analítica uma das vertentes básicas da filosofia do século XX N da ed bras 122 Michel Foucault entre outras performances verbais estar dotado enfim de uma materialidade repetível Quanto ao termo discurso de que aqui usamos e abusamos em sentidos bem diferentes podemos agora compreender a razão de seu equívoco da maneira mais geral e imprecisa ele designava um conjunto de performances verbais e entendiase então por discurso o que havia sido produzido eventualmente tudo que havia sido produzido em matéria de conjunto de signos Mas se compreendia também por discurso um conjunto de atos de formulação uma série de frases ou de proposições Enfim e este sentido foi finalmente privilegiado com o primeiro que lhe serve de horizonte o discurso é constituído por um conjunto de sequências de signos enquanto enunciados isto é enquanto lhes podemos atribuir modalidades particulares de existência E se conseguir demonstrar como tentarei em seguida que a lei de tal série é precisamente o que chamei até aqui formação discursiva se conseguir demonstrar que esta é o princípio de dispersão e de repartição não das formulações das frases ou das proposições mas dos enunciados no sentido que dei à palavra o termo discurso poderá ser fixado conjunto de enunciados que se apóia em um mesmo sistema de formação é assim que poderei falar do discurso clínico do discurso econômico do discurso da história natural do discurso psiquiátrico Sei que essas definições em sua maioria não correspondem ao uso corrente os linguistas têm o hábito de dar à palavra discurso um sentido inteiramente diferente lógicos e analistas usam de forma diferente o termo enunciado Mas não pretendo aqui transferir para um domínio que esperaria apenas essa luz um jogo de conceitos uma forma de análise uma teoria que teriam sido formados em algum outro lugar não pretendo utilizar um modelo aplicandoo com a eficácia que lhe é própria a conteúdos novos Não certamente que eu queira contestar o valor de semelhante modelo não que eu queira antes mesmo de têlo testado limitarlhe o alcance e indicar imperiosamente o limiar que não deveria ser por ele transposto Mas gostaria de fazer aparecer uma possibilidade descritiva esboçar o domínio ao qual ela é suscetível definir seus limites e sua autonomia Essa possibilidade descritiva se articula com outras não deriva delas A Arqueologia do Saber 123 Vêse em particular que a análise dos enunciados não pretende ser uma descrição total exaustiva da linguagem ou de o que foi dito Em toda densidade resultante das performances verbais ela se situa num nível particular que deve ser separado dos outros caracterizado em relação a eles e abstraído Ela não toma o lugar de uma análise lógica das proposições de uma análise gramatical das frases de uma análise psicológica ou contextual das formulações constitui uma outra maneira de abordar as performances verbais de dissociar sua complexidade de isolar os termos que aí se entrecruzam e de demarcar as diversas regularidades a que obedecem Pondo em jogo o enunciado frente à frase ou à proposição não se tenta reencontrar uma totalidade perdida nem ressuscitar conforme convidam muitas nostalgias que não querem se calar a plenitude da expressão viva a riqueza do verbo a unidade profunda do logos A análise dos enunciados corresponde a um nível específico de descrição 2 O enunciado não é pois uma unidade elementar que viria somarse ou misturarse às unidades descritas pela gramática ou pela lógica Não pode ser isolado como uma frase uma proposição ou um ato de formulação Descrever um enunciado não significa isolar e caracterizar um segmento horizontal mas definir as condições nas quais se realizou a função que deu a uma série de signos não sendo esta forçosamente gramatical nem logicamente estruturada uma existência e uma existência específica Esta a faz aparecer não como um simples traço mas como relação com um domínio de objetos não como resultado de uma ação ou de uma operação individual mas como um jogo de posições possíveis para um sujeito não como uma totalidade orgânica autônoma fechada em si e suscetível de sozinha formar sentido mas como um elemento em um campo de coexistência não como um acontecimento passageiro ou um objeto inerte mas como uma materialidade repetível A descrição dos enunciados se dirige segundo uma dimensão de certa forma vertical às condições de existência dos diferentes conjuntos significantes Daí um paradoxo ela não tenta contornar as performances verbais para descobrir atrás delas ou sob sua superfície aparente um elemento oculto um sentido secreto que nelas se esconde ou que através delas aparece sem dizêlo 124 Michel Foucault e entretanto o enunciado não é imediatamente visível não se apresenta de forma tão manifesta quanto uma estrutura gramatical ou lógica mesmo se esta não estiver inteiramente clara mesmo se for muito difícil de elucidar O enunciado é ao mesmo tempo não visível e não oculto Não oculto por definição já que caracteriza as modalidades de existência próprias de um conjunto de signos efetivamente produzidos A análise enunciativa só pode se referir a coisas ditas a frases que foram realmente pronunciadas ou escritas a elementos significantes que foram traçados ou articulados e mais precisamente a essa singularidade que as faz existirem as oferece à observação à leitura a uma reativação eventual a mil usos ou transformações possíveis entre outras coisas mas não como as outras coisas Só pode se referir a performances verbais realizadas já que as analisa no nível de sua existência descrição das coisas ditas precisamente porque foram ditas A análise enunciativa é pois uma análise histórica mas que se mantém fora de qualquer interpretação às coisas ditas não pergunta o que escondem o que nelas estava dito e o nãodito que involuntariamente recobrem a abundância de pensamentos imagens ou fantasmas que as habitam mas ao contrário de que modo existem o que significa para elas o fato de se terem manifestado de terem deixado rastros e talvez de permanecerem para uma reutilização eventual o que é para elas o fato de terem aparecido e nenhuma outra em seu lugar Desse ponto de vista não se reconhece nenhum enunciado latente pois aquilo a que nos dirigimos está na evidência da linguagem efetiva Tratase de uma tese difícil de sustentar Sabemos e talvez desde que os homens falam que as coisas muitas vezes são ditas umas pelas outras que uma mesma frase pode ter simultaneamente duas significações diferentes que um sentido manifesto aceito sem dificuldade por todos pode encobrir um segundo esotérico ou profético que uma decifração mais sutil ou apenas a erosão do tempo acabarão por descobrir que sob uma formulação visível pode reinar uma outra que a comande desordene perturbe lhe imponha uma articulação que só a ela pertence enfim que de um modo ou de outro as coisas ditas dizem bem mais que elas mesmas Mas de fato esses efeitos de redobramento ou de desdobramento esse nãodito que se encontra dito apesar de tudo A Arqueologia do Saber 125 não afetam o enunciado pelo menos como foi aqui definido A polissemia que autoriza a hermenêutica e a descoberta de um outro sentido diz respeito à frase e aos campos semânticos que ela utiliza um único e mesmo conjunto de palavras pode dar lugar a vários sentidos e a várias construções possíveis ele pode ter entrelaçadas ou alternadas significações diversas mas sobre uma base enunciativa que permanece idêntica Da mesma forma a repressão de uma performance verbal por outra sua substituição ou sua interferência são fenômenos que pertencem ao nível da formulação mesmo se têm incidências sobre as estruturas linguísticas ou lógicas mas o próprio enunciado não é afetado pelo desdobramento ou pelo recalcamento já que é a modalidade de existência da performance verbal tal como foi efetivada O enunciado não pode ser considerado como o resultado cumulativo ou a cristalização de vários enunciados flutuantes apenas articulados que se rejeitam entre si O enunciado não é assombrado pela presença secreta do nãodito das significações ocultas das repressões ao contrário a maneira pela qual os elementos ocultos funcionam e podem ser restituídos depende da própria modalidade enunciativa sabemos que o nãodito o reprimido não é o mesmo nem em sua estrutura nem em seu efeito quando se trata de um enunciado matemático e de um enunciado econômico quando se trata de uma autobiografia ou da narração de um sonho Entretanto a todas essas modalidades diversas do nãodito que podem ser demarcadas sobre o campo enunciativo é necessário sem dúvida acrescentar uma ausência que ao invés de ser interior seria correlativa a esse campo e teria um papel na determinação de sua própria existência Pode haver e sem dúvida sempre há nas condições de emergência dos enunciados exclusões limites ou lacunas que delineiam seu referencial validam uma única série de modalidades cercam e englobam grupos de coexistência impedem certas formas de utilização Mas não se deve confundir nem em seu status nem em seu efeito a ausência característica de uma regularidade enunciativa e as significações encobertas pelo que se encontra formulado 3 Ora por mais que o enunciado não seja oculto nem por isso é visível ele não se oferece à percepção como portador 126 Michel Foucault manifesto de seus limites e caracteres É necessária uma certa conversão do olhar e da atitude para poder reconhecêlo e considerálo em si mesmo Talvez ele seja tão conhecido que se esconde sem cessar talvez seja como essas transparências familiares que apesar de nada esconderem em sua espessura não são apresentadas com clareza total O nível enunciativo se esboça em sua própria proximidade Há várias razões para isso A primeira já foi dita o enunciado não é uma unidade ao lado acima ou abaixo das frases ou das proposições está sempre dentro de unidades desse gênero ou mesmo em sequências de signos que não obedecem a suas leis e que podem ser listas séries ao acaso quadros caracteriza não o que nelas se apresenta ou a maneira pela qual são delimitadas mas o próprio fato de serem apresentadas e a maneira pela qual o são Ele tem essa quaseinvisibilidade do há que se apaga naquilo mesmo do qual se pode dizer há tal ou tal coisa Outra razão é a de que a estrutura significante da linguagem remete sempre a outra coisa os objetos aí se encontram designados o sentido é visado o sujeito é tomado como referência por um certo número de signos mesmo se não está presente em si mesmo A linguagem parece sempre povoada pelo outro pelo ausente pelo distante pelo longínquo ela é atormentada pela ausência Não é ela o lugar de aparecimento de algo diferente de si e nessa função sua própria existência não parece se dissipar Ora se queremos descrever o nível enunciativo é preciso levar em consideração justamente essa existência interrogar a linguagem não na direção a que ela remete mas na dimensão que a produz negligenciar o poder que ela tem de designar de nomear de mostrar de fazer aparecer de ser o lugar do sentido ou da verdade e em compensação de se deter no momento logo solidificado logo envolvido no jogo do significante e do significado que determina sua existência singular e limitada Tratase de suspender no exame da linguagem não apenas o ponto de vista do significado o que já é comum agora mas também o do significante para fazer surgir o fato de que em ambos existe linguagem de acordo com domínios de objetos e sujeitos possíveis de acordo com outras formulações e reutilizações eventuais Finalmente última razão da quaseinvisibilidade do enunciado ele é suposto por todas as outras análises da linguagem A Arqueologia do Saber 127 sem que elas tenham jamais de mostrálo Para que a linguagem possa ser tomada como objeto decomposta em níveis distintos descrita e analisada é preciso que haja um dado enunciativo que será sempre determinado e não infinito a análise de uma língua se efetua sempre a partir de um corpus de discursos e textos a interpretação e a revelação das significações implícitas repousam sempre em um grupo delimitado de frases a análise lógica de um sistema implica a reescrita em uma linguagem formal de um conjunto dado de proposições Quanto ao nível enunciativo encontrase cada vez neutralizado seja porque se defina somente como uma amostra representativa que permite liberar estruturas indefinidamente aplicáveis seja porque se esconda em uma pura aparência atrás da qual deve aparecer a verdade de uma outra fala seja porque valha como uma substância indiferente que serve de suporte a relações formais O fato de ser sempre indispensável para que a análise possa ocorrer lhe tira toda pertinência em relação à própria análise Se acrescentarmos a isso que todas essas descrições só se podem efetivar quando elas próprias constituem conjuntos finitos de enunciados compreenderemos concomitantemente por que o campo enunciativo as envolve de todas as maneiras por que elas não podem liberarse dele e por que não podem tomálo diretamente como tema Considerar os enunciados em si mesmos não será buscar além de todas essas análises e em um nível mais profundo um certo segredo ou uma certa raiz da linguagem que elas teriam omitido É tentar tornar visível e analisável essa transparência tão próxima que constitui o elemento de sua possibilidade Nem oculto nem visível o nível enunciativo está no limite da linguagem não é em si um conjunto de caracteres que se apresentariam mesmo de um modo não sistemático à experiência imediata mas não é tampouco por trás de si o resto enigmático e silencioso que não traduz Ele define a modalidade de seu aparecimento antes sua periferia que sua organização interna antes sua superfície que seu conteúdo Mas o fato de que se pode descrever essa superfície enunciativa prova que o dado da linguagem não é a simples laceração de um mutismo fundamental que as palavras as frases as significações as afirmações os encadeamentos de proposições não se apóiam diretamente na noite primeira de um silêncio mas 128 Michel Foucault que o súbito aparecimento de uma frase o lampejo do sentido o brusco índice da designação surgem sempre no domínio de exercício de uma função enunciativa que entre a linguagem tal como a lemos e ouvimos mas também como a falamos e a ausência de qualquer formulação não há o formigamento de todas as coisas pouco ditas de todas as frases em suspenso de todos os pensamentos semiverbalizados do monólogo infinito do qual emergem apenas alguns fragmentos mas antes de tudo ou pelo menos antes dela pois depende delas as condições segundo as quais se efetua a função enunciativa Isso prova também que é inútil procurar além das análises estruturais formais ou interpretativas da linguagem um domínio finalmente liberto de qualquer positividade onde se poderiam desdobrar a liberdade do sujeito o labor do ser humano ou a abertura de uma destinação transcendental Nada há a objetar contra os métodos linguísticos ou as análises lógicas Que faz você depois de tanto falar sobre suas regras de construção da própria linguagem na plenitude de seu corpo vivo Que faz da liberdade ou do sentido anterior a toda significação sem os quais não haveria indivíduos se entendendo no trabalho sempre retomado da linguagem Ignora você que tão logo ultrapassados os sistemas finitos que tornam possível o infinito do discurso mas que são incapazes de fundálo e de dar conta dele encontramos a marca de uma transcendência ou a obra do ser humano Sabe que você somente descreveu alguns caracteres de uma linguagem cuja emergência e modo de ser são em suas análises inteiramente irredutíveis Estas objeções devem ser afastadas pois se é verdade que há uma dimensão que não pertence nem à lógica nem à linguística ela não é nem por isso a transcendência restaurada nem o caminho reaberto em direção à inacessível origem nem a formação pelo ser humano de suas próprias significações A linguagem na instância de seu aparecimento e de seu modo de ser é o enunciado como tal se apóia em uma descrição que não é nem transcendental nem antropológica A análise enunciativa não prescreve para as análises linguísticas ou lógicas o limite a partir do qual elas deveriam renunciar e reconhecer sua impotência ela não marca a linha que fecha seu domínio mas se desenrola em outra direção que as cruza A possibilidade de uma análise enunciativa se for estabelecida deve permitir erguer o suporte A Arqueologia do Saber 129 transcendental que uma certa forma de discurso filosófico opõe a todas as análises da linguagem em nome do ser dessa linguagem e do fundamento em que se deveria originar B Devo voltarme agora para o segundo grupo de questões como a descrição dos enunciados assim definida pode ajustarse à análise das formações discursivas cujos princípios esbocei anteriormente E ao contrário até que ponto se pode dizer que a análise das formações discursivas é uma descrição dos enunciados no sentido que acabei de dar a essa palavra É importante dar uma resposta a essa questão pois é neste ponto que o empreendimento a que me liguei há tantos anos e que havia desenvolvido de maneira um tanto ou quanto cega mas cujo perfil geral tento agora retomar livre para reajustálo livre para retificarlhe erros ou imprudências deve fechar seu círculo Já pudemos vêlo não tento dizer aqui o que quis fazer outrora em tal ou tal análise concreta o projeto que tinha em mente os obstáculos que encontrei as renúncias a que fui levado os resultados mais ou menos satisfatórios que pude obter não descrevo uma trajetória efetiva para indicar o que ela deveria ter sido e o que será a partir de hoje tento elucidar nela mesma a fim de medila e estabelecer suas exigências uma possibilidade de descrição que utilizei sem conhecer bem suas restrições e recursos em vez de procurar o que eu disse e o que teria podido dizer esforçome para mostrar na regularidade que lhe é própria e que eu controlava mal aquilo que tornava possível o que eu dizia Mas vêse também que não desenvolvo aqui uma teoria no sentido estrito e vigoroso do termo a dedução a partir de um certo número de axiomas de um modelo abstrato aplicável a um número indefinido de descrições empíricas O momento de tal construção se for possível certamente ainda não chegou Não infiro a análise das formações discursivas a partir de uma definição dos enunciados que valeria como fundamento não infiro tampouco a natureza dos enunciados a partir do que são as formações discursivas como se pôde abstraílas desta ou daquela descrição mas tento mostrar como se pode organizar sem falha sem contradição sem imposição 130 Michel Foucault interna um domínio em que estão em questão os enunciados seu princípio de agrupamentos as grandes unidades históricas que eles podem constituir e os métodos que permitem descrevêlos Não procedo por dedução linear mas por círculos concêntricos e vou ora na direção dos mais exteriores ora na dos mais interiores partindo do problema da descontinuidade no discurso e da singularidade do enunciado tema central procurei analisar na periferia certas formas de grupamentos enigmáticos mas os princípios de unificação com que me deparei e que não são nem gramaticais nem lógicos nem psicológicos e que por conseguinte não podem referirse nem a frases nem a proposições nem a representações exigiram que eu voltasse para o centro ao problema do enunciado e que tentasse elucidar o que é preciso entender por enunciado E considerarei não que eu tenha construído um modelo teórico rigoroso mas que tenha liberado um domínio coerente de descrição do qual se não estabeleci o modelo pelo menos abri e preparei a possibilidade se tiver conseguido fechar o círculo e mostrar que a análise das formações discursivas está bem centrada na descrição do enunciado em sua especificidade Em suma se tiver conseguido mostrar que as dimensões próprias do enunciado é que estão utilizadas na demarcação das formações discursivas Não se trata de fundar de direito uma teoria e antes de poder eventualmente fazêlo não nego que lamento não ter ainda chegado a tanto mas sim no momento de estabelecer uma possibilidade Examinando o enunciado o que se descobriu foi uma função que se apóia em conjuntos de signos que não se identifica nem com a aceitabilidade gramatical nem com a correção lógica e que requer para se realizar um referencial que não é exatamente um fato um estado de coisas nem mesmo um objeto mas um princípio de diferenciação um sujeito não a consciência que fala não o autor da formulação mas uma posição que pode ser ocupada sob certas condições por indivíduos indiferentes um campo associado que não é o contexto real da formulação a situação na qual foi articulada mas um domínio de coexistência para outros enunciados uma materialidade que não é apenas a substância ou o suporte da articulação mas um status regras de transcrição possibilidades de uso ou de reutilização Ora o que se descreveu sob o nome formação discursiva constitui em sentido estrito grupos de A Arqueologia do Saber 131 enunciados isto é conjuntos de performances verbais que não estão ligadas entre si no nível das frases por laços gramaticais sintáticos ou semânticos que não estão ligados entre si no nível das proposições por laços lógicos de coerência formal ou encadeamentos conceituais que tampouco estão ligados no nível das formulações por laços psicológicos seja a identidade das formas de consciência a constância das mentalidades ou a repetição de um projeto mas que estão ligados no nível dos enunciados Isso supõe que se possa definir o regime geral a que obedecem seus objetos a forma de dispersão que reparte regularmente aquilo de que falam o sistema de seus referenciais que se defina o regime geral ao qual obedecem os diferentes modos de enunciação a distribuição possível das posições subjetivas e o sistema que os define e os prescreve que se defina o regime comum a todos os seus domínios associados as formas de sucessão de simultaneidade de repetição de que todos são suscetíveis e o sistema que liga entre si todos esses campos de coexistência que se possa enfim definir o regime geral a que está submetido o status desses enunciados a maneira pela qual são institucionalizados recebidos empregados reutilizados combinados entre si o modo segundo o qual se tornam objetos de apropriação instrumentos para o desejo ou interesse elementos para uma estratégia Descrever enunciados descrever a função enunciativa de que são portadores analisar as condições nas quais se exerce essa função percorrer os diferentes domínios que ela pressupõe e a maneira pela qual se articulam é tentar revelar o que se poderá individualizar como formação discursiva ou ainda a mesma coisa porém na direção inversa a formação discursiva é o sistema enunciativo geral ao qual obedece um grupo de performances verbais sistema que não o rege sozinho já que ele obedece ainda e segundo suas outras dimensões aos sistemas lógico linguístico psicológico O que foi definido como formação discursiva escande o plano geral das coisas ditas no nível específico dos enunciados As quatro direções em que a analisamos formação dos objetos formação das posições subjetivas formação dos conceitos formação das escolhas estratégicas correspondem aos quatro domínios em que se exerce a função enunciativa E se as formações discursivas são livres em relação às grandes unidades retóricas do texto ou do livro se não têm por lei o 132 Michel Foucault rigor de uma arquitetura dedutiva se não se identificam com a obra de um autor é porque utilizam o nível enunciativo com as regularidades que o caracterizam e não o nível gramatical das frases ou lógico das proposições ou psicológico da formulação A partir disso podemos adiantar um certo número de proposições que estão no centro de todas essas análises 1 Podese dizer que a demarcação das formações discursivas independentemente dos outros princípios de possível unificação revela o nível específico do enunciado mas podese dizer da mesma forma que a descrição dos enunciados e da maneira pela qual se organiza o nível enunciativo conduz à individualização das formações discursivas Os dois procedimentos são igualmente justificáveis e reversíveis A análise do enunciado e a da formação são estabelecidas correlativa mente Quando chegar enfim o dia de fundar a teoria será necessário definir uma ordem dedutiva 2 Um enunciado pertence a uma formação discursiva como uma frase pertence a um texto e uma proposição a um conjunto dedutivo Mas enquanto a regularidade de uma frase é definida pelas leis de uma língua e a de uma proposição pelas leis de uma lógica a regularidade dos enunciados é definida pela própria formação discursiva A lei dos enunciados e o fato de pertencerem à formação discursiva constituem uma única e mesma coisa o que não é paradoxal já que a formação discursiva se caracteriza não por princípios de construção mas por uma dispersão de fato já que ela é para os enunciados não uma condição de possibilidade mas uma lei de coexistência e já que os enunciados em troca não são elementos intercambiáveis mas conjuntos caracterizados por sua modalidade de existência 3 Podese então agora dar um sentido pleno à definição do discurso que havia sido sugerida anteriormente Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados na medida em que se apóiem na mesma formação discursiva ele não forma uma unidade retórica ou formal indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar e explicar se for o caso na história é constituído de um número A Arqueologia do Saber 133 limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência O discurso assim entendido não é uma forma ideal e intemporal que teria além do mais uma história o problema não consiste em saber como e por que ele pôde emergir e tomar corpo num determinado ponto do tempo é de parte a parte histórico fragmento de história unidade e descontinuidade na própria história que coloca o problema de seus próprios limites de seus cortes de suas transformações dos modos específicos de sua temporalidade e não de seu surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo 4 Finalmente o que se chama prática discursiva pode ser agora precisado Não podemos confundila com a operação expressiva pela qual um indivíduo formula uma idéia um desejo uma imagem nem com a atividade racional que pode ser acionada em um sistema de inferência nem com a competência de um sujeito falante quando constrói frases gramaticais é um conjunto de regras anônimas históricas sempre determinadas no tempo e no espaço que definiram em uma dada época e para uma determinada área social econômica geográfica ou linguística as condições de exercício da função enunciativa Restame agora fazer oscilar a análise e após ter relacionado as formações discursivas aos enunciados que descrevem procurar em uma outra direção rumo ao exterior desta vez o uso legítimo dessas noções o que se pode descobrir através delas como podem ter lugar entre outros métodos de descrição até que ponto podem modificar e redistribuir o domínio da história das idéias Entretanto antes de efetuar essa reversão e para realizála com mais segurança ficarei ainda um pouco mais na dimensão que acabei de explorar e tentarei precisar o que é exigido e o que é excluído pela análise do campo enunciativo e das formações que o escandem 4 RARIDADE EXTERIORIDADE ACÚMULO A análise enunciativa leva em conta um efeito de raridade A análise do discurso está colocada na maior parte do tempo sob o duplo signo da totalidade e da pletora Mostrase como os diferentes textos de que tratamos remetem uns aos outros se organizam em uma figura única entram em convergência com instituições e práticas e carregam significações que podem ser comuns a toda uma época Cada elemento considerado é recebido como a expressão de uma totalidade à qual pertence e que o ultrapassa Substituise assim a diversidade das coisas ditas por uma espécie de grande texto uniforme ainda jamais articulado e que pela primeira vez traz à luz o que os homens haviam querido dizer não apenas em suas palavras e seus textos seus discursos e seus escritos mas nas instituições práticas técnicas e objetos que produzem Em relação a esse sentido implícito soberano e comunitário os enunciados em sua proliferação aparecem em superabundância já que é apenas a ele que todos remetem e só ele constitui sua verdade pletora dos elementos significantes em relação a esse significado único Mas já que esse sentido primeiro e último brota através das formulações manifestas já que se esconde sob o que aparece e secretamente o desdobra é que cada discurso encobria o poder de dizer algo diferente do que ele dizia e de englobar assim uma A Arqueologia do Saber 135 pluralidade de sentidos pletora do significado em relação a um significante único Assim estudado o discurso é ao mesmo tempo plenitude e riqueza indefinida A análise dos enunciados e das formações discursivas abre uma direção inteiramente oposta ela quer determinar o princípio segundo o qual puderam aparecer os únicos conjuntos significantes que foram enunciados Busca estabelecer uma lei de raridade Essa tarefa compreende vários aspectos Ela repousa no princípio de que nem tudo é sempre dito em relação ao que poderia ser enunciado era língua natural em relação à combinatória ilimitada dos elementos linguísticos os enunciados por numerosos que sejam estão sempre em deficit a partir da gramática e do tesouro vocabular de que se dispõe em dada época relativamente poucas coisas são ditas em suma Vamos então procurar o princípio da rarefação ou pelo menos do nãopreenchimento do campo das formulações possíveis tal como é aberto pela língua A formação discursiva aparece ao mesmo tempo como princípio de escansão no emaranhado dos discursos e princípio de vacuidade no campo da linguagem Estudamse os enunciados no limite que os separa do que não está dito na instância que os faz surgirem à exclusão de todos os outros Não se trata de fazer falar o mutismo que os cerca nem de reencontrar tudo aquilo que neles e ao lado deles se havia calado ou sido reduzido ao silêncio Não se trata tampouco de estudar os obstáculos que impediram tal descoberta retiveram tal formulação recalcaram tal forma de enunciação tal significação inconsciente ou tal racionalidade em devir mas de definir um sistema limitado de presenças A formação discursiva não é pois uma totalidade em desenvolvimento tendo seu dinamismo próprio ou sua inércia particular carregando consigo em um discurso não formulado o que ela não mais diz ainda não diz ou o que a contradiz no momento não é uma rica e difícil germinação mas uma distribuição de lacunas de vazios de ausências de limites de recortes Entretanto não ligamos essas exclusões a um recalcamento ou a uma repressão não supomos que sob enunciados manifestos alguma coisa permaneça oculta e subjacente Analisamos os enunciados não como se estivessem no lugar de outros enunciados caídos abaixo da linha de emergência possível mas como estando sempre em seu lugar próprio Recolocamolos em um espaço que seria inteiramente aberto e que não comportaria nenhuma reduplicação Não há texto embaixo portanto nenhuma pletora O domínio enunciativo está inteiro em sua própria superfície Cada enunciado ocupa aí um lugar que só a ele pertence A descrição não consiste pois a 136 Michel Foucault propósito de um enunciado em reconhecer o nãodito cujo lugar ele ocupa nem como podemos reduzilo a um texto silencioso e comum mas pelo contrário que posição singular ocupa que ramificações no sistema das formações permitem demarcar sua localização como ele se isola na dispersão geral dos enunciados Essa raridade dos enunciados a forma lacunar e retalhada do campo enunciativo o fato de que poucas coisas em suma podem ser ditas explicam que os enunciados não sejam como o ar que respiramos uma transparência infinita mas sim coisas que se transmitem e se conservam que têm um valor e das quais procuramos nos apropriar que repetimos reproduzimos e transformamos para as quais preparamos circuitos preestabelecidos e às quais damos uma posição dentro da instituição coisas que são desdobradas não apenas pela cópia ou pela tradução mas pela exegese pelo comentário e pela proliferação interna do sentido Por serem raros os enunciados recolhemolos em totalidades que os unificam e multiplicamos os sentidos que habitam cada um deles Diferentemente de todas essas interpretações cuja própria existência só é possível pela raridade efetiva dos enunciados mas que entretanto não tomam conhecimento dela e ao contrário tomam como tema a compacta riqueza do que é dito a análise das formações discursivas se volta para essa raridade tomaa por objeto explícito tenta determinarlhe o sistema singular e ao mesmo tempo dá conta do fato de que pôde haver interpretação Interpretar é uma maneira de reagir à pobreza enunciativa e de compensála pela multiplicação do sentido uma maneira de falar a partir dela e apesar dela Mas analisar uma formação discursiva é procurar a lei de sua pobreza é medila e determinarlhe a forma específica É pois em um sentido pesar o valor dos enunciados Esse valor não é definido por sua verdade não é avaliado pela presença de um conteúdo secreto mas caracteriza o lugar deles sua capacidade de circulação e de troca sua possibilidade de transformação não apenas na economia dos discursos mas na administração em geral dos recursos raros Assim concebido o discurso deixa de ser o que é para a atitude exegética tesouro inesgotável de onde se podem tirar sempre novas riquezas e a cada vez imprevisíveis providência que sempre falou antecipadamente e que faz com que se ouça quando se sabe escutar oráculos retrospectivos ele aparece como um bem finito limitado desejável útil que tem suas regras de A Arqueologia do Saber 137 aparecimento e também suas condições de apropriação e de utilização um bem que coloca por conseguinte desde sua existência e não simplesmente em suas aplicações práticas a questão do poder um bem que é por natureza o objeto de uma luta e de uma luta política Eis outro traço característico a análise dos enunciados trataos na forma sistemática da exterioridade Em geral a descrição histórica das coisas ditas é inteiramente atravessada pela oposição do interior e do exterior e inteiramente comandada pela tarefa de voltar dessa exterioridade que não passaria de contingência ou pura necessidade material corpo visível ou tradução incerta em direção ao núcleo essencial da interioridade Empreender a história do que foi dito é refazer em outro sentido o trabalho da expressão retomar enunciados conservados ao longo do tempo e dispersos no espaço em direção ao segredo interior que os precedeu neles se depositou e aí se encontra em todos os sentidos do termo traído Assim se encontra libertado o núcleo central da subjetividade fundadora que permanece sempre por trás da história manifesta e que encontra sob os acontecimentos uma outra história mais séria mais secreta mais fundamental mais próxima da origem mais ligada a seu horizonte último e por isso mais senhora de todas as suas determinações Essa outra história que corre sob a história que se antecipa a ela sem cessar e recolhe indefinidamente o passado podemos descrevêla de um modo sociológico ou psicológico como a evolução das mentalidades podemos darlhe um status filosófico no recolhimento do logos ou na teleologia da razão podemos tentar enfim purificála na problemática de um traço que seria antes de qualquer palavra abertura da inscrição e afastamento do tempo diferido é sempre o tema históricotranscendental que se reinveste Desse tema a análise enunciativa tenta liberarse para restituir os enunciados à sua pura dispersão para analisálos em uma exterioridade sem dúvida paradoxal já que não remete a nenhuma forma adversa de interioridade para considerálos em sua descontinuidade sem ter de relacionálos por um desses deslocamentos que os põem fora de circuito e os tornam inessenciais a uma abertura ou a uma diferença mais fundamental para apreender sua própria irrupção no lugar e no momento em que se produziu para reencontrar 138 Michel Foucault sua incidência de acontecimento Sem dúvida seria melhor falar de neutralidade que de exterioridade mas essa palavra remete demasiado facilmente a uma suspensão de crença a um desaparecimento ou a uma colocação entre parênteses de qualquer posição de existência enquanto o que importa é reencontrar o exterior onde se repartem em sua relativa raridade em sua vizinhança lacunar em seu espaço aberto os acontecimentos enunciativos Essa tarefa supõe que o campo dos enunciados não seja descrito corno uma tradução de operações ou de processos que se desenrolam em algum outro lugar no pensamento dos homens em sua consciência ou em seu inconsciente na esfera das constituições transcendentais mas que seja aceito em sua modéstia empírica como local de acontecimentos de regularidades de relacionamentos de modificações determinadas de transformações sistemáticas em suma que seja tratado não como resultado ou vestígio de outra coisa mas como um domínio prático que é autônomo apesar de dependente e que se pode descrever em seu próprio nível se bem que seja preciso articulálo como algo que não seja ele Ela supõe também que esse domínio enunciativo não tome como referência nem um sujeito individual nem alguma coisa semelhante a uma consciência coletiva nem uma subjetividade transcendental mas que seja descrito como um campo anônimo cuja configuração defina o lugar possível dos sujeitos falantes Não é mais preciso situar os enunciados em relação a uma subjetividade soberana mas reconhecer nas diferentes formas da subjetividade que fala efeitos próprios do campo enunciativo Ela supõe em consequência disso que em suas transformações em suas séries sucessivas em suas derivações o campo dos enunciados não obedeça à temporalidade da consciência como a seu modelo necessário Não se deve esperar pelo menos nesse nível e nessa forma de descrição poder escrever uma história das coisas ditas que seria de pleno direito ao mesmo tempo era sua forma em sua regularidade e em sua natureza a história de uma consciência individual ou anônima de um projeto de um sistema de intenções de um conjunto de metas O tempo dos discursos não é a tradução em uma cronologia visível do tempo obscuro do pensamento A análise dos enunciados se efetua pois sem referência a um cogito Não coloca a questão de quem fala se manifesta ou se oculta no que diz quem exerce tomando a palavra sua liberdade soberana ou se submete sem sabêlo a coações que percebe mal Ela situase de fato no nível do dizse e isso A Arqueologia do Saber 139 não eleve ser entendido como uma espécie de opinião comum de representação coletiva que se imporia a todo indivíduo nem como uma grande voz anônima que falaria necessariamente através dos discursos de cada um mas como o conjunto das coisas ditas as relações as regularidades e as transformações que podem aí ser observadas o domínio do qual certas figuras e certos entrecruzamentos indicam o lugar singular de um sujeito falante e podem receber o nome de um autor Não importa quem fala mas o que ele diz não é dito de qualquer lugar É considerado necessariamente no jogo de uma exterioridade Eis o terceiro traço da análise enunciativa ela se dirige a formas específicas de acúmulo que não podem identificarse nem com uma interiorização na forma da lembrança nem com uma totalização indiferente dos documentos Geralmente quando analisamos discursos já efetuados consideramolos como afetados por uma inércia essencial o acaso conservouos ou o cuidado dos homens e as ilusões que puderam tecer sobre o valor e a imortal dignidade de suas palavras mas não são a partir daí nada mais que grafismos amontoados sob a poeira das bibliotecas dormindo um sono para o qual não deixaram de deslizar desde que foram pronunciados desde que foram esquecidos e desde que seu efeito visível se perdeu no tempo Quando muito são suscetíveis de serem favoravelmente retomados nas redescobertas da leitura quando muito podem ser aí descobertos como portadores das marcas que remetem à instância de sua enunciação quando muito essas marcas uma vez decifradas podem liberar por uma espécie de memória que atravessa o tempo significações pensamentos desejos fantasmas sepultados Estes quatro termos leitura traço decifração memória qualquer que seja o privilégio que se dê a um ou outro e qualquer que seja a extensão metafórica que se lhe atribua e que lhe permita reconsiderar os três outros definem o sistema que permite usualmente arrancar o discurso passado de sua inércia e reencontrar num momento algo de sua vivacidade perdida Ora a particularidade da análise enunciativa não e despertar textos de seu sono atual para reencontrar encantando as marcas ainda legíveis em sua superfície o clarão de seu nascimento tratase ao contrário de seguilos ao longo de seu 140 Michel Foucault sono ou antes de levantar os temas relacionados ao sono ao esquecimento à origem perdida e de procurar que modo de existência pode caracterizar os enunciados independentemente de sua enunciação na espessura do tempo em que subsistem em que se conservaram em que são reativados e utilizados em que são também mas não por uma destinação originária esquecidos e até mesmo eventualmente destruídos Essa análise supõe que os enunciados sejam considerados na remanência que lhes é própria e que não é a do retorno sempre possível ao acontecimento passado da formulação Dizer que os enunciados são remanentes não é dizer que eles permanecem no campo da memória ou que se pode reencontrar o que queriam dizer mas sim que se conservaram graças a um certo número de suportes e de técnicas materiais de que o livro não passa é claro de um exemplo segundo certos tipos de instituições entre muitas outras a biblioteca e com certas modalidades estatutárias que não são as mesmas quando se trata de um texto religioso de um regulamento de direito ou de uma verdade científica Isso quer dizer também que eles estão investidos em técnicas que os põem em aplicação em práticas que daí derivam em relações sociais que se constituíram ou se modificaram através deles Isso quer dizer finalmente que as coisas não têm mais o mesmo modo de existência o mesmo sistema de relações com o que as cerca os mesmos esquemas de uso as mesmas possibilidades de transformação depois de terem sido ditas Embora a conservação através do tempo seja o prolongamento acidental ou bemsucedido de uma existência feita para passar com o momento a remanência pertence de pleno direito ao enunciado o esquecimento e a destruição são apenas de certa forma o grau zero da remanência E sobre o fundo por ela constituído os jogos da memória e da lembrança podemse desenrolar Essa análise supõe igualmente que os enunciados sejam abordados na forma de aditividade que lhes é específica Na verdade os tipos de grupamento entre enunciados sucessivos não são sempre os mesmos e não procedem jamais por simples amontoamento ou justaposição de elementos sucessivos Os enunciados matemáticos não se adicionam entre si como os textos religiosos ou os atos de jurisprudência cada um tem um modo específico de se compor de se anular de se excluir de se completar de formar grupos mais ou menos indissociáveis e dotados de propriedades singulares Além do mais as formas de atividade não se apresentam de forma definitiva para uma categoria determinada de enunciados as observações médicas de hoje formam um corpus que não obedece às mesmas leis de composição que a coleção dos casos do século XVIII a matemática moderna A Arqueologia do Saber 141 não acumula seus enunciados pelo mesmo modelo que a geometria de Euclides A análise enunciativa supõe finalmente que se levem em consideração os fenômenos de recorrência Todo enunciado compreende um campo de elementos antecedentes em relação aos quais se situa mas que tem o poder de reorganizar e de redistribuir segundo relações novas Ele constitui seu passado define naquilo que o precede sua própria filiação redesenha o que o torna possível ou necessário exclui o que não pode ser compatível com ele Além disso coloca o passado enunciativo como verdade adquirida como um acontecimento que se produzia como uma forma que se pode modificar como matéria a transformar ou ainda como objeto de que se pode falar Em relação a todas essas possibilidades de recorrência a memória e o esquecimento a redescoberta do sentido ou sua repressão longe de serem leis fundamentais não passam de figuras singulares A descrição dos enunciados e das formações discursivas devese livrar da imagem tão frequente e obstinada do retorno Ela não pretende voltar além de um tempo que seria apenas queda latência esquecimento recobrimento ou errância ao momento fundador em que a palavra não estava ainda comprometida com qualquer materialidade não estava condenada a nenhuma persistência e se retinha na dimensão não determinada da abertura Não tenta constituir para o já dito o instante paradoxal do segundo nascimento não invoca uma aurora prestes a retornar Ao contrário trata os enunciados na densidade do acúmulo em que são tomados e que entretanto não deixam de modificar de inquietar de agitar e às vezes de arruinar Descrever um conjunto de enunciados não como a totalidade fechada e pletórica de uma significação mas como figura lacunar e retalhada descrever um conjunto de enunciados não em referência à interioridade de uma intenção de um pensamento ou de um sujeito mas segundo a dispersão de uma exterioridade descrever um conjunto de enunciados para aí reencontrar não o momento ou a marca de origem mas sim as formas específicas de um acúmulo não é certamente revelar uma interpretação descobrir um fundamento liberar atos constituintes não é tampouco decidir sobre uma racionalidade ou percorrer uma teleologia É estabelecer o que eu chamaria de bom grado uma positividade Analisar uma formação discursiva é pois tratar um conjunto de 142 Michel Foucault performances verbais no nível dos enunciados e da forma de positividade que as caracteriza ou mais sucintamente é definir o tipo de positividade de um discurso Se substituir a busca das totalidades pela análise da raridade o tema do fundamento transcendental pela descrição das relações de exterioridade a busca da origem pela análise dos acúmulos é ser positivista pois bem eu sou um positivista feliz concordo facilmente E não estou desgostoso por ter várias vezes se bem que de maneira ainda um pouco cega empregado o termo positividade para designar de longe a meada que tentava desenrolar 5 O A PRIORI HISTÓRICO E O ARQUIVO A positividade de um discurso como o da história natural da economia política ou da medicina clínica caracterizalhe a unidade através do tempo e muito além das obras individuais dos livros e dos textos Essa unidade certamente não permite decidir quem dizia a verdade quem raciocinava rigorosamente quem se adaptava melhor a seus próprios postulados Lineu ou Buffon Quesnay ou Turgot Broussais ou Bichat ela não permite tampouco dizer qual das obras estava mais próxima de uma meta inicial ou última qual delas formularia mais radicalmente o projeto geral de uma ciência No entanto permite o aparecimento da medida segundo a qual Buffon e Lineu ou Turgot e Quesnay Broussais e Bichat falavam da mesma coisa colocandose no mesmo nível ou a mesma distância desenvolvendo o mesmo campo conceitual opondose sobre o mesmo campo de batalha e ela faz aparecer em compensação a razão pela qual não se pode dizer que Darwin fala da mesma coisa que Diderot que Laennec dá continuidade a Van Swieten ou que Jevons se segue aos fisiocratas Ela define um espaço limitado de comunicação espaço relativamente restrito já que está longe de ter a amplidão de uma ciência tomada em todo o seu devir histórico desde sua mais longínqua origem até seu ponto atual de realização mas um espaço mais extenso entretanto que o jogo 144 Michel Foucault das influências que pôde ser exercido de um autor a outro ou que o domínio das polêmicas explícitas As diferentes obras os livros dispersos toda a massa de textos que pertencem a uma mesma formação discursiva e tantos autores que se conhecem e se ignoram se criticam se invalidam uns aos outros se plagiam se reencontram sem saber e entrecruzam obstinadamente seus discursos singulares em uma trama que não dominam cujo todo não percebem e cuja amplitude medem mais todas essas figuras e individualidades diversas não comunicam apenas pelo encadeamento lógico das proposições que eles apresentam nem pela recorrência dos temas nem pela pertinácia de uma significação transmitida esquecida redescoberta comunicam pela forma de positividade de seus discursos Ou mais exatamente essa forma de positividade e as condições de exercício da função enunciativa define um campo em que eventualmente podem ser desenvolvidos identidades formais continuidades temáticas translações de conceitos jogos polêmicos Assim a positividade desempenha o papel do que se poderia chamar um a priori histórico Justapostas as duas palavras provocam um efeito um pouco gritante quero designar um a priori que não seria condição de validade para juízos mas condição de realidade para enunciados Não se trata de reencontrar o que poderia tornar legítima uma assertiva mas isolar as condições de emergência dos enunciados a lei de sua coexistência com outros a forma específica de seu modo de ser os princípios segundo os quais subsistem se transformam e desaparecem A priori não de verdades que poderiam nunca ser ditas nem realmente apresentadas à experiência mas de uma história determinada já que é a das coisas efetivamente ditas A razão para se usar esse termo um pouco impróprio é que esse a priori deve dar conta dos enunciados em sua dispersão em todas as falhas abertas por sua nãocoerência em sua superposição e substituição recíproca em sua simultaneidade que não pode ser unificada e em sua sucessão que não é dedutível em suma tem de dar conta do fato de que o discurso não tem apenas um sentido ou uma verdade mas uma história e uma história específica que não o reconduz às leis de um devir estranho Deve mostrar por exemplo que a história da gramática não é a projeção no campo da linguagem e de seus A Arqueologia do Saber 145 problemas de uma história que seria em geral a da razão ou de uma mentalidade de uma história que de algum modo ela compartilharia com a medicina a mecânica ou a teologia mas que ela comporta um tipo de história uma forma de dispersão no tempo um modo de sucessão de estabilidade de reativação uma rapidez de desencadeamento ou de rotação que lhe pertence particularmente mesmo se estiver em relação com outros tipos de história Além disso o a priori não escapa à historicidade não constitui acima dos acontecimentos e em um universo inalterável uma estrutura intemporal definese como o conjunto das regras que caracterizam uma prática discursiva ora essas regras não se impõem do exterior aos elementos que elas correlacionam estão inseridas no que ligam e se não se modificam com o menor dentre eles os modificam e com eles se transformam em certos limiares decisivos O a priori das positividades não é somente o sistema de uma dispersão temporal ele próprio é um conjunto transformável Diante dos a priori formais cuja jurisdição se estende sem contingência ele é uma figura puramente empírica mas por outro lado já que permite compreender os discursos na lei de seu devir efetivo deve poder dar conta do fato de que tal discurso em um momento dado possa acolher e utilizar ou ao contrário excluir esquecer ou desconhecer esta ou aquela estrutura formal Ele não pode dar conta através de algo como uma gênese psicológica ou cultural dos a priori formais mas permite compreender como os a priori formais podem ter na história pontos de junção lugares de inserção de irrupção ou de emergência domínios ou ocasiões de utilização e compreender como a história pode ser não uma contingência absolutamente extrínseca não uma necessidade da forma que desenvolve sua própria dialética mas uma regularidade específica Nada pois seria mais agradável mas menos exato que conceber esse a priori histórico como um a priori formal e além do mais dotado de uma história grande figura imóvel e vazia que surgiria um dia à superfície do tempo que faria valer sobre o pensamento dos homens uma tirania da qual ninguém poderia escapar que depois desapareceria de repente em um eclipse a que nenhum acontecimento teria dado sinal prévio transcendental sincopado jogo de formas que cintilam O a priori formal e o a priori histórico não são nem do 146 Michel Foucault mesmo nível nem da mesma natureza se se cruzam é porque ocupam duas dimensões diferentes O domínio dos enunciados assim articulado segundo a priori históricos assim caracterizado por diferentes tipos de positividade e escandido por formações discursivas distintas não tem mais o aspecto de planície monótona e indefinidamente prolongada que eu lhe dava no início quando falava de superfície do discurso deixa igualmente de aparecer como o elemento inerte liso e neutro em que vêm aflorar cada um segundo seu próprio movimento ou estimulados por algum dinamismo obscuro temas idéias conceitos conhecimentos Temos de tratar agora de um volume complexo em que se diferenciam regiões heterogêneas e em que se desenrolam segundo regras específicas práticas que não se podem superpor Ao invés de vermos alinharemse no grande livro mítico da história palavras que traduzem em caracteres visíveis pensamentos constituídos antes e em outro lugar temos na densidade das práticas discursivas sistemas que instauram os enunciados como acontecimentos tendo suas condições e seu domínio de aparecimento e coisas compreendendo sua possibilidade e seu campo de utilização São todos esses sistemas de enunciados acontecimentos de um lado coisas de outro que proponho chamar de arquivo Não entendo por esse termo a soma de todos os textos que uma cultura guardou em seu poder como documentos de seu próprio passado ou como testemunho de sua identidade mantida não entendo tampouco as instituições que em determinada sociedade permitem registrar e conservar os discursos de que se quer ter lembrança e manter a livre disposição Tratase antes e ao contrário do que faz com que tantas coisas ditas por tantos homens há tantos milênios não tenham surgido apenas segundo as leis do pensamento ou apenas segundo o jogo das circunstâncias que não sejam simplesmente a sinalização no nível das performances verbais do que se pôde desenrolar na ordem do espírito ou na ordem das coisas mas que tenham aparecido graças a todo um jogo de relações que caracterizam particularmente o nível discursivo que em lugar de serem figuras adventícias e como que inseridas um pouco ao acaso em processos mudos nasçam segundo regularidades específicas em suma que se há coisas ditas e somente estas não é preciso perguntar sua razão A Arqueologia do Saber 147 imediata às coisas que aí se encontram ditas ou aos homens que as disseram mas ao sistema da discursividade às possibilidades e às impossibilidades enunciativas que ele conduz O arquivo é de início a lei do que pode ser dito o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares Mas o arquivo é também o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa não se inscrevam tampouco em uma linearidade sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso de acidentes externos mas que se agrupem em figuras distintas se componham umas com as outras segundo relações múltiplas se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas ele é o que faz com que não recuem no mesmo ritmo que o tempo mas que as que brilham muito forte como estrelas próximas venham até nós na verdade de muito longe quando outras contemporâneas já estão extremamente pálidas O arquivo não é o que protege apesar de sua fuga imediata o acontecimento do enunciado e conserva para as memórias futuras seu estado civil de foragido é o que na própria raiz do enunciadoacontecimento e no corpo em que se dá define desde o início o sistema de sua enunciabilidade O arquivo não é tampouco o que recolhe a poeira dos enunciados que novamente se tornaram inertes e permite o milagre eventual de sua ressurreição é o que define o modo de atualidade do enunciadocoisa é o sistema de seu funcionamento Longe de ser o que unifica tudo o que foi dito no grande murmúrio confuso de um discurso longe de ser apenas o que nos assegura a existência no meio do discurso mantido é o que diferencia os discursos em sua existência múltipla e os especifica em sua duração própria Entre a língua que define o sistema de construção das frases possíveis e o corpus que recolhe passivamente as palavras pronunciadas o arquivo define um nível particular o de uma prática que faz surgir uma multiplicidade de enunciados como tantos acontecimentos regulares como tantas coisas oferecidas ao tratamento e à manipulação Não tem o peso da tradição não constitui a biblioteca sem tempo nem lugar de todas as bibliotecas mas não é tampouco o esquecimento acolhedor que abre a qualquer palavra nova o campo de exercício de sua liberdade entre a tradição e o esquecimento ele faz aparecerem as regras de uma prática que permite aos enunciados 148 Michel Foucault subsistirem e ao mesmo tempo se modificarem regularmente É o sistema geral da formação e da transformação dos enunciados É evidente que não se pode descrever exaustivamente o arquivo de uma sociedade de uma cultura ou de uma civilização nem mesmo sem dúvida o arquivo de toda uma época Por outro lado não nos é possível descrever nosso próprio arquivo já que é no interior de suas regras que falamos já que é ele que dá ao que podemos dizer e a ele próprio objeto de nosso discurso seus modos de aparecimento suas formas de existência e de coexistência seu sistema de acúmulo de historicidade e de desaparecimento O arquivo não é descritível em sua totalidade e é incontornável em sua atualidade Dáse por fragmentos regiões e níveis melhor sem dúvida e com mais clareza na medida em que o tempo dele nos separa em termos extremos não fosse a raridade dos documentos seria necessário o maior recuo cronológico para analisálo Entretanto como poderia essa descrição do arquivo justificarse elucidar o que o torna possível demarcar o lugar de onde ele próprio fala controlar seus deveres e seus direitos testar e elaborar seus conceitos pelo menos no estágio da pesquisa em que ele só pode definir suas possibilidades no momento de seu exercício se se obstinava em descrever somente os horizontes mais longínquos Não será preciso nos reaproximarmos o máximo possível dessa positividade a que ele próprio obedece e do sistema de arquivo que nos permite falar hoje do arquivo em geral Não será necessário esclarecer apenas obliquamente o campo enunciativo de que ele mesmo faz parte A análise do arquivo comporta pois uma região privilegiada ao mesmo tempo próxima de nós mas diferente de nossa atualidade tratase da orla do tempo que cerca nosso presente que o domina e que o indica em sua alteridade é aquilo que fora de nós nos delimita A descrição do arquivo desenvolve suas possibilidades e o controle de suas possibilidades a partir dos discursos que começam a deixar justamente de ser os nossos seu limiar de existência é instaurado pelo corte que nos separa do que não podemos mais dizer e do que fica fora de nossa prática discursiva começa com o exterior da nossa própria linguagem seu lugar é o afastamento de nossas próprias práticas discursivas Nesse sentido vale para nosso diagnóstico Não porque nos A Arqueologia do Saber 149 permitiria levantar o quadro de nossos traços distintivos e esboçar antecipadamente o perfil que teremos no futuro mas porque nos desprende de nossas continuidades dissipa essa identidade temporal em que gostamos de nos olhar para conjurar as rupturas da história rompe o fio das teleologias transcendentais e aí onde o pensamento antropológico interrogava o ser do homem ou sua subjetividade faz com que o outro e o externo se manifestem com evidência O diagnóstico assim entendido não estabelece a autenticação de nossa identidade pelo jogo das distinções Ele estabelece que somos diferença que nossa razão é a diferença dos discursos nossa história a diferença dos tempos nosso eu a diferença das máscaras Que a diferença longe de ser origem esquecida e recoberta é a dispersão que somos e que fazemos A revelação jamais acabada jamais integralmente alcançada do arquivo forma o horizonte geral a que pertencem a descrição das formações discursivas a análise das positividades a demarcação do campo enunciativo O direito das palavras que não coincide com o dos filólogos autoriza pois a dar a todas essas pesquisas o título de arqueologia Esse termo não incita à busca de nenhum começo não associa a análise a nenhuma exploração ou sondagem geológica Ele designa o tema geral de uma descrição que interroga o já dito no nível de sua existência da função enunciativa que nele se exerce da formação discursiva a que pertence do sistema geral de arquivo de que faz parte A arqueologia descreve os discursos como práticas especificadas no elemento do arquivo RAISING YOUR CHILD IV A DESCRIÇÃO ARQUEOLÓGICA COPYRIGHT 1969 1977 by THE CHRISTIAN HOMEAnd SCHOOL PUBLICATION INC PRINTED IN THE UNITED STATES OF AMERICA 1 ARQUEOLOGIA E HISTÓRIA DAS IDÉIAS Podese agora inverter o procedimento podese descer no sentido da corrente e uma vez percorrido o domínio das formações discursivas e dos enunciados uma vez esboçada sua teoria geral correr para os domínios possíveis de aplicação Refletir sobre a utilidade dessa análise que por um ato talvez muito solene batizei de arqueologia Aliás isso é preciso pois para ser franco as coisas no momento não deixam de ser bastante inquietantes Eu havia partido de um problema relativamente simples a escansão do discurso segundo grandes unidades que não eram as das obras dos autores dos livros ou dos temas E eis que com o único fim de estabelecêlas comecei a trabalhar toda uma série de noções formações discursivas positividade arquivo defini um domínio os enunciados o campo enunciativo as práticas discursivas tentei fazer com que surgisse a especificidade de um método que não seria nem formalizador nem interpretativo em suma apelei para todo um aparelho cujo peso e sem dúvida bizarra maquinaria são embaraçosos pois já existem vários métodos capazes de descrever e analisar a linguagem para que não seja presunção querer acrescentarlhes outro E além disso eu havia mantido sob suspeita unidades de discurso como o livro ou a obra porque desconfiava que não fossem tão imediatas e evidentes quanto pareciam será 154 Michel Foucault razoável oporlhes unidades estabelecidas à custa de tal esforço depois de tantas hesitações e segundo princípios tão obscuros que foram necessárias centenas de páginas para elucidálos E o que todos esses instrumentos acabam por delimitar esses famosos discursos cuja identidade eles demarcam coincidem com as figuras chamadas psiquiatria ou economia política ou história natural de que eu tinha empiricamente partido e que me serviram de pretexto para remanejar esse estranho arsenal Forçosamente preciso agora medir a eficácia descritiva das noções que tentei definir Preciso saber se a máquina funciona e o que ela pode produzir O que pode então oferecer essa arqueologia que outras descrições não seriam capazes de dar Qual é a recompensa de tão árdua empresa E imediatamente uma primeira suspeita me ocorre Agi como se descobrisse um domínio novo e como se para descrevêlo tivesse necessidade de medidas e marcos inéditos Mas na verdade não me alojei exatamente no espaço que se conhece bem e há muito sob o nome de história das idéias Não foi a ele que me referi implicitamente mesmo quando em duas ou três ocasiões tentei manterme distante Se minha intenção tivesse sido não desviar os olhos dele será que nele não encontraria já preparado e analisado tudo que buscava No fundo talvez eu não passe de um historiador das idéias mas envergonhado ou se quiserem presunçoso Um historiador das idéias que quis renovar inteiramente sua disciplina que desejou sem dúvida darlhe o rigor que tantas outras descrições bastante próximas adquiriram recentemente mas que incapaz de modificar realmente a velha forma de análise incapaz de fazer com que transpusesse o limiar da cientificidade quer porque tal metamorfose jamais seja possível quer porque não tenha tido forças para operar ele mesmo essa transformação declara para iludir que sempre fez e quis fazer outra coisa Toda essa nova nebulosidade serviu para esconder o fato de que permanecemos na mesma paisagem ligados a um velho solo gasto até a miséria Eu não teria o direito de estar tranquilo enquanto não me separasse da história das idéias enquanto não mostrasse em que a análise arqueológica se diferencia de suas descrições Não é fácil caracterizar uma disciplina como a história das idéias objeto incerto fronteiras maldesenhadas métodos A Arqueologia do Saber 155 tomados de empréstimo aqui e ali procedimento sem retitude e sem fixidez Parece no entanto que podemos atribuirlhe dois papéis Por um lado ela conta a história dos elementos secundários e das margens Não a história das ciências mas a dos conhecimentos imperfeitos malfundamentados que jamais puderam atingir ao longo de uma vida obstinada a forma da cientificidade história da alquimia e não da química dos espíritos animais ou da frenologia e não da fisiologia história dos temas atomísticos e não da física História das filosofias obscuras que perseguem as literaturas a arte as ciências o direito a moral e até a vida cotidiana dos homens história dos tematismos seculares que jamais se cristalizaram em um sistema rigoroso e individual mas que formaram a filosofia espontânea dos que não filosofavam História não da literatura mas do rumor lateral da escrita cotidiana e tão rapidamente apagada que nunca adquire o status da obra ou que imediatamente o perde análise das subliteraturas dos almanaques das revistas e dos jornais dos sucessos fugidios dos autores inconfessáveis Assim definida mas vêse de imediato o quanto é difícil fixarlhe limites precisos a história das idéias se dirige a todo esse insidioso pensamento a todo esse jogo de representações que correm anonimamente entre os homens no interstício dos grandes monumentos discursivos faz aparecer o solo friável sobre o qual repousam Tratase da disciplina das linguagens flutuantes das obras informes dos temas não ligados Análise das opiniões mais que do saber dos erros mais que da verdade não das formas do pensamento mas dos tipos de mentalidade Mas por outro lado a história das idéias se atribui a tarefa de penetrar as disciplinas existentes tratálas e reinterpretálas Constitui pois mais do que um domínio marginal um estilo de análise um enfoque Ela se encarrega do campo histórico das ciências das literaturas e das filosofias mas aí descreve os conhecimentos que serviram de fundo empírico e não refletido para formalizações ulteriores tenta reencontrar a experiência imediata que o discurso transcreve segue a gênese de sistemas e obras a partir das representações recebidas ou adquiridas Mostra em compensação como pouco a pouco as grandes figuras assim constituídas se decompõem como os temas se desatam seguem sua vida isolada caem em desuso ou se recompõem de um novo modo A história das 156 Michel Foucault idéias é então a disciplina dos começos e dos fins a descrição das continuidades obscuras e dos retornos a reconstituição dos desenvolvimentos na forma linear da história Mas ela pode também e dessa mesma forma descrever de um domínio a outro todo o jogo das trocas e dos intermediários mostra como o saber científico se difunde dá lugar a conceitos filosóficos e toma forma eventualmente em obras literárias mostra como problemas noções temas podem emigrar do campo filosófico em que foram formulados para discursos científicos ou políticos relaciona obras com instituições hábitos ou comportamentos sociais técnicas necessidades e práticas mudas tenta fazer reviverem as formas mais elaboradas de discurso na paisagem concreta no ambiente de crescimento e de desenvolvimento que as viu nascerem Tornase então a disciplina das interferências a descrição dos círculos concêntricos que envolvem as obras as sublinham as unem umas às outras e as inserem em tudo que não é obra Vêse bem como os dois papéis da história das idéias se articulam um com o outro Em sua forma mais geral podemos dizer que ela descreve sem cessar e em todas as direções em que se efetua a passagem da nãofilosofia à filosofia da nãocientificidade à ciência da nãoliteratura à própria obra Ela é a análise dos nascimentos surdos das correspondências longínquas das permanências que se obstinam sob mudanças aparentes das lentas formações que se beneficiam de um semnúmero de cumplicidades cegas dessas figuras globais que se ligam pouco a pouco e de repente se condensam na agudeza da obra Gênese continuidade totalização eis os grandes temas da história das idéias através dos quais ela se liga a uma certa forma hoje tradicional de análise histórica É normal nessas condições que qualquer pessoa que ainda tem da história de seus métodos de suas exigências e de suas possibilidades essa idéia de agora em diante um pouco enfraquecida não possa conceber que se abandone uma disciplina como a história das idéias ao contrário considera que qualquer outra forma de análises dos discursos é uma traição à própria história Ora a descrição arqueológica é precisamente abandono da história das idéias recusa sistemática de seus postulados e de seus procedimentos tentativa de fazer uma história inteiramente diferente daquilo que os homens disseram O fato de que alguns não reconheçam nessa A Arqueologia do Saber 157 tentativa a história de sua infância que a lamentem e que invoquem numa época que não é mais feita para ela a grande sombra de outrora prova certamente o extremo de sua fidelidade Mal tal zelo conservador torname mais firme em meu propósito e me dá certeza do que quis fazer Entre análise arqueológica e história das idéias os pontos de separação são numerosos Tentarei estabelecer em seguida quatro diferenças que me parecem capitais a propósito da determinação de novidade a propósito da análise das contradições a propósito das descrições comparativas a propósito enfim da demarcação das transformações Espero que se possa compreender nesses diferentes pontos as particularidades da análise arqueológica e que se possa eventualmente medir sua capacidade descritiva Que baste no momento indicar alguns princípios 1 A arqueologia busca definir não os pensamentos as representações as imagens os temas as obsessões que se ocultam ou se manifestam nos discursos mas os próprios discursos enquanto práticas que obedecem a regras Ela não trata o discurso como documento como signo de outra coisa como elemento que deveria ser transparente mas cuja opacidade importuna é preciso atravessar frequentemente para reencontrar enfim aí onde se mantém à parte a profundidade do essencial ela se dirige ao discurso em seu volume próprio na qualidade de monumento Não se trata de uma disciplina interpretativa não busca um outro discurso mais oculto Recusase a ser alegórica 2 A arqueologia não procura encontrar a transição contínua e insensível que liga em declive suave os discursos ao que os precede envolve ou segue Não espreita o momento em que a partir do que ainda não eram tornaramse o que são nem tampouco o momento em que desfazendo a solidez de sua figura vão perder pouco a pouco sua identidade O problema dela é pelo contrário definir os discursos em sua especificidade mostrar em que sentido o jogo das regras que utilizam é irredutível a qualquer outro seguilos ao longo de suas arestas exteriores para melhor salientálos Ela não vai em progressão lenta do campo confuso da opinião à singularidade do sistema ou à estabilidade definitiva da ciência não é 158 Michel Foucault uma doxologia mas uma análise diferencial das modalidades de discurso 3 A arqueologia não é ordenada pela figura soberana da obra não busca compreender o momento em que esta se destacou do horizonte anônimo Não quer reencontrar o ponto enigmático em que o individual e o social se invertem um no outro Ela não é nem psicologia nem sociologia nem num sentido mais geral antropologia da criação A obra não é para ela um recorte pertinente mesmo se se tratasse de recolocála em seu contexto global ou na rede das causalidades que a sustentam Ela define tipos e regras de práticas discursivas que atravessam obras individuais às vezes as comandam inteiramente e as dominam sem que nada lhes escape mas às vezes também só lhes regem uma parte A instância do sujeito criador enquanto razão de ser de uma obra e princípio de sua unidade lhe é estranha 4 Finalmente a arqueologia não procura reconstituir o que pôde ser pensado desejado visado experimentado almejado pelos homens no próprio instante em que proferiam o discurso ela não se propõe a recolher esse núcleo fugidio onde autor e obra trocam de identidade onde o pensamento permanece ainda o mais próximo de si na forma ainda não alterada do mesmo e onde a linguagem não se desenvolveu ainda na dispersão espacial e sucessiva do discurso Em outras palavras não tenta repetir o que foi dito reencontrandoo em sua própria identidade Não pretende se apagar na modéstia ambígua de uma leitura que deixaria voltar em sua pureza a luz longínqua precária quase extinta da origem Não é nada além e nada diferente de uma reescrita isto é na forma mantida da exterioridade uma transformação regulada do que já foi escrito Não é o retorno ao próprio segredo da origem é a descrição sistemática de um discursoobjeto 2 O ORIGINAL E O REGULAR Em geral a história das idéias trata o campo dos discursos como um domínio de dois valores todo elemento que aí é demarcado pode ser caracterizado como antigo ou novo inédito ou repetido tradicional ou original semelhante a um tipo médio ou desviante Podemse pois distinguir duas categorias de formulações aquelas valorizadas e relativamente pouco numerosas que aparecem pela primeira vez que não têm antecedentes semelhantes que vão eventualmente servir de modelo às outras e que nesse caso merecem passar por criações e aquelas banais cotidianas maciças que não são responsáveis por si mesmas e que derivam às vezes para repetilo textualmente do que já foi dito A cada um dos dois grupos a história das idéias atribui um status além disso não os submete à mesma análise Descrevendo o primeiro ela conta a história das invenções das mudanças das metamorfoses mostra como a verdade se subtraiu ao erro como a consciência despertou de seus sonos sucessivos como formas novas se ergueram alternadamente para nos dar a paisagem que é agora a nossa cabe ao historiador reencontrar a partir desses pontos isolados dessas rupturas sucessivas a linha contínua de uma evolução O outro grupo ao contrário manifesta a história como inércia e marasmo como lento acúmulo do passado e sedimentação silenciosa das coisas ditas 160 Michel Foucault os enunciados devem aí ser tratados em massa e segundo o que têm em comum sua singularidade de acontecimento pode ser neutralizada perdem importância também a identidade de seu autor o momento e o lugar de seu aparecimento em compensação é sua extensão que deve ser medida até onde e até quando eles se repetem por que canais se difundem em que grupos circulam que horizonte geral delineiam para o pensamento dos homens que limites lhe impõem e caracterizando uma época como permitem distinguila das outras Descrevese então uma série de figuras globais No primeiro caso a história das idéias descreve uma sucessão de acontecimentos de pensamento no segundo temos camadas ininterruptas de efeitos no primeiro reconstituímos a emergência das verdades ou das formas no segundo restabelecemos as solidariedades esquecidas e remetemos os discursos à sua relatividade É verdade que entre as duas instâncias a história das idéias não deixa de determinar relações jamais se encontra uma das análises em estado puro ela descreve os conflitos entre o antigo e o novo a resistência do adquirido a repressão que este exerce sobre o que nunca tinha sido dito os recobrimentos pelos quais o mascara o esquecimento a que às vezes consegue condenálo mas descreve também as facilitações que obscuramente e de longe preparam os discursos futuros descreve a repercussão das descobertas a rapidez e a extensão de sua difusão os lentos processos de substituição ou os bruscos abalos que transtornam a linguagem familiar descreve a integração do novo no campo já estruturado do adquirido a queda progressiva do original no tradicional ou ainda os reaparecimentos do já dito e a nova revelação do originário Mas esse entrecruzamento não a impede de manter sempre uma análise bipolar do antigo e do novo análise que reinveste no elemento empírico da história e em cada um de seus momentos a problemática da origem em cada obra em cada livro no menor texto o problema é reencontrar o ponto de ruptura estabelecer com a maior precisão possível a divisão entre a densidade implícita do já aí a fidelidade talvez involuntária à opinião adquirida a lei das fatalidades discursivas e a vivacidade da criação o salto na irredutível diferença Essa descrição das originalidades se bem que pareça evidente coloca dois problemas metodológicos bem difíceis o A Arqueologia do Saber 161 da semelhança e o da sequência Supõe na verdade que se possa estabelecer uma espécie de grande série única em que cada formulação seja datada segundo marcos cronológicos homogêneos Mas se olharmos mais de perto será que foi da mesma forma e na mesma linha temporal que Grimm com sua lei das mutações vocálicas precedeu Bopp que a citou a usou lhe deu aplicações e lhe impôs ajustamentos e que Coeurdoux e AnquetilDuperron constatando analogias entre o grego e o sânscrito anteciparam a definição das línguas indoeuropéias e precederam os fundadores da gramática comparativa Será na mesma série e segundo o mesmo modo de anterioridade que Saussure é precedido por Peirce e sua semiótica por Arnauld e Lancelot com a análise clássica do signo pelos estóicos e a teoria do significante A precedência não é um dado irredutível e primeiro não pode desempenhar o papel de medida absoluta que permitiria avaliar qualquer discurso e distinguir o original do repetitivo Não basta a demarcação dos antecedentes para determinar uma ordem discursiva ela se subordina ao contrário ao discurso que se analisa ao nível que se escolhe à escala que se estabelece Estendendo o discurso ao longo de um calendário e dando uma data a cada um de seus elementos não se obtém a hierarquia definitiva das precedências e das originalidades esta só se refere aos sistemas dos discursos que tenta valorizar Quanto à semelhança entre duas ou várias formulações que se seguem ela coloca por sua vez toda uma série de problemas Em que sentido e segundo que critérios podese afirmar isto já foi dito a mesma coisa já se encontra em tal texto esta proposição é muito próxima daquela etc O que é identidade parcial ou total na ordem do discurso Sabemos que o fato de duas enunciações serem exatamente idênticas formadas pelas mesmas palavras usadas no mesmo sentido não autoriza a que as identifiquemos de maneira absoluta Ainda que encontrássemos em Diderot e Lamarck em Benoit de Maillet e Darwin a mesma formulação do princípio evolutivo não poderíamos considerar que se tratasse de um único e mesmo acontecimento discursivo que teria sido submetido através do tempo a uma série de repetições Exaustiva a identidade não é um critério ainda mais quando é parcial quando as palavras não são usadas cada vez no mesmo sentido ou quando um mesmo núcleo significativo é apreendido 162 Michel Foucault por meio de palavras diferentes até que ponto se pode afirmar que é o mesmo tema organicista que se revela através dos discursos e dos vocabulários tão diferentes de Buffon de Jussieu e de Cuvier E inversamente podese dizer que a mesma palavra organização abrange o mesmo sentido em Daubenton Blumenbach e Geoffroy SaintHilaire De modo geral é o mesmo tipo de semelhança que se identifica entre Cuvier e Darwin e entre o mesmo Cuvier e Lineu ou Aristóteles Não há semelhança em si imediatamente reconhecível entre as formulações sua analogia é um efeito do campo discursivo em que a delimitamos Não é legítimo pois indagar à queimaroupa aos textos que estudamos sobre seu valor de originalidade e sobre os fragmentos de nobreza que se medem aqui na ausência de ancestrais A indagação só pode ter sentido em séries muito exatamente definidas em conjuntos cujos limites e domínio foram estabelecidos entre marcos que limitam campos discursivos suficientemente homogêneos1 Mas buscar no grande amontoado do já dito o texto que se assemelha antecipadamente a um texto ulterior procurar por toda parte para encontrar através da história o jogo das antecipações ou dos ecos remontar até os germens primeiros ou descer até os últimos vestígios ressaltar alternadamente a propósito de uma obra sua fidelidade às tradições ou sua parte de irredutível singularidade aumentar ou diminuir sua cota de originalidade dizer que os gramáticos de PortRoyal nada inventaram ou descobrir que Cuvier tinha mais predecessores do que se acreditava são passatempos simpáticos mas tardios de historiadores de calças curtas A descrição arqueológica se dirige às práticas discursivas a que os fatos de sucessão devemse referir se não quisermos estabelecêlos de maneira selvagem e ingênua isto é cm termos de mérito No nível em que se coloca a oposição originalidadebanalidade não é portanto pertinente entre uma formulação inicial e a frase que anos séculos mais tarde a repetiu mais ou menos exatamente ela não estabelece ne 1 Foi dessa maneira que M Canguilhem estabeleceu a sequência das proposições que de Willis a Prochaska permitiu a definição do reflexo A Arqueologia do Saber 163 nhuma hierarquia de valor não faz diferença radical Procura somente estabelecer a regularidade dos enunciados Regularidade não se opõe aqui à irregularidade que nas margens da opinião corrente ou dos textos mais frequentes caracterizaria o enunciado desviante anormal profético retardatário genial ou patológico designa para qualquer performance verbal extraordinária ou banal única em seu gênero ou mil vezes repetida o conjunto das condições nas quais se exerce a função enunciativa que assegura e define sua existência A regularidade assim entendida não caracteriza uma certa posição central entre os limites de uma curva estatística não pode pois valer como índice de frequência ou de probabilidade especifica um campo efetivo de aparecimento Todo enunciado é portador de uma certa regularidade e não pode dela ser dissociado Não se deve portanto opor a regularidade de um enunciado à irregularidade de outro que seria menos esperado mais singular mais rico em inovações mas sim a outras regularidades que caracterizam outros enunciados A arqueologia não está à procura das invenções e permanece insensível ao momento emocionante admito em que pela primeira vez alguém esteve certo de uma verdade ela não tenta restituir a luz dessas manhãs festivas o que não quer dizer que se dirija aos fenômenos médios da opinião pública e à palidez do que todo mundo em uma certa época podia repetir O que busca nos textos de Lineu ou de Buffon de Petty ou de Ricardo de Pinel ou de Bichat não é estabelecer a lista dos santos fundadores é revelar a regularidade de uma prática discursiva que é exercida do mesmo modo por todos os seus sucessores menos originais ou por alguns de seus predecessores prática que dá conta na própria obra não apenas das afirmações mais originais e com as quais ninguém sonhara antes deles mas das que eles retomaram até recopiaram de seus predecessores Uma descoberta não é menos regular do ponto de vista enunciativo do que o texto que a repete e a difunde a regularidade não é menos operante nem menos eficaz e ativa em uma banalidade do que em uma formação insólita Em tal descrição não se pode admitir uma diferença de natureza entre enunciados criadores que fazem aparecer alguma coisa nova que emitem uma informação inédita e que são de certa forma ativos e enunciados imitativos que recebem e repetem a informação permanecem por assim dizer 164 Michel Foucault passivos O campo dos enunciados não é um conjunto de plagas inertes escandido por momentos fecundos é um domínio inteiramente ativo Essa análise das regularidades enunciativas se abre em diversas direções que talvez devam ser um dia exploradas com mais cuidado 1 Uma certa forma de regularidade caracteriza pois um conjunto de enunciados sem que seja necessário ou possível estabelecer uma diferença entre o que seria novo e o que não seria Mas as regularidades voltaremos a isso em seguida não se apresentam de maneira definitiva não é a mesma regularidade que se encontra atuante em Tournefort e Darwin ou em Lancelot e Saussure em Petty e em Kaynes Temos portanto campos homogêneos de regularidades enunciativas eles caracterizam uma formação discursiva mas tais campos são diferentes entre si Ora não é necessário que a passagem a um novo campo de regularidades enunciativas seja acompanhada de mudanças correspondentes em todos os outros níveis dos discursos Podemos encontrar performances verbais que são idênticas do ponto de vista da gramática vocabulário sintaxe e de uma maneira geral a língua que são igualmente idênticas do ponto de vista da lógica estrutura proposicional ou sistema dedutivo no qual se encontra situada mas que são enunciativamenie diferentes Assim a formulação da relação quantitativa entre os preços e a moeda em circulação pode ser efetivada com as mesmas palavras ou palavras sinônimas e ser obtida pelo mesmo raciocínio ela não é enunciativamenie idêntica em Gresham ou Locke e nos marginalistas do século XIX não pertence em nenhum caso ao mesmo sistema de formação dos objetos e dos conceitos É preciso pois distinguir entre analogia linguística ou tradutibilidade identidade lógica ou equivalência e homogeneidade enunciativa São dessas homogeneidades e exclusivamente que a arqueologia se encarrega Ela pode ver surgir uma prática discursiva nova através das formulações verbais que permanecem linguisticamente análogas ou logicamente equivalentes retomando às vezes palavra por palavra a velha teoria da fraseatribuição e do verboligação os gramáticos de PortRoyal abriram uma regularidade enunciativa cuja especificidade a arqueologia deve descrever Inversamente ela A Arqueologia do Saber 165 pode negligenciar diferenças de vocabulário pode passar sobre campos semânticos ou organizações dedutivas diferentes se for capaz de reconhecer em ambos e apesar da heterogeneidade uma certa regularidade enunciativa desse ponto de vista a teoria da linguagem de ação a pesquisa sobre a origem das línguas o estabelecimento das raízes primitivas tais como as encontramos no século XVIII não são novos em relação às análises lógicas feitas por Lancelot Vemos desenharse assim um certo número de desligamentos e de articulações Não se pode mais dizer que uma descoberta a formulação de um princípio geral ou a definição de um projeto inaugura e de forma maciça uma fase nova na história do discurso Não se deve mais procurar o ponto de origem absoluta ou de revolução total a partir do qual tudo se organiza tudo se torna possível e necessário tudo se extingue para recomeçar Temos de tratar de acontecimentos de tipos e de níveis diferentes tomados em tramas históricas distintas uma homogeneidade enunciativa que se instaura não implica de modo algum que de agora em diante e por décadas ou séculos os homens vão dizer e pensar a mesma coisa não implica tampouco a definição explícita ou não de um certo número de princípios de que todo o resto resultaria como consequência As homogeneidades e heterogeneidades enunciativas se entrecruzam com continuidades e mudanças linguísticas com identidades e diferenças lógicas sem que umas e outras caminhem no mesmo ritmo ou se dominem necessariamente Entretanto deve existir entre elas um certo número de relações e interdependências cujo domínio sem dúvida muito complexo deverá ser inventariado 2 Outra direção de pesquisa as hierarquias internas às regularidades enunciativas Vimos que todo enunciado se relacionava a uma certa regularidade que nada por conseguinte podia ser considerado como pura e simples criação ou maravilhosa desordem do gênio Mas vimos também que nenhum enunciado podia ser considerado como inativo e valer como sombra ou decalque pouco reais de um enunciado inicial Todo o campo enunciativo é ao mesmo tempo regular e vigilante é insone o menor enunciado o mais discreto ou banal coloca em prática todo o jogo das regras segundo as quais são formados seu objeto sua modalidade os conceitos 166 Michel Foucault que utiliza e a estratégia de que faz parte As regras jamais se apresentam nas formulações atravessamnas e constituem para elas um espaço de coexistência não podemos pois encontrar o enunciado singular que as articularia Entretanto certos grupos de enunciados empregam essas regras em sua forma mais geral e mais largamente aplicável a partir deles podemos ver como outros objetos outros conceitos outras modalidades enunciativas ou outras escolhas estratégicas podem ser formados a partir de regras menos gerais e cujo domínio de aplicação é mais específico Podese assim descrever uma árvore de derivação enunciativa em sua base os enunciados que empregam as regras de formação em sua extensão mais ampla no alto e depois de um certo número de ramificações os enunciados que empregam a mesma regularidade porém mais sutilmente articulada mais bem delimitada e localizada em sua extensão A arqueologia pode assim e eis um de seus temas principais constituir a árvore de derivação de um discurso por exemplo o da história natural Ela colocará junto à raiz como enunciados reitores os que se referem à definição das estruturas observáveis e do campo de objetos possíveis os que prescrevem as formas de descrição e os códigos perceptivos de que ele pode servirse os que fazem aparecerem as possibilidades mais gerais de caracterização e abrem assim todo um domínio de conceitos a ser construídos enfim os que constituindo uma escolha estratégica dão lugar ao maior número de opções ulteriores Na extremidade dos ramos ou pelo menos no curso de todo um florescimento ela encontrará descobertas como a das séries fósseis transformações conceituais como a nova definição do gênero emergências de noções inéditas como a de mamíferos ou de organismo atualizações de técnicas princípios organizadores das coleções métodos de classificação e de nomenclatura Essa derivação a partir dos enunciados reitores não pode ser confundida com uma dedução que se efetuaria a partir de axiomas não deve tampouco ser assimilada à germinação de uma idéia geral ou de um núcleo filosófico cujas significações se desenvolveriam pouco a pouco em experiências ou conceitualizações precisas finalmente não deve ser compreendida como uma gênese psicológica a partir de uma descoberta que pouco a pouco desenvolveria suas consequências e ampliaria suas possibilidades Ela é diferente de todos esses percursos e deve ser A Arqueologia do Saber 1 67 descrita em sua autonomia Podemse assim descrever as derivações arqueológicas da história natural sem começar por seus axiomas indemonstráveis ou seus temas fundamentais por exemplo a continuidade da natureza e sem tomar como ponto de partida e como fio condutor as primeiras descobertas ou as primeiras abordagens as de Tournefort antes das de Lineu as de Jonston antes das de Tournefort A ordem arqueológica não é nem a das sistematicidades nem a das sucessões cronológicas Mas vemos abrirse todo um domínio de questões possíveis Por mais que essas diferentes ordens sejam específicas e tenham cada uma sua autonomia deve haver entre elas relações e dependências Para certas formações discursivas a ordem arqueológica talvez não seja muito diferente da ordem sistemática já que em outros casos ela segue talvez o fio das sucessões cronológicas Tais paralelismos ao contrário das distorções que se encontram por aí merecem ser analisados É importante de qualquer forma não confundir os diversos ordenamentos não procurar em uma descoberta inicial ou na originalidade de uma formulação o princípio de onde podemos tudo deduzir e derivar não procurar em um princípio geral a lei das regularidades enunciativas ou das invenções individuais não pedir à derivação arqueológica que reproduza a ordem do tempo ou que revele um esquema dedutivo Nada seria mais falso do que ver na análise das formações discursivas uma tentativa de periodização totalitária a partir de um certo momento e por um certo tempo todo mundo pensaria da mesma forma apesar das diferenças de superfície diria a mesma coisa através de um vocabulário polimorfo e produziria uma espécie de grande discurso que se poderia percorrer indiferentemente em todos os sentidos Ao contrário a arqueologia descreve um nível de homogeneidade enunciativa que tem seu próprio recorte temporal e que não traz com ela todas as outras formas de identidade e de diferenças que podem ser demarcadas na linguagem e neste nível ela estabelece um ordenamento hierarquias e todo um florescimento que excluem uma sincronia maciça amorfa apresentada global e definitivamente Nas tão confusas unidades chamadas épocas ela faz surgirem com sua especificidade períodos enunciativos que se articulam no tempo dos conceitos nas fases teóricas nos estágios de formalização e nas etapas de evolução linguística mas sem se confundir com eles 3 AS CONTRADIÇÕES A história das idéias normalmente dá um crédito de coerência ao discurso que ela analisa Será que lhe ocorre constatar uma irregularidade no uso das palavras diversas proposições incompatíveis um jogo de significações que não se ajustam umas às outras conceitos que juntos não podem ser sistematizados Ela se encarrega de encontrar em um nível mais ou menos profundo um princípio de coesão que organiza o discurso e lhe restitui uma unidade oculta Essa lei de coerência é uma regra heurística uma obrigação de procedimento quase uma coação moral da pesquisa não multiplicar inutilmente as contradições não se deixar prender às pequenas diferenças não atribuir peso demasiado às transformações aos arrependimentos aos retornos ao passado às polêmicas não supor que o discurso dos homens esteja continuamente minado a partir do interior pela contradição de seus desejos das influências que sofreram ou das condições em que vivem mas admitir que se eles falam e dialogam é muito mais para superar essas contradições e encontrar o ponto a partir do qual poderão ser dominadas Porém essa mesma coerência é também o resultado da pesquisa ela define as unidades terminais que arrematam a análise descobre a organização interna de um texto a forma de desenvolvimento de uma obra individual ou o ponto de encontro de discursos A Arqueologia do Saber 169 diferentes Somos obrigados a supôla para reconstituíla e só estaremos seguros de havêla encontrado se a tivermos perseguido de bem longe e por muito tempo Ela aparece como um ótimo o maior número possível de contradições resolvidas pelos meios mais simples Ora os meios empregados são muito numerosos e por isso mesmo as coerências encontradas podem ser bem diferentes Analisando a verdade das proposições e as relações que as unem podemos definir um campo de nãocontradição lógica descobriremos então uma sistematicidade remontaremos do corpo visível das frases à pura arquitetura ideal que as ambiguidades da gramática a sobrecarga significante das palavras mascararam sem dúvida tanto quanto traduziram Mas podemos inversamente seguindo o fio das analogias e dos símbolos reencontrar uma temática mais imaginária que discursiva mais afetiva que racional e menos próxima do conceito que do desejo sua força anima as figuras mais opostas para entretanto fundilas logo em uma unidade lentamente transformável o que se descobre então é uma continuidade plástica é o percurso de um sentido que toma forma em representações imagens e metáforas diversas Temáticas ou sistemáticas tais coerências podem ser explícitas ou não podemos procurálas no nível de representações de que tinha consciência o sujeito falante mas que por razões de circunstância ou por uma incapacidade ligada à própria forma de sua linguagem seu discurso não foi capaz de exprimir podemos procurálas também em estruturas que teriam coagido o autor mais do que este as teria construído e que lhe teriam imposto sem que disso ele se desse conta postulados esquemas operatórios regras linguísticas um conjunto de afirmações e de crenças fundamentais tipos de imagens ou toda uma lógica da alucinação Enfim pode ser o caso de coerências que estabelecemos no nível de um indivíduo de sua biografia ou das circunstâncias singulares de seu discurso mas que podemos também estabelecer segundo marcos mais amplos e darlhes as dimensões coletivas e diacrônicas de uma época de uma forma geral de consciência de um tipo de sociedade de um conjunto de tradições de uma paisagem imaginária comum a toda uma cultura Sob todas essas formas a coerência assim descoberta desempenha sempre o mesmo papel mostrar que as contradições imediatamente 170 Michel Foucault visíveis não são mais que um reflexo de superfície e que é preciso reconduzir a um foco único esse jogo de fragmentos dispersos A contradição é a ilusão de uma unidade que se oculta ou que é ocultada só tem seu lugar na defasagem existente entre a consciência e o inconsciente o pensamento e o texto a idealidade e o corpo contingente da expressão De qualquer forma a análise deve suprimir sempre que possa a contradição Ao fim desse trabalho permanecem somente contradições residuais acidentes faltas falhas ou surge ao contrário como se toda a análise a isso tivesse conduzido em surdina e apesar dela a contradição fundamental emprego na própria origem do sistema de postulados incompatíveis entrecruzamento de influências que não se podem conciliar difração primeira do desejo conflito econômico e político que opõe uma sociedade a si mesma tudo isso ao invés de aparecer como elementos superficiais que é preciso reduzir se revela finalmente como princípio organizador como lei fundadora e secreta que justifica todas as contradições menores e lhes dá um fundamento sólido modelo em suma de todas as outras oposições Tal contradição longe de ser aparência ou acidente do discurso longe de ser aquilo de que é preciso libertálo para que ele libere enfim sua verdade aberta constitui a própria lei de sua existência é a partir dela que ele emerge é ao mesmo tempo para traduzila e superála que ele se põe a falar é para fugir dela enquanto ela renasce sem cessar através dele que ele continua e recomeça indefinidamente é por ela estar sempre aquém dele e por ele jamais poder contornála inteiramente que ele muda se metamorfoseia escapa de si mesmo em sua própria continuidade A contradição funciona então ao longo do discurso como o princípio de sua historicidade A história das idéias reconhece pois dois níveis de contradições o das aparências que se resolve na unidade profunda do discurso e o dos fundamentos que dá lugar ao próprio discurso Em relação ao primeiro nível de contradição o discurso é a figura ideal que se deve separar de sua presença acidental de seu corpo demasiado visível em relação ao segundo o discurso é a figura empírica que as contradições podem assumir e cuja aparente coesão devemos destruir para reencontrálas afinal em sua irrupção e violência O discurso é o caminho de A Arqueologia do Saber 171 uma contradição a outra se dá lugar às que vemos é que obedece à que oculta Analisar o discurso é fazer com que desapareçam e reapareçam as contradições é mostrar o jogo que nele elas desempenham é manifestar como ele pode exprimilas darlhes corpo ou emprestarlhes uma fugidia aparência Para a análise arqueológica as contradições não são nem aparências a transpor nem princípios secretos que seria preciso destacar São objetos a ser descritos por si mesmos sem que se procure saber de que ponto de vista se podem dissipar ou em que nível se radicalizam e se transformam de efeitos em causas Eis um exemplo simples e diversas vezes aqui mesmo citado o princípio fixista de Lineu foi contestado no século XVIII não tanto pela descoberta da Peloria que mudou somente suas modalidades de aplicação mas por um certo número de afirmações evolucionistas que se pode encontrar em Buffon Diderot Bordeu Maillet e muitos outros A análise arqueológica não consiste em mostrar que sob tal oposição e em um nível mais essencial todos aceitavam um certo número de teses fundamentais a continuidade da natureza e sua plenitude a correlação entre as formas recentes e o clima a passagem quase insensível do nãovivo ao vivo não consiste tampouco em mostrar que tal oposição reflete no domínio particular da história natural um conflito mais geral que divide todo o saber e todo o pensamento do século XVIII conflito entre o tema de uma criação ordenada adquirida de forma definitiva desenvolvida sem segredo irredutível e o tema de uma natureza abundante dotada de poderes enigmáticos desenrolandose pouco a pouco na história e tumultuando todas as ordens espaciais segundo o grande impulso do tempo A arqueologia tenta mostrar como as duas afirmações a fixista e a evolucionista têm seu lugar comum em uma certa descrição das espécies e dos gêneros essa descrição toma por objeto a estrutura visível dos órgãos isto é sua forma seu tamanho seu número e sua disposição no espaço e pode limitálo de duas maneiras no conjunto do organismo ou em alguns de seus elementos determinados seja por sua importância seja por sua comodidade taxionômica revelase então no segundo caso um quadro regular dotado de um número de casos definidos constituindo de alguma forma o programa de toda criação possível de modo que atual ainda 172 Michel Foucault futuro ou já desaparecido o ordenamento das espécies e dos gêneros está definitivamente fixado e no primeiro caso grupos de parentesco que permanecem indefinidos e abertos que estão separados uns dos outros e que toleram em número indeterminado novas formas tão próximas quanto se queira das formas preexistentes Fazendo assim com que a contradição entre duas teses derive de um certo domínio de objetos de suas delimitações e de seu esquadrinhamento não a resolvemos não descobrimos o ponto de conciliação Mas não a transferimos tampouco a um nível mais fundamental definimos o lugar em que se dá fazemos aparecer a ramificação da alternativa localizamos a divergência e o lugar em que os dois discursos se justapõem A teoria da estrutura não é um postulado comum um fundo de crença geral partilhado por Lineu e Buffon uma sólida e fundamental afirmação que lançaria para o nível de um debate acessório o conflito do evolucionismo e do fixismo é o princípio de sua incompatibilidade a lei que rege sua derivação e sua coexistência Tomando as contradições como objetos a ser descritos a análise arqueológica não tenta descobrir em seu lugar uma forma ou uma temática comuns e sim determinar a medida e a forma de sua variação Em relação a uma história das idéias que desejaria fundir as contradições na unidade seminoturna de uma figura global ou transmutálas em um princípio geral abstrato e uniforme de interpretação ou de explicação a arqueologia descreve os diferentes espaços de dissensão Ela desiste pois de tratar a contradição como uma função geral que se exerce do mesmo modo em todos os níveis do discurso e que a análise deveria suprimir inteiramente ou reconduzir a uma forma primeira e constitutiva o grande jogo da contradição presente sob mil facetas depois suprimida afinal reconstituída no conflito maior em que ela culmina é substituído pela análise dos diferentes tipos de contradição diferentes níveis segundo os quais se pode demarcála diferentes funções que ela pode exercer Tratemos inicialmente dos diferentes tipos Certas contradições localizamse apenas no plano das proposições ou das assertivas sem afetar em nada o regime enunciativo que as tornou possíveis assim no século XVIII a tese do caráter animal dos fósseis opõese à tese mais tradicional de sua natureza mineral as consequências dessas duas teses A Arqueologia do Saber 173 certamente são numerosas e vão longe mas podemos mostrar que elas nascem na mesma formação discursiva no mesmo ponto e segundo as mesmas condições de exercício da função enunciativa são contradições arqueologicamente derivadas e que constituem um estado terminal Outras ao contrário ultrapassam os limites de uma formação discursiva e opõem teses que não se referem às mesmas condições de enunciação assim o fixismo de Lineu é contestado pelo evolucionismo de Darwin mas somente na medida em que se neutraliza a diferença entre a história natural a que pertence o primeiro e a biologia a que se relaciona o segundo Essas são contradições extrínsecas que remetem à oposição entre formações discursivas distintas Para a descrição arqueológica sem levar em conta aqui idas e vindas possíveis do procedimento essa oposição constitui o terminus a quo enquanto as contradições derivadas constituem o terminus ad quem da análise Entre esses dois extremos a descrição arqueológica descreve o que se poderia chamar as contradições intrínsecas as que se desenrolam na própria formação discursiva e que nascidas em um ponto do sistema das formações fazem surgir subsistemas para nos atermos ao exemplo da história natural no século XVIII a contradição que opõe as análises metódicas e as análises sistemáticas A oposição aqui não é terminal não são duas proposições contraditórias a propósito do mesmo objeto nem duas utilizações incompatíveis do mesmo conceito mas duas maneiras de formar enunciados caracterizados uns e outros por certos objetos certas posições de subjetividade certos conceitos e certas escolhas estratégicas Entretanto esses sistemas não são a origem podese mostrar em que ponto derivam ambos de uma única e mesma positividade que é a da história natural Essas oposições intrínsecas é que são pertinentes para a análise arqueológica Tratemos em seguida dos diferentes níveis Uma contradição arqueologicamente intrínseca não é um fato puro e simples que bastaria constatar como um princípio ou explicar como um efeito É um fenômeno complexo que se reparte em diferentes planos da formação discursiva Assim na história natural sistemática e na história natural metódica que não deixaram de se opor uma à outra durante toda uma parte do século XVIII podese reconhecer uma inadequação dos objetos uma descreve o aspecto geral da planta a outra algumas 174 Michel Foucault variáveis determinadas de antemão uma descreve a totalidade da planta ou pelo menos suas partes mais importantes a outra um certo número de elementos escolhidos arbitrariamente por sua comodidade taxionômica ora diferentes estados de crescimento e de maturidade das plantas são considerados ora o estudo se limita a um momento e a um estado de visibilidade ótima uma divergência das modalidades enunciativas no caso da análise sistemática das plantas aplicase um código perceptivo e linguístico rigoroso e segundo uma escala constante na descrição metódica os códigos são relativamente livres e as escalas de demarcação podem oscilar uma incompatibilidade dos conceitos nos sistemas o conceito de caráter genérico é uma marca arbitrária apesar de não enganosa para designar os gêneros nos métodos esse mesmo conceito deve abranger a definição real do gênero finalmente uma exclusão das opções teóricas a taxionomia sistemática torna possível o fixismo mesmo se ele estiver corrigido pela idéia de uma criação contínua no tempo exibindo pouco a pouco os elementos dos quadros ou pela idéia de catástrofes naturais que perturbaram sob nossa perspectiva atual a ordem linear das vizinhanças naturais mas ela exclui a possibilidade de uma transformação aceita pelo método sem implicála necessariamente Chegou a vez das funções Todas essas formas de oposição não desempenham o mesmo papel na prática discursiva não são de modo homogêneo obstáculos a ser superados ou princípio de crescimento Não basta de qualquer forma procurar nelas a causa do retardamento ou da aceleração da história não é a partir da forma vazia e geral da oposição que o tempo se introduz na verdade e na idealidade do discurso Essas oposições são sempre momentos funcionais determinados Algumas asseguram um desenvolvimento adicional do campo enunciativo abrem sequências de argumentação de experiência de verificações de inferências diversas permitem a determinação de objetos novos suscitam novas modalidades enunciativas definem novos conceitos ou modificam o campo de aplicação dos que já existem mas sem que nada seja modificado no sistema de positividade do discurso assim foram os debates entre os naturalistas do século XVIII a propósito da fronteira entre o mineral e o vegetal a propósito dos limites da vida ou da natureza e da origem dos fósseis tais processos A Arqueologia do Saber 175 aditivos podem permanecer abertos ou se encontrar fechados de uma maneira decisiva por uma demonstração que os refuta ou uma descoberta que os invalida Outras induzem uma reorganização do campo discursivo colocam a questão da tradução possível de um grupo de enunciados era outro do ponto de coerência que poderia articulálos de sua integração em um espaço mais geral assim a oposição sistemamétodo nos naturalistas do século XVIII induz uma série de tentativas de reescrevêlos ambos em uma única forma de descrição para dar ao método o rigor e a regularidade do sistema para fazer coincidir o arbitrário do sistema com as análises concretas do método não são novos objetos novos conceitos novas modalidades enunciativas que se somam linearmente aos antigos mas objetos de outro nível mais geral ou mais particular conceitos que têm outra estrutura e outro campo de aplicação enunciações de outro tipo sem que entretanto as regras de formação sejam modificadas Outras oposições têm um papel crítico põem em jogo a existência e a aceitabilidade da prática discursiva definem o ponto de sua impossibilidade efetiva e de seu recuo histórico assim a descrição na própria história natural das solidariedades orgânicas e das funções que se exercem através das variáveis anatômicas em condições definidas de existência não permite mais pelo menos a título de formação discursiva autônoma uma história natural que seja uma ciência taxionômica dos seres a partir de seus caracteres visíveis Uma formação discursiva não é pois o texto ideal contínuo e sem aspereza que corre sob a multiplicidade das contradições e as resolve na unidade calma de um pensamento coerente não é tampouco a superfície em que se vem refletir sob mil aspectos diferentes uma contradição que estaria sempre em segundo plano mas dominante É antes um espaço de dissensões múltiplas um conjunto de oposições diferentes cujos níveis e papéis devem ser descritos A análise arqueológica revela o primado de uma contradição que tem seu modelo na afirmação e na negação simultânea de uma única e mesma proposição mas não para nivelar todas as oposições em formas gerais de pensamento e pacificálas à força por meio de um a priori coator Tratase ao contrário de demarcar em uma prática discursiva determinada o ponto em que elas se constituem definir a forma que assumem as relações que 176 Michel Foucault estabelecem entre si e o domínio que comandara Em suma tratase de manter o discurso em suas asperezas múltiplas e de suprimir em consequência disso o tema de uma contradição uniformemente perdida e reencontrada resolvida e sempre renascente no elemento indiferenciado do logos 4 OS FATOS COMPARATIVOS A análise arqueológica individualiza e descreve formações discursivas isto é deve comparálas opôlas umas às outras na simultaneidade em que se apresentam distinguilas das que não têm o mesmo calendário relacionálas no que podem ter de específico com as práticas não discursivas que as envolvem e lhes servem de elemento geral Bem diferente ainda nisto das descrições epistemológicas ou arquitetônicas que analisam a estrutura interna de uma teoria o estudo arqueológico está sempre no plural ele se exerce em uma multiplicidade de registros percorre interstícios e desvios tem seu domínio no espaço em que as unidades se justapõem se separam fixam suas arestas se enfrentam desenham entre si espaços em branco Quando se dirige a um tipo singular de discurso o da psiquiatria na Histoire de la folie ou o da medicina em Naissance de la clinique é para estabelecer por comparação seus limites cronológicos é também para descrever ao mesmo tempo que eles e em correlação com eles um campo institucional um conjunto de acontecimentos de práticas de decisões políticas um encadeamento de processos econômicos em que figuram oscilações demográficas técnicas de assistência necessidades de mãodeobra níveis diferentes de desemprego etc Mas ele pode também por uma espécie de aproximação lateral como em Les mots et les choses utilizar 178 Michel Foucault várias positividades distintas cujos estados concomitantes são comparados durante um período determinado e confrontados com outros tipos de discurso que tomaram o seu lugar em uma determinada época Mas todas essas análises são muito diferentes das que são praticadas comumente 1 A comparação nesse caso é sempre limitada e regional Longe de querer fazer aparecer formas gerais a arqueologia procura desenhar configurações singulares Quando se confronta a gramática geral a análise das riquezas e a história natural na época clássica não é para reagrupar três manifestações particularmente carregadas de valor expressivo e estranhamente negligenciadas até aqui de uma mentalidade que seria geral nos séculos XVII e XVIII não é para reconstituir a partir de um modelo reduzido e de um domínio singular as formas de racionalidade que foram usadas em toda a ciência clássica não é nem mesmo para esclarecer o perfil menos conhecido de uma fisionomia cultural que acreditávamos familiar Não quisemos mostrar que os homens do século XVIII se interessavam de uma maneira geral mais pela ordem que pela história mais pela classificação que pelo devir mais pelos signos que pelos mecanismos de causalidade Tratavase de fazer aparecer um conjunto bem determinado de formações discursivas que têm entre si um certo número de relações descritíveis Essas relações não extrapolam para domínios limítrofes e não se pode transferilas gradualmente para o conjunto dos discursos contemporâneos nem e tanto mais para o que se chama comumente o espírito clássico estão intimamente alojadas na tríade estudada e só têm valor no domínio que se encontra especificado Esse conjunto interdiscursivo encontrase ele próprio e sob sua forma de grupo em relação com outros tipos de discurso de um lado com a análise da representação a teoria geral dos signos e a ideologia e de outro com a matemática a análise algébrica e a tentativa de instauração de uma mathesis São essas relações internas e externas que caracterizam a história natural a análise das riquezas e a gramática geral como um conjunto específico e permitem que nelas se reconheça uma configuração interdiscursiva Alguns diriam Por que não ter falado da cosmologia da fisiologia ou da exegese bíblica Será que a química antes de A Arqueologia do Saber 179 Lavoisier ou a matemática de Euler ou a história de Vico não seriam capazes se as utilizássemos de invalidar todas as análises que se encontram em Les mots et les choses Será que não há na inventiva riqueza do século XVIII muitas outras idéias que não entram no quadro rígido da arqueologia A estes à sua legítima impaciência a todos os contraexemplos que sei que poderiam fornecer responderei certamente Não só admito que minha análise seja limitada mas quero que seja assim e lho imponho Para mim um contraexemplo seria justamente a possibilidade de dizer todas as relações que vocês descreveram a propósito de três formações particulares todas as redes em que se articulam umas com as outras as teorias da atribuição da articulação da designação e da derivação toda essa taxionomia que repousa em uma caracterização descontínua e uma continuidade da ordem nós as encontramos uniformemente e do mesmo modo na geometria na mecânica racional na fisiologia dos humores e dos germens na crítica da história sagrada e na cristalografia nascente Isso seria com efeito a prova de que eu não teria descrito como pretendi fazêlo uma região de interpositividade teria caracterizado o espírito ou a ciência de uma época contra o que todo o meu trabalho se voltou As relações que descrevi valem para definir uma configuração particular não são signos para descrever em sua totalidade a fisionomia de uma cultura É a vez de os amigos da Weltanschauung ficarem decepcionados cuido que a descrição que encetei não seja do mesmo tipo da deles O que entre eles seria lacuna esquecimento erro é para mim exclusão deliberada e metódica Mas ainda se poderia dizer você confrontou a gramática geral com a história natural e a análise das riquezas Mas por que não com a história tal como era praticada na mesma época com a crítica bíblica com a retórica com a teoria das belasartes Não seria todo um outro campo de interpositividade que você teria descoberto Qual o privilégio do que você descreveu Privilégio algum é apenas um dos conjuntos descritíveis se na verdade retomássemos a gramática geral e se procurássemos definir suas relações com as disciplinas históricas e a crítica textual veríamos seguramente desenharse um sistema inteiramente diferente de relações e a descrição faria aparecer uma rede interdiscursiva que não se superporia à primeira mas a cruzaria em alguns de seus pontos 180 Michel Foucault Da mesma forma a taxionomia dos naturalistas poderia ser confrontada não tanto com a gramática e a economia mas com a fisiologia e a patologia ainda aí novas interpositividades se delineariam se compararmos as relações taxionomiagramáticaeconomia analisadas em Les mots et les choses e as relações taxionomiapatologia estudadas na Naissance de la clinique Tais redes não são pois em número previamente definido só a prova da análise pode mostrar se existem e quais existem isto é quais são suscetíveis de ser descritas Além disso cada formação discursiva não pertence de qualquer forma não pertence necessariamente a um único desses sistemas mas entra simultaneamente em diversos campos de relações em que não ocupa o mesmo lugar e não exerce a mesma função as relações taxionomiapatologia não são isomórficas às relações taxionomiagramática as relações gramáticaanálise das riquezas não são isomórficas às relações gramáticaexegese O horizonte ao qual se dirige a arqueologia não é pois uma ciência uma racionalidade uma mentalidade uma cultura é um emaranhado de interpositividades cujos limites e pontos de cruzamentos não podem ser fixados de imediato A arqueologia uma análise comparativa que não se destina a reduzir a diversidade dos discursos nem a delinear a unidade que deve totalizálos mas sim a repartir sua diversidade em figuras diferentes A comparação arqueológica não tem um efeito unificador mas multiplicador 2 Confrontando a gramática geral a história natural e a análise das riquezas nos séculos XVII e XVIII poderíamos perguntar que idéias tinham em comum nessa época linguistas naturalistas e teóricos da economia poderíamos perguntar que postulados implícitos supunham em comum apesar da diversidade de suas teorias a que princípios gerais obedeciam talvez silenciosamente poderíamos perguntar que influência a análise da linguagem exercera sobre a taxionomia ou que papel a idéia de uma natureza ordenada tinha representado na teoria da riqueza poderíamos estudar igualmente a difusão respectiva desses diferentes tipos de discurso o prestígio de cada um a valorização decorrente de sua antiguidade ou ao contrário de sua data recente e de seu maior rigor os canais de comunicação e as vias pelas quais se fizeram A Arqueologia do Saber 181 as trocas de informação poderíamos finalmente reunindo análises inteiramente tradicionais perguntar em que medida Rousseau havia transferido para a análise das línguas e sua origem seu saber e experiência de botânico que categorias comuns Turgot tinha aplicado à análise da moeda e à teoria da linguagem e da etimologia como a idéia de uma língua universal artificial e perfeita fora remanejada e utilizada por classificadores como Lineu e Adanson Todas essas questões certamente seriam legítimas pelo menos algumas delas Mas nem umas nem outras são pertinentes ao nível da arqueologia O que esta quer libertar é inicialmente mantidas a especificidade e a distância das diversas formações discursivas o jogo das analogias e das diferenças tais como aparecem no nível das regras de formação Isso implica cinco tarefas distintas a Mostrar como elementos discursivos inteiramente diferentes podem ser formados a partir de regras análogas os conceitos da gramática geral como os de verbo sujeito complemento raiz são formados a partir das mesmas disposições do campo enunciativo teorias da atribuição da articulação da designação da derivação que os conceitos entretanto bem diferentes e radicalmente heterogêneos da história natural e da economia mostrar entre formações diferentes os isomorfismos arqueológicos b Mostrar até que ponto essas regras se aplicam ou não do mesmo modo se encadeiam ou não da mesma ordem dispõemse ou não conforme o mesmo modelo nos diferentes tipos de discurso a gramática geral encadeia uma à outra e nesta mesma ordem a teoria da atribuição a da articulação a da designação e a da derivação a história natural e a análise das riquezas reagrupam as duas primeiras e as duas últimas mas as encadeiam em ordem inversa definir o modelo arqueológico de cada formação e Mostrar como conceitos perfeitamente diferentes como os de valor e de caráter específico ou de preço e de caráter genérico ocupam uma posição análoga na ramificação de seu sistema de positividade que são dotados assim de uma isotopia arqueológica ainda que seu domínio de aplicação seu grau de formalização sobretudo sua gênese histórica os tornem totalmente estranhos uns aos outros d Mostrar em compensação como uma única e mesma noção eventualmente designada por uma única e mesma palavra pode abranger dois elementos arqueologicamente distintos as noções de origem e de evolução não têm nem o mesmo papel nem o mesmo 182 Michel Foucault lugar nem a mesma formação no sistema de positividade da gramática geral e no da história natural indicar as defasagens arqueológicos e Mostrar finalmente como de uma positividade a outra podem ser estabelecidas relações de subordinação ou de complementaridade assim em relação à análise da riqueza e à das espécies a descrição da linguagem desempenha durante a época clássica um papel dominante na medida em que ela é a teoria dos signos de instituição que desdobram marcam e representam a própria representação estabelecer as correlações arqueológicas Em todas essas descrições nada se apóia na determinação de influências trocas informações transmitidas comunicações Não que se trate de negálas ou contestar que jamais possam ser objeto de uma descrição mas sim de tomar em relação a elas um recuo medido de deslocar o nível de ataque da análise de revelar o que as tornou possíveis de demarcar os pontos em que se pôde efetuar a projeção de um conceito sobre outro de fixar o isomorfismo que permitiu uma transferência de métodos ou de técnicas de mostrar as vizinhanças as simetrias ou as analogias que permitiram as generalizações em suma de descrever o campo de vetores e de receptividade diferencial de permeabilidade e de impermeabilidade que para o jogo das trocas foi uma condição de possibilidade histórica Uma configuração de interpositividade não é um grupo de disciplinas vizinhas não é somente um fenômeno observável de semelhança não é somente a relação global de diversos discursos com algum outro é a lei de suas comunicações Não se deve dizer pelo fato de Rousseau e outros terem refletido alternadamente sobre o ordenamento das espécies e a origem das línguas estabeleceramse relações e produziramse trocas entre taxionomia e gramática pelo fato de Turgot depois de Law e Petty ter desejado tratar a moeda como um signo a economia e a teoria da linguagem se aproximaram e sua história traz ainda a marca de tais tentativas Mas sim dizer se pelo menos se quer fazer uma descrição arqueológica que as disposições respectivas dessas três positividades eram tais que no nível das obras dos autores das existências individuais dos projetos e das tentativas podem ser encontradas trocas semelhantes 3 A arqueologia faz também com que apareçam relações entre as formações discursivas e domínios não discursivos instituições acontecimentos políticos práticas e processos A Arqueologia do Saber 183 econômicos Tais aproximações não têm por finalidade revelar grandes continuidades culturais ou isolar mecanismos de causalidade Diante de um conjunto de fatos enunciativos a arqueologia não se questiona o que pôde motiválo esta é a pesquisa dos contextos de formulação não busca tampouco encontrar o que neles se exprime tarefa de uma hermenêutica ela tenta determinar como as regras de formação de que depende e que caracterizam a positividade a que pertence podem estar ligadas a sistemas não discursivos procura definir formas específicas de articulação Consideremos o exemplo da medicina clínica cuja instauração no final do século XVIII é contemporânea de um certo número de acontecimentos políticos de fenômenos econômicos e de mudanças institucionais É fácil suspeitar pelo menos intuitivamente que existam laços entre esses fatos e a organização de uma medicina hospitalar Mas como analisálos Uma análise simbólica veria na organização da medicina clínica e nos processos históricos que lhe foram concomitantes duas expressões simultâneas que se refletem e se simbolizam uma à outra que funcionam reciprocamente como espelho e cujas significações são tomadas em um jogo indefinido de remissões duas expressões que não exprimem nada mais que a forma que lhes é comum Assim as idéias médicas de solidariedade orgânica de coesão funcional de comunicação tissular e o abandono do princípio classificatório das doenças em proveito de uma análise das interações corporais corresponderiam para refletilas mas também para nelas se mirar a uma prática política que descobre sob estratificações ainda feudais relações de tipo funcional solidariedades econômicas uma sociedade cujas dependências e reciprocidades deviam assegurar na forma da coletividade o analogon da vida Uma análise causai em compensação consistiria em procurar saber até que ponto as mudanças políticas ou os processos econômicos puderam determinar a consciência dos homens de ciência o horizonte e a direção de seu interesse seu sistema de valores sua maneira de perceber as coisas o estilo de sua racionalidade assim em uma época em que o capitalismo industrial começava a recensear suas necessidades de mãodeobra a doença tomou uma dimensão social a manutenção da saúde a cura a assistência aos doentes pobres a pesquisa das causas e dos focos patogênicos tornaramse um encargo 184 Michel Foucault coletivo que o Estado devia por um lado assumir e por outro supervisionar Daí resultam a valorização do corpo como instrumento de trabalho o cuidado de racionalizar a medicina pelo modelo das outras ciências os esforços para manter o nível de saúde de uma população o cuidado com a terapêutica a manutenção de seus efeitos o registro dos fenômenos de longa duração A arqueologia situa sua análise em um outro nível os fenômenos de expressão de reflexos e de simbolização são para ela apenas os efeitos de uma leitura global em busca das analogias formais ou das translações de sentidos quanto às relações causais elas só podem ser assinaladas no nível do contexto ou da situação e de seu efeito sobre o sujeito falante de qualquer modo umas e outras só podem ser demarcadas uma vez definidas as positividades em que aparecem e as regras segundo as quais essas positividades foram formadas O campo de relações que caracteriza uma formação discursiva é o lugar de onde as simbolizações e os efeitos podem ser percebidos situados e determinados Se a arqueologia aproxima o discurso médico de um certo número de práticas é para descobrir relações muito menos imediatas que a expressão mas muito mais diretas que as de uma causalidade substituída pela consciência dos sujeitos falantes Ela quer mostrar não como a prática política determinou o sentido e a forma do discurso médico mas como e por que ela faz parte de suas condições de emergência de inserção e de funcionamento Essa relação pode ser assinalada em vários níveis Inicialmente no do recorte e da delimitação do objeto médico não é claro que a prática política desde o século XIX tenha imposto à medicina novos objetos como as lesões dos tecidos orgânicos ou as correlações anatomofisiológicas mas ela abriu novos campos de demarcação dos objetos médicos tais como são constituídos pela massa da população administrativamente enquadrada e fiscalizada avaliada segundo certas normas de vida e saúde analisada segundo formas de registro documental e estatístico são constituídos também pelos grandes exércitos populares da época revolucionária e napoleônica com sua forma específica de controle médico são constituídos ainda pelas instituições de assistência hospitalar que foram definidas no final do século XVIII e no início do século XIX em função das necessidades econômicas da época e da A Arqueologia do Saber 185 posição recíproca das classes sociais Vemos aparecer também a relação entre a prática política e o discurso médico no status atribuído ao médico que se torna o titular não apenas privilegiado mas quase exclusivo desse discurso na forma de relação institucional que ele pode ter com o doente hospitalizado ou com sua clientela particular nas modalidades de ensino e de difusão que são prescritas ou autorizadas para esse saber Finalmente podemos compreender tal relação na função que é atribuída ao discurso médico ou no papel que dele se requer quando se trata de julgar indivíduos tomar decisões administrativas dispor as normas de uma sociedade traduzir para resolvêlos ou mascarálos conflitos de uma outra ordem apresentar modelos de tipo natural às análises da sociedade e às práticas que lhe são pertinentes Não se trata portanto de mostrar como a prática política de uma dada sociedade constituiu ou modificou os conceitos médicos e a estrutura teórica da patologia mas como o discurso médico como prática que se dirige a um certo campo de objetos que se encontra nas mãos de um certo número de indivíduos estatutariamente designados que tem enfim de exercer certas funções na sociedade se articula em práticas que lhe são exteriores e que não são de natureza discursiva Se nessa análise a arqueologia suprime o tema da expressão e do reflexo se ela se recusa a ver no discurso a superfície de projeção simbólica de acontecimentos ou de processos situados em outra parte não é para encontrar um encadeamento causai que se poderia descrever ponto por ponto e que permitiria relacionar uma descoberta e um acontecimento ou um conceito e uma estrutura social Mas por outro lado se ela mantém em suspenso semelhante análise causai se quer evitar o revezamento necessário feito pelo sujeito falante não é para assegurar a independência soberana e solitária do discurso é para descobrir o domínio de existência e de funcionamento de uma prática discursiva Em outras palavras a descrição arqueológica dos discursos se desdobra na dimensão de uma história geral ela procura descobrir todo o domínio das instituições dos processos econômicos das relações sociais nas quais pode articularse uma formação discursiva ela tenta mostrar como a autonomia do discurso e sua especificidade não lhe dão por isso um status de pura idealidade e 186 Michel Foucault de total independência histórica o que ela quer revelar é o nível singular em que a história pode dar lugar a tipos definidos de discurso que têm eles próprios seu tipo de historicidade e que estão relacionados cora todo um conjunto de historicidades diversas 5 A MUDANÇA E AS TRANSFORMAÇÕES O que se passa hoje com a descrição arqueológica da mudança Seria possível fazer à história tradicional das idéias todas as críticas teóricas que se quisesse ou pudesse pelo menos para si ela tem de tomar por tema essencial os fenômenos de sucessão e de encadeamento temporais de analisálos conforme os esquemas de evolução e de descrever assim o desenrolar histórico dos discursos A arqueologia em compensação parece tratar a história só para imobilizála De um lado descrevendo suas formações discursivas abandona as séries temporais que aí se podem manifestar busca regras gerais que valem uniformemente e da mesma maneira em todos os pontos do tempo não impõe a um desenvolvimento talvez lento e imperceptível a figura coatora de uma sincronia Nesse mundo das idéias que é por si mesmo tão lábil em que as figuras aparentemente mais estáveis se apagam tão depressa em que em compensação tantas irregularidades se produzem e recebem mais tarde um status definitivo em que o futuro se antecipa sempre a si mesmo enquanto o passado não deixa de se deslocar ela não se mostra como uma espécie de pensamento imóvel E por outro lado quando recorreu à cronologia parece que foi unicamente para fixar nos limites das positividades dois pontos de referência o momento em que nascem e aquele em que se apagam como se a duração só 188 Michel Foucault fosse usada para fixar este calendário rudimentar sendo eliminada ao longo da própria análise como se só houvesse tempo no instante vazio da ruptura nessa falha branca e paradoxalmente intemporal em que uma formação subitamente substitui outra Sincronia das positividades instantaneidade das substituições o tempo esquivouse e com ele desaparece a possibilidade de uma descrição histórica O discurso é subtraído à lei do devir e se estabelece em uma intemporalidade descontínua Imobilizase por fragmentos estilhaços precários de eternidade Mas por mais que se queira diversas eternidades que se sucedem um jogo de imagens fixas que se eclipsam sucessivamente tudo isso não constitui nem um movimento nem um tempo nem uma história É preciso no entanto observar as coisas mais de perto A Consideremos de início a aparente sincronia das formações discursivas Uma coisa é verdadeira por mais que as regras estejam investidas em cada enunciado por mais que por conseguinte sejam reutilizadas em cada um elas não se modificam a cada oportunidade podemos reencontrálas em atividade em enunciados ou grupos de enunciados bem dispersos no tempo Vimos por exemplo que os diversos objetos da história natural durante aproximadamente um século de Tournefort a Jussieu obedeciam a regras de formação idênticas vimos que a teoria da atribuição é a mesma e desempenha o mesmo papel em Lancelot Condillac e Destutt de Tracy Além disso vimos que a ordem dos enunciados segundo a derivação arqueológica não reproduzia forçosamente a ordem das sucessões podemse encontrar em Beauzée enunciados arqueologicamente anteriores aos que se encontram na Grammaíre de PortRoyal Há então em semelhante análise uma suspensão das sequências temporais para sermos mais exatos do calendário das formulações Mas a suspensão tem precisamente por fim fazer aparecerem relações que caracterizam a temporalidade das formações discursivas e a articulam em séries cujo entrecruzamento não impede a análise a A arqueologia define as regras de formação de um conjunto de enunciados Manifesta assim como uma sucessão de A Arqueologia do Saber 189 acontecimentos pode na própria ordem em que se apresenta tornarse objeto de discurso ser registrada descrita explicada receber elaboração em conceitos e dar a oportunidade de uma escolha teórica A arqueologia analisa o grau e a forma de permeabilidade de um discurso apresenta o principio de sua articulação com uma cadeia de acontecimentos sucessivos define os operadores pelos quais os acontecimentos se transcrevem nos enunciados Ela não contesta por exemplo a relação entre a análise das riquezas e as grandes flutuações monetárias do século XVII e do início do século XVIII tenta mostrar o que dessas crises podia ser tido como objeto do discurso como podiam elas estar aí conceitualizadas como os interesses que se defrontavam no decurso desses processos podiam aí dispor sua estratégia Ou ainda não afirma que a cólera de 1832 não tenha sido um acontecimento para a medicina mostra como o discurso clínico empregava regras tais que todo um domínio de objetos médicos pôde ser então reorganizado que se pôde usar todo um conjunto de métodos de registro e de notação que se pôde abandonar o conceito de inflamação e liquidar definitivamente o velho problema teórico das febres A arqueologia não nega a possibilidade de enunciados novos em correlação com acontecimentos exteriores Sua tarefa é mostrar em que condições pode haver tal correlação entre eles e era que ela consiste precisamente quais são seus limites forma código lei de possibilidade Não evita a mobilidade dos discursos que os faz agitaremse ao ritmo dos acontecimentos tenta libertar o nível em que ela se desencadeia o que se poderia chamar o nível de embreagem dos acontecimentos Embreagem que é específica para cada formação discursiva e que não tem nem as mesmas regras nem os mesmos operadores nem a mesma sensibilidade por exemplo na análise das riquezas e na economia política na velha medicina das constituições e na epidemiologia moderna b Além disso todas as regras de formação atribuídas pela arqueologia a uma positividade não têm a mesma generalidade algumas são mais particulares e derivam das outras Essa subordinação pode ser somente hierárquica mas pode comportar também um vetor temporal Assim na gramática geral a teoria do verboatribuição e a do nomearticulação estão ligadas uma à outra a segunda deriva da primeira mas sem que se possa determinar entre elas uma ordem de sucessão diferente da que dedutiva ou retórica foi escolhida para a exposição Em compensação a análise do complemento ou a busca das raízes só podiam aparecer ou reaparecer uma vez desenvolvida a análise da frase atributiva ou a concepção do nome como signo analítico da representação Outro exemplo na época clássica o princípio da continuidade dos seres é abrangido pela classificação das espécies segundo os caracteres estruturais nesse sentido eles 190 Michel Foucault são simultâneos em compensação só depois de empreendida essa classificação é que as lacunas e as faltas podem ser interpretadas nas categorias de uma história da natureza da terra e das espécies Em outros termos a ramificação arqueológica das regras de formação não é uma rede uniformemente simultânea há relações ramificações derivações que são temporalmente neutras há outras que implicam uma direção temporal determinada A arqueologia não toma pois como modelo nem um esquema puramente lógico de simultaneidades nem uma sucessão linear de acontecimentos mas tenta mostrar o entrecruzamento entre relações necessariamente sucessivas e outras que não o são Não se deve acreditar consequentemente que um sistema de positividade seja uma figura sincrônica que só podemos perceber colocando entre parênteses o conjunto do processo diacrônico Longe de ser indiferente à sucessão a arqueologia demarca os vetores temporais de derivação A arqueologia não tenta tratar como simultâneo o que se dá como sucessivo não tenta imobilizar o tempo e substituir seu fluxo de acontecimentos por correlações que delineiam uma figura imóvel O que ela suspende é o tema de que a sucessão é um absoluto um encadeamento primeiro e indissociável a que o discurso estaria submetido pela lei de sua finitude e também o tema de que no discurso só há uma forma e um único nível de sucessão Ela substitui esses temas por análises que fazem aparecer ao mesmo tempo as diversas formas de sucessão que se superpõem nos discursos e por formas não se deve entender simplesmente os ritmos ou as causas mas as próprias séries e a maneira pela qual se articulam as sucessões assim especificadas Ao invés de seguir um calendário originário em relação ao qual se estabeleceria a cronologia dos acontecimentos sucessivos ou simultâneos a dos processos curtos ou duráveis a dos fenômenos instantâneos e das permanências tentase mostrar como pode haver sucessão e em que níveis diferentes encontramse sucessões distintas É preciso portanto para constituir uma história arqueológica do discurso livrarmonos de dois modelos que por muito tempo sem dúvida impuseram sua imagem o modelo linear de ato da fala e pelo menos uma parte da escrita em que todos os acontecimentos se sucedem com exceção do efeito de coincidência e de superposição e o modelo do fluxo de consciência cujo presente escapa sempre a si mesmo na abertura do futuro e na retenção do passado Por mais paradoxal que A Arqueologia do Saber 191 isso seja as formações discursivas não têm o mesmo modelo de historicidade que o curso da consciência ou a linearidade da linguagem O discurso pelo menos tal como é analisado pela arqueologia isto é no nível de sua positividade não é uma consciência que vem alojar seu projeto na forma externa da linguagem não é uma língua com um sujeito para falála É uma prática que tem suas formas próprias de encadeamento e de sucessão B A arqueologia fala bem mais à vontade do que a história das idéias de cortes falhas aberturas formas inteiramente novas de positividade e redistribuições súbitas Fazer a história da economia política era tradicionalmente procurar tudo que poderia ter precedido Ricardo tudo que poderia ter delineado antecipadamente suas análises seus métodos e suas noções principais tudo que poderia ter tornado suas descobertas mais prováveis fazer a história da gramática comparativa era reencontrar o rastro bem antes de Bopp e Rask das pesquisas prévias sobre a filiação e o parentesco das línguas era determinar a participação que poderia ter tido AnquetilDuperron na constituição de um domínio indoeuropeu era revelar mais uma vez a primeira comparação feita em 1769 entre as conjugações sânscrita e latina era se fosse preciso remontar a Harris ou Ramus A arqueologia procede inversamente procura soltar todos os fios ligados pela paciência dos historiadores multiplica as diferenças baralha as linhas de comunicação e se esforça para tornar as passagens mais difíceis não tenta mostrar que a análise fisiocrática da produção preparava a de Ricardo não considera pertinente a suas próprias análises dizer que Coeurdoux havia preparado Bopp A que corresponde essa insistência sobre as descontinuidades Na verdade ela só é paradoxal em relação ao hábito dos historiadores É esse hábito e sua preocupação com as continuidades passagens antecipações esboços prévios que muito frequentemente representa o paradoxo De Daubenton a Cuvier de Anquetil a Bopp de Graslin Turgot ou Forbonnais a Ricardo apesar de uma distância cronológica 192 Michel Foucault tão reduzida as diferenças são inumeráveis e de naturezas muito diversas umas são localizadas outras gerais umas referemse aos métodos outras aos conceitos ora se trata do domínio de objetos ora de todo o instrumento linguístico Mais surpreendente ainda é o exemplo da medicina em um quarto de século de 1790 a 1815 o discurso médico se modificou mais profundamente que desde o século XVII que desde a Idade Média sem dúvida e talvez até mesmo desde a medicina grega modificação que fez aparecerem objetos lesões orgânicas focos profundos alterações tissulares vias e formas de difusão interorgânicas signos e correlações anatomoclínicas técnicas de observação de detecção do foco patológico de registro um outro esquadrinhamento perceptivo e um vocabulário de descrição quase completamente novo jogos de conceitos e distribuições nosográficas inéditas categorias às vezes centenárias às vezes milenárias como a de febre ou de constituição desaparecem e doenças às vezes velhas como o mundo a tuberculose são finalmente isoladas e nomeadas Deixemos aos que por inadvertência jamais abriram a Nosographie philosophique e o Traité des membranes a preocupação de dizer que a arqueologia arbitrariamente inventa diferenças Ela se esforça somente para leválas a sério desfazer seu emaranhado determinar como se repartem se implicam se comandam se subordinam umas às outras a que categorias distintas pertencem em suma tratase de descrever as diferenças não sem estabelecer entre elas o sistema de suas diferenças Se há um paradoxo da arqueologia não é no fato de que ela multiplicaria as diferenças mas no fato de que ela se recusa a reduzilas invertendo assim os valores habituais Para a história das idéias a diferença tal como aparece é erro ou armadilha ao invés de se deixar prender por ela a sagacidade da análise deve procurar desfazêla encontrar sob ela uma diferença menor e abaixo desta uma outra ainda mais limitada e assim indefinidamente até o limite ideal que seria a nãodiferença da perfeita continuidade A arqueologia em compensação toma por objeto de sua descrição o que habitualmente se considera obstáculo ela não tem por projeto superar as diferenças mas analisálas dizer em que exatamente consistem e diferenciálas Como se opera tal diferenciação A Arqueologia do Saber 193 1 A arqueologia ao invés de considerar que o discurso é feito apenas de uma série de acontecimentos homogêneos as formulações individuais distingue na própria densidade do discurso diversos planos de acontecimentos possíveis plano dos próprios enunciados em sua emergência singular plano de aparecimento dos objetos dos tipos de enunciação dos conceitos das escolhas estratégicas ou das transformações que afetam as que já existem plano da derivação de novas regras de formação a partir de regras já empregadas mas sempre no elemento de uma única e mesma positividade finalmente em um quarto nível plano em que se efetua a substituição de uma formação discursiva por outra ou do aparecimento e do desaparecimento puro e simples de uma positividade Tais acontecimentos de longe os mais raros são para a arqueologia os mais importantes somente ela de qualquer forma pode fazêlos aparecerem Mas eles não são o objeto exclusivo de sua descrição seria errado acreditar que comandam imperativamente todos os outros e que induzem nos diferentes planos que puderam ser distinguidos rupturas análogas e simultâneas Todos os acontecimentos que se produzem na densidade do discurso não se apóiam uns nos outros Certamente o aparecimento de uma formação discursiva se correlaciona muitas vezes cora uma vasta renovação de objetos formas de enunciação conceitos e estratégias princípio que não é entretanto universal a gramática geral se instaurou no século XVII sem muitas modificações aparentes na tradição gramatical mas não é possível fixar o conceito determinado ou o objeto particular que manifesta repentinamente sua presença Não é preciso pois descrever semelhante acontecimento segundo as categorias que podem convir à emergência de uma formulação ou ao aparecimento de uma palavra nova Inútil fazer a esse acontecimento perguntas como Quem é o autor Quem falou Em que circunstâncias e em que contexto Animado por que intenções e tendo que projetos O aparecimento de uma nova positividade não é assinalado por uma frase nova inesperada surpreendente logicamente imprevisível estilisticamente desviante que viria inserirse em um texto e anunciaria quer o começo de um novo capítulo quer a intervenção de um novo locutor Tratase de um acontecimento de tipo totalmente diferente 2 Para analisar tais acontecimentos é insuficiente constatar modificações e logo relacionálas seja ao modelo teológico e estético da criação com sua transcendência todo o jogo de suas originalidades e de suas invenções seja ao modelo psicológico da tomada de consciência com seus precedentes obscuros suas antecipações suas circunstâncias favoráveis seus poderes de reestruturação ou ainda ao modelo biológico da evolução É necessário definir precisamente em que consistem essas modificações substituir a referência 194 Michel Foucault indiferenciada à mudança ao mesmo tempo continente geral de todos os acontecimentos e princípio abstrato de sua sucessão pela análise das transformações O desaparecimento de uma positividade e a emergência de uma outra implica diversos tipos de transformações Indo das mais particulares às mais gerais podese e devese descrever como se transformaram os diferentes elementos de um sistema de formação quais foram por exemplo as variações da taxa de desemprego e das necessidades de emprego quais foram as decisões políticas referentes às corporações e à universidade quais foram as novas necessidades e possibilidades de assistência no final do século XVIII elementos que entram no sistema de formação da medicina clínica como se transformaram as relações características de um sistema de formação como foi modificada por exemplo em meados do século XVII a relação entre campo perceptivo código linguístico mediação instrumental e informação que era utilizada pelo discurso sobre os seres vivos permitindo assim a definição dos objetos da história natural como as relações entre diferentes regras de formação foram transformadas como por exemplo a biologia modifica a ordem e a dependência estabelecidas pela história natural entre a teoria da caracterização e a análise das derivações temporais como enfim se transformam as relações entre diversas positividades como as relações entre filologia biologia e economia transformam as relações entre gramática história natural e análise das riquezas como se decompõe a configuração interdiscursiva delineada pelas relações privilegiadas entre essas três disciplinas como se encontram modificadas suas relações respectivas com a matemática e a filosofia como se destaca um lugar para outras formações discursivas e singularmente para a interpositividade que tomará o nome de ciências humanas Em vez de invocar a força viva da mudança como se esta fosse seu próprio princípio ou lhe procurar as causas como se nunca passasse de puro e simples efeito a arqueologia tenta estabelecer o sistema das transformações em que consiste a mudança tenta elaborar essa noção vazia e abstrata para darlhe o status analisável da transformação Compreendese que certas mentes ligadas a todas as velhas metáforas pelas quais durante um século e meio concebeuse a história movimento fluxo evolução vejam aí tãosomente a negação da história e a afirmação frustrada da descontinuidade é que de fato não podem admitir que se limpe a mudança de todos os modelos adventícios que se tire dela ao mesmo tempo seu primado de lei universal e seu status de efeito geral e que ela seja substituída pela análise das transformações diversas 3 Dizer que uma formação discursiva substitui outra não é dizer que todo um mundo de objetos enunciações conceitos escolhas teóricas absolutamente novas surge já armado e organizado em um A Arqueologia do Saber 195 texto que o situaria de uma vez por todas mas sim que aconteceu uma transformação geral de relações que entretanto não altera forçosamente todos os elementos que os enunciados obedecem a novas regras de formação e não que todos os objetos ou conceitos todas as enunciações ou todas as escolhas teóricas desaparecem Ao contrário a partir dessas novas regras podem ser descritos e analisados fenômenos de continuidade de retorno e de repetição não se deve esquecer na verdade que uma regra de formação não é nem a determinação de um objeto nem a caracterização de um tipo de enunciação nem a forma ou o conteúdo de um conceito mas o princípio de sua multiplicidade e de sua dispersão Um desses elementos ou vários entre eles podem permanecer idênticos conservar o mesmo recorte os mesmos caracteres as mesmas estruturas mas pertencendo a sistemas diferentes de dispersão e obedecendo a leis distintas de formação Podemse então encontrar fenômenos como estes elementos que perduram ao longo de diversas positividades distintas mantendo a mesma forma e o mesmo conteúdo mas com formações heterogêneas a circulação monetária como objeto de início da análise das riquezas e em seguida da economia política o conceito de caráter a princípio na história natural e depois na biologia elementos que se constituem se modificam se organizam em uma formação discursiva e que afinal estabilizados figuram em outra como o conceito de reflexo cuja formação na ciência clássica de Willis a Prochaska e depois a entrada na fisiologia moderna foram mostradas por G Canguilhem elementos que aparecem tarde como uma derivação última em uma formação discursiva e que ocupam uma posição dominante em uma formação ulterior como a noção de organismo surgida no final do século XVII na história natural e como resultado de toda a empresa taxionômica de caracterização e que se torna o conceito maior da biologia na época de Cuvier o mesmo ocorre com a noção de foco de lesão que Morgagni revela e que se toma um dos conceitos principais da medicina clínica elementos que reaparecem após um período de desuso de esquecimento ou mesmo de invalidação como o retorno a um fixismo do tipo do de Lineu em um biólogo como Cuvier como a reativação da velha idéia de língua originária no século XVIII O problema para a arqueologia não é negar tais fenômenos nem querer diminuir sua importância mas ao contrário medilos e tentar explicálos como pode haver permanências ou repetições longos encadeamentos ou curvas que transpõem o tempo A arqueologia não considera o contínuo como o dado primeiro e último que deve dar conta do resto considera ao contrário que o mesmo o repetitivo e o ininterrupto constituem um problema tanto quanto as rupturas para ela o idêntico e o contínuo não são aquilo que é preciso reencontrar no fim da análise eles figuram no elemento 196 Michel Foucault de uma prática discursiva eles também são comandados pelas regras de formação das positividades longe de manifestarem a inércia fundamental e tranquilizadora a que se quer relacionar a mudança eles próprios são ativa e regularmente formados E aos que seriam tentados a criticar na arqueologia a análise privilegiada do descontínuo a todos os agoráfobos da história e do tempo a todos os que confundem ruptura e irracionalidade responderei Pelo uso que dele vocês fazem são vocês que desvalorizam o contínuo Tratamno como um elementosuporte a que todo o resto deve ser relacionado fazem dele a lei primeira o peso essencial de toda prática discursiva vocês gostariam que se analisasse qualquer modificação no campo dessa inércia como se analisa qualquer movimento no campo da gravitação Mas só lhe deram esse status neutralizandoo e lançandoo no limite exterior do tempo a uma passividade original A arqueologia se propõe a inverter essa disposição ou melhor já que não se trata de emprestar ao descontínuo o papel atribuído até então à continuidade fazer atuar o contínuo e o descontínuo um contra o outro mostrar como o contínuo é formado segundo as mesmas condições e conforme as mesmas regras que a dispersão e que entra nem mais nem menos que as diferenças as invenções as novidades ou os desvios no campo da prática discursiva 4 O aparecimento e a destruição das positividades o jogo de substituições a que dão lugar não constituem um processo homogêneo que se desenrolaria em toda parte da mesma maneira Não se deve acreditar que a ruptura seja uma espécie de grande deriva geral a que estariam submetidas ao mesmo tempo todas as formações discursivas a ruptura não é um tempo morto e indiferenciado que se intercalaria não mais que um instante entre duas fases manifestas não é o lapso sem duração que separaria duas épocas e desdobraria de um lado e de outro de uma falha dois tempos heterogêneos é sempre entre positividades definidas uma descontinuidade especificada por um certo número de transformações distintas Desse modo a análise dos cortes arqueológicos tem por propósito estabelecer entre tantas modificações diversas analogias e diferenças hierarquias complementaridades coincidências e defasagens em suma descrever a dispersão das próprias descontinuidades A idéia de um único e mesmo corte que divide de uma só vez e em um momento dado todas as formações discursivas interrompendoas com um único movimento e reconstituindoas segundo as mesmas regras não poderia ser mantida A contemporaneidade de várias transformações não significa sua exata coincidência cronológica cada transformação pode ter seu índice particular de Viscosidade temporal A história natural a gramática geral e a análise das riquezas constituíramse de modos análogos e todas três no curso A Arqueologia do Saber 197 do século XVII mas o sistema de formação da análise das riquezas estava ligado a um grande número de condições e de práticas não discursivas circulação das mercadorias manipulações monetárias com seus efeitos sistema de proteção ao comércio e às manufaturas oscilações na quantidade de metal cunhado daí a lentidão de um processo que se desenrolou durante mais de um século de Grammont a Cantillon enquanto as transformações instauradas pela gramática e pela história natural não se estenderam durante mais de 25 anos Inversamente transformações contemporâneas análogas e ligadas não remetem a um modelo único que se reproduziria diversas vezes na superfície dos discursos e imporia a todos uma forma estritamente idêntica de ruptura quando descrevemos o corte arqueológico que deu lugar à filologia à história e à economia foi para mostrar como essas três positividades estavam ligadas pelo desaparecimento da análise do signo e da teoria da representação que efeitos simétricos ele podia produzir a idéia de uma totalidade e de uma adaptação orgânica nos seres vivos a idéia de uma coerência morfológica e de evolução regulada nas línguas a idéia de uma forma de produção que tem suas leis internas e seus limites de evolução mas foi ainda para mostrar quais eram as diferenças específicas dessas transformações como em particular a historicidade se introduz de modo peculiar nessas três positividades como por conseguinte sua relação com a história não pode ser a mesma apesar de todas terem uma relação definida com ela Finalmente existem entre as diferentes rupturas arqueológicas importantes defasagens e às vezes mesmo entre formações discursivas muito próximas e ligadas por numerosas relações Assim acontece com as disciplinas da linguagem e da análise histórica a grande transformação que propiciou o aparecimento nos primeiros anos do século XIX da gramática histórica e comparativa precede de meio século a mutação do discurso histórico de sorte que o sistema de interpositividade no qual a filologia estava presa encontrase profundamente alterado na segunda metade do século XIX sem que a positividade da filologia seja posta em questão novamente Daí os fenômenos de deslocamento segmentar de que se pode citar pelo menos um outro exemplo notório conceitos como os de maisvalia ou de baixa tendencial da taxa de lucro tais como se encontram em Marx podem ser descritos a partir do sistema de positividade que já é empregado em Ricardo ora esses conceitos que são novos mas cujas regras de formação não o são aparecem no próprio Marx como referentes ao mesmo tempo a uma prática discursiva inteiramente diversa são aí formados segundo leis específicas ocupam outra posição não figuram nos mesmos encadeamentos essa positividade nova não é uma transformação das análises de Ricardo não é 198 Michel Foucault uma nova economia política é um discurso cuja instauração teve lugar em virtude da derivação de certos conceitos econômicos mas que em compensação define as condições nas quais se exerce o discurso dos economistas e pode pois valer como teoria e crítica da economia política A arqueologia desarticula a sincronia dos cortes como teria desfeito a unidade abstrata da mudança e do acontecimento A época não é nem sua unidade de base nem seu horizonte nem seu objeto se fala sobre ela é sempre a propósito de práticas discursivas determinadas e como resultado de suas análises A época clássica que foi frequentemente mencionada nas análises arqueológicas não é uma figura temporal que impõe sua unidade e sua forma vazia a todos os discursos é o nome que se pode dar a um emaranhado de continuidades e descontinuidades de modificações internas às positividades de formações discursivas que aparecem e desaparecem Da mesma forma a ruptura não é para a arqueologia o ponto de apoio de suas análises o limite que ela mostra de longe sem poder determinálo nem darlhe uma especificidade a ruptura é o nome dado às transformações que se referem ao regime geral de uma ou várias formações discursivas Assim a Revolução Francesa já que foi em torno dela que se centraram até aqui todas as análises arqueológicas não representa o papel de um acontecimento exterior aos discursos cujo efeito de divisão para pensarmos como se deve teria de ser reencontrado em todos os discursos ela funciona como um conjunto complexo articulado descritível de transformações que deixaram intactas um certo número de positividades fixaram para outras regras que ainda são as nossas e igualmente estabeleceram positividades que acabam de se desfazer ou se desfazem ainda sob nossos olhos 6 CIÊNCIA E SABER Uma delimitação silenciosa se impôs a todas as análises precedentes sem que se tenha apresentado seu princípio sem mesmo que seu desenho tenha sido precisado Todos os exemplos evocados pertenciam sem exceção a um domínio muito restrito Estamos longe de ter não digo inventariado mas sondado o imenso domínio do discurso por que ter abandonado sistematicamente os textos literários filosóficos ou políticos Será que nessas regiões as formações discursivas e os sistemas de positividade não têm lugar Se nos restringimos apenas à ordem das ciências por que não ter falado da matemática física ou química Por que ter apelado para tantas disciplinas duvidosas informes ainda e destinadas talvez a permanecer sempre abaixo do limiar da cientificidade Em uma palavra qual é a relação entre arqueologia e análise das ciências a Positiuidades disciplinas ciências Primeira questão será que a arqueologia sob termos um pouco bizarros como formação discursiva e positividade não descreve simplesmente pseudociências como a psicopatologia ciências em estado préhistórico como a história 200 Michel Foucault natural ou ciências inteiramente impregnadas de ideologia como a economia política Ela não é a análise privilegiada do que permanecerá sempre quasecientífico Se chamamos disciplinas a conjuntos de enunciados que tomam emprestado de modelos científicos sua organização que tendem à coerência e à demonstratividade que são recebidos institucionalizados transmitidos e às vezes ensinados como ciências não se poderia dizer que a arqueologia descreve disciplinas que não são efetivamente ciências enquanto a epistemologia descreveria ciências que se formaram a partir ou a despeito das disciplinas existentes Podemos responder negativamente a tais questões A arqueologia não descreve disciplinas Estas no máximo em seu desdobramento manifesto podem servir de isca para a descrição das positividades mas não lhe fixam os limites não lhe impõem recortes definitivos não se encontram inalteradas no fim da análise não se pode estabelecer relação biunívoca entre as disciplinas instituídas e as formações discursivas Eis um exemplo de tal distorção A questão central da Histoire de la folie era o aparecimento no início do século XIX de uma disciplina psiquiátrica Esta não tinha nem o mesmo conteúdo nem a mesma organização interna nem o mesmo lugar na medicina nem a mesma função prática nem o mesmo modo de utilização que o tradicional capítulo das doenças da cabeça ou das doenças nervosas que se encontravam nos tratados de medicina do século XVIII Ora interrogandose a nova disciplina descobriramse duas coisas o que a tornou possível na época em que apareceu o que determinou essa grande mudança na economia dos conceitos das análises e das demonstrações foi todo um jogo de relações entre a hospitalização a internação as condições e os procedimentos da exclusão social as regras da jurisprudência as normas do trabalho industrial e da moral burguesa em resumo todo um conjunto que caracteriza para essa prática discursiva a formação de seus enunciados mas essa prática não se manifesta somente em uma disciplina de status e pretensão científicos encontramola igualmente empregada em textos jurídicos em expressões literárias em reflexões filosóficas em decisões de ordem política em propósitos cotidianos em opiniões A formação discursiva cuja existência a disciplina psiquiátrica permite demarcar não lhe é coextensiva ao contrário ela a A Arqueologia do Saber 201 excede amplamente e a cerca de todos os lados Mas há mais recuando no tempo e procurando o que pôde preceder nos séculos XVII e XVIII a instauração da psiquiatria percebeuse que não havia nenhuma disciplina anterior o que era dito das manias delírios melancolias doenças nervosas pelos médicos na época clássica não constituía de modo algum uma disciplina autônoma mas no máximo uma rubrica na análise das febres das alterações dos humores ou das afecções do cérebro Entretanto apesar da ausência de qualquer disciplina instituída uma prática discursiva com sua regularidade e consistência era empregada Essa prática discursiva certamente era empregada na medicina mas de igual modo nos regulamentos administrativos textos literários ou filosóficos casuística teorias ou projetos de trabalho obrigatório ou de assistência aos pobres Temos então na época clássica uma formação discursiva e uma positividade perfeitamente acessíveis à descrição às quais não corresponde nenhuma disciplina definida que se possa comparar à psiquiatria Mas se é verdade que as positividades não são simples duplos das disciplinas instituídas não são elas o esboço de ciências futuras Sob o nome formação discursiva não se designa a projeção retrospectiva das ciências sobre seu próprio passado a sombra que lançam sobre aquilo que as precedeu e que parece têlas assim traçado antecipadamente O que se descreveu por exemplo como análise das riquezas ou gramática geral emprestandolhes uma autonomia talvez bem artificial não seria simplesmente a economia política em estado incoativo ou uma fase anterior à instauração de uma ciência enfim rigorosa da linguagem Por um movimento retrógrado cuja legitimidade seria sem dúvida difícil de ser estabelecida a arqueologia não tenta reagrupar em uma prática discursiva independente todos os elementos heterogêneos e dispersos cuja cumplicidade se revelará necessária para a instauração de uma ciência Ainda aqui a resposta deve ser negativa O que foi analisado sob o nome história natural não encerra em uma figura única tudo o que nos séculos XVII e XVIII poderia valer como o esboço de uma ciência da vida e figurar em sua genealogia legítima A positividade assim revelada dá conta na verdade de um certo número de enunciados referentes às semelhanças e às diferenças entre os seres sua estrutura visível seus caracteres específicos e 202 Michel Foucault genéricos sua classificação possível as descontinuidades que os separam e as transições que os unem mas ela deixa de lado muitas outras análises que datam no entanto da mesma época e que traçam também as figuras ancestrais da biologia análise do movimento reflexo que terá tanta importância para a constituição de uma anatomofisiologia do sistema nervoso teoria dos germens que parece anteciparse aos problemas da evolução e da genética explicação do crescimento animal ou vegetal que será uma das maiores questões da fisiologia dos organismos em geral Além disso longe de se antecipar a uma biologia futura a história natural discurso taxionômico ligado à teoria dos signos e ao projeto de uma ciência da ordem excluía por sua solidez e autonomia a constituição de uma ciência unitária da vida Da mesma forma a formação discursiva descrita como gramática geral não dá conta de tudo que pôde ser dito na época clássica sobre a linguagem e cuja herança ou repúdio desenvolvimento ou crítica deveriam ser encontrados mais tarde na filologia ela deixa de lado os métodos da exegese bíblica e a filosofia da linguagem formulada por Vico ou Herder As formações discursivas não são pois as ciências futuras no momento em que ainda inconscientes de si mesmas se constituem em surdina não estão na verdade em um estado de subordinação teleológica em relação à ortogênese das ciências Devese dizer então que não pode haver ciência onde há positividades e que estas onde podemos descobrilas sempre excluem as ciências Devese supor que ao invés de estarem em uma relação cronológica em face das ciências se encontram em uma situação de alternativa Que elas são de algum modo a figura positiva de uma certa falha epistemológica Mas poderíamos também nesse caso fornecer um contraexemplo A medicina clínica seguramente não é uma ciência não só porque não responde aos critérios formais e não atinge o nível de rigor que se pode esperar da física da química ou mesmo da fisiologia mas também porque comporta um acúmulo apenas organizado de observações empíricas de tentativas e de resultados brutos de receitas de prescrições terapêuticas de regulamentações institucionais Entretanto esta nãociência não exclui a ciência durante o século XIX ela estabeleceu relações definidas entre ciências perfeitamente constituídas como a fisiologia a química ou a A Arqueologia do Saber 203 microbiologia além disso deu lugar a discursos como o da anatomia patológica a que seria sem dúvida presunção dar o título de falsa ciência Não se pode então identificar as formações discursivas nem às ciências nem às disciplinas pouco científicas nem às figuras que delineiam de longe as ciências que virão e nem finalmente a formas que excluem logo de início qualquer cientificidade O que foi feito então da relação entre as positividades e as ciências b O saber As positividades não caracterizam formas de conhecimento quer sejam condições a priori e necessárias ou formas de racionalidade que puderam por sua vez ser empregadas pela história Mas elas não definem tampouco o estado dos conhecimentos em um dado momento do tempo não estabelecem o balanço do que desde aquele momento pôde ser demonstrado e assumir status de aquisição definitiva o balanço do que em compensação era aceito sem prova nem demonstração suficiente ou do que era admitido pela crença comum ou requerido pela força da imaginação Analisar positividades é mostrar segundo que regras uma prática discursiva pode formar grupos de objetos conjuntos de enunciações jogos de conceitos séries de escolhas teóricas Os elementos assim formados não constituem uma ciência com uma estrutura de idealidade definida seu sistema de relações é certamente menos estrito mas não são tampouco conhecimentos acumulados uns ao lado dos outros vindos de experiências de tradições ou de descobertas heterogêneas e ligados somente pela identidade do sujeito que os detém Eles são a base a partir da qual se constroem proposições coerentes ou não se desenvolvem descrições mais ou menos exatas se efetuam verificações se desdobram teorias Formam o antecedente do que se revelará e funcionará com um conhecimento ou uma ilusão uma verdade admitida ou um erro denunciado uma aquisição definitiva ou um obstáculo superado Vêse bem que esse antecedente não pode ser analisado como um dado uma experiência vivida ainda inteiramente engajada no imaginário ou na percepção que a humanidade no curso de sua 204 Michel Foucault história teria tido de retomar na forma de sua racionalidade ou que cada indivíduo deveria atravessar por conta própria se quisesse reencontrar as significações ideais que aí estão introduzidas ou ocultas Não se trata de um préconhecimento ou de um estágio arcaico no movimento que vai do conhecimento imediato à apoditicidade tratase dos elementos que devem ter sido formados por uma prática discursiva para que eventualmente se constituísse um discurso científico especificado não só por sua forma e seu rigor mas também pelos objetos de que se ocupa os tipos de enunciação que põe em jogo os conceitos que manipula e as estratégias que utiliza Assim a ciência não se relaciona com o que devia ser vivido ou deve sêlo para que seja fundada a intenção de idealidade que lhe é própria mas sim com o que devia ser dito ou deve sêlo para que possa haver um discurso que se for o caso responda a critérios experimentais ou formais de cientificidade A esse conjunto de elementos formados de maneira regular por uma prática discursiva e indispensáveis à constituição de uma ciência apesar de não se destinarem necessariamente a lhe dar lugar podese chamar saber Um saber é aquilo de que podemos falar em uma prática discursiva que se encontra assim especificada o domínio constituído pelos diferentes objetos que irão adquirir ou não um status científico o saber da psiquiatria no século XIX não é a soma do que se acreditava fosse verdadeiro é o conjunto das condutas das singularidades dos desvios de que se pode falar no discurso psiquiátrico um saber é também o espaço em que o sujeito pode tomar posição para falar dos objetos de que se ocupa em seu discurso neste sentido o saber da medicina clínica é o conjunto das funções de observação interrogação decifração registro decisão que podem ser exercidas pelo sujeito do discurso médico um saber é também o campo de coordenação e de subordinação dos enunciados em que os conceitos aparecem se definem se aplicam e se transformam neste nível o saber da história natural no século XVIII não é a soma do que foi dito mas sim o conjunto dos modos e das posições segundo os quais se pode integrar ao já dito qualquer enunciado novo finalmente um saber se define por possibilidades de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso assim o saber da economia política na época clássica não é a tese das diferentes teses sustentadas mas o conjunto de seus pontos de articulação A Arqueologia do Saber 205 com outros discursos ou outras práticas que não são discursivas Há saberes que são independentes das ciências que não são nem seu esboço histórico nem o avesso vivido mas não há saber sem uma prática discursiva definida e toda prática discursiva pode definirse pelo saber que ela forma Ao invés de percorrer o eixo consciênciaconhecimentociência que não pode ser liberado do índex da subjetividade a arqueologia percorre o eixo prática discursivasaberciência Enquanto a história das idéias encontra o ponto de equilíbrio de sua análise no elemento do conhecimento encontrandose assim coagida a reencontrar a interrogação transcendental a arqueologia encontra o ponto de equilíbrio de sua análise no saber isto é era um domínio em que o sujeito é necessariamente situado e dependente sem que jamais possa ser considerado titular seja como atividade transcendental seja como consciência empírica Compreendese nessas condições que seja necessário distinguir com cuidado os domínios científicos e os territórios arqueológicos seu recorte e seus princípios de organização são completamente diferentes Só pertencem a um domínio de cientificidade as proposições que obedecem a certas leis de construção afirmações que tivessem o mesmo sentido que dissessem a mesma coisa que fossem tão verdadeiras quanto elas mas que não se prendessem à mesma sistematicidade seriam excluídas desse domínio o que Le rêve de dAlembert diz a respeito do devir das espécies pode traduzir certos conceitos ou certas hipóteses científicas da época isso pode até mesmo antecipar uma verdade futura isso não pertence ao domínio de cientificidade da história natural mas em compensação a seu território arqueológico se pelo menos se puder descobrir em ação as mesmas regras de formação encontradas em Lineu Buffon Daubenton ou Jussieu Os territórios arqueológicos podem atravessar textos literários ou filosóficos bem como textos científicos O saber não está contido somente em demonstrações pode estar também em ficções reflexões narrativas regulamentos institucionais decisões políticas O território arqueológico da história natural compreende a Palingénésie philosophique ou o Telliamed apesar de não responderem em grande parte às normas científicas que eram admitidas na época e ainda menos seguramente às que seriam exigidas mais tarde O território arqueológico da 206 Michel Foucault gramática geral compreende tanto os devaneios de Fabre d01ivet que jamais receberam status científico e se inscrevem antes no registro do pensamento místico quanto a análise das proposições atributivas que era então aceita com a luz da evidência e na qual a gramática gerativa pode reconhecer hoje sua verdade prefigurada A prática discursiva não coincide com a elaboração científica a que pode dar lugar o saber que ela forma não é nem o esboço enrugado nem o subproduto cotidiano de uma ciência constituída As ciências pouco importa no momento a diferença entre os discursos que têm presunção ou status de cientificidade e os que apresentam realmente seus critérios formais aparecem no elemento de uma formação discursiva tendo o saber como fundo Isso abre duas séries de problemas que local e papel pode ter uma região de cientificidade no território arqueológico em que se delineia Segundo que ordens e que processos se dá a emergência de uma região de cientificidade em uma formação discursiva determinada Esses são problemas que não saberíamos aqui e agora responder tratemos somente de indicar em que direção talvez poderiam ser analisados c Saber e ideologia Uma vez constituída uma ciência não retoma a seu cargo e nos encadeamentos que lhe são próprios tudo que formava a prática discursiva em que aparecia não dissipa tampouco para remetêlo à préhistória dos erros dos preconceitos ou da imaginação o saber que a cerca A anatomia patológica não reduziu nem reconduziu às normas da cientificidade a positividade da medicina clínica O saber não é o canteiro epistemológico que desapareceria na ciência que o realiza A ciência ou o que passa por tal localizase em um campo de saber e nele tem um papel que varia conforme as diferentes formações discursivas e que se modifica de acordo com suas mutações Aquilo que na época clássica era considerado como conhecimento médico das doenças da mente ocupava no saber da loucura um lugar muito limitado não era mais que uma de suas superfícies de afloramento entre muitas outras jurisprudência casuística regulamentação policial etc em compensação as análises psicopatológicas do século XIX que também passavam por A Arqueologia do Saber 207 conhecimento científico das doenças mentais desempenharam um papel muito diferente e bem mais importante no saber da loucura papel de modelo e de instância de decisão Do mesmo modo o discurso científico ou supostamente científico não garante a mesma função no saber econômico do século XVII e no do século XIX Encontrase uma relação específica entre ciência e saber em toda formação discursiva a análise arqueológica ao invés de definir entre eles uma relação de exclusão ou de subtração buscando a parte do saber que se furta e resiste ainda à ciência e a parte da ciência que ainda está comprometida pela vizinhança e influência do saber deve mostrar positivamente como uma ciência se inscreve e funciona no elemento do saber É sem dúvida aí nesse espaço de ação que se estabelecem e se especificam as relações da ideologia com as ciências A influência da ideologia sobre o discurso científico e o funcionamento ideológico das ciências não se articulam no nível de sua estrutura ideal mesmo que nele possam traduzirse de uma forma mais ou menos visível nem no nível de sua utilização técnica em uma sociedade se bem que esta possa aí entrar em vigor nem no nível da consciência dos sujeitos que a constroem articulamse onde a ciência se destaca sobre o saber Se a questão da ideologia pode ser proposta à ciência é na medida em que esta sem se identificar com o saber mas sem apagálo ou excluílo nele se localiza estrutura alguns de seus objetos sistematiza algumas de suas enunciações formaliza alguns de seus conceitos e de suas estratégias é na medida em que por um lado esta elaboração escande o saber o modifica o redistribui e por outro o confirma e o deixa valer é na medida em que a ciência encontra seu lugar em uma regularidade discursiva e por isso se desdobra e funciona em todo um campo de práticas discursivas ou não Em resumo a questão da ideologia proposta à ciência não é a questão das situações ou das práticas que ela reflete de um modo mais ou menos consciente não é tampouco a questão de sua utilização eventual ou de todos os empregos abusivos que se possa dela fazer é a questão de sua existência como prática discursiva e de seu funcionamento entre outras práticas Podese dizer grosso modo e passando por cima de qualquer mediação e especificidade que a economia política tem um papel na sociedade capitalista que ela serve aos interesses da classe burguesa que foi feita por ela e para ela que 208 Michel Foucault carrega enfim o estigma de suas origens até em seus conceitos e em sua arquitetura lógica mas qualquer descrição mais precisa das relações entre a estrutura epistemológica da economia e sua função ideológica deverá passar pela análise da formação discursiva que lhe deu lugar e do conjunto dos objetos conceitos e escolhas teóricas que tiveram de ser elaborados e sistematizados Deveremos mostrar então como a prática discursiva que deu lugar a tal positividade funcionou entre outras práticas que podiam ser de ordem discursiva mas também de ordem política ou econômica Isso permite antecipar um certo número de proposições 1 A ideologia não exclui a cientificidade Poucos discursos deram tanto lugar à ideologia quanto o discurso clínico ou o da economia política não é uma razão suficiente para apontar erro contradição ausência de objetividade no conjunto de seus enunciados 2 As contradições as lacunas as falhas teóricas podem assinalar o funcionamento ideológico de uma ciência ou de um discurso com pretensão científica podem permitir determinar em que ponto do edifício esse funcionamento se dá Mas a análise de tal funcionamento deve ser feita no nível da positividade e das relações entre as regras da formação e as estruturas da cientificidade 3 Corrigindose retificando seus erros condensando suas formalizações um discurso não anula forçosamente sua relação com a ideologia O papel da ideologia não diminui à medida que cresce o rigor e que se dissipa a falsidade 4 Estudar o funcionamento ideológico de uma ciência para fazêlo aparecer e para modificálo não é revelar os pressupostos filosóficos que podem habitálo não é retornar aos fundamentos que a tornaram possível e que a legitimam é colocála novamente em questão como formação discursiva é estudar não as contradições formais de suas proposições mas o sistema de formação de seus objetos tipos de enunciação conceitos e escolhas teóricas É retomála como prática entre outras práticas d Os diferentes limiares e sua cronologia A propósito de uma formação discursiva podemse descrever diversas emergências distintas O momento a partir do qual uma prática discursiva se individualiza e assume sua autonomia o momento por conseguinte em que se encontra em ação um único e mesmo sistema de formação dos A Arqueologia do Saber 209 enunciados ou ainda o momento em que esse sistema se transforma poderá ser chamado limiar de positividade Quando no jogo de uma formação discursiva um conjunto de enunciados se delineia pretende fazer valer mesmo sem conseguilo normas de verificação e de coerência e o fato de que exerce em relação ao saber uma função dominante modelo crítica ou verificação diremos que a formação discursiva transpõe um limiar de epistemologização Quando a figura epistemológica assim delineada obedece a um certo número de critérios formais quando seus enunciados não respondem somente a regras arqueológicas de formação mas além disso a certas leis de construção das proposições diremos que ela transpôs um limiar de cientificidade Enfim quando esse discurso científico por sua vez puder definir os axiomas que lhe são necessários os elementos que usa as estruturas proposicionais que lhe são legítimas e as transformações que aceita quando puder assim desenvolver a partir de si mesmo o edifício formal que constitui diremos que transpôs o limiar da formalização A repartição desses diferentes limiares no tempo sua sucessão sua defasagem sua eventual coincidência a maneira pela qual se podem comandar ou implicar uns aos outros e as condições nas quais alternadamente se instauram constituem para a arqueologia um de seus domínios maiores de exploração Sua cronologia na verdade não é nem regular nem homogênea Não é com o mesmo ritmo e ao mesmo tempo que todas as formações discursivas os transpõem escandindo assim a história dos conhecimentos humanos em diferentes períodos na época em que muitas positividades transpuseram o limiar da formalização muitas outras ainda não tinham atingido o da cientificidade ou mesmo da epistemologização Além disso cada formação discursiva não passa sucessivamente pelos diferentes limiares como pelos estágios naturais de uma maturação biológica em que a única variável seria o tempo de latência ou a duração dos intervalos Tratase de fato de acontecimentos cuja dispersão não é evolutiva sua ordem singular é um dos caracteres de cada formação discursiva Eis alguns exemplos de tais diferenças Em certos casos o limiar da positividade é transposto muito antes do da epistemologização assim a Psicopatologia como discurso de pretensão científica epistemologizou no início do século XIX com Pinel Heinroth e Esquirol uma prática 210 Michel Foucault discursiva que lhe preexistia amplamente e que adquirira há muito tempo sua autonomia e seu sistema de regularidade Mas pode acontecer também que esses dois limiares estejam confundidos no tempo e que a instauração de uma positividade seja ao mesmo tempo a emergência de uma figura epistemológica Às vezes os limiares de cientificidade estão ligados à passagem de uma positividade a outra às vezes são diferentes disso assim a passagem da história natural com a cientificidade que lhe era própria à biologia como ciência não da classificação dos seres mas das correlações específicas entre os diferentes organismos só se efetuou na época de Cuvier com a transformação de uma positividade em outra em compensação a medicina experimental de Claude Bernard depois a microbiologia de Pasteur modificaram o tipo de cientificidade requerido pela anatomia e fisiologia patológicas sem que a formação discursiva da medicina clínica tal como fora estabelecida na época tivesse sido posta fora de cena Da mesma forma a nova cientificidade instituída nas disciplinas biológicas pelo evolucionismo não modificou a positividade biológica que fora definida na época de Cuvier No caso da economia os rompimentos são particularmente numerosos Podese reconhecer no século XVII um limiar de positividade ele coincide aproximadamente com a prática e a teoria do mercantilismo mas sua epistemologização só se produziria um pouco mais tarde no fim do século ou no início do século seguinte com Locke e Cantillon No entanto o século XIX assinala ao mesmo tempo com Ricardo um novo tipo de positividade uma nova forma de espistemologização que Cournot e Jevons por sua vez modificariam justamente na época em que Marx a partir da economia política faria aparecer uma prática discursiva inteiramente nova Se só se reconhecer na ciência o acúmulo linear das verdades ou a ortogênese da razão se nela só se reconhecer uma prática discursiva que tem seus níveis seus limiares suas rupturas diversas só se poderá descrever uma única divisão histórica cujo modelo não se deixa de reconduzir ao longo dos tempos para uma forma de saber não importa qual a divisão entre o que não é ainda científico e o que o é definitivamente Toda a densidade das separações toda a dispersão das rupturas toda a defasagem de seus efeitos e o jogo de sua A Arqueologia do Saber 211 interdependência achamse reduzidos ao ato monótono de uma fundação que é preciso sempre repetir Só existe sem dúvida uma ciência para a qual não se podem distinguir esses diferentes limiares nem descrever entre eles semelhante conjunto de defasagens a matemática única prática discursiva que transpôs de uma só vez o limiar da positividade o de epistemologização o da cientificidade e o da formalização A própria possibilidade de sua existência implicava que fosse considerado logo de início aquilo que em todos os outros casos permanece disperso ao longo da história sua positividade primeira devia constituir uma prática discursiva já formalizada mesmo que outras formalizações devessem em seguida ser operadas Daí o fato de ser sua instauração ao mesmo tempo tão enigmática tão pouco acessível à análise tão fechada na forma do começo absoluto e tão valorizada já que vale concomitantemente como origem e como fundamento daí o fato de se ter visto no primeiro gesto do primeiro matemático a constituição de uma idealidade que se desenrolou ao longo da história e que só foi questionada para ser repetida e purificada daí o fato de se examinar o começo da matemática menos como um acontecimento histórico do que a título de princípio de historicidade daí enfim o fato de se relacionar no caso de todas as outras ciências a descrição de sua gênese histórica de suas tentativas e de seus fracassos de sua tardia abertura como o modelo metaistórico de uma geometria que emerge súbita e definitivamente das práticas triviais da agrimensura Mas ao tomar o estabelecimento do discurso matemático como protótipo do nascimento e do devir de todas as outras ciências correse o risco de homogeneizar todas as formas singulares de historicidade reconduzir à instância de um único corte todos os limiares diferentes que uma prática discursiva pode transpor e reproduzir indefinidamente em todos os momentos a problemática da origem assim se achariam renovados os direitos da análise históricotranscendental A matemática foi seguramente modelo para a maioria dos discursos científicos em seu esforço de alcançar o rigor formal e a demonstratividade mas para o historiador que interroga o devir efetivo das ciências ela é um mau exemplo um exemplo que não se poderia de forma alguma generalizar 212 Michel Foucault e Os diferentes tipos de história das ciências Os múltiplos limiares que puderam ser demarcados permitem formas distintas de análise histórica De início no nível da formalização é essa história que a matemática não deixa de contar sobre si mesma no processo de sua própria elaboração O que ela foi em um dado momento seu domínio seus métodos os objetos que define a linguagem que emprega jamais é lançado ao campo exterior da nãocientificidade mas se encontra continuamente redefinido ainda que a título de região caída em desuso ou atingida provisoriamente pela esterilidade no edifício formal que constitui esse passado se revela como caso particular modelo ingênuo esboço parcial e insuficientemente generalizado de uma teoria mais abstrata mais poderosa ou de mais alto nível a matemática retranscreve seu percurso histórico real no vocabulário das vizinhanças das dependências das subordinações das formalizações progressivas das generalidades que se enredam Para essa história da matemática a que ela constitui e a que conta a propósito de si mesma a álgebra de Diofante não é uma experiência que permanece em suspenso é um caso particular da álgebra tal como o conhecemos desde Abel e Galois o método grego das exaustões não foi um impasse de que foi preciso desviar é um modelo ingênuo do cálculo integral Acontece que cada peripécia histórica tem seu nível e sua localização formais Tratase de uma análise recorrencial que só pode ser feita no interior de uma ciência constituída uma vez transposto seu limiar de formalização1 É diferente a análise histórica que se situa no limiar da cientificidade e que se interroga sobre a maneira pela qual ele pôde ser transposto a partir de figuras epistemológicas diversas Tratase de saber por exemplo como um conceito carregado ainda de metáforas ou de conteúdos imaginários se purificou e pôde assumir status e função de conceito científico de saber como uma região de experiência já demarcada já parcialmente articulada mas ainda atravessada por 1 Cf sobre o assunto Les anamnèses mathématiques in Hermès ou la communication Michel Serres p 78 A Arqueologia do Saber 213 utilizações práticas imediatas ou valorizações efetivas pôde constituirse em um domínio científico de saber de modo mais geral como uma ciência se estabeleceu acima e contra um nível précientífico que ao mesmo tempo a preparava e resistia a seu avanço e como pôde transpor os obstáculos e as limitações que ainda se lhe opunham G Bachelard e G Canguilhem apresentaram os modelos dessa história Ela não tem necessidade como a análise recorrencial de se situar no próprio interior da ciência de recolocar todos os seus episódios no edifício por ela constituído e de contar sua formalização no vocabulário formal que é hoje o seu como aliás ela o poderia já que mostra do que a ciência se libertou e tudo que teve de abandonar para atingir o limiar da cientificidade Por isso mesmo essa descrição toma por norma a ciência constituída a história que ela conta é necessariamente escandida pela oposição verdade e erro racional e irracional obstáculo e fecundidade pureza e impureza científico e não científico Tratase de uma história epistemológica das ciências O terceiro tipo de análise histórica é o que toma como ponto de ataque o limiar de epistemologização o ponto de clivagem entre as formações discursivas definidas por sua positividade e figuras epistemológicas que não são todas forçosamente ciências e que de resto talvez jamais cheguem a sêlo Nesse nível a cientificidade não serve como norma o que se tenta revelar na história arqueológica são as práticas discursivas na medida em que dão lugar a um saber e em que esse saber assume o status e o papel de ciência Empreender nesse nível uma história das ciências não é descrever formações discursivas sem considerar estruturas epistemológicas é mostrar como a instauração de uma ciência e eventualmente sua passagem à formalização pode ter encontrado sua possibilidade e sua incidência em uma formação discursiva e nas modificações de sua positividade Tratase pois para tal análise de traçar o perfil da história das ciências a partir de uma descrição das práticas discursivas de definir como segundo que regularidade e graças a que modificações ela pôde dar lugar aos processos de epistemologização atingir as normas da cientificidade e talvez chegar ao limiar da formalização Procurar o nível da prática discursiva na densidade histórica das ciências não significa querer reconduzila a um nível profundo e originário ao solo da experiência vivida à terra que se 214 Michel Foucault apresenta irregular e retalhada anterior a qualquer geometria ao céu que cintila através do esquadrinhamento de qualquer astronomia querse sim fazer aparecer entre positividades saber figuras epistemológicas e ciências todo o jogo das diferenças das relações dos desvios das defasagens das independências das autonomias e a maneira pela qual se articulam entre si suas historicidades A análise das formações discursivas das positividades e do saber em suas relações com as figuras epistemológicas e as ciências é o que se chamou para distinguilas das outras formas possíveis de história das ciências a análise da episteme Suspeitaremos talvez que a episteme seja algo como uma visão do mundo uma fatia de história comum a todos os conhecimentos e que imporia a cada um as mesmas normas e os mesmos postulados um estágio geral da razão uma certa estrutura de pensamento a que não saberiam escapar os homens de uma época grande legislação escrita definitivamente por mão anônima Por episteme entendese na verdade o conjunto das relações que podem unir em uma dada época as práticas discursivas que dão lugar a figuras epistemológicas a ciências eventualmente a sistemas formalizados o modo segundo o qual em cada uma dessas formações discursivas se situam e se realizam as passagens à epistemologização à cientificidade à formalização a repartição desses limiares que podem coincidir ser subordinados uns aos outros ou estar defasados no tempo as relações laterais que podem existir entre figuras epistemológicas ou ciências na medida em que se prendam a práticas discursivas vizinhas mas distintas A episteme não é uma forma de conhecimento ou um tipo de racionalidade que atravessando as ciências mais diversas manifestaria a unidade soberana de um sujeito de um espírito ou de uma época é o conjunto das relações que podem ser descobertas para uma época dada entre as ciências quando estas são analisadas no nível das regularidades discursivas A descrição da episteme apresenta portanto diversos caracteres essenciais abre um campo inesgotável e não pode nunca ser fechada não tem por finalidade reconstituir o sistema de postulados a que obedecem todos os conhecimentos de uma época mas sim percorrer um campo indefinido de relações Além disso a episteme não é uma figura imóvel que A Arqueologia do Saber 215 surgida um dia seria convocada a apagarse bruscamente é um conjunto indefinidamente móvel de escansões defasagens coincidências que se estabelecem e se desfazem A episteme ainda como conjunto de relações entre ciências figuras epistemológicas positividades e práticas discursivas permite compreender o jogo das coações e das limitações que em um momento determinado se impõem ao discurso mas essa limitação não é aquela que negativa opõe ao conhecimento a ignorância ao raciocínio a imaginação à experiência já acumulada a fidelidade às aparências e às inferências e às deduções o devaneio a episteme não é o que se pode saber em uma época tendo em conta insuficiências técnicas hábitos mentais ou limites colocados pela tradição é aquilo que na positividade das práticas discursivas torna possível a existência das figuras epistemológicas e das ciências Finalmente vêse que a análise da episteme não é uma maneira de retomar a questão crítica sendo apresentado algo como uma ciência qual é seu direito ou sua legitimidade é uma interrogação que só acolhe o dado da ciência a fim de se perguntar o que é para essa ciência o fato de ser conhecida No enigma do discurso científico o que ela põe em jogo não é o seu direito de ser uma ciência é o fato de que ele existe E o ponto onde se separa de todas as filosofias do conhecimento é que ela não relaciona tal fato à instância de uma doação originária que fundaria em um sujeito transcendental o fato e o direito mas sim aos processos de uma prática histórica f Outras arqueologias Uma questão permanece em suspenso seria possível conceber uma análise arqueológica que fizesse aparecer a regularidade de um saber mas que não se propusesse a analisálo na direção das figuras epistemológicas e das ciências A orientação voltada para a episteme é a única que pode abrirse à arqueologia Deve ser esta e exclusivamente uma certa maneira de interrogar a história das ciências Em outras palavras limitandose até o momento à região dos discursos científicos a arqueologia tem obedecido a uma necessidade que não poderia superar ou tem esboçado em um exemplo 216 Michel Foucault particular formas de análise que podem ter uma extensão inteiramente diferente No momento avancei muito pouco para responder definitivamente a essa pergunta Mas imagino de bom grado aguardando ainda numerosas experiências que seria preciso empreender e muitas tentativas arqueologias que se desenvolveriam em direções diferentes Consideremos por exemplo uma descrição arqueológica da sexualidade Vejo bem de agora em diante como se poderia orientála no sentido da episteme mostraríamos de que maneira no século XIX se formaram figuras epistemológicas como a biologia ou a psicologia da sexualidade e por qual ruptura se instaurou com Freud um discurso de tipo científico Mas percebo também uma outra possibilidade de análise ao invés de estudar o comportamento sexual dos homens em uma dada época procurando sua lei em uma estrutura social em um inconsciente coletivo ou em uma certa atitude moral ao invés de descrever o que os homens pudessem pensar da sexualidade que interpretação religiosa lhe davam que valorização ou que reprovação faziam recair sobre ela que conflitos de opinião ou de moral ela podia suscitar perguntaríamos se nessas condutas assim como nessas representações toda uma prática discursiva não se encontra inserida se a sexualidade fora de qualquer orientação para um discurso científico não é um conjunto de objetos de que se pode falar ou de que é proibido falar um campo de enunciações possíveis quer se trate de expressões líricas ou de prescrições jurídicas um conjunto de conceitos que podem sem dúvida ser apresentados sob a forma elementar de noções ou de temas um jogo de escolhas que pode aparecer na coerência das condutas ou em sistemas de prescrição Tal arqueologia se fosse bemsucedida em sua tarefa mostraria como as proibições as exclusões os limites as valorizações as liberdades as transgressões da sexualidade todas as suas manifestações verbais ou não estão ligadas a uma prática discursiva determinada Ela faria aparecer não certamente como verdade última da sexualidade mas como uma das dimensões segundo as quais pode ser descrita uma certa maneira de falar e essa maneira de falar mostraria como ela está inserida não em discursos científicos mas em um sistema de proibições e de valores Tal análise seria feita assim A Arqueologia do Saber 217 não na direção de episteme mas no sentido do que se poderia chamar ética Eis o exemplo entretanto de uma outra orientação possível Para analisar um quadro podese reconstituir o discurso latente do pintor podese querer reencontrar o murmúrio de suas intenções que não são em última análise transcritas em palavras mas em linhas superfícies e cores podese tentar destacar a filosofia implícita que supostamente forma sua visão do mundo É possível igualmente interrogar a ciência ou pelo menos as opiniões da época e procurar reconhecer o que o pintor lhes tomou emprestado A análise arqueológica teria um outro fim pesquisaria se o espaço a distância a profundidade a cor a luz as proporções os volumes os contornos não foram na época considerada nomeados enunciados conceitualizados em uma prática discursiva e se o saber resultante dessa prática discursiva não foi talvez inserido em teorias e especulações em formas de ensino e em receitas mas também em processos em técnicas e quase no próprio gesto do pintor Não se trataria de mostrar que a pintura é uma certa maneira de significar ou de dizer que teria a particularidade de dispensar palavras Seria preciso mostrar que em pelo menos uma de suas dimensões ela é uma prática discursiva que toma corpo em técnicas e em efeitos Assim descrita a pintura não é uma simples visão que se deveria em seguida transcrever na materialidade do espaço Não é mais um gesto nu cujas significações mudas e indefinidamente vazias deveriam ser liberadas por interpretações ulteriores É inteiramente atravessada independentemente dos conhecimentos científicos e dos temas filosóficos pela positividade de um saber Pareceme que se poderia fazer também uma análise do mesmo tipo a propósito do saber político Tentaríamos ver se o comportamento político de uma sociedade de um grupo ou de uma classe não é atravessado por uma prática discursiva determinada e descritível Essa positividade não coincidiria evidentemente nem com as teorias políticas da época nem com as determinações econômicas da política ela definiria o que pode tornarse objeto de enunciação as formas que tal enunciação pode tomar os conceitos que aí se encontram empregados e as escolhas estratégicas que aí se operam Em lugar de analisálo o que é sempre possível na direção da episteme a 218 Michel Foucault que pode dar lugar analisaríamos esse saber na direção dos comportamentos das lutas dos conflitos das decisões e das táticas Faríamos aparecer assim um saber político que não é da ordem de uma teorização secundária da prática e que não é tampouco uma aplicação da teoria Já que é regularmente formado por uma prática discursiva que se desenrola entre outras práticas e se articula com elas ele não constitui uma expressão que refletiria de maneira mais ou menos adequada um certo número de dados objetivos ou de práticas reais Inscrevese logo de início no campo das diferentes práticas em que encontra ao mesmo tempo sua especificação suas funções e a rede de suas dependências Se tal descrição fosse possível veríamos que não haveria necessidade de passar pela instância de uma consciência individual ou coletiva para compreender o lugar de articulação entre uma prática e uma teoria políticas não haveria necessidade de procurar saber em que medida essa consciência pode de um lado exprimir condições mudas de outro mostrarse sensível a verdades teóricas não teríamos de colocar o problema psicológico de uma tomada de consciência teríamos de analisar a formação e as transformações de um saber A questão por exemplo não seria determinar a partir de que momento aparece uma consciência revolucionária nem que papéis respectivos puderam desempenhar as condições econômicas e o trabalho de elucidação teórica na gênese dessa consciência não se trataria de retraçar a biografia geral e exemplar do homem revolucionário ou de encontrar o enraizamento de seu projeto mas de mostrar como se formaram uma prática discursiva e um saber revolucionário que estão envolvidos em comportamentos e estratégias que dão lugar a uma teoria da sociedade e que operam a interferência e a mútua transformação de uns e outros Podese responder agora à pergunta que se propunha há pouco a arqueologia só se ocupa das ciências e nunca passa de uma análise dos discursos científicos E responder duas vezes não O que a arqueologia tenta descrever não é a ciência em sua estrutura específica mas o domínio bem diferente do saber Além disso se ela se ocupa do saber em sua relação como as figuras epistemológicas e as ciências pode do mesmo modo interrogar o saber em uma direção diferente e descrevêlo em um outro feixe de relações A orientação para a A Arqueologia do Saber 219 episteme foi a única explorada até aqui A razão disso é que por um gradiente que caracteriza sem dúvida nossas culturas as formações discursivas não param de se epistemologizar Foi interrogando as ciências sua história sua estranha unidade sua dispersão e suas rupturas que o domínio das positividades pôde aparecer foi no interstício dos discursos científicos que se pôde apreender o jogo das formações discursivas Não é surpreendente em tais condições que a região mais fecunda a mais aberta à descrição arqueológica tenha sido a era clássica que do Renascimento ao século XIX desenvolveu a epistemologização de tantas positividades não é surpreendente tampouco que as formações discursivas e as regularidades específicas do saber se tenham delineado justamente onde os níveis da cientificidade e da formalização foram os mais difíceis de ser atingidos Mas esse é apenas o ponto preferencial da abordagem não é um domínio obrigatório para a arqueologia CHILDREN AND ADHD CHANGING TENSE SITUATIONS OFTEN Reducing stress in the home often makes a positive difference for children with ADHD Consistent limits and expectations are equally important Each parent should try to maintain a positive but firm handling style Parents should Provide children with opportunities to talk about their feelings Use calmer and more positive words Set clear household rules Provide consistent temperature Use shorter sentences Help children notice their behavior and change it when necessary For more information please contact National 8002334050CHILDRENS HOSPITALS Parent HELPLINE TEXT THE WORDPgh 4HEALTH to 888777 Youth The Childrens Hospital of PHILADELPHIAThe Childrens Hospital of Philadelphia 3T Medical Center Campus PHILADELPHIA PA 19104 800INFORME wwwchopedufamilyresources 4472 1214 2014 The Childrens Hospital of Philadelphia All rights reserved Printed on recycled paper All CHOP materials are professionally reviewed93033333221133ficiency in the area of social skills and common courtesy at home school and elsewhere In contrast children who do not also have ADHD rarely experience difficulty establishing Genuine from parents and other adults but people can use social skills more effectively with practice caregivers including parents In particularchildren with ADHD and ODD often have difficulty withappropriate social responses to peers This is a majorconcern of teachers and peers and one reason these childrenare often socially rejected CHOP FAMILY RESOURCES FOR PARENTS AND TEACHERS CHILDREN AND ADHD Changing Tense Situations Often Reducing stress in the home often makes a positive difference for children with ADHD Consistent limits and expectations are equally important Each parent should try to maintain a positive but firm handling style Parents should Provide children with opportunities to talk about their feelings Use calmer and more positive words Set clear household rules Provide consistent temperature Use shorter sentences Help children notice their behavior and change it when necessary For more information please contact National 8002334050 CHILDRENS HOSPITALS Parent HELPLINE TEXT THE WORD Pgh 4HEALTH to 888777 Youth The Childrens Hospital of PHILADELPHIA The Childrens Hospital of Philadelphia 3T Medical Center Campus PHILADELPHIA PA 19104 800INFORME wwwchopedufamilyresources 4472 1214 2014 The Childrens Hospital of Philadelphia All rights reserved Printed on recycled paper All CHOP materials are professionally reviewed V CONCLUSÃO no text present in this image Ao longo deste livro você tentou nem bem nem mal escapar do estruturalismo ou do que se compreende comumente por esse nome Acentuou que não usava seus métodos nem seus conceitos que não se referia aos processos da descrição linguística que não tinha nenhuma preocupação com formalização Mas o que significam tais divergências a não ser que você fracassou em empregar o que pode haver de positivo nas análises estruturais o que elas podem comportar de rigor e de eficácia demonstrativa e que o domínio que você tentou abordar é rebelde a esse gênero de empreendimento continuando sua riqueza a escapar aos esquemas em que você queria fechálo Com muita desenvoltura você mascarou sua impotência em termos de método apresentanos agora como uma diferença explicitamente desejada a distância invencível que o mantém e o manterá sempre separado de uma verdadeira análise estrutural Você não conseguiu nos enganar É verdade que no vazio deixado pelos métodos que você não empregou você lançou toda uma série de noções que parecem estranhas aos conceitos hoje admitidos pelos que descrevem línguas ou mitos obras literárias ou contos você falou de formações positividades saber práticas discursivas toda uma panóplia de termos cuja singularidade e poderes maravilhosos você tinha a satisfação de sublinhar a cada momento Mas teria de inventar tantas extravagâncias se não tivesse tentado valorizar em um domínio que lhes era irredutível alguns dos temas fundamentais do estruturalismo e até aqueles que constituem seus postulados mais contestáveis sua mais duvidosa filosofia Tudo se passa como se você tivesse retido métodos contemporâneos de análise não o trabalho empírico e sério mas dois ou três temas que são mais extrapolações destes do que princípios necessários 224 Michel Foucault Foi assim que você quis reduzir as dimensões próprias do discurso abandonar sua irregularidade específica ocultar o que ele pode comportar de iniciativa e de liberdade compensar o desequilíbrio que instaura na língua você quis fechar essa abertura A exemplo de uma certa forma de linguística você procurou dispensar o sujeito falante acreditou que se podia livrar o discurso de todas as suas referências antropológicas e tratálo como se jamais tivesse sido formulado por alguém como se nunca tivesse nascido em circunstâncias particulares como se não fosse atravessado por representações como se não se dirigisse a ninguém Finalmente você aplicoulhe um princípio de simultaneidade recusouse a ver que o discurso diversamente talvez da língua é essencialmente histórico que não era constituído de elementos disponíveis mas de acontecimentos reais e sucessivos e que não se pode analisálo fora do tempo em que se desenvolveu Você tem razão ignorei a transcendência do discurso recuseime descrevendoo a relacionálo como uma subjetividade não acentuei em primeiro lugar e como se devesse ser a forma geral seu caráter diacrônico Mas tudo isso não se destinava a prolongar além do domínio da língua conceitos e métodos que nela tinham sido experimentados Se falei de um discurso não foi para mostrar que os mecanismos ou os processos da língua aí se mantinham integralmente mas antes para fazer aparecer na densidade das performances verbais a diversidade dos níveis possíveis de análise para mostrar que ao lado dos métodos de estruturação linguística ou dos de interpretação podiase estabelecer uma descrição específica dos enunciados de sua formação e das regularidades próprias do discurso Se suspendi as referências ao sujeito falante não foi para descobrir leis de construção ou formas que seriam aplicadas da mesma maneira por todos os sujeitos falantes nem para fazer falar o grande discurso universal que seria comum a todos os homens de uma época Tratavase pelo contrário de mostrar em que consistiam as diferenças como era possível que homens no interior de uma mesma prática discursiva falassem de objetos diferentes tivessem opiniões opostas fizessem escolhas contraditórias tratavase também de mostrar em que as diferentes práticas discursivas se distinguiam umas das outras em suma não quis A Arqueologia do Saber 225 excluir o problema do sujeito quis definir as posições e as funções que o sujeito podia ocupar na diversidade dos discursos Finalmente você pôde constatar não neguei a história mantive em suspenso a categoria geral e vazia da mudança para fazer aparecerem transformações de níveis diferentes recuso um modelo uniforme de temporalização para descrever a propósito de cada prática discursiva suas regras de acúmulo exclusão reativação suas formas próprias de derivação e suas modalidades específicas de conexão em sequências diversas Não quis portanto levar além de seus limites legítimos o empreendimento estruturalista Você há de convir que não empreguei uma única vez o termo estrutura em Les mots et les choses Mas deixemos as polêmicas a respeito do estruturalismo elas sobrevivem com dificuldade em regiões hoje abandonadas pelos que trabalham esta luta outrora fecunda só é conduzida agora pelos farsantes e pelos forasteiros Por mais que você queira evitar tais polêmicas não escapará ao problema pois não é no estruturalismo que ele se encontra Reconhecemos de bom grado sua justeza e eficácia quando se trata de analisar uma língua mitologias narrativas populares poemas sonhos obras literárias talvez filmes a descrição estrutural faz com que apareçam relações que sem ela não poderiam ter sido isoladas ela permite definir elementos recorrentes com suas formas de oposição e seus critérios de individualização permite estabelecer também leis de construção equivalências e regras de transformação Apesar de algumas reticências que puderam ser marcadas no início aceitamos agora sem dificuldade que a língua o inconsciente a imaginação dos homens obedecem a leis de estrutura Mas o que recusamos inteiramente é o que você faz poder analisar os discursos científicos em sua sucessão sem relacionálos a algo como uma atividade constituinte sem reconhecer até em suas hesitações a abertura de um projeto originário ou de uma teleologia fundamental sem reencontrar a profunda continuidade que os liga e os conduz até o ponto de onde podemos retomálos poder assim destrinçar o devir da razão e liberar de qualquer índice de subjetividade a história do pensamento Limitemos o debate admitimos que se possa falar em termos de elementos e de regras de 226 Michel Foucault construção da linguagem em geral da linguagem de outro lugar e de outro tempo que é a dos mitos ou ainda da linguagem apesar de tudo um pouco estranha que é a de nosso inconsciente ou de nossas obras mas a linguagem de nosso saber que temos aqui e agora o próprio discurso estrutural que nos permite analisar tantas outras linguagens nós a consideramos como irredutível em sua densidade histórica Você não pode esquecer igualmente que é a partir dela de sua lenta gênese do devir obscuro que a conduziu ao estado atual que podemos falar dos outros discursos em termos de estruturas foi ela que nos deu essa possibilidade e esse direito ela forma a mancha cega a partir da qual as coisas em torno de nós se dispõem como as vemos hoje Queremos lidar com elementos relações e descontinuidades quando analisamos lendas indoeuropéias ou tragédias de Racine aceitamos ainda que se dispense sempre que possível uma interrogação sobre os sujeitos falantes mas contestamos que se possam tomar como pretexto essas tentativas bemsucedidas para fazer refluir a análise para remontar às formas do discurso que as torna possíveis e para pôr em questão o próprio lugar de onde falamos hoje A história das análises onde a subjetividade se esquiva guarda consigo sua própria transcendência Pareceme que é justamente esse e muito mais que na questão repisada do estruturalismo o ponto do debate e da resistência que você opõe Permitame como passatempo é claro porque como você bem sabe não tenho inclinação particular para a interpretação dizerlhe como compreendi seu discurso de há pouco Claro dizia você em surdina estamos de agora em diante coagidos apesar de todos os combates de retaguarda que travamos a aceitar que discursos dedutivos sejam formalizados claro que devemos suportar que se descreva não a história de uma alma não um projeto de existência mas a arquitetura de um sistema filosófico claro não importa o que pensemos devemos tolerar as análises que relacionam as obras literárias não à experiência vivida de um indivíduo mas às estruturas da língua Claro foi preciso que abandonássemos todos os discursos que sujeitávamos outrora à soberania da consciência Mas o que perdemos já há mais de meio século queremos recuperar em um segundo momento pela análise de todas essas análises ou pelo A Arqueologia do Saber 227 menos pela interrogação fundamental que lhes endereçamos Vamos perguntarlhes de onde vêm qual é a destinação histórica que as atravessa sem que disso se dêem conta que ingenuidade as impossibilita de ver as condições que as tornam possíveis em que clausura metafísica se fecha seu positivismo rudimentar Será irrelevante finalmente que o inconsciente não seja a extremidade implícita da consciência como acreditávamos e afirmávamos será irrelevante que uma mitologia não seja mais uma visão do mundo e que um romance seja algo diferente da vertente exterior de uma experiência vivida pois a razão que estabelece todas essas verdades novas temola sob grande vigilância nem ela nem seu passado nem o que a torna possível nem o que a faz nossa escapa à delimitação transcendental Será a ela agora e estamos firmemente decididos a jamais renunciar a isto que colocaremos a questão da origem da constituição inicial do horizonte teleológico da continuidade temporal Será este pensamento que hoje se efetiva como nosso que manteremos na dominância históricotranscendental Isso porque se somos obrigados a suportar de bom ou mau grado todos os estruturalismos não podemos aceitar que se toque na história do pensamento que é a história de nós mesmos não podemos aceitar que se desfaçam todos os laços transcendentais que a ligaram desde o século XIX à problemática da origem e da subjetividade A quem se aproximar da fortaleza em que nos refugiamos mas que queremos manter solidamente repetiremos com o gesto que imobiliza a profanação Noli tangere Ora obstineime em avançar Não que esteja certo da vitória nem conte com as minhas armas Mas porque achei que no momento era o essencial libertar a história do pensamento de sua sujeição transcendental O problema para mim não era absolutamente estruturalizála aplicando ao devir do saber ou a gênese das ciências categorias que tinham sido testadas no domínio da língua Tratavase de analisar tal história em uma descontinuidade que nenhuma teleologia reduziria antecipadamente demarcála em uma dispersão que nenhum horizonte prévio poderia tornar a fechar deixar que ela se desenrolasse em um anonimato a que nenhuma constituição transcendental imporia a forma do sujeito abrila a uma temporalidade que não prometeria o retorno de nenhuma aurora Tratavase de despojála de qualquer narcisismo 228 Michel Foucault transcendental era preciso libertála da esfera da origem perdida e reencontrada em que estava presa era preciso mostrar que a história do pensamento não podia ter o papel revelador do momento transcendental que a mecânica racional já não tem desde Kant nem as idealidades matemáticas desde Husserl nem as significações do mundo percebido desde MerleauPonty a despeito dos esforços que foram feitos para aí descobrilo Creio que no fundo apesar do equívoco introduzido pelo aparente debate do estruturalismo nós nos entendemos perfeitamente isto é entendíamos perfeitamente o que queríamos fazer Era normal que você defendesse o direito de uma história contínua aberta ao mesmo tempo ao trabalho de uma teleologia e aos processos indefinidos da causalidade mas não era para protegêla de uma invasão estrutural que lhe desconhecesse o movimento espontaneidade e o dinamismo interno você queria na verdade garantir os poderes de uma consciência constituinte pois eles é que eram postos em questão Ora tal defesa devia ter lugar em outra cena e não no próprio local do debate pois se você reconhecia em uma pesquisa empírica em um mínimo trabalho de história o direito de contestar a dimensão transcendental então abria mão do essencial Daí uma série de deslocamentos Tratar a arqueologia como uma busca da origem dos a priori formais dos atos fundadores em suma como uma espécie de fenomenologia histórica enquanto para ela se trata ao contrário de libertar a história da dominação fenomenológica e objetarlhe então que ela fracassa em sua tarefa e que só descobre uma série de fatos empíricos Depois opor à descrição arqueológica à sua preocupação de estabelecer limiares rupturas e transformações o verdadeiro trabalho dos historiadores que seria o de mostrar as continuidades enquanto há dezenas de anos o propósito da história não é esse e criticarlhe então sua indiferença em relação às empiricidades Depois ainda considerála como uma empresa para descrever totalidades culturais para homogeneizar as diferenças mais manifestas e reencontrar a universalidade das formas coatoras enquanto ela tem por propósito definir a especificidade singular das práticas discursivas e objetarlhe então diferenças mudanças e mutações Finalmente designála como a importação no domínio da história do estruturalismo se bem que seus métodos e A Arqueologia do Saber 229 conceitos não possam em caso algum se prestar à confusão e mostrar então que ela não poderia funcionar como uma verdadeira análise estrutural Todo esse jogo de deslocamentos e de incompreensões é perfeitamente coerente e necessário Ele comportava uma vantagem secundária poder dirigirse em diagonal a todas as formas de estruturalismos que é preciso tolerar e às quais já foi preciso ceder tanto e lhes dizer Vejam a que vocês se exporiam se tocassem nos domínios que ainda são os nossos os procedimentos que vocês adotam e que talvez tenham em outro lugar alguma validade aí reencontrariam logo seus limites eles deixariam escapar todo o conteúdo concreto que vocês queriam analisar vocês seriam obrigados a renunciar a seu empirismo prudente e vocês cairiam contra a vontade em uma estranha ontologia da estrutura Tenham pois a prudência de se manter nos domínios que sem dúvida conquistaram mas que fingiremos de agora em diante haver concedido a vocês já que nós próprios fixamoslhes os limites Quanto à vantagem maior ela consiste é claro em mascarar a crise em que estamos envolvidos há muito tempo e cujo âmbito não pára de crescer crise em que estão comprometidas a reflexão transcendental com a qual se identificou a filosofia desde Kant a temática da origem da promessa do retorno pela qual evitamos a diferença de nosso presente um pensamento antropológico que consagra todas as interrogações à questão do ser do homem e permite evitar a análise da prática todas as ideologias humanistas e enfim e sobretudo o status do sujeito É esse debate que você sonha mascarar e de que espera creio desviar a atenção prosseguindo os jogos agradáveis da gênese e do sistema da sincronia e do devir da relação e da causa da estrutura e da história Você está certo de não praticar uma metátese teórica Suponhamos que o debate esteja onde você diz suponhamos que se trate de defender ou de atacar o último reduto do pensamento transcendental e admitamos que nossa discussão agora tenha lugar na crise de que você fala qual é então o título de seu discurso De onde vem e de onde poderia exercer seu direito de falar Como poderia legitimarse Se você não fez nada além de uma análise empírica consagrada ao aparecimento e à transformação dos discursos se você 230 Michel Foucault descreveu conjuntos de enunciados figuras epistemológicas as formas históricas de um saber como pode escapar à ingenuidade de todos os positivismos Como sua empresa poderia valer contra a questão da origem e o recurso necessário a um sujeito constituinte Mas se você pretende abrir uma interrogação radical se você quer colocar seu discurso no nível em que nós próprios nos colocamos você bem sabe que ele entrará em nosso jogo e que prolongará por sua vez a dimensão de que tenta contudo se libertar Ou não nos atinge ou nós o reivindicamos De qualquer maneira você é obrigado a nos dizer o que são esses discursos que você se obstina há 10 anos em pesquisar sem nunca ter tomado o cuidado de estabelecer sua identidade Em uma palavra que são eles história ou filosofia Mais do que suas objeções de há pouco essa questão confesso me embaraça Ela não me surpreende inteiramente entretanto gostaria ainda algum tempo de mantêla suspensa É que no momento e sem que eu possa ainda prever um fim meu discurso longe de determinar o lugar de onde fala evita o solo em que se poderia apoiar É um discurso sobre discursos mas não pretende neles encontrar uma lei oculta uma origem recoberta que só faltaria libertar não pretende tampouco estabelecer por si mesmo e a partir de si mesmo a teoria geral da qual eles seriam os modelos concretos Tratase de desenvolver uma dispersão que nunca se pode conduzir a um sistema único de diferenças e que não se relaciona a eixos absolutos de referência tratase de operar um descentramento que não permite privilégio a nenhum centro Tal discurso não tem por papel dissipar o esquecimento reencontrar no âmago das coisas ditas e onde elas se calam o momento de seu nascimento quer se trate de sua criação empírica ou do ato transcendental que lhes dá origem não tenta ser recolhimento do originário ou lembrança da verdade Tem pelo contrário de fazer as diferenças constituílas como objeto analisálas e definir seu conceito Ao invés de percorrer o campo dos discursos para refazer por sua conta as totalizações suspensas ao invés de procurar no que foi dito o outro discurso oculto que permanece o mesmo ao invés portanto de ele fazer sem interrupção de alegoria e de tautologia opera sem cessar as diferenciações é diagnóstico Se a filosofia é A Arqueologia do Saber 231 memória ou retorno da origem o que faço não pode de modo algum ser considerado como filosofia e se a história do pensamento consiste em tornar a dar vida a figuras semiapagadas o que faço não é tampouco história Do que você acaba de dizer devese reter pelo menos que sua arqueologia não é uma ciência Você a deixa flutuar com o status incerto de uma descrição ou ainda sem dúvida um desses discursos que queria passar por alguma disciplina em estado de esboço o que traz para seus autores a dupla vantagem de não ter de fundamentar sua cientificidade explícita e rigorosa e de abrila a uma generalidade futura que a liberta dos acasos de seu nascimento ainda um desses projetos que se justificam pelo que não são adiando sempre para mais tarde o essencial de sua tarefa o momento de sua verificação e o posicionamento definitivo de sua coerência ainda uma dessas fundações como tantas que foram anunciadas desde o século XIX pois sabemos que no campo teórico moderno o que se gosta de inventar não são sistemas demonstráveis mas disciplinas cuja possibilidade se abre cujo programa se delineia e cujo futuro e destino se confiam aos outros Ora apenas acabado o esboço de seu desenho eis que elas desaparecem com seus autores Assim o campo que deveriam gerir permanece estéril para sempre É certo que jamais apresentei a arqueologia como uma ciência nem mesmo como os primeiros fundamentos de uma ciência futura Em vez de traçar o plano de um edifício a ser construído dediqueime a fazer o esboço reservandome o direito de fazer muitas correções do que realizara por ocasião de pesquisas concretas A palavra arqueologia não tem valor de antecipação designa somente uma das linhas de abordagem para a análise das performances verbais especificação de um nível o do enunciado e do arquivo determinação e esclarecimento de um domínio as regularidades enunciativas as positividades emprego de conceitos como os de regra de formação derivação arqueológica a priori histórico Mas em quase todas as suas dimensões e em quase todas as suas arestas a empresa relacionase a ciências a análises de tipo científico ou a teorias que respondem a critérios de rigor Ela tem inicialmente relação com ciências que se constituem e 232 Michel Foucault estabelecem suas normas no saber arqueologicamente descrito e que são para ela ciênciasobjetos tanto quanto já o foram a anatomia patológica a filologia a economia política a biologia Tem relação também com formas científicas de análise de que se distingue seja pelo nível seja pelo domínio seja pelos métodos e das quais está próxima conforme linhas características de divisão criticando na massa das coisas ditas o enunciado definido como função de realização da performance verbal ela se destaca de uma pesquisa que teria como campo privilegiado a competência linguística enquanto tal descrição constitui um modelo gerador para definir a aceitabilidade dos enunciados a arqueologia tenta estabelecer regras de formação para definir as condições de sua realização daí um certo número de analogias mas também de diferenças em particular no que se refere ao nível possível de formalização entre essas duas modalidades de análise de qualquer forma para a arqueologia uma gramática gerativa representa o papel de uma análise conexa Além disso as descrições arqueológicas em seu desenrolar e nos campos que percorrem articulamse com outras disciplinas procurando definir fora de qualquer referência a uma subjetividade psicológica ou constituinte as diferentes posições de sujeito que os enunciados podem implicar a arqueologia atravessa uma questão que é colocada hoje pela psicanálise tentando fazer aparecer as regras de formação dos conceitos os modos de sucessão encadeamento e coexistência dos enunciados ela se depara com o problema das estruturas epistemológicas estudando a formação dos objetos os campos nos quais emergem e se especificam estudando também as condições de apropriação dos discursos se depara com a análise das formações sociais Tratase para a arqueologia de espaços correlativos Finalmente na medida em que é possível constituir uma teoria geral das produções a arqueologia como análise das regras características das diferentes práticas discursivas encontrará o que se poderia chamar sua teoria envolvente Se situo a arqueologia entre tantos outros discursos que já estão constituídos não é para fazer cora que se beneficie como quer por contiguidade e contágio de um status que ela não seria capaz de dar a si mesma não é para darlhe um lugar definitivamente delineado em uma constelação imóvel mas para revelar com o arquivo as formações discursivas A Arqueologia do Saber 233 as positividades os enunciados e suas condições de formação um domínio específico que não constitui ainda objeto de nenhuma análise pelo menos no que ele pode ter de particular e de irredutível às interpretações e às formalizações mas nada me garante antecipadamente no ponto de demarcação ainda rudimentar em que estou agora que ele permanecerá estável e autônomo Afinal seria possível que a arqueologia não fizesse nada além de representar o papel de um instrumento que permite articular de maneira menos imprecisa do que no passado a análise das formações sociais e as descrições epistemológicas ou que permite unir uma análise das posições do sujeito a uma teoria da história das ciências ou que permite situar o lugar de entrecruzamento entre uma teoria geral da produção e uma análise gerativa dos enunciados Poderia ser revelado finalmente que a arqueologia é o nome dado a uma certa parte da conjuntura teórica de hoje Se esta conjuntura dá lugar a uma disciplina individualizável cujos primeiros caracteres e limites globais se esboçariam aqui ou se ela suscita um feixe de problemas cuja coerência atual não impede que possam ser mais tarde retomados em outra situação de modo diferente em um nível mais elevado ou segundo métodos diversos isso eu não saberia dizer no momento E na verdade a decisão sem dúvida não cabe a mim Aceito que meu discurso se apague como a figura que conseguiu trazêlo até aqui Você mesmo faz um estranho uso da liberdade que contesta nos outros pois você se dá todo o campo de um espaço livre que se recusa até mesmo a qualificar Mas será que se esquece do cuidado que tomou para enquadrar o discurso dos outros em sistemas de regras Será que se esquece de todas as coações que descrevia com meticulosidade Você não tirou dos indivíduos o direito de intervir pessoalmente nas positividades em que se situam seus discursos Você prendeu a menor de suas palavras a obrigações que condenam ao conformismo a menor de suas inovações Você considera a revolução fácil quando se trata de si mesmo mas difícil quando se trata dos outros Seria melhor sem dúvida se você tivesse uma consciência mais clara das condições sob as quais fala mas em compensação mais confiança na ação real dos homens e em suas possibilidades 234 Michel Foucault Receio que você esteja cometendo um duplo erro a respeito das práticas discursivas que tentei definir e a propósito da parte que você mesmo reserva à liberdade humana As positividades que tentei estabelecer não devem ser compreendidas como um conjunto de determinações que se impõem do exterior ao pensamento dos indivíduos ou que moram em seu interior como que antecipadamente elas constituem o conjunto das condições segundo as quais se exerce uma prática segundo as quais essa prática dá lugar a enunciados parcial ou totalmente novos segundo as quais enfim ela pode ser modificada Tratase menos dos limites colocados à iniciativa dos sujeitos que do campo em que ela se articula sem constituir seu centro das regras que emprega sem que as tenha inventado ou formulado das relações que lhe servem de suporte sem que ela seja seu resultado último ou seu ponto de convergência Tratase de revelar as práticas discursivas em sua complexidade e em sua densidade mostrar que falar é fazer alguma coisa algo diferente de exprimir o que se pensa de traduzir o que se sabe e também de colocar em ação as estruturas de uma língua mostrar que somar um enunciado a uma série preexistente de enunciados é fazer um gesto complicado e custoso que implica condições e não somente uma situação um contexto motivos e que comporta regras diferentes das regras lógicas e linguísticas de construção mostrar que uma mudança na ordem do discurso não supõe idéias novas um pouco de invenção e de criatividade uma mentalidade diferente mas transformações em uma prática eventualmente nas que lhe são próximas e em sua articulação comum Longe de mim negar a possibilidade de mudar o discurso tirei dele o direito exclusivo e instantâneo à soberania do sujeito De minha parte queria para terminar fazerlhe uma pergunta que idéia você tem da mudança e digamos da revolução pelo menos na ordem científica e no campo dos discursos se a liga aos temas do sentido do projeto da origem e do retorno do sujeito constituinte em suma a toda a temática que garante à história a presença universal do logos Que possibilidade lhe dá se a analisa conforme metáforas dinâmicas biológicas evolucionistas nas quais habitualmente se dissolve o problema difícil e específico da mutação histórica Mais precisamente ainda que status político pode dar ao A Arqueologia do Saber 235 discurso se nele só vê uma transparência diminuta que cintila por um instante no limite das coisas e dos pensamentos A prática do discurso revolucionário e do discurso científico na Europa há 200 anos não o liberou da idéia de que as palavras são vento um sussurro exterior um ruído de asas que mal ouvimos na seriedade da história Ou será preciso imaginar que para recusar essa lição você se obstinou a desconhecer as práticas discursivas em sua existência própria e que queria manter contra ela uma história do espírito dos conhecimentos da razão das idéias ou das opiniões Qual é pois o medo que o faz responder em termos de consciência quando lhe falam de uma prática de suas condições de suas regras de suas transformações históricas Qual é pois o medo que o faz procurar além de todos os limites as rupturas os abalos as escansões o grande destino históricotranscendental do Ocidente A essa questão estou certo de que a única resposta é política Mantenhamola por enquanto em suspenso Talvez seja necessário retomála logo e de outro modo Este livro foi feito apenas para afastar algumas dificuldades preliminares Tanto quanto qualquer outra pessoa sei o que podem ter de ingratas no sentido estrito do termo as pesquisas de que falo e que empreendo há 10 anos Sei o que pode haver de árido no fato de tratar os discursos não a partir da doce muda e íntima consciência que aí se exprime mas de um obscuro conjunto de regras anônimas O que há de desagradável em fazer aparecer os limites e as necessidades de uma prática no lugar em que tínhamos o hábito de ver desenrolaremse em pura transparência os jogos do gênio e da liberdade O que há de provocante em tratar como um feixe de transformações essa história dos discursos que era animada até aqui pelas metamorfoses tranquilizadoras da vida ou a continuidade intencional do vivido Enfim considerandose o que cada um quer colocar pensa colocar de si mesmo em seu próprio discurso quando tenta falar o que há de insuportável em recortar analisar combinar recompor todos os textos que agora voltam ao silêncio sem que neles jamais se desenhe o semblante transfigurado do autor Como Tantas palavras acumuladas tantas marcas depositadas em tantas folhas de papel e oferecidas a inúmeros olhares um zelo tão grande para mantêlas além do gesto que as articula uma 236 Michel Foucault piedade tão profunda destinada a conserválas e inscrevêlas na memória dos homens tudo isso para que não reste nada da pobre mão que as traçou da inquietude que nelas procurava acalmarse e da vida acabada que só tem a elas daqui por diante para sobreviver O discurso em sua determinação mais profunda não seria rastro E seu murmúrio não seria o lugar das imortalidades sem substância Seria preciso admitir que o tempo do discurso não é o tempo da consciência levado às dimensões da história ou o tempo da história presente na forma da consciência Seria preciso que eu supusesse que em meu discurso não está em jogo minha imortalidade E que falando dele não conjuro minha morte mas a estabeleço ou antes suprimo toda interioridade nesse exterior que é tão indiferente à minha vida e tão neutro que não estabelece diferença entre minha vida e minha morte Eu compreendo bem o malestar de todos esses Foi sem dúvida muito doloroso para eles reconhecer que sua história sua economia suas práticas sociais a língua que falam a mitologia de seus ancestrais até as fábulas que lhes contavam na infância obedecem a regras que não se mostram inteiramente à sua consciência eles não desejam ser privados também e ainda por cima do discurso em que querem poder dizer imediatamente sem distância o que pensam crêem ou imaginam vão preferir negar que o discurso seja uma prática complexa e diferenciada que obedece a regras e a transformações analisáveis a ser destituídos da frágil certeza tão consoladora de poder mudar se não o mundo se não a vida pelo menos seu sentido pelo simples frescor de uma palavra que viria apenas deles mesmos e permaneceria o mais próximo possível da fonte indefinidamente Tantas coisas em sua linguagem já lhes escaparam eles não querem mais que lhes escape além disso o que dizem esse pequeno fragmento de discurso falado ou escrito pouco importa cuja débil e incerta existência deve levar sua vida mais longe e por mais tempo Não podem suportar e os compreendemos um pouco ouvir dizer O discurso não é a vida seu tempo não é o de vocês nele vocês não se reconciliarão com a morte é possível que vocês tenham matado Deus sob o peso de tudo que disseram mas não pensem que farão com tudo o que vocês dizem um homem que viverá mais que ele Com que propósito escrevi este livro Para explicar o que quis fazer nos livros precedentes em que tantas coisas ficaram obscuras Não só nem exatamente mas indo um pouco mais longe para retornar como que por uma nova volta de espiral a um ponto anterior ao que havia empreendido mostrar de onde eu falava demarcar o espaço que torna possíveis essas pesquisas e outras talvez que jamais concluirei em suma para dar significação à palavra arqueologia que eu havia deixado vazia Palavra perigosa pois parece evocar rastros caídos fora do tempo e petrificados agora em seu mutismo Na verdade tratase de descrever discursos Não livros na relação com seus autores não teorias com suas estruturas e coerência mas os conjuntos ao mesmo tempo familiares e enigmáticos que através do tempo se tornam conhecidos como a medicina ou a economia política ou a biologia Gostaria de mostrar que essas unidades formam domínios autônomos embora não independentes regrados embora em contínua transformação anônimos e sem sujeito ainda que integrem tantas obras individuais E justamente no ponto em que a história das idéias decifrando os textos procurava desvendar os movimentos secretos do pensamento sua lenta progressão seus conflitos e recaídas os obstáculos contornados gostaria de revelar em sua especificidade o nível das coisas ditas sua condição de aparecimento as formas de seu acúmulo e encadeamento as regras de sua transformação as descontinuidades que as escandem O domínio das coisas ditas é o que se chama arquivo o papel da arqueologia é analisálo Michel Foucault Debater Foucault A arqueologia do saber representa um marco fundamental na trajetória filosófica de Michel Foucault que é também reconhecidamente um dos grandes historiadores de nossa época A importância desta obra no percurso teórico do autor é um esforço notável no sentido de se restabelecer as bases sólidas para a investigação científica e uma revisão conceitual que enfatizem a natureza recorrente da história epistemológica Foucault nos legou neste livro uma lição de extraordinário valor que irá sobreviver aos ataques radicais de críticos recentes que propõem esquecêlo e o acusam de um niilismo dogmático e empobrecedor A lição do autor é que não temos nada mais o que esperar de um falso conhecimento objetivo nem das ilusões da subjetividade pura mas tudo o que aprender e compreender de uma arqueologia das práticas a medicina a biologia ou a economia política que fizeram de nós aquilo que somos De Michel Foucault leia também O nascimento da clínica A Coleção CAMPO TEÓRICO tem como objetivo publicar textos e análises que definam e explorem campos do conhecimento que vêm sofrendo profunda mudança conceitual como a epistemologia a história e a filosofia das ciências O programa da Coleção ao mesmo tempo em que procura fazer uma crítica às tendências empíricas mecanicistas e reducionistas de algumas correntes da história das idéias marcadamente manipuladoras da ciência e da sociedade propõe um conjunto de obras de autores que lançaram as bases da ciência moderna desde a revolução copernicana a física de Galileu e Newton até os teóricos da economia e da sociedade como Marx e os críticos da razão ocidental como Nietzsche e Freud Contemporaneamente esses cientistas e pensadores passam por um processo de redescoberta crítica e de releitura graças aos trabalhos de Lacan Koyré Canguilhem Althusser e Foucault entre outros em diversas áreas do conhecimento como a física a biologia o direito a medicina e a psicanálise redefinindo conceitos fundamentais e apontando para novas práticas políticas É portanto extremamente oportuno esta reedição da obra A Arqueologia do Saber de Michel Foucault que a EDITORA FORENSE UNIVERSITÁRIA coloca ao alcance dos estudiosos e do público em geral PROVA DISCIPLINA Filosofia e Educação Epistemologia Profa Dra Zuleika Aparecida Claro Piassa Este instrumento de avaliação é composto de 12 questões que abordam os objetivos e conteúdos abordados durante a Disciplina Filosofia e Educação Epistemologia e possui valor 70 Para sua realização você pode utilizar seus registros escritos bem como os 3 textos bases que estudamos Responda as questões utilizando de sua redação pessoal e ou trechos do próprio autor para confirmar as suas afirmações e quando utilizálos não esqueça de colocar entre aspas e o número da página 1 Conceitue Epistemologia e relacione a importância de seu estudo para os pedagogos em formação e atuação 6 pontos Epistemologia é o ramo da filosofia que estuda a origem a natureza e os limites do conhecimento buscando entender como ele é adquirido e validado Para pedagogos o estudo da epistemologia é crucial pois oferece uma base teórica para a prática educacional permitindo que compreendam melhor os processos de aprendizagem e os fundamentos do conhecimento que transmitem aos alunos Além disso promove o desenvolvimento de uma postura crítica e reflexiva essencial para avaliar as metodologias pedagógicas e adaptar o ensino às diversas formas de aquisição de conhecimento contribuindo para uma prática educacional mais eficaz e consciente 2 Leia o texto a seguir A Escola Municipal Aprende Quem Quiser está situada em uma cidade interiorana de um Estado brasileiro mediamente desenvolvido É reconhecida por ser uma escola de tradições Lá estudaram gerações das famílias que compõem a população da cidade que hoje que cresceu e tem mais de meio milhão de habitantes A cidade data do início do século XX e a história está presente em suas paredes de madeira nas ruas estreitas na parte central que aliás deixa o trânsito bem caótico durante a semana A cidade intercala poucos prédios históricos e muitos prédios modernos e sua geografia retrata uma cidade que cresceu naturalmente sem um projeto prévio assim não é estranho encontrar áreas com obras arquitetônicas monumentais com vários andares em ruas estreitas e sem estacionamento A escola está situada em um bairro de classe média possui cerca de 1000 alunos mas foi construída no final da década de 1960 inicialmente para abrigar 300 por isso passou por várias reformas Oferta Educação Infantil e anos Iniciais do Ensino Fundamental Os professores possuem graduação e pósgraduação em nível de Especialização em sua maioria O currículo está organizado por disciplinas e cada turma tem 3 professores para os componentes curriculares sendo um para Português e Matemática e Ciências outro para História Geografia Religião e Artes e outro para Educação Física Em termos metodológicos no projeto político pedagógico afirma que a escola adota metodologia dialéticas ativas com a mediação do professor focada na apropriação dos conteúdos científicos e no desenvolvimento de competências e habilidades No entanto observando as salas de aulas vêse que os alunos estão na maior parte do tempo enfileirados copiando conteúdos do quadro às vezes lendo resolvendo uma apostila de algoritmos continhas antiga contendo centenas de exercícios logicamente agrupados que vão desde os mais básicos até os mais complexos Alguns professores ousam um pouco mais iniciando as aulas com questionamentos levando os estudantes a pensar refletir depois registrar seus pensamentos e por fim chegar a conclusões gerais Mas poderia se dizer que é o máximo a que chegam em termos de atividade no sentido da ação Duas vezes por semana tem Educação Física que os alunos amam e por causa disso se manifestarem indisciplina durante as aulas são ameaçados de ficarem na sala de aula de castigo no horário dessa aula A disciplina e a obediência tem um alto valor ético para o corpo docente e para os pais dos alunos dessa escola Os alunos são muito exigidos quanto ao desenvolvimento intelectual por isso tem grandes quantidades de tarefas para fazer com inúmeros exercícios apostilados o que acreditam os pais ajuda muito no aprendizado das crianças Os professores defendem que seu papel é despertar o interesse dos alunos em aprender Aqueles que não aprendem é porque possuem algum distúrbio ou dificuldade de aprendizagem e nesses casos aconselham os pais a levar em algum especialista A maioria se encontra alfabetizada ao final da primeira série A escola adota um método sintético de alfabetização denominado fônico que se baseia na identificação e no ensino do princípio alfabético ou seja na relação entre grafemas letras e fonemas sons Nele o aprendizado iniciase com as vogais seguido pelas consoantes com foco em como as letras representam sons específicos ajudando os alunos a decifrar palavras a partir desses sons A escola se orgulha de ter excelentes notas no IDEB A partir desse texto responda 3 A escola é uma escola tradicional Ela se apoia em uma concepção de aprendizagem inatista ou empirista Comprove com fatos ou trechos do texto A Escola Municipal Aprende Quem Quiser adota uma concepção empirista de aprendizagem como comprovado pelo trecho que descreve os alunos copiando conteúdos do quadro e resolvendo uma apostila com centenas de exercícios o que reflete a prática repetitiva Além disso o uso do método fônico que ensina a relação entre grafemas letras e fonemas sons também exemplifica a aprendizagem baseada na experiência sensorial e repetição 4 4 pontos 4 Busque no texto fatos que demonstram os itens solicitados a seguir e justifique sua resposta 16 pontos 4 cada a A estética cartesiana No texto a estética cartesiana pode ser observada no modo como a cidade é descrita com poucos prédios históricos e muitos prédios modernos Esse contraste reflete a ideia de organização e clareza que Descartes prezava onde se busca harmonia e racionalidade na construção e organização dos espaços apesar do caos do crescimento desordenado b O dualismo cartesiano O dualismo cartesiano que separa corpo e mente pode ser relacionado ao fato de a escola tratar a disciplina intelectual e a Educação Física de forma separada A valorização da disciplina e obediência mostra o foco no desenvolvimento mental enquanto as atividades físicas são tratadas como algo à parte e até uma forma de punição destacando essa divisão entre o corpo físico e a mente intelectual c O método cartesiano aplicado no contexto da educação O método cartesiano baseado na análise e decomposição dos problemas é aplicado na educação da escola através da organização dos conteúdos em centenas de exercícios logicamente agrupados indo dos mais simples aos mais complexos Isso reflete a ideia cartesiana de dividir as dificuldades em partes menores para resolvêlas de forma mais eficaz d A moral cartesiana A moral cartesiana pode ser identificada na forma como a escola e os pais valorizam a disciplina e a obediência como altos valores éticos Isso se relaciona com a terceira máxima de Descartes que sugere adaptarse às circunstâncias e manter firmeza de caráter especialmente em seguir as normas e práticas sociais consideradas mais adequadas pela comunidade 5 Cite duas consequências atuais do pensamento cartesiano que representam um problema para as atuais gerações resolverem 6 pontos Duas consequências do pensamento cartesiano que representam desafios para as gerações atuais são o dualismo mentecorpo e o excesso de racionalismo O dualismo que separa mente e corpo influencia até hoje áreas como a medicina e a educação onde essas dimensões são frequentemente tratadas de forma desconectada criando um problema já que o bemestar integral requer a abordagem conjunta de ambos Além disso o foco cartesiano na razão como única via confiável de conhecimento levou ao distanciamento das emoções e da intuição criando dificuldades nas relações sociais e nas tomadas de decisões onde a empatia e a inteligência emocional são essenciais 6 No PPP está escrito que a metodologia é dialética O que significa isso em termos pedagógicos4 pontos Em termos pedagógicos uma metodologia dialética significa que o processo de ensino e aprendizagem é construído por meio do diálogo e da interação entre professores e alunos onde há troca de ideias e confronto de diferentes pontos de vista para que a partir dessas discussões se chegue a um conhecimento mais profundo e crítico Essa abordagem valoriza o desenvolvimento do pensamento crítico e reflexivo dos alunos incentivandoos a questionar argumentar e revisar suas ideias com base nas interações que ocorrem no ambiente educacional 7 A obra A Arqueologia do Saber de Michel Foucault apresenta um inovador método de investigação nas ciências humanas denominado pelo autor de arqueologia ou método arqueológico Nesse livro Foucault explica o sentido da palavra arqueologia na busca de afastar o seu significado da ideia de algo do passado petrificado ou de outro tempo Ele enfatiza que o papel do método arqueológico é analisar o arquivo ou seja analisar o domínio das coisas ditas Explique o sentido desta expressão para Foucault 4 pontos Para Michel Foucault a expressão o domínio das coisas ditas referese ao conjunto de discursos que circulam em uma determinada época e contexto ou seja tudo o que foi verbalizado escrito ou registrado como conhecimento O método arqueológico busca analisar esses discursos não apenas como fatos isolados ou estáticos do passado mas como práticas que constroem saberes sujeitos e verdades Foucault não se preocupa apenas com o conteúdo dos discursos mas também com as regras relações de poder e condições que permitem que certas coisas sejam ditas e aceitas como verdade em um dado momento histórico 8 Elenque e defina com suas palavras as formações discursivas apresentadas por Foucault em Arqueologia do saber positividade saber ciência ideologia episteme 15 pontos 3 cada Foucault em A Arqueologia do Saber apresenta diferentes formações discursivas A positividade referese às condições que permitem que certos discursos sejam aceitos como verdadeiros em determinado período histórico ou seja o que legitima um discurso como válido O saber é o conjunto de práticas e discursos que constituem o conhecimento sobre um determinado objeto não se limitando apenas à ciência mas englobando outras formas de conhecimento aceitas e reproduzidas na sociedade A ciência por sua vez é uma forma de saber que adquire um status privilegiado devido às suas metodologias rigorosas e à busca por verdades universais embora Foucault questione sua pretensa neutralidade A ideologia é vista como um sistema de ideias que mascara as relações de poder presentes nos discursos funcionando para manter uma determinada ordem social Por fim a episteme é o conjunto de saberes e práticas que define as condições de possibilidade para o conhecimento em um determinado período histórico sendo a estrutura que molda como o saber é produzido e legitimado 9 Observe o trecho Foucault quer nos dizer que pensamos a partir de regras que estão socialmente dissolvidas que nosso pensamento obedece em cada época histórica a uma ordem que existe fora da nossa existência e que consequentemente existem coisas que são impossíveis de pensar mas que podem vir a se tornar possíveis De fato se analisarmos o passado podemos verificar momentos de ruptura no pensamento que permitem o surgimento de novas formas de pensamento que até então eram impossíveis de serem pensados coisas que não eram possíveis de serem ditas mas que hoje são Em cada época encontramos ideias que lhes caracterizam e quem nem sempre se sabe sua origem Daniel Luiz Gonçalves cidade 2018 A qual formação discursiva o autor se refere Explique5 pontos O autor está se referindo à episteme uma formação discursiva apresentada por Foucault A episteme é o conjunto de saberes e práticas que definem as condições de possibilidade para o conhecimento em um determinado período histórico Ela molda a forma como as pessoas pensam e falam estabelecendo os limites do que pode ser pensado e dito em cada época Isso significa que as ideias e conceitos de uma época não surgem de forma isolada mas estão condicionados por um conjunto de regras invisíveis que estruturam o conhecimento permitindo ou impossibilitando determinados pensamentos O texto destaca as rupturas no pensamento que são momentos em que a episteme muda tornando possíveis ideias que antes eram impensáveis 10 Explique a frase A ideologia não dispensa a ciência ao contrário ela precisa da ciência para se estabelecer 3 pontos A frase A ideologia não dispensa a ciência ao contrário ela precisa da ciência para se estabelecer significa que a ideologia utiliza a ciência como uma ferramenta para se legitimar e fortalecer Embora a ciência busque um conhecimento objetivo suas descobertas podem ser interpretadas e manipuladas de forma ideológica para apoiar determinados interesses ou manter uma determinada ordem social Assim a ciência confere à ideologia uma aparência de verdade e neutralidade tornandoa mais convincente e aceitável dentro de uma sociedade 11 Como diz Paul Ricoeur Não existe lugar não ideológico Isso quer dizer que todos nós compartilhamos de uma ideologia Nesse sentido quando é que a ideologia se torna um problema a ser investigado pelas ciências humanas 3 pontos A ideologia se torna um problema a ser investigado pelas ciências humanas quando ela atua de maneira a mascarar as relações de poder distorcendo a realidade e influenciando a percepção das pessoas de forma inconsciente Isso ocorre quando a ideologia passa a naturalizar desigualdades justificar injustiças ou limitar o pensamento crítico impedindo que indivíduos ou grupos questionem as estruturas sociais vigentes Nesse contexto as ciências humanas têm a tarefa de desmascarar essas ideologias expondo como elas operam e influenciam o comportamento as crenças e as instituições com o objetivo de promover uma compreensão mais crítica e consciente da sociedade 12 Considerando que vivemos em uma sociedade dividida em classes e que estamos em meio a uma luta pela hegemonia qual deve ser o posicionamento do Pedagogo diante da Ideologia que se manifestas nas práticas discursivas educacionais currículos livros didáticos manuais etc 4 pontos O pedagogo deve adotar uma postura crítica e reflexiva diante da ideologia que se manifesta nas práticas discursivas educacionais como currículos livros didáticos e manuais Isso implica analisar como essas ferramentas podem reforçar desigualdades sociais estereótipos ou visões de mundo que favorecem certos grupos em detrimento de outros O pedagogo deve estar atento para identificar e questionar essas ideologias promovendo uma educação que valorize a pluralidade de perspectivas o pensamento crítico e a justiça social Seu papel é fomentar a conscientização dos alunos sobre essas influências ideológicas incentivando a autonomia intelectual e a capacidade de refletir sobre as estruturas de poder que permeiam a sociedade e a educação 13 Faça uma avaliação geral da disciplina colocando suas impressões pessoais e sugestões Considere a Conhecimento da docente b Forma de abordagem dos conteúdos didática c O nível de desafio d Sua participação e seu comprometimento com sua aprendizagem o que dificultou o que facilitou etc e Sugestões A disciplina apresentou uma abordagem sólida e bem estruturada Em relação ao conhecimento da docente foi evidente sua ampla compreensão dos temas discutidos o que trouxe profundidade para as aulas A forma de abordagem dos conteúdos foi didática e clara o que facilitou o entendimento especialmente com o uso de exemplos práticos e atuais O nível de desafio foi adequado promovendo reflexões críticas e exigindo um bom grau de leitura e análise o que enriqueceu o processo de aprendizagem Quanto à minha participação e comprometimento acredito que mantive um envolvimento ativo apesar de alguns desafios relacionados à gestão de tempo e à complexidade de alguns textos O que mais facilitou foi a clareza com que os temas foram abordados e o espaço para debate Por outro lado a carga de leitura densa em determinados momentos foi um fator que dificultou um pouco exigindo maior dedicação Como sugestões talvez incluir mais atividades práticas ou discussões em grupo para aplicar as teorias em situações reais ajudaria a consolidar melhor o conteúdo Foi uma honra ter sido sua professora fião gravo nomes infelizmente um problema neurológico que carece de investigação mas seus rostos ficarão em minha memória E espero do fundo do coração que eu tenha deixado pelo menos um ponto de interrogação em suas mentes aprendizes Um grande abraço em cada um de vocês Zu
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Texto de pré-visualização
FOUCAULT M A arqueologia do saberMichel Foucault tradução de Luiz Felipe Baeta Neves 7ed Rio de Janeiro Forense Universitária 2008 P 992019 Para entender o texto final de Arqueologia do saber algumas explicações Para entender Arqueologia do saber seria interessante que pudéssemos ler outros três livros que foram produzidos anteriormente Como não temos este tempo nem se quer de ler o livro todo separei algumas ideias que servirão de base para a leitura O primeiro livro é História da Loucura 1961 Foucault descobre em suas investigações que o objeto loucura se constituiu na relação de vários discursos advindos da igreja da medicina da economia da tradição e não necessariamente das descobertas científicas Nesta obra o autor também demostra que o objeto loucura nasceu de rupturas de necessidades históricas que atravessaram a própria ciência e a história O segundo livro Nascimento da Clínica 1963 Foucault percebe não é a evolução da ciência no conhecimento do corpo que promove o nascimento da medicina mas os discursos advindos de várias fontes que trataram de definir o que é doença Discursos esses que estão perpassados por relações de poder Por exemplo homossexualidade era vista como doença até 17111990 quando a OMS a retirou do catálago de doenças O terceiro livro é As palavras e as coisas 1966 investiga como as ciências humanas produzem seus saberes A partir de Kant o homem se vê como objeto de si mesmo O homem passa a se representar a si mesmo em sua mente Esta representação se dá com palavras mas referemse à sua vida corpórea à sua existência em determinadas condições à sociedade onde realiza seu trabalho a produção e distribuição dos frutos desse trabalho Em cada um desses contextos as palavras adquirem significados diferentes e produzem representações diferentes Ex para o judaísmo mulher significa propriedade e assim é tratada Na legislação ocidental atual é cidadã de direitos iguais que deve ser respeitada em suas singularidades como o fato de ser mãe etc Arqueologia do saber Foucault busca um método de investigação para entender a organização interna dos discursos que produzem os sujeitos os objetos e os saberes que são produzidos em relações de poder e ao mesmo tempo produzem e reproduzem poderes O interesse de Foucault está nos discursos e suas variações já que para o autor não existem verdades existem discursos que em determinados momentos assumem o estatuto de verdade Foucault quer entender como aquilo que as pessoas dizem ou disseram são elevados ao estatuto de verdade e tomados como conhecimento Nesse livro Foucault entende que os sujeitos e os objetos problemas que estudamos são construídos pela linguagem Ex o corpo só passou a ser objeto de estudo quando alguém na passagem da idade média para a moderna decretou sua separação da mente e também a partir da ideia de que saúde e doença possuem íntima relação Desse discurso surge a figura daquele que cuida do corpo são o professor e do corpo doente o médico O médico e o professor passam a elaborar práticas e dizer coisas sobre o corpo que assumem o status de verdade A ciência colabora mas não é a única condição para a validade desses discursos Os elementos a serem investigados são Enunciados frases ou proposições ideiasteorias ligadas em um campo de saber que são objetivas reconhecidas por um coletivo ditas e reproduzidas como verdades a serem confirmadas ou refutadas Discursos conjunto de enunciados apoiados em uma mesma formação discursiva campo de saber ou conhecimento Toda formação discursiva está ligada a uma instituição que o legitima Os discursos se constroem nas práticas sociais no viver no se relacionar e são influenciados pelas relações de poder Práticas discursivas conjunto de regras que definem o que pode ser dito de que forma por quem é a relação entre o discurso e a materialidade que o sustenta Saberes são o conjunto de discursos enunciados práticas discursivas relacionadas a um objeto que são em até certo ponto independentes das ciências apesar de se utilizarem dela positividade tudo que existe capaz de produzir verdades PROVA DISCIPLINA Filosofia e Educação Epistemologia Profa Dra Zuleika Aparecida Claro Piassa Este instrumento de avaliação é composto de 12 questões que abordam os objetivos e conteúdos abordados durante a Disciplina Filosofia e Educação Epistemologia e possui valor 70 Para sua realização você pode utilizar seus registros escritos bem como os 3 textos bases que estudamos Responda as questões utilizando de sua redação pessoal e ou trechos do próprio autor para confirmar as suas afirmações e quando utilizálos não esqueça de colocar entre aspas e o número da página 1 Conceitue Epistemologia e relacione a importância de seu estudo para os pedagogos em formação e atuação 6 pontos 2 Leia o texto a seguir A Escola Municipal Aprende Quem Quiser está situada em uma cidade interiorana de um Estado brasileiro mediamente desenvolvido É reconhecida por ser uma escola de tradições Lá estudaram gerações das famílias que compõem a população da cidade que hoje que cresceu e tem mais de meio milhão de habitantes A cidade data do início do século XX e a história está presente em suas paredes de madeira nas ruas estreitas na parte central que aliás deixa o trânsito bem caótico durante a semana A cidade intercala poucos prédios históricos e muitos prédios modernos e sua geografia retrata uma cidade que cresceu naturalmente sem um projeto prévio assim não é estranho encontrar áreas com obras arquitetônicas monumentais com vários andares em ruas estreitas e sem estacionamento A escola está situada em um bairro de classe média possui cerca de 1000 alunos mas foi construída no final da década de 1960 inicialmente para abrigar 300 por isso passou por várias reformas Oferta Educação Infantil e anos Iniciais do Ensino Fundamental Os professores possuem graduação e pósgraduação em nível de Especialização em sua maioria O currículo está organizado por disciplinas e cada turma tem 3 professores para os componentes curriculares sendo um para Português e Matemática e Ciências outro para História Geografia Religião e Artes e outro para Educação Física Em termos metodológicos no projeto político pedagógico afirma que a escola adota metodologia dialéticas ativas com a mediação do professor focada na apropriação dos conteúdos científicos e no desenvolvimento de competências e habilidades No entanto observando as salas de aulas vêse que os alunos estão na maior parte do tempo enfileirados copiando conteúdos do quadro às vezes lendo resolvendo uma apostila de algoritmos continhas antiga contendo centenas de exercícios logicamente agrupados que vão desde os mais básicos até os mais complexos Alguns professores ousam um pouco mais iniciando as aulas com questionamentos levando os estudantes a pensar refletir depois registrar seus pensamentos e por fim chegar a conclusões gerais Mas poderia se dizer que é o máximo a que chegam em termos de atividade no sentido da ação Duas vezes por semana tem Educação Física que os alunos amam e por causa disso se manifestarem indisciplina durante as aulas são ameaçados de ficarem na sala de aula de castigo no horário dessa aula A disciplina e a obediência tem um alto valor ético para o corpo docente e para os pais dos alunos dessa escola Os alunos são muito exigidos quanto ao desenvolvimento intelectual por isso tem grandes quantidades de tarefas para fazer com inúmeros exercícios apostilados o que acreditam os pais ajuda muito no aprendizado das crianças Os professores defendem que seu papel é despertar o interesse dos alunos em aprender Aqueles que não aprendem é porque possuem algum distúrbio ou dificuldade de aprendizagem e nesses casos aconselham os pais a levar em algum especialista A maioria se encontra alfabetizada ao final da primeira série A escola adota um método sintético de alfabetização denominado fônico que se baseia na identificação e no ensino do princípio alfabético ou seja na relação entre grafemas letras e fonemas sons Nele o aprendizado iniciase com as vogais seguido pelas consoantes com foco em como as letras representam sons específicos ajudando os alunos a decifrar palavras a partir desses sons A escola se orgulha de ter excelentes notas no IDEB A partir desse texto responda 3 A escola é uma escola tradicional Ela se apoia em uma concepção de aprendizagem inatista ou empirista Comprove com fatos ou trechos do texto 4 pontos 4 Busque no texto fatos que demonstram os itens solicitados a seguir e justifique sua resposta 16 pontos 4 cada a A estética cartesiana b O dualismo cartesiano c O método cartesiano aplicado no contexto da educação d A moral cartesiana 5 Cite duas consequências atuais do pensamento cartesiano que representam um problema para as atuais gerações resolverem 6 pontos 6 No PPP está escrito que a metodologia é dialética O que significa isso em termos pedagógicos4 pontos 7 A obra A Arqueologia do Saber de Michel Foucault apresenta um inovador método de investigação nas ciências humanas denominado pelo autor de arqueologia ou método arqueológico Nesse livro Foucault explica o sentido da palavra arqueologia na busca de afastar o seu significado da ideia de algo do passado petrificado ou de outro tempo Ele enfatiza que o papel do método arqueológico é analisar o arquivo ou seja analisar o domínio das coisas ditas Explique o sentido desta expressão para Foucault 4 pontos 8 Elenque e defina com suas palavras as formações discursivas apresentadas por Foucault em Arqueologia do saber positividade saber ciência ideologia episteme 15 pontos 3 cada 9 Observe o trecho Foucault quer nos dizer que pensamos a partir de regras que estão socialmente dissolvidas que nosso pensamento obedece em cada época histórica a uma ordem que existe fora da nossa existência e que consequentemente existem coisas que são impossíveis de pensar mas que podem vir a se tornar possíveis De fato se analisarmos o passado podemos verificar momentos de ruptura no pensamento que permitem o surgimento de novas formas de pensamento que até então eram impossíveis de serem pensados coisas que não eram possíveis de serem ditas mas que hoje são Em cada época encontramos ideias que lhes caracterizam e quem nem sempre se sabe sua origem Daniel Luiz Gonçalves cidade 2018 A qual formação discursiva o autor se refere Explique5 pontos 10 Explique a frase A ideologia não dispensa a ciência ao contrário ela precisa da ciência para se estabelecer 3 pontos 11 Como diz Paul Ricoeur Não existe lugar não ideológico Isso quer dizer que todos nós compartilhamos de uma ideologia Nesse sentido quando é que a ideologia se torna um problema a ser investigado pelas ciências humanas 3 pontos 12 Considerando que vivemos em uma sociedade dividida em classes e que estamos em meio a uma luta pela hegemonia qual deve ser o posicionamento do Pedagogo diante da Ideologia que se manifestas nas práticas discursivas educacionais currículos livros didáticos manuais etc 4 pontos 13 Faça uma avaliação geral da disciplina colocando suas impressões pessoais e sugestões Considere a Conhecimento da docente b Forma de abordagem dos conteúdos didática c O nível de desafio d Sua participação e seu comprometimento com sua aprendizagem o que dificultou o que facilitou etc e Sugestões Foi uma honra ter sido sua professora Não gravo nomes infelizmente um problema neurológico que carece de investigação mas seus rostos ficarão em minha memória E espero do fundo do coração que eu tenha deixado pelo menos um ponto de interrogação em suas mentes aprendizes Um grande abraço em cada um de vocês Zu RENÉ DESCARTES DISCURSO DO MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1 O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada pois cada qual pensa estar tão bem provido dele que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar têlo mais do que o têm E não é verossímil que todos se enganem a tal respeito mas isso antes testemunha que o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso que é propriamente o que se denomina o bom senso ou a razão é naturalmente igual em todos os homens e destarte que a diversidade de nossas opiniões não provém do fato de serem uns mais racionais do que outros mas somente de conduzirmos nossos pensamentos por vias diversas e não considerarmos as mesmas coisas Pois não é suficiente ter o espírito bom o principal é aplicálo bem As maiores almas são capazes dos maiores vícios tanto quanto das maiores virtudes e os que só andam muito lentamente podem avançar muito mais se seguirem sempre o caminho reto do que aqueles que correm e dele se distanciam 2 Quanto a mim jamais presumi que meu espírito fosse em nada mais perfeito do que os do comum amiúde desejei mesmo ter o pensamento tão rápido ou a imaginação tão nítida e distinta ou a memória tão ampla ou tão presente quanto alguns outros E não sei de quaisquer outras qualidades exceto as que servem à perfeição do espírito pois quanto à razão ou ao senso posto que é a única coisa que nos torna homens e nos distingue dos animais quero crer que existe inteiramente em cada um e seguir nisso a opinião comum dos filósofos que dizem não haver mais nem menos senão entre os acidentes e não entre as formas ou naturezas dos indivíduos de uma mesma espécie2 3 Mas não temerei dizer que penso ter tido muita felicidade de me haver encontrado desde a juventude em certos caminhos que me conduziram a considerações e máximas de que formei um método pelo qual me parece que eu tenha meio de aumentar gradualmente meu conhecimento e de alçálo pouco a pouco ao mais alto ponto a que a mediocridade de meu espírito e a curta duração de minha vida lhe permitam atingir3 Pois já colhi dele tais frutos que embora no juízo que faço de mim próprio eu procure pender mais para o lado da desconfiança do que para o da presunção e que mirando com um olhar de filósofo as diversas ações e empreendimentos de todos os homens não haja quase nenhum que não me pareça vão e inútil não deixo de obter extrema satisfação do futuro que se entre as ocupações dos homens puramente homens4 há alguma que seja solidamente boa e importante ouso crer que é aquela que escolhi 4 Todavia pode acontecer que me engane e talvez não passe de um pouco de cobre e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes Sei como estamos sujeitos a nos equivocar no que nos tange e como também nos devem ser suspeitos os juízos de nossos amigos quando são a nosso favor Mas estimaria muito mostrar neste discurso quais os caminhos que segui e representar nele a minha vida como num quadro para que cada qual possa julgála e que informado pelo comentário geral das opiniões emitidas a respeito dela seja este um novo meio de me instruir que juntarei àqueles de que costumo me utilizar 5 Assim o meu desígnio não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razão mas apenas mostrar de que maneira me esforcei por conduzir a minha Os que se metem a dar preceitos devem considerarse mais hábeis do que aqueles a quem as dão e se falham na menor coisa são por isso censuráveis Mas não propondo este escrito senão como uma história ou se o preferirdes como uma fábula na qual entre alguns exemplos que se podem imitar se encontrarão talvez também muitos outros que se terá razão de não seguir espero que ele será útil a alguns sem ser nocivo a ninguém e que todos me serão gratos por minha franqueza 6 Fui nutrido nas letras5desde a infância e por me haver persuadido de que por meio delas se podia adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que é útil à vida sentia extraordinário desejo de aprendêlas Mas logo que terminei esse curso de estudos ao cabo do qual se costuma ser recebido na classe dos doutos mudei inteiramente de opinião Pois me achava enleado em tantas dúvidas e erros que me parecia não haver obtido outro proveito procurando instruirme senão o de ter descoberto cada vez mais a minha ignorância 2 É acidente o que pertence a um ser sem pertencer à sua essência Os filósofos designam como sempre em Descartes os escolásticos 3 Cf a definição de sabedoria assimilada à ciência no Prefácio dos Princípios O perfeito conhecimento de todas as coisas que o homem pode saber tanto para a conduta da vida quanto para a conservação da saúde e a invenção de todas as artes progresso que penso já ter feito na busca da verdade e de conceber tais esperanças para o 4 Os homens puramente homens são homens considerados ao nível da exclusiva luz natural abstraindose qualquer assistência que Deus possa proporcionarlhes É doutrina constante em Descartes que o filósofo deva deixar ao teólogo toda investigação do sobrenatural Para o filósofo basta considerar o homem na medida em que nas coisas naturais só depende de si e eu de meu lado escrevi minha filosofia de modo que possa ser recebida em toda parte mesmo entre os turcos e que eu não cause escândalo a ninguém Col com Burman AT VI 550 Não devemos submeter a teologia a raciocínios 5 Isto é a Gramática a História a Poesia a Retórica E no entanto estivera numa das mais célebres escolas da Europa6 onde pensava que deviam existir homens sapientes se é que existiam em algum lugar da Terra Aprendera aí tudo o que os outros aprendiam e mesmo não me tendo contentado com ciências que nos ensinavam percorrera todos os livros que tratam daquelas que são consideradas as mais curiosas e as mais raras que vieram a cair em minhas mãos Além disso eu conhecia os juízos que os outros faziam de mim e não via de modo algum que me julgassem inferior a meus condiscípulos embora entre eles houvesse alguns já destinados a preencher os lugares de nossos mestres E enfim o nosso século pareciame tão florescente e tão fértil em bons espíritos como qualquer dos precedentes O que me levava a tomar a liberdade de julgar por mim todos os outros e de pensar que não existia doutrina no mundo que fosse tal como dantes me haviam feito esperar 7 Não deixava todavia de estimar os exercícios com os quais se ocupam nas escolas Sabia que as línguas que nelas se aprendem são necessárias ao entendimento dos livros antigos que a gentileza das fábulas desperta o espírito que as realizações memoráveis das histórias o alevantam e que sendo lidas com discrição ajudam a formar o juízo que a leitura de todos os bons livros é igual a uma conversação com as pessoas mais qualificadas dos séculos passados que foram seus autores e até uma conversação premeditada na qual eles nos revelam tãosomente os melhores de seus pensamentos que a eloqüência tem forças e belezas incomparáveis que a poesia tem delicadezas e ternuras muito encantadoras que as Matemáticas têm invenções bastante sutis e que podem servir muito tanto para contentar os curiosos quanto para facilitar todas as artes e diminuir o trabalho dos homens que os escritos que tratam dos costumes contêm muitos ensinamentos e muitas exortações à virtude que são muito úteis que a Teologia ensina a ganhar o céu que a Filosofia dá meio de falar com verossimilhança de todas as coisas e de se fazer admirar pelos menos eruditos que a Jurisprudência a Medicina e as outras ciências trazem honras e riquezas àqueles que as cultivam e enfim que é bom têlas examinado a todas até mesmo as mais supersticiosas e as mais falsas a fim de conhecer lhes o justo valor e evitar ser por elas enganado 6 O colégio dos jesuítas de La Flèche fundado em 1604 onde Descartes entrou em 1606 Descartes nunca depreciou La Flèche como pretende a lenda permanecendo sempre em bons termos com seus mestres Assim a excelência do ensino em La Flèche só acusa melhor ainda a insuficiência da tradição cultural 8 Mas eu acreditava já ter dedicado bastante tempo às línguas e mesmo também à leitura dos livros antigos às suas histórias e às suas fábulas Pois quase o mesmo que conversar com os de outros séculos é o viajar É bom saber algo dos costumes de diversos povos a fim de que julguemos os nossos mais sãmente e não pensemos que tudo quanto é contra os nossos modos é ridículo e contrário à razão como soem proceder os que nada viram Mas quando empregamos demasiado tempo em viajar acabamos tornandonos estrangeiros em nossa própria terra e quando somos demasiado curiosos das coisas que se praticavam nos séculos passados ficamos ordinariamente muito ignorantes das que se praticam no presente Além do mais as fábulas fazem imaginar como possíveis muitos eventos que não o são e mesmo as histórias mais fiéis se não mudam nem alteram o valor das coisas para tornálas mais dignas de serem lidas ao menos omitem quase sempre as circunstâncias mais baixas e menos ilustres de onde resulta que o resto não parece tal qual é e que aqueles que regulam os seus costumes pelos exemplos que deles tiram estão sujeitos a cair nas extravagâncias dos paladinos de nossos romances e a conceber desígnios que ultrapassam suas forças7 9 Eu apreciava muito a eloqüência e estava enamorado da poesia mas pensava que uma e outra fossem dons do espírito mais do que frutos do estudo Aqueles cujo raciocínio é mais vigoroso e que melhor digerem8seus pensamentos a fim de tornálos claros e inteligíveis podem sempre persuadir melhor os outros daquilo que pro 32 põem ainda que falem apenas baixo bretão9e nunca tenham aprendido retórica E aqueles cujas invenções são mais agradáveis e que as sabem exprimir com o máximo de ornamento e doçura não deixariam de ser os melhores poetas ainda que a arte poética lhes fosse desconhecida10 7 Descartes dirá que as línguas a Geografia a História são adquiridas sem nenhum discurso da razão elas recorrem apenas à memória jamais à razão Essa distinção entre as ciências racionais e históricas é fundamental nos Clássicos será mantida por Kant 8 Digerem ordenam segundo o sentido primitivo do latim digerere cf Littré N do T 9 Sinal da pouca importância que Descartes concede à língua todo pensamento pode exprimirse em qualquer língua 10 As regras da arte não são de menosprezar mas em arte não há método e nela o aprendizado tem só uma pequena parte Este primado reconhecido à inspiração atesta a mutação ocorrida na condição do artista embora o século XVII ainda o denomine artesão 10 Compraziame sobretudo com as Matemáticas por causa da certeza e da evidência de suas razões mas não notava ainda seu verdadeiro emprego e pensando que serviam apenas às artes mecânicas espantavame de que sendo seus fundamentos tão firmes e tão sólidos não se tivesse edificado sobre eles nada de mais elevado11 Tal como ao contrário eu comparava os escritos dos antigos pagãos que tratam de costumes a palácios muito soberbos e magníficos erigidos apenas sobre a areia e a lama Erguem muito alto as virtudes e apresentamnas como as mais estimáveis entre todas as coisas que existem no mundo mas não ensinam bastante a conhecêlas e amiúde o que chamam com um nome tão belo não é senão uma insensibilidade ou um orgulho ou um desespero ou um parricídio12 11 Eu reverenciava a nossa Teologia e pretendia como qualquer outro ganhar o céu mas tendo aprendido como coisa muito segura que o seu caminho não está menos aberto aos mais ignorantes do que aos mais doutos e que as verdades reveladas que para lá conduzem estão acima de nossa inteligência não me ousaria submetêlas à fraqueza de meus raciocínios e pensava que para empreender seu exame e lograr êxito era necessário ter alguma extraordinária assistência do céu e ser mais do que homem 12 Da filosofia nada direi senão que vendo que foi cultivada pelos mais excelsos espíritos que viveram desde muitos séculos e que no entanto nela não se encontra ainda uma só coisa sobre a qual não se dispute e por conseguinte que não seja duvidosa eu não alimentava qualquer presunção de acertar melhor do que outros e que considerando quantas opiniões diversas sustentadas por homens doutos pode haver sobre uma e mesma matéria sem que jamais possa existir mais de uma que seja verdadeira reputava quase como falso tudo quanto era somente verossímil13 11 Parece que o ensino das Matemáticas era ministrado tendo sobretudo em mira as suas aplicações técnicas cartografia fortificações agrimensura Gilson observa que este caráter aplicado das matemáticas devia tornar ainda mais estranha a física aristotélica que era ensinada ao mesmo tempo Ele cita em apoio um texto antiaristotélico de Clavius autor de um compêndio de Matemática versado por Descartes 12 Alusão aos estóicos 13 Descartes visa aqui à disputa escolástica que se convertera em exercício escolar e ao hábito dos professores de citar e refutar as opiniões de diferentes autores Descartes que não haveria de apreciar os nossos manuais de Filosofia pensa que a verdade é uma só não havendo senão uma verdade de cada coisa e que ela compele todos os espíritos ao assentimento 13 Depois quanto às outras ciências na medida em que tomam seus princípios da Filosofia julgava que nada de sólido se podia construir sobre fundamentos tão pouco firmes E nem a honra nem o ganho que elas prometem eram suficientes para me incitar a aprendê las pois não me sentia de modo algum graças a Deus numa condição que me obrigasse a converter a ciência num mister para o alívio de minha fortuna e conquanto não fizesse profissão de desprezar a glória como um cínico fazia entretanto muito pouca questão daquela que eu só podia esperar adquirir com falsos títulos E enfim quanto às más doutrinas pensava já conhecer bastante o que valiam para não mais estar exposto a ser enganado nem pelas promessas de um alquimista nem pelas predições de um astrólogo nem pelas imposturas de um mágico nem pelos artifícios ou jactâncias de qualquer dos que fazem profissão de saber mais do que sabem 14 Eis por que tão logo a idade me permitiu sair da sujeição de meus preceptores deixei inteiramente o estudo das letras E resolvendome a não mais procurar outra ciência além daquela que poderia achar em mim próprio ou então no grande livro do mundo empreguei o resto de minha mocidade em viajar em ver cortes e exércitos em freqüentar gente de diversos humores e condições em recolher diversas experiências em provar a mim mesmo nos reencontros que a fortuna me propunha e por toda parte em fazer tal reflexão sobre as coisas que se me apresentavam que eu pudesse delas tirar algum proveito Pois afiguravaseme poder encontrar muito mais verdade nos raciocínios que cada qual efetua no que respeitante aos negócios que lhe importam e cujo desfecho se julgou mal deve puni lo logo em seguida do que naqueles que um homem de letras faz em seu gabinete sobre especulações que não produzem efeito algum e que não lhe trazem outra conseqüência senão talvez a de lhe proporcionarem tanto mais vaidade quanto mais distanciadas do senso comum por causa do outro tanto de espírito e artifício que precisou empregar no esforço de tornálas verossímeis14 E eu sempre tive um imenso desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso para ver claro nas minhas ações e caminhar com segurança nesta vida 15 É certo que enquanto me limitava a considerar os costumes dos outros homens pouco encontrava que me satisfizesse pois advertia neles quase tanta diversidade como a que notara anteriormente entre as opiniões dos filósofos De modo que o maior proveito que daí tirei foi que vendo uma porção de coisas que embora nos pareçam muito extravagantes e ridículas não deixam de ser comumente acolhidas e aprovadas por outros grandes povos aprendi a não crer demasiado firmemente em nada do que me fora inculcado só pelo exemplo e pelo costume e assim pouco a pouco livreime de muitos erros que podem ofuscar a nossa luz natural e nos tornar menos capazes de ouvir a razão 14 Notar bem que toda essa passagem constitui a mais brutal e desdenhosa condenação da Filosofia como disciplina e como profissão tal como a concebemos ainda atualmente Mas depois que empreguei alguns anos em estudar assim no livro do mundo e em procurar adquirir alguma experiência tomei um dia a resolução de estudar também a mim próprio e de empregar todas as forças de meu espírito na escolha dos caminhos que devia seguir15 O que me deu muito mais resultado pareceme do que se jamais tivesse me afastado de meu país e de meus livros SEGUNDA PARTE 1 Achavame então na Alemanha para onde fora atraído pela ocorrência das guerras que ainda não findaram e quando retornava da coroação do imperador16 para o exército o início do inverno me deteve num quartel onde não encontrando nenhuma freqüentação que me distraísse e não tendo além disso por felicidade quaisquer solicitudes ou paixões que me perturbassem permanecia o dia inteiro fechado sozinho num quarto bem aquecido onde dispunha de todo o vagar para me entreter com os meus pensamentos Entre eles um dos primeiros foi que me lembrei de considerar que amiúde não há tanta perfeição nas obras compostas de várias peças e feitas pela mão de diversos mestres como naquelas em que um só trabalhou Assim vêse que os edifícios empreendidos e concluídos por um só arquiteto costumam ser mais belos e melhor ordenados do que aqueles que muitos procuraram reformar fazendo uso de velhas paredes construídas para outros fins Assim essas antigas cidades que tendo sido no começo pequenos burgos tornaramse no decorrer do tempo grandes centros são ordinariamente tão mal compassadas em comparação com essas praças regulares traçadas por um engenheiro à sua fantasia numa planície que embora considerando seus edifícios cada qual à parte se encontre neles muitas vezes tanta ou mais arte que nos das outras todavia a ver como se acham arranjados aqui um grande ali um pequeno e como tornam as ruas curvas e desiguais dirseia que foi mais o acaso do que a vontade de alguns homens usando da razão que assim os dispôs E se se considerar que apesar de tudo sempre houve funcionários com o encargo de fiscalizar as construções dos particulares para tornálas úteis ao ornamento do público reconhecerseá realmente que é penoso trabalhando apenas nas obras de outrem fazer coisas muito acabadas 15 Após a experiência do mundo e a observação dos costumes a fundação da ciência Na realidade os cortes não foram inopinados Os anos de que nos fala Descartes não foram anos de preguiça intelectual cf G Milhaud Descartes Savant Les premiers essais scientifiques de Descartes 16 As festas da coroação celebraramse de julho a setembro de 1619 O episódio da poêle é em geral situado nos primeiros dias de novembro de 1619 Assim imaginei que os povos que tendo sido outrora semiselvagens e só pouco a pouco se tendo civilizado não elaboraram suas leis senão à medida que a incomodidade dos crimes e das querelas a tanto os compeliu não poderiam ser tão bem policiados17 como aqueles que a começar do momento em que se reuniram observaram as constituições de algum prudente legislador Tal como é bem certo que o estado da verdadeira religião cujas ordenanças só Deus fez deve ser incomparavelmente melhor regulamentado do que todos os outros E para falar das coisas humanas creio que se Esparta foi outrora muito florescente não o deveu à bondade de cada uma de suas leis em particular visto que muitas eram bastante alheias e mesmo contrárias aos bons costumes mas ao fato de que havendo sido inventadas apenas por um só tendiam todas ao mesmo fim E assim pensei que as ciências dos livros ao menos aquelas cujas razões são apenas prováveis e que não apresentam quaisquer demonstrações pois se compuseram e avolumaram pouco a pouco com opi 35 niões de mui diversas pessoas não se acham de modo algum tão próximas da verdade quanto os simples raciocínios que um homem de bom senso pode fazer naturalmente com respeito às coisas que se lhe apresentam E assim ainda pensei que como todos nós fomos crianças antes de sermos homens e como nos foi preciso por muito tempo sermos governados por nossos apetites e nossos preceptores que eram amiúde contrários uns aos outros e que nem uns nem outros nem sempre talvez nos aconselhassem o melhor é quase impossível que nossos juízos sejam tão puros ou tão sólidos como seriam se tivéssemos o uso inteiro de nossa razão desde o nascimento e se não tivéssemos sido guiados senão por ela18 2 É certo que não vemos em parte alguma lançaremse por terra todas as casas de uma cidade com o exclusivo propósito de refazêlas de outra maneira e de tornar assim suas ruas mais belas mas vêse na realidade que muitos derrubam as suas para reconstruí las sendo mesmo algumas vezes obrigados a fazêlo quando elas correm o perigo de cair por si próprias por seus alicerces não se estarem muito firmes A exemplo disso persuadi me de que verdadeiramente não seria razoável que um particular intentasse reformar um Estado mudandoo em tudo desde os fundamentos e derrubandoo para reerguêlo nem tampouco reformar o corpo das ciências ou a ordem estabelecida nas escolas para ensiná las mas que no tocante a todas as opiniões que até então acolhera em meu crédito o melhor a fazer seria 17 Policiados de policiar policer no sentido de amenizar os costumes pela civilização N do T 18 Desprezo pela erudição livresca oposição da razão à história da evidência conquistada por nós mesmos ao preconceito herdado da tradição estes leitmotiv cartesianos em parte alguma se acham melhor concentrados disporme de uma vez para sempre a retirarlhes essa confiança a fim de substituílas em seguida ou por outras melhores ou então pelas mesmas após têlas ajustado ao nível da razão E acreditei firmemente que por este meio lograria conduzir minha vida muito melhor do que se a edificasse apenas sobre velhos fundamentos e me apoiasse tãosomente sobre princípios de que me deixara persuadir em minha juventude sem ter jamais examinado se eram verdadeiros Pois embora notasse nesta tarefa diversas dificuldades não eram todavia irremediáveis nem comparáveis às que se encontram na reforma das menores coisas atinentes ao público Esses grandes corpos são demasiado difíceis de reerguer quando abatidos ou mesmo de suster quando abalados e suas quedas não podem deixar de ser muito rudes Pois quanto às suas imperfeições se as têm como a mera diversidade existente entre eles basta para assegurar que as têm numerosas o uso sem dúvida as suavizou e mesmo evitou e corrigiu insensivelmente um grande número às quais não se poderia tão bem remediar por prudência E enfim são quase sempre mais suportáveis do que o seria a sua mudança da mesma forma que os grandes caminhos que volteiam entre montanhas se tornam pouco a pouco tão batidos e tão cômodos à força de serem frequentados que é bem melhor seguilos do que tentar ir mais reto escalando por cima dos rochedos e descendo até o fundo dos precipícios 3 Eis por que não poderia de forma alguma aprovar esses temperamentos perturbadores e inquietos que não sendo chamados nem pelo nascimento nem pela fortuna ao manejo dos negócios públicos não deixam de neles praticar sempre em idéia alguma nova reforma E se eu pensasse haver neste escrito a menor coisa que pudesse tornarme suspeito de tal loucura ficaria muito pesaroso de ter aceito publicálo Nunca o meu intento foi além de procurar reformar meus próprios pensamentos e construir num terreno que é todo meu De maneira que se tendo minha obra me agradado bastante eu vos mostro aqui o seu modelo nem por isso quero aconselhar alguém a imitálo Aqueles a quem Deus melhor partilhou suas graças alimentarão talvez desígnios mais elevados mas temo bastante que já este seja ousado demais para muitos A simples resolução de se desfazer de todas as opiniões a que se deu antes crédito não é um exemplo que cada qual deva seguir e o mundo compõese quase tãosomente de duas espécies de espíritos aos quais ele não convém de modo algum A saber daqueles que crendose mais hábeis do que são não podem impedir se de precipitar seus juízos nem ter suficiente paciência para conduzir por ordem todos os seus pensamentos daí resulta que se houvessem tomado uma vez a liberdade de duvidar dos princípios que aceitaram e de se apartar do caminho comum nunca poderiam aterse à senda que é preciso tomar para ir mais direito e permaneceriam extraviados durante toda a vida depois daqueles que tendo bastante razão ou modéstia para julgar que são menos capazes de distinguir o verdadeiro do falso do que alguns outros pelos quais podem ser instruídos devem antes contentarse em seguir as opiniões desses outros do que procurar por si próprios outras melhores 4 E quanto a mim estaria sem dúvida no número destes últimos se eu tivesse tido um único mestre ou se nada soubesse das diferenças havidas em todos os tempos entre as opiniões dos mais doutos Mas tendo aprendido desde o Colégio que nada se poderia imaginar tão estranho e tão pouco crível que algum dos filósofos já não houvesse dito e depois ao viajar tendo reconhecido que todos os que possuem sentimentos muito contrários aos nossos nem por isso são bárbaros ou selvagens mas que muitos usam tanto ou mais do que nós a razão e tendo considerado o quanto um mesmo homem com o seu mesmo espírito sendo criado desde a infância entre franceses ou alemães tornase diferente do que seria se vivesse sempre entre chineses ou canibais e como até nas modas de nossos trajes a mesma coisa que nos agradou há dez anos e que talvez nos agrade ainda antes de decorridos outros dez nos parece agora extravagante e ridícula de sorte que são bem mais o costume e o exemplo que nos persuadem do que qualquer conhecimento certo e que não obstante a pluralidade das vozes não é prova que valha algo para as verdades um pouco difíceis de descobrir por ser bem mais verossímil que um só homem as tenha encontrado do que todo um povo eu não podia escolher ninguém cujas opiniões me parecessem dever ser preferidas às de outrem e achavame como compelido a tentar eu próprio conduzirme 5 Mas como um homem que caminha só e nas trevas resolvi ir tão lentamente e usar de tanta circunspecção em todas as coisas que mesmo se avançasse muito pouco evitaria pelo menos cair Não quis de modo algum começar rejeitando inteiramente qualquer das opiniões que porventura se insinuaram outrora em minha confiança sem que aí fossem introduzidas pela razão antes de despender bastante tempo em elaborar o projeto da obra que ia empreender e em procurar o verdadeiro método para chegar ao conhecimento de todas as coisas de que meu espírito fosse capaz19 6 Eu estudara um pouco sendo mais jovem entre as partes da Filosofia a Lógica e entre as Matemáticas a Análise dos geômetras20e a Álgebra três artes ou ciências que pareciam dever contribuir com algo para o meu desígnio 19 Houve portanto um intervalo entre as reflexões de novembro de 1619 e a elaboração do método Aliás este não resulta daquelas porém bem mais dos trabalhos matemáticos em curso construção por meio de uma parábola de todos os problemas dos sólidos do terceiro e quarto graus 20 A Análise designa aqui o método que consiste em supor conhecida a linha desconhecida em estabelecer as relações que a ligam a grandezas conhecidas até que se possa construíla a partir destas relações Entre os Antigos esse método válido para outros domínios além da Geometria se apresenta sob a forma geométrica 21 Leibniz foi o primeiro a zombar da banalidade deste método E é verdade que o Método está contido mais nas Regulae do que nessa apresentação esotérica Não obstante a leitura da Geometria o único dos três ensaios que segundo o Autor prova a validade do método mostra o quanto esta banalidade é aparente Separadas desta referência compreendidas como preceitos gerais as regras seriam na verdade pouco proveitosas é o que se esquece com demasiada freqüência Mas examinandoas notei que quanto à Lógica os seus silogismos e a maior parte de seus outros preceitos servem mais para explicar a outrem as coisas já se sabem ou mesmo como a arte de Lúlio para falar sem julgamento daquelas que se ignoram do que para aprendê las E embora ela contenha com efeito uma porção de preceitos muito verdadeiros e muito bons há todavia tantos outros misturados de permeio que são ou nocivos ou supérfluos que é quase tão difícil separálos quanto tirar uma Diana ou uma Minerva de um bloco de mármore que nem sequer está esboçado Depois com respeito à Análise dos Antigos e à Álgebra dos modernos além de se estenderem apenas a matérias muito abstratas e de não parecerem de nenhum uso a primeira permanece sempre tão adstrita à consideração das figuras que não pode exercitar o entendimento sem fatigar muito a imaginação e estevese de tal forma sujeito na segunda a certas regras e certas cifras que se fez dela uma arte confusa e obscura que embaraça o espírito em lugar de uma ciência que o cultiva Por esta causa pensei ser mister procurar algum outro método que compreendendo as vantagens desses três fosse isento de seus defeitos E como a multidão de leis fornece amiúde escusas aos vícios de modo que um Estado é bem melhor dirigido quando tendo embora muito poucas são estritamente cumpridas assim em vez desse grande número de preceitos de que se compõe a Lógica julguei que me bastariam os quatro seguintes21 desde que tomasse a firme e constante resolução de não deixar uma só vez de observálos 7 O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal isto é de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção22 e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente23 a meu espírito que eu não tivesse nenhuma ocasião de pôlo em dúvida 22 A precipitação consiste em julgar antes de ter chegado à evidência e a prevenção na persistência dos prejuízos de infância 23 Cf Princípios I 45 Denomino claro o que é presente e manifesto a um espírito atento e distinto o que é de tal modo que compreende em si apenas o que parece manifestamente a quem o considere como se deve 8 O segundo o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvêlas24 9 O terceiro o de conduzir por ordem meus pensamentos começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer para subir pouco a pouco como por degraus até o conhecimento dos mais compostos e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros25 10 E o último o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais que eu tivesse a certeza de nada omitir26 24 As palavras dificuldade que significa problema matemático e resolver devem remeternos à Geometria nomeadamente à primeira parte do Livro III onde se trata da resolução de equações mediante dois métodos quer realizando o produto de binômios compostos da incógnita menos cada uma das raízes quer quando não se encontra nenhum binômio que possa assim dividir a soma toda da equação proposta considerando a equação como o produto de dois polinômios método das indeterminadas Suporseá por exemplo que a equação do quarto grau é fruto da multiplicação de duas equações arbitrárias do segundo grau Não é pois questão somente de dividir mas também de decompor até os elementos mais simples cuja combinação engendrará solução 25 Constituição de uma série em que cada termo ficará colocado antes dos que dele dependem e depois daqueles de que ele depende A geometria na sua classificação das curvas ilustra a importância da ordem assim concebida as linhas mais compostas serão nela recebidas tanto como as mais simples contanto que possamos imaginálas descritas por um movimento contínuo ou por vários que se seguem e dos quais os últimos sejam inteiramente regrados pelos que os precedem pois mediante isso podemos sempre ter um conhecimento exato de sua medida AT VI 389 A ordem é o garante da homogeneidade de um domínio e da possibilidade de determinar com certeza os seres que ele inclui ou exclui Isto será válido tanto em Metafísica como em Geometria 26 Pode parecer que esta regra repita a segunda visto que a divisão em parcelas é a mesma coisa que a enumeração das variáveis Vuillemin que evoca esta dificuldade em seu livro Mathématiques et Métaphysique chez Descartes pág 137 pensa que tal regra é antes ilustrada pela enumeração de todos os casos possíveis para a solução de uma equação o que possibilita a escolha de uma solução mais geral Preceito reflexivo e regulador que versa sobre os métodos e não sobre os problemas 11 Essas longas cadeias de razões27 todas simples e fáceis28 de que os geômetras costumam servirse para chegar às suas mais difíceis demonstrações haviamme dado ocasião de imaginar que todas as coisas possíveis de cair sob o conhecimento dos homens seguemse umas às outras da mesma maneira e que contanto que nos abstenhamos somente de aceitar por verdadeira qualquer que não o seja e que guardemos sempre a ordem necessária para deduzilas umas das outras não pode haver quaisquer tão afastadas a que não se chegue por fim nem tão ocultas que não se descubram E não me foi muito penoso procurar por quais devia começar pois já sabia que haveria de ser pelas mais simples e pelas mais fáceis de conhecer e considerando que entre todos os que precedentemente buscaram a verdade nas ciências só os matemáticos puderam encontrar algumas demonstrações isto é algumas razões certas e evidentes não duvidei de modo algum que não fosse pelas mesmas que eles examinaram29 embora não esperasse disso nenhuma outra utilidade exceto a de que acostumariam o meu espírito a se alimentar de verdades e a não se contentar com falsas razões 27 Por razões devese entender proporções Como mostra Vuillemin no capítulo IV de sua obra a ciência cartesiana é uma teoria das proporções multiplicação divisão e extração de raiz são três meios de construção de uma quarta proporcional o grau de uma equação é definido pelo número de proporções requeridas entre as quantidades seu gênero pelo número mínimo dessas proporções em geral uma proporção contínua é o modelo da ordem Uma série como 36 612 1224 mostranos de que maneira estão envolvidas todas as questões referentes às proporções ou razões das coisas e em que ordem devem ser procuradas o que por si só constitui o essencial de toda ciência da matemática pura Reg VI AT X pág 385 28 Vuillemin observa que simples e fácil não são sinônimos É fácil o que é simples segundo nós e por assim dizer do ponto de vista psicológico É simples o que é primeiro pela ordem das coisas Op cit pág 118 O raciocínio mais fácil pedagógica e sinteticamente nem sempre é o mais simples segundo a ordem e analiticamente 29 Acrescentese para a claridade do texto que era preciso começar Cf Col com Burman A Matemática acostuma o espírito a reconhecer a verdade porque sempre encontramos nela raciocínios rigorosos que não encontraríamos alhures Em conseqüência uma vez afeito o espírito aos raciocínios matemáticos tê loemos tornado também próprio à pesquisa de outras verdades posto que em toda parte há somente uma e mesma forma de raciocinar AT VI 55051 Mas não foi meu intuito para tanto procurar aprender todas essas ciências particulares que se chamam comumente matemáticas30 e vendo que embora seus objetos sejam diferentes não deixam de concordar todas pelo fato de não conferirem nesses objetos senão as diversas relações ou proporções que neles se encontram pensei que valia mais examinar somente estas proporções em geral31 e supondoas apenas nos suportes que servissem para me tornar o seu conhecimento mais fácil mesmo assim sem restringilas de forma nenhuma a tais suportes a fim de poder aplicálas tão melhor em seguida a todos os outros objetos a que conviessem Depois tendo notado que para conhecêlas teria algumas vezes necessidade de considerálas cada qual em particular e outras vezes somente de reter ou de compreender várias em conjunto pensei que para melhor considerálas em particular deveria supôlas em linhas32 porquanto não encontraria nada mais simples nem que pudesse representar mais distintamente à minha imaginação e aos meus sentidos33 mas que para reter ou compreender várias em conjunto cumpria que eu as designasse por alguns signos os mais breves possíveis34 e que por esse meio tomaria de empréstimo o melhor da Análise geométrica e da Álgebra e corrigiria todos os defeitos de uma pela outra 30 Alusão à divisão escolástica das Matemáticas Matemáticas Puras Geometria Aritmética e Mistas Astronomia Música Óptica O que interessa a Descartes é o denominador comum dessas ciências a ordem e a medida ao passo que os Escolásticos desejavam separálas com respeito a seus objetos Particularização que impedia de distinguir como faz Descartes esta Matemática comum que requer apenas memória e a ciência matemática que não é bebida nos livros 31 Tratase portanto da mathesis universalis ciência inteiramente nova pela qual poderão ser resolvidos todos os problemas relativos a qual gênero de quantidade contínua ou discreta AT X 156 e primeiro fruto do método Na verdade o método foi concebido com vistas a ela Sobre esta interpenetração da mathesis e do método cf Regulae quarta regra Não se trata aqui de modo algum da geometria analítica como às vezes se pretende falsamente 32 Lineis rectis diz o texto latino A linha reta é escolhida como figuração universal da grandeza porque ela é o suporte mais flexível para a teoria das proporções pode representar um produto um quociente uma raiz bem como a soma ou uma diferença mas também porque permite evitar o incomensurável O fato de as letras algébricas representarem linhas e não números e em geral a desconfiança de Descartes para com a aritmética atesta o que Belaval denomina em Leibniz critique de Descartes a limitação da Álgebra pela Geometria Descartes libertouse do realismo intuitivo dos gregos por exemplo colocando que o resultado de todo cálculo sobre quantidades figuradas por grandezas retilíneas corresponde por sua vez a uma grandeza retilínea mas foi só pela metade 33 Indispensável ao entendimento em Matemática a imaginação a consideração das figuras não é entretanto senão uma auxiliar Cf Regulae regra catorze 34 A simplificação da Álgebra consiste em designar todas as grandezas por letras do alfabeto em representar as potências pelas cifras escritas em expoentes salvo para x2 que Descartes ainda escreve xx e o equacionamento pela igualdade a zero 12 E como efetivamente ouso dizer que a exata observação desses poucos preceitos que eu escolhera me deu tal facilidade de deslindar todas as questões às quais se estendem essas duas ciências que nos dois ou três meses que empreguei em examinálas tendo começado pelas mais simples e mais gerais e constituindo cada verdade que eu achava uma regra que me servia em seguida para achar outras não só consegui resolver muitas que julgava antes muito difíceis35 como me pareceu também perto do fim que podia determinar até mesmo naquelas que ignorava por quais meios e até onde seria possível resolvêlas36 No que não vos parecerei talvez muito vaidoso se considerardes que havendo somente uma verdade de cada coisa todo aquele que a encontrar sabe a seu respeito tanto quanto se pode saber e que por exemplo uma criança instruída na aritmética que haja realizado uma adição segundo as regras pode estar certa de ter achado quanto à soma que examinava tudo o que o espírito humano poderia achar Pois enfim o método que ensina a seguir a verdadeira ordem e a enumerar exatamente todas as circunstâncias daquilo que se procura contém tudo quanto dá certeza às regras da aritmética 13 Mas o que me contentava mais nesse método era o fato de que por ele estava seguro de usar em tudo minha razão se não perfeitamente ao menos o melhor que eu pudesse além disso sentia ao praticálo que meu espírito se acostumava pouco a pouco a conceber mais nítida e distintamente seus objetos e que não o tendo submetido a qualquer matéria particular prometia a mim mesmo aplicálo tão utilmente às dificuldades das outras ciências como o fizera com as da Álgebra Não que para tanto ousasse empreender primeiramente o exame de todas as que se me apresentassem pois isso mesmo seria contrário à ordem que ele prescreve Porém tendo notado que os seus princípios deviam ser todos tomados à Filosofia na qual não encontrava ainda quaisquer que fossem certos 35 Segundo G Milhaud Descartes Savant alusão à solução dos problemas dos sólidos do terceiro e quarto graus por meio da interseção de um círculo e de uma parábola Milhaud mostra a este propósito o quanto Descartes em 1620 é ainda o continuado da geometria grega Para resolver o que nós formulamos pela equação x3 a2 b Arquimedes introduzia uma segunda variável y tal que x2 ay o que significa procurar das médias proporcionais entre a e b Para solucionar este problema serviase de duas parábolas definidas por duas razões das ordenadas com as abscissas É este método que Descartes sistematiza para as equações do terceiro e do quarto graus ponto de partida do que será denominado mais tarde Geometria Analítica Descartes não toma pois aos gregos o método analítico como procedimento lógico mas antes o próprio conteúdo desta análise e seu gênio consiste mais em explorar os recursos de um processo já utilizado do que em descobrir este processo Tanto é que Descartes nunca se vangloriou da Geometria Analítica 36 Exemplo dessa determinação dos limites a classificação dos problemas do livro II da Geometria onde são delimitados os problemas resolúveis com régua e compasso com curvas mais complicadas mas que é possível construir de maneira exata e por um movimento contínuo enfim os problemas para os quais as curvas só podem ser construídas por pontos discretos as transcendentes como a espiral ou quadratriz que não pertencem de modo algum ao número das que penso que devem ser aqui recebidas porque as imaginamos descritas por dois movimentos separados e que não têm entre si nenhuma relação que se possa medir exatamente AT VI 390 pensei que seria mister antes de tudo procurar ali estabelecêlos e que sendo isso a coisa mais importante do mundo e onde a precipitação e a prevenção eram mais de recear não devia empreender sua realização antes de atingir uma idade bem mais madura do que a dos vinte e três anos que eu então contava e antes de ter despendido muito tempo em preparar me para isso tanto desenraizando de meu espírito todas as más opiniões que nele acolhera até essa época como acumulando muitas experiências para servirem em seguida de matéria aos meus raciocínios e exercitandome sempre no método que me prescrevera a fim de me firmar nele cada vez mais TERCEIRA PARTE 1 E enfim como não basta antes de começar a reconstruir a casa onde se mora derrubála ou proverse de materiais e arquitetos ou adestrarse a si mesmo na arquitetura nem além disso ter traçado cuidadosamente o seu projeto mas cumpre também terse provido de outra qualquer onde a gente possa alojarse comodamente durante o tempo em que nela se trabalha assim para não permanecer irresoluto37 em minhas ações enquanto a razão me obrigasse a sêlo em meus juízos e de não deixar de viver desde então de o mais felizmente possível formei para mim mesmo uma moral provisória que consistia apenas em três ou quatro máximas que eu quero vos participar38 2 A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país retendo constantemente a religião em que Deus me concedeu a graça de ser instruído desde a infância e governandome em tudo o mais segundo as opiniões mais moderadas e as mais distanciadas do excesso que fossem comumente acolhidas em prática pelos mais sensatos daqueles com os quais teria de viver Pois começando desde então a não contar para nada com as minhas próprias opiniões porque eu as queria submeter todas a exame estava certo de que o melhor a fazer era seguir as dos mais sensatos E embora haja talvez entre os persas e chineses homens tão sensatos como entre nós pareciame que o mais útil seria 37 Sobre a irresolução como o pior dos males cf Paixões art 60 e Cartas a Elisabeth de 1º de setembro de 1645 38 Col com Burman AT VI 552 O autor não gosta de escrever sobre a Moral mas viuse forçado por causa dos pedantes e gente desta espécie a adicionar estas regras de outro modo diriam dele que se trata de um homem sem religião sem fé e que com o seu método quer derrubar tudo isso pautarme por aqueles entre os quais teria de viver e que para saber quais eram verdadeiramente as suas opiniões devia tomar nota mais daquilo que praticavam do que daquilo que diziam não só porque na corrupção de nossos costumes há poucas pessoas que queiram dizer tudo o que acreditam mas também porque muitos o ignoram por sua vez pois sendo a ação do pensamento pela qual se crê uma coisa diferente daquela pela qual se conhece que se crê nela amiúde uma se apresenta sem a outra39 E entre várias opiniões igualmente aceites escolhia apenas as mais moderadas tanto porque são sempre as mais cômodas para a prática e verossimilmente40as melhores pois todo excesso costuma ser mau como também a fim de me desviar menos do verdadeiro caminho caso eu falhasse do que tendo escolhido um dos extremos fosse o outro o que deveria ter seguido E particularmente colocava entre os excessos todas as promessas pelas quais se cerceia em algo a própria liberdade41 Não que desaprovasse as leis que para remediar a inconstância dos espíritos fracos permitem quando se alimenta algum bom propósito ou mesmo para a segurança do comércio algum desígnio que seja apenas indiferente que se façam votos ou contratos que obriguem a perseverar nele mas porque não via no mundo nada que permanecesse sempre no mesmo estado e porque no meu caso particular como prometia a mim mesmo aperfeiçoar cada vez mais os meus juízos e de modo algum torná los piores pensaria cometer grande falta contra o bom senso se pelo fato de ter aprovado então alguma coisa me sentisse na obrigação de tomála como boa ainda depois quando deixasse talvez de sêlo ou quando eu cessasse de considerála tal 39 Existe uma diferença entre um juízo e o conhecimento deste juízo Assim eu não duvido de modo algum que cada um tenha em si a idéia de Deus pelo menos implícita não me surpreendo no entanto de ver homens que não sentem ter em si esta idéia ou melhor que dela não se apercebem absolutamente Cartas a Hyperaspistes agosto de 1641 40 A verossimilhança excluída da ordem teórica recobrará valor na ordem prática 41 Não será rebaixar os votos religiosos como pergunta Gilson encarálos como simples remédio para a inconstância dos espíritos fracos Notarseá aqui o desprezo de Descartes para com o engajamento sob todas as suas formas 3 Minha segunda máxima consistia em ser o mais firme e o mais resoluto possível em minhas ações e em não seguir menos constantemente do que se fossem muito seguras as opiniões mais duvidosas sempre que eu me tivesse decidido a tanto42 Imitando nisso os viajantes que vendose extraviados nalguma floresta não devem errar volteando ora para um lado ora para outro nem menos ainda deterse num sítio mas caminhar sempre o mais reto possível para um mesmo lado e não mudálo por fracas razões ainda que no começo só o acaso talvez haja determinado a sua escolha pois por este meio se não vão exatamente aonde desejam ao menos chegarão no fim a alguma parte onde verossimilmente estarão melhor do que no meio de uma floresta E assim como as ações da vida não suportam às vezes qualquer delonga é uma verdade muito certa que quando não está em nosso poder o discernir as opiniões mais verdadeiras devemos seguir as mais prováveis e mesmo ainda que não notemos em umas mais probabilidades do que em outras devemos não obstante decidirnos por algumas e considerálas depois não mais como duvidosas na medida em que se relacionam com a prática mas como muito verdadeiras e muito certas porquanto a razão que a isso nos decidiu se apresenta como tal43 E isto me permitiu desde então libertarme de todos os arrependimentos e remorsos que costumam agitar as consciências desses espíritos fracos e vacilantes que se deixam levar inconstantemente a praticar como boas as coisas que depois julgam más 4 Minha terceira máxima era a de procurar sempre antes vencer a mim próprio do que à fortuna e de antes modificar os meus desejos do que a ordem do mundo e em geral a de acostumarme a crer que nada há que esteja inteiramente em nosso poder exceto os nossos pensamentos de sorte que depois de termos feito o melhor possível no tocante às coisas que nos são exteriores tudo em que deixamos de nos sair bem é em relação a nós absolutamente impossível E só isso me parecia suficiente para impedirme no futuro de desejar algo que eu não pudesse adquirir e assim para me tornar contente Pois inclinando se a nossa vontade naturalmente a desejar só aquelas coisas que nosso entendimento lhe representa de alguma forma como possíveis é certo que se considerarmos todos os 42 A fim de evitar um malentendido Descartes formulará esta regra de maneira mais precisa Não agir menos constantemente segundo as opiniões que julgamos duvidosas quando consideramos não haver outras que soubéssemos que aquelas são as melhores A XXX março de 1638 Não se trata portanto de um voluntarismo cego além do que relaciono principalmente esta regra às ações da vida que não sofrem qualquer delonga e me sirvo dela apenas provisoriamente 43 Tudo se passa como se essas opiniões fossem muito verdadeiras e para nós elas o são efetivamente visto que não pudemos encontrar outras melhores bens que se acham fora de nós como igualmente afastados de nosso poder não lamentaremos mais a falta daqueles que parecem deverse ao nosso nascimento quando deles formos privados sem culpa nossa do que lamentamos não possuir os reinos da China ou do México e que fazendo como se diz da necessidade virtude não desejaremos mais estar sãos estando doentes ou estar livres estando na prisão do que desejamos ter agora corpos de uma matéria tão pouco corruptível quanto os diamantes ou asas para voar como as aves Mas confesso que é preciso um longo exercício e uma meditação amiúde reiterada para nos acostumarmos a olhar por este ângulo todas as coisas e creio que é principalmente nisso que consistia o segredo desses filósofos44 que puderam outrora subtrairse ao império da fortuna e malgrado as dores e a pobreza disputar felicidade aos seus deuses Pois ocupandose incessantemente em considerar os limites que lhes eram prescritos pela natureza persuadiramse tão perfeitamente de que nada estava em seu poder além dos seus pensamentos que só isso bastava para impedilos de sentir qualquer afecção por outras coisas e dispunham deles tão absolutamente que tinham neste caso especial certa razão de se julgarem mais ricos mais poderosos mais livres e mais felizes que quaisquer outros homens os quais não tendo esta filosofia por mais favorecidos que sejam pela natureza e pela fortuna jamais dispõem assim de tudo quanto querem45 5 Enfim para a conclusão dessa moral decidi passar em revista as diversas ocupações que os homens exercem nesta vida para procurar escolher a melhor e sem que pretenda dizer nada sobre as dos outros pensei que o melhor a fazer seria continuar naquela mesma em que me achava isto é empregar toda a minha vida em cultivar minha razão e adiantarme o mais que pudesse no conhecimento da verdade segundo o método que me prescrevera Eu sentira tão extremo contentamento desde quando começara a servirme deste método que não acreditava que nesta vida se pudessem receber outros mais doces nem mais inocentes e descobrindo todos os dias por seu meio algumas verdades que me pareciam assaz importantes e comumente ignoradas pelos outros homens a satisfação que isso me dava enchia de tal modo meu espírito que tudo o mais não me tocava Além do que as três máximas precedentes não se baseavam senão no meu intuito de 44 Filósofos estóicos N do T 45 A respeito do acento estóico da passagem e do destino desta regra na moral definitiva cf Cartas a Elisabeth de continuar a me instruir pois tendo Deus concedido a cada um de nós alguma luz para discernir o verdadeiro do falso não julgaria dever contentarme um só momento com as opiniões de outrem se não me propusesse empregar o meu próprio juízo em examinálas quando fosse tempo46 e não saberia isentarme de escrúpulos ao seguilas se não esperasse não perder com isso ocasião alguma de encontrar outras melhores caso as houvesse E enfim não saberia limitar os meus desejos nem estar contente se não tivesse trilhado um caminho pelo qual pensando estar seguro da aquisição de todos os conhecimentos de que fosse capaz julgava estar seguro da aquisição de todos os verdadeiros bens que alguma vez viessem a estar em meu alcance tanto mais que não se inclinando a nossa vontade a seguir ou fugir a qualquer coisa senão conforme o nosso entendimento lha represente como boa ou má basta bem julgar para bem proceder e julgar o melhor possível para proceder também da melhor maneira47 isto é para adquirir todas as virtudes e conjuntamente todos os outros bens que se possam adquirir e quando se está certo de que é assim não se pode deixar de ficar contente 6 Depois de me ter assim assegurado destas máximas e de as ter posto à parte com as verdades da fé que sempre foram as primeiras na minha crença julguei que quanto a todo o restante de minhas opiniões podia livremente tentar desfazerme delas E como esperava chegar melhor ao cabo dessa tarefa conversando com os homens do que continuando por mais tempo encerrado no quarto aquecido onde me haviam ocorrido esses pensamentos recomecei a viajar quando o inverno ainda não acabara E em todos os nove anos seguintes não fiz outra coisa senão rolar pelo mundo daqui para ali procurando ser mais espectador do que ator em todas as comédias que nele se representam48 e efetuando particular reflexão em cada matéria sobre o que podia tornála suspeita e dar ocasião de nos equivocarmos desenraizava entrementes do meu espírito todos os erros que até então nele se houvessem insinuado Não que imitasse para tanto os céticos que duvidam apenas por duvidar e afetam ser sempre irresolutos pois ao contrário todo o meu intuito tendia tão somente a me certificar e remover a terra movediça e a areia para encontrar a rocha ou a 46 Isto é elas só se justificam como condições provisórias da busca da verdade 47 As duas fórmulas não são equivalentes No primeiro caso o entendimento esclarecido por idéias claras e distintas compele a vontade no segundo não estando assegurada a verdade do juízo eu deveria envidar esforço para seguir sempre o que o entendimento me representa como melhor 48 Acerca do tema do espectador cf Cartas a Elisabeth de 18 de maio de 1645 Poderseá comparálo ao tema do ator nos Estóicos Cf Goldschmidt Système Stoïcien págs 150 e segs e 178 e segs encontrar a rocha ou a argila O que consegui muito bem pareceme tanto mais que procurando descobrir a falsidade ou a incerteza das proposições que examinava não por fracas conjeturas mas por raciocínios claros e seguros não deparava quaisquer tão duvidosas que delas não tirasse sempre alguma conclusão bastante certa quando mais 45 não fosse a de que não continha nada de certo E como ao demolir uma velha casa reservamse comumente os escombros para servir à construção de outra nova assim ao destruir todas as minhas opiniões que julgava mal fundadas fazia diversas observações e adquiria muitas experiências que me serviram depois para estabelecer outras mais certas E ademais continuava a exercitarme no método que me prescrevera pois não só tomava o cuidado de conduzir geralmente todos os meus pensamentos segundo as suas regras como reservava de tempos em tempos algumas horas que empregava particularmente em aplicálo nas dificuldades de Matemática ou mesmo também em algumas outras que eu podia tornar quase semelhantes às das Matemáticas separandoas de todos os princípios das outras ciências que eu não achava bastante firmes como vereis que procedi com várias que são explicadas neste volume49 E assim sem viver aparentemente de forma diferente daqueles que não tendo outro emprego senão passar uma vida doce e inocente procuram separar os prazeres dos vícios e que para gozar de seus lazeres sem se aborrecer usam todos os divertimentos que são honestos não deixava de persistir em meu desígnio e de progredir no conhecimento da verdade mais talvez do que se me limitasse a ler livros ou freqüentar homens de letras 7 Todavia esses nove anos escoaramse antes que eu tivesse tomado qualquer partido com respeito às dificuldades que costumam ser disputadas entre os doutos ou começado a procurar os fundamentos de alguma Filosofia mais certa do que a vulgar50 E o exemplo de muitos espíritos excelsos que tendo alimentado precedentemente esse intento não haviam logrado pareciame realizálo levavame a imaginar tantas dificuldades que não teria talvez ousado empreendêlo tão cedo se não soubesse de que alguns já faziam correr o rumor de que eu já o levara a termo Não poderia dizer em que baseavam esta opinião e se para isso contribuí com algo em meus discursos deve ter sido por confessar neles mais ingenuamente o que eu ignorava do que costumam fazer aqueles que estudaram um pouco e talvez também por mostrar as razões que tinha de duvidar de muitas coisas que os outros consideram certas do que por me jactar de qualquer doutrina Mas tendo o coração 49 Deve referirse aos problemas versados em Os Meteoros explicação dos ventos das nuvens do arco íris e na Dióptrica G Milhaud estabelece que Descartes formulou a lei da refração por volta de 1626 Sobre a concepção cartesiana da Física Matemática cf Cartas a Mersenne de 17 de maio de 1638 11 de março de 1640 bem como a de 27 de julho de 1638 Pois se lhe apraz considerar o que escrevi do solo da neve do arcoíris etc saberá efetivamente que toda a minha Física não é mais do que Geometria 50 A Filosofia escolástica bastante altivo para não querer que me tomassem por alguém que eu não era pensei que cumpria esforçarme por todos os meios para tornarme digno da reputação que me atribuíam e faz justamente oito anos que esse desejo me decidiu a afastarme de todos os lugares em que pudesse ter conhecimentos e a retirarme para aqui51 para um país onde a longa duração da guerra levou a estabelecer tais ordens que os exércitos nele mantidos parecem servir apenas para que os frutos da paz sejam gozados com tanto mais segurança e onde dentre a multidão um grande povo muito ativo e mais zeloso de seus pró 46 prios negócios do que curioso dos assunto dos de outrem sem carecer de nenhuma das comodidades que existem nas cidades mais freqüentadas pude viver tão solitário e retirado como nos desertos mais remotos QUARTA PARTE 1 Não sei se deva falarvos das primeiras meditações que aí realizei pois são tão metafísicas e tão pouco comuns que não serão talvez do gosto de todo mundo E todavia a fim de que se possa julgar se os fundamentos que escolhi são bastante firmes vejome de alguma forma compelido a falarvos delas De há muito observara que quanto aos costumes é necessário às vezes seguir opiniões que sabemos serem muito incertas tal como se fossem indubitáveis como já foi dito acima mas por desejar então ocuparme somente com a pesquisa da verdade pensei que era necessário agir exatamente ao contrário e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida52 a fim de ver se após isso não restaria algo em meu crédito que fosse inteiramente indubitável Assim porque os nossos sentidos nos enganam às vezes quis supor que não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar E porque há homens que se equivocam ao raciocinar mesmo no tocante às mais simples matérias de Geometria e cometem aí paralogismos rejeitei como falsas julgando que estava sujeito a falhar como qualquer outro todas as razões que eu tomara até então por demonstrações E enfim considerando que todos os mesmos pensamentos que temos quando despertos nos podem também ocorrer quando dormimos sem que haja nenhum nesse caso que seja verdadeiro resolvi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que 51 Início da estada na Holanda no outono de 1628 que durará até a partida para a Suécia em 1649 52 Está portanto sujeito à dúvida não só aquilo de que eu duvido de fato mas também aquilo de que poderia duvidar de direito espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos Mas logo em seguida adverti que enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso cumpria necessariamente que eu que pensava53 fosse alguma coisa E notando que esta verdade eu penso logo existo54 era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar julguei que podia aceitála sem escrúpulo como o primeiro princípio da Filosofia que procurava 2 Depois examinado com atenção o que eu era e vendo que podia supor que não tinha corpo algum e que não havia qualquer mundo ou qualquer lugar onde eu existisse mas que nem por isso podia supor que não existia e que ao contrário pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas seguiase mui evidente e mui certamente que eu existia ao passo que se apenas houvesse cessado de pensar embora tudo o mais que alguma vez imaginara fosse verdadeiro já não teria razão alguma de crer que eu tivesse existido compreendi por aí que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar e que para ser não necessita de nenhum lugar nem depende de qualquer coisa material De sorte que esse eu isto é a alma55 pela qual sou o que sou é inteiramente distinta do corpo e mesmo que é mais fácil de conhecer do que ele e ainda que este nada fosse ela não deixaria de ser tudo o que é 3 Depois disso considerei em geral o que é necessário a uma proposição para ser verdadeira e certa pois como acabava de encontrar uma que eu sabia ser exatamente assim pensei que devia saber também em que consiste essa certeza56 E tendo notado que nada há no eu penso logo existo que me assegure de que digo a verdade exceto que vejo muito claramente que para pensar é preciso existir57 julguei poder tomar por regra geral que as coisas que concebemos mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras havendo apenas alguma dificuldade em notar bem quais são as que concebemos 4 Em seguida tendo refletido sobre aquilo que eu duvidava e que por conseqüência meu ser não era totalmente perfeito pois via claramente que o conhecer é perfeição maior do que o duvidar deliberei procurar de onde aprendera a pensar em algo 53 Cumpre notar que Descartes não diz duvido logo sou A dúvida não importa como ato mas como conhecimento do fato de que eu duvido 54 O Cogito não é um raciocínio é uma constatação de fato Por que então se emprega aqui o termo logo Descartes dá ao Cogito o aspecto de um raciocínio toda vez que deseja pôr em relevo o caráter necessário da ligação que o mesmo contém Gueroult op cit II 309 55 Descartes nas Segundas Respostas declara que preferiu mens a anima no texto latino Mens designa apenas o entendimento Neste parágrafo Descartes insiste na substancialidade da alma como puro pensamento heterógena à substância do corpo mas estabelece também a natureza puramente intelectual da alma mais perfeito do que eu era e conheci com evidência que devia ser de alguma natureza que fosse de fato mais perfeita No concernente aos pensamentos que tinha de muitas outras coisas fora de mim como do céu da terra da luz do calor e de mil outras não me era tão difícil saber de onde vinham porque não advertindo neles nada que me parecesse tornálos superiores a mim podia crer que se fossem verdadeiros seriam dependências de minha natureza na medida em que esta possuía alguma perfeição e se não o eram que eu os tinha do nada isto é que estavam em mim pelo que eu possuía de falho Mas não podia acontecer o mesmo com a idéia de um ser mais perfeito do que o meu pois tirála do nada era manifestamente impossível e visto que não há menos repugnância em que o mais perfeito seja uma conseqüência e uma dependência do menos perfeito do que em admitir que do nada procede alguma coisa eu não podia tirála tampouco de mim próprio De forma que restava apenas que tivesse sido posta em mim por uma natureza que fosse verdadeiramente mais perfeita do que a minha e que mesmo tivesse em si todas as perfeições de que eu poderia ter alguma idéia isto é para explicarme numa palavra que fosse Deus58 A isso acrescentei que dado que conhecia algumas perfeições que não possuía eu não era o único ser que existia usarei aqui livremente se vos aprouver alguns termos da Escola mas que devia necessariamente haver algum outro mais perfeito do qual eu dependesse e de quem eu tivesse recebido tudo o que possuía59 Pois se eu fosse só e independente de qualquer outro de modo que tivesse recebido de mim próprio todo esse pouco pelo qual participava do Ser perfeito poderia receber de mim pela mesma razão todo o restante que sabia faltarme e ser assim eu próprio infinito eterno imutável onisciente todopoderoso e enfim ter todas as perfeições que podia notar existirem em Deus Pois segundo os raciocínios que acabo de fazer para conhecer a natureza de Deus tanto quanto a minha o era capaz bastava considerar acerca de todas as coisas de que achava em mim qualquer idéia se era ou não perfeição possuílas e estava seguro de que nenhuma das que eram marcadas por alguma imperfeição existia nele mas que todas as outras existiam Assim eu via que a dúvida a inconstância a tristeza e coisas semelhantes não podiam existir nele dado que eu próprio estimaria muito estar isento delas Além disso eu tinha idéias de muitas 57 Gueroult op cit II 30710 mostra que o princípio Para pensar é preciso ser não é a premissa maior de um raciocínio como seria Tudo o que pensa é Tratase de um adágio sem o qual eu não teria consciência da ligação necessária entre Cogito e Sum mas em contrapartida sem o Cogito eu tampouco teria consciência deste adágio Por que supor pergunta Descartes que o conhecimento das proposições particulares deve sempre ser deduzido de universais 58 Interrogação sobre a origem da idéia do perfeito que há em meu espírito Fica estabelecido que 1º esta idéia não pode provir do nada que há em mim em virtude do princípio ex nihilo nihil gignit 2º que ela não pode vir de mim ser imperfeito não pode haver mais realidade no efeito do que na causa ao passo que esta solução seria possível para as idéias que eu tenho das coisas externas Donde 1º existência de outra natureza fora de mim 2º que contém todas as perfeições coisas sensíveis e corporais pois embora supusesse que estava sonhando e que tudo quanto via e imaginava era falso não podia negar contudo que as idéias a respeito não existissem verdadeiramente em meu pensamento mas por já ter reconhecido em mim mui claramente que a natureza inteligente é distinta da corporal considerando que toda a composição testemunha dependência e que a dependência é manifestamente um defeito60 julguei por aí que não podia ser uma perfeição em Deus o ser composto dessas duas naturezas e que por conseguinte ele não o era61 mas que se haviam alguns corpos no mundo ou então algumas inteligências ou outras naturezas que não fossem inteiramente perfeitos seu ser deveria depender do poder de Deus de tal sorte que não pudessem subsistir sem ele um só momento62 5 Quis procurar depois disso outras verdades e tendome proposto o objeto dos geômetras que eu concebia como um corpo contínuo63 ou um espaço infinitamente extenso em comprimento largura e altura ou profundidade divisível em diversas partes que podiam ter diferentes figuras e grandezas e ser movidas ou transpostas de todas as maneiras pois os geômetras supõem tudo isto em seu objeto percorria algumas de suas mais simples demonstrações E tendo notado que essa grande certeza que todo o mundo lhes atribui se funda apenas no fato de serem concebidas com evidência segundo a regra que há pouco expressei notei também que nada havia nelas que me assegurasse a existência de seu objeto Pois por exemplo eu via muito bem que supondo um triângulo cumpria que seus três ângulos fossem iguais a dois retos mas apesar disso nada via que garantisse haver no mundo qualquer triângulo Ao passo que voltando a examinar a idéia que tinha de um Ser perfeito verificava que a existência estava aí inclusa da mesma forme como na de um triângulo está incluso serem seus três ângulos iguais a dois retos ou na de uma esfera serem todas as suas partes igualmente distantes do seu centro ou mesmo ainda 59 Deus é agora considerado como o meu Criador que me mantém no ser e não mais como o autor da idéia de Deus em mim existente 60 Composição implica dependência das partes umas em relação às outras e do todo em relação às partes 61 Para conceber a infinita perfeição de Deus cumpre atribuirlhes todas as perfeições das quais possuímos apenas fragmentos e excluir dele as imperfeições que há em nós 62 Evocação da doutrina da criação contínua a o tempo é radicalmente descontínuo o tempo presente não depende do precedente b em cada um desses momentos descontínuos o estado do mundo e meu pensamento são conservados no ser por Deus Tese ligada à negação das formas substanciais Enquanto para Santo Tomás Deus instituiu uma ordem das coisas tal que algumas dependem de outras pelas quais elas são secundariamente conservadas no ser Descartes afirma não haver nenhuma virtude por meio da qual eu possa fazer com que eu que sou agora seja ainda um instante após mais evidentemente e que por conseguinte é pelo menos tão certo64 que Deus que é esse Ser perfeito é ou existe quanto sêloia qualquer demonstração de Geometria 6 Mas o que leva muitas pessoas a se persuadirem de que há dificuldade conhecê lo e mesmo também em conhecer o que é sua alma é o fato de nunca elevarem o espírito além das coisas sensíveis e de estarem de tal forma acostumados a nada considerar senão imaginando que é uma forma de pensar particular às coisas materiais que tudo quanto não é imaginável lhes parece não ser inteligível E isto é assaz manifesto pelo fato de os próprios filósofos terem por máxima nas escolas que nada há no entendimento que não haja estado primeiramente nos sentidos65 onde todavia é certo que as idéias de Deus e da alma jamais estiveram E me parece que todos os que querem usar a imaginação para compreendêlas procedem do mesmo modo que se para ouvir os sons ou sentir os odores quisessem servirse dos olhos exceto com esta diferença ainda que o sentido da vista não nos garante menos a verdade de seus objetos do que os do olfato ou da audição ao passo que a nossa imaginação ou os nossos sentidos nunca poderiam assegurarnos de qualquer coisa se o nosso entendimento não interviesse 7 Enfim se há ainda homens que não estejam bem persuadidos da existência de Deus e da alma com as razões que apresentei quero que saibam que todas as outras coisas das quais se julgam talvez certificados como a de terem um corpo haver astros e uma terra e coisas semelhantes são ainda menos certas Pois embora se possua dessas coisas uma certeza moral que é de tal ordem que exceto sendose extravagante parece impossível pôla em dúvida todavia quando se trata de certeza metafísica66 não se pode negar a não ser que sejamos desarrazoados que é motivo suficiente para não estarmos inteiramente seguros a respeito o fato de se advertir que podemos do mesmo modo imaginar quando adormecidos que temos outro corpo que vemos outros astros e outra terra sem que na realidade assim o seja Pois de onde sabemos que os pensamentos que ocorrem em sonhos são mais falsos do que os outros se muitos não são amiúde menos vivos e nítidos 63 Um corpo absolutamente pleno não sendo o corpo senão extensão a extensão que separasse duas partes de matéria seria ela própria um corpo 64 Exposição da prova a priori ainda mais evidente porque a inclusão da existência necessária na essência de Deus é uma relação ainda mais simples do que as relações geométricas citadas ela é antes comparável às verdades matemáticas indemonstráveis Pelo menos tão certo significa mais certo é possível estar seguro da existência de Deus sem o estar da verdade dos teoremas matemáticos não sendo o inverso verdadeiro 65 Adágio escolástico Toda essa passagem constitui um ataque ao excessivo papel concedido pelo aristotelismo e pelo tomismo à imaginação Em Metafísica e na Matemática a imaginação não poderia se de qualquer serventia 66 Distinção entre certeza moral suficiente para a vida prática e metafísica quando pensamos que não é de modo algum possível que a coisa seja diferente do que julgamos No primeiro plano seria loucura duvidar da existência das coisas sensíveis no segundo é leviandade estar seguro delas E ainda que os melhores espíritos estudem o caso tanto quanto lhes aprouver não creio que possam dar qualquer razão que seja suficiente para desfazer essa dúvida se não pressupuserem a existência de Deus Pois em primeiro lugar aquilo mesmo que há pouco tomei como regra a saber que as coisas que concebemos mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras não é certo senão ser porque Deus é ou existe e é um ser perfeito e porque tudo o que existe em nós nos vem dele Donde se segue que as nossas idéias ou noções sendo coisas reais e provenientes de Deus em tudo em que são claras e distintas só podem por isso ser verdadeiras De sorte que se temos muitas vezes outras que contêm falsidade só podem ser as que possuem algo de confuso e obscuro porque nisso participam do nada isto é são assim confusas em nós porque nós não somos de todo perfeitos E é evidente que não repugna menos admitir que a falsidade ou a imperfeição procedam de Deus como tal do que admitir que a verdade ou a perfeição procedam do nada Ma se não soubéssemos de modo algum que tudo quanto existe em nós de real e verdadeiro provém de um ser perfeito e infinito por claras e distintas que fossem nossas idéias não teríamos qualquer razão que nos assegurasse que elas possuem a perfeição de serem verdadeiras67 8 Ora depois que o conhecimento de Deus e da alma nos tenha assim dado certeza dessa regra é muito fácil compreender que os sonhos que imaginamos quando dormimos não devem de modo algum levarnos a duvidar da verdade dos pensamentos que temos quando acordados Pois se acontecesse que mesmo dormindo tivéssemos alguma idéia muito distinta como por exemplo que um geômetra inventasse qualquer nova demonstração o sono deste não a impediria de ser verdadeira E quanto ao erro mais comum de nossos sonhos que consiste em nos representarem diversos objetos tal como fazem nossos sentidos exteriores não importa que ele nos dê ocasião de desconfiar da verdade de tais idéias porque estas também podem nos enganar repetidas vezes sem que estejamos dormindo como sucede quando os que têm icterícia vêem tudo da cor amarela ou quando os astros ou outros corpos fortemente afastados de nós se nos afiguram muito menores do que são Pois enfim quer estejamos em vigília quer dormindo nunca nos devemos deixar persuadir senão pela evidência de nossa razão68 67 Somente após a prova da existência de um Deus perfeito logo imutável e não enganador portanto garante das idéias claras e distintas é que a regra da evidência e as outras anteriormente descobertas podem ser colocadas como verdadeiras Antes disso gozam apenas de uma certeza subjetiva verdadeiras só quando penso nelas efetivamente 68 Todos os argumentos possíveis do ceticismo são doravante varridos não poderíamos ser sensíveis ao argumento do sonho por exemplo a não ser que ainda concedêssemos nosso crédito às imagens sensíveis Agora só as idéias claras e distintas têm força constrangedora E devese observar que digo de nossa razão e de modo algum de nossa imaginação ou de nossos sentidos Porque da grandeza que o vemos e bem podemos imaginar distintamente uma cabeça de leão enxertada no corpo de uma cabra sem que devamos concluir por isso que no mundo há uma quimera pois a razão não nos dita que tudo quanto vemos ou imaginamos assim seja verdadeiro mas nos dita realmente que todas as nossas idéias ou noções devem ter algum fundamento de verdade pois não seria possível que Deus que é todo perfeito e verídico as houvesse posto em nós sem isso E pelo fato de nossos raciocínios jamais serem tão evidentes nem tão completos durante o sono como durante a vigília ainda de que às vezes nossas imaginações sejam tanto ou mais vivas e expressas ela nos dita também que não podendo nossos pensamentos serem inteiramente verdadeiros porque não somos de todo perfeitos tudo o que eles encerram de verdade deve encontrarse infalivelmente naquele que temos quando acordados mais do que em nossos sonhos embora vejamos o sol mui claramente não devemos julgar por isso que ele seja apenas empregos da terra MICHEL Foucault A Arqueologia DO Saber FORENSE UNIVERSITÁRIA 7ª EDIÇÃO A Arqueologia DO Saber Coleção Campo Teórico Dirigida por Manoel Barros da Motta e Severino Bezerra Cabral Filho Da mesma coleção Do Mundo Fechado ao Universo Infinito Alexandre Koyré Estudos de História do Pensamento Científico Alexandre Koyré Estudos de História do Pensamento Filosófico Alexandre Koyré O Normal e o Patológico Georges Canguilhem O Nascimento da Clínica Michel Foucault Da Psicose Paranóica em suas Relações com a Personalidade Jacques Lacan Teoria e Clínica da Psicose Antonio Quinet Michel Foucault Uma Trajetória Filosófica Paul Rabinow e Hubert Dreyfus Raymond Roussel Michel Foucault MICHEL Foucault A Arqueologia DO Saber 7ª EDIÇÃO Tradução Luiz Felipe Baeta Neves FORENSE UNIVERSITÁRIA 7ª edição 3ª reimpressão 2008 Copyright Éditions Gallimard 1969 Traduzido de LArchéologie du Savoir Capa Mello Mayer Editoração eletrônica Textos Formas CIPBrasil Catalogaçãonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ FS6a Foucault Michel 19261984 7ed A arqueologia do sabeiMichel Foucault tradução de Luiz Felipe Baeta Neves 7ed Rio de Janeiro Forense Universitária 2008 Campo Teórico Tradução de Larchéologie du Savoir ISBN 9788521803447 1 Teoria do conhecimento I Titulo II Série 032742 CDD 121 CDU 165 Proibida a reprodução total ou parcial de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico ou mecânico sem permissão expressa do Editor Lei n 9610 de 1921998 Reservados os direitos de propriedade desta edição pela EDITORA FORENSE UNIVERSITÁRIA Rio de Janeiro Rua do Rosário 100 Centro CEP 20041002 TelsFax 2509314825097395 São Paulo Senador Paulo Egídio 72 slj sala 6 Centro CEP 01006010 TelsFax 31042005 31040396 31070842 email editoraforenseuhiversitariacombr httpwwwforenseuniversitanacombr Impresso no Brasil Printed in Brazil Sumário Capa Orelha Contracapa I INTRODUÇÃO 1 II AS REGULARIDADES DISCURSIVAS 21 1 As Unidades do Discurso 23 2 As Formações Discursivas 35 3 A Formação dos Objetos 45 4 A Formação das Modalidades Enunciativas 56 5 A Formação dos Conceitos 62 6 A Formação das Estratégias 71 7 Observações e Consequências 79 III O ENUNCIADO E O ARQUIVO 87 1 Definir o Enunciado 89 2 A Função Enunciativa 99 3 A Descrição dos Enunciados 120 4 Raridade Exterioridade Acúmulo 134 5 O A Priori Histórico e o Arquivo 143 IV A DESCRIÇÃO ARQUEOLÓGICA 151 1 Arqueologia e História das Idéias 153 2 O Original e o Regular 159 3 As Contradições 168 4 Os Fatos Comparativos 177 5 A Mudança e as Transformações 187 6 Ciência e Saber 199 V CONCLUSÃO 221 I INTRODUÇÃO Há dezenas de anos que a atenção dos historiadores se voltou de preferência para longos períodos como se sob as peripécias políticas e seus episódios eles se dispusessem a revelar os equilíbrios estáveis e difíceis de serem rompidos os processos irreversíveis as regulações constantes os fenômenos tendenciais que culminam e se invertem após continuidades seculares os movimentos de acumulação e as saturações lentas as grandes bases imóveis e mudas que o emaranhado das narrativas tradicionais recobrira com toda uma densa camada de acontecimentos Para conduzir essa análise os historiadores dispõem de instrumentos que criaram ou receberam modelos de crescimento econômico análise quantitativa dos fluxos de trocas perfis dos desenvolvimentos e das regressões demográficas estudo do clima e de suas oscilações identificação das constantes sociológicas descrição dos ajustamentos técnicos de sua difusão e persistência Estes instrumentos permitiramlhes distinguir no campo da história camadas sedimentares diversas as sucessões lineares que até então tinham sido o objeto da pesquisa foram substituídas por um jogo de interrupções em profundidade Da mobilidade política às lentidões próprias da civilização material os níveis de análises se multiplicaram cada um tem suas rupturas específicas cada um permite um corte que só a ele pertence e à medida que se desce para bases mais profundas as escansões se tornam cada vez maiores Por trás da história desordenada dos governos das guerras e da fome desenhamse histórias quase imóveis ao olhar histórias com um suave declive história dos caminhos marítimos história do trigo ou das minas de ouro história da seca e da irrigação história da rotação das culturas história do equilíbrio obtido pela espécie humana entre a fome e a proliferação As velhas questões de análise tradicional Que ligação estabelecer entre 4 Michel Foucault acontecimentos díspares Como estabelecer entre eles uma sequência necessária Que continuidade os atravessa ou que significação de conjunto acabamos por formar Podese definir uma totalidade ou é preciso limitarse a reconstituir encadeamentos são substituídas de agora em diante por interrogações de outro tipo Que estratos é preciso isolar uns dos outros Que tipos de séries instaurar Que critérios de periodização adotar para cada uma delas Que sistema de relações hierarquia dominância escalonamento determinação unívoca causalidade circular pode ser descrito entre uma e outra Que séries de séries podem ser estabelecidas E em que quadro de cronologia ampla podem ser determinadas sequências distintas de acontecimentos Ora mais ou menos na mesma época nessas disciplinas chamadas histórias das idéias das ciências da filosofia do pensamento e da literatura a especificidade de cada uma pode ser negligenciada por um instante nessas disciplinas que apesar de seu título escapam em grande parte ao trabalho do historiador e a seus métodos a atenção se deslocou ao contrário das vastas unidades descritas como épocas ou séculos para fenômenos de ruptura Sob as grandes continuidades do pensamento sob as manifestações maciças e homogêneas de um espírito ou de uma mentalidade coletiva sob o devir obstinado de uma ciência que luta apaixonadamente por existir e por se aperfeiçoar desde seu começo sob a persistência de um gênero de uma forma de uma disciplina de uma atividade teórica procurase agora detectar a incidência das interrupções cuja posição e natureza são aliás bastante diversas Atos e liminares epistemológicos descritos por G Bachelard suspendem o acúmulo indefinido dos conhecimentos quebram sua lenta maturação e os introduzem em um tempo novo os afastam de sua origem empírica e de suas motivações iniciais e os purificam de suas cumplicidades imaginárias prescrevem desta forma para a análise histórica não mais a pesquisa dos começos silenciosos não mais a regressão sem fim em direção aos primeiros precursores mas a identificação de um novo tipo de racionalidade e de seus efeitos múltiplos Deslocamentos e transformações dos conceitos as análises de G Canguilhem podem servir de modelo pois mostram que a história de um conceito não é de forma A Arqueologia do Saber 5 alguma a de seu refinamento progressivo de sua racionalidade continuamente crescente de seu gradiente de abstração mas a de seus diversos campos de constituição e de validade a de suas regras sucessivas de uso a dos meios teóricos múltiplos em que foi realizada e concluída sua elaboração Distinção feita igualmente por G Canguilhem entre as escalas micro e macroscópicas da história das ciências onde os acontecimentos e suas consequências não se distribuem da mesma forma assim uma descoberta o remanejamento de um método a obra de um intelectual e também seus fracassos não têm a mesma incidência e não podem ser descritos da mesma forma em um e em outro nível onde a história contada não é a mesma Redistribuições recorrentes que fazem aparecer vários passados várias formas de encadeamento várias hierarquias de importância várias redes de determinações várias ideologias para uma única e mesma ciência à medida que seu presente se modifica assim as descrições históricas se ordenam necessariamente pela atualidade do saber se multiplicam com suas transformações e não deixam por sua vez de romper com elas próprias M Serres acaba de apresentar a teoria desse fenômeno no domínio da matemática Unidades arquitetônicas dos sistemas tais como foram analisadas por M Guéroult e para as quais a descrição das influências das tradições das continuidades culturais não é pertinente como o é a das coerências internas a dos axiomas das cadeias dedutivas das compatibilidades Finalmente as escansões mais radicais são sem dúvida os cortes efetuados por um trabalho de transformação teórica quando funda uma ciência destacandoa da ideologia de seu passado e revelando este passado como ideológico1 A isso seria necessário acrescentar é evidente a análise literária considerada daqui por diante como unidade não a alma ou a sensibilidade de uma época nem os grupos as escolas as gerações ou os movimentos nem mesmo o personagem do autor no jogo de trocas que ligou sua vida à sua criação mas sim a estrutura própria de uma obra de um livro de um texto 1Althusser Ponr Marx p 168 6 Michel Foucault E assim o grande problema que se vai colocar que se coloca a tais análises históricas não é mais saber por que caminhos as continuidades se puderam estabelecer de que maneira um único e mesmo projeto pôdese manter e constituir para tantos espíritos diferentes e sucessivos um horizonte único que modo de ação e que suporte implica o jogo das transmissões das retomadas dos esquecimentos e das repetições como a origem pode estender seu reinado bem além de si própria e atingir aquele desfecho que jamais se deu o problema não é mais a tradição e o rastro mas o recorte e o limite não é mais o fundamento que se perpetua e sim as transformações que valem como fundação e renovação dos fundamentos Vêse então o espraiamento de todo um campo de questões algumas já familiares pelas quais essa nova forma de história tenta elaborar sua própria teoria como especificar os diferentes conceitos que permitem avaliar a descontinuidade limiar ruptura corte mutação transformação Através de que critérios isolar as unidades com que nos relacionamos O que é uma ciência O que é uma obra O que é uma teoria O que é um conceito O que é um texto Como diversificar os níveis em que podemos colocarnos cada um deles compreendendo suas escansões e sua forma de análise Qual é o nível legítimo da formalização Qual é o da interpretação Qual é o da análise estrutural Qual é o das determinações de causalidade Em suma a história do pensamento dos conhecimentos da filosofia da literatura parece multiplicar as rupturas e buscar toda as perturbações da continuidade enquanto a história propriamente dita a história pura e simplesmente parece apagar em benefício das estruturas fixas a irrupção dos acontecimentos Mas que este entrecruzamento não nos iluda Não imaginemos com fé nas aparências que algumas das disciplinas históricas caminharam do contínuo ao descontínuo enquanto outras iam do formigamento das descontinuidades às grandes unidades ininterruptas não imaginemos que na análise da política das instituições ou da economia fomos cada vez mais sensíveis às determinações globais mas sim que na A Arqueologia do Saber 7 análise das idéias e do saber prestamos uma atenção cada vez maior aos jogos da diferença não acreditemos que ainda uma vez essas duas grandes formas de descrição se cruzaram sem se reconhecerem Na verdade os problemas colocados são os mesmos provocando entretanto na superfície efeitos inversos Podemse resumir esses problemas em uma palavra a crítica do documento Nada de malentendidos é claro que desde que existe uma disciplina como a história temonos servido de documentos interrogamolos interrogamonos a seu respeito indagamoslhes não apenas o que eles queriam dizer mas se eles diziam a verdade e com que direito podiam pretendêlo se eram sinceros ou falsificadores bem informados ou ignorantes autênticos ou alterados Mas cada uma dessas questões e toda essa grande inquietude crítica apontavam para um mesmo fim reconstituir a partir do que dizem estes documentos às vezes com meiaspalavras o passado de onde emanam e que se dilui agora bem distante deles o documento sempre era tratado como a linguagem de uma voz agora reduzida ao silêncio seu rastro frágil mas por sorte decifrável Ora por uma mutação que não data de hoje mas que sem dúvida ainda não se concluiu a história mudou sua posição acerca do documento ela considera como sua tarefa primordial não interpretálo não determinar se diz a verdade nem qual é seu valor expressivo mas sim trabalhálo no interior e elaborálo ela o organiza recorta distribui ordena e reparte em níveis estabelece séries distingue o que é pertinente do que não é identifica elementos define unidades descreve relações O documento pois não é mais para a história essa matéria inerte através da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram o que é passado e o que deixa apenas rastros ela procura definir no próprio tecido documental unidades conjuntos séries relações É preciso desligar a história da imagem com que ela se deleitou durante muito tempo e pela qual encontrava sua justificativa antropológica a de uma memória milenar e coletiva que se servia de documentos materiais para reencontrar o frescor de suas lembranças ela é o trabalho e a utilização de uma materialidade documental livros textos narrações registros atas edifícios instituições regulamentos técnicas objetos costumes etc que apresenta sempre e em toda a parte em qualquer 8 Michel Foucault sociedade formas de permanências quer espontâneas quer organizadas O documento não é o feliz instrumento de uma história que seria em si mesma e de pleno direito memória a história é para uma sociedade uma certa maneira de dar status e elaboração à massa documental de que ela não se separa Digamos para resumir que a história em sua forma tradicional se dispunha a memorizar os monumentos do passado transformálos em documentos e fazer falarem estes rastros que por si mesmos raramente são verbais ou que dizem em silêncio coisa diversa do que dizem em nossos dias a história é o que transforma os documentos em monumentos e que desdobra onde se decifravam rastros deixados pelos homens onde se tentava reconhecer em profundidade o que tinham sido uma massa de elementos que devem ser isolados agrupados tornados pertinentes interrelacionados organizados em conjuntos Havia um tempo era que a arqueologia como disciplina dos monumentos mudos dos rastros inertes dos objetos sem contexto e das coisas deixadas pelo passado se voltava para a história e só tomava sentido pelo restabelecimento de um discurso histórico poderíamos dizer jogando um pouco com as palavras que a história em nossos dias se volta para a arqueologia para a descrição intrínseca do monumento Isso tem várias consequências Inicialmente o efeito de superfície que já se assinalou a multiplicação das rupturas na história das idéias a exposição dos períodos longos na história propriamente dita Esta na verdade sob sua forma tradicional se atribuía como tarefa definir relações de causalidade simples de determinação circular de antagonismo de expressão entre fatos ou acontecimentos datados sendo dada a série tratavase de precisar a vizinhança de cada elemento De agora em diante o problema é constituir séries definir para cada uma seus elementos fixarlhes os limites descobrir o tipo de relações que lhe é específico formularlhes a lei e além disso descrever as relações entre as diferentes séries para constituir assim séries de séries ou quadros daí a multiplicação dos estratos seu desligamento a especificidade do tempo e das cronologias que lhes são próprias daí a necessidade de distinguir não mais apenas acontecimentos importantes com uma longa cadeia de consequências e A Arqueologia do Saber 9 acontecimentos mínimos mas sim tipos de acontecimentos de nível inteiramente diferente alguns breves outros de duração média como a expansão de uma técnica ou uma rarefação da moeda outros finalmente de ritmo lento como um equilíbrio demográfico ou o ajustamento progressivo de uma economia a uma modificação do clima daí a possibilidade de fazer com que apareçam séries com limites amplos constituídas de acontecimentos raros ou de acontecimentos repetitivos O aparecimento dos períodos longos na história de hoje não é um retorno às filosofias da história às grandes eras do mundo ou às fases prescritas pelo destino das civilizações é o efeito da elaboração metodologicamente organizada das séries Ora na história das idéias do pensamento e das ciências a mesma mutação provocou um efeito inverso dissociou a longa série constituída pelo progresso da consciência ou a teleologia da razão ou a evolução do pensamento humano pôs em questão novamente os temas da convergência e da realização colocou em dúvida as possibilidades da totalização Ela ocasionou a individualização de séries diferentes que se justapõem se sucedem se sobrepõem se entrecruzam sem que se possa reduzilas a um esquema linear Assim apareceram em lugar dessa cronologia contínua da razão que se fazia remontar invariavelmente à inacessível origem à sua abertura fundadora escalas às vezes breves distintas umas das outras rebeldes diante de uma lei única frequentemente portadoras de um tipo de história que é própria de cada uma e irredutíveis ao modelo geral de uma consciência que adquire progride e que tem memória Segunda consequência a noção de descontinuidade toma um lugar importante nas disciplinas históricas Para a história em sua forma clássica o descontínuo era ao mesmo tempo o dado e o impensável o que se apresentava sob a natureza dos acontecimentos dispersos decisões acidentes iniciativas descobertas e o que devia ser pela análise contornado reduzido apagado para que aparecesse a continuidade dos acontecimentos A descontinuidade era o estigma da dispersão temporal que o historiador se encarregava de suprimir da história Ela se tornou agora um dos elementos fundamentais da análise histórica onde aparece com um triplo papel Constitui de início uma operação deliberada do historiador e não mais o que recebe involuntariamente do material 10 Michel Foucault que deve tratar pois ele deve pelo menos a título de hipótese sistemática distinguir os níveis possíveis da análise os métodos que são adequados a cada um e as periodizações que lhes convém É também o resultado de sua descrição e não mais o que se deve eliminar sob o efeito de uma análise pois o historiador se dispõe a descobrir os limites de um processo o ponto de inflexão de uma curva a inversão de um movimento regulador os limites de uma oscilação o limiar de um funcionamento o instante de funcionamento irregular de uma causalidade circular Ela é enfim o conceito que o trabalho não deixa de especificar em lugar de negligenciálo como uma lacuna uniforme e indiferente entre duas figuras positivas ela toma uma forma e uma função específica de acordo com o domínio e o nível em que é delimitada não se fala da mesma descontinuidade quando se descreve um limiar epistemológico a reversão de uma curva de população ou a substituição de uma técnica por outra Paradoxal noção de descontinuidade é ao mesmo tempo instrumento e objeto de pesquisa delimita o campo de que é o efeito permite individualizar os domínios mas só pode ser estabelecida através da comparação desses domínios Enfim não é simplesmente um conceito presente no discurso do historiador mas este secretamente a supõe de onde poderia ele falar na verdade senão a partir dessa ruptura que lhe oferece como objeto a história e sua própria história Um dos traços mais essenciais da história nova é sem dúvida esse deslocamento do descontínuo sua passagem do obstáculo à prática sua integração no discurso do historiador no qual não desempenha mais o papel de uma fatalidade exterior que é preciso reduzir e sim o de um conceito operatório que se utiliza por isso a inversão de signos graças à qual ele não é mais o negativo da leitura histórica seu avesso seu fracasso o limite de seu poder mas o elemento positivo que determina seu objeto e valida sua análise Terceira consequência o tema e a possibilidade de uma história global começam a se apagar e vêse esboçar o desenho bem diferente do que se poderia chamar uma história geral O projeto de uma história global é o que procura reconstituir a forma de conjunto de uma civilização o princípio material ou espiritual de uma sociedade a significação comum a todos os fenômenos de um período a lei que explica sua coesão o que se chama metaforicamente o rosto de A Arqueologia do Saber 11 uma época Tal projeto está ligado a duas ou três hipóteses supõese que entre todos os acontecimentos de uma área espaçotemporal bem definida entre todos os fenômenos cujo rastro foi encontrado será possível estabelecer um sistema de relações homogêneas rede de causalidade permitindo derivar cada um deles relações de analogia mostrando como eles se simbolizam uns aos outros ou como todos exprimem um único e mesmo núcleo central supõese por outro lado que uma única e mesma forma de historicidade compreenda as estruturas econômicas as estabilidades sociais a inércia das mentalidades os hábitos técnicos os comportamentos políticos e os submeta ao mesmo tipo de transformação supõese enfim que a própria história possa ser articulada em grandes unidades estágios ou fases que detêm em si mesmas seu princípio de coesão São estes postulados que a história nova põe em questão quando problematiza as séries os recortes os limites os desníveis as defasagens as especificidades cronológicas as formas singulares de permanência os tipos possíveis de relação Mas não que ela procure obter uma pluralidade de histórias justapostas e independentes umas das outras a da economia ao lado da das instituições e ao lado delas ainda as das ciências das religiões ou das literaturas não tampouco que ela busque somente assinalar entre essas histórias diferentes coincidências de datas ou analogias de forma e de sentido O problema que se apresenta e que define a tarefa de uma história geral é determinar que forma de relação pode ser legitimamente descrita entre essas diferentes séries que sistema vertical podem formar qual é de umas às outras o jogo das correlações e das dominâncias de que efeito podem ser as defasagens as temporalidades diferentes as diversas permanências em que conjuntos distintos certos elementos podem figurar simultaneamente em resumo não somente que séries mas que séries de séries ou em outros termos que quadros2 é possível constituir Uma descrição global 2 Será preciso assinalar para os mais desatentos que um quadro e sem dúvida em todos os sentidos do termo é formalmente uma série de séries De qualquer forma não se trata de uma pequena imagem fixa que se coloca diante de uma lanterna mágica para grande decepção das crianças que nessa idade preferem é claro a vivacidade do cinema 12 Michel Foucault cinge todos os fenômenos em torno de um centro único princípio significação espírito visão do mundo forma de conjunto uma história geral desdobraria ao contrário o espaço de uma dispersão Finalmente última consequência a história nova encontra um certo número de problemas metodológicos muitos dos quais sem dúvida a antecediam há muito mas cujo feixe agora a caracteriza Entre eles podemse citar a constituição de corpus coerentes e homogêneos de documentos corpus abertos ou fechados acabados ou indefinidos o estabelecimento de um princípio de escolha conforme se queira tratar exaustivamente a massa documental ou se pratique uma amostragem segundo métodos de levantamento estatístico ou se tente determinar antecipadamente os elementos mais representativos a definição do nível de análise e dos elementos que lhe são pertinentes no material estudado podemse salientar as indicações numéricas as referências explícitas ou não a acontecimentos a instituições a práticas as palavras empregadas com suas regras de uso e os campos semânticos por elas traçados ou ainda a estrutura formal das proposições e os tipos de encadeamento que as unem a especificação de um método de análise tratamento quantitativo dos dados decomposição segundo um certo número de traços assinaláveis cujas correlações são estudadas decifração interpretativa análise das frequências e das distribuições a delimitação dos conjuntos e dos subconjuntos que articulam o material estudado regiões períodos processos unitários a determinação das relações que permitem caracterizar um conjunto pode tratarse de relações numéricas ou lógicas de relações funcionais causais analógicas pode tratarse da relação significantesignificado Todos estes problemas fazem parte de agora em diante do campo metodológico da história campo que merece atenção por duas razões Inicialmente porque vemos até que ponto se libertou do que constituía ainda há pouco a filosofia da história e das questões que ela colocava sobre a racionalidade ou a teleologia do devir sobre a relatividade do saber histórico sobre a possibilidade de descobrir ou de dar um sentido à inércia do passado e à totalidade inacabada do presente Em seguida porque coincide em alguns de seus pontos com problemas que se encontram em alguma outra parte nos A Arqueologia do Saber 13 domínios por exemplo da linguística da etnologia da economia da análise literária da mitologia A estes problemas podese atribuir a sigla do estruturalismo Sob várias condições entretanto eles estão longe de cobrir sozinhos o campo metodológico da história de que só ocupam uma parte cuja importância varia com os domínios e os níveis de análises salvo em certo número de casos relativamente limitados eles não foram importados da linguística ou da etnologia conforme o percurso hoje frequente mas nasceram no campo da própria história essencialmente no da história econômica e em virtude das questões que ela colocava enfim não autorizam de modo algum que se fale de uma estruturalização da história ou ao menos de uma tentativa para superar um conflito ou uma oposição entre estrutura e devir já há bastante tempo que os historiadores identificam descrevem e analisam estruturas sem jamais se terem perguntado se não deixavam escapar a viva frágil e fremente história A oposição estruturadevir não é pertinente nem para a definição do campo histórico nem sem dúvida para a definição de um método estrutural Esta mutação epistemológica da história não está ainda acabada Não data de ontem entretanto pois se pode sem dúvida fazer remontar a Marx o seu primeiro momento Mas seus efeitos demoraram Ainda em nossos dias e sobretudo para a história do pensamento ela não foi registrada nem refletida enquanto outras transformações mais recentes puderam sêlo as da linguística por exemplo como se fosse particularmente difícil nesta história que os homens retraçam com suas próprias idéias e com seus próprios conhecimentos formular uma teoria geral da descontinuidade das séries dos limites das unidades das ordens específicas das autonomias e das dependências diferenciadas É como se aí onde estivéramos habituados a procurar as origens a percorrer de volta indefinidamente a linha dos antecedentes a reconstituir tradições a seguir curvas evolutivas a projetar teleologias e a recorrer continuamente às metáforas da vida experimentássemos uma repugnância singular em pensar a diferença em descrever os afastamentos e as dispersões em 14 Michel Foucault desintegrar a forma tranquilizadora do idêntico Ou mais exatamente é como se a partir desses conceitos de limiares mutações sistemas independentes séries limitadas tais como são utilizados de fato pelos historiadores tivéssemos dificuldade em fazer a teoria em deduzir as consequências gerais e mesmo em derivar todas as implicações possíveis É como se tivéssemos medo de pensar o outro no tempo de nosso próprio pensamento Há uma razão para isso Se a história do pensamento pudesse permanecer como o lugar das continuidades ininterruptas se ela unisse continuamente encadeamentos que nenhuma análise poderia desfazer sem abstração se ela tramasse em torno do que os homens dizem e fazem obscuras sínteses que a isso se antecipam o preparam e o conduzem indefinidamente para seu futuro ela seria para a soberania da consciência um abrigo privilegiado A história contínua é o correlato indispensável à função fundadora do sujeito a garantia de que tudo que lhe escapou poderá ser devolvido a certeza de que o tempo nada dispersará sem reconstituílo em uma unidade recomposta a promessa de que o sujeito poderá um dia sob a forma da consciência histórica se apropriar novamente de todas essas coisas mantidas a distância pela diferença restaurar seu domínio sobre elas e encontrar o que se pode chamar sua morada Fazer da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da consciência humana o sujeito originário de todo o devir e de toda prática são as duas faces de um mesmo sistema de pensamento O tempo é aí concebido em termos de totalização onde as revoluções jamais passam de tomadas de consciência Sob formas diferentes esse tema representou um papel constante desde o século XIX proteger contra todas as descentralizações a soberania do sujeito e as figuras gêmeas da antropologia e do humanismo Contra a descentralização operada por Marx pela análise histórica das relações de produção das determinações econômicas e da luta de classes ele deu lugar no final do século XIX à procura de uma história global em que todas as diferenças de uma sociedade poderiam ser conduzidas a uma forma única à organização de uma visão do mundo ao estabelecimento de um sistema de valores a um tipo coerente de civilização À descentralização operada pela genealogia nietzschiana o tema opôs a busca de um A Arqueologia do Saber 15 fundamento originário que fizesse da racionalidade o telos da humanidade e que prendesse a história do pensamento à salvaguarda dessa racionalidade à manutenção dessa teleologia e à volta sempre necessária a este fundamento Enfim mais recentemente quando as pesquisas da psicanálise da linguística da etnologia descentraram o sujeito em relação às leis de seu desejo às formas de sua linguagem às regras de sua ação ou aos jogos de seus discursos míticos ou fabulosos quando ficou claro que o próprio homem interrogado sobre o que era não podia explicar sua sexualidade e seu inconsciente as formas sistemáticas de sua língua ou a regularidade de suas ficções novamente o tema de uma continuidade da história foi reativado uma história que não seria escansão mas devir que não seria jogo de relações mas dinamismo interno que não seria sistema mas árduo trabalho da liberdade que não seria forma mas esforço incessante de uma consciência em se recompor e em tentar readquirir o domínio de si própria até as profundezas de suas condições uma história que seria ao mesmo tempo longa paciência ininterrupta e vivacidade de um movimento que acabasse por romper todos os limites Para tornar válido este tema que opõe à imobilidade das estruturas a seu sistema fechado à sua necessária sincronia a abertura viva da história é preciso evidentemente contestar nas próprias análises históricas o uso da descontinuidade a definição dos níveis e dos limites a descrição das séries específicas a revelação de todo o jogo das diferenças Somos então levados a antropologizar Marx a fazer dele um historiador das totalidades e a reencontrar nele o propósito do humanismo somos levados a interpretar Nietzsche nos termos da filosofia transcendental e a rebaixar sua genealogia no plano de uma pesquisa do originário finalmente somos levados a deixar de lado como se jamais tivesse aflorado todo este campo de problemas metodológicos que a história nova propõe hoje Pois se era tido como certo que a questão das descontinuidades dos sistemas e das transformações das séries e dos limiares se colocava em todas as disciplinas históricas e nas que dizem respeito às idéias ou às ciências tanto quanto nas que dizem respeito à economia e às sociedades como se poderia opor com qualquer aspecto de legitimidade o devir ao sistema o movimento às regulações circulares ou como 16 Michel Foucault se diz era uma irreflexão bem ligeira a história à estrutura É a mesma função conservadora que se encontra em atividade no tema das totalidades culturais pelo qual se criticou e depois distorceu Marx no tema de uma busca do originário que se opôs a Nietzsche antes de se querer transpôlo e no tema de uma história viva contínua e aberta Denunciaremos então a história assassinada cada vez que em uma análise histórica e sobretudo se se trata do pensamento das idéias ou dos conhecimentos virmos serem utilizadas de maneira demasiado manifesta as categorias da descontinuidade e da diferença as noções de limiar de ruptura e de transformação a descrição das séries e dos limites Denunciaremos um atentado contra os direitos imprescritíveis da história e contra o fundamento de toda historicidade possível Mas não devemos nos enganar o que tanto se lamenta não é o desaparecimento da história e sim a supressão desta forma de história que era em segredo mas totalmente referida à atividade sintética do sujeito o que se lamenta é o devir que deveria fornecer à soberania da consciência um abrigo mais seguro menos exposto que os mitos os sistemas de parentesco as línguas a sexualidade ou o desejo o que se lamenta é a possibilidade de reanimar pelo projeto o trabalho do sentido ou o movimento da totalização o jogo das determinações materiais das regras de prática dos sistemas inconscientes das relações rigorosas mas não refletidas das correlações que escapam a qualquer experiência vivida o que se lamenta é o uso ideológico da história pelo qual se tenta restituir ao homem tudo o que há mais de um século continua a lhe escapar Acumulamos todos os tesouros de outrora na velha cidadela desta história acreditamos que ela fosse sólida sacralizamola fizemos dela o lugar último do pensamento antropológico acreditamos poder aí capturar até mesmo aqueles que se tinham encarniçado contra ela acreditamos poder tornálos guardiões vigilantes Mas os historiadores desertaram há muito tempo dessa velha fortaleza e partiram para trabalhar em outro campo percebese mesmo que Marx ou Nietzsche não asseguram a salvaguarda que se lhes tinha confiado Não se deve mais contar com eles para proteger os privilégios nem para afirmar uma vez mais e entretanto só Deus sabe se se teria necessidade disso na aflição de hoje que a história A Arqueologia do Saber 17 pelo menos ela é viva e contínua que ela é para o tema em questão o lugar do repouso da certeza da reconciliação do sono tranquilizado Neste ponto se determina uma empresa cujo perfil foi traçado por Histoire de la folie Naissance de la clinique Les mots et les choses muito imperfeitamente Tratase de uma empresa pela qual se tenta medir as mutações que se operam em geral no domínio da história empresa onde são postos em questão os métodos os limites os temas próprios da história das idéias empresa pela qual se tenta desfazer as últimas sujeições antropológicas empresa que quer em troca mostrar como essas sujeições puderamse formar Estas tarefas foram esboçadas em uma certa desordem e sem que sua articulação geral fosse claramente definida Era tempo de lhes dar coerência ou pelo menos de colocálas em prática O resultado desse exercício é este livro Eis algumas observações antes de começar e para evitar qualquer malentendido Não se trata de transferir para o domínio da história e singularmente da história dos conhecimentos um método estruturalista que foi testado em outros campos de análise Tratase de revelar os princípios e as consequências de uma transformação autóctone que está em vias de se realizar no domínio do saber histórico É bem possível que essa transformação os problemas que ela coloca os instrumentos que utiliza os conceitos que aí se definem os resultados que ela obtém não sejam até certo ponto estranhos ao que se chama análise estrutural Mas não é essa análise que aqui se encontra especificamente em jogo Não se trata e ainda menos de utilizar as categorias das totalidades culturais sejam as visões de mundo os tipos ideais ou o espírito singular das épocas para impor à história e apesar dela as formas da análise estrutural As séries descritas os limites fixados as comparações e as correlações estabelecidas não se apóiam nas antigas filosofias da história mas têm por finalidade colocar novamente em questão as teleologias e as totalizações 18 Michel Foucault Na medida em que se trata de definir um método de análise histórica que esteja liberado do tema antropológico vêse que a teoria que vai ser esboçada agora se encontra com as pesquisas já feitas em uma dupla relação Ela tenta formular em termos gerais e não sem muitas retificações e elaborações os instrumentos que essas pesquisas utilizaram ou criaram para atender às necessidades da causa Mas por outro lado ela se reforça com os resultados então obtidos para definir um método de análise que esteja isento de qualquer antropologismo O solo sobre o qual repousa é o que ela descobriu As pesquisas sobre a loucura e o aparecimento de uma psicologia sobre a doença e o nascimento de uma medicina clínica sobre as ciências da vida da linguagem e da economia foram tentativas de certa forma cegas mas elas se esclareciam sucessivamente não somente porque precisavam pouco a pouco seu método mas porque descobriram neste debate sobre o humanismo e antropologia o ponto de sua possibilidade histórica Em uma palavra esta obra como as que a precederam não se inscreve pelo menos diretamente ou em primeira instância no debate sobre a estrutura confrontada com a gênese a história o devir mas sim no campo em que se manifestam se cruzam se emaranham e se especificam as questões do ser humano da consciência da origem e do sujeito Mas sem dúvida não estaríamos errados em dizer que aqui também se coloca o problema da estrutura Este trabalho não é a retomada e a descrição exata do que se pode ler em Histoire de la folie Naissance de la clinique ou Les mots et les choses Em muitos pontos ele é diferente permitindo também diversas correções e criticas internas De maneira geral Histoire de la folie dedicava uma parte bastante considerável e aliás bem enigmática ao que se designava como uma experiência mostrando assim o quanto permanecíamos próximos de admitir um sujeito anônimo e geral da história Em Naissance de la clinique o recurso à análise estrutural tentado várias vezes ameaçava subtrair a especificidade do problema colocado e o nível característico da arqueologia Enfim em Les mots et les choses a ausência da balizagem metodológica permitiu que se acreditasse em A Arqueologia do Saber 19 análises em termos de totalidade cultural Entristeceme o fato de que eu não tenha sido capaz de evitar esses perigos consolome dizendo que eles estavam inscritos na própria empresa já que para tomar suas medidas ela mesma tinha de se livrar desses métodos diversos e dessas diversas formas de história e depois sem as questões que me foram colocadas3 sem as dificuldades levantadas sem as objeções eu sem dúvida não teria visto desenharse tão clara a empresa à qual quer queira quer não me encontro ligado de agora em diante Daí a maneira precavida claudicante deste texto a cada instante ele se distancia estabelece suas medidas de um lado e de outro tateia em direção a seus limites se choca com o que não quer dizer cava fossos para definir seu próprio caminho A cada instante denuncia a confusão possível Declina sua identidade não sem dizer previamente não sou isto nem aquilo Não se trata de uma crítica na maior parte do tempo nem de uma maneira de dizer que todo mundo se enganou a torto e a direito mas sim de definir uma posição singular pela exterioridade de suas vizinhanças mais do que querer reduzir os outros ao silêncio fingindo que seu propósito é vão tentar definir esse espaço branco de onde falo e que toma forma lentamente em um discurso que sinto como tão precário tão incerto ainda Você não está seguro do que diz Vai novamente mudar deslocarse em relação às questões que lhe são colocadas dizer que as objeções não apontam realmente para o lugar em que você se pronuncia Você se prepara para dizer ainda uma vez que você nunca foi aquilo que era você se critica Você já arranja a saída que lhe permitirá em seu próximo livro ressurgir em outro lugar e zombar como o faz agora não não eu não estou onde você me espreita mas aqui de onde o observo rindo 3 As primeiras páginas deste texto especialmente constituíram sob forma um pouco diferente uma resposta às questões formuladas pelo Cercle dépistémologie de ENS v Colliers pour Vanalyse nº 9 Por outro lado um esboço de certas exposições foi apresentado em resposta aos leitores de Esprit abril 1968 20 Michel Foucault Como Você pensa que eu teria tanta dificuldade e tanto prazer em escrever que eu me teria obstinado nisso cabeça baixa se não preparasse com as mãos um pouco febris o labirinto onde me aventurar deslocar meu propósito abrirlhe subterrâneos enterrálo longe dele mesmo encontrarlhe desvios que resumem e deformam seu percurso onde me perder e aparecer finalmente diante de olhos que eu não terei mais que encontrar Vários como eu sem dúvida escrevem para não ter mais um rosto Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo é uma moral de estado civil ela rege nossos papéis Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever II AS REGULARIDADES DISCURSIVAS 1 AS UNIDADES DO DISCURSO O emprego dos conceitos de descontinuidade de ruptura de limiar de limite de série de transformação coloca a qualquer análise histórica não somente questões de procedimento mas também problemas teóricos São estes os problemas que vão ser aqui estudados as questões de procedimento serão consideradas no curso das próximas pesquisas empíricas se eu tiver pelo menos a oportunidade o desejo e a coragem de empreendêlas Entretanto só serão considerados em um campo particular nessas disciplinas tão incertas de suas fronteiras tão indecisas em seu conteúdo que se chamam história das idéias ou do pensamento ou das ciências ou dos conhecimentos Há em primeiro lugar um trabalho negativo a ser realizado libertarse de todo um jogo de noções que diversificam cada uma à sua maneira o tema da continuidade Elas sem dúvida não têm uma estrutura conceitual bastante rigorosa mas sua função é precisa Assim é a noção de tradição ela visa a dar uma importância temporal singular a um conjunto de fenômenos ao mesmo tempo sucessivos e idênticos ou pelo menos análogos permite repensar a dispersão da história na forma desse conjunto autoriza reduzir a diferença característica de qualquer começo para retroceder sem interrupção na atribuição indefinida da origem graças a ela as 24 Michel Foucault novidades podem ser isoladas sobre um fundo de permanência e seu mérito transferido para a originalidade o gênio a decisão própria dos indivíduos O mesmo ocorre com a noção de influência que fornece um suporte demasiado mágico para poder ser bem analisado aos fatos de transmissão e de comunicação que atribui a um processo de andamento causai mas sem delimitação rigorosa nem definição teórica os fenômenos de semelhança ou de repetição que liga a distância e através do tempo como por intermédio de um meio de propagação unidades definidas como indivíduos obras noções ou teorias Assim também ocorre com as noções de desenvolvimento e de evolução elas permitem reagrupar uma sucessão de acontecimentos dispersos relacionálos a um único e mesmo princípio organizador submetêlos ao poder exemplar da vida com seus jogos de adaptação sua capacidade de inovação a incessante correlação de seus diferentes elementos seus sistemas de assimilação e de trocas descobrir já atuantes em cada começo um princípio de coerência e o esboço de uma unidade futura controlar o tempo por uma relação continuamente reversível entre uma origem e um termo jamais determinados sempre atuantes O mesmo acontece ainda com as noções de mentalidade ou de espírito que permitem estabelecer entre os fenômenos simultâneos ou sucessivos de uma determinada época uma comunidade de sentido ligações simbólicas um jogo de semelhança e de espelho ou que fazem surgir como princípio de unidade e de explicação a soberania de uma consciência coletiva É preciso pôr em questão novamente essas sínteses acabadas esses agrupamentos que na maioria das vezes são aceitos antes de qualquer exame esses laços cuja validade é reconhecida desde o início é preciso desalojar essas formas e essas forças obscuras pelas quais se tem o hábito de interligar os discursos dos homens é preciso expulsálas da sombra onde reinam E ao invés de deixálas ter valor espontaneamente aceitar tratar apenas por questão de cuidado com o método e em primeira instância de uma população de acontecimentos dispersos É preciso também que nos inquietemos diante de certos recortes ou agrupamentos que já nos são familiares É possível admitir tais como são a distinção dos grandes tipos de discurso ou a das formas ou dos gêneros que opõem umas às outras ciência literatura filosofia religião história ficção etc A Arqueologia do Saber 25 e que as tornam espécies de grandes individualidades históricas Nós próprios não estamos seguros do uso dessas distinções no nosso mundo de discursos e ainda mais quando se trata de analisar conjuntos de enunciados que eram na época de sua formulação distribuídos repartidos e caracterizados de modo inteiramente diferente afinal a literatura e a política são categorias recentes que só podem ser aplicadas à cultura medieval ou mesmo à cultura clássica por uma hipótese retrospectiva e por um jogo de analogias formais ou de semelhanças semânticas mas nem a literatura nem a política nem tampouco a filosofia e as ciências articulavam o campo do discurso nos séculos XVII ou XVIII como o articularam no século XIX De qualquer maneira esses recortes quer se trate dos que admitimos ou dos que são contemporâneos dos discursos estudados são sempre eles próprios categorias reflexivas princípios de classificação regras normativas tipos institucionalizados são por sua vez fatos de discurso que merecem ser analisados ao lado dos outros que com eles mantêm certamente relações complexas mas que não constituem seus caracteres intrínsecos autóctones e universalmente reconhecíveis Mas sobretudo as unidades que é preciso deixar em suspenso são as que se impõem da maneira mais imediata as do livro e da obra Aparentemente podese apagálas sem um extremo artifício Não são elas apresentadas da maneira mais exata possível Individualização material do livro que ocupa um espaço determinado que tem um valor econômico e que marca por si mesmo por um certo número de signos os limites de seu começo e de seu fim estabelecimento de uma obra que se reconhece e que se delimita atribuindo um certo número de textos a um autor E no entanto assim que são observadas um pouco mais de perto começam as dificuldades Unidade material do livro Será a mesma quando se trata de uma antologia de poemas de uma coletânea de fragmentos póstumos do Traité des coniques ou de um tomo da Histoire de France de Michelet Será a mesma quando se trata de Un coup de dés do processo de Gilles de Rais do San Marco de Butor ou de um missal católico Em outros termos a unidade material do volume não será uma unidade fraca acessória em relação à unidade discursiva a que ela dá apoio Mas essa unidade discursiva por sua vez será homogênea e 26 Michel Foucault uniformemente aplicável Um romance de Stendhal ou um romance de Dostoiévski não se individualizam como os de La comédie humaine e estes por sua vez não se distinguem uns dos outros como Ulisses da Odisséia É que as margens de um livro jamais são nítidas nem rigorosamente determinadas além do título das primeiras linhas e do ponto final além de sua configuração interna e da forma que lhe dá autonomia ele está preso em um sistema de remissões a outros livros outros textos outras frases nó em uma rede E esse jogo de remissões não é homólogo conforme se refira a um tratado de matemática a um comentário de textos a uma narração histórica a um episódio em um ciclo romanesco em qualquer um dos casos a unidade do livro mesmo entendida como feixe de relações não pode ser considerada como idêntica Por mais que o livro se apresente como um objeto que se tem na mão por mais que ele se reduza ao pequeno paralelepípedo que o encerra sua unidade é variável e relativa Assim que a questionamos ela perde sua evidência não se indica a si mesma só se constrói a partir de um campo complexo de discursos Quanto à obra os problemas por ela levantados são mais difíceis ainda Aparentemente entretanto o que há de mais simples Uma soma de textos que podem ser denotados pelo signo de um nome próprio Ora essa denotação mesmo se forem deixados de lado os problemas da atribuição não é uma função homogênea o nome de um autor denota da mesma maneira um texto que ele próprio publicou com seu nome um texto que apresentou sob pseudônimo um outro que será descoberto após sua morte em rascunho um outro ainda que não passa de anotações uma caderneta de notas um papel A constituição de uma obra completa ou de um opus supõe um certo número de escolhas difíceis de serem justificadas ou mesmo formuladas será que basta juntar aos textos publicados pelo autor os que ele planejava editar e que só permaneceram inacabados pelo fato de sua morte Será preciso incluir também tudo que é rascunho primeiro projeto correções e rasuras dos livros Será preciso reunir esboços abandonados E que importância dar às cartas às notas às conversas relatadas aos propósitos transcritos por seus ouvintes enfim a este imenso formigamento de vestígios verbais que um indivíduo deixa em torno de si no momento de morrer e que falam em um entrecruzamento indefinido tantas A Arqueologia do Saber 27 linguagens diferentes De qualquer forma o nome Mallarmé não se refere da mesma maneira às versões inglesas às traduções de Edgar Poe aos poemas ou às respostas a pesquisas assim não é a mesma relação que existe entre o nome de Nietzsche por um lado e por outro as autobiografias de juventude as dissertações escolares os artigos filológicos Zaratustra Ecce Homo as cartas os últimos cartõespostais assinados por Dionysos ou Kaiser Nietzsche as inumeráveis cadernetas em que se misturam notas de lavanderia e projetos de aforismos Na verdade se se fala com tanto prazer e sem maiores questionamentos sobre a obra de um autor é porque a supomos definida por uma certa função de expressão Admitese que deve haver um nível tão profundo quanto é preciso imaginar no qual a obra se revela em todos os seus fragmentos mesmo os mais minúsculos e os menos essenciais como a expressão do pensamento ou da experiência ou da imaginação ou do inconsciente do autor ou ainda das determinações históricas a que estava preso Mas vêse logo que tal unidade longe de ser apresentada imediatamente é constituída por uma operação que essa operação é interpretativa já que decifra no texto a transcrição de alguma coisa que ele esconde e manifesta ao mesmo tempo que finalmente a operação que determina o opus em sua unidade e por conseguinte a própria obra não será a mesma no caso do autor do Théâtre et son double ou no caso do autor do Tractatus e que assim não é no mesmo sentido que se falará uma obra A obra não pode ser considerada como unidade imediata nem como unidade certa nem como unidade homogênea Finalmente eis a última precaução para colocar fora de circuito as continuidades irrefletidas pelas quais se organizam de antemão os discursos que se pretende analisar renunciar a dois temas que estão ligados um ao outro e que se opõem Um quer que jamais seja possível assinalar na ordem do discurso a irrupção de um acontecimento verdadeiro que além de qualquer começo aparente há sempre uma origem secreta tão secreta e tão originária que dela jamais poderemos nos reapoderar inteiramente Desta forma seríamos fatalmente reconduzidos através da ingenuidade das cronologias a um ponto indefinidamente recuado jamais presente em qualquer história ele mesmo não passaria de seu próprio vazio e a partir dele todos os começos jamais poderiam deixar 28 Michel Foucault de ser recomeço ou ocultação na verdade em um único e mesmo gesto isto e aquilo A esse tema se liga um outro segundo o qual todo discurso manifesto repousaria secretamente sobre um jádito e que este jádito não seria simplesmente uma frase já pronunciada um texto já escrito mas um jamaisdito um discurso sem corpo uma voz tão silenciosa quanto um sopro uma escrita que não é senão o vazio de seu próprio rastro Supõese assim que tudo que o discurso formula já se encontra articulado nesse meiosilêncio que lhe é prévio que continua a correr obstinadamente sob ele mas que ele recobre e faz calar O discurso manifesto não passaria afinal de contas da presença repressiva do que ele diz e esse nãodito seria um vazio minando do interior tudo que se diz O primeiro motivo condena a análise histórica do discurso a ser busca e repetição de uma origem que escapa a toda determinação histórica o outro a destina a ser interpretação ou escuta de um jádito que seria ao mesmo tempo um nãodito É preciso renunciar a todos esses temas que têm por função garantir a infinita continuidade do discurso e sua secreta presença no jogo de uma ausência sempre reconduzida É preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua irrupção de acontecimentos nessa pontualidade em que aparece e nessa dispersão temporal que lhe permite ser repetido sabido esquecido transformado apagado até nos menores traços escondido bem longe de todos os olhares na poeira dos livros Não é preciso remeter o discurso à longínqua presença da origem é preciso tratálo no jogo de sua instância Essas formas prévias de continuidade todas essas sínteses que não problematizamos e que deixamos valer de pleno direito é preciso pois mantêlas em suspenso Não se trata é claro de recusálas definitivamente mas sacudir a quietude cora a qual as aceitamos mostrar que elas não se justificam por si mesmas que são sempre o efeito de uma construção cujas regras devem ser conhecidas e cujas justificativas devem ser controladas definir em que condições e em vista de que análises algumas são legítimas indicar as que de qualquer forma não podem mais ser admitidas Seria bem possível por exemplo que as noções de influência ou de evolução originassem uma crítica que as colocasse por um tempo mais ou menos longo fora de uso Mas a obra o livro ou ainda estas unidades como a ciência ou a literatura será A Arqueologia do Saber 29 preciso sempre dispensálas Será preciso tomálas por ilusões construções sem legitimidade resultados mal alcançados Será preciso desistir de se buscar qualquer apoio nelas mesmo provisoriamente e de lhes dar uma definição Tratase de fato de arrancálas de sua quaseevidência de liberar os problemas que colocam reconhecer que não são o lugar tranquilo a partir do qual outras questões podem ser levantadas sobre sua estrutura sua coerência sua sistematicidade suas transformações mas que colocam por si mesmas todo um feixe de questões Que são Como definilas ou limitálas A que tipos distintos de leis podem obedecer De que articulação são suscetíveis A que subconjuntos podem dar lugar Que fenômenos específicos fazem aparecer no campo do discurso Tratase de reconhecer que elas talvez não sejam afinal de contas o que se acreditava que fossem à primeira vista Enfim que exigem uma teoria e que essa teoria não pode ser elaborada sem que apareça em sua pureza não sintética o campo dos fatos do discurso a partir do qual são construídas E eu mesmo de minha parte nada farei senão isso certamente tomarei por marco inicial unidades inteiramente formadas como a Psicopatologia ou a medicina ou a economia política mas não me colocarei no interior dessas unidades duvidosas para estudarlhes a configuração interna ou as secretas contradições Não me apoiarei nelas senão o tempo necessário para me perguntar que unidades formam com que direito podem reivindicar um domínio que as especifique no espaço e uma continuidade que as individualize no tempo segundo que leis elas se formam sobre o pano de fundo de que acontecimentos discursivos elas se recortam e se finalmente não são em sua individualidade aceita e quase institucional o efeito de superfície de unidades mais consistentes Aceitarei os conjuntos que a história me propõe apenas para questionálos imediatamente para desfazêlos e saber se podemos recompôlos legitimamente para saber se não é preciso reconstituir outros para recolocálos em um espaço mais geral que dissipando sua aparente familiaridade permita fazer sua teoria Uma vez suspensas essas formas imediatas de continuidade todo ura domínio encontrase de fato liberado Tratase de um domínio imenso mas que se pode definir é constituído pelo conjunto de todos os enunciados efetivos quer tenham 30 Michel Foucault sido falados ou escritos em sua dispersão de acontecimentos e na instância própria de cada um Antes de se ocupar com toda certeza de uma ciência ou de romances ou de discursos políticos ou da obra de um autor ou mesmo de um livro o material que temos a tratar em sua neutralidade inicial é uma população de acontecimentos no espaço do discurso em geral Aparece assim o projeto de uma descrição dos acontecimentos discursivos como horizonte para a busca das unidades que aí se formam Essa descrição se distingue facilmente da análise da língua Certamente só podemos estabelecer um sistema linguístico se não o construímos artificialmente utilizando um corpo de enunciados ou uma coleção de fatos de discurso mas tratase então de definir a partir desse conjunto que tem valor de amostra regras que permitam construir eventualmente outros enunciados diferentes daqueles mesmo que tenha desaparecido há muito tempo mesmo que ninguém a fale mais e que tenha sido restaurada a partir de raros fragmentos uma língua constitui sempre um sistema para enunciados possíveis um conjunto finito de regras que autoriza um número infinito de desempenhos O campo dos acontecimentos discursivos em compensação é o conjunto sempre finito e efetivamente limitado das únicas sequências linguísticas que tenham sido formuladas elas bem podem ser inumeráveis e podem por sua massa ultrapassar toda capacidade de registro de memória ou de leitura elas constituem entretanto um conjunto finito Eis a questão que a análise da língua coloca a propósito de qualquer fato de discurso segundo que regras um enunciado foi construído e consequentemente segundo que regras outros enunciados semelhantes poderiam ser construídos A descrição de acontecimentos do discurso coloca uma outra questão bem diferente como apareceu um determinado enunciado e não outro em seu lugar Vêse igualmente que essa descrição do discurso se opõe à história do pensamento Aí também não se pode reconstituir um sistema de pensamento a partir de um conjunto definido de discursos Mas esse conjunto é tratado de tal maneira que se tenta encontrar além dos próprios enunciados a intenção do sujeito falante sua atividade consciente o que ele quis dizer ou ainda o jogo inconsciente que emergiu involuntariamente do que disse ou da quase imperceptível fratura de suas palavras manifestas de qualquer forma tratase de A Arqueologia do Saber 31 reconstituir ura outro discurso de descobrir a palavra muda murmurante inesgotável que anima do interior a voz que escutamos de restabelecer o texto miúdo e invisível que percorre o interstício das linhas escritas e às vezes as desarruma A análise do pensamento é sempre alegórica em relação ao discurso que utiliza Sua questão infalivelmente é o que se dizia no que estava dito A análise do campo discursivo é orientada de forma inteiramente diferente tratase de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação de determinar as condições de sua existência de fixar seus limites da forma mais justa de estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode estar ligado de mostrar que outras formas de enunciação exclui Não se busca sob o que está manifesto a conversa semisilenciosa de um outro discurso devese mostrar por que não poderia ser outro como exclui qualquer outro como ocupa no meio dos outros e relacionado a eles um lugar que nenhum outro poderia ocupar A questão pertinente a uma tal análise poderia ser assim formulada que singular existência é esta que vem à tona no que se diz e em nenhuma outra parte Devemos perguntarnos para que finalmente pode servir essa atitude de manter em suspenso todas as unidades admitidas se se trata em suma de reencontrar as unidades que fingimos questionar no início Na verdade a supressão sistemática das unidades inteiramente aceitas permite inicialmente restituir ao enunciado sua singularidade de acontecimento e mostrar que a descontinuidade não é somente um desses grandes acidentes que produzem uma falha na geologia da história mas já no simples fato do enunciado fazse assim com que ele surja em sua irrupção histórica o que se tenta observar é essa incisão que ele constitui essa irredutível e muito frequentemente minúscula emergência Por mais banal que seja por menos importante que o imaginemos em suas consequências por mais facilmente esquecido que possa ser após sua aparição por menos entendido ou mal decifrado que o suponhamos um enunciado é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente Tratase de um acontecimento estranho por certo inicialmente porque está ligado de um lado a um gesto de escrita ou à articulação de uma palavra mas por outro lado abre para si mesmo uma existência remanescente no campo de uma memória ou na 32 Michel Foucault materialidade dos manuscritos dos livros e de qualquer forma de registro em seguida porque é único como todo acontecimento mas está aberto à repetição à transformação à reativação finalmente porque está ligado não apenas a situações que o provocam e a consequências por ele ocasionadas mas ao mesmo tempo e segundo uma modalidade inteiramente diferente a enunciados que o precedem e o seguem Mas se isolamos em relação à língua e ao pensamento a instância do acontecimento enunciativo não é para disseminar uma poeira de fatos e sim para estarmos seguros de não relacionála com operadores de síntese que sejam puramente psicológicos a intenção do autor a forma de seu espírito o rigor de seu pensamento os temas que o obcecam o projeto que atravessa sua existência e lhe dá significação e podermos apreender outras formas de regularidade outros tipos de relações Relações entre os enunciados mesmo que escapem à consciência do autor mesmo que se trate de enunciados que não têm o mesmo autor mesmo que os autores não se conheçam relações entre grupos de enunciados assim estabelecidos mesmo que esses grupos não remetam aos mesmos domínios nem a domínios vizinhos mesmo que não tenham o mesmo nível formal mesmo que não constituam o lugar de trocas que podem ser determinadas relações entre enunciados ou grupos de enunciados e acontecimentos de uma ordem inteiramente diferente técnica econômica social política Fazer aparecer em sua pureza o espaço em que se desenvolvem os acontecimentos discursivos não é tentar restabelecêlo em um isolamento que nada poderia superar não é fechálo em si mesmo é tornarse livre para descrever nele e fora dele jogos de relações Eis o terceiro interesse de tal descrição dos fatos de discurso libertandoos de todos os grupamentos considerados como unidades naturais imediatas e universais temos a possibilidade de descrever outras unidades mas dessa vez por um conjunto de decisões controladas Contanto que se definam claramente as condições poderia ser legítimo constituir a partir de relações corretamente descritas conjuntos que não seriam arbitrários mas que entretanto teriam permanecido invisíveis Certamente essas relações jamais teriam sido formuladas por elas mesmas nos enunciados em questão diferentemente por exemplo dessas relações explícitas que são A Arqueologia do Saber 33 colocadas e ditas pelo próprio discurso quando assume a forma do romance ou quando se inscreve numa série de teoremas matemáticos Elas entretanto não constituiriam de maneira alguma uma espécie de discurso secreto animando do interior os discursos manifestos não é pois uma interpretação dos fatos enunciativos que poderia trazêlos à luz mas a análise de sua coexistência de sua sucessão de seu funcionamento mútuo de sua determinação recíproca de sua transformação independente ou correlativa Fora de cogitação entretanto está o fato de se poder descrever sem limites todas as relações que possam assim aparecer É preciso numa primeira aproximação aceitar um recorte provisório uma região inicial que a análise revolucionará e reorganizará se houver necessidade Mas como circunscrever essa região Por um lado é preciso empiricamente escolher um domínio em que as relações corram o risco de ser numerosas densas e relativamente fáceis de descrever e em que outra região os acontecimentos discursivos parecem estar mais ligados uns aos outros e segundo relações mais decifráveis senão nesta que se designa em geral pelo termo ciência Mas por outro lado como se dar o máximo de chances de tornar a apreender em um enunciado não o momento de sua estrutura formal e de suas leis de construção mas o de sua existência e das regras de seu aparecimento a menos que nos dirijamos a grupos de discursos pouco formalizados onde os enunciados não pareçam se engendrar necessariamente segundo regras de mera sintaxe Como estarmos certos de que escaparemos de recortes como os da obra de categorias como as da influência a menos que proponhamos desde o início domínios bastante amplos escalas cronológicas bastante vastas Finalmente como estarmos certos de que não nos prenderemos a todas essas unidades ou sínteses pouco refletidas que se referem ao sujeito falante ao sujeito do discurso ao autor do texto enfim a todas essas categorias antropológicas A menos talvez que consideremos o conjunto dos enunciados através dos quais essas categorias se constituíram o conjunto dos enunciados que escolheram como objeto o sujeito dos discursos seu próprio sujeito e que se dispuseram a desenvolvêlo como campo de conhecimentos Assim se explica o privilégio real que dei a discursos dos quais se pode dizer muito esquematicamente que definem as 34 Michel Foucault ciências do homem Mas isso não passa de um privilégio inicial É preciso ter em mente dois fatos a análise dos acontecimentos discursivos não está de maneira alguma limitada a semelhante domínio e por outro lado o recorte do próprio domínio não pode ser considerado como definitivo nem como válido de forma absoluta tratase de uma primeira aproximação que deve permitir o aparecimento de relações que correm o risco de suprimir os limites desse primeiro esboço 2 AS FORMAÇÕES DISCURSIVAS Tentei descrever relações entre enunciados Tive o cuidado de não admitir como válida nenhuma dessas unidades que me podiam ser propostas e que o hábito punha à minha disposição Decidime a não negligenciar nenhuma forma de descontinuidade de corte de limiar ou de limite Decidime a descrever enunciados no campo do discurso e as relações de que são suscetíveis Vejo que duas séries de problemas se apresentam de imediato uma vou deixála em suspenso no momento e a retomarei mais tarde se refere à utilização grosseira que fiz dos termos enunciado acontecimento discurso a outra às relações que podem ser legitimamente descritas entre esses enunciados deixados em seu grupamento provisório e visível Há por exemplo enunciados que se apresentam e isso a partir de uma data que se pode determinar facilmente como referentes à economia política ou à biologia ou à Psicopatologia há também os que se apresentam como pertencentes a essas continuidades milenárias quase sem origem que chamamos gramática ou medicina Mas o que são essas unidades Como se pode dizer que a análise das doenças mentais feita por Willis e pelos clínicos de Charcot pertencem à mesma ordem de discurso Que as invenções de Petty estão numa relação de continuidade com a economia de Neumann Que a análise do juízo feita pelos gramáticos de PortRoyal pertence 36 Michel Foucault ao mesmo domínio da identificação das alternâncias vocálicas nas línguas indoeuropéias O que é então a medicina a gramática a economia política Será que não passam de um reagrupamento retrospectivo pelo qual as ciências contemporâneas se iludem sobre seu próprio passado São formas que se instauraram definitivamente e se desenvolveram soberanamente através do tempo Encobrem outras unidades E que espécie de laços reconhecer validamente entre todos esses enunciados que formam de um modo ao mesmo tempo familiar e insistente uma massa enigmática Primeira hipótese a que me pareceu inicialmente a mais verossímil e a mais fácil de provar os enunciados diferentes em sua forma dispersos no tempo formam um conjunto quando se referem a um único e mesmo objeto Assim parece que os enunciados pertinentes à Psicopatologia referemse a esse objeto que se perfila de diferentes maneiras na experiência individual ou social e que se pode designar por loucura Ora logo percebi que a unidade do objeto loucura não nos permite individualizar um conjunto de enunciados e estabelecer entre eles uma relação ao mesmo tempo descritível e constante E isso ocorre por duas razões Cometeríamos um erro seguramente se perguntássemos ao próprio ser da loucura ao seu conteúdo secreto à sua verdade muda e fechada em si mesma o que se pôde dizer a seu respeito e em um momento dado a doença mental foi constituída pelo conjunto do que foi dito no grupo de todos os enunciados que a nomeavam recortavam descreviam explicavam contavam seus desenvolvimentos indicavam suas diversas correlações julgavamna e eventualmente emprestavamlhe a palavra articulando em seu nome discursos que deviam passar por seus Mas há mais ainda esse conjunto de enunciados está longe de se relacionar com um único objeto formado de maneira definitiva e de conserválo indefinidamente como seu horizonte de idealidade inesgotável o objeto que é colocado como seu correlato pelos enunciados médicos dos séculos XVII ou XVIII não é idêntico ao objeto que se delineia através das sentenças jurídicas ou das medidas policiais da mesma forma todos os objetos do discurso psicopatológico foram modificados desde Pinel ou Esquirol até Bleuler não se trata das mesmas doenças não se trata dos mesmos loucos A Arqueologia do Saber 37 Poderíamos deveríamos talvez concluir a partir dessa multiplicidade dos objetos que não é possível admitir como uma unidade válida para constituir um conjunto de enunciados o discurso referente à loucura Talvez fosse necessário que nos ativássemos apenas aos grupos de enunciados que têm um único e mesmo objeto os discursos sobre a melancolia ou sobre a neurose Mas logo nos daríamos conta de que cada um desses discursos por sua vez constituiu seu objeto e o elaborou até transformálo inteiramente Assim a questão é saber se a unidade de um discurso é feita pelo espaço onde diversos objetos se perfilam e continuamente se transformam e não pela permanência e singularidade de um objeto A relação característica que permitiria individualizar ura conjunto de enunciados referentes à loucura não seria então a regra de emergência simultânea ou sucessiva dos diversos objetos que aí são nomeados descritos analisados apreciados ou julgados A unidade dos discursos sobre a loucura não estaria fundada na existência do objeto loucura ou na constituição de um único horizonte de objetividade seria esse o jogo das regras que tornam possível durante um período dado o aparecimento dos objetos objetos que são recortados por medidas de discriminação e de repressão objetos que se diferenciam na prática cotidiana na jurisprudência na casuística religiosa no diagnóstico dos médicos objetos que se manifestam em descrições patológicas objetos que são limitados por códigos ou receitas de medicação de tratamento de cuidados Além disso a unidade dos discursos sobre a loucura seria o jogo das regras que definem as transformações desses diferentes objetos sua nãoidentidade através do tempo a ruptura que neles se produz a descontinuidade interna que suspende sua permanência De modo paradoxal definir um conjunto de enunciados no que ele tem de individual consistiria em descrever a dispersão desses objetos apreender todos os interstícios que os separam medir as distâncias que reinam entre eles em outras palavras formular sua lei de repartição Segunda hipótese para definir um grupo de relações entre enunciados sua forma e seu tipo de encadeamento Parecerame por exemplo que a ciência médica a partir do século XIX se caracterizava menos por seus objetos ou conceitos do que por um certo estilo um certo caráter constante da 38 Michel Foucault enunciação Pela primeira vez a medicina não se constituía mais de um conjunto de tradições de observações de receitas heterogêneas mas sim de um corpus de conhecimentos que supunha uma mesma visão das coisas um mesmo esquadrinhamento do campo perceptivo uma mesma análise do fato patológico segundo o espaço visível do corpo um mesmo sistema de transcrição do que se percebe no que se diz mesmo vocabulário mesmo jogo de metáforas enfim parecerame que a medicina se organizava como uma série de enunciados descritivos Mas ainda aí foi preciso abandonar essa hipótese inicial e reconhecer que o discurso clínico era não só um conjunto de hipóteses sobre a vida e a morte de escolhas éticas de decisões terapêuticas de regulamentações institucionais de modelos de ensino mas também um conjunto de descrições que este não podia de forma alguma ser abstraído daqueles e que a enunciação descritiva não passava de uma das formulações presentes no discurso médico Foi preciso também reconhecer que essa descrição não parou de se deslocar seja porque de Bichat à patologia celular deslocaramse as escalas e os marcos seja porque da inspeção visual da auscultação e da palpação ao uso do microscópio e dos testes biológicos o sistema da informação foi modificado seja ainda porque da simples correlação anatomoclínica à análise refinada dos processos fisiopatológicos o léxico dos signos e sua decifração foram inteiramente reconstituídos seja finalmente porque o médico pouco a pouco deixou de ser o lugar de registro e de interpretação da informação e porque ao lado dele fora dele constituíramse massas documentárias instrumentos de correlação e técnicas de análise que ele tem certamente de utilizar mas que modificam em relação ao doente sua posição de sujeito observante Todas essas alterações que nos conduzem talvez hoje ao limiar de uma nova medicina depositaramse lentamente no discurso médico no decorrer do século XIX Se se quisesse definir esse discurso por um sistema codificado e normativo de enunciação seria preciso reconhecer que essa medicina se desfez tão logo apareceu e que só conseguiu se formular com Bichat e Laennec Se há unidade o princípio não é pois uma forma determinada de enunciados não seria talvez o conjunto das regras que tornaram possíveis simultânea ou sucessivamente descrições puramente perceptivas mas também A Arqueologia do Saber 39 observações tornadas mediatas por instrumentos protocolos de experiências de laboratórios cálculos estatísticos constatações epidemiológicas ou demográficas regulamentações institucionais prescrições terapêuticas Seria preciso caracterizar e individualizar a coexistência desses enunciados dispersos e heterogêneos o sistema que rege sua repartição como se apóiam uns nos outros a maneira pela qual se supõem ou se excluem a transformação que sofrem o jogo de seu revezamento de sua posição e de sua substituição Outra direção de pesquisa outra hipótese não se poderiam estabelecer grupos de enunciados determinandolhes o sistema dos conceitos permanentes e coerentes que aí se encontram em jogo Por exemplo a análise da linguagem e dos fatos gramaticais não repousaria com os clássicos desde Lancelot até o fim do século XVIII em um número definido de conceitos cujo conteúdo e uso eram estabelecidos de forma definitiva o conceito de juízo definido como a forma geral e normativa de qualquer frase os conceitos de sujeito e de predicativo reagrupados sob a categoria mais geral de nome o conceito de verbo utilizado como equivalente do de ligação lógica o conceito de palavra definido como signo de uma representação etc Seria possível assim reconstituir a arquitetura conceitual da gramática clássica Mas ainda aí logo encontraríamos limites sem dúvida poderíamos descrever com tais elementos apenas as análises feitas pelos autores de PortRoyal logo seríamos obrigados a constatar o aparecimento de novos conceitos alguns entre eles derivaramse talvez dos primeiros mas outros lhes são heterogêneos e alguns até incompatíveis A noção de ordem sintática natural ou inversa a de complemento introduzida no decorrer do século XV11I por Beauzée podem sem dúvida integrarse ainda ao sistema conceitual da gramática de PortRoyal Mas nem a idéia de um valor originariamente expressivo dos sons nem a de um saber primitivo guardado nas palavras e transmitido obscuramente por elas nem a de uma regularidade na mutação das consoantes nem a concepção do verbo como simples nome que permite designar uma ação ou uma operação é compatível com o conjunto dos conceitos que Lancelot ou Duclos podiam usar Será necessário admitir nessas condições que a gramática só aparentemente constitui uma figura coerente e que é uma falsa unidade esse conjunto de enuncia 40 Michel Foucault dos análises descrições princípios e consequências deduções que se perpetuou com esse nome durante mais de um século Entretanto talvez fosse descoberta uma unidade discursiva se a buscássemos não na coerência dos conceitos mas em sua emergência simultânea ou sucessiva em seu afastamento na distância que os separa e eventualmente em sua incompatibilidade Não buscaríamos mais então uma arquitetura de conceitos suficientemente gerais e abstratos para explicar todos os outros e introduzilos no mesmo edifício dedutivo tentaríamos analisar o jogo de seus aparecimentos e de sua dispersão Finalmente a quarta hipótese para reagrupar os enunciados descrever seu encadeamento e explicar as formas unitárias sob as quais eles se apresentam a identidade e a persistência dos temas Em ciências como a economia e a biologia tão voltadas para a polêmica tão permeáveis a opções filosóficas ou morais tão prontas em certos casos à utilização política é legítimo em primeira instância supor que uma certa temática seja capaz de ligar e de animar como um organismo que tem suas necessidades sua força interna e suas capacidades de sobrevivência um conjunto de discursos Será que não se poderia por exemplo constituir como unidade tudo que de Buffon a Darwin constituiu o tema evolucionista Tema de início mais filosófico que científico mais próximo da cosmologia que da biologia tema que dirigiu de longe pesquisas mais do que nomeou recobriu e explicou resultados tema que supunha sempre mais do que dele se sabia mas que forçava a partir dessa escolha fundamental a transformar em saber discursivo o que fora esboçado como hipótese ou como exigência Será que não se poderia falar da mesma forma do tema fisiocrático Idéia que postulava além de qualquer demonstração e antes de qualquer análise o caráter natural das três rendas fundiárias que supunha em consequência o primado econômico e político da propriedade agrária que excluía qualquer análise dos mecanismos da produção industrial que implicava em compensação a descrição do circuito do dinheiro no interior de um Estado de sua distribuição entre as diferentes categorias sociais e dos canais pelos quais voltava à produção que finalmente conduziu Ricardo a se interrogar sobre os casos em que essa tripla renda não aparecia nas condições A Arqueologia do Saber 41 era que poderia formarse e a denunciar em consequência disso o arbitrário do tema fisiocrático Mas a partir de semelhante tentativa somos levados a fazer duas constatações inversas e complementares Em um caso a mesma temática se articula a partir de dois jogos de conceitos de dois tipos de análise de dois campos de objetos perfeitamente diferentes a idéia evolucionista em sua formulação mais geral talvez seja a mesma em Benoit de Maillet Bordeu ou Diderot e em Darwin mas na verdade o que a torna possível e coerente não é de forma alguma da mesma ordem No século XVIII a idéia evolucionista é definida a partir de um parentesco das espécies que forma um continuum prescrito desde o início só as catástrofes da natureza o teriam interrompido ou progressivamente constituído pelo passar do tempo No século XIX o tema evolucionista se refere menos à constituição do quadro contínuo das espécies do que à descrição de grupos descontínuos e à análise das modalidades de interação entre um organismo cujos elementos são solidários e um meio que lhe oferece suas condições reais de vida Tratase de um único tema mas a partir de dois tipos de discurso No caso da fisiocracia ao contrário a escolha de Quesnay repousa exatamente sobre o mesmo sistema de conceitos que a opinião inversa sustentada pelos que podem ser chamados utilitaristas Nessa época a análise das riquezas compreendia um jogo de conceitos relativamente limitado e que era admitido por todos davase a mesma definição da moeda davase a mesma explicação sobre os preços fixavase da mesma maneira o custo de um trabalho Ora a partir desse jogo conceitual único havia duas maneiras de explicar a formação do valor analisandoo a partir da troca ou da remuneração pela jornada de trabalho Essas duas possibilidades inscritas na teoria econômica e nas regras de seu jogo conceitual deram lugar a partir dos mesmos elementos a duas opções diferentes Estaríamos errados sem dúvida em procurar na existência desses temas os princípios de individualização de um discurso Não seria mais indicado buscálos na dispersão dos pontos de escolha que ele deixa livres Não seriam as diferentes possibilidades que ele abre no sentido de reanimar temas já existentes de suscitar estratégias opostas de dar lugar a interesses inconciliáveis de permitir com um jogo de concei 42 Michel Foucault tos determinados desempenhar papéis diferentes Mais do que buscar a permanência dos temas das imagens e das opiniões através do tempo mais do que retraçar a dialética de seus conflitos para individualizar conjuntos enunciativos não poderíamos demarcar a dispersão dos pontos de escolha e definir antes de qualquer opção de qualquer preferência temática um campo de possibilidades estratégicas Eisme pois em presença de quatro tentativas de quatro fracassos e de quatro hipóteses que se revezam Será preciso agora proválas A propósito dessas grandes famílias de enunciados que se impõem a nosso hábito e que designamos como a medicina ou a economia ou a gramática eu me perguntara em que poderiam fundar sua unidade Em um domínio de objetos cheio fechado contínuo geograficamente bem recortado Depareime entretanto com séries lacunares e emaranhadas jogos de diferenças de desvios de substituições de transformações Em um tipo definido e normativo de enunciação Mas encontrei formulações de níveis demasiado diferentes e de funções demasiado heterogêneas para poderem se ligar e se compor em uma figura única e para simular através do tempo além das obras individuais uma espécie de grande texto ininterrupto Em um alfabeto bem definido de noções Mas nos encontramos na presença de conceitos que diferem em estrutura e regras de utilização que se ignoram ou se excluem uns aos outros e que não podem entrar na unidade de uma arquitetura lógica Na permanência de uma temática Ora encontramos em vez disso possibilidades estratégicas diversas que permitem a ativação de temas incompatíveis ou ainda a introdução de um mesmo tema em conjuntos diferentes Daí a idéia de descrever essas dispersões de pesquisar se entre esses elementos que seguramente não se organizam como um edifício progressivamente dedutivo nem como um livro sem medida que se escreveria pouco a pouco através do tempo nem como a obra de um sujeito coletivo não se poderia detectar uma regularidade uma ordem em seu aparecimento sucessivo correlações em sua simultaneidade posições assinaláveis em um espaço comum funcionamento recíproco transformações ligadas e hierarquizadas Tal análise não tentaria isolar para descrever sua estrutura interna pequenas ilhas de coerência não se disporia a suspeitar e trazer à luz os conflitos latentes mas estudaria A Arqueologia do Saber 43 formas de repartição Ou ainda em lugar de reconstituir cadeias de inferência como se faz frequentemente na história das ciências ou da filosofia em lugar de estabelecer quadros de diferenças como fazem os linguistas descreveria sistemas de dispersão No caso em que se puder descrever entre um certo número de enunciados semelhante sistema de dispersão e no caso em que entre os objetos os tipos de enunciação os conceitos as escolhas temáticas se puder definir uma regularidade uma ordem correlações posições e funcionamentos transformações diremos por convenção que se trata de uma formação discursiva evitando assim palavras demasiado carregadas de condições e consequências inadequadas aliás para designar semelhante dispersão tais como ciência ou ideologia ou teoria ou domínio de objetividade Chamaremos de regras deformação as condições a que estão submetidos os elementos dessa repartição objetos modalidade de enunciação conceitos escolhas temáticas As regras de formação são condições de existência mas também de coexistência de manutenção de modificação e de desaparecimento em uma dada repartição discursiva Eis o campo que agora é preciso percorrer eis as noções que é preciso testar e as análises que é preciso empreender Sei que os riscos não são pequenos Eu havia usado para uma primeira marcação certos agrupamentos bastante soltos mas bastante familiares nada me garante que os reencontre no fim da análise nem que descubra o princípio de sua delimitação e de sua individualização não estou certo de que as formações discursivas que isolarei definam a medicina em sua unidade global a economia e a gramática na curva de conjunto de sua destinação histórica não estou certo de que elas não introduzam recortes imprevistos Da mesma forma nada me garante que semelhante discussão poderá dar conta da cientificidade ou da nãocientificidade desses conjuntos discursivos que tomei como ponto de partida e que se apresentam de início com uma certa presunção de racionalidade científica nada me garante que minha análise não se situe em um nível inteiramente diferente constituindo uma descrição irredutível à epistemologia ou à história das ciências Será ainda possível que ao fim de tal empresa não se recuperem essas unidades mantidas em suspenso por zelo metodológico 44 Michel Foucault que sejamos obrigados a dissociar as obras ignorar as influências e as tradições abandonar definitivamente a questão da origem deixar que se apague a presença imperiosa dos autores e que assim desapareça tudo aquilo que constituía a história das idéias O perigo em suma é que em lugar de dar fundamento ao que já existe em lugar de reforçar com traços cheios linhas esboçadas em lugar de nos tranquilizarmos com esse retorno e essa confirmação final em lugar de completar esse círculo feliz que anuncia finalmente após mil ardis e igual número de incertezas que tudo se salvou sejamos obrigados a continuar fora das paisagens familiares longe das garantias a que estamos habituados em um terreno ainda não esquadrinhado e na direção de um final que não é fácil prever O que até então velava pela segurança do historiador e o acompanhava até o crepúsculo o destino da racionalidade e da teleologia das ciências o longo trabalho contínuo do pensamento através do tempo o despertar e o progresso da consciência sua perpétua retomada por si mesma o movimento inacabado mas ininterrupto das totalizações o retorno a uma origem sempre aberta e finalmente a temática históricotranscendental tudo isso não corre o risco de desaparecer liberando à análise um espaço branco indiferente sem interioridade nem promessa 3 A FORMAÇÃO DOS OBJETOS É preciso fazer agora um levantamento das direções abertas e saber se podemos dar conteúdo a esta noção apenas esboçada de regras de formação Vejamos inicialmente a formação dos objetos Para analisála mais facilmente tomemos o exemplo do discurso da Psicopatologia a partir do século XIX corte cronológico que podemos admitir facilmente numa primeira abordagem Signos suficientes nolo indicam Retenhamos apenas dois deles a colocação no início do século de um novo modo de exclusão e de inserção do louco no hospital psiquiátrico e a possibilidade de percorrer de volta a fieira de certas noções atuais até Esquirol Heinroth ou Pinel da paranóia podemos retroceder até a monomania do quociente intelectual à noção primeira da imbecilidade da paralisia geral à encefalite crônica da neurose de caráter à loucura sem delírio enquanto se quisermos seguir mais acima o fio do tempo perdemos logo as pistas os fios se emaranham e a projeção de Du Laurens ou mesmo Van Swieten sob a patologia de Kraepelin ou de Bleuler nada proporciona além de coincidências aleatórias Ora os objetos dos quais a Psicopatologia se ocupou desde essa cesura são muito numerosos em grande parte muito novos mas também bastante precários cambiantes e condenados alguns deles a um rápido desaparecimento ao lado das agitações motoras alucinações e 46 Michel Foucault discursos que se desviam que já eram considerados como manifestações de loucura se bem que fossem reconhecidos delimitados descritos e analisados de outro modo vimos surgir alguns que se referiam a registros até então não utilizados perturbações ligeiras de comportamento aberrações e problemas sexuais fatos de sugestão e de hipnose lesões do sistema nervoso central deficits de adaptação intelectual ou motora criminalidade Em cada um desses registros múltiplos objetos foram nomeados circunscritos analisados depois corrigidos novamente definidos contestados suprimidos Podese estabelecer a regra a que seu aparecimento estava submetido Podese saber segundo que sistema não dedutivo esses objetos puderam se justapor e se suceder para formar o campo retalhado lacunar ou pictórico segundo os pontos da Psicopatologia Qual foi seu regime de existência enquanto objetos de discurso A Seria preciso inicialmente demarcar as superfícies primeiras de sua emergência mostrar onde podem surgir para que possam em seguida ser designadas e analisadas essas diferenças individuais que segundo os graus de racionalização os códigos conceituais e os tipos de teoria vão receber a qualificação de doença alienação anomalia demência neurose ou psicose degenerescência etc Essas superfícies de emergência não são as mesmas nas diferentes sociedades em diferentes épocas e nas diferentes formas de discurso Permanecendo na Psicopatologia do século XIX é provável que elas fossem constituídas pela família pelo grupo social próximo o meio de trabalho a comunidade religiosa que são todos normativos suscetíveis ao desvio que têm uma margem de tolerância e um limiar a partir do qual a exclusão é requerida que têm um modo de designação e de rejeição da loucura que se não transferem para a medicina a responsabilidade da cura e do tratamento pelo menos o fazem com a carga da explicação se bem que organizadas de modo específico essas superfícies de emergência não são novas no século XIX Em compensação foi nessa época sem dúvida que se puseram a funcionar novas superfícies de aparecimento a arte com sua normatividade própria a sexualidade seus desvios em relação a proibições habituais tornamse pela primeira vez objeto de demarcação de descrição e de análise para o discurso psiquiátrico a penalidade enquanto a loucura nas épocas precedentes era cuidadosamente destacada da conduta criminosa e valia como desculpa a criminalidade tornase ela própria e isso desde as famosas monomanias homicidas uma forma de desvio mais ou menos aparentada à loucura Nesses A Arqueologia do Saber 47 campos de diferenciação primeira nas distâncias descontinuidades e limiares que então se manifestam o discurso psiquiátrico encontra a possibilidade de limitar seu domínio de definir aquilo de que fala de darlhe o status de objeto ou seja de fazêlo aparecer de tornálo nomeável e descritível B Seria necessário descrever além disso instâncias de delimitação a medicina como instituição regulamentada como conjunto de indivíduos que constituem o corpo médico como saber e prática como competência reconhecida pela opinião pública a justiça e a administração tornouse no século XIX a instância superior que na sociedade distingue designa nomeia e instaura a loucura como objeto mas não foi a única a representar esse papel a justiça e particularmente a justiça penal com as definições da escusa da irresponsabilidade das circunstâncias atenuantes e com o uso de noções como as de crime passional de hereditariedade de perigo social a autoridade religiosa na medida cm que se estabelece como instância de decisão que separa o místico do patológico o espiritual do corporal o sobrenatural do anormal e na medida em que pratica a direção de consciência mais para um conhecimento dos indivíduos do que para uma classificação casuística das ações e das circunstâncias a crítica literária e artística que no curso do século XIX trata a obra cada vez menos como um objeto de apreciação que deve ser julgado e cada vez mais como uma linguagem que deve ser interpretada e cm que é preciso reconhecer os jogos de expressão de um autor C Analisar finalmente as grades de especificação tratase dos sistemas segundo os quais separamos opomos associamos reagrupamos classificamos derivamos umas das outras as diferentes loucuras como objetos do discurso psiquiátrico essas grades de diferenciação foram no século XIX a alma como grupo de faculdades hierarquizadas vizinhas e mais ou menos interpenetráveis o corpo como volume tridimensional de órgãos ligados por esquemas de dependência e de comunicação a vida e a história dos indivíduos como sequência linear de fases emaranhado de traços conjunto de reativações virtuais repetições cíclicas os jogos das correlações neuropsicológicas como sistemas de projeções recíprocas e campo de causalidade circular Semelhante descrição é por si mesma ainda insuficiente por dois motivos Os planos de emergência que acabamos de demarcar essas instâncias de delimitação ou essas formas de especificação não fornecem inteiramente constituídos e armados objetos que o discurso da Psicopatologia só teria cm seguida que relacionar classificar e nomear eleger recobrir finalmente de uma trama de palavras e frases não são as 48 Michel Foucault famílias com suas normas suas proibições seus limiares de sensibilidade que determinam os loucos e propõem doentes para a análise ou decisão dos psiquiatras não é a jurisprudência que denuncia por ela mesma à medicina mental um delírio paranóico sob um assassinato ou que suspeita de uma neurose em um delito sexual O discurso é algo inteiramente diferente do lugar em que vêm se depositar e se superpor como em uma simples superfície de inscrição objetos que teriam sido instaurados anteriormente Mas a enumeração que acabamos de fazer é insuficiente também por uma segunda razão Ela demarcou uns após outros vários planos de diferenciação em que os objetos do discurso podem aparecer Mas entre eles que relações existem Por que esta enumeração e não outra Que conjunto definido e fechado acreditamos circunscrever desta maneira E como podemos falar de um sistema de formação se conhecemos apenas uma série de determinações diferentes e heterogêneas sem ligações ou relações assinaláveis Na verdade estas duas séries de questões remetem ao mesmo ponto Para compreendêlo restrinjamos ainda o exemplo precedente No domínio com o qual a Psicopatologia se ocupou no século XIX vemos aparecer muito cedo desde Esquirol toda uma série de objetos pertencentes ao registro de delinquência o homicídio e o suicídio os crimes passionais os delitos sexuais certas formas de roubo a vagabundagem e depois através deles a hereditariedade o meio neurógeno os comportamentos de agressão ou de autopunição as perversidades os impulsos criminosos a sugestibilidade etc Não seria adequado dizer que se trata das consequências de uma descoberta descoberta feita um belo dia por um psiquiatra de uma semelhança entre condutas criminosas e comportamento patológico revelação de uma presença dos sinais clássicos da alienação em certos delinquentes Tais fatos estão além da pesquisa atual o problema na realidade é saber o que os tornou possíveis e como essas descobertas puderam ser seguidas de outras que as retomaram corrigiram modificaram ou eventualmente anularam Da mesma forma não seria pertinente atribuir o aparecimento desses objetos novos às normas características da sociedade burguesa do século XIX a um sistema policial e penal reforçado ao estabelecimento de um novo código de justiça criminal à introdução e A Arqueologia do Saber 49 ao uso das circunstâncias atenuantes ao aumento da criminalidade Sem dúvida todos esses processos efetivamente ocorreram mas não puderam por si mesmos formar objetos para o discurso psiquiátrico prosseguindo a descrição nesse nível permaneceríamos desta vez aquém do que se procura Se em nossa sociedade em uma época determinada o delinquente foi psicologizado e patologizado se a conduta transgressora pôde dar lugar a toda uma série de objetos de saber devese ao fato de que no discurso psiquiátrico foi empregado um conjunto de relações determinadas Relação entre planos de especificação como as categorias penais e os graus de responsabilidade diminuída e planos psicológicos de caracterização as faculdades as aptidões os graus de desenvolvimento ou de involução os modos de reagir ao meio os tipos de caracteres adquiridos inatos ou hereditários Relação entre a instância de decisão médica e a instância de decisão judiciária relação complexa para dizer a verdade já que a decisão médica reconhece totalmente a instância judiciária para a definição do crime o estabelecimento das circunstâncias em que se deu e a sanção que merece mas se reserva a análise de sua gênese e a estimativa da responsabilidade envolvida Relação entre o filtro constituído pela interrogação judiciária as informações policiais a investigação e todo o aparelho de informação jurídica e o filtro constituído pelo questionário médico os exames clínicos a pesquisa dos antecedentes e as narrações biográficas Relação entre as normas familiares sexuais penais do comportamento dos indivíduos e o quadro dos sintomas patológicos e doenças de que eles são os sinais Relação entre a restrição terapêutica no meio hospitalar com seus limiares particulares seus critérios de cura sua maneira de delimitar o normal e o patológico e a restrição punitiva na prisão com seu sistema de castigo e de pedagogia seus critérios de boa conduta de recuperação e de libertação São essas relações que atuando no discurso psiquiátrico permitiram a formação de todo um conjunto de objetos diversos Generalizemos o discurso psiquiátrico no século XIX caracterizase não por objetos privilegiados mas pela maneira pela qual forma seus objetos de resto muito dispersos Essa formação é assegurada por um conjunto de relações estabelecidas entre instâncias de emergência de delimitação e de especificação Diremos pois que uma formação discursiva se 50 Michel Foucault define pelo menos quanto a seus objetos se se puder estabelecer um conjunto semelhante se se puder mostrar como qualquer objeto do discurso em questão aí encontra seu lugar e sua lei de aparecimento se se puder mostrar que ele pode dar origem simultânea ou sucessivamente a objetos que se excluem sem que ele próprio tenha de se modificar Daí um certo número de observações e consequências 1 As condições para que apareça um objeto de discurso as condições históricas para que dele se possa dizer alguma coisa e para que dele várias pessoas possam dizer coisas diferentes as condições para que ele se inscreva em um domínio de parentesco com outros objetos para que possa estabelecer com eles relações de semelhança de vizinhança de afastamento de diferença de transformação essas condições como se vê são numerosas e importantes Isto significa que não se pode falar de qualquer coisa em qualquer época não é fácil dizer alguma coisa nova não basta abrir os olhos prestar atenção ou tomar consciência para que novos objetos logo se iluminem e na superfície do solo lancem sua primeira claridade Mas esta dificuldade não é apenas negativa não se deve associála a um obstáculo cujo poder seria exclusivamente de cegar perturbar impedir a descoberta mascarar a pureza da evidência ou a obstinação muda das próprias coisas o objeto não espera nos limbos a ordem que vai liberálo e permitirlhe que se encarne em uma visível e loquaz objetividade ele não preexiste a si mesmo retido por algum obstáculo aos primeiros contornos da luz mas existe sob as condições positivas de um feixe complexo de relações 2 Essas relações são estabelecidas entre instituições processos econômicos e sociais formas de comportamentos sistemas de normas técnicas tipos de classificação modos de caracterização e essas relações não estão presentes no objeto não são elas que são desenvolvidas quando se faz sua análise elas não desenham a trama a racionalidade imanente essa nervura ideal que reaparece totalmente ou em parte quando o imaginamos na verdade de seu conceito Elas não definem a constituição interna do objeto mas o que lhe permite aparecer justaporse a outros objetos situarse em relação a eles definir sua diferença sua irredutibilidade e A Arqueologia do Saber 51 eventualmente sua heterogeneidade enfim ser colocado em um campo de exterioridade 3 Essas relações se distinguem de início das relações que poderiam ser chamadas primárias e que independentemente de qualquer discurso ou de qualquer objeto de discurso podem ser descritas entre instituições técnicas formas sociais etc Afinal sabese que entre a família burguesa e o funcionamento das instâncias e das categorias judiciárias do século XIX há relações analisáveis em si mesmas Ora elas nem sempre podem ser sobrepostas às relações que são formadoras de objetos as relações de dependência que podem ser assinaladas nesse nível primário não se exprimem forçosamente no relacionamento que torna possíveis objetos de discurso Mas é preciso distinguir além disso as relações secundárias que podem estar formuladas no próprio discurso o que por exemplo os psiquiatras do século XIX puderam dizer sobre as relações entre a família e a criminalidade não reproduz sabemos bem o jogo das dependências reais mas não reproduz tampouco o jogo das relações que tornam possíveis e sustentam os objetos do discurso psiquiátrico Assim se abre todo um espaço articulado de descrições possíveis sistema das relações primárias ou reais sistema das relações secundárias ou reflexivas e sistema das relações que podem ser chamadas propriamente de discursivas O problema é fazer com que apareça a especificidade dessas últimas e seu jogo com as outras duas 4 As relações discursivas como se vê não são internas ao discurso não ligam entre si os conceitos ou as palavras não estabelecem entre as frases ou as proposições uma arquitetura dedutiva ou retórica Mas não são entretanto relações exteriores ao discurso que o limitariam ou lhe imporiam certas formas ou o forçariam em certas circunstâncias a enunciar certas coisas Elas estão de alguma maneira no limite do discurso oferecemlhe objetos de que ele pode falar ou antes pois essa imagem da oferta supõe que os objetos sejam formados de um lado e o discurso do outro determinam o feixe de relações que o discurso deve efetuar para poder falar de tais ou tais objetos para poder abordálos nomeálos analisálos classificálos explicálos etc Essas relações 52 Michel Foucault caracterizam não a língua que o discurso utiliza não as circunstâncias era que ele se desenvolve mas o próprio discurso enquanto prática Podese agora encerrar a análise e avaliar até que ponto ela realiza ou igualmente modifica o projeto inicial A propósito dessas figuras de conjunto que de maneira insistente mas confusa se apresentavam como a Psicopatologia a economia a gramática a medicina perguntamonos que espécie de unidade poderia constituílas não seriam elas apenas uma reconstrução extemporânea a partir de obras singulares de teorias sucessivas de noções ou temas alguns dos quais abandonados outros mantidos pela tradição outros ainda encobertos pelo esquecimento e depois redescobertos Não passariam de uma série de empresas ligadas Havíamos procurado a unidade do discurso junto aos próprios objetos à sua distribuição ao jogo de suas diferenças de sua proximidade ou de seu afastamento em resumo junto ao que é dado ao sujeito falante e fomos mandados de volta finalmente para um relacionamento que caracteriza a própria prática discursiva descobrimos assim não uma configuração ou uma forma mas um conjunto de regras que são imanentes a uma prática e a definem em sua especificidade Por outro lado tínhamos usado a título de marco uma unidade como a Psicopatologia se tivéssemos desejado fixarlhe uma data de nascimento e um domínio preciso teria sido necessário sem dúvida reencontrar o aparecimento da palavra definir a que estilo de análise ela poderia aplicarse e como se estabeleceria sua separação por um lado da neurologia e por outro da psicologia O que se descobriu foi uma unidade de um outro tipo que não tem provavelmente as mesmas datas nem a mesma superfície nem as mesmas articulações mas que pode dar conta de um conjunto de objetos para os quais o termo Psicopatologia não passava de uma rubrica reflexiva secundária e classificatória Finalmente a Psicopatologia se apresentava como uma disciplina sempre se renovando sempre marcada por descobertas críticas erros corrigidos o sistema de formação que se definiu permanece estável Mas entendamos não são os objetos que permanecem constantes nem o domínio que formam nem mesmo seu ponto de emergência ou seu modo de caracterização mas o estabelecimento de relação entre as superfícies em que podem A Arqueologia do Saber 53 aparecer em que podem ser delimitados analisados e especificados Nas descrições cuja teoria acabo de tentar fornecer não se trata de interpretar o discurso para fazer através dele uma história do referente No exemplo escolhido não se procura saber quem era louco em tal época em que consistia sua loucura nem se suas perturbações eram idênticas às que nos são hoje familiares Não se questiona se os feiticeiros eram loucos ignorados e perseguidos ou se em um outro momento uma experiência mística ou estética não foi indevidamente medicalizada Não se procura reconstituir o que podia ser a própria loucura tal como se apresentaria inicialmente em alguma experiência primitiva fundamental surda apenas articulada1 e tal como teria sido organizada em seguida traduzida deformada deturpada reprimida talvez pelos discursos e pelo jogo oblíquo frequentemente retorcido de suas operações Sem dúvida semelhante história do referente é possível não se exclui de imediato o esforço para desenterrar e libertar do texto essas experiências prédiscursivas Mas não se trata aqui de neutralizar o discurso transformálo em signo de outra coisa e atravessarlhe a espessura para encontrar o que permanece silenciosamente aquém dele e sim pelo contrário mantêlo em sua consistência fazêlo surgir na complexidade que lhe é própria Em uma palavra querse na verdade renunciar às coisas despresentificálas conjurar sua rica relevante e imediata plenitude que costumamos considerar como a lei primitiva de um discurso que dela só se afastaria pelo erro esquecimento ilusão ignorância ou inércia das crenças e das tradições ou ainda desejo inconsciente talvez de não ver e de não dizer substituir o tesouro enigmático das coisas anteriores ao discurso pela formação regular dos objetos que só nele se delineiam definir esses objetos sem referência ao fundo das coisas mas relacionandoos ao conjunto de regras que permitem formálos como objetos de um discurso e que constituem assim suas condições de aparecimento histórico fazer uma história dos objetos discursivos 1 Isto é escrito contra um tema explícito na Histoire de la folie e presente repetidas vezes no Prefácio 54 Michel Foucault que não os enterre na profundidade comum de um solo originário mas que desenvolva o nexo das regularidades que regem sua dispersão Entretanto elidir o momento das próprias coisas não é remeter necessariamente à análise linguística da significação Quando se descreve a formação dos objetos de um discurso tentase identificar os relacionamentos que caracterizam uma prática discursiva e não se determina uma organização léxica nem as escansões de um campo semântico não se questiona o sentido dado em sua época às palavras melancolia ou loucura sem delírio nem a oposição de conteúdo entre psicose e neurose Não que tais análises sejam consideradas ilegítimas ou impossíveis mas não são pertinentes quando se trata de saber por exemplo como a criminalidade pôde tornarse objeto de parecer médico ou como o desvio sexual pôde delinearse como um objeto possível do discurso psiquiátrico A análise dos conteúdos léxicos define tanto os elementos de significação de que dispõem os sujeitos falantes em uma dada época como a estrutura semântica que aparece na superfície dos discursos já pronunciados ela não se refere à prática discursiva como lugar onde se forma ou se deforma onde aparece e se apaga uma pluralidade emaranhada ao mesmo tempo superposta e lacunar de objetos A sagacidade dos críticos não se enganou de uma análise como a que empreendo as palavras estão tão deliberadamente ausentes quanto as próprias coisas não há nem descrição de um vocabulário nem recursos à plenitude viva da experiência Não se volta ao aquém do discurso lá onde nada ainda foi dito e onde as coisas apenas despontam sob uma luminosidade cinzenta não se vai além para reencontrar as formas que ele dispôs e deixou atrás de si ficase tentase ficar no nível do próprio discurso Já que é preciso às vezes acentuar ausências embora as mais evidentes direi que em todas essas pesquisas em que avancei ainda tão pouco gostaria de mostrar que os discursos tais como podemos ouvilos tais como podemos lêlos sob a forma de texto não são como se poderia esperar um puro e simples entrecruzamento de coisas e de palavras trama obscura das coisas cadeia manifesta visível e colorida das palavras gostaria de mostrar que o discurso não é uma estreita superfície de contato ou de confronto entre uma realidade e uma língua o intrincamento A Arqueologia do Saber 55 entre um léxico e uma experiência gostaria de mostrar por meio de exemplos precisos que analisando os próprios discursos vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas e destacarse um conjunto de regras próprias da prática discursiva Essas regras definem não a existência muda de uma realidade não o uso canônico de um vocabulário mas o regime dos objetos As palavras e as coisas é o título sério de um problema é o título irônico do trabalho que lhe modifica a forma lhe desloca os dados e revela afinal de contas uma tarefa inteiramente diferente que consiste em não mais tratar os discursos como conjuntos de signos elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam Certamente os discursos são feitos de signos mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala É esse mais que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever 4 A FORMAÇÃO DAS MODALIDADES ENUNCIATIVAS Descrições qualitativas narrações biográficas demarcação interpretação e recorte dos signos raciocínios por analogia dedução estimativas estatísticas verificações experimentais e muitas outras formas de enunciados eis o que se pode encontrar no século XIX no discurso dos médicos Que encadeamento que determinismo há entre uns e outros Por que estes e não outros Seria necessário encontrar a lei de todas essas enunciações diversas e o lugar de onde vêm A Primeira questão quem fala Quem no conjunto de todos os sujeitos falantes tem boas razões para ter esta espécie de linguagem Quem é seu titular Quem recebe dela sua singularidade seus encantos e de quem em troca recebe se não sua garantia pelo menos a presunção de que é verdadeira Qual é o status dos indivíduos que têm e apenas eles o direito regulamentar ou tradicional juridicamente definido ou espontaneamente aceito de proferir semelhante discurso O status do médico compreende critérios de competência e de saber instituições sistemas normas pedagógicas condições legais que dão direito não sem antes lhe fixar limites à prática e à experimentação do saber Compreende também um sistema de diferenciação e de relações divisão das atribuições subordinação hierárquica complementaridade funcional demanda transmissão e troca de informações com outros indivíduos ou outros grupos que têm eles próprios seu status com o poder político e seus A Arqueologia do Saber 57 representantes com o Poder Judiciário com diferentes corpos profissionais com os grupos religiosos e se for o caso com os sacerdotes Compreende também um certo número de traços que definem seu funcionamento em relação ao conjunto da sociedade o papel que se reconhece no médico conforme seja chamado por uma pessoa ou requisitado de maneira mais ou menos obrigatória pela sociedade conforme exerça uma profissão ou seja encarregado de uma função os direitos de intervenção e de decisão que lhe são reconhecidos nestes diferentes casos o que lhe é pedido como vigia guardião e responsável pela saúde de uma população de um grupo de uma família de um indivíduo a parte que recebe da riqueza pública ou da de particulares a forma de contrato explícito ou implícito que estabelece seja com o grupo no qual exerce sua profissão seja com o poder que lhe confiou uma tarefa seja com o cliente que lhe pediu um conselho uma terapêutica uma cura Esse status dos médicos é em geral bastante singular em todas as formas de sociedade e de civilização ele não é quase nunca um personagem indiferenciado ou intercambiável A fala médica não pode vir de quem quer que seja seu valor sua eficácia seus próprios poderes terapêuticos e de maneira geral sua existência como fala médica não são dissociáveis do personagem definido por status que tem o direito de articulálo reivindicando para si o poder de conjurar o sofrimento e a morte Mas sabese também que esse status foi profundamente modificado na civilização ocidental no final do século XVIII e no início do século XIX quando a saúde das populações tornouse uma das normas econômicas requeridas pela sociedade industrial B É preciso descrever também os lugares institucionais de onde o médico obtém seu discurso e onde este encontra sua origem legítima e seu ponto de aplicação seus objetos específicos e seus instrumentos de verificação Esses lugares são para nossa sociedade o hospital local de uma observação constante codificada sistemática assegurada por pessoal médico diferenciado e hierarquizado e que pode assim constituir um campo quantificável de frequências a prática privada que oferece um domínio de observações mais aleatórias mais lacunares muito mais numerosas mas que permitem às vezes constatações de alcance cronológico mais amplo com melhor conhecimento dos antecedentes e do meio o laboratório local autônomo por muito tempo distinto do hospital no qual se estabelecem certas verdades de ordem geral sobre o corpo humano a vida as doenças as lesões que fornece certos elementos de diagnóstico certos sinais de evolução certos critérios de cura e que permite experimentações terapêuticas finalmente o que se poderia chamar a biblioteca ou o campo documentário que compreende não somente os livros ou tratados tradicionalmente reconhecidos como válidos mas 58 Michel Foucault também o conjunto dos relatórios e observações publicadas e transmitidas e ainda a massa das informações estatísticas referentes ao meio social ao clima às epidemias à taxa de mortalidade à frequência das doenças aos focos de contágio às doenças profissionais que podem ser fornecidas ao médico pelas administrações por outros médicos por sociólogos por geógrafos Ainda aí esses diversos lugares do discurso médico foram profundamente modificados no século XIX a importância do documento não deixa de crescer diminuindo proporcionalmente a autoridade do livro ou da tradição o hospital que não passava de um local de apoio para o discurso sobre as doenças e que era inferior em importância e valor à prática privada em que as doenças deixadas em seu meio natural deviam no século XVIII se revelar em sua verdade vegetal tornase então o local das observações sistemáticas e homogêneas confrontos em larga escala estabelecimento das frequências e das probabilidades anulação das variantes individuais em resumo o local de aparecimento da doença não mais como espécie singular que desdobra seus traços essenciais sob o olhar do médico mas como processo intermediário com seus marcos significativos seus limites suas oportunidades de evolução Da mesma forma foi no século XIX que a prática médica cotidiana integrou o laboratório como local de um discurso que tem as mesmas normas experimentais da física química ou biologia C As posições do sujeito se definem igualmente pela situação que lhe é possível ocupar em relação aos diversos domínios ou grupos de objetos ele é sujeito que questiona segundo uma certa grade de interrogações explícitas ou não e que ouve segundo um certo programa de informação é sujeito que observa segundo um quadro de traços característicos e que anota segundo um tipo descritivo está situado a uma distância perceptiva ótica cujos limites demarcam a parcela de informação pertinente utiliza intermediários instrumentais que modificam a escala da informação deslocam o sujeito em relação ao nível perceptivo médio ou imediato asseguram sua passagem de um nível superficial a um nível profundo o fazem circular no espaço interior do corpo dos sintomas manifestos aos órgãos dos órgãos aos tecidos e dos tecidos finalmente às células A essas situações perceptivas é preciso somar as posições que o sujeito pode ocupar na rede de informações no ensino teórico ou na pedagogia hospitalar no sistema da comunicação oral ou da documentação escrita como emissor e receptor de observações de relatórios de dados estatísticos de proposições teóricas gerais de projetos ou de decisões As diversas situações que podem ser ocupadas pelo sujeito do discurso médico foram redefinidas no início do século XIX com a A Arqueologia do Saber 59 organização de um campo perceptivo totalmente diferente disposto em profundidade expresso por inovações instrumentais desenvolvido pelas técnicas cirúrgicas ou pelos métodos da autópsia centrado nos focos de lesão e com a utilização de novos sistemas de registro de notação de descrição de classificação de integração em séries numéricas e em estatísticas com a instituição de novas formas de ensino de circulação das informações de relação com os outros domínios teóricos ciências ou filosofia e com as outras instituições quer elas sejam de ordem administrativa política ou econômica Se no discurso clínico o médico é sucessivamente o questionador soberano e direto o olho que observa o dedo que toca o órgão de decifração dos sinais o ponto de integração de descrições já feitas o técnico de laboratório é porque todo um feixe de relações se encontra em jogo relações entre o espaço hospitalar como local ao mesmo tempo de assistência de observação purificada e sistemática e de terapêutica parcialmente testada parcialmente experimental e todo um grupo de técnicas e de códigos de percepção do corpo humano tal como é definido pela anatomia patológica relações entre o campo das observações imediatas e o domínio das informações já adquiridas relações entre o papel do médico como terapeuta seu papel de pedagogo seu papel de transmissor na difusão do saber médico e seu papel de responsável pela saúde pública no espaço social Entendida como renovação dos pontos de vista conteúdos formas e do próprio estilo da descrição utilização dos raciocínios indutivos ou probabilísticos tipos de atribuição da causalidade em resumo como renovação das modalidades de enunciação a medicina clínica não deve ser tomada como o resultado de uma nova técnica de observação a da autópsia que era praticada desde muito antes do século XIX nem como o resultado da pesquisa das causas patogênicas nas profundezas do organismo Morgagni já o fazia nos meados do século XVIII nem como o efeito desta nova instituição que era a clínica hospitalar ela já existia há dezenas de anos na Áustria e na Itália nem como o resultado da introdução do conceito de tecido no Traité de membranes de Bichat Deve sim ser considerada como o relacionamento no discurso médico de um certo número de elementos distintos dos quais uns se referiam ao status dos médicos outros ao lugar institucional e técnico de onde falavam outros à sua 60 Michel Foucault posição como sujeitos que percebem observam descrevem ensinam etc Podese dizer que esse relacionamento de elementos diferentes alguns são novos outros preexistentes é efetuado pelo discurso clínico é ele enquanto prática que instaura entre eles todos um sistema de relações que não é realmente dado nem constituído a priori e se tem uma unidade se as modalidades de enunciação que utiliza ou às quais dá lugar não são simplesmente justapostas por uma série de contingências históricas é porque emprega de forma constante esse feixe de relações Convém observar ainda que após se ter constatado a disparidade dos tipos de enunciação no discurso clínico não se tentou reduzila fazendo aparecer as estruturas formais categorias modos de encadeamento lógico tipos de raciocínio e indução formas de análise e síntese que puderam ser empregados em um discurso não se quis separar a organização racional que é capaz de dar a enunciados como os da medicina o que comportam em termos de necessidade intrínseca Não se quis tampouco relacionar a um ato fundador ou a uma consciência constituinte o horizonte geral de racionalidade no qual se destacaram pouco a pouco os progressos da medicina seus esforços para se alinhar entre as ciências exatas a condensação de seus métodos de observação a lenta e difícil expulsão das imagens ou dos fantasmas que a habitam a purificação de seu sistema de raciocínio Enfim não se tentou descrever nem a gênese empírica nem os diversos componentes da mentalidade médica como se deslocou o interesse dos médicos por qual modelo teórico ou experimental foram influenciados que filosofia ou temática moral definiu o clima de sua reflexão a que questões a que perguntas tiveram de responder que esforços tiveram de fazer para se libertarem dos preconceitos tradicionais que caminhos percorreram na direção da unificação e coerência jamais acabadas jamais atingidas de seu saber Em suma as modalidades diversas da enunciação não estão relacionadas à unidade de um sujeito quer se trate do sujeito tomado como pura instância fundadora de racionalidade ou do sujeito tomado como função empírica de síntese Nem o conhecer nem os conhecimentos A Arqueologia do Saber 61 Na análise proposta as diversas modalidades de enunciação em lugar de remeterem à síntese ou à função unificante de um sujeito manifestam sua dispersão2 nos diversos status nos diversos lugares nas diversas posições que pode ocupar ou receber quando exerce um discurso na descontinuidade dos planos de onde fala Se esses planos estão ligados por um sistema de relações este não é estabelecido pela atividade sintética de uma consciência idêntica a si muda e anterior a qualquer palavra mas pela especificidade de uma prática discursiva Renunciaremos pois a ver no discurso um fenômeno de expressão a tradução verbal de uma síntese realizada em algum outro lugar nele buscaremos antes um campo de regularidade para diversas posições de subjetividade O discurso assim concebido não é a manifestação majestosamente desenvolvida de um sujeito que pensa que conhece e que o diz é ao contrário um conjunto em que podem ser determinadas a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo É um espaço de exterioridade em que se desenvolve uma rede de lugares distintos Ainda há pouco mostramos que não eram nem pelas palavras nem pelas coisas que era preciso definir o regime dos objetos característicos de uma formação discursiva da mesma forma é preciso reconhecer agora que não é nem pelo recurso a um sujeito transcendental nem pelo recurso a uma subjetividade psicológica que se deve definir o regime de suas enunciações 2 Por isso a expressão olhar médico empregada em Naissance de la clinique não era muito feliz 5 A FORMAÇÃO DOS CONCEITOS Talvez a família de conceitos que se delineia na obra de Lineu mas também a que se encontra em Ricardo ou na gramática de PortRoyal possa se organizar em um conjunto coerente Talvez se pudesse reconstituir a arquitetura dedutiva por ela formada A experiência de qualquer forma merece ser tentada e ela o foi diversas vezes Em compensação se tomamos uma escala maior e se escolhemos como marcos disciplinas como a gramática ou a economia ou o estudo dos seres vivos o jogo de conceitos que vemos aparecer não obedece a condições tão rigorosas sua história não é pedra por pedra a construção de um edifício Será preciso abandonar essa dispersão à aparência de sua desordem Ver aí uma sequência de sistemas conceituais tendo cada um sua organização própria e se articulando somente seja com a permanência dos problemas seja com a continuidade da tradição seja com o mecanismo das influências Não se poderia encontrar uma lei que desse conta da emergência sucessiva ou simultânea de conceitos discordantes Não se pode encontrar entre eles um sistema de ocorrência que não seja uma sistematicidade lógica Antes de querer repor os conceitos em um edifício dedutivo virtual seria necessário descrever a organização do campo de enunciados em que aparecem e circulam A Arqueologia do Saber 63 A Essa organização compreende inicialmente formas de sucessão e entre elas as diversas disposições das séries enunciativas quer seja a ordem das inferências das implicações sucessivas e dos raciocínios demonstrativos ou a ordem das descrições os esquemas de generalização ou de especificação progressiva aos quais obedecem as distribuições espaciais que percorrem ou a ordem das narrativas e a maneira pela qual os acontecimentos do tempo estão repartidos na sequência linear dos enunciados os diversos tipos de correlação dos enunciados que nem sempre são idênticos ou passíveis de ser superpostos às sucessões manifestas da série enunciativa como a correlação hipóteseverlficação asserçãocrítica lei geralaplicação particular os diversos esquemas retóricos segundo os quais se podem combinar grupos de enunciados como se encadeiam umas às outras descrições deduções definições cuja sequência caracteriza a arquitetura de um texto Tomemos por exemplo o caso da história natural na época clássica ela não se serve dos mesmos conceitos do século XVI alguns que são antigos gênero espécie sinais mudam de utilização outros como o de estrutura aparecem outros ainda o de organismo se formarão mais tarde Mas o que foi modificado no século XVII e vai reger o aparecimento e a recorrência dos conceitos para toda a história natural é a disposição geral dos enunciados e sua seriação em conjuntos determinados é a maneira de transcrever o que se observa e de reconstituir no fio dos enunciados um percurso perceptivo é a relação e o jogo de subordinações entre descrever articular em traços distintivos caracterizar e classificar é a posição recíproca das observações particulares e dos princípios gerais é o sistema de dependência entre o que se aprendeu o que se viu o que se deduz o que se admite como provável o que se postula A história natural nos séculos XVII e XVIII não é simplesmente uma forma de conhecimento que deu uma nova definição aos conceitos do gênero ou de caráter e que introduziu conceitos novos como o de classificação natural ou de mamífero é antes de tudo um conjunto de regras para dispor em série enunciados um conjunto obrigatório de esquemas de dependências de ordem e de sucessões em que se distribuem os elementos recorrentes que podem valer como conceitos B A configuração do campo enunciativo compreende também formas de coexistência Estas delineiam inicialmente um campo de presença isto é todos os enunciados já formulados em alguma outra parte e que são retomados em um discurso a título de verdade admitida de descrição exata de raciocínio fundado ou de pressuposto necessário e também os que são criticados discutidos e julgados assim como os que são rejeitados ou excluídos nesse campo de presença as relações instauradas podem ser da ordem da verificação 64 Michel Foucault experimental da validação lógica da repetição pura e simples da aceitação justificada pela tradição e pela autoridade do comentário da busca das significações ocultas da análise do erro essas relações podem ser explícitas e por vezes formuladas em tipos de enunciados especializados referências discussões críticas ou implícitas e introduzidas nos enunciados correntes Ainda aí é fácil constatar que o campo de presença da história natural na época clássica não obedece às mesmas formas nem aos mesmos critérios de escolha nem aos mesmos princípios de exclusão da época em que Aldrovandi recolhia em um único e mesmo texto tudo que sobre os monstros podia ser visto observado contado mil vezes relatado ao pé do ouvido até imaginado pelos poetas Distinto desse campo de presença podemos descrever um campo de concomitância tratase então dos enunciados que se referem a domínios de objetos inteiramente diferentes e que pertencem a tipos de discurso totalmente diversos mas que atuam entre os enunciados estudados seja porque valem como conformação analógica seja porque valem como princípio geral e como premissas aceitas para um raciocínio ou porque valem como modelos que podemos transferir a outros conteúdos ou ainda porque funcionam como instância superior com a qual é preciso confrontar e submeter pelo menos algumas proposições que são afirmadas assim o campo de concomitância da história natural na época de Lineu e de Buffon se define por um certo número de relações com a cosmologia história da terra filosofia teologia Escrituras Sagradas e exegese bíblica matemática sob a forma bem geral de uma ciência da ordem e todas estas relações o opõem tanto ao discurso dos naturalistas do século XVI quanto ao dos biólogos do século XIX Finalmente o campo enunciativo compreende o que se poderia chamar um domínio de memória tratase dos enunciados que não são mais nem admitidos nem discutidos que não definem mais consequentemente nem um corpo de verdades nem um domínio de validade mas em relação aos quais se estabelecem laços de filiação gênese transformação continuidade e descontinuidade histórica É assim que o campo de memória da história natural desde Tournefort aparece como singularmente estreito e pobre em suas formas quando o comparamos ao campo de memória tão amplo tão cumulativo tão bem especificado da biologia a partir do século XIX aparece em compensação como mais bem definido e articulado que o campo de memória que envolve no Renascimento a história das plantas e dos animais pois na época mal se distinguia do campo de presença tinha a mesma extensão e a mesma forma e implicava as mesmas relações C Tornase possível enfim definir os procedimentos de intervenção que podem ser legitimamente aplicados aos enunciados Esses A Arqueologia do Saber 65 procedimentos na verdade não são os mesmos para todas as formações discursivas os que são ai utilizados à exceção de todos os outros as relações que os ligam e o conjunto que assim constituem permitem especificar cada uma delas Tais procedimentos podem aparecer nas técnicas de reescrita como por exemplo as que permitiram aos naturalistas do período clássico reescrever descrições lineares em quadros classificatórios que não têm as mesmas leis nem a mesma configuração das listas e dos grupos de parentesco estabelecidos na Idade Média ou durante o Renascimento em métodos de transcrição dos enunciados articulados na língua natural segundo uma língua mais ou menos formalizada e artificial encontramos seu projeto e até certo ponto sua realização em Lineu e em Adanson os modos de tradução dos enunciados quantitativos em formulações qualitativas e viceversa relacionamento das medidas e descrições puramente perceptivas os meios utilizados para aumentar a aproximação dos enunciados e refinar sua exatidão a análise estrutural segundo a forma o número a disposição e a grandeza dos elementos permitiu a partir de Tournefort aproximação maior e sobretudo mais constante dos enunciados descritivos a maneira pela qual se delimita novamente por extensão ou restrição o domínio de validade dos enunciados a enunciação dos caracteres estruturais foi limitada de Tournefort a Lineu ampliandose novamente de Buffon a Jussieu a maneira pela qual se transfere um tipo de enunciado de um campo de aplicação a outro como a transferência da caracterização vegetal à taxinomia animal ou da descrição dos traços superficiais aos elementos internos do organismo os métodos de sistematização de proposições que já existem por terem sido formuladas anteriormente mas em separado ou ainda os métodos de redistribuição de enunciados já ligados uns aos outros mas que são recompostos em um novo conjunto sistemático assim o fez Adanson retomando as caracterizações naturais que puderam ser feitas antes dele ou por ele próprio em um conjunto de descrições artificiais cujo esquema prévio ele tinha tomado por uma combinatória abstrata Os elementos que nos propomos a analisar são bastante heterogêneos Alguns constituem regras de construção formal outros hábitos retóricos alguns definem a configuração interna de um texto outros os modos de relações e de interferência entre textos diferentes alguns são característicos de uma época determinada outros têm uma origem longínqua e um alcance cronológico muito grande Mas o que pertence propriamente a uma formação discursiva e o que permite delimitar o grupo de conceitos embora discordantes que lhe são específicos é a maneira pela qual esses diferentes elementos 66 Michel Foucault estão relacionados uns aos outros a maneira por exemplo pela qual a disposição das descrições ou das narrações está ligada às técnicas de reescrita a maneira pela qual o campo de memória está ligado às formas de hierarquia e de subordinação que regem os enunciados de um texto a maneira pela qual estão ligados os modos de aproximação e de desenvolvimento dos enunciados e os modos de critica de comentários de interpretação de enunciados já formulados etc É esse feixe de relações que constitui um sistema de formação conceitual A descrição de semelhante sistema não poderia valer por uma descrição direta e imediata dos próprios conceitos Não se trata de fazer seu levantamento exaustivo de estabelecer os traços que podem ter em comum de tentar classificálos de medirlhes a coerência interna ou testar sua compatibilidade mútua não se toma como objeto de análise a arquitetura conceitual de um texto isolado de uma obra individual ou de uma ciência em um dado momento Colocamonos na retaguarda em relação a esse jogo conceitual manifesto e tentamos determinar segundo que esquemas de seriação de grupamentos simultâneos de modificação linear ou recíproca os enunciados podem estar ligados uns aos outros em um tipo de discurso tentamos estabelecer assim como os elementos recorrentes dos enunciados podem reaparecer se dissociar se recompor ganhar em extensão ou em determinação ser retomados no interior de novas estruturas lógicas adquirir em compensação novos conteúdos semânticos constituir entre si organizações parciais Esses esquemas permitem descrever não as leis de construção interna dos conceitos não sua gênese progressiva e individual no espírito de um homem mas sua dispersão anônima através de textos livros e obras dispersão que caracteriza um tipo de discurso e que define entre os conceitos formas de dedução de derivação de coerência e também de incompatibilidade de entrecruzamento de substituição de exclusão de alteração recíproca de deslocamento etc Tal análise referese pois em um nível de certa forma préconceitual ao campo em que os conceitos podem coexistir e às regras às quais esse campo está submetido Para precisar o que se deve entender aqui por préconceitual retomarei o exemplo dos quatro esquemas teóricos estudados em Les mots et les choses e que caracterizam nos A Arqueologia do Saber 67 séculos XVII e XVIII a gramática geral Esses quatro esquemas atribuição articulação designação e derivação não designam conceitos efetivamente utilizados por gramáticos clássicos não permitem tampouco reconstituir acima de diferentes obras de gramática uma espécie de sistema mais geral mais abstrato mais pobre mas que descobriria por isso mesmo a compatibilidade profunda desses diferentes sistemas aparentemente opostos Eles permitem descrever 1 Como se podem ordenar e desenrolar as diferentes análises gramaticais e que formas de sucessão são possíveis entre as análises do nome as do verbo e as dos adjetivos as que se referem à fonética e as que se referem à sintaxe as que dizem respeito à língua originária e as que projetam uma língua artificial Essas diferentes ordens possíveis são prescritas pelas relações de dependência que podem ser demarcadas entre as teorias da atribuição da articulação da designação e da derivação 2 Como a gramática geral define um domínio de validade segundo que critérios se pode discutir a verdade ou a falsidade de uma proposição como constitui um domínio de normatividade segundo que critérios certos enunciados são excluídos como não pertinentes ao discurso ou como irrelevantes e marginais ou como não científicos como constitui um domínio de atualidade compreendendo as soluções adquiridas definindo os problemas presentes situando os conceitos e as afirmações caídas em desuso 3 Que relações a gramática geral mantém com a Mathesis com a álgebra cartesiana e póscartesiana com o projeto de uma ciência geral da ordem com a análise filosófica da representação e as teorias dos signos com a história natural os problemas da caracterização e da taxionomia com a análise das riquezas e os problemas dos signos arbitrários de medida e de troca demarcando essas relações podemse determinar os caminhos que de um domínio a outro asseguram a circulação a transferência as modificações dos conceitos a alteração de sua forma ou a mudança de seu terreno de aplicação A rede constituída pelos quatro segmentos teóricos não define a 68 Michel Foucault arquitetura lógica de todos os conceitos utilizados pelos gramáticos ela delineia o espaço regular de sua formação 4 Como foram simultânea ou sucessivamente possíveis sob a forma da escolha alternativa da modificação ou da substituição as diversas concepções do verbo ser da ligação do radical verbal e da desinência para o esquema teórico da atribuição as diversas concepções dos elementos fonéticos do alfabeto do nome dos substantivos e dos adjetivos para o esquema teórico da articulação os diversos conceitos de substantivo e de substantivo comum de demonstrativo de raiz nominal de sílaba ou de sonoridade expressiva para o segmento teórico da designação os diversos conceitos de linguagem originária e derivada de metáfora e de figura de linguagem poética para o segmento teórico da derivação O nível préconceitual que assim destacamos não remete nem a um horizonte de idealidade nem a uma gênese empírica das abstrações De um lado não é um horizonte de idealidade colocado descoberto ou instaurado por um gesto fundador e de tal forma originário que escaparia a qualquer inserção cronológica não é nos confins da história um a priori inesgotável ao mesmo tempo na retaguarda porque escaparia a qualquer começo a qualquer reconstituição genética e afastado porque jamais poderia ser contemporâneo de si mesmo em uma totalidade explícita Na verdade colocamos a questão no nível do próprio discurso que não é mais tradução exterior mas lugar de emergência dos conceitos não associamos as constantes do discurso às estruturas ideais do conceito mas descrevemos a rede conceitual a partir das regularidades intrínsecas do discurso não submetemos a multiplicidade das enunciações à coerência dos conceitos nem esta ao recolhimento silencioso de uma idealidade metaistórica estabelecemos a série inversa recolocamos as intenções livres de nãocontradição em um emaranhado de compatibilidade e incompatibilidade conceituais e relacionamos esse emaranhado com as regras que caracterizam uma prática discursiva Por isso mesmo não é mais necessário apelar para os temas da origem indefinidamente recuada e do horizonte inesgotável a organização de um conjunto de regras na prática do discurso mesmo se ela não constitui um acontecimento tão fácil de ser situado quanto uma formulação ou uma descoberta pode no entanto ser A Arqueologia do Saber 69 determinada no elemento da história e se ele é inesgotável é no sentido de que o sistema perfeitamente descritível por ele constituído dá conta de um jogo considerável de conceitos e de um número muito importante de transformações que afetam ao mesmo tempo esses conceitos e suas relações O préconceitual assim descrito em lugar de delinear um horizonte que viria do fundo da história e se manteria através dela é pelo contrário no nível mais superficial no nível dos discursos o conjunto das regras que aí se encontram efetivamente aplicadas Vêse que não se trata tampouco de uma gênese das abstrações tentando reencontrar a série das operações que permitiram constituílas intuições globais descobertas de casos particulares exclusão dos temas imaginários reencontro de obstáculos teóricos ou técnicos empréstimos sucessivos a modelos tradicionais definição da estrutura formal adequada etc Na análise que aqui se propõe as regras de formação têm seu lugar não na mentalidade ou na consciência dos indivíduos mas no próprio discurso elas se impõem por conseguinte segundo um tipo de anonimato uniforme a todos os indivíduos que tentam falar nesse campo discursivo Por outro lado não são consideradas universalmente válidas para todos os domínios indiscriminadamente são sempre descritas em campos discursivos determinados e suas possibilidades indefinidas de extensão não são reconhecidas antecipadamente Podemse no máximo por uma comparação sistemática confrontar de uma região a outra as regras de formação dos conceitos foi assim que se tentou salientar as identidades e as diferenças que esses conjuntos de regras podem apresentar na época clássica na gramática geral na história natural e na análise das riquezas Esses conjuntos de regras são bastante específicos em cada um desses domínios para caracterizar uma formação discursiva singular e bem individualizada mas apresentam analogias suficientes para que vejamos essas diversas formações constituírem um grupamento discursivo mais vasto e de um nível mais elevado De qualquer forma as regras de formação dos conceitos qualquer que seja sua generalidade não são o resultado depositado na história e sedimentado na espessura dos hábitos coletivos de operações efetuadas pelos indivíduos não constituem o esquema descarnado de todo um trabalho obscuro ao longo do qual os 70 Michel Foucault conceitos se teriam mostrado através de ilusões preconceitos erros tradições O campo préconceitual deixa aparecerem as regularidades e coações discursivas que tornaram possível a multiplicidade heterogênea dos conceitos e em seguida mais além ainda a abundância desses temas dessas crenças dessas representações às quais nos dirigimos naturalmente quando fazemos a história das idéias Para analisar as regras de formação dos objetos vimos que não seria necessário nem enraizálos nas coisas nem relacionálos ao domínio das palavras para analisar a formação dos tipos enunciativos não seria necessário relacionálos nem ao sujeito cognoscente nem a uma individualidade psicológica Da mesma forma para analisar a formação dos conceitos não é preciso relacionálos nem ao horizonte da idealidade nem ao curso empírico das idéias 6 A FORMAÇÃO DAS ESTRATÉGIAS Discursos como a economia a medicina a gramática a ciência dos seres vivos dão lugar a certas organizações de conceitos a certos reagrupamentos de objetos a certos tipos de enunciação que formam segundo seu grau de coerência de rigor e de estabilidade temas ou teorias tema na gramática do século XVIII de uma língua originária de que todas as outras derivariam e manteriam a lembrança por vezes decifrável teoria na filologia do século XIX de um parentesco direito ou colateral entre todas as línguas indoeuropéias e de um idioma arcaico que lhes teria servido de ponto de partida comum tema no século XVIII de uma evolução das espécies que desenvolve no tempo a continuidade da natureza e explica as lacunas atuais do quadro taxionômico teoria entre os fisiocratas de uma circulação das riquezas a partir da produção agrícola Qualquer que seja seu nível formal chamaremos convencionalmente de estratégias esses temas e essas teorias O problema é saber como se distribuem na história Será por um determinismo que as encadeia as torna inevitáveis as chama exatamente a seu lugar umas após outras e de fato como as soluções sucessivas de um único e mesmo problema Ou por encontros aleatórios entre idéias de origem diversa influências descobertas climas especulativos modelos teóricos que a paciência ou o gênio dos indivíduos 72 Michel Foucault disporia em conjuntos mais ou menos bem constituídos A menos que seja possível encontrar entre elas uma regularidade e que sejamos capazes de definir o sistema comum de sua formação Na análise dessas estratégias tenho bastante dificuldade de entrar em detalhes A razão é simples nos diferentes domínios discursivos que enumerei de uma forma bastante hesitante e sobretudo no início sem controle metódico suficiente tratavase de descrever cada vez a formação discursiva em todas as suas dimensões e segundo suas características próprias era preciso pois definir cada vez as regras de formação dos objetos das modalidades enunciativas dos conceitos das escolhas teóricas Mas chegouse à conclusão de que o ponto difícil da análise e aquele que exigia mais atenção não eram sempre os mesmos Na Histoire de la folie tratei de uma formação discursiva cujos pontos de escolha teóricos eram bastante fáceis de ser demarcados cujos sistemas conceituais eram relativamente pouco numerosos e sem complexidade cujo regime enunciativo enfim era bastante homogêneo e monótono em compensação o problema era a emergência de todo um conjunto de objetos muito enredados e complexos tratavase de descrever antes de tudo a formação desses objetos para demarcar em sua especificidade o conjunto do discurso psiquiátrico Na Naissance de la clinique o ponto essencial da pesquisa era a maneira pela qual se modificaram no fim do século XVIII e início do XIX as formas de enunciação do discurso médico a análise então haviase voltado menos para a formação dos sistemas conceituais ou para a das escolhas teóricas do que para o status o lugar institucional a situação e os modos de inserção do sujeito falante Finalmente em Les mots et les choses o estudo se referia em sua parte principal às redes de conceitos e suas regras de formação idênticas ou diferentes tais como podiam ser demarcadas na gramática geral na história natural e na análise das riquezas Quanto às escolhas estratégicas sua posição e suas implicações foram indicadas seja por exemplo a propósito de Lineu e de Buffon ou dos fisiocratas e dos utilitaristas mas sua demarcação permaneceu sumária e a análise quase não se deteve em sua formação Digamos que a análise das escolhas teóricas ainda continuará incipiente até que se realize um estudo ulterior em que ela possa reter o essencial da atenção A Arqueologia do Saber 73 No momento só é possível indicar as direções da pesquisa Poderiam assim se resumir 1 Determinar os pontos de difração possíveis do discurso Tais pontos se caracterizam inicialmente como pontos de incompatibilidade dois objetos ou dois tipos de enunciação ou dois conceitos podem aparecer na mesma formação discursiva sem poderem entrar sob pena de contradição manifesta ou inconsequência em uma única e mesma série de enunciados Caracterizamse em seguida como pontos de equivalência os dois elementos incompatíveis são formados da mesma maneira e a partir das mesmas regras suas condições de aparecimento são idênticas situamse em um mesmo nível e ao invés de constituírem uma pura e simples falta de coerência formam uma alternativa mesmo que segundo a cronologia não apareçam ao mesmo tempo que não tenham tido a mesma importância e que não tenham sido representados de modo igual na população dos enunciados efetivos apresentamse sob a forma de ou bem isso ou bem aquilo Finalmente caracterizamse como pontos de ligação de uma sistematização a partir de cada um desses elementos ao mesmo tempo equivalentes e incompatíveis uma série coerente de objetos formas enunciativas conceitos foram derivados eventualmente com novos pontos de incompatibilidade em cada série Em outros termos as dispersões estudadas nos níveis precedentes não constituem simplesmente desvios nãoidentidades séries descontínuas lacunas podem chegar a formar subconjuntos discursivos os mesmos aos quais habitualmente se dá uma importância maior como se fossem a unidade imediata e a matériaprima de que são feitos os conjuntos discursivos mais vastos teorias concepções temas Por exemplo não se considera em uma análise como esta que a análise das riquezas no século XVIII seja a resultante por composição simultânea ou sucessão cronológica de diversas concepções diferentes da moeda da troca dos objetos de uso da formação do valor e dos preços ou da renda fundiária não se considera que ela seja feita das idéias de Cantillon que substituem as de Petty da experiência de Law refletida sucessivamente por teóricos diversos e do sistema fisiocrático que se opõe às concepções utilitaristas Ela é descrita mais exatamente como uma unidade de distribuição que abre um campo de opções possíveis e permite a arquiteturas diversas que se excluem aparecerem lado a lado ou cada uma por sua vez 2 Mas todos os jogos possíveis não estão efetivamente realizados há muitos conjuntos parciais compatibilidades regionais arquiteturas coerentes que poderiam ter aparecido e que não se manifestaram Para dar conta das escolhas e apenas delas que foram realizadas entre todas as que o poderiam ter sido é preciso descrever 74 Michel Foucault instâncias específicas de decisão em primeiro lugar o papel desempenhado pelo discurso estudado em relação aos que lhe são contemporâneos e vizinhos É preciso pois estudar a economia da constelação discursiva à qual ele pertence Esse discurso pode desempenhar na verdade o papel de um sistema formal de que outros discursos seriam as aplicações em campos semânticos diversos pode ser ao contrário o de um modelo concreto que é preciso levar a outros discursos de um nível de abstração mais elevado assim a gramática geral nos séculos XVII e XVIII aparece como um modelo particular da teoria geral dos signos e da representação O discurso estudado pode estar também em uma relação de analogia de oposição ou de complementaridade com alguns outros discursos há por exemplo relação de analogia na época clássica entre a analise das riquezas e a história natural a primeira é para a representação da necessidade e do desejo o que a segunda é para a representação das percepções e dos juízos podese notar também que a história natural e a gramática geral se opõem entre si como uma teoria dos caracteres naturais e uma teoria dos signos de convenção todas as duas por sua vez se opõem à análise das riquezas como o estudo dos signos qualitativos se opõe ao dos signos quantitativos de medida cada uma enfim desenvolve um dos três papéis complementares do signo representativo designar classificar trocar Podemse finalmente descrever entre diversos discursos relações de delimitação recíproca cada um deles apresentando as marcas distintivas de sua singularidade pela diferenciação de seu domínio seus métodos seus instrumentos seu domínio de aplicação isso vale para a psiquiatria e a medicina orgânica que praticamente não se distinguiam uma da outra antes do final do século XVIII e que estabelecem a partir desse momento uma separação que as caracteriza Todo esse jogo de relações constitui um princípio de determinação que admite ou exclui no interior de um dado discurso um certo número de enunciados há sistematizações conceituais encadeamentos enunciativos grupos e organizações de objetos que teriam sido possíveis e cuja ausência não pode ser justificada no nível de suas regras próprias de formação mas que são excluídos por uma constelação discursiva de um nível mais elevado e de maior extensão Uma formação discursiva não ocupa assim todo o volume possível que lhe abrem por direito os sistemas de formação de seus objetos de suas enunciações de seus conceitos ela é essencialmente lacunar em virtude do sistema de formação de suas escolhas estratégicas Daí o fato de que uma vez retomada situada e interpretada em uma nova constelação uma dada formação discursiva pode fazer aparecerem possibilidades novas assim na distribuição atual dos discursos científicos a gramática de PortRoyal ou a taxionomia de Lineu podem liberar A Arqueologia do Saber 75 elementos que são em relação a elas ao mesmo tempo intrínsecos e inéditos mas não se trata de um conteúdo silencioso que teria permanecido implícito que teria sido dito sem sêlo e que constituiria sob enunciados manifestos uma espécie de subdiscurso mais fundamental voltando agora à luz do dia tratase de uma modificação no princípio de exclusão e de possibilidade das escolhas modificação que é devida à inserção em uma nova constelação discursiva 3 A determinação das escolhas teóricas realmente efetuadas depende também de uma outra instância Essa instância se caracteriza de início pela função que deve exercer o discurso estudado em um campo de práticas não discursivas Assim a gramática geral desempenhou um papel na prática pedagógica de um modo muito mais manifesto e muito mais importante a análise das riquezas desempenhou um papel não só nas decisões políticas e econômicas dos governos mas nas práticas cotidianas pouco conceitualizadas e pouco teorizadas do capitalismo nascente e nas lutas sociais e políticas que caracterizaram a época clássica Essa instância compreende também o regime e os processos de apropriação do discurso pois em nossas sociedades e em muitas outras sem dúvida a propriedade do discurso entendida ao mesmo tempo como direito de falar competência para compreender acesso lícito e imediato ao corpus dos enunciados já formulados capacidade enfim de investir esse discurso em decisões instituições ou práticas está reservada de fato às vezes mesmo de modo regulamentar a um grupo determinado de indivíduos nas sociedades burguesas que conhecemos desde o século XVI o discurso econômico jamais foi um discurso comum não mais que o discurso médico ou o discurso literário ainda que de outro modo Finalmente essa instância se caracteriza pelas posições possíveis do desejo em relação do discurso este na verdade pode ser o local de uma encenação fantasmática elemento de simbolização forma do proibido instrumento de satisfação derivada essa possibilidade de estar relacionado com o desejo não é apenas o fato do exercício poético romanesco ou imaginário do discurso os discursos sobre a riqueza linguagem natureza loucura vida e morte e muitos outros talvez que são muito mais abstratos podem ocupar em relação ao desejo relações bem determinadas De qualquer modo a análise dessa instância deve mostrar que nem a relação do discurso com o desejo nem os processos de sua apropriação nem seu papel entre as práticas não discursivas são extrinsecos à sua unidade à sua caracterização e às leis de sua formação Não são elementos perturbadores que superpondose à sua forma pura neutra intemporal e silenciosa a reprimiriam e fariam falar em seu lugar um discurso mascarado mas sim elementos formadores 76 Michel Foucault Uma formação discursiva será individualizada se se puder definir o sistema de formação das diferentes estratégias que nela se desenrolam em outros termos se se puder mostrar como todas derivam malgrado sua diversidade por vezes extrema malgrado sua dispersão no tempo de um mesmo jogo de relações Por exemplo a análise das riquezas nos séculos XVII e XVIII é caracterizada pelo sistema que pôde formar ao mesmo tempo o mercantilismo de Colbert e o neomercantilismo de Cantillon a estratégia de Law e a de ParisDuverney a opção fisiocrática e a opção utilitarista Esse sistema será definido se se puder descrever como os pontos de difração do discurso econômico derivam uns dos outros se comandam e se pressupõem como de uma decisão a propósito do conceito de valor deriva um ponto de escolha a propósito dos preços como as escolhas efetuadas dependem da constelação geral em que figura o discurso econômico a escolha em favor da moedasigno está ligada ao lugar ocupado pela análise das riquezas ao lado da teoria da linguagem da análise das representações das mathesis e da ciência da ordem como essas escolhas estão ligadas à função exercida pelo discurso econômico na prática do capitalismo nascente ao processo de apropriação de que é objeto por parte da burguesia ao papel que pode desempenhar na realização dos interesses e dos desejos O discurso econômico na época clássica definese por uma certa maneira constante de relacionar possibilidades de sistematização interiores a um discurso outros discursos que lhe são exteriores e todo um campo não discursivo de práticas de apropriação de interesses e de desejos É preciso notar que as estratégias assim descritas não se enraízam aquém do discurso na profundidade muda de uma escolha ao mesmo tempo preliminar e fundamental Todos esses grupamentos de enunciados que devemos descrever não são a expressão de uma visão do mundo que teria sido cunhada sob a forma de palavras nem a tradução hipócrita de um interesse abrigado sob o pretexto de uma teoria a história natural na época clássica é diferente do confronto nos limbos que precedem a história manifesta entre uma visão lineana de um universo estático ordenado compartimentado e sabiamente oferecido desde sua origem ao esquadrinhamento classificatório e a percepção ainda um pouco confusa de uma natureza herdeira do tempo com o peso de seus acidentes e A Arqueologia do Saber 77 aberta à possibilidade de uma evolução da mesma forma a análise das riquezas é diferente do conflito de interesses entre uma burguesia que se tornou proprietária fundiária e exprime suas reivindicações econômicas ou políticas pela voz dos fisiocratas e uma burguesia comerciante que pedia medidas protecionistas ou liberais por meio dos utilitaristas Se as interrogarmos no nível de sua existência unidade permanência e transformações nem a análise das riquezas nem a história natural poderão ser consideradas como a soma dessas opções diversas Estas ao contrário devem ser descritas como maneiras sistematicamente diferentes de tratar objetos de discurso de delimitálos reagrupálos ou separálos encadeálos e fazêlos derivar uns dos outros de dispor formas de enunciações de escolhêlas organizálas constituir séries compôlas em grandes unidades retóricas de manipular conceitos de lhes dar regras de utilização fazêlos entrar em coerências regionais e constituir assim arquiteturas conceituais Essas opções não são germes de discursos onde estes seriam determinados com antecedência e prefigurados sob uma forma quase microscópica são maneiras reguladas e descritíveis como tais de utilizar possibilidades de discursos Mas estas estratégias não devem ser analisadas tampouco como elementos secundários que viriam sobrecarregar uma racionalidade discursiva por direito independente deles Não há ou pelo menos não se pode admitir para a descrição histórica cuja possibilidade aqui traçamos uma espécie de discurso ideal ao mesmo tempo último e intemporal que escolhas de origem extrínseca teriam pervertido desordenado reprimido lançado para um futuro talvez muito longínquo não se deve supor por exemplo que existam sobre a natureza ou sobre a economia dois discursos superpostos e misturados um que prossegue lentamente que acumula suas aquisições e pouco a pouco se completa discurso verdadeiro mas que só existe em sua pureza nos confins teleológicos da história o outro sempre arruinado sempre recomeçado em contínua ruptura consigo mesmo composto de fragmentos heterogêneos discursos de opinião que a história ao longo do tempo lança para o passado Não há uma taxionomia natural que tenha sido exata excetuandose o fixismo não há uma economia da troca e do uso que tenha sido verdadeira sem as preferências e as ilusões de uma burguesia mercantil 78 Michel Foucault A taxionomia clássica ou a análise das riquezas tais como existiram efetivamente e tais como constituíram figuras históricas compreendem em um sistema articulado mas indissociável objetos enunciações conceitos e escolhas teóricas E assim como não seria preciso relacionar a formação dos objetos nem às palavras nem às coisas a das enunciações nem à forma pura do conhecimento nem ao sujeito psicológico a dos conceitos nem à estrutura da idealidade nem à sucessão das idéias não é preciso relacionar a formação das escolhas teóricas nem a um projeto fundamental nem ao jogo secundário das opiniões 7 OBSERVAÇÕES E CONSEQUÊNCIAS É preciso agora retomar um certo número de indicações esparsas nas análises precedentes responder a algumas questões por elas colocadas e considerar antes de tudo a objeção que ameaça apresentarse pois o paradoxo da empresa logo aparece De início eu havia questionado as unidades preestabelecidas segundo as quais escandimos tradicionalmente o domínio indefinido monótono abundante do discurso Não se tratava de contestar o valor de tais unidades ou de querer proibir seu uso mas de mostrar que elas reclamam para serem definidas exatamente uma elaboração teórica Entretanto e é neste ponto que todas as análises precedentes parecem bastante problemáticas seria necessário sobrepor a essas unidades talvez na verdade um pouco incertas uma outra categoria de unidades menos visíveis mais abstratas e sem dúvida bem mais problemáticas Mesmo no caso em que seus limites históricos e a especificidade de sua organização são bastante fáceis de ser percebidos como prova a gramática geral ou a história natural essas formações discursivas colocam problemas de demarcação bem mais difíceis que o livro ou a obra Por que então proceder a reagrupamentos tão duvidosos justamente no momento em que se problematizam aqueles que pareciam os mais evidentes Que domínio novo se espera 80 Michel Foucault descobrir Que relações permanecem ainda obscuras ou implícitas Que transformações ainda permaneceram fora do alcance dos historiadores Em suma que eficácia descritiva se pode atribuir a essas novas análises Tentarei responder a todas essas perguntas mais adiante Mas é preciso desde já responder a uma questão primordial em relação às análises ulteriores e terminal em relação às precedentes na verdade temse o direito de falar de unidades a propósito das formações discursivas que tentei definir O recorte que se propõe é capaz de individualizar conjuntos E qual é a natureza da unidade assim descoberta ou construída Havíamos partido de uma constatação com a unidade de um discurso como o da medicina clínica ou da economia política ou da história natural tratamos de uma dispersão de elementos Ora essa própria dispersão com suas lacunas falhas desordens superposições incompatibilidades trocas e substituições pode ser descrita em sua singularidade se formos capazes de determinar as regras específicas segundo as quais foram formados objetos enunciações conceitos opções teóricas se há unidade ela não está na coerência visível e horizontal dos elementos formados reside muito antes no sistema que torna possível e rege sua formação Mas com que direito se pode falar de unidades e de sistemas Como afirmar que individualizamos bem conjuntos discursivos se por trás da multiplicidade aparentemente irredutível dos objetos enunciações conceitos e escolhas utilizamos de maneira bastante temerária uma massa de elementos que não eram menos numerosos nem menos dispersos mas que além disso eram heterogêneos entre si Se repartimos todos esses elementos em quatro grupos distintos cujo modo de articulação quase não foi definido E em que sentido podemos dizer que todos esses elementos descobertos por trás dos objetos enunciações conceitos e estratégias dos discursos asseguram a existência de conjuntos não menos individualizáveis que obras ou livros 1 Vimos que e sem dúvida não há necessidade de voltarmos ao assunto quando se fala de um sistema de formação não se compreende somente a justaposição a coexistência ou a interação de elementos heterogêneos instituições técnicas grupos sociais organizações perceptivas relações entre A Arqueologia do Saber 81 discursos diversos mas seu relacionamento sob uma forma bem determinada estabelecido pela prática discursiva Mas o que são por sua vez esses quatro sistemas ou melhor esses quatro feixes de relações Como podem definir para todos eles um sistema único de formação É que os diferentes níveis assim definidos não são independentes uns dos outros Mostramos que as escolhas estratégicas não surgem diretamente de uma visão de mundo ou de uma predominância de interesses que pertenceriam a este ou àquele sujeito falante mas que sua própria possibilidade é determinada por pontos de divergência no jogo dos conceitos mostramos também que os conceitos não eram formados diretamente sobre o fundo aproximativo confuso e vivo das idéias mas a partir das formas de coexistência entre os enunciados quanto às modalidades de enunciação vimos que eram descritas a partir da posição que o sujeito ocupa em relação ao domínio de objetos de que fala Desta maneira existe um sistema vertical de dependências todas as posições do sujeito todos os tipos de coexistência entre enunciados todas as estratégias discursivas não são igualmente possíveis mas somente as que são autorizadas pelos níveis anteriores considerandose por exemplo o sistema de formação que rege no século XVIII os objetos da história natural como individualidades portadoras de caracteres e por isso classificáveis como elementos estruturais suscetíveis de variações como superfícies visíveis e analisáveis como campo de diferenças contínuas e regulares certas modalidades de enunciação são excluídas por exemplo a decifração dos signos outras estão implícitas por exemplo a descrição segundo um código determinado da mesma forma considerandose as diferentes posições que o sujeito do discurso pode ocupar como sujeito que observa sem mediação instrumental como sujeito que tira da pluralidade perceptiva os únicos elementos da estrutura como sujeito que transcreve esses elementos em um vocabulário codificado etc há um certo número de coexistências entre os enunciados que são excluídas como por exemplo a reativação erudita do já dito ou o comentário exegético de um texto sacralizado outras ao contrário que são possíveis ou requeridas com a integração de enunciados total ou parcialmente análogos em um quadro classificatório Os níveis não são pois livres uns em relação aos outros e não se 82 Michel Foucault desenvolvem segundo uma autonomia sem limite da diferenciação primária dos objetos à formação das estratégias discursivas existe toda uma hierarquia de relações Mas as relações se estabelecem igualmente em uma direção inversa Os níveis inferiores não são independentes dos que lhes são superiores As escolhas teóricas excluem ou implicam nos enunciados que as efetuam a formação de certos conceitos isto é certas formas de coexistência entre os enunciados assim nos textos dos fisiocratas não encontraremos modos de integração dos dados quantitativos e das medidas semelhantes aos das análises feitas pelos utilitaristas Não é que a opção fisiocrática possa modificar o conjunto das regras que asseguram a formação dos conceitos econômicos do século XVIII mas ela pode utilizar ou excluir algumas dessas regras e em consequência disso fazer com que apareçam certos conceitos que não se apresentam em nenhum outro lugar como por exemplo o de produto líquido Não foi a escolha teórica que regulou a formação do conceito mas ela o produziu por intermédio das regras específicas de formação dos conceitos e pelo jogo das relações que mantém com esse nível 2 Esses sistemas de formação não devem ser tomados como blocos de imobilidade formas estáticas que se imporiam do exterior ao discurso e definiriam de uma vez por todas seus caracteres e possibilidades Não são coações que teriam sua origem nos pensamentos dos homens ou no jogo de suas representações mas não são tampouco determinações que formadas no nível das instituições ou das relações sociais ou da economia viriam transcreverse à força na superfície dos discursos Esses sistemas já insistimos nisso residem no próprio discurso ou antes já que não se trata de sua interioridade e do que ela pode conter mas de sua existência específica e de suas condições em suas fronteiras nesse limite em que se definem as regras específicas que fazem com que exista como tal Por sistema de formação é preciso pois compreender um feixe complexo de relações que funcionam como regra ele prescreve o que deve ser correlacionado em uma prática discursiva para que esta se refira a tal ou tal objeto para que empregue tal ou tal enunciação para que utilize tal ou tal conceito para que organize tal ou tal estratégia Definir em sua individualidade singular um sistema de formação é A Arqueologia do Saber 83 assim caracterizar um discurso ou um grupo de enunciados pela regularidade de uma prática Conjunto de regras para uma prática discursiva o sistema de formação não é estranho ao tempo Não reúne tudo que pode aparecer através de uma série secular de enunciados em um ponto inicial que seria ao mesmo tempo começo origem fundamento sistema de axiomas e a partir do qual as peripécias da história real só se desenrolariam de maneira inteiramente necessária O que ele delineia é o sistema de regras que teve de ser colocado em prática para que tal objeto se transformasse tal enunciação nova aparecesse tal conceito se elaborasse metamorfoseado ou importado tal estratégia fosse modificada sem deixar de pertencer a esse mesmo discurso e o que delineia também é o sistema de regras que teve de ser empregado para que uma mudança em outros discursos em outras práticas nas instituições relações sociais processos econômicos pudesse ser transcrita no interior de um discurso dado constituindo assim um novo objeto suscitando uma nova estratégia dando lugar a novas enunciações ou novos conceitos Uma formação discursiva não desempenha pois o papel de uma figura que pára o tempo e o congela por décadas ou séculos ela determina uma regularidade própria de processos temporais coloca o princípio de articulação entre uma série de acontecimentos discursivos e outras séries de acontecimentos transformações mutações e processos Não se trata de uma forma intemporal mas de um esquema de correspondência entre diversas séries temporais Essa mobilidade do sistema de formação ocorre de duas formas Inicialmente no nível dos elementos que estão relacionados estes na verdade podem sofrer um certo número de mutações intrínsecas que são integradas à prática discursiva sem que seja alterada a forma geral de sua regularidade assim durante todo o século XIX a jurisprudência criminal a pressão demográfica a demanda de mãodeobra as formas de assistência o status e as condições jurídicas do internamente não deixaram de se modificar entretanto a prática discursiva da psiquiatria continuou a estabelecer entre estes elementos um mesmo conjunto de relações de modo que o sistema conservou os caracteres de sua individualidade através das mesmas leis de formação novos objetos aparecem novos tipos de indivíduos novas classes de comportamento 84 Michel Foucault são caracterizadas como patológicas novas modalidades de enunciação são empregadas notações quantitativas e cálculos estatísticos novos conceitos são delineados como os de degenerescência perversidade neurose e certamente novos edifícios teóricos podem ser construídos Mas inversamente as práticas discursivas modificam os domínios por elas relacionados Por mais que se esforçassem em instaurar relações específicas que só podem ser analisadas em seu próprio nível essas relações não exercem seus efeitos apenas no discurso inscrevemse também nos elementos por elas articulados uns com os outros O campo hospitalar por exemplo não permaneceu imutável uma vez que pelo discurso clínico foi relacionado ao laboratório sua ordenação o status que é atribuído ao médico a função de sua observação o nível de análise que aí se pode efetuar viramse necessariamente modificados 3 O que se descreve como sistemas de formação não constitui a etapa final dos discursos se por este termo entendemos os textos ou as falas tais como se apresentam com seu vocabulário sintaxe estrutura lógica ou organização retórica A análise permanece aquém desse nível manifesto que é o da construção acabada definindo o princípio de distribuição dos objetos em um discurso ela não dá conta de todas as suas conexões de sua estrutura delicada nem de suas subdivisões internas buscando a lei de dispersão dos conceitos não dá conta de todos os processos de elaboração nem de todas as cadeias dedutivas nas quais eles podem figurar se ela estuda as modalidades de enunciação não põe em questão nem o estilo nem o encadeamento das frases em suma deixa em pontilhado a disposição final do texto Mas é preciso que fique claro que se ela permanece na retaguarda em relação a esta construção última não é para se desviar do discurso e apelar para o trabalho mudo do pensamento não é tampouco para se desviar do sistemático e revelar a desordem viva dos ensaios tentativas erros e recomeços Quanto a isso a análise das formações discursivas se opõe a muitas descrições habituais Na verdade temos o costume de considerar que os discursos e sua ordenação sistemática não são mais que o estado final o resultado em última instância de uma elaboração há muito tempo sinuosa em que estão em jogo a língua e o pensamento a experiência empírica e as A Arqueologia do Saber 85 categorias o vivido e as necessidades ideais a contingência dos acontecimentos e o jogo das coações formais Atrás da fachada visível do sistema supomos a rica incerteza da desordem e sob a fina superfície do discurso toda a massa de um devir em parte silencioso um présistemático que não é da ordem do sistema um prédiscursivo que se apóia em um essencial mutismo Discurso e sistema só se produziriam e conjuntamente na crista dessa imensa reserva Ora o que se analisa aqui não são certamente os estados terminais do discurso mas sim os sistemas que tornam possíveis as formas sistemáticas últimas são regularidades préterminais em relação às quais o estado final longe de constituir o lugar de nascimento do sistema se define antes por suas variantes Atrás do sistema acabado o que a análise das formações descobre não é a própria vida em efervescência a vida ainda não capturada mas sim uma espessura imensa de sistematicidades um conjunto cerrado de relações múltiplas Além disso essas relações por mais que se esforcem para não serem a própria trama do texto não são por natureza estranhas ao discurso Podese mesmo qualificálas de prédiscursivas mas com a condição de que se admita que esse prédiscursivo pertence ainda ao discursivo isto é que elas não especificam um pensamento uma consciência ou um conjunto de representações que seriam mais tarde e de uma forma jamais inteiramente necessária transcritas em um discurso mas que caracterizam certos níveis do discurso definem regras que ele atualiza enquanto prática singular Não procuramos pois passar do texto ao pensamento da conversa ao silêncio do exterior ao interior da dispersão espacial ao puro recolhimento do instante da multiplicidade superficial à unidade profunda Permanecemos na dimensão do discurso III O ENUNCIADO E O ARQUIVO 1 DEFINIR O ENUNCIADO Suponho agora que o risco tenha sido aceito que se tenha admitido de bom grado para articular a grande superfície dos discursos essas figuras um pouco estranhas um pouco longínquas que chamei formações discursivas que se tenha posto de lado não de forma definitiva mas por algum tempo e por uma questão de método as unidades tradicionais do livro e da obra que se deixe de tomar como princípio de unidade as leis de construção do discurso com a organização formal que daí resulta ou a situação do sujeito falante com o contexto e o núcleo psicológico que a caracterizam que não mais se relacione o discurso ao solo inicial de uma experiência nem à instância a priori de um conhecimento mas que nele mesmo o interroguemos sobre as regras de sua formação Suponho que se aceite empreender essas longas pesquisas sobre o sistema de emergência dos objetos de aparecimento e de distribuição dos modos enunciativos de posicionamento e de dispersão dos conceitos de desenvolvimento das escolhas estratégicas Suponho que se queira construir unidades igualmente abstratas e problemáticas ao invés de acolher as que eram apresentadas com indubitável evidência ou pelo menos com uma familiaridade quase perceptiva Mas de fato de que falei até aqui Qual foi o objeto de minha pesquisa E estava em meus propósitos descrever o quê 90 Michel Foucault Enunciados nessa descontinuidade que os liberta de todas as formas em que tão facilmente aceitavase fossem tomados e ao mesmo tempo no campo geral ilimitado aparentemente sem forma do discurso Ora tive o cuidado de não dar uma definição preliminar de enunciado Não tentei construíla à medida que avançava para justificar a ingenuidade de meu ponto de partida Muito mais e esta é sem dúvida a sanção para tanta negligência eu me pergunto se ao longo do caminho não mudei de orientação se não substituí o horizonte inicial por outra pesquisa se analisando objetos ou conceitos e principalmente estratégias era ainda dos enunciados que eu falava se os quatro conjuntos de regras pelos quais eu caracterizava uma formação discursiva definem grupos de enunciados Finalmente em lugar de estreitar pouco a pouco a significação tão flutuante da palavra discurso creio terlhe multiplicado os sentidos ora domínio geral de todos os enunciados ora grupo individualizável de enunciados ora prática regulamentada dando conta de um certo número de enunciados e a própria palavra discurso que deveria servir de limite e de invólucro ao termo enunciado não a fiz variar à medida que deslocava minha análise ou seu ponto de aplicação à medida que perdia de vista o próprio enunciado Eis portanto a tarefa atual retomar em sua raiz a definição do enunciado e ver se ela é efetivamente empregada nas descrições anteriores ver se é mesmo do enunciado que se trata na análise das formações discursivas Repetidas vezes usei o termo enunciado seja para falar como se se tratasse de indivíduos ou acontecimentos singulares de uma população de enunciados seja para opôlo como a parte se distingue do todo aos conjuntos que seriam os discursos À primeira vista o enunciado aparece como um elemento último indecomponível suscetível de ser isolado em si mesmo e capaz de entrar em um jogo de relações com outros elementos semelhantes a ele como um ponto sem superfície mas que pode ser demarcado em planos de repartição e em formas específicas de grupamentos como um grão que aparece na superfície de um tecido de que é o elemento constituinte como um átomo do discurso E logo o problema se coloca se o enunciado é a unidade elementar do discurso em que consiste Quais são os seus A Arqueologia do Saber 91 traços distintivos Que limites devemos nele reconhecer Essa unidade é ou não idêntica à que os lógicos designaram pelo termo proposição à que os gramáticos caracterizam como frase ou ainda à que os analistas tentam demarcar sob o título speech act Que lugar ocupa entre todas as unidades já descobertas pela investigação da linguagem mas cuja teoria muito frequentemente está longe de ser acabada tão difíceis os problemas que colocam tão penoso em muitos casos delimitálas de forma rigorosa Não acredito que a condição necessária e suficiente para que haja enunciado seja a presença de uma estrutura proposicional definida e que se possa falar de enunciado todas as vezes em que houver proposição e apenas neste caso Podese na verdade ter dois enunciados perfeitamente distintos que se referem a grupamentos discursivos bem diferentes onde não se encontra mais que uma proposição suscetível de um único e mesmo valor obedecendo a um único e mesmo conjunto de leis de construção e admitindo as mesmas possibilidades de utilização Ninguém ouviu e é verdade que ninguém ouviu são indiscerníveis do ponto de vista lógico e não podem ser consideradas como duas proposições diferentes Ora enquanto enunciados estas duas formulações não são equivalentes nem intercambiáveis Não se podem encontrar em um mesmo lugar no plano do discurso nem pertencer exatamente ao mesmo grupo de enunciados Se encontramos a fórmula Ninguém ouviu na primeira linha de um romance sabese até segunda ordem que se trata de uma constatação feita seja pelo autor seja por um personagem em voz alta ou sob a forma de um monólogo interior se encontramos a segunda formulação É verdade que ninguém ouviu só podemos estar em um jogo de enunciados que constitui um monólogo interior uma discussão muda uma contestação consigo mesmo ou um fragmento de diálogo um conjunto de questões e de respostas Nos dois casos tratase da mesma estrutura proposicional mas de caracteres enunciativos bastante distintos Pode haver ao contrário formas proposicionais complexas e redobradas ou ao contrário proposições fragmentárias e inacabadas aí onde evidentemente se trata de um enunciado simples completo e autônomo mesmo se fizer parte de todo um conjunto de outros enunciados conhecemos o exemplo O atual rei da França é careca que só pode 92 Michel Foucault ser analisado do ponto de vista lógico se se reconhecer sob as formas de um enunciado único duas proposições distintas cada uma suscetível de ser verdadeira ou falsa em si mesma ou ainda o exemplo de uma proposição como Minto que só pode ser verdadeira em sua relação com uma asserção de nível inferior Os critérios que permitem definir a identidade de uma proposição distinguir várias delas sob a unidade de uma formulação caracterizar sua autonomia ou sua propriedade de ser completa não servem para descrever a unidade singular de um enunciado E a frase Não seria preciso admitir uma equivalência entre frase e enunciado Sempre que existe uma frase gramaticalmente isolável podese reconhecer a existência de um enunciado independente mas em compensação não se pode mais falar de enunciado quando sob a própria frase chegase ao nível de seus constituintes De nada adiantaria alegar contra essa equivalência que alguns enunciados podem ser compostos fora da forma canônica sujeitoligaçãopredicado por um simples sintagma nominal Este homem ou por um advérbio Perfeitamente ou por um pronome pessoal Você Os próprios gramáticos reconhecem em semelhantes formulações frases independentes mesmo que tenham sido obtidas por uma série de transformações a partir do esquema sujeitopredicado Além disso atribuem o status de frases aceitáveis a conjuntos de elementos linguísticos que não foram corretamente construídos contanto que sejam interpretáveis atribuem em compensação o status de frases gramaticais a conjuntos interpretáveis contanto que tenham sido corretamente formados Com uma definição tão vasta e em um sentido tão laxista da frase não se vê como reconhecer frases que não sejam enunciados ou enunciados que não sejam frases Entretanto a equivalência está longe de ser total e é relativamente fácil citar enunciados que não correspondem à estrutura linguística das frases Quando encontramos em uma gramática latina uma série de palavras dispostas em coluna amo amas amat não lidamos com uma frase mas com o enunciado das diferentes flexões pessoais do indicativo presente do verbo amare Talvez se ache o exemplo discutível talvez se possa dizer que se trata de um simples artifício de apresentação que esse enunciado é uma frase elítica A Arqueologia do Saber 93 abreviada espacializada de modo relativamente não usual e que é preciso lêlo como a frase O presente do indicativo do verbo amare é amo para a primeira pessoa etc De qualquer forma outros exemplos são menos ambíguos um quadro classificatório das espécies botânicas é constituído de enunciados não de frases Genera plantarum de Lineu é um livro inteiramente constituído de enunciados em que não podemos reconhecer mais que um número restrito de frases uma árvore genealógica um livro contábil as estimativas de um balanço comercial são enunciados onde estão as frases Podese ir mais longe uma equação de enésimo grau ou a fórmula algébrica da lei da refração devem ser consideradas como enunciados e se possuem uma gramaticalidade muito rigorosa já que são compostas de símbolos cujo sentido é determinado por regras de uso e pela sucessão regida por leis de construção não se trata dos mesmos critérios que permitem em uma língua natural definir uma frase aceitável ou interpretável Finalmente um gráfico uma curva de crescimento uma pirâmide de idades um esboço de repartição formam enunciados quanto às frases de que podem estar acompanhados elas são sua interpretação ou comentário não são o equivalente deles a prova é que em muitos casos apenas um número infinito de frases poderia equivaler a todos os elementos que estão explicitamente formulados nessa espécie de enunciados Não parece possível assim definir um enunciado pelos caracteres gramaticais da frase Permanece uma última possibilidade à primeira vista a mais verossímil de todas Seria possível dizer que existe enunciado sempre que se possa reconhecer e isolar um ato de formulação algo como o speech act esse ato ilocutório de que falam os analistas ingleses É claro que não se visa com isso ao ato material que consiste em falar em voz alta ou baixa e em escrever à mão ou à máquina não se visa tampouco à intenção do indivíduo que está falando o fato de que quer convencer que deseja ser obedecido que procura descobrir a solução de um problema ou que deseja dar notícias não se designa tampouco o resultado eventual do que ele disse se convenceu ou suscitou desconfiança se foi ouvido e se suas ordens foram cumpridas se sua prece foi compreendida descrevese a operação que foi efetuada pela própria fórmula em sua emergência promessa ordem decreto contrato 94 Michel Foucault compromisso constatação O ato ilocutório não é o que ocorreu antes do momento do enunciado no pensamento do autor ou no jogo de suas intenções não é o que se pôde produzir depois do próprio enunciado no sulco que deixou atrás de si e nas consequências que provocou mas sim o que se produziu pelo próprio fato de ter sido enunciado e precisamente esse enunciado e nenhum outro em circunstâncias bem determinadas Podese então supor que a individualização dos enunciados depende dos mesmos critérios que a demarcação dos atos de formulação cada ato tomaria corpo em um enunciado e cada enunciado seria internamente habitado por um desses atos Existiriam um pelo outro e em uma exata reciprocidade Semelhante correlação entretanto não resiste à crítica É preciso frequentemente mais de um enunciado para efetuar um speech act juramento prece contrato promessa demonstração exigem na maior parte do tempo um certo número de fórmulas distintas ou de frases separadas seria difícil contestar em cada uma delas o status de enunciado sob o pretexto de que são todas atravessadas por um único e mesmo ato ilocutório Talvez se diga que nesse caso o próprio ato não permanece único ao longo da série dos enunciados que há em uma prece tantos atos de prece limitados sucessivos e justapostos quantas forem as exigências formuladas por enunciados distintos e que há em uma promessa tantos comprometimentos quantas forem as sequências individualizáveis em enunciados separados Não poderíamos entretanto nos satisfazer com esta resposta inicialmente porque o ato de formulação não serviria mais para definir o enunciado mas deveria ser ao contrário definido por este que justamente constitui problema e requer critérios de individualização Além disso certos atos ilocutórios só podem ser considerados como acabados em sua unidade singular se vários enunciados tiverem sido articulados cada um no lugar que lhe convém Esses atos são pois constituídos pela série ou soma desses enunciados por sua necessária justaposição não se pode considerar que estejam inteiramente presentes no menor deles e que se renovem com cada um Aqui também não se poderia estabelecer uma relação biunívoca entre o conjunto dos enunciados e o dos atos ilocutórios Quando se quer individualizar os enunciados não se pode admitir sem reservas nenhum dos modelos tomados de A Arqueologia do Saber 95 empréstimo à gramática à lógica ou à análise Nos três casos percebese que os critérios propostos são demasiado numerosos e pesados que não deixam ao enunciado toda a sua extensão e que se às vezes o enunciado assume as formas descritas e a elas se ajusta exatamente acontece também que não lhes obedece encontramos enunciados sem estrutura proposicional legítima encontramos enunciados onde não se pode reconhecer nenhuma frase encontramos mais enunciados do que os speech acts que podemos isolar como se o enunciado fosse mais tênue menos carregado de determinações menos fortemente estruturado mais onipresente também que todas essas figuras como se seus caracteres fossem em número menor e menos difíceis de serem reunidos mas como se por isso mesmo ele recusasse toda possibilidade de descrição E isso se acentua na medida em que não se vê bem em que nível situálo nem por que método abordálo para todas as análises que acabamos de evocar ele nunca passa de suporte ou substância acidental na análise lógica é o que resta quando se extrai e define a estrutura de proposição para a análise gramatical é a série de elementos linguísticos na qual se pode reconhecer ou não a forma de uma frase para a análise dos atos de linguagem aparece como o corpo visível no qual eles se manifestam Em relação a todas essas abordagens descritivas desempenha o papel de um elemento residual puro e simples de fato de material não pertinente Será preciso finalmente admitir que o enunciado não pode ter caráter próprio e que não é suscetível de definição adequada na medida em que é para todas as análises da linguagem a matéria extrínseca a partir da qual elas determinaram seu objeto Será preciso admitir que qualquer série de signos de figuras de grafismos ou de traços não importa qual seja sua organização ou probabilidade é suficiente para constituir um enunciado e que cabe à gramática dizer se se trata ou não de uma frase à lógica definir se ela comporta ou não uma forma proposicional e à análise precisar qual é o ato de linguagem que pode atravessála Neste caso seria necessário admitir que há enunciado desde que existam vários signos justapostos e por que não talvez desde que exista um e somente um O limiar do enunciado seria o limiar da existência dos signos Entretanto ainda aqui as coisas não são tão simples e o sentido que é preciso dar a uma expressão como 96 Michel Foucault a existência dos signos precisa ser elucidado O que queremos dizer quando afirmamos que há signos e que basta que haja signos para que haja enunciado Que status singular atribuir a esse há É evidente que os enunciados não existem no sentido em que uma língua existe e com ela um conjunto de signos definidos por seus traços oposicionais e suas regras de utilização a língua na verdade jamais se apresenta em si mesma e em sua totalidade só poderia sêlo de uma forma secundária e pelo expediente de uma descrição que a tomaria por objeto os signos que constituem seus elementos são formas que se impõem aos enunciados e que os regem do interior Se não houvesse enunciados a língua não existiria mas nenhum enunciado é indispensável à existência da língua e podemos sempre supor em lugar de qualquer enunciado um outro enunciado que nem por isso modificaria a língua A língua só existe a título de sistema de construção para enunciados possíveis mas por outro lado ela só existe a título de descrição mais ou menos exaustiva obtida a partir de um conjunto de enunciados reais Língua e enunciado não estão no mesmo nível de existência e não podemos dizer que há enunciados como dizemos que há línguas Mas basta então que os signos de uma língua constituam um enunciado uma vez que foram produzidos articulados delineados fabricados traçados de um modo ou de outro uma vez que apareceram em um momento do tempo e em um ponto do espaço uma vez que a voz que os pronunciou ou o gesto que os moldou lhes deram as dimensões de uma existência material Será que as letras do alfabeto por mim escritas ao acaso em uma folha de papel como exemplo do que não é um enunciado será que os caracteres de chumbo utilizados para imprimir os livros e não se pode negar sua materialidade que tem espaço e volume será que esses signos expostos visíveis manipuláveis podem ser razoavelmente considerados como enunciados Olhandose um pouco mais de perto esses dois exemplos caracteres de chumbo e signos por mim traçados não podem ser inteiramente superpostos O punhado de caracteres tipográficos que posso segurar na mão ou ainda as letras que estão indicadas no teclado de uma máquina de escrever não constituem enunciados são quando muito instrumentos com os quais poderemos escrever enunciados A Arqueologia do Saber 97 Em compensação as letras que traço ao acaso em uma folha de papel tal como me ocorrem e para mostrar que elas não podem em sua desordem constituir um enunciado o que são elas que figura formam Um quadro de letras escolhidas de maneira contingente o enunciado de uma série alfabética que só conhece a lei da probabilidade Da mesma forma o quadro aleatório de números que os estatísticos podem vir a utilizar é uma sequência de símbolos numéricos que não estão ligados entre si por nenhuma estrutura de sintaxe ele é entretanto um enunciado o de um conjunto de números obtidos por processos que eliminam tudo que poderia aumentar a probabilidade dos resultados sucessivos Voltemos ainda ao exemplo o teclado de uma máquina de escrever não é um enunciado mas a mesma série de letras A Z E R T enumerada em um manual de datilografia é o enunciado da ordem alfabética adotada pelas máquinas francesas Eisnos pois em presença de um certo número de consequências negativas não se requer uma construção linguística regular para formar um enunciado esse pode ser constituído de uma série de probabilidade mínima mas não basta tampouco qualquer realização material de elementos linguísticos ou qualquer emergência de signos no tempo e no espaço para que um enunciado apareça e passe a existir O enunciado portanto não existe nem do mesmo modo que a língua apesar de ser composto de signos que só são definíveis em sua individualidade no interior de um sistema linguístico natural ou artificial nem do mesmo modo que objetos quaisquer apresentados à percepção se bem que seja sempre dotado de uma certa materialidade e que se possa sempre situálo segundo coordenadas espaçotemporais Ainda não é hora de responder à questão geral do enunciado mas podemos de agora em diante delimitar o problema o enunciado não é uma unidade do mesmo gênero da frase proposição ou ato de linguagem não se apóia nos mesmos critérios mas não é tampouco uma unidade como um objeto material poderia ser tendo seus limites e sua independência Em seu modo de ser singular nem inteiramente linguístico nem exclusivamente material ele é indispensável para que se possa dizer se há ou não frase proposição ato de linguagem e para que se possa dizer se a frase está correta ou aceitável ou interpretável se a proposição é legítima e bem constituída se 98 Michel Foucault o ato está de acordo com os requisitos e se foi inteiramente realizado Não é preciso procurar no enunciado uma unidade longa ou breve forte ou debilmente estruturada mas tomada como as outras em um nexo lógico gramatical ou locutório Mais que um elemento entre outros mais que um recorte demarcável em um certo nível de análise tratase antes de uma função que se exerce verticalmente em relação às diversas unidades e que permite dizer a propósito de uma série de signos se elas estão aí presentes ou não O enunciado não é pois uma estrutura isto é um conjunto de relações entre elementos variáveis autorizando assim um número talvez infinito de modelos concretos é uma função de existência que pertence exclusivamente aos signos e a partir da qual se pode decidir em seguida pela análise ou pela intuição se eles fazem sentido ou não segundo que regra se sucedem ou se justapõem de que são signos e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação oral ou escrita Não há razão para espanto por não se ter podido encontrar para o enunciado critérios estruturais de unidade é que ele não é em si mesmo uma unidade mas sim uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam com conteúdos concretos no tempo e no espaço É essa função que é preciso descrever agora como tal ou seja em seu exercício em suas condições nas regras que a controlam e no campo em que se realiza 2 A FUNÇÃO ENUNCIATIVA Inútil procurar o enunciado junto aos grupamentos unitários de signos Ele não é nem sintagma nem regra de construção nem forma canônica de sucessão e de permutação mas sim o que faz com que existam tais conjuntos de signos e permite que essas regras e essas formas se atualizem Mas se as faz existirem é de um modo singular que não se poderia confundir com a existência dos signos enquanto elementos de uma língua nem tampouco com a existência material das marcas que ocupam um fragmento e duram um tempo mais ou menos longo É esse modo singular de existência característico de toda série de signos desde que seja enunciada que se trata agora de questionar a Consideremos mais uma vez o exemplo dos signos moldados ou delineados em uma materialidade definida e agrupados de um modo arbitrário ou não mas que de qualquer forma não é gramatical como o teclado de uma máquina de escrever ou um punhado de caracteres tipográficos Basta que eu recopie os signos assim apresentados em uma folha de papel e na mesma ordem em que se sucedem sem produzir nenhuma palavra para que constituam um enunciado enunciado das letras do alfabeto em uma ordem que facilite a impressão enunciado de um grupo aleatório de letras O que ocorreu para que houvesse enunciado O que esse segundo 100 Michel Foucault conjunto pode ter de novo era relação ao primeiro A reduplicação o fato de que é uma cópia Sem dúvida não já que todos os teclados das máquinas de escrever recopiam um certo modelo e não são por isso enunciados A intervenção de um sujeito A resposta seria duas vezes insatisfatória não basta que a reiteração de uma série seja atribuída à iniciativa de um indivíduo para que ela se transforme por esse fato em um enunciado e de qualquer forma o problema não está na causa ou na origem da reduplicação mas na relação singular entre essas duas séries idênticas A segunda série na verdade não é um enunciado apenas pelo simples fato de que se pode estabelecer uma relação biunívoca entre seus elementos e os elementos da primeira série essa relação caracteriza o fato da duplicação se se trata de uma pura e simples cópia bem como a exatidão do enunciado se já transpusemos o limiar da enunciação mas ela não permite definir esse limiar e o próprio fato do enunciado Uma série de signos se tornará enunciado com a condição de que tenha com outra coisa que lhe pode ser estranhamente semelhante e quase idêntica como no exemplo escolhido uma relação específica que se refira a ela mesma e não à sua causa nem a seus elementos Diremos sem dúvida que não há nada de enigmático nessa relação que ela é pelo contrário bastante familiar e que não deixou de ser analisada que se trata da relação do significante com o significado e do nome com o que designa da relação da frase com seu sentido ou da relação da proposição com seu referente Ora acredito que se possa mostrar que a relação do enunciado com o que é enunciado não pode ser superposta a qualquer dessas relações O enunciado mesmo se está reduzido a um sintagma nominal O barco ou se está reduzido a um nome próprio Pedro não tem com o que enuncia a mesma relação que o nome mantém com o que designa ou significa O nome é um elemento linguístico que pode ocupar diferentes lugares em conjuntos gramaticais seu sentido ê definido por suas regras de utilização quer se trate dos indivíduos que podem ser validamente designados por ele ou das estruturas sintáticas nas quais pode corretamente entrar um nome se define por sua possibilidade de recorrência Um enunciado existe fora de qualquer possibilidade de reaparecimento e a relação que mantém com o que enuncia não é idêntica a um conjunto de A Arqueologia do Saber 101 regras de utilização Tratase de uma relação singular se nessas condições uma formulação idêntica reaparece as mesmas palavras são utilizadas basicamente os mesmos nomes em suma a mesma frase mas não forçosamente o mesmo enunciado Não é preciso tampouco confundir a relação entre um enunciado e o que ele enuncia com a relação entre uma proposição e seu referente Sabemos que os lógicos dizem que uma proposição como A montanha de ouro está na Califórnia não pode ser verificada porque não tem referente sua negação não é pois nem mais nem menos verdadeira que sua afirmação Será preciso dizer da mesma forma que um enunciado não se liga a nada se a proposição a que dá existência não tiver referente Seria preciso afirmar o inverso e dizer não que a ausência de referente acarreta a ausência de correlato para o enunciado mas sim que é o correlato do enunciado aquilo a que se refere o que é posto em jogo por ele não apenas o que é dito mas aquilo de que fala seu tema que permite dizer se a proposição tem um referente ou não é ele que permite decidir quanto a isso de maneira definitiva Supondo que a formulação A montanha de ouro está na Califórnia não se encontre nem em manual de geografia nem em narrativa de viagem mas em um romance ou em uma obra de ficção qualquer poderemos reconhecerlhe um valor de verdade ou de erro caso o mundo imaginário ao qual ela se relaciona autorize ou não semelhante fantasia geológica e geográfica É preciso saber a que se refere o enunciado qual é seu espaço de correlações para poder dizer se uma proposição tem ou não um referente O atual rei de França é careca só carece de referente na medida em que se supõe que o enunciado se refira ao mundo da informação histórica de hoje A relação da proposição com o referente não pode servir de modelo e de lei à relação do enunciado com o que enuncia Esta última não só é de nível diferente como também a precede Finalmente ela não pode tampouco ser superposta à relação entre uma frase e seu sentido O afastamento entre essas duas formas de relação aparece claramente nas famosas frases que não têm sentido apesar da estrutura gramatical inteiramente correta como no exemplo Incolores idéias verdes dormem furiosamente De fato dizer que uma frase como essa não tem sentido supõe que já tenhamos excluído um 102 Michel Foucault certo número de possibilidades admitimos que não se trata da narração de um sonho que não se trata de um texto poético que não se trata de uma mensagem codificada ou da fala de um drogado mas de um certo tipo de enunciado que deve estar relacionado de modo definido a uma realidade visível É no interior de uma relação enunciativa determinada e bem estabilizada que a relação de uma frase com seu sentido pode ser assinalada Além disso essas frases mesmo se as tomamos no nível enunciativo em que elas não têm sentido não estão enquanto enunciados privadas de correlações de início as que permitem dizer que por exemplo idéias jamais são coloridas ou incolores e que por isso a frase não tem sentido e essas correlações se referem a um plano de realidade em que as idéias são invisíveis em que as cores podem ser vistas etc por outro lado as que fazem valer a frase em questão como menção de um tipo de organização sintática correta mas desprovida de sentido e essas correlações se referem ao plano da língua de suas leis e de suas propriedades Por mais que uma frase não seja significante ela se relaciona a alguma coisa na medida em que é um enunciado Como definir a relação que caracterizaria exclusivamente o enunciado relação que parece implicitamente suposta pela frase ou pela proposição e que lhes aparece como anterior Como separála em si mesma das relações de sentido ou dos valores de verdade com os quais usualmente a confundimos Um enunciado qualquer que seja e por mais simples que o imaginemos não tem como correlato um indivíduo ou objeto singular que seria designado por determinada palavra da frase no caso de um enunciado como A montanha de ouro está na Califórnia o correlato não é essa formação real ou imaginária possível ou absurda designada pelo sintagma nominal que exerce a função de sujeito Mas o correlato do enunciado não é tampouco um estado de coisas ou uma relação suscetível de verificar a proposição no exemplo escolhido seria a inclusão espacial de uma certa montanha em uma região determinada Em compensação o que se pode definir como correlato do enunciado é um conjunto de domínios em que tais objetos podem aparecer e em que tais relações podem ser assinaladas por exemplo um domínio de objetos materiais que possuem um certo número de propriedades físicas constatáveis relações de grandeza perceptível ou ao contrário um A Arqueologia do Saber 103 domínio de objetos fictícios dotados de propriedades arbitrárias mesmo que elas tenham uma certa constância e uma certa coerência sem instância de verificações experimentais ou perceptivas um domínio de localizações espaciais e geográficas com coordenadas distâncias relações de vizinhança e de inclusão ou ao contrário um domínio de dependências simbólicas e de parentescos secretos um domínio de objetos que existem no mesmo instante e na mesma escala de tempo em que se formula o enunciado ou um domínio de objetos que pertence a um presente inteiramente diferente aquele que é indicado e constituído pelo próprio enunciado e não aquele a que o enunciado também pertence Um enunciado não tem diante de si e numa espécie de conversa um correlato ou uma ausência de correlato assim como uma proposição tem um referente ou não ou como um nome próprio designa um indivíduo ou ninguém Está antes ligado a um referencial que não é constituído de coisas de fatos de realidades ou de seres mas de leis de possibilidade de regras de existência para os objetos que aí se encontram nomeados designados ou descritos para as relações que aí se encontram afirmadas ou negadas O referencial do enunciado forma o lugar a condição o campo de emergência a instância de diferenciação dos indivíduos ou dos objetos dos estados de coisas e das relações que são postas em jogo pelo próprio enunciado define as possibilidades de aparecimento e de delimitação do que dá à frase seu sentido à proposição seu valor de verdade É esse conjunto que caracteriza o nível enunciativo da formulação por oposição a seu nível gramatical e a seu nível lógico através da relação com esses diversos domínios de possibilidade o enunciado faz de um sintagma ou de uma série de símbolos uma frase a que se pode ou não atribuir um sentido uma proposição que pode receber ou não um valor de verdade Vêse de qualquer forma que a descrição do nível enunciativo não pode ser feita nem por uma análise formal nem por uma investigação semântica nem por uma verificação mas pela análise das relações entre o enunciado e os espaços de diferenciação em que ele mesmo faz aparecer as diferenças b Um enunciado além disso se distingue de uma série qualquer de elementos linguísticos porque mantém com um sujeito uma relação determinada que se deve isolar 104 Michel Foucault sobretudo das relações com as quais poderia ser confundida e cuja natureza é preciso especificar Não é preciso na verdade reduzir o sujeito do enunciado aos elementos gramaticais de primeira pessoa que estão presentes no interior da frase inicialmente porque o sujeito do enunciado não está dentro do sintagma linguístico em seguida porque um enunciado que não comporta primeira pessoa tem ainda assim um sujeito enfim e sobretudo todos os enunciados que têm uma forma gramatical fixa quer seja em primeira ou em segunda pessoa não têm um único e mesmo tipo de relação com o sujeito do enunciado Compreendese facilmente que essa relação não é a mesma em um enunciado do tipo A tarde começa a cair e Todo efeito tem uma causa quanto a um enunciado do tipo Deiteime cedo durante muito tempo a relação com o sujeito que enuncia não é a mesma se o ouvimos articulado no curso de uma conversa e se o lemos na primeira linha de um livro que se chama À la recherche du temps perda Esse sujeito exterior à frase não seria simplesmente o indivíduo real que a articulou ou escreveu Não há signos sem alguém para proferilos ou de qualquer forma sem alguma coisa como elemento emissor Para que uma série de signos exista é preciso segundo o sistema das causalidades um autor ou uma instância produtora Mas esse autor não é idêntico ao sujeito do enunciado e a relação de produção que mantém com a formulação não pode ser superposta à relação que une o sujeito enunciante e o que ele enuncia Não tomemos pois seria demasiado simples o caso de um conjunto de signos materialmente moldados ou traçados sua produção implica um autor não há entretanto nem enunciado nem sujeito do enunciado Poderíamos lembrar também para mostrar a dissociação entre o emissor de signos e o sujeito de um enunciado o caso de um texto lido por uma terceira pessoa ou do ator representando seu papel Mas esses são casos extremos De maneira geral parece pelo menos à primeira vista que o sujeito do enunciado é precisamente aquele que produziu seus diferentes elementos com uma intenção de significação Entretanto as coisas não são tão simples Sabese que em um romance o autor da formulação é o indivíduo real cujo nome figura na capa do livro ainda se coloca o problema dos elementos dialogados e das frases que se referem ao A Arqueologia do Saber 105 pensamento de um personagem ainda se coloca o problema dos textos publicados sob pseudônimo e sabemos todas as dificuldades que esses desdobramentos suscitam para os defensores da análise interpretativa quando querem relacionar de uma só vez todas essas formulações ao autor do texto ao que ele queria dizer ao que pensava enfim ao grande discurso mudo inaparente e uniforme sobre o qual se apóia toda essa pirâmide de níveis diferentes mas até fora dessas instâncias de formulação que não são idênticas ao indivíduoautor os enunciados do romance não têm o mesmo sujeito conforme dêem como se fosse do exterior os marcos históricos e espaciais da história contada ou descrevam as coisas como as veria um indivíduo anônimo invisível e neutro magicamente misturado às figuras da ficção ou ainda dêem como se fosse por decifração interior e imediata a versão verbal do que silenciosamente experimenta um personagem Esses enunciados ainda que o autor seja o mesmo ainda que só os atribua a si ainda que não invente relais suplementar entre o que ele é e o texto que se lê não supõem para o sujeito enunciante os mesmos caracteres não implicam a mesma relação entre o sujeito e o que ele está enunciando Talvez se diga que o exemplo tantas vezes citado do texto romanesco não tem valor probante ou antes que questiona a própria essência da literatura e não o status do sujeito dos enunciados em geral Seria uma particularidade da literatura que o autor dela se ausentasse se escondesse se destacasse ou se separasse e dessa dissociação não se deveria concluir universalmente que o sujeito do enunciado é distinto em tudo natureza status função identidade do autor da formulação Entretanto essa ruptura não está limitada apenas à literatura É absolutamente geral na medida em que o sujeito do enunciado é uma função determinada mas não forçosamente a mesma de um enunciado a outro na medida em que é uma função vazia podendo ser exercida por indivíduos até certo ponto indiferentes quando chegam a formular o enunciado e na medida em que um único e mesmo indivíduo pode ocupar alternadamente em uma série de enunciados diferentes posições e assumir o papel de diferentes sujeitos Consideremos o exemplo de um tratado de matemática Na frase do prefácio em que se explica por que o tratado foi escrito em que circunstâncias para responder a que problema não resolvido 106 Michel Foucault ou a que inquietação pedagógica utilizando que métodos depois de que tentativas e fracassos a posição de sujeito enunciativo só pode ser ocupada pelo autor ou autores da formulação as condições de individualização do sujeito são de fato muito estritas muito numerosas e autorizam nesse caso apenas um sujeito possível Em compensação se no próprio corpo do tratado encontramos uma proposição como Duas quantidades iguais a uma terceira são iguais entre si o sujeito do enunciado é a posição absolutamente neutra indiferente ao tempo ao espaço às circunstâncias idêntica em qualquer sistema linguístico em qualquer código de escrita ou de simbolização e que pode ser ocupada por qualquer indivíduo para afirmar tal proposição Por outro lado frases do tipo Já demonstramos que compreendem para que possam ser enunciadas condições contextuais precisas que não estavam compreendidas pela formulação precedente a posição é então fixada no interior de um domínio constituído por um conjunto finito de enunciados é localizada em uma série de acontecimentos enunciativos que já se devem ter produzido é estabelecida em um tempo demonstrativo cujos momentos anteriores jamais se perdem e que não têm pois necessidade de serem recomeçados e repetidos identicamente para se apresentarem de novo basta uma menção para reativálos em sua validade original é determinada pela existência prévia de um certo número de operações efetivas que talvez não tenham sido feitas por um único e mesmo indivíduo o que fala no momento mas que pertencem de direito ao sujeito enunciante e que estão à sua disposição podendo ser por ele retornadas quando necessário Definiremos o sujeito de tal enunciado pelo conjunto desses requisitos e possibilidades e não o descreveremos como indivíduo que tivesse realmente efetuado operações que vivesse num tempo sem esquecimento nem ruptura que tivesse interiorizado no horizonte de sua consciência todo um conjunto de proposições verdadeiras e que delas retivesse no presente vivo de seu pensamento o reaparecimento virtual nos indivíduos isso não passa quando muito do aspecto psicológico e vivido de sua posição enquanto sujeitos enunciantes Da mesma forma poderíamos descrever qual é a posição específica do sujeito enunciante em frases como Chamo de reta todo conjunto de pontos que ou Consideremos um A Arqueologia do Saber 107 conjunto finito de elementos quaisquer em ambas a posição do sujeito está ligada à existência de uma operação ao mesmo tempo determinada e atual em ambas o sujeito do enunciado é também o sujeito da operação aquele que estabelece a definição é também aquele que a enuncia aquele que coloca a existência é ao mesmo tempo quem coloca o enunciado em ambas finalmente o sujeito liga por essa operação e pelo enunciado em que ela toma corpo seus enunciados e suas operações futuros enquanto sujeito enunciante ele aceita o enunciado como sua própria lei Existe no entanto uma diferença No primeiro caso o que está enunciado é uma convenção de linguagem dessa linguagem que deve ser utilizada pelo sujeito enunciante e no interior da qual ele se define o sujeito enunciante e o que é enunciado estão no mesmo nível enquanto para uma análise formal um enunciado como esse implica o desnivelamento próprio da metalinguagem No segundo caso ao contrário o sujeito enunciante faz com que exista fora de si um objeto que pertence a um domínio já definido cujas leis de possibilidade já foram articuladas e cujos caracteres são anteriores à enunciação que o coloca Vimos há pouco que a posição do sujeito enunciante nem sempre é idêntica quando se trata de afirmar uma proposição verdadeira vêse agora que ela não é tampouco a mesma quando se trata de efetuar no próprio enunciado uma operação Não é preciso pois conceber o sujeito do enunciado como idêntico ao autor da formulação nem substancialmente nem funcionalmente Ele não é na verdade causa origem ou ponto de partida do fenômeno da articulação escrita ou oral de uma frase não é tampouco a intenção significativa que invadindo silenciosamente o terreno das palavras as ordena como o corpo visível de sua intuição não é o núcleo constante imóvel e idêntico a si mesmo de uma série de operações que os enunciados cada um por sua vez viriam manifestar na superfície do discurso É um lugar determinado e vazio que pode ser efetivamente ocupado por indivíduos diferentes mas esse lugar em vez de ser definido de uma vez por todas e de se manter uniforme ao longo de um texto de um livro ou de uma obra varia ou melhor é variável o bastante para poder continuar idêntico a si mesmo através de várias frases bem como para se modificar a cada uma Esse lugar é uma dimensão que caracteriza toda formulação enquanto enunciado 108 Michel Foucault constituindo um dos traços que pertencem exclusivamente à função enunciativa e permitem descrevêla Se uma proposição uma frase um Conjunto de signos podem ser considerados enunciados não é porque houve um dia alguém para proferilos ou para depositar em algum lugar seu traço provisório mas sim na medida em que pode ser assinalada a posição do sujeito Descrever uma formulação enquanto enunciado não consiste em analisar as relações entre o autor e o que ele disse ou quis dizer ou disse sem querer mas em determinar qual é a posição que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser seu sujeito c Terceira característica da função enunciativa ela não pode se exercer sem a existência de um domínio associado Isso faz do enunciado algo diferente e mais que um simples agregado de signos que precisaria para existir apenas de um suporte material superfície de inscrição substância sonora matéria moldável incisão vazia de um traço Mas isso o distingue também e sobretudo da frase e da proposição Consideremos um conjunto de palavras ou de símbolos Para decidir se eles constituem uma unidade gramatical como a frase ou uma unidade lógica como a proposição é necessário e suficiente determinar segundo que regras foi construído Pierre est arrivé hier forma uma frase mas Hier est Pierre arrivé não A B C D constitui uma proposição mas ABC D não Apenas o exame dos elementos e de sua distribuição em referência ao sistema natural ou artificial da língua permite estabelecer a diferença entre o que é proposição e o que não é entre o que é frase e o que é mero acúmulo de palavras Além disso esse exame basta para determinar a que tipo de estrutura gramatical pertence a frase em questão frase afirmativa no passado comportando um sujeito nominal etc ou a que tipo de proposição corresponde a série de signos visada uma equivalência entre duas adições Em casos extremos podese conceber uma frase ou uma proposição que se determina sozinha sem nenhuma outra para lhe servir de contexto sem nenhum conjunto de frases ou de proposições associadas o fato de serem nessas condições inúteis e inutilizáveis não impede que se possa reconhecêlas mesmo assim em sua singularidade Podese fazer sem dúvida um certo número de objeções como por exemplo a de que uma proposição só pode ser esta A Arqueologia do Saber 109 belecida e individualizada como tal caso se conheça o sistema de axiomas a que obedece essas definições regras convenções de escrita não formariam um campo associado inseparável da proposição do mesmo modo que as regras da gramática implicitamente atuantes na competência do sujeito são necessárias para que se possa reconhecer uma frase e uma frase de um certo tipo Entretanto é preciso notar que esse conjunto atual ou virtual não é do mesmo nível da proposição ou frase mas que versa sobre seus elementos encadeamento e distribuição possíveis Não é associado a estes é por ela suposto Poderíamos objetar também que muitas proposições não tautológicas não podem ser verificadas a partir apenas de suas regras de construção e que o recurso ao referente é necessário para decidir se elas são verdadeiras ou falsas mas verdadeira ou falsa uma proposição permanece uma proposição e não é o recurso ao referente que decide se ela é ou não uma proposição O mesmo acontece com as frases em muitos casos elas só podem produzir seu sentido pela relação com o contexto seja porque compreendem elementos dêiticos que remetem a uma situação concreta ou porque fazem uso de pronomes em primeira ou segunda pessoa que designam o sujeito falante e seus interlocutores ou ainda porque se servem de elementos pronominais ou de partículas de ligação que se referem a frases anteriores ou futuras mas o fato de que seu sentido não possa ser concluído não impede que a frase seja gramaticalmente completa e autônoma Certamente não se sabe muito bem o que quer dizer um conjunto de palavras como Isso eu lhe direi amanhã de qualquer modo não se pode datar esse amanhã nem nomear os interlocutores nem adivinhar o que deve ser dito Só resta dizer que se trata de uma frase perfeitamente delimitada conforme as regras de construção da língua Finalmente poderíamos objetar que sem contexto é às vezes difícil definir a estrutura de uma frase se ele está morto jamais saberei pode ser construída No caso de ele estar morto ignorarei sempre tal coisa ou Jamais serei avisado de sua morte Mas tratase de uma ambiguidade perfeitamente definível cujas possibilidades simultâneas podem ser enumeradas e que faz parte da estrutura própria da frase De maneira geral podese dizer que uma frase ou proposição mesmo isolada mesmo retirada do contexto natural que a esclarece mesmo 110 Michel Foucault libertada ou amputada de todos os elementos a que implicitamente ou não pode remeter continua a ser sempre uma frase ou proposição e é sempre possível reconhecêla como tal Em compensação a função enunciativa mostrando assim que não é pura e simples construção de elementos prévios não pode se exercer sobre uma frase ou proposição em estado livre Não basta dizer uma frase nem mesmo basta dizêla em uma relação determinada com um campo de objetos ou em uma relação determinada com um sujeito para que haja enunciado para que se trate de um enunciado é preciso relacionála com todo um campo adjacente Ou antes visto que não se trata de uma relação suplementar que vem se imprimir sobre as outras não se pode dizer uma frase não se pode fazer com que ela chegue a uma existência de enunciado sem que seja utilizado um espaço colateral um enunciado tem sempre margens povoadas de outros enunciados Essas margens se distinguem do que se entende geralmente por contexto real ou verbal isto é do conjunto dos elementos de situação ou de linguagem que motivam uma formulação e lhe determinam o sentido E elas dele se distinguem na medida em que o tornam possível a relação contextual não é a mesma entre uma frase e as que a envolvem caso se trate de um romance ou de um tratado de física não será a mesma entre uma formulação e o meio objetivo caso se trate de uma conversa ou de um relatório de experiência É sobre uma relação mais geral entre as formulações sobre toda uma rede verbal que o efeito de contexto pode ser determinado As margens não são tampouco idênticas aos diferentes textos às diferentes frases que o sujeito pode ter em mente quando fala ainda aí elas são mais extensas que o envolvimento psicológico e até certo ponto elas o determinam pois segundo a posição o status e o papel de uma formulação entre todas as outras conforme se inscreva no campo da literatura ou deva se dissipar como um propósito indiferente conforme faça parte de uma narração ou comande uma demonstração o modo de presença dos outros enunciados na consciência do sujeito não será o mesmo não é nem o mesmo nível nem a mesma forma de experiência linguística de memória verbal de evocação do já dito que são utilizados O halo psicológico de uma formulação é comandado de longe pela disposição do campo enunciativo A Arqueologia do Saber 111 O campo associado que faz de uma frase ou de uma série de signos um enunciado e que lhes permite ter um contexto determinado um conteúdo representativo específico forma uma trama complexa Ele é constituído de início pela série das outras formulações no interior das quais o enunciado se inscreve e forma um elemento um jogo de réplicas formando uma conversação a arquitetura de uma demonstração limitada de um lado por suas premissas do outro por sua conclusão a sequência das afirmações que constituem uma narração É constituído também pelo conjunto das formulações a que o enunciado se refere implicitamente ou não seja para repetilas seja para modificálas ou adaptálas seja para se opor a elas seja para falar de cada uma delas não há enunciado que de uma forma ou de outra não reatualize outros enunciados elementos rituais em uma narração proposições já admitidas em uma demonstração frases convencionais em uma conversa É constituído ainda pelo conjunto das formulações cuja possibilidade ulterior é propiciada pelo enunciado e que podem vir depois dele como sua consequência sua sequência natural ou sua réplica uma ordem não abre as mesmas possibilidades enunciativas que as proposições de uma axiomática ou o início de uma narração É constituído finalmente pelo conjunto das formulações cujo status é compartilhado pelo enunciado em questão entre as quais toma lugar sem consideração de ordem linear com as quais se apagará ou com as quais ao contrário será valorizado conservado sacralizado e oferecido como objeto possível a um discurso futuro um enunciado não é dissociável do status que lhe pode ser atribuído como literatura ou como propósito irrelevante próprio para ser esquecido ou como verdade científica adquirida para sempre ou como discurso profético etc Podese dizer de modo geral que uma sequência de elementos linguísticos só é enunciado se estiver imersa em um campo enunciativo em que apareça como elemento singular O enunciado não é a projeção direta sobre o plano da linguagem de uma situação determinada ou de um conjunto de representações Não é simplesmente a utilização por um sujeito falante de um certo número de elementos e de regras linguísticas De início desde sua raiz ele se delineia em um campo enunciativo onde tem lugar e status que lhe apresenta relações possíveis com o passado e que lhe abre um futuro 112 Michel Foucault eventual Qualquer enunciado se encontra assim especificado não há enunciado em geral enunciado livre neutro e independente mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto desempenhando um papel no meio dos outros neles se apoiando e deles se distinguindo ele se integra sempre em um jogo enunciativo onde tem sua participação por ligeira e ínfima que seja Enquanto a construção gramatical para se efetuar só necessita de elementos e de regras enquanto se poderia conceber em termos extremos uma língua certamente artificial que só serviria para construir no total uma única frase enquanto considerandose o alfabeto as regras de construção e de transformação de um sistema formal se pode perfeitamente definir a primeira proposição dessa linguagem o mesmo não acontece com o enunciado Não há enunciado que não suponha outros não há nenhum que não tenha em torno de si um campo de coexistências efeitos de série e de sucessão uma distribuição de funções e de papéis Se se pode falar de um enunciado é na medida em que uma frase uma proposição figura em um ponto definido com uma posição determinada em um jogo enunciativo que a extrapola Sobre esse cenário da coexistência enunciativa se destacam em um nível autônomo e descritível as relações gramaticais entre frases as relações lógicas entre proposições as relações metalinguísticas entre uma linguagemobjeto e aquela que lhe define as regras as relações retóricas entre grupos ou elementos de frases É lícito certamente analisar todas essas relações sem que se tome por tema o próprio campo enunciativo isto é o domínio de coexistência em que se exerce a função enunciativa Mas elas só podem existir e só são suscetíveis de análise na medida em que as frases tenham sido enunciadas em outros termos na medida em que se desenrolem em um campo enunciativo que permita que elas se sucedam se ordenem coexistam e desempenhem um papel umas em relação às outras O enunciado longe de ser o princípio de individualização dos conjuntos significantes o átomo significativo o mínimo a partir do qual existe sentido é o que situa essas unidades significativas em um espaço em que elas se multiplicam e se acumulam d Finalmente para que uma sequência de elementos linguísticos possa ser considerada e analisada como um A Arqueologia do Saber 113 enunciado é preciso que ela preencha uma quarta condição deve ter existência material Poderíamos falar de enunciado se uma voz não o tivesse enunciado se uma superfície não registrasse seus signos se ele não tivesse tomado corpo em um elemento sensível e se não tivesse deixado marca apenas alguns instantes em uma memória ou em um espaço Poderíamos falar de um enunciado como de uma figura ideal e silenciosa O enunciado é sempre apresentado através de uma espessura material mesmo dissimulada mesmo se apenas surgida estiver condenada a se desvanecer Além disso o enunciado tem necessidade dessa materialidade mas ela não lhe é dada em suplemento uma vez bem estabelecidas todas as suas determinações em parte ela o constitui Composta das mesmas palavras carregada exatamente do mesmo sentido mantida em sua identidade sintática e semântica uma frase não constitui o mesmo enunciado se for articulada por alguém durante uma conversa ou impressa em um romance se foi escrita um dia há séculos e se reaparece agora em uma formulação oral As coordenadas e o status material do enunciado fazem parte de seus caracteres intrínsecos Eis uma evidência ou quase pois desde que a isso se preste um pouco de atenção as coisas se embaralham e os problemas se multiplicam Claro somos tentados a dizer que se o enunciado é caracterizado pelo menos em parte por seu status material e se sua identidade é sensível a uma modificação desse status o mesmo acontece com as frases ou as proposições a materialidade dos signos na verdade não é inteiramente indiferente à gramática ou mesmo à lógica Conhecemos os problemas teóricos colocados a esta última pela constância material dos símbolos utilizados como definir a identidade de um símbolo através das diferentes substâncias em que pode tomar corpo e das variações de forma que tolera Como reconhecêlo e assegurar que é o mesmo se é preciso definilo como um corpo físico concreto conhecemos também os problemas que lhe são colocados pela própria noção de uma sequência de símbolos O que quer dizer preceder e seguir Vir antes e depois Em que espaço se situa semelhante ordenação São muito mais bem conhecidas ainda as relações da materialidade e da língua o papel da escrita e do alfabeto o fato de que nem a mesma sintaxe nem o mesmo vocabulário são empregados em um texto e em uma conversa em um jornal e em um 114 Michel Foucault livro em uma carta e em um cartaz além disso há sequências de palavras que formam frases bastante individualizadas e perfeitamente aceitáveis nas manchetes de um jornal e que no entanto no curso de uma conversa jamais poderiam ter valor de uma frase com sentido Entretanto a materialidade desempenha no enunciado um papel muito mais importante não é simplesmente princípio de variação modificação dos critérios de reconhecimento ou determinação de subconjuntos linguísticos Ela é constitutiva do próprio enunciado o enunciado precisa ter uma substância um suporte ura lugar e uma data Quando esses requisitos se modificam ele próprio muda de identidade Logo surge uma quantidade de questões Uma mesma frase repetida em voz alta e em voz baixa forma um único enunciado ou vários Quando se decora um texto cada recitação dá lugar a um enunciado ou devese considerar que o mesmo se repete Uma frase fielmente traduzida para uma língua estrangeira forma dois enunciados distintos ou apenas um E em uma récita coletiva prece ou lição devemse contar quantos enunciados Como estabelecer a identidade do enunciado através dessas ocorrências múltiplas dessas repetições dessas transcrições O problema se complica sem dúvida porque nele se confundem frequentemente níveis diferentes É necessário pôr de lado inicialmente a multiplicidade das enunciações Diremos que há enunciação cada vez que um conjunto de signos for emitido Cada uma dessas articulações têm sua individualidade espaçotemporal Duas pessoas podem dizer ao mesmo tempo a mesma coisa já que são duas haverá duas enunciações distintas Um único e mesmo sujeito pode repetir várias vezes a mesma frase haverá igual número de enunciações distintas no tempo A enunciação é um acontecimento que não se repete tem uma singularidade situada e datada que não se pode reduzir Essa singularidade entretanto deixa passar um certo número de constantes gramaticais semânticas lógicas pelas quais se pode neutralizando o momento da enunciação e as coordenadas que o individualizam reconhecer a forma geral de uma frase de uma significação de uma proposição O tempo e o lugar da enunciação o suporte material que ela utiliza tornamse então indiferentes pelo menos em grande parte o que se destaca é uma forma indefinidamente repetível e que pode dar lugar às enunciações mais A Arqueologia do Saber 115 dispersas Ora o próprio enunciado não pode ser reduzido a esse simples fato da enunciação pois ele pode ser repetido apesar de sua materialidade não teremos problemas em afirmar que uma mesma frase pronunciada por duas pessoas em circunstâncias entretanto um pouco diferentes constitui apenas um enunciado E no entanto ele não se reduz a uma forma gramatical ou lógica na medida em que mais do que ela e de modo diferente é sensível a diferenças de matéria substância tempo e lugar Qual é pois essa materialidade própria do enunciado e que autoriza certos tipos singulares de repetição Como se pode falar do mesmo enunciado onde há várias enunciações distintas enquanto devemos falar de vários enunciados onde podemos reconhecer formas estruturas regras de construção alvos idênticos Qual é pois esse regime de materialidade repetível que caracteriza o enunciado Sem dúvida não é uma materialidade sensível qualitativa apresentada sob a forma da cor do som ou da solidez e esquadrinhada pela mesma demarcação espaçotemporal que o espaço perceptivo Consideremos um exemplo muito simples um texto reproduzido várias vezes as edições sucessivas de um livro ou ainda melhor os diferentes exemplares de uma mesma tiragem não dão lugar a igual número de enunciados distintos cm todas as edições das Fleurs du mal com exceção das edições cujo texto diverge do original e dos textos condenados encontraremos o mesmo jogo de enunciados entretanto nem os caracteres nem a tinta nem o papel nem em qualquer que seja o caso a localização do texto e a posição dos signos são os mesmos toda a materialidade mudou Mas aqui pequenas diferenças não são eficazes para alterar a identidade do enunciado e para fazer surgir um outro elas estão todas neutralizadas no elemento geral material é claro mas igualmente institucional e econômico do livro Um livro qualquer que seja seu número de exemplares ou de edições quaisquer que sejam as substâncias diversas que ele pode utilizar é um lugar de equivalência exata para os enunciados uma instância de repetição sem mudança de identidade Vêse no primeiro exemplo que a materialidade do enunciado não é definida pelo espaço ocupado ou pela data da formulação mas por um status de coisa ou de objeto jamais definitivo mas codificável relativo e sempre suscetível de ser novamente posto em questão sabese por exemplo que para 116 Michel Foucault os historiadores da literatura a edição de um livro publicado sob os cuidados do autor não tem a mesma importância que as edições póstumas que os enunciados têm aí um valor singular que eles não são uma das manifestações de um único e mesmo conjunto mas sim o que é e deve ser repetido Da mesma forma entre o texto de uma Constituição de um testamento ou de uma revelação religiosa e todos os manuscritos ou impressos que os reproduzem exatamente com a mesma escrita nos mesmos caracteres e sobre temas análogos não se pode dizer que haja equivalência de um lado há os próprios enunciados do outro sua reprodução O enunciado não se identifica com um fragmento de matéria mas sua identidade varia de acordo com um regime complexo de instituições materiais Um enunciado pode ser o mesmo manuscrito em uma folha de papel ou publicado em um livro pode ser o mesmo pronunciado oralmente impresso em um cartaz reproduzido por um gravador em compensação quando um romancista pronuncia uma frase qualquer na vida cotidiana visto que a coloca tal qual no manuscrito que redige atribuindoa a um personagem ou mesmo deixandoa ser pronunciada pela voz anônima que representa a do autor não se pode dizer que se trate nos dois casos do mesmo enunciado O regime de materialidade a que obedecem necessariamente os enunciados é pois mais da ordem da instituição do que da localização espaçotemporal define antes possibilidades de reinscrição e de transcrição mas também limiares e limites do que individualidades limitadas e perecíveis A identidade de um enunciado está submetida a um segundo conjunto de condições e de limites os que lhe são impostos pelo conjunto dos outros enunciados no meio dos quais figura pelo domínio no qual podemos utilizálo ou aplicálo pelo papel ou função que deve desempenhar A afirmação de que a terra é redonda ou de que as espécies evoluem não constitui o mesmo enunciado antes e depois de Copérnico antes e depois de Darwin não é que para formulações tão simples o sentido das palavras tenha mudado o que se modificou foi a relação dessas afirmações com outras proposições suas condições de utilização e de reinvestimento o campo da experiência de verificações possíveis de problemas a ser resolvidos ao qual podemos remetêlas A frase os sonhos A Arqueologia do Saber 117 realizam os desejos pode ser repetida através dos séculos não é o mesmo enunciado em Platão e em Freud Os esquemas de utilização as regras de emprego as constelações em que podem desempenhar um papel suas virtualidades estratégicas constituem para os enunciados um campo de estabilização que permite apesar de todas as diferenças de enunciação repetilos em sua identidade mas esse mesmo campo pode também sob as identidades semânticas gramaticais ou formais as mais manifestas definir um limiar a partir do qual não há mais equivalência sendo preciso reconhecer o aparecimento de um novo enunciado Mas é possível sem dúvida ir mais longe podemos considerar que existe apenas um único e mesmo enunciado onde as palavras a sintaxe a própria língua não são idênticas Consideremos um discurso e sua tradução simultânea um texto científico em inglês e sua versão francesa uma informação em três colunas em três línguas diferentes não há tantos enunciados quantas são as línguas em jogo mas um único conjunto de enunciados em formas linguísticas diferentes Melhor ainda uma informação dada pode ser retransmitida com outras palavras com uma sintaxe simplificada ou em um código convencionado se o conteúdo informativo e as possibilidades de utilização são as mesmas poderemos dizer que ambos os casos constituem o mesmo enunciado Ainda aí não se trata de um critério de individualização do enunciado mas de seu princípio de variação ora é mais diverso que a estrutura da frase e sua identidade é então mais elaborada mais frágil mais facilmente modificável que a de um conjunto semântico ou gramatical ora mais constante que essa estrutura e sua identidade é então maior mais estável menos acessível às variações Ainda mais além do fato de que a identidade do enunciado não pode ser situada de forma definitiva em relação à da frase ela própria é relativa e oscila segundo o uso que se faz do enunciado e a maneira pela qual é manipulado Quando se utiliza um enunciado para ressaltar sua estrutura gramatical sua configuração retórica ou as conotações de que é portador é evidente que não se pode considerálo como idêntico em sua língua original e em sua tradução Em compensação se queremos que ele entre em um processo de verificação experimental então texto e tradução constituem o mesmo conjunto enunciativo Ou ainda em 118 Michel Foucault uma certa escala da macroistória podemos considerar que uma afirmação como As espécies evoluem forma o mesmo enunciado em Darwin e em Simpson em um nível mais elaborado e considerando campos de utilização mais limitados o neodarwinismo em oposição ao sistema darwiniano propriamente dito tratamos de dois enunciados diferentes A constância do enunciado a manutenção de sua identidade através dos acontecimentos singulares das enunciações seus desdobramentos através da identidade das formas tudo isso é função do campo de utilização no qual ele se encontra inserido Vêse que o enunciado não deve ser tratado como um acontecimento que se teria produzido em um tempo e lugar determinados e que poderia ser inteiramente lembrado e celebrado de longe e um ato de memória Mas vêse que não é tampouco uma forma ideal que se pode sempre atualizar em um corpo qualquer em um conjunto indiferente e sob condições materiais que não importam Demasiado repetível para ser inteiramente solidário com as coordenadas espaçotemporais de seu nascimento é algo diverso da data e do local de seu aparecimento demasiado ligado ao que o envolve e o suporta para ser tão livre quanto uma pura forma é algo diferente de uma lei de construção referente a um conjunto de elementos ele é dotado de uma certa lentidão modificável de um peso relativo ao campo em que está colocado de uma constância que permite utilizações diversas de uma permanência temporal que não tem a inércia de ura simples traço e que não dorme sobre seu próprio passado Enquanto uma enunciação pode ser recomeçada ou reevocada enquanto uma forma linguística ou lógica pode ser reatualizada o enunciado tem a particularidade de poder ser repetido mas sempre em condições estritas Essa materialidade repetível que caracteriza a função enunciativa faz aparecer o enunciado como um objeto específico e paradoxal mas também como um objeto entre os que os homens produzem manipulam utilizam transformam trocam combinam decompõem e recompõem eventualmente destroem Ao invés de ser uma coisa dita de forma definitiva e perdida no passado como a decisão de uma batalha uma catástrofe geológica ou a morte de um rei o enunciado ao mesmo tempo que surge em sua materialidade aparece com um status entra em redes se coloca em campos de utilização A Arqueologia do Saber 119 se oferece a transferências e a modificações possíveis se integra era operações e em estratégias onde sua identidade se mantém ou se apaga Assim o enunciado circula serve se esquiva permite ou impede a realização de um desejo é dócil ou rebelde a interesses entra na ordem das contestações e das lutas tornase tema de apropriação ou de rivalidade 3 A DESCRIÇÃO DOS ENUNCIADOS O front da análise encontrase consideravelmente deslocado quis retomar essa definição do enunciado que tinha sido no início deixada em suspenso Tudo se passara e tudo fora dito como se o enunciado fosse uma unidade fácil de ser estabelecida cujas possibilidades e leis de agrupamento era importante descrever Ora voltando atrás apercebime de que não podia definir o enunciado como uma unidade de tipo linguístico superior ao fenômeno e à palavra inferior ao texto mas que tinha de me ocupar de uma função enunciativa pondo em jogo unidades diversas elas podem coincidir às vezes com frases às vezes com proposições mas são feitas às vezes de fragmentos de frases séries ou quadros de signos jogo de proposições ou formulações equivalentes e essa função em vez de dar um sentido a essas unidades colocaas em relação com um campo de objetos em vez de lhes conferir um sujeito abrelhes um conjunto de posições subjetivas possíveis em vez de lhes fixar limites colocaas em um domínio de coordenação e de coexistência em vez de lhes determinar a identidade alojaas em um espaço em que são consideradas utilizadas e repetidas Em suma o que se descobriu não foi o enunciado atômico com seu efeito de sentido sua origem seus limites e sua individualidade mas sim o campo de exercício da função enunciativa e as condições segundo as A Arqueologia do Saber 121 quais ela faz aparecerem unidades diversas que podem ser mas não necessariamente de ordem gramatical ou lógica Mas encontrome agora diante da obrigação de responder a duas questões o que devemos entender daqui para a frente pela tarefa inicialmente proposta de descrever enunciados Como a teoria do enunciado podese ajustar à análise das formações discursivas que havia sido esboçada sem ela A 1 Primeiro cuidado fixar o vocabulário Se aceitamos chamar performance verbal ou talvez melhor performance linguística todo conjunto de signos efetivamente produzidos a partir de uma língua natural ou artificial poderemos chamar formulação o ato individual ou a rigor coletivo que faz surgir em um material qualquer e segundo uma forma determinada esse grupo de signos a formulação é um acontecimento que pelo menos de direito é sempre demarcável segundo coordenadas espaçotemporais que pode ser sempre relacionada a um autor e que eventualmente pode constituir por si mesma um ato específico um ato performativo dizem os analistas ingleses chamaremos frase ou proposição as unidades que a gramática ou a lógica podem reconhecer em um conjunto de signos essas unidades podem ser sempre caracterizadas pelos elementos que aí figuram e pelas regras de construção que as unem em relação à frase e à proposição as questões de origem de tempo e de lugar e de contexto não passam de subsidiárias a questão decisiva é a de sua correção ainda que sob a forma de aceitabilidade Chamaremos enunciado a modalidade de existência própria desse conjunto de signos modalidade que lhe permite ser algo diferente de uma série de traços algo diferente de uma sucessão de marcas em uma substância algo diferente de um objeto qualquer fabricado por um ser humano modalidade que lhe permite estar em relação com um domínio de objetos prescrever uma posição definida a qualquer sujeito possível estar situado Foucault chama de analistas os adeptos ou representantes da chamada filosofia analítica uma das vertentes básicas da filosofia do século XX N da ed bras 122 Michel Foucault entre outras performances verbais estar dotado enfim de uma materialidade repetível Quanto ao termo discurso de que aqui usamos e abusamos em sentidos bem diferentes podemos agora compreender a razão de seu equívoco da maneira mais geral e imprecisa ele designava um conjunto de performances verbais e entendiase então por discurso o que havia sido produzido eventualmente tudo que havia sido produzido em matéria de conjunto de signos Mas se compreendia também por discurso um conjunto de atos de formulação uma série de frases ou de proposições Enfim e este sentido foi finalmente privilegiado com o primeiro que lhe serve de horizonte o discurso é constituído por um conjunto de sequências de signos enquanto enunciados isto é enquanto lhes podemos atribuir modalidades particulares de existência E se conseguir demonstrar como tentarei em seguida que a lei de tal série é precisamente o que chamei até aqui formação discursiva se conseguir demonstrar que esta é o princípio de dispersão e de repartição não das formulações das frases ou das proposições mas dos enunciados no sentido que dei à palavra o termo discurso poderá ser fixado conjunto de enunciados que se apóia em um mesmo sistema de formação é assim que poderei falar do discurso clínico do discurso econômico do discurso da história natural do discurso psiquiátrico Sei que essas definições em sua maioria não correspondem ao uso corrente os linguistas têm o hábito de dar à palavra discurso um sentido inteiramente diferente lógicos e analistas usam de forma diferente o termo enunciado Mas não pretendo aqui transferir para um domínio que esperaria apenas essa luz um jogo de conceitos uma forma de análise uma teoria que teriam sido formados em algum outro lugar não pretendo utilizar um modelo aplicandoo com a eficácia que lhe é própria a conteúdos novos Não certamente que eu queira contestar o valor de semelhante modelo não que eu queira antes mesmo de têlo testado limitarlhe o alcance e indicar imperiosamente o limiar que não deveria ser por ele transposto Mas gostaria de fazer aparecer uma possibilidade descritiva esboçar o domínio ao qual ela é suscetível definir seus limites e sua autonomia Essa possibilidade descritiva se articula com outras não deriva delas A Arqueologia do Saber 123 Vêse em particular que a análise dos enunciados não pretende ser uma descrição total exaustiva da linguagem ou de o que foi dito Em toda densidade resultante das performances verbais ela se situa num nível particular que deve ser separado dos outros caracterizado em relação a eles e abstraído Ela não toma o lugar de uma análise lógica das proposições de uma análise gramatical das frases de uma análise psicológica ou contextual das formulações constitui uma outra maneira de abordar as performances verbais de dissociar sua complexidade de isolar os termos que aí se entrecruzam e de demarcar as diversas regularidades a que obedecem Pondo em jogo o enunciado frente à frase ou à proposição não se tenta reencontrar uma totalidade perdida nem ressuscitar conforme convidam muitas nostalgias que não querem se calar a plenitude da expressão viva a riqueza do verbo a unidade profunda do logos A análise dos enunciados corresponde a um nível específico de descrição 2 O enunciado não é pois uma unidade elementar que viria somarse ou misturarse às unidades descritas pela gramática ou pela lógica Não pode ser isolado como uma frase uma proposição ou um ato de formulação Descrever um enunciado não significa isolar e caracterizar um segmento horizontal mas definir as condições nas quais se realizou a função que deu a uma série de signos não sendo esta forçosamente gramatical nem logicamente estruturada uma existência e uma existência específica Esta a faz aparecer não como um simples traço mas como relação com um domínio de objetos não como resultado de uma ação ou de uma operação individual mas como um jogo de posições possíveis para um sujeito não como uma totalidade orgânica autônoma fechada em si e suscetível de sozinha formar sentido mas como um elemento em um campo de coexistência não como um acontecimento passageiro ou um objeto inerte mas como uma materialidade repetível A descrição dos enunciados se dirige segundo uma dimensão de certa forma vertical às condições de existência dos diferentes conjuntos significantes Daí um paradoxo ela não tenta contornar as performances verbais para descobrir atrás delas ou sob sua superfície aparente um elemento oculto um sentido secreto que nelas se esconde ou que através delas aparece sem dizêlo 124 Michel Foucault e entretanto o enunciado não é imediatamente visível não se apresenta de forma tão manifesta quanto uma estrutura gramatical ou lógica mesmo se esta não estiver inteiramente clara mesmo se for muito difícil de elucidar O enunciado é ao mesmo tempo não visível e não oculto Não oculto por definição já que caracteriza as modalidades de existência próprias de um conjunto de signos efetivamente produzidos A análise enunciativa só pode se referir a coisas ditas a frases que foram realmente pronunciadas ou escritas a elementos significantes que foram traçados ou articulados e mais precisamente a essa singularidade que as faz existirem as oferece à observação à leitura a uma reativação eventual a mil usos ou transformações possíveis entre outras coisas mas não como as outras coisas Só pode se referir a performances verbais realizadas já que as analisa no nível de sua existência descrição das coisas ditas precisamente porque foram ditas A análise enunciativa é pois uma análise histórica mas que se mantém fora de qualquer interpretação às coisas ditas não pergunta o que escondem o que nelas estava dito e o nãodito que involuntariamente recobrem a abundância de pensamentos imagens ou fantasmas que as habitam mas ao contrário de que modo existem o que significa para elas o fato de se terem manifestado de terem deixado rastros e talvez de permanecerem para uma reutilização eventual o que é para elas o fato de terem aparecido e nenhuma outra em seu lugar Desse ponto de vista não se reconhece nenhum enunciado latente pois aquilo a que nos dirigimos está na evidência da linguagem efetiva Tratase de uma tese difícil de sustentar Sabemos e talvez desde que os homens falam que as coisas muitas vezes são ditas umas pelas outras que uma mesma frase pode ter simultaneamente duas significações diferentes que um sentido manifesto aceito sem dificuldade por todos pode encobrir um segundo esotérico ou profético que uma decifração mais sutil ou apenas a erosão do tempo acabarão por descobrir que sob uma formulação visível pode reinar uma outra que a comande desordene perturbe lhe imponha uma articulação que só a ela pertence enfim que de um modo ou de outro as coisas ditas dizem bem mais que elas mesmas Mas de fato esses efeitos de redobramento ou de desdobramento esse nãodito que se encontra dito apesar de tudo A Arqueologia do Saber 125 não afetam o enunciado pelo menos como foi aqui definido A polissemia que autoriza a hermenêutica e a descoberta de um outro sentido diz respeito à frase e aos campos semânticos que ela utiliza um único e mesmo conjunto de palavras pode dar lugar a vários sentidos e a várias construções possíveis ele pode ter entrelaçadas ou alternadas significações diversas mas sobre uma base enunciativa que permanece idêntica Da mesma forma a repressão de uma performance verbal por outra sua substituição ou sua interferência são fenômenos que pertencem ao nível da formulação mesmo se têm incidências sobre as estruturas linguísticas ou lógicas mas o próprio enunciado não é afetado pelo desdobramento ou pelo recalcamento já que é a modalidade de existência da performance verbal tal como foi efetivada O enunciado não pode ser considerado como o resultado cumulativo ou a cristalização de vários enunciados flutuantes apenas articulados que se rejeitam entre si O enunciado não é assombrado pela presença secreta do nãodito das significações ocultas das repressões ao contrário a maneira pela qual os elementos ocultos funcionam e podem ser restituídos depende da própria modalidade enunciativa sabemos que o nãodito o reprimido não é o mesmo nem em sua estrutura nem em seu efeito quando se trata de um enunciado matemático e de um enunciado econômico quando se trata de uma autobiografia ou da narração de um sonho Entretanto a todas essas modalidades diversas do nãodito que podem ser demarcadas sobre o campo enunciativo é necessário sem dúvida acrescentar uma ausência que ao invés de ser interior seria correlativa a esse campo e teria um papel na determinação de sua própria existência Pode haver e sem dúvida sempre há nas condições de emergência dos enunciados exclusões limites ou lacunas que delineiam seu referencial validam uma única série de modalidades cercam e englobam grupos de coexistência impedem certas formas de utilização Mas não se deve confundir nem em seu status nem em seu efeito a ausência característica de uma regularidade enunciativa e as significações encobertas pelo que se encontra formulado 3 Ora por mais que o enunciado não seja oculto nem por isso é visível ele não se oferece à percepção como portador 126 Michel Foucault manifesto de seus limites e caracteres É necessária uma certa conversão do olhar e da atitude para poder reconhecêlo e considerálo em si mesmo Talvez ele seja tão conhecido que se esconde sem cessar talvez seja como essas transparências familiares que apesar de nada esconderem em sua espessura não são apresentadas com clareza total O nível enunciativo se esboça em sua própria proximidade Há várias razões para isso A primeira já foi dita o enunciado não é uma unidade ao lado acima ou abaixo das frases ou das proposições está sempre dentro de unidades desse gênero ou mesmo em sequências de signos que não obedecem a suas leis e que podem ser listas séries ao acaso quadros caracteriza não o que nelas se apresenta ou a maneira pela qual são delimitadas mas o próprio fato de serem apresentadas e a maneira pela qual o são Ele tem essa quaseinvisibilidade do há que se apaga naquilo mesmo do qual se pode dizer há tal ou tal coisa Outra razão é a de que a estrutura significante da linguagem remete sempre a outra coisa os objetos aí se encontram designados o sentido é visado o sujeito é tomado como referência por um certo número de signos mesmo se não está presente em si mesmo A linguagem parece sempre povoada pelo outro pelo ausente pelo distante pelo longínquo ela é atormentada pela ausência Não é ela o lugar de aparecimento de algo diferente de si e nessa função sua própria existência não parece se dissipar Ora se queremos descrever o nível enunciativo é preciso levar em consideração justamente essa existência interrogar a linguagem não na direção a que ela remete mas na dimensão que a produz negligenciar o poder que ela tem de designar de nomear de mostrar de fazer aparecer de ser o lugar do sentido ou da verdade e em compensação de se deter no momento logo solidificado logo envolvido no jogo do significante e do significado que determina sua existência singular e limitada Tratase de suspender no exame da linguagem não apenas o ponto de vista do significado o que já é comum agora mas também o do significante para fazer surgir o fato de que em ambos existe linguagem de acordo com domínios de objetos e sujeitos possíveis de acordo com outras formulações e reutilizações eventuais Finalmente última razão da quaseinvisibilidade do enunciado ele é suposto por todas as outras análises da linguagem A Arqueologia do Saber 127 sem que elas tenham jamais de mostrálo Para que a linguagem possa ser tomada como objeto decomposta em níveis distintos descrita e analisada é preciso que haja um dado enunciativo que será sempre determinado e não infinito a análise de uma língua se efetua sempre a partir de um corpus de discursos e textos a interpretação e a revelação das significações implícitas repousam sempre em um grupo delimitado de frases a análise lógica de um sistema implica a reescrita em uma linguagem formal de um conjunto dado de proposições Quanto ao nível enunciativo encontrase cada vez neutralizado seja porque se defina somente como uma amostra representativa que permite liberar estruturas indefinidamente aplicáveis seja porque se esconda em uma pura aparência atrás da qual deve aparecer a verdade de uma outra fala seja porque valha como uma substância indiferente que serve de suporte a relações formais O fato de ser sempre indispensável para que a análise possa ocorrer lhe tira toda pertinência em relação à própria análise Se acrescentarmos a isso que todas essas descrições só se podem efetivar quando elas próprias constituem conjuntos finitos de enunciados compreenderemos concomitantemente por que o campo enunciativo as envolve de todas as maneiras por que elas não podem liberarse dele e por que não podem tomálo diretamente como tema Considerar os enunciados em si mesmos não será buscar além de todas essas análises e em um nível mais profundo um certo segredo ou uma certa raiz da linguagem que elas teriam omitido É tentar tornar visível e analisável essa transparência tão próxima que constitui o elemento de sua possibilidade Nem oculto nem visível o nível enunciativo está no limite da linguagem não é em si um conjunto de caracteres que se apresentariam mesmo de um modo não sistemático à experiência imediata mas não é tampouco por trás de si o resto enigmático e silencioso que não traduz Ele define a modalidade de seu aparecimento antes sua periferia que sua organização interna antes sua superfície que seu conteúdo Mas o fato de que se pode descrever essa superfície enunciativa prova que o dado da linguagem não é a simples laceração de um mutismo fundamental que as palavras as frases as significações as afirmações os encadeamentos de proposições não se apóiam diretamente na noite primeira de um silêncio mas 128 Michel Foucault que o súbito aparecimento de uma frase o lampejo do sentido o brusco índice da designação surgem sempre no domínio de exercício de uma função enunciativa que entre a linguagem tal como a lemos e ouvimos mas também como a falamos e a ausência de qualquer formulação não há o formigamento de todas as coisas pouco ditas de todas as frases em suspenso de todos os pensamentos semiverbalizados do monólogo infinito do qual emergem apenas alguns fragmentos mas antes de tudo ou pelo menos antes dela pois depende delas as condições segundo as quais se efetua a função enunciativa Isso prova também que é inútil procurar além das análises estruturais formais ou interpretativas da linguagem um domínio finalmente liberto de qualquer positividade onde se poderiam desdobrar a liberdade do sujeito o labor do ser humano ou a abertura de uma destinação transcendental Nada há a objetar contra os métodos linguísticos ou as análises lógicas Que faz você depois de tanto falar sobre suas regras de construção da própria linguagem na plenitude de seu corpo vivo Que faz da liberdade ou do sentido anterior a toda significação sem os quais não haveria indivíduos se entendendo no trabalho sempre retomado da linguagem Ignora você que tão logo ultrapassados os sistemas finitos que tornam possível o infinito do discurso mas que são incapazes de fundálo e de dar conta dele encontramos a marca de uma transcendência ou a obra do ser humano Sabe que você somente descreveu alguns caracteres de uma linguagem cuja emergência e modo de ser são em suas análises inteiramente irredutíveis Estas objeções devem ser afastadas pois se é verdade que há uma dimensão que não pertence nem à lógica nem à linguística ela não é nem por isso a transcendência restaurada nem o caminho reaberto em direção à inacessível origem nem a formação pelo ser humano de suas próprias significações A linguagem na instância de seu aparecimento e de seu modo de ser é o enunciado como tal se apóia em uma descrição que não é nem transcendental nem antropológica A análise enunciativa não prescreve para as análises linguísticas ou lógicas o limite a partir do qual elas deveriam renunciar e reconhecer sua impotência ela não marca a linha que fecha seu domínio mas se desenrola em outra direção que as cruza A possibilidade de uma análise enunciativa se for estabelecida deve permitir erguer o suporte A Arqueologia do Saber 129 transcendental que uma certa forma de discurso filosófico opõe a todas as análises da linguagem em nome do ser dessa linguagem e do fundamento em que se deveria originar B Devo voltarme agora para o segundo grupo de questões como a descrição dos enunciados assim definida pode ajustarse à análise das formações discursivas cujos princípios esbocei anteriormente E ao contrário até que ponto se pode dizer que a análise das formações discursivas é uma descrição dos enunciados no sentido que acabei de dar a essa palavra É importante dar uma resposta a essa questão pois é neste ponto que o empreendimento a que me liguei há tantos anos e que havia desenvolvido de maneira um tanto ou quanto cega mas cujo perfil geral tento agora retomar livre para reajustálo livre para retificarlhe erros ou imprudências deve fechar seu círculo Já pudemos vêlo não tento dizer aqui o que quis fazer outrora em tal ou tal análise concreta o projeto que tinha em mente os obstáculos que encontrei as renúncias a que fui levado os resultados mais ou menos satisfatórios que pude obter não descrevo uma trajetória efetiva para indicar o que ela deveria ter sido e o que será a partir de hoje tento elucidar nela mesma a fim de medila e estabelecer suas exigências uma possibilidade de descrição que utilizei sem conhecer bem suas restrições e recursos em vez de procurar o que eu disse e o que teria podido dizer esforçome para mostrar na regularidade que lhe é própria e que eu controlava mal aquilo que tornava possível o que eu dizia Mas vêse também que não desenvolvo aqui uma teoria no sentido estrito e vigoroso do termo a dedução a partir de um certo número de axiomas de um modelo abstrato aplicável a um número indefinido de descrições empíricas O momento de tal construção se for possível certamente ainda não chegou Não infiro a análise das formações discursivas a partir de uma definição dos enunciados que valeria como fundamento não infiro tampouco a natureza dos enunciados a partir do que são as formações discursivas como se pôde abstraílas desta ou daquela descrição mas tento mostrar como se pode organizar sem falha sem contradição sem imposição 130 Michel Foucault interna um domínio em que estão em questão os enunciados seu princípio de agrupamentos as grandes unidades históricas que eles podem constituir e os métodos que permitem descrevêlos Não procedo por dedução linear mas por círculos concêntricos e vou ora na direção dos mais exteriores ora na dos mais interiores partindo do problema da descontinuidade no discurso e da singularidade do enunciado tema central procurei analisar na periferia certas formas de grupamentos enigmáticos mas os princípios de unificação com que me deparei e que não são nem gramaticais nem lógicos nem psicológicos e que por conseguinte não podem referirse nem a frases nem a proposições nem a representações exigiram que eu voltasse para o centro ao problema do enunciado e que tentasse elucidar o que é preciso entender por enunciado E considerarei não que eu tenha construído um modelo teórico rigoroso mas que tenha liberado um domínio coerente de descrição do qual se não estabeleci o modelo pelo menos abri e preparei a possibilidade se tiver conseguido fechar o círculo e mostrar que a análise das formações discursivas está bem centrada na descrição do enunciado em sua especificidade Em suma se tiver conseguido mostrar que as dimensões próprias do enunciado é que estão utilizadas na demarcação das formações discursivas Não se trata de fundar de direito uma teoria e antes de poder eventualmente fazêlo não nego que lamento não ter ainda chegado a tanto mas sim no momento de estabelecer uma possibilidade Examinando o enunciado o que se descobriu foi uma função que se apóia em conjuntos de signos que não se identifica nem com a aceitabilidade gramatical nem com a correção lógica e que requer para se realizar um referencial que não é exatamente um fato um estado de coisas nem mesmo um objeto mas um princípio de diferenciação um sujeito não a consciência que fala não o autor da formulação mas uma posição que pode ser ocupada sob certas condições por indivíduos indiferentes um campo associado que não é o contexto real da formulação a situação na qual foi articulada mas um domínio de coexistência para outros enunciados uma materialidade que não é apenas a substância ou o suporte da articulação mas um status regras de transcrição possibilidades de uso ou de reutilização Ora o que se descreveu sob o nome formação discursiva constitui em sentido estrito grupos de A Arqueologia do Saber 131 enunciados isto é conjuntos de performances verbais que não estão ligadas entre si no nível das frases por laços gramaticais sintáticos ou semânticos que não estão ligados entre si no nível das proposições por laços lógicos de coerência formal ou encadeamentos conceituais que tampouco estão ligados no nível das formulações por laços psicológicos seja a identidade das formas de consciência a constância das mentalidades ou a repetição de um projeto mas que estão ligados no nível dos enunciados Isso supõe que se possa definir o regime geral a que obedecem seus objetos a forma de dispersão que reparte regularmente aquilo de que falam o sistema de seus referenciais que se defina o regime geral ao qual obedecem os diferentes modos de enunciação a distribuição possível das posições subjetivas e o sistema que os define e os prescreve que se defina o regime comum a todos os seus domínios associados as formas de sucessão de simultaneidade de repetição de que todos são suscetíveis e o sistema que liga entre si todos esses campos de coexistência que se possa enfim definir o regime geral a que está submetido o status desses enunciados a maneira pela qual são institucionalizados recebidos empregados reutilizados combinados entre si o modo segundo o qual se tornam objetos de apropriação instrumentos para o desejo ou interesse elementos para uma estratégia Descrever enunciados descrever a função enunciativa de que são portadores analisar as condições nas quais se exerce essa função percorrer os diferentes domínios que ela pressupõe e a maneira pela qual se articulam é tentar revelar o que se poderá individualizar como formação discursiva ou ainda a mesma coisa porém na direção inversa a formação discursiva é o sistema enunciativo geral ao qual obedece um grupo de performances verbais sistema que não o rege sozinho já que ele obedece ainda e segundo suas outras dimensões aos sistemas lógico linguístico psicológico O que foi definido como formação discursiva escande o plano geral das coisas ditas no nível específico dos enunciados As quatro direções em que a analisamos formação dos objetos formação das posições subjetivas formação dos conceitos formação das escolhas estratégicas correspondem aos quatro domínios em que se exerce a função enunciativa E se as formações discursivas são livres em relação às grandes unidades retóricas do texto ou do livro se não têm por lei o 132 Michel Foucault rigor de uma arquitetura dedutiva se não se identificam com a obra de um autor é porque utilizam o nível enunciativo com as regularidades que o caracterizam e não o nível gramatical das frases ou lógico das proposições ou psicológico da formulação A partir disso podemos adiantar um certo número de proposições que estão no centro de todas essas análises 1 Podese dizer que a demarcação das formações discursivas independentemente dos outros princípios de possível unificação revela o nível específico do enunciado mas podese dizer da mesma forma que a descrição dos enunciados e da maneira pela qual se organiza o nível enunciativo conduz à individualização das formações discursivas Os dois procedimentos são igualmente justificáveis e reversíveis A análise do enunciado e a da formação são estabelecidas correlativa mente Quando chegar enfim o dia de fundar a teoria será necessário definir uma ordem dedutiva 2 Um enunciado pertence a uma formação discursiva como uma frase pertence a um texto e uma proposição a um conjunto dedutivo Mas enquanto a regularidade de uma frase é definida pelas leis de uma língua e a de uma proposição pelas leis de uma lógica a regularidade dos enunciados é definida pela própria formação discursiva A lei dos enunciados e o fato de pertencerem à formação discursiva constituem uma única e mesma coisa o que não é paradoxal já que a formação discursiva se caracteriza não por princípios de construção mas por uma dispersão de fato já que ela é para os enunciados não uma condição de possibilidade mas uma lei de coexistência e já que os enunciados em troca não são elementos intercambiáveis mas conjuntos caracterizados por sua modalidade de existência 3 Podese então agora dar um sentido pleno à definição do discurso que havia sido sugerida anteriormente Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados na medida em que se apóiem na mesma formação discursiva ele não forma uma unidade retórica ou formal indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar e explicar se for o caso na história é constituído de um número A Arqueologia do Saber 133 limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência O discurso assim entendido não é uma forma ideal e intemporal que teria além do mais uma história o problema não consiste em saber como e por que ele pôde emergir e tomar corpo num determinado ponto do tempo é de parte a parte histórico fragmento de história unidade e descontinuidade na própria história que coloca o problema de seus próprios limites de seus cortes de suas transformações dos modos específicos de sua temporalidade e não de seu surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo 4 Finalmente o que se chama prática discursiva pode ser agora precisado Não podemos confundila com a operação expressiva pela qual um indivíduo formula uma idéia um desejo uma imagem nem com a atividade racional que pode ser acionada em um sistema de inferência nem com a competência de um sujeito falante quando constrói frases gramaticais é um conjunto de regras anônimas históricas sempre determinadas no tempo e no espaço que definiram em uma dada época e para uma determinada área social econômica geográfica ou linguística as condições de exercício da função enunciativa Restame agora fazer oscilar a análise e após ter relacionado as formações discursivas aos enunciados que descrevem procurar em uma outra direção rumo ao exterior desta vez o uso legítimo dessas noções o que se pode descobrir através delas como podem ter lugar entre outros métodos de descrição até que ponto podem modificar e redistribuir o domínio da história das idéias Entretanto antes de efetuar essa reversão e para realizála com mais segurança ficarei ainda um pouco mais na dimensão que acabei de explorar e tentarei precisar o que é exigido e o que é excluído pela análise do campo enunciativo e das formações que o escandem 4 RARIDADE EXTERIORIDADE ACÚMULO A análise enunciativa leva em conta um efeito de raridade A análise do discurso está colocada na maior parte do tempo sob o duplo signo da totalidade e da pletora Mostrase como os diferentes textos de que tratamos remetem uns aos outros se organizam em uma figura única entram em convergência com instituições e práticas e carregam significações que podem ser comuns a toda uma época Cada elemento considerado é recebido como a expressão de uma totalidade à qual pertence e que o ultrapassa Substituise assim a diversidade das coisas ditas por uma espécie de grande texto uniforme ainda jamais articulado e que pela primeira vez traz à luz o que os homens haviam querido dizer não apenas em suas palavras e seus textos seus discursos e seus escritos mas nas instituições práticas técnicas e objetos que produzem Em relação a esse sentido implícito soberano e comunitário os enunciados em sua proliferação aparecem em superabundância já que é apenas a ele que todos remetem e só ele constitui sua verdade pletora dos elementos significantes em relação a esse significado único Mas já que esse sentido primeiro e último brota através das formulações manifestas já que se esconde sob o que aparece e secretamente o desdobra é que cada discurso encobria o poder de dizer algo diferente do que ele dizia e de englobar assim uma A Arqueologia do Saber 135 pluralidade de sentidos pletora do significado em relação a um significante único Assim estudado o discurso é ao mesmo tempo plenitude e riqueza indefinida A análise dos enunciados e das formações discursivas abre uma direção inteiramente oposta ela quer determinar o princípio segundo o qual puderam aparecer os únicos conjuntos significantes que foram enunciados Busca estabelecer uma lei de raridade Essa tarefa compreende vários aspectos Ela repousa no princípio de que nem tudo é sempre dito em relação ao que poderia ser enunciado era língua natural em relação à combinatória ilimitada dos elementos linguísticos os enunciados por numerosos que sejam estão sempre em deficit a partir da gramática e do tesouro vocabular de que se dispõe em dada época relativamente poucas coisas são ditas em suma Vamos então procurar o princípio da rarefação ou pelo menos do nãopreenchimento do campo das formulações possíveis tal como é aberto pela língua A formação discursiva aparece ao mesmo tempo como princípio de escansão no emaranhado dos discursos e princípio de vacuidade no campo da linguagem Estudamse os enunciados no limite que os separa do que não está dito na instância que os faz surgirem à exclusão de todos os outros Não se trata de fazer falar o mutismo que os cerca nem de reencontrar tudo aquilo que neles e ao lado deles se havia calado ou sido reduzido ao silêncio Não se trata tampouco de estudar os obstáculos que impediram tal descoberta retiveram tal formulação recalcaram tal forma de enunciação tal significação inconsciente ou tal racionalidade em devir mas de definir um sistema limitado de presenças A formação discursiva não é pois uma totalidade em desenvolvimento tendo seu dinamismo próprio ou sua inércia particular carregando consigo em um discurso não formulado o que ela não mais diz ainda não diz ou o que a contradiz no momento não é uma rica e difícil germinação mas uma distribuição de lacunas de vazios de ausências de limites de recortes Entretanto não ligamos essas exclusões a um recalcamento ou a uma repressão não supomos que sob enunciados manifestos alguma coisa permaneça oculta e subjacente Analisamos os enunciados não como se estivessem no lugar de outros enunciados caídos abaixo da linha de emergência possível mas como estando sempre em seu lugar próprio Recolocamolos em um espaço que seria inteiramente aberto e que não comportaria nenhuma reduplicação Não há texto embaixo portanto nenhuma pletora O domínio enunciativo está inteiro em sua própria superfície Cada enunciado ocupa aí um lugar que só a ele pertence A descrição não consiste pois a 136 Michel Foucault propósito de um enunciado em reconhecer o nãodito cujo lugar ele ocupa nem como podemos reduzilo a um texto silencioso e comum mas pelo contrário que posição singular ocupa que ramificações no sistema das formações permitem demarcar sua localização como ele se isola na dispersão geral dos enunciados Essa raridade dos enunciados a forma lacunar e retalhada do campo enunciativo o fato de que poucas coisas em suma podem ser ditas explicam que os enunciados não sejam como o ar que respiramos uma transparência infinita mas sim coisas que se transmitem e se conservam que têm um valor e das quais procuramos nos apropriar que repetimos reproduzimos e transformamos para as quais preparamos circuitos preestabelecidos e às quais damos uma posição dentro da instituição coisas que são desdobradas não apenas pela cópia ou pela tradução mas pela exegese pelo comentário e pela proliferação interna do sentido Por serem raros os enunciados recolhemolos em totalidades que os unificam e multiplicamos os sentidos que habitam cada um deles Diferentemente de todas essas interpretações cuja própria existência só é possível pela raridade efetiva dos enunciados mas que entretanto não tomam conhecimento dela e ao contrário tomam como tema a compacta riqueza do que é dito a análise das formações discursivas se volta para essa raridade tomaa por objeto explícito tenta determinarlhe o sistema singular e ao mesmo tempo dá conta do fato de que pôde haver interpretação Interpretar é uma maneira de reagir à pobreza enunciativa e de compensála pela multiplicação do sentido uma maneira de falar a partir dela e apesar dela Mas analisar uma formação discursiva é procurar a lei de sua pobreza é medila e determinarlhe a forma específica É pois em um sentido pesar o valor dos enunciados Esse valor não é definido por sua verdade não é avaliado pela presença de um conteúdo secreto mas caracteriza o lugar deles sua capacidade de circulação e de troca sua possibilidade de transformação não apenas na economia dos discursos mas na administração em geral dos recursos raros Assim concebido o discurso deixa de ser o que é para a atitude exegética tesouro inesgotável de onde se podem tirar sempre novas riquezas e a cada vez imprevisíveis providência que sempre falou antecipadamente e que faz com que se ouça quando se sabe escutar oráculos retrospectivos ele aparece como um bem finito limitado desejável útil que tem suas regras de A Arqueologia do Saber 137 aparecimento e também suas condições de apropriação e de utilização um bem que coloca por conseguinte desde sua existência e não simplesmente em suas aplicações práticas a questão do poder um bem que é por natureza o objeto de uma luta e de uma luta política Eis outro traço característico a análise dos enunciados trataos na forma sistemática da exterioridade Em geral a descrição histórica das coisas ditas é inteiramente atravessada pela oposição do interior e do exterior e inteiramente comandada pela tarefa de voltar dessa exterioridade que não passaria de contingência ou pura necessidade material corpo visível ou tradução incerta em direção ao núcleo essencial da interioridade Empreender a história do que foi dito é refazer em outro sentido o trabalho da expressão retomar enunciados conservados ao longo do tempo e dispersos no espaço em direção ao segredo interior que os precedeu neles se depositou e aí se encontra em todos os sentidos do termo traído Assim se encontra libertado o núcleo central da subjetividade fundadora que permanece sempre por trás da história manifesta e que encontra sob os acontecimentos uma outra história mais séria mais secreta mais fundamental mais próxima da origem mais ligada a seu horizonte último e por isso mais senhora de todas as suas determinações Essa outra história que corre sob a história que se antecipa a ela sem cessar e recolhe indefinidamente o passado podemos descrevêla de um modo sociológico ou psicológico como a evolução das mentalidades podemos darlhe um status filosófico no recolhimento do logos ou na teleologia da razão podemos tentar enfim purificála na problemática de um traço que seria antes de qualquer palavra abertura da inscrição e afastamento do tempo diferido é sempre o tema históricotranscendental que se reinveste Desse tema a análise enunciativa tenta liberarse para restituir os enunciados à sua pura dispersão para analisálos em uma exterioridade sem dúvida paradoxal já que não remete a nenhuma forma adversa de interioridade para considerálos em sua descontinuidade sem ter de relacionálos por um desses deslocamentos que os põem fora de circuito e os tornam inessenciais a uma abertura ou a uma diferença mais fundamental para apreender sua própria irrupção no lugar e no momento em que se produziu para reencontrar 138 Michel Foucault sua incidência de acontecimento Sem dúvida seria melhor falar de neutralidade que de exterioridade mas essa palavra remete demasiado facilmente a uma suspensão de crença a um desaparecimento ou a uma colocação entre parênteses de qualquer posição de existência enquanto o que importa é reencontrar o exterior onde se repartem em sua relativa raridade em sua vizinhança lacunar em seu espaço aberto os acontecimentos enunciativos Essa tarefa supõe que o campo dos enunciados não seja descrito corno uma tradução de operações ou de processos que se desenrolam em algum outro lugar no pensamento dos homens em sua consciência ou em seu inconsciente na esfera das constituições transcendentais mas que seja aceito em sua modéstia empírica como local de acontecimentos de regularidades de relacionamentos de modificações determinadas de transformações sistemáticas em suma que seja tratado não como resultado ou vestígio de outra coisa mas como um domínio prático que é autônomo apesar de dependente e que se pode descrever em seu próprio nível se bem que seja preciso articulálo como algo que não seja ele Ela supõe também que esse domínio enunciativo não tome como referência nem um sujeito individual nem alguma coisa semelhante a uma consciência coletiva nem uma subjetividade transcendental mas que seja descrito como um campo anônimo cuja configuração defina o lugar possível dos sujeitos falantes Não é mais preciso situar os enunciados em relação a uma subjetividade soberana mas reconhecer nas diferentes formas da subjetividade que fala efeitos próprios do campo enunciativo Ela supõe em consequência disso que em suas transformações em suas séries sucessivas em suas derivações o campo dos enunciados não obedeça à temporalidade da consciência como a seu modelo necessário Não se deve esperar pelo menos nesse nível e nessa forma de descrição poder escrever uma história das coisas ditas que seria de pleno direito ao mesmo tempo era sua forma em sua regularidade e em sua natureza a história de uma consciência individual ou anônima de um projeto de um sistema de intenções de um conjunto de metas O tempo dos discursos não é a tradução em uma cronologia visível do tempo obscuro do pensamento A análise dos enunciados se efetua pois sem referência a um cogito Não coloca a questão de quem fala se manifesta ou se oculta no que diz quem exerce tomando a palavra sua liberdade soberana ou se submete sem sabêlo a coações que percebe mal Ela situase de fato no nível do dizse e isso A Arqueologia do Saber 139 não eleve ser entendido como uma espécie de opinião comum de representação coletiva que se imporia a todo indivíduo nem como uma grande voz anônima que falaria necessariamente através dos discursos de cada um mas como o conjunto das coisas ditas as relações as regularidades e as transformações que podem aí ser observadas o domínio do qual certas figuras e certos entrecruzamentos indicam o lugar singular de um sujeito falante e podem receber o nome de um autor Não importa quem fala mas o que ele diz não é dito de qualquer lugar É considerado necessariamente no jogo de uma exterioridade Eis o terceiro traço da análise enunciativa ela se dirige a formas específicas de acúmulo que não podem identificarse nem com uma interiorização na forma da lembrança nem com uma totalização indiferente dos documentos Geralmente quando analisamos discursos já efetuados consideramolos como afetados por uma inércia essencial o acaso conservouos ou o cuidado dos homens e as ilusões que puderam tecer sobre o valor e a imortal dignidade de suas palavras mas não são a partir daí nada mais que grafismos amontoados sob a poeira das bibliotecas dormindo um sono para o qual não deixaram de deslizar desde que foram pronunciados desde que foram esquecidos e desde que seu efeito visível se perdeu no tempo Quando muito são suscetíveis de serem favoravelmente retomados nas redescobertas da leitura quando muito podem ser aí descobertos como portadores das marcas que remetem à instância de sua enunciação quando muito essas marcas uma vez decifradas podem liberar por uma espécie de memória que atravessa o tempo significações pensamentos desejos fantasmas sepultados Estes quatro termos leitura traço decifração memória qualquer que seja o privilégio que se dê a um ou outro e qualquer que seja a extensão metafórica que se lhe atribua e que lhe permita reconsiderar os três outros definem o sistema que permite usualmente arrancar o discurso passado de sua inércia e reencontrar num momento algo de sua vivacidade perdida Ora a particularidade da análise enunciativa não e despertar textos de seu sono atual para reencontrar encantando as marcas ainda legíveis em sua superfície o clarão de seu nascimento tratase ao contrário de seguilos ao longo de seu 140 Michel Foucault sono ou antes de levantar os temas relacionados ao sono ao esquecimento à origem perdida e de procurar que modo de existência pode caracterizar os enunciados independentemente de sua enunciação na espessura do tempo em que subsistem em que se conservaram em que são reativados e utilizados em que são também mas não por uma destinação originária esquecidos e até mesmo eventualmente destruídos Essa análise supõe que os enunciados sejam considerados na remanência que lhes é própria e que não é a do retorno sempre possível ao acontecimento passado da formulação Dizer que os enunciados são remanentes não é dizer que eles permanecem no campo da memória ou que se pode reencontrar o que queriam dizer mas sim que se conservaram graças a um certo número de suportes e de técnicas materiais de que o livro não passa é claro de um exemplo segundo certos tipos de instituições entre muitas outras a biblioteca e com certas modalidades estatutárias que não são as mesmas quando se trata de um texto religioso de um regulamento de direito ou de uma verdade científica Isso quer dizer também que eles estão investidos em técnicas que os põem em aplicação em práticas que daí derivam em relações sociais que se constituíram ou se modificaram através deles Isso quer dizer finalmente que as coisas não têm mais o mesmo modo de existência o mesmo sistema de relações com o que as cerca os mesmos esquemas de uso as mesmas possibilidades de transformação depois de terem sido ditas Embora a conservação através do tempo seja o prolongamento acidental ou bemsucedido de uma existência feita para passar com o momento a remanência pertence de pleno direito ao enunciado o esquecimento e a destruição são apenas de certa forma o grau zero da remanência E sobre o fundo por ela constituído os jogos da memória e da lembrança podemse desenrolar Essa análise supõe igualmente que os enunciados sejam abordados na forma de aditividade que lhes é específica Na verdade os tipos de grupamento entre enunciados sucessivos não são sempre os mesmos e não procedem jamais por simples amontoamento ou justaposição de elementos sucessivos Os enunciados matemáticos não se adicionam entre si como os textos religiosos ou os atos de jurisprudência cada um tem um modo específico de se compor de se anular de se excluir de se completar de formar grupos mais ou menos indissociáveis e dotados de propriedades singulares Além do mais as formas de atividade não se apresentam de forma definitiva para uma categoria determinada de enunciados as observações médicas de hoje formam um corpus que não obedece às mesmas leis de composição que a coleção dos casos do século XVIII a matemática moderna A Arqueologia do Saber 141 não acumula seus enunciados pelo mesmo modelo que a geometria de Euclides A análise enunciativa supõe finalmente que se levem em consideração os fenômenos de recorrência Todo enunciado compreende um campo de elementos antecedentes em relação aos quais se situa mas que tem o poder de reorganizar e de redistribuir segundo relações novas Ele constitui seu passado define naquilo que o precede sua própria filiação redesenha o que o torna possível ou necessário exclui o que não pode ser compatível com ele Além disso coloca o passado enunciativo como verdade adquirida como um acontecimento que se produzia como uma forma que se pode modificar como matéria a transformar ou ainda como objeto de que se pode falar Em relação a todas essas possibilidades de recorrência a memória e o esquecimento a redescoberta do sentido ou sua repressão longe de serem leis fundamentais não passam de figuras singulares A descrição dos enunciados e das formações discursivas devese livrar da imagem tão frequente e obstinada do retorno Ela não pretende voltar além de um tempo que seria apenas queda latência esquecimento recobrimento ou errância ao momento fundador em que a palavra não estava ainda comprometida com qualquer materialidade não estava condenada a nenhuma persistência e se retinha na dimensão não determinada da abertura Não tenta constituir para o já dito o instante paradoxal do segundo nascimento não invoca uma aurora prestes a retornar Ao contrário trata os enunciados na densidade do acúmulo em que são tomados e que entretanto não deixam de modificar de inquietar de agitar e às vezes de arruinar Descrever um conjunto de enunciados não como a totalidade fechada e pletórica de uma significação mas como figura lacunar e retalhada descrever um conjunto de enunciados não em referência à interioridade de uma intenção de um pensamento ou de um sujeito mas segundo a dispersão de uma exterioridade descrever um conjunto de enunciados para aí reencontrar não o momento ou a marca de origem mas sim as formas específicas de um acúmulo não é certamente revelar uma interpretação descobrir um fundamento liberar atos constituintes não é tampouco decidir sobre uma racionalidade ou percorrer uma teleologia É estabelecer o que eu chamaria de bom grado uma positividade Analisar uma formação discursiva é pois tratar um conjunto de 142 Michel Foucault performances verbais no nível dos enunciados e da forma de positividade que as caracteriza ou mais sucintamente é definir o tipo de positividade de um discurso Se substituir a busca das totalidades pela análise da raridade o tema do fundamento transcendental pela descrição das relações de exterioridade a busca da origem pela análise dos acúmulos é ser positivista pois bem eu sou um positivista feliz concordo facilmente E não estou desgostoso por ter várias vezes se bem que de maneira ainda um pouco cega empregado o termo positividade para designar de longe a meada que tentava desenrolar 5 O A PRIORI HISTÓRICO E O ARQUIVO A positividade de um discurso como o da história natural da economia política ou da medicina clínica caracterizalhe a unidade através do tempo e muito além das obras individuais dos livros e dos textos Essa unidade certamente não permite decidir quem dizia a verdade quem raciocinava rigorosamente quem se adaptava melhor a seus próprios postulados Lineu ou Buffon Quesnay ou Turgot Broussais ou Bichat ela não permite tampouco dizer qual das obras estava mais próxima de uma meta inicial ou última qual delas formularia mais radicalmente o projeto geral de uma ciência No entanto permite o aparecimento da medida segundo a qual Buffon e Lineu ou Turgot e Quesnay Broussais e Bichat falavam da mesma coisa colocandose no mesmo nível ou a mesma distância desenvolvendo o mesmo campo conceitual opondose sobre o mesmo campo de batalha e ela faz aparecer em compensação a razão pela qual não se pode dizer que Darwin fala da mesma coisa que Diderot que Laennec dá continuidade a Van Swieten ou que Jevons se segue aos fisiocratas Ela define um espaço limitado de comunicação espaço relativamente restrito já que está longe de ter a amplidão de uma ciência tomada em todo o seu devir histórico desde sua mais longínqua origem até seu ponto atual de realização mas um espaço mais extenso entretanto que o jogo 144 Michel Foucault das influências que pôde ser exercido de um autor a outro ou que o domínio das polêmicas explícitas As diferentes obras os livros dispersos toda a massa de textos que pertencem a uma mesma formação discursiva e tantos autores que se conhecem e se ignoram se criticam se invalidam uns aos outros se plagiam se reencontram sem saber e entrecruzam obstinadamente seus discursos singulares em uma trama que não dominam cujo todo não percebem e cuja amplitude medem mais todas essas figuras e individualidades diversas não comunicam apenas pelo encadeamento lógico das proposições que eles apresentam nem pela recorrência dos temas nem pela pertinácia de uma significação transmitida esquecida redescoberta comunicam pela forma de positividade de seus discursos Ou mais exatamente essa forma de positividade e as condições de exercício da função enunciativa define um campo em que eventualmente podem ser desenvolvidos identidades formais continuidades temáticas translações de conceitos jogos polêmicos Assim a positividade desempenha o papel do que se poderia chamar um a priori histórico Justapostas as duas palavras provocam um efeito um pouco gritante quero designar um a priori que não seria condição de validade para juízos mas condição de realidade para enunciados Não se trata de reencontrar o que poderia tornar legítima uma assertiva mas isolar as condições de emergência dos enunciados a lei de sua coexistência com outros a forma específica de seu modo de ser os princípios segundo os quais subsistem se transformam e desaparecem A priori não de verdades que poderiam nunca ser ditas nem realmente apresentadas à experiência mas de uma história determinada já que é a das coisas efetivamente ditas A razão para se usar esse termo um pouco impróprio é que esse a priori deve dar conta dos enunciados em sua dispersão em todas as falhas abertas por sua nãocoerência em sua superposição e substituição recíproca em sua simultaneidade que não pode ser unificada e em sua sucessão que não é dedutível em suma tem de dar conta do fato de que o discurso não tem apenas um sentido ou uma verdade mas uma história e uma história específica que não o reconduz às leis de um devir estranho Deve mostrar por exemplo que a história da gramática não é a projeção no campo da linguagem e de seus A Arqueologia do Saber 145 problemas de uma história que seria em geral a da razão ou de uma mentalidade de uma história que de algum modo ela compartilharia com a medicina a mecânica ou a teologia mas que ela comporta um tipo de história uma forma de dispersão no tempo um modo de sucessão de estabilidade de reativação uma rapidez de desencadeamento ou de rotação que lhe pertence particularmente mesmo se estiver em relação com outros tipos de história Além disso o a priori não escapa à historicidade não constitui acima dos acontecimentos e em um universo inalterável uma estrutura intemporal definese como o conjunto das regras que caracterizam uma prática discursiva ora essas regras não se impõem do exterior aos elementos que elas correlacionam estão inseridas no que ligam e se não se modificam com o menor dentre eles os modificam e com eles se transformam em certos limiares decisivos O a priori das positividades não é somente o sistema de uma dispersão temporal ele próprio é um conjunto transformável Diante dos a priori formais cuja jurisdição se estende sem contingência ele é uma figura puramente empírica mas por outro lado já que permite compreender os discursos na lei de seu devir efetivo deve poder dar conta do fato de que tal discurso em um momento dado possa acolher e utilizar ou ao contrário excluir esquecer ou desconhecer esta ou aquela estrutura formal Ele não pode dar conta através de algo como uma gênese psicológica ou cultural dos a priori formais mas permite compreender como os a priori formais podem ter na história pontos de junção lugares de inserção de irrupção ou de emergência domínios ou ocasiões de utilização e compreender como a história pode ser não uma contingência absolutamente extrínseca não uma necessidade da forma que desenvolve sua própria dialética mas uma regularidade específica Nada pois seria mais agradável mas menos exato que conceber esse a priori histórico como um a priori formal e além do mais dotado de uma história grande figura imóvel e vazia que surgiria um dia à superfície do tempo que faria valer sobre o pensamento dos homens uma tirania da qual ninguém poderia escapar que depois desapareceria de repente em um eclipse a que nenhum acontecimento teria dado sinal prévio transcendental sincopado jogo de formas que cintilam O a priori formal e o a priori histórico não são nem do 146 Michel Foucault mesmo nível nem da mesma natureza se se cruzam é porque ocupam duas dimensões diferentes O domínio dos enunciados assim articulado segundo a priori históricos assim caracterizado por diferentes tipos de positividade e escandido por formações discursivas distintas não tem mais o aspecto de planície monótona e indefinidamente prolongada que eu lhe dava no início quando falava de superfície do discurso deixa igualmente de aparecer como o elemento inerte liso e neutro em que vêm aflorar cada um segundo seu próprio movimento ou estimulados por algum dinamismo obscuro temas idéias conceitos conhecimentos Temos de tratar agora de um volume complexo em que se diferenciam regiões heterogêneas e em que se desenrolam segundo regras específicas práticas que não se podem superpor Ao invés de vermos alinharemse no grande livro mítico da história palavras que traduzem em caracteres visíveis pensamentos constituídos antes e em outro lugar temos na densidade das práticas discursivas sistemas que instauram os enunciados como acontecimentos tendo suas condições e seu domínio de aparecimento e coisas compreendendo sua possibilidade e seu campo de utilização São todos esses sistemas de enunciados acontecimentos de um lado coisas de outro que proponho chamar de arquivo Não entendo por esse termo a soma de todos os textos que uma cultura guardou em seu poder como documentos de seu próprio passado ou como testemunho de sua identidade mantida não entendo tampouco as instituições que em determinada sociedade permitem registrar e conservar os discursos de que se quer ter lembrança e manter a livre disposição Tratase antes e ao contrário do que faz com que tantas coisas ditas por tantos homens há tantos milênios não tenham surgido apenas segundo as leis do pensamento ou apenas segundo o jogo das circunstâncias que não sejam simplesmente a sinalização no nível das performances verbais do que se pôde desenrolar na ordem do espírito ou na ordem das coisas mas que tenham aparecido graças a todo um jogo de relações que caracterizam particularmente o nível discursivo que em lugar de serem figuras adventícias e como que inseridas um pouco ao acaso em processos mudos nasçam segundo regularidades específicas em suma que se há coisas ditas e somente estas não é preciso perguntar sua razão A Arqueologia do Saber 147 imediata às coisas que aí se encontram ditas ou aos homens que as disseram mas ao sistema da discursividade às possibilidades e às impossibilidades enunciativas que ele conduz O arquivo é de início a lei do que pode ser dito o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares Mas o arquivo é também o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa não se inscrevam tampouco em uma linearidade sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso de acidentes externos mas que se agrupem em figuras distintas se componham umas com as outras segundo relações múltiplas se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas ele é o que faz com que não recuem no mesmo ritmo que o tempo mas que as que brilham muito forte como estrelas próximas venham até nós na verdade de muito longe quando outras contemporâneas já estão extremamente pálidas O arquivo não é o que protege apesar de sua fuga imediata o acontecimento do enunciado e conserva para as memórias futuras seu estado civil de foragido é o que na própria raiz do enunciadoacontecimento e no corpo em que se dá define desde o início o sistema de sua enunciabilidade O arquivo não é tampouco o que recolhe a poeira dos enunciados que novamente se tornaram inertes e permite o milagre eventual de sua ressurreição é o que define o modo de atualidade do enunciadocoisa é o sistema de seu funcionamento Longe de ser o que unifica tudo o que foi dito no grande murmúrio confuso de um discurso longe de ser apenas o que nos assegura a existência no meio do discurso mantido é o que diferencia os discursos em sua existência múltipla e os especifica em sua duração própria Entre a língua que define o sistema de construção das frases possíveis e o corpus que recolhe passivamente as palavras pronunciadas o arquivo define um nível particular o de uma prática que faz surgir uma multiplicidade de enunciados como tantos acontecimentos regulares como tantas coisas oferecidas ao tratamento e à manipulação Não tem o peso da tradição não constitui a biblioteca sem tempo nem lugar de todas as bibliotecas mas não é tampouco o esquecimento acolhedor que abre a qualquer palavra nova o campo de exercício de sua liberdade entre a tradição e o esquecimento ele faz aparecerem as regras de uma prática que permite aos enunciados 148 Michel Foucault subsistirem e ao mesmo tempo se modificarem regularmente É o sistema geral da formação e da transformação dos enunciados É evidente que não se pode descrever exaustivamente o arquivo de uma sociedade de uma cultura ou de uma civilização nem mesmo sem dúvida o arquivo de toda uma época Por outro lado não nos é possível descrever nosso próprio arquivo já que é no interior de suas regras que falamos já que é ele que dá ao que podemos dizer e a ele próprio objeto de nosso discurso seus modos de aparecimento suas formas de existência e de coexistência seu sistema de acúmulo de historicidade e de desaparecimento O arquivo não é descritível em sua totalidade e é incontornável em sua atualidade Dáse por fragmentos regiões e níveis melhor sem dúvida e com mais clareza na medida em que o tempo dele nos separa em termos extremos não fosse a raridade dos documentos seria necessário o maior recuo cronológico para analisálo Entretanto como poderia essa descrição do arquivo justificarse elucidar o que o torna possível demarcar o lugar de onde ele próprio fala controlar seus deveres e seus direitos testar e elaborar seus conceitos pelo menos no estágio da pesquisa em que ele só pode definir suas possibilidades no momento de seu exercício se se obstinava em descrever somente os horizontes mais longínquos Não será preciso nos reaproximarmos o máximo possível dessa positividade a que ele próprio obedece e do sistema de arquivo que nos permite falar hoje do arquivo em geral Não será necessário esclarecer apenas obliquamente o campo enunciativo de que ele mesmo faz parte A análise do arquivo comporta pois uma região privilegiada ao mesmo tempo próxima de nós mas diferente de nossa atualidade tratase da orla do tempo que cerca nosso presente que o domina e que o indica em sua alteridade é aquilo que fora de nós nos delimita A descrição do arquivo desenvolve suas possibilidades e o controle de suas possibilidades a partir dos discursos que começam a deixar justamente de ser os nossos seu limiar de existência é instaurado pelo corte que nos separa do que não podemos mais dizer e do que fica fora de nossa prática discursiva começa com o exterior da nossa própria linguagem seu lugar é o afastamento de nossas próprias práticas discursivas Nesse sentido vale para nosso diagnóstico Não porque nos A Arqueologia do Saber 149 permitiria levantar o quadro de nossos traços distintivos e esboçar antecipadamente o perfil que teremos no futuro mas porque nos desprende de nossas continuidades dissipa essa identidade temporal em que gostamos de nos olhar para conjurar as rupturas da história rompe o fio das teleologias transcendentais e aí onde o pensamento antropológico interrogava o ser do homem ou sua subjetividade faz com que o outro e o externo se manifestem com evidência O diagnóstico assim entendido não estabelece a autenticação de nossa identidade pelo jogo das distinções Ele estabelece que somos diferença que nossa razão é a diferença dos discursos nossa história a diferença dos tempos nosso eu a diferença das máscaras Que a diferença longe de ser origem esquecida e recoberta é a dispersão que somos e que fazemos A revelação jamais acabada jamais integralmente alcançada do arquivo forma o horizonte geral a que pertencem a descrição das formações discursivas a análise das positividades a demarcação do campo enunciativo O direito das palavras que não coincide com o dos filólogos autoriza pois a dar a todas essas pesquisas o título de arqueologia Esse termo não incita à busca de nenhum começo não associa a análise a nenhuma exploração ou sondagem geológica Ele designa o tema geral de uma descrição que interroga o já dito no nível de sua existência da função enunciativa que nele se exerce da formação discursiva a que pertence do sistema geral de arquivo de que faz parte A arqueologia descreve os discursos como práticas especificadas no elemento do arquivo RAISING YOUR CHILD IV A DESCRIÇÃO ARQUEOLÓGICA COPYRIGHT 1969 1977 by THE CHRISTIAN HOMEAnd SCHOOL PUBLICATION INC PRINTED IN THE UNITED STATES OF AMERICA 1 ARQUEOLOGIA E HISTÓRIA DAS IDÉIAS Podese agora inverter o procedimento podese descer no sentido da corrente e uma vez percorrido o domínio das formações discursivas e dos enunciados uma vez esboçada sua teoria geral correr para os domínios possíveis de aplicação Refletir sobre a utilidade dessa análise que por um ato talvez muito solene batizei de arqueologia Aliás isso é preciso pois para ser franco as coisas no momento não deixam de ser bastante inquietantes Eu havia partido de um problema relativamente simples a escansão do discurso segundo grandes unidades que não eram as das obras dos autores dos livros ou dos temas E eis que com o único fim de estabelecêlas comecei a trabalhar toda uma série de noções formações discursivas positividade arquivo defini um domínio os enunciados o campo enunciativo as práticas discursivas tentei fazer com que surgisse a especificidade de um método que não seria nem formalizador nem interpretativo em suma apelei para todo um aparelho cujo peso e sem dúvida bizarra maquinaria são embaraçosos pois já existem vários métodos capazes de descrever e analisar a linguagem para que não seja presunção querer acrescentarlhes outro E além disso eu havia mantido sob suspeita unidades de discurso como o livro ou a obra porque desconfiava que não fossem tão imediatas e evidentes quanto pareciam será 154 Michel Foucault razoável oporlhes unidades estabelecidas à custa de tal esforço depois de tantas hesitações e segundo princípios tão obscuros que foram necessárias centenas de páginas para elucidálos E o que todos esses instrumentos acabam por delimitar esses famosos discursos cuja identidade eles demarcam coincidem com as figuras chamadas psiquiatria ou economia política ou história natural de que eu tinha empiricamente partido e que me serviram de pretexto para remanejar esse estranho arsenal Forçosamente preciso agora medir a eficácia descritiva das noções que tentei definir Preciso saber se a máquina funciona e o que ela pode produzir O que pode então oferecer essa arqueologia que outras descrições não seriam capazes de dar Qual é a recompensa de tão árdua empresa E imediatamente uma primeira suspeita me ocorre Agi como se descobrisse um domínio novo e como se para descrevêlo tivesse necessidade de medidas e marcos inéditos Mas na verdade não me alojei exatamente no espaço que se conhece bem e há muito sob o nome de história das idéias Não foi a ele que me referi implicitamente mesmo quando em duas ou três ocasiões tentei manterme distante Se minha intenção tivesse sido não desviar os olhos dele será que nele não encontraria já preparado e analisado tudo que buscava No fundo talvez eu não passe de um historiador das idéias mas envergonhado ou se quiserem presunçoso Um historiador das idéias que quis renovar inteiramente sua disciplina que desejou sem dúvida darlhe o rigor que tantas outras descrições bastante próximas adquiriram recentemente mas que incapaz de modificar realmente a velha forma de análise incapaz de fazer com que transpusesse o limiar da cientificidade quer porque tal metamorfose jamais seja possível quer porque não tenha tido forças para operar ele mesmo essa transformação declara para iludir que sempre fez e quis fazer outra coisa Toda essa nova nebulosidade serviu para esconder o fato de que permanecemos na mesma paisagem ligados a um velho solo gasto até a miséria Eu não teria o direito de estar tranquilo enquanto não me separasse da história das idéias enquanto não mostrasse em que a análise arqueológica se diferencia de suas descrições Não é fácil caracterizar uma disciplina como a história das idéias objeto incerto fronteiras maldesenhadas métodos A Arqueologia do Saber 155 tomados de empréstimo aqui e ali procedimento sem retitude e sem fixidez Parece no entanto que podemos atribuirlhe dois papéis Por um lado ela conta a história dos elementos secundários e das margens Não a história das ciências mas a dos conhecimentos imperfeitos malfundamentados que jamais puderam atingir ao longo de uma vida obstinada a forma da cientificidade história da alquimia e não da química dos espíritos animais ou da frenologia e não da fisiologia história dos temas atomísticos e não da física História das filosofias obscuras que perseguem as literaturas a arte as ciências o direito a moral e até a vida cotidiana dos homens história dos tematismos seculares que jamais se cristalizaram em um sistema rigoroso e individual mas que formaram a filosofia espontânea dos que não filosofavam História não da literatura mas do rumor lateral da escrita cotidiana e tão rapidamente apagada que nunca adquire o status da obra ou que imediatamente o perde análise das subliteraturas dos almanaques das revistas e dos jornais dos sucessos fugidios dos autores inconfessáveis Assim definida mas vêse de imediato o quanto é difícil fixarlhe limites precisos a história das idéias se dirige a todo esse insidioso pensamento a todo esse jogo de representações que correm anonimamente entre os homens no interstício dos grandes monumentos discursivos faz aparecer o solo friável sobre o qual repousam Tratase da disciplina das linguagens flutuantes das obras informes dos temas não ligados Análise das opiniões mais que do saber dos erros mais que da verdade não das formas do pensamento mas dos tipos de mentalidade Mas por outro lado a história das idéias se atribui a tarefa de penetrar as disciplinas existentes tratálas e reinterpretálas Constitui pois mais do que um domínio marginal um estilo de análise um enfoque Ela se encarrega do campo histórico das ciências das literaturas e das filosofias mas aí descreve os conhecimentos que serviram de fundo empírico e não refletido para formalizações ulteriores tenta reencontrar a experiência imediata que o discurso transcreve segue a gênese de sistemas e obras a partir das representações recebidas ou adquiridas Mostra em compensação como pouco a pouco as grandes figuras assim constituídas se decompõem como os temas se desatam seguem sua vida isolada caem em desuso ou se recompõem de um novo modo A história das 156 Michel Foucault idéias é então a disciplina dos começos e dos fins a descrição das continuidades obscuras e dos retornos a reconstituição dos desenvolvimentos na forma linear da história Mas ela pode também e dessa mesma forma descrever de um domínio a outro todo o jogo das trocas e dos intermediários mostra como o saber científico se difunde dá lugar a conceitos filosóficos e toma forma eventualmente em obras literárias mostra como problemas noções temas podem emigrar do campo filosófico em que foram formulados para discursos científicos ou políticos relaciona obras com instituições hábitos ou comportamentos sociais técnicas necessidades e práticas mudas tenta fazer reviverem as formas mais elaboradas de discurso na paisagem concreta no ambiente de crescimento e de desenvolvimento que as viu nascerem Tornase então a disciplina das interferências a descrição dos círculos concêntricos que envolvem as obras as sublinham as unem umas às outras e as inserem em tudo que não é obra Vêse bem como os dois papéis da história das idéias se articulam um com o outro Em sua forma mais geral podemos dizer que ela descreve sem cessar e em todas as direções em que se efetua a passagem da nãofilosofia à filosofia da nãocientificidade à ciência da nãoliteratura à própria obra Ela é a análise dos nascimentos surdos das correspondências longínquas das permanências que se obstinam sob mudanças aparentes das lentas formações que se beneficiam de um semnúmero de cumplicidades cegas dessas figuras globais que se ligam pouco a pouco e de repente se condensam na agudeza da obra Gênese continuidade totalização eis os grandes temas da história das idéias através dos quais ela se liga a uma certa forma hoje tradicional de análise histórica É normal nessas condições que qualquer pessoa que ainda tem da história de seus métodos de suas exigências e de suas possibilidades essa idéia de agora em diante um pouco enfraquecida não possa conceber que se abandone uma disciplina como a história das idéias ao contrário considera que qualquer outra forma de análises dos discursos é uma traição à própria história Ora a descrição arqueológica é precisamente abandono da história das idéias recusa sistemática de seus postulados e de seus procedimentos tentativa de fazer uma história inteiramente diferente daquilo que os homens disseram O fato de que alguns não reconheçam nessa A Arqueologia do Saber 157 tentativa a história de sua infância que a lamentem e que invoquem numa época que não é mais feita para ela a grande sombra de outrora prova certamente o extremo de sua fidelidade Mal tal zelo conservador torname mais firme em meu propósito e me dá certeza do que quis fazer Entre análise arqueológica e história das idéias os pontos de separação são numerosos Tentarei estabelecer em seguida quatro diferenças que me parecem capitais a propósito da determinação de novidade a propósito da análise das contradições a propósito das descrições comparativas a propósito enfim da demarcação das transformações Espero que se possa compreender nesses diferentes pontos as particularidades da análise arqueológica e que se possa eventualmente medir sua capacidade descritiva Que baste no momento indicar alguns princípios 1 A arqueologia busca definir não os pensamentos as representações as imagens os temas as obsessões que se ocultam ou se manifestam nos discursos mas os próprios discursos enquanto práticas que obedecem a regras Ela não trata o discurso como documento como signo de outra coisa como elemento que deveria ser transparente mas cuja opacidade importuna é preciso atravessar frequentemente para reencontrar enfim aí onde se mantém à parte a profundidade do essencial ela se dirige ao discurso em seu volume próprio na qualidade de monumento Não se trata de uma disciplina interpretativa não busca um outro discurso mais oculto Recusase a ser alegórica 2 A arqueologia não procura encontrar a transição contínua e insensível que liga em declive suave os discursos ao que os precede envolve ou segue Não espreita o momento em que a partir do que ainda não eram tornaramse o que são nem tampouco o momento em que desfazendo a solidez de sua figura vão perder pouco a pouco sua identidade O problema dela é pelo contrário definir os discursos em sua especificidade mostrar em que sentido o jogo das regras que utilizam é irredutível a qualquer outro seguilos ao longo de suas arestas exteriores para melhor salientálos Ela não vai em progressão lenta do campo confuso da opinião à singularidade do sistema ou à estabilidade definitiva da ciência não é 158 Michel Foucault uma doxologia mas uma análise diferencial das modalidades de discurso 3 A arqueologia não é ordenada pela figura soberana da obra não busca compreender o momento em que esta se destacou do horizonte anônimo Não quer reencontrar o ponto enigmático em que o individual e o social se invertem um no outro Ela não é nem psicologia nem sociologia nem num sentido mais geral antropologia da criação A obra não é para ela um recorte pertinente mesmo se se tratasse de recolocála em seu contexto global ou na rede das causalidades que a sustentam Ela define tipos e regras de práticas discursivas que atravessam obras individuais às vezes as comandam inteiramente e as dominam sem que nada lhes escape mas às vezes também só lhes regem uma parte A instância do sujeito criador enquanto razão de ser de uma obra e princípio de sua unidade lhe é estranha 4 Finalmente a arqueologia não procura reconstituir o que pôde ser pensado desejado visado experimentado almejado pelos homens no próprio instante em que proferiam o discurso ela não se propõe a recolher esse núcleo fugidio onde autor e obra trocam de identidade onde o pensamento permanece ainda o mais próximo de si na forma ainda não alterada do mesmo e onde a linguagem não se desenvolveu ainda na dispersão espacial e sucessiva do discurso Em outras palavras não tenta repetir o que foi dito reencontrandoo em sua própria identidade Não pretende se apagar na modéstia ambígua de uma leitura que deixaria voltar em sua pureza a luz longínqua precária quase extinta da origem Não é nada além e nada diferente de uma reescrita isto é na forma mantida da exterioridade uma transformação regulada do que já foi escrito Não é o retorno ao próprio segredo da origem é a descrição sistemática de um discursoobjeto 2 O ORIGINAL E O REGULAR Em geral a história das idéias trata o campo dos discursos como um domínio de dois valores todo elemento que aí é demarcado pode ser caracterizado como antigo ou novo inédito ou repetido tradicional ou original semelhante a um tipo médio ou desviante Podemse pois distinguir duas categorias de formulações aquelas valorizadas e relativamente pouco numerosas que aparecem pela primeira vez que não têm antecedentes semelhantes que vão eventualmente servir de modelo às outras e que nesse caso merecem passar por criações e aquelas banais cotidianas maciças que não são responsáveis por si mesmas e que derivam às vezes para repetilo textualmente do que já foi dito A cada um dos dois grupos a história das idéias atribui um status além disso não os submete à mesma análise Descrevendo o primeiro ela conta a história das invenções das mudanças das metamorfoses mostra como a verdade se subtraiu ao erro como a consciência despertou de seus sonos sucessivos como formas novas se ergueram alternadamente para nos dar a paisagem que é agora a nossa cabe ao historiador reencontrar a partir desses pontos isolados dessas rupturas sucessivas a linha contínua de uma evolução O outro grupo ao contrário manifesta a história como inércia e marasmo como lento acúmulo do passado e sedimentação silenciosa das coisas ditas 160 Michel Foucault os enunciados devem aí ser tratados em massa e segundo o que têm em comum sua singularidade de acontecimento pode ser neutralizada perdem importância também a identidade de seu autor o momento e o lugar de seu aparecimento em compensação é sua extensão que deve ser medida até onde e até quando eles se repetem por que canais se difundem em que grupos circulam que horizonte geral delineiam para o pensamento dos homens que limites lhe impõem e caracterizando uma época como permitem distinguila das outras Descrevese então uma série de figuras globais No primeiro caso a história das idéias descreve uma sucessão de acontecimentos de pensamento no segundo temos camadas ininterruptas de efeitos no primeiro reconstituímos a emergência das verdades ou das formas no segundo restabelecemos as solidariedades esquecidas e remetemos os discursos à sua relatividade É verdade que entre as duas instâncias a história das idéias não deixa de determinar relações jamais se encontra uma das análises em estado puro ela descreve os conflitos entre o antigo e o novo a resistência do adquirido a repressão que este exerce sobre o que nunca tinha sido dito os recobrimentos pelos quais o mascara o esquecimento a que às vezes consegue condenálo mas descreve também as facilitações que obscuramente e de longe preparam os discursos futuros descreve a repercussão das descobertas a rapidez e a extensão de sua difusão os lentos processos de substituição ou os bruscos abalos que transtornam a linguagem familiar descreve a integração do novo no campo já estruturado do adquirido a queda progressiva do original no tradicional ou ainda os reaparecimentos do já dito e a nova revelação do originário Mas esse entrecruzamento não a impede de manter sempre uma análise bipolar do antigo e do novo análise que reinveste no elemento empírico da história e em cada um de seus momentos a problemática da origem em cada obra em cada livro no menor texto o problema é reencontrar o ponto de ruptura estabelecer com a maior precisão possível a divisão entre a densidade implícita do já aí a fidelidade talvez involuntária à opinião adquirida a lei das fatalidades discursivas e a vivacidade da criação o salto na irredutível diferença Essa descrição das originalidades se bem que pareça evidente coloca dois problemas metodológicos bem difíceis o A Arqueologia do Saber 161 da semelhança e o da sequência Supõe na verdade que se possa estabelecer uma espécie de grande série única em que cada formulação seja datada segundo marcos cronológicos homogêneos Mas se olharmos mais de perto será que foi da mesma forma e na mesma linha temporal que Grimm com sua lei das mutações vocálicas precedeu Bopp que a citou a usou lhe deu aplicações e lhe impôs ajustamentos e que Coeurdoux e AnquetilDuperron constatando analogias entre o grego e o sânscrito anteciparam a definição das línguas indoeuropéias e precederam os fundadores da gramática comparativa Será na mesma série e segundo o mesmo modo de anterioridade que Saussure é precedido por Peirce e sua semiótica por Arnauld e Lancelot com a análise clássica do signo pelos estóicos e a teoria do significante A precedência não é um dado irredutível e primeiro não pode desempenhar o papel de medida absoluta que permitiria avaliar qualquer discurso e distinguir o original do repetitivo Não basta a demarcação dos antecedentes para determinar uma ordem discursiva ela se subordina ao contrário ao discurso que se analisa ao nível que se escolhe à escala que se estabelece Estendendo o discurso ao longo de um calendário e dando uma data a cada um de seus elementos não se obtém a hierarquia definitiva das precedências e das originalidades esta só se refere aos sistemas dos discursos que tenta valorizar Quanto à semelhança entre duas ou várias formulações que se seguem ela coloca por sua vez toda uma série de problemas Em que sentido e segundo que critérios podese afirmar isto já foi dito a mesma coisa já se encontra em tal texto esta proposição é muito próxima daquela etc O que é identidade parcial ou total na ordem do discurso Sabemos que o fato de duas enunciações serem exatamente idênticas formadas pelas mesmas palavras usadas no mesmo sentido não autoriza a que as identifiquemos de maneira absoluta Ainda que encontrássemos em Diderot e Lamarck em Benoit de Maillet e Darwin a mesma formulação do princípio evolutivo não poderíamos considerar que se tratasse de um único e mesmo acontecimento discursivo que teria sido submetido através do tempo a uma série de repetições Exaustiva a identidade não é um critério ainda mais quando é parcial quando as palavras não são usadas cada vez no mesmo sentido ou quando um mesmo núcleo significativo é apreendido 162 Michel Foucault por meio de palavras diferentes até que ponto se pode afirmar que é o mesmo tema organicista que se revela através dos discursos e dos vocabulários tão diferentes de Buffon de Jussieu e de Cuvier E inversamente podese dizer que a mesma palavra organização abrange o mesmo sentido em Daubenton Blumenbach e Geoffroy SaintHilaire De modo geral é o mesmo tipo de semelhança que se identifica entre Cuvier e Darwin e entre o mesmo Cuvier e Lineu ou Aristóteles Não há semelhança em si imediatamente reconhecível entre as formulações sua analogia é um efeito do campo discursivo em que a delimitamos Não é legítimo pois indagar à queimaroupa aos textos que estudamos sobre seu valor de originalidade e sobre os fragmentos de nobreza que se medem aqui na ausência de ancestrais A indagação só pode ter sentido em séries muito exatamente definidas em conjuntos cujos limites e domínio foram estabelecidos entre marcos que limitam campos discursivos suficientemente homogêneos1 Mas buscar no grande amontoado do já dito o texto que se assemelha antecipadamente a um texto ulterior procurar por toda parte para encontrar através da história o jogo das antecipações ou dos ecos remontar até os germens primeiros ou descer até os últimos vestígios ressaltar alternadamente a propósito de uma obra sua fidelidade às tradições ou sua parte de irredutível singularidade aumentar ou diminuir sua cota de originalidade dizer que os gramáticos de PortRoyal nada inventaram ou descobrir que Cuvier tinha mais predecessores do que se acreditava são passatempos simpáticos mas tardios de historiadores de calças curtas A descrição arqueológica se dirige às práticas discursivas a que os fatos de sucessão devemse referir se não quisermos estabelecêlos de maneira selvagem e ingênua isto é cm termos de mérito No nível em que se coloca a oposição originalidadebanalidade não é portanto pertinente entre uma formulação inicial e a frase que anos séculos mais tarde a repetiu mais ou menos exatamente ela não estabelece ne 1 Foi dessa maneira que M Canguilhem estabeleceu a sequência das proposições que de Willis a Prochaska permitiu a definição do reflexo A Arqueologia do Saber 163 nhuma hierarquia de valor não faz diferença radical Procura somente estabelecer a regularidade dos enunciados Regularidade não se opõe aqui à irregularidade que nas margens da opinião corrente ou dos textos mais frequentes caracterizaria o enunciado desviante anormal profético retardatário genial ou patológico designa para qualquer performance verbal extraordinária ou banal única em seu gênero ou mil vezes repetida o conjunto das condições nas quais se exerce a função enunciativa que assegura e define sua existência A regularidade assim entendida não caracteriza uma certa posição central entre os limites de uma curva estatística não pode pois valer como índice de frequência ou de probabilidade especifica um campo efetivo de aparecimento Todo enunciado é portador de uma certa regularidade e não pode dela ser dissociado Não se deve portanto opor a regularidade de um enunciado à irregularidade de outro que seria menos esperado mais singular mais rico em inovações mas sim a outras regularidades que caracterizam outros enunciados A arqueologia não está à procura das invenções e permanece insensível ao momento emocionante admito em que pela primeira vez alguém esteve certo de uma verdade ela não tenta restituir a luz dessas manhãs festivas o que não quer dizer que se dirija aos fenômenos médios da opinião pública e à palidez do que todo mundo em uma certa época podia repetir O que busca nos textos de Lineu ou de Buffon de Petty ou de Ricardo de Pinel ou de Bichat não é estabelecer a lista dos santos fundadores é revelar a regularidade de uma prática discursiva que é exercida do mesmo modo por todos os seus sucessores menos originais ou por alguns de seus predecessores prática que dá conta na própria obra não apenas das afirmações mais originais e com as quais ninguém sonhara antes deles mas das que eles retomaram até recopiaram de seus predecessores Uma descoberta não é menos regular do ponto de vista enunciativo do que o texto que a repete e a difunde a regularidade não é menos operante nem menos eficaz e ativa em uma banalidade do que em uma formação insólita Em tal descrição não se pode admitir uma diferença de natureza entre enunciados criadores que fazem aparecer alguma coisa nova que emitem uma informação inédita e que são de certa forma ativos e enunciados imitativos que recebem e repetem a informação permanecem por assim dizer 164 Michel Foucault passivos O campo dos enunciados não é um conjunto de plagas inertes escandido por momentos fecundos é um domínio inteiramente ativo Essa análise das regularidades enunciativas se abre em diversas direções que talvez devam ser um dia exploradas com mais cuidado 1 Uma certa forma de regularidade caracteriza pois um conjunto de enunciados sem que seja necessário ou possível estabelecer uma diferença entre o que seria novo e o que não seria Mas as regularidades voltaremos a isso em seguida não se apresentam de maneira definitiva não é a mesma regularidade que se encontra atuante em Tournefort e Darwin ou em Lancelot e Saussure em Petty e em Kaynes Temos portanto campos homogêneos de regularidades enunciativas eles caracterizam uma formação discursiva mas tais campos são diferentes entre si Ora não é necessário que a passagem a um novo campo de regularidades enunciativas seja acompanhada de mudanças correspondentes em todos os outros níveis dos discursos Podemos encontrar performances verbais que são idênticas do ponto de vista da gramática vocabulário sintaxe e de uma maneira geral a língua que são igualmente idênticas do ponto de vista da lógica estrutura proposicional ou sistema dedutivo no qual se encontra situada mas que são enunciativamenie diferentes Assim a formulação da relação quantitativa entre os preços e a moeda em circulação pode ser efetivada com as mesmas palavras ou palavras sinônimas e ser obtida pelo mesmo raciocínio ela não é enunciativamenie idêntica em Gresham ou Locke e nos marginalistas do século XIX não pertence em nenhum caso ao mesmo sistema de formação dos objetos e dos conceitos É preciso pois distinguir entre analogia linguística ou tradutibilidade identidade lógica ou equivalência e homogeneidade enunciativa São dessas homogeneidades e exclusivamente que a arqueologia se encarrega Ela pode ver surgir uma prática discursiva nova através das formulações verbais que permanecem linguisticamente análogas ou logicamente equivalentes retomando às vezes palavra por palavra a velha teoria da fraseatribuição e do verboligação os gramáticos de PortRoyal abriram uma regularidade enunciativa cuja especificidade a arqueologia deve descrever Inversamente ela A Arqueologia do Saber 165 pode negligenciar diferenças de vocabulário pode passar sobre campos semânticos ou organizações dedutivas diferentes se for capaz de reconhecer em ambos e apesar da heterogeneidade uma certa regularidade enunciativa desse ponto de vista a teoria da linguagem de ação a pesquisa sobre a origem das línguas o estabelecimento das raízes primitivas tais como as encontramos no século XVIII não são novos em relação às análises lógicas feitas por Lancelot Vemos desenharse assim um certo número de desligamentos e de articulações Não se pode mais dizer que uma descoberta a formulação de um princípio geral ou a definição de um projeto inaugura e de forma maciça uma fase nova na história do discurso Não se deve mais procurar o ponto de origem absoluta ou de revolução total a partir do qual tudo se organiza tudo se torna possível e necessário tudo se extingue para recomeçar Temos de tratar de acontecimentos de tipos e de níveis diferentes tomados em tramas históricas distintas uma homogeneidade enunciativa que se instaura não implica de modo algum que de agora em diante e por décadas ou séculos os homens vão dizer e pensar a mesma coisa não implica tampouco a definição explícita ou não de um certo número de princípios de que todo o resto resultaria como consequência As homogeneidades e heterogeneidades enunciativas se entrecruzam com continuidades e mudanças linguísticas com identidades e diferenças lógicas sem que umas e outras caminhem no mesmo ritmo ou se dominem necessariamente Entretanto deve existir entre elas um certo número de relações e interdependências cujo domínio sem dúvida muito complexo deverá ser inventariado 2 Outra direção de pesquisa as hierarquias internas às regularidades enunciativas Vimos que todo enunciado se relacionava a uma certa regularidade que nada por conseguinte podia ser considerado como pura e simples criação ou maravilhosa desordem do gênio Mas vimos também que nenhum enunciado podia ser considerado como inativo e valer como sombra ou decalque pouco reais de um enunciado inicial Todo o campo enunciativo é ao mesmo tempo regular e vigilante é insone o menor enunciado o mais discreto ou banal coloca em prática todo o jogo das regras segundo as quais são formados seu objeto sua modalidade os conceitos 166 Michel Foucault que utiliza e a estratégia de que faz parte As regras jamais se apresentam nas formulações atravessamnas e constituem para elas um espaço de coexistência não podemos pois encontrar o enunciado singular que as articularia Entretanto certos grupos de enunciados empregam essas regras em sua forma mais geral e mais largamente aplicável a partir deles podemos ver como outros objetos outros conceitos outras modalidades enunciativas ou outras escolhas estratégicas podem ser formados a partir de regras menos gerais e cujo domínio de aplicação é mais específico Podese assim descrever uma árvore de derivação enunciativa em sua base os enunciados que empregam as regras de formação em sua extensão mais ampla no alto e depois de um certo número de ramificações os enunciados que empregam a mesma regularidade porém mais sutilmente articulada mais bem delimitada e localizada em sua extensão A arqueologia pode assim e eis um de seus temas principais constituir a árvore de derivação de um discurso por exemplo o da história natural Ela colocará junto à raiz como enunciados reitores os que se referem à definição das estruturas observáveis e do campo de objetos possíveis os que prescrevem as formas de descrição e os códigos perceptivos de que ele pode servirse os que fazem aparecerem as possibilidades mais gerais de caracterização e abrem assim todo um domínio de conceitos a ser construídos enfim os que constituindo uma escolha estratégica dão lugar ao maior número de opções ulteriores Na extremidade dos ramos ou pelo menos no curso de todo um florescimento ela encontrará descobertas como a das séries fósseis transformações conceituais como a nova definição do gênero emergências de noções inéditas como a de mamíferos ou de organismo atualizações de técnicas princípios organizadores das coleções métodos de classificação e de nomenclatura Essa derivação a partir dos enunciados reitores não pode ser confundida com uma dedução que se efetuaria a partir de axiomas não deve tampouco ser assimilada à germinação de uma idéia geral ou de um núcleo filosófico cujas significações se desenvolveriam pouco a pouco em experiências ou conceitualizações precisas finalmente não deve ser compreendida como uma gênese psicológica a partir de uma descoberta que pouco a pouco desenvolveria suas consequências e ampliaria suas possibilidades Ela é diferente de todos esses percursos e deve ser A Arqueologia do Saber 1 67 descrita em sua autonomia Podemse assim descrever as derivações arqueológicas da história natural sem começar por seus axiomas indemonstráveis ou seus temas fundamentais por exemplo a continuidade da natureza e sem tomar como ponto de partida e como fio condutor as primeiras descobertas ou as primeiras abordagens as de Tournefort antes das de Lineu as de Jonston antes das de Tournefort A ordem arqueológica não é nem a das sistematicidades nem a das sucessões cronológicas Mas vemos abrirse todo um domínio de questões possíveis Por mais que essas diferentes ordens sejam específicas e tenham cada uma sua autonomia deve haver entre elas relações e dependências Para certas formações discursivas a ordem arqueológica talvez não seja muito diferente da ordem sistemática já que em outros casos ela segue talvez o fio das sucessões cronológicas Tais paralelismos ao contrário das distorções que se encontram por aí merecem ser analisados É importante de qualquer forma não confundir os diversos ordenamentos não procurar em uma descoberta inicial ou na originalidade de uma formulação o princípio de onde podemos tudo deduzir e derivar não procurar em um princípio geral a lei das regularidades enunciativas ou das invenções individuais não pedir à derivação arqueológica que reproduza a ordem do tempo ou que revele um esquema dedutivo Nada seria mais falso do que ver na análise das formações discursivas uma tentativa de periodização totalitária a partir de um certo momento e por um certo tempo todo mundo pensaria da mesma forma apesar das diferenças de superfície diria a mesma coisa através de um vocabulário polimorfo e produziria uma espécie de grande discurso que se poderia percorrer indiferentemente em todos os sentidos Ao contrário a arqueologia descreve um nível de homogeneidade enunciativa que tem seu próprio recorte temporal e que não traz com ela todas as outras formas de identidade e de diferenças que podem ser demarcadas na linguagem e neste nível ela estabelece um ordenamento hierarquias e todo um florescimento que excluem uma sincronia maciça amorfa apresentada global e definitivamente Nas tão confusas unidades chamadas épocas ela faz surgirem com sua especificidade períodos enunciativos que se articulam no tempo dos conceitos nas fases teóricas nos estágios de formalização e nas etapas de evolução linguística mas sem se confundir com eles 3 AS CONTRADIÇÕES A história das idéias normalmente dá um crédito de coerência ao discurso que ela analisa Será que lhe ocorre constatar uma irregularidade no uso das palavras diversas proposições incompatíveis um jogo de significações que não se ajustam umas às outras conceitos que juntos não podem ser sistematizados Ela se encarrega de encontrar em um nível mais ou menos profundo um princípio de coesão que organiza o discurso e lhe restitui uma unidade oculta Essa lei de coerência é uma regra heurística uma obrigação de procedimento quase uma coação moral da pesquisa não multiplicar inutilmente as contradições não se deixar prender às pequenas diferenças não atribuir peso demasiado às transformações aos arrependimentos aos retornos ao passado às polêmicas não supor que o discurso dos homens esteja continuamente minado a partir do interior pela contradição de seus desejos das influências que sofreram ou das condições em que vivem mas admitir que se eles falam e dialogam é muito mais para superar essas contradições e encontrar o ponto a partir do qual poderão ser dominadas Porém essa mesma coerência é também o resultado da pesquisa ela define as unidades terminais que arrematam a análise descobre a organização interna de um texto a forma de desenvolvimento de uma obra individual ou o ponto de encontro de discursos A Arqueologia do Saber 169 diferentes Somos obrigados a supôla para reconstituíla e só estaremos seguros de havêla encontrado se a tivermos perseguido de bem longe e por muito tempo Ela aparece como um ótimo o maior número possível de contradições resolvidas pelos meios mais simples Ora os meios empregados são muito numerosos e por isso mesmo as coerências encontradas podem ser bem diferentes Analisando a verdade das proposições e as relações que as unem podemos definir um campo de nãocontradição lógica descobriremos então uma sistematicidade remontaremos do corpo visível das frases à pura arquitetura ideal que as ambiguidades da gramática a sobrecarga significante das palavras mascararam sem dúvida tanto quanto traduziram Mas podemos inversamente seguindo o fio das analogias e dos símbolos reencontrar uma temática mais imaginária que discursiva mais afetiva que racional e menos próxima do conceito que do desejo sua força anima as figuras mais opostas para entretanto fundilas logo em uma unidade lentamente transformável o que se descobre então é uma continuidade plástica é o percurso de um sentido que toma forma em representações imagens e metáforas diversas Temáticas ou sistemáticas tais coerências podem ser explícitas ou não podemos procurálas no nível de representações de que tinha consciência o sujeito falante mas que por razões de circunstância ou por uma incapacidade ligada à própria forma de sua linguagem seu discurso não foi capaz de exprimir podemos procurálas também em estruturas que teriam coagido o autor mais do que este as teria construído e que lhe teriam imposto sem que disso ele se desse conta postulados esquemas operatórios regras linguísticas um conjunto de afirmações e de crenças fundamentais tipos de imagens ou toda uma lógica da alucinação Enfim pode ser o caso de coerências que estabelecemos no nível de um indivíduo de sua biografia ou das circunstâncias singulares de seu discurso mas que podemos também estabelecer segundo marcos mais amplos e darlhes as dimensões coletivas e diacrônicas de uma época de uma forma geral de consciência de um tipo de sociedade de um conjunto de tradições de uma paisagem imaginária comum a toda uma cultura Sob todas essas formas a coerência assim descoberta desempenha sempre o mesmo papel mostrar que as contradições imediatamente 170 Michel Foucault visíveis não são mais que um reflexo de superfície e que é preciso reconduzir a um foco único esse jogo de fragmentos dispersos A contradição é a ilusão de uma unidade que se oculta ou que é ocultada só tem seu lugar na defasagem existente entre a consciência e o inconsciente o pensamento e o texto a idealidade e o corpo contingente da expressão De qualquer forma a análise deve suprimir sempre que possa a contradição Ao fim desse trabalho permanecem somente contradições residuais acidentes faltas falhas ou surge ao contrário como se toda a análise a isso tivesse conduzido em surdina e apesar dela a contradição fundamental emprego na própria origem do sistema de postulados incompatíveis entrecruzamento de influências que não se podem conciliar difração primeira do desejo conflito econômico e político que opõe uma sociedade a si mesma tudo isso ao invés de aparecer como elementos superficiais que é preciso reduzir se revela finalmente como princípio organizador como lei fundadora e secreta que justifica todas as contradições menores e lhes dá um fundamento sólido modelo em suma de todas as outras oposições Tal contradição longe de ser aparência ou acidente do discurso longe de ser aquilo de que é preciso libertálo para que ele libere enfim sua verdade aberta constitui a própria lei de sua existência é a partir dela que ele emerge é ao mesmo tempo para traduzila e superála que ele se põe a falar é para fugir dela enquanto ela renasce sem cessar através dele que ele continua e recomeça indefinidamente é por ela estar sempre aquém dele e por ele jamais poder contornála inteiramente que ele muda se metamorfoseia escapa de si mesmo em sua própria continuidade A contradição funciona então ao longo do discurso como o princípio de sua historicidade A história das idéias reconhece pois dois níveis de contradições o das aparências que se resolve na unidade profunda do discurso e o dos fundamentos que dá lugar ao próprio discurso Em relação ao primeiro nível de contradição o discurso é a figura ideal que se deve separar de sua presença acidental de seu corpo demasiado visível em relação ao segundo o discurso é a figura empírica que as contradições podem assumir e cuja aparente coesão devemos destruir para reencontrálas afinal em sua irrupção e violência O discurso é o caminho de A Arqueologia do Saber 171 uma contradição a outra se dá lugar às que vemos é que obedece à que oculta Analisar o discurso é fazer com que desapareçam e reapareçam as contradições é mostrar o jogo que nele elas desempenham é manifestar como ele pode exprimilas darlhes corpo ou emprestarlhes uma fugidia aparência Para a análise arqueológica as contradições não são nem aparências a transpor nem princípios secretos que seria preciso destacar São objetos a ser descritos por si mesmos sem que se procure saber de que ponto de vista se podem dissipar ou em que nível se radicalizam e se transformam de efeitos em causas Eis um exemplo simples e diversas vezes aqui mesmo citado o princípio fixista de Lineu foi contestado no século XVIII não tanto pela descoberta da Peloria que mudou somente suas modalidades de aplicação mas por um certo número de afirmações evolucionistas que se pode encontrar em Buffon Diderot Bordeu Maillet e muitos outros A análise arqueológica não consiste em mostrar que sob tal oposição e em um nível mais essencial todos aceitavam um certo número de teses fundamentais a continuidade da natureza e sua plenitude a correlação entre as formas recentes e o clima a passagem quase insensível do nãovivo ao vivo não consiste tampouco em mostrar que tal oposição reflete no domínio particular da história natural um conflito mais geral que divide todo o saber e todo o pensamento do século XVIII conflito entre o tema de uma criação ordenada adquirida de forma definitiva desenvolvida sem segredo irredutível e o tema de uma natureza abundante dotada de poderes enigmáticos desenrolandose pouco a pouco na história e tumultuando todas as ordens espaciais segundo o grande impulso do tempo A arqueologia tenta mostrar como as duas afirmações a fixista e a evolucionista têm seu lugar comum em uma certa descrição das espécies e dos gêneros essa descrição toma por objeto a estrutura visível dos órgãos isto é sua forma seu tamanho seu número e sua disposição no espaço e pode limitálo de duas maneiras no conjunto do organismo ou em alguns de seus elementos determinados seja por sua importância seja por sua comodidade taxionômica revelase então no segundo caso um quadro regular dotado de um número de casos definidos constituindo de alguma forma o programa de toda criação possível de modo que atual ainda 172 Michel Foucault futuro ou já desaparecido o ordenamento das espécies e dos gêneros está definitivamente fixado e no primeiro caso grupos de parentesco que permanecem indefinidos e abertos que estão separados uns dos outros e que toleram em número indeterminado novas formas tão próximas quanto se queira das formas preexistentes Fazendo assim com que a contradição entre duas teses derive de um certo domínio de objetos de suas delimitações e de seu esquadrinhamento não a resolvemos não descobrimos o ponto de conciliação Mas não a transferimos tampouco a um nível mais fundamental definimos o lugar em que se dá fazemos aparecer a ramificação da alternativa localizamos a divergência e o lugar em que os dois discursos se justapõem A teoria da estrutura não é um postulado comum um fundo de crença geral partilhado por Lineu e Buffon uma sólida e fundamental afirmação que lançaria para o nível de um debate acessório o conflito do evolucionismo e do fixismo é o princípio de sua incompatibilidade a lei que rege sua derivação e sua coexistência Tomando as contradições como objetos a ser descritos a análise arqueológica não tenta descobrir em seu lugar uma forma ou uma temática comuns e sim determinar a medida e a forma de sua variação Em relação a uma história das idéias que desejaria fundir as contradições na unidade seminoturna de uma figura global ou transmutálas em um princípio geral abstrato e uniforme de interpretação ou de explicação a arqueologia descreve os diferentes espaços de dissensão Ela desiste pois de tratar a contradição como uma função geral que se exerce do mesmo modo em todos os níveis do discurso e que a análise deveria suprimir inteiramente ou reconduzir a uma forma primeira e constitutiva o grande jogo da contradição presente sob mil facetas depois suprimida afinal reconstituída no conflito maior em que ela culmina é substituído pela análise dos diferentes tipos de contradição diferentes níveis segundo os quais se pode demarcála diferentes funções que ela pode exercer Tratemos inicialmente dos diferentes tipos Certas contradições localizamse apenas no plano das proposições ou das assertivas sem afetar em nada o regime enunciativo que as tornou possíveis assim no século XVIII a tese do caráter animal dos fósseis opõese à tese mais tradicional de sua natureza mineral as consequências dessas duas teses A Arqueologia do Saber 173 certamente são numerosas e vão longe mas podemos mostrar que elas nascem na mesma formação discursiva no mesmo ponto e segundo as mesmas condições de exercício da função enunciativa são contradições arqueologicamente derivadas e que constituem um estado terminal Outras ao contrário ultrapassam os limites de uma formação discursiva e opõem teses que não se referem às mesmas condições de enunciação assim o fixismo de Lineu é contestado pelo evolucionismo de Darwin mas somente na medida em que se neutraliza a diferença entre a história natural a que pertence o primeiro e a biologia a que se relaciona o segundo Essas são contradições extrínsecas que remetem à oposição entre formações discursivas distintas Para a descrição arqueológica sem levar em conta aqui idas e vindas possíveis do procedimento essa oposição constitui o terminus a quo enquanto as contradições derivadas constituem o terminus ad quem da análise Entre esses dois extremos a descrição arqueológica descreve o que se poderia chamar as contradições intrínsecas as que se desenrolam na própria formação discursiva e que nascidas em um ponto do sistema das formações fazem surgir subsistemas para nos atermos ao exemplo da história natural no século XVIII a contradição que opõe as análises metódicas e as análises sistemáticas A oposição aqui não é terminal não são duas proposições contraditórias a propósito do mesmo objeto nem duas utilizações incompatíveis do mesmo conceito mas duas maneiras de formar enunciados caracterizados uns e outros por certos objetos certas posições de subjetividade certos conceitos e certas escolhas estratégicas Entretanto esses sistemas não são a origem podese mostrar em que ponto derivam ambos de uma única e mesma positividade que é a da história natural Essas oposições intrínsecas é que são pertinentes para a análise arqueológica Tratemos em seguida dos diferentes níveis Uma contradição arqueologicamente intrínseca não é um fato puro e simples que bastaria constatar como um princípio ou explicar como um efeito É um fenômeno complexo que se reparte em diferentes planos da formação discursiva Assim na história natural sistemática e na história natural metódica que não deixaram de se opor uma à outra durante toda uma parte do século XVIII podese reconhecer uma inadequação dos objetos uma descreve o aspecto geral da planta a outra algumas 174 Michel Foucault variáveis determinadas de antemão uma descreve a totalidade da planta ou pelo menos suas partes mais importantes a outra um certo número de elementos escolhidos arbitrariamente por sua comodidade taxionômica ora diferentes estados de crescimento e de maturidade das plantas são considerados ora o estudo se limita a um momento e a um estado de visibilidade ótima uma divergência das modalidades enunciativas no caso da análise sistemática das plantas aplicase um código perceptivo e linguístico rigoroso e segundo uma escala constante na descrição metódica os códigos são relativamente livres e as escalas de demarcação podem oscilar uma incompatibilidade dos conceitos nos sistemas o conceito de caráter genérico é uma marca arbitrária apesar de não enganosa para designar os gêneros nos métodos esse mesmo conceito deve abranger a definição real do gênero finalmente uma exclusão das opções teóricas a taxionomia sistemática torna possível o fixismo mesmo se ele estiver corrigido pela idéia de uma criação contínua no tempo exibindo pouco a pouco os elementos dos quadros ou pela idéia de catástrofes naturais que perturbaram sob nossa perspectiva atual a ordem linear das vizinhanças naturais mas ela exclui a possibilidade de uma transformação aceita pelo método sem implicála necessariamente Chegou a vez das funções Todas essas formas de oposição não desempenham o mesmo papel na prática discursiva não são de modo homogêneo obstáculos a ser superados ou princípio de crescimento Não basta de qualquer forma procurar nelas a causa do retardamento ou da aceleração da história não é a partir da forma vazia e geral da oposição que o tempo se introduz na verdade e na idealidade do discurso Essas oposições são sempre momentos funcionais determinados Algumas asseguram um desenvolvimento adicional do campo enunciativo abrem sequências de argumentação de experiência de verificações de inferências diversas permitem a determinação de objetos novos suscitam novas modalidades enunciativas definem novos conceitos ou modificam o campo de aplicação dos que já existem mas sem que nada seja modificado no sistema de positividade do discurso assim foram os debates entre os naturalistas do século XVIII a propósito da fronteira entre o mineral e o vegetal a propósito dos limites da vida ou da natureza e da origem dos fósseis tais processos A Arqueologia do Saber 175 aditivos podem permanecer abertos ou se encontrar fechados de uma maneira decisiva por uma demonstração que os refuta ou uma descoberta que os invalida Outras induzem uma reorganização do campo discursivo colocam a questão da tradução possível de um grupo de enunciados era outro do ponto de coerência que poderia articulálos de sua integração em um espaço mais geral assim a oposição sistemamétodo nos naturalistas do século XVIII induz uma série de tentativas de reescrevêlos ambos em uma única forma de descrição para dar ao método o rigor e a regularidade do sistema para fazer coincidir o arbitrário do sistema com as análises concretas do método não são novos objetos novos conceitos novas modalidades enunciativas que se somam linearmente aos antigos mas objetos de outro nível mais geral ou mais particular conceitos que têm outra estrutura e outro campo de aplicação enunciações de outro tipo sem que entretanto as regras de formação sejam modificadas Outras oposições têm um papel crítico põem em jogo a existência e a aceitabilidade da prática discursiva definem o ponto de sua impossibilidade efetiva e de seu recuo histórico assim a descrição na própria história natural das solidariedades orgânicas e das funções que se exercem através das variáveis anatômicas em condições definidas de existência não permite mais pelo menos a título de formação discursiva autônoma uma história natural que seja uma ciência taxionômica dos seres a partir de seus caracteres visíveis Uma formação discursiva não é pois o texto ideal contínuo e sem aspereza que corre sob a multiplicidade das contradições e as resolve na unidade calma de um pensamento coerente não é tampouco a superfície em que se vem refletir sob mil aspectos diferentes uma contradição que estaria sempre em segundo plano mas dominante É antes um espaço de dissensões múltiplas um conjunto de oposições diferentes cujos níveis e papéis devem ser descritos A análise arqueológica revela o primado de uma contradição que tem seu modelo na afirmação e na negação simultânea de uma única e mesma proposição mas não para nivelar todas as oposições em formas gerais de pensamento e pacificálas à força por meio de um a priori coator Tratase ao contrário de demarcar em uma prática discursiva determinada o ponto em que elas se constituem definir a forma que assumem as relações que 176 Michel Foucault estabelecem entre si e o domínio que comandara Em suma tratase de manter o discurso em suas asperezas múltiplas e de suprimir em consequência disso o tema de uma contradição uniformemente perdida e reencontrada resolvida e sempre renascente no elemento indiferenciado do logos 4 OS FATOS COMPARATIVOS A análise arqueológica individualiza e descreve formações discursivas isto é deve comparálas opôlas umas às outras na simultaneidade em que se apresentam distinguilas das que não têm o mesmo calendário relacionálas no que podem ter de específico com as práticas não discursivas que as envolvem e lhes servem de elemento geral Bem diferente ainda nisto das descrições epistemológicas ou arquitetônicas que analisam a estrutura interna de uma teoria o estudo arqueológico está sempre no plural ele se exerce em uma multiplicidade de registros percorre interstícios e desvios tem seu domínio no espaço em que as unidades se justapõem se separam fixam suas arestas se enfrentam desenham entre si espaços em branco Quando se dirige a um tipo singular de discurso o da psiquiatria na Histoire de la folie ou o da medicina em Naissance de la clinique é para estabelecer por comparação seus limites cronológicos é também para descrever ao mesmo tempo que eles e em correlação com eles um campo institucional um conjunto de acontecimentos de práticas de decisões políticas um encadeamento de processos econômicos em que figuram oscilações demográficas técnicas de assistência necessidades de mãodeobra níveis diferentes de desemprego etc Mas ele pode também por uma espécie de aproximação lateral como em Les mots et les choses utilizar 178 Michel Foucault várias positividades distintas cujos estados concomitantes são comparados durante um período determinado e confrontados com outros tipos de discurso que tomaram o seu lugar em uma determinada época Mas todas essas análises são muito diferentes das que são praticadas comumente 1 A comparação nesse caso é sempre limitada e regional Longe de querer fazer aparecer formas gerais a arqueologia procura desenhar configurações singulares Quando se confronta a gramática geral a análise das riquezas e a história natural na época clássica não é para reagrupar três manifestações particularmente carregadas de valor expressivo e estranhamente negligenciadas até aqui de uma mentalidade que seria geral nos séculos XVII e XVIII não é para reconstituir a partir de um modelo reduzido e de um domínio singular as formas de racionalidade que foram usadas em toda a ciência clássica não é nem mesmo para esclarecer o perfil menos conhecido de uma fisionomia cultural que acreditávamos familiar Não quisemos mostrar que os homens do século XVIII se interessavam de uma maneira geral mais pela ordem que pela história mais pela classificação que pelo devir mais pelos signos que pelos mecanismos de causalidade Tratavase de fazer aparecer um conjunto bem determinado de formações discursivas que têm entre si um certo número de relações descritíveis Essas relações não extrapolam para domínios limítrofes e não se pode transferilas gradualmente para o conjunto dos discursos contemporâneos nem e tanto mais para o que se chama comumente o espírito clássico estão intimamente alojadas na tríade estudada e só têm valor no domínio que se encontra especificado Esse conjunto interdiscursivo encontrase ele próprio e sob sua forma de grupo em relação com outros tipos de discurso de um lado com a análise da representação a teoria geral dos signos e a ideologia e de outro com a matemática a análise algébrica e a tentativa de instauração de uma mathesis São essas relações internas e externas que caracterizam a história natural a análise das riquezas e a gramática geral como um conjunto específico e permitem que nelas se reconheça uma configuração interdiscursiva Alguns diriam Por que não ter falado da cosmologia da fisiologia ou da exegese bíblica Será que a química antes de A Arqueologia do Saber 179 Lavoisier ou a matemática de Euler ou a história de Vico não seriam capazes se as utilizássemos de invalidar todas as análises que se encontram em Les mots et les choses Será que não há na inventiva riqueza do século XVIII muitas outras idéias que não entram no quadro rígido da arqueologia A estes à sua legítima impaciência a todos os contraexemplos que sei que poderiam fornecer responderei certamente Não só admito que minha análise seja limitada mas quero que seja assim e lho imponho Para mim um contraexemplo seria justamente a possibilidade de dizer todas as relações que vocês descreveram a propósito de três formações particulares todas as redes em que se articulam umas com as outras as teorias da atribuição da articulação da designação e da derivação toda essa taxionomia que repousa em uma caracterização descontínua e uma continuidade da ordem nós as encontramos uniformemente e do mesmo modo na geometria na mecânica racional na fisiologia dos humores e dos germens na crítica da história sagrada e na cristalografia nascente Isso seria com efeito a prova de que eu não teria descrito como pretendi fazêlo uma região de interpositividade teria caracterizado o espírito ou a ciência de uma época contra o que todo o meu trabalho se voltou As relações que descrevi valem para definir uma configuração particular não são signos para descrever em sua totalidade a fisionomia de uma cultura É a vez de os amigos da Weltanschauung ficarem decepcionados cuido que a descrição que encetei não seja do mesmo tipo da deles O que entre eles seria lacuna esquecimento erro é para mim exclusão deliberada e metódica Mas ainda se poderia dizer você confrontou a gramática geral com a história natural e a análise das riquezas Mas por que não com a história tal como era praticada na mesma época com a crítica bíblica com a retórica com a teoria das belasartes Não seria todo um outro campo de interpositividade que você teria descoberto Qual o privilégio do que você descreveu Privilégio algum é apenas um dos conjuntos descritíveis se na verdade retomássemos a gramática geral e se procurássemos definir suas relações com as disciplinas históricas e a crítica textual veríamos seguramente desenharse um sistema inteiramente diferente de relações e a descrição faria aparecer uma rede interdiscursiva que não se superporia à primeira mas a cruzaria em alguns de seus pontos 180 Michel Foucault Da mesma forma a taxionomia dos naturalistas poderia ser confrontada não tanto com a gramática e a economia mas com a fisiologia e a patologia ainda aí novas interpositividades se delineariam se compararmos as relações taxionomiagramáticaeconomia analisadas em Les mots et les choses e as relações taxionomiapatologia estudadas na Naissance de la clinique Tais redes não são pois em número previamente definido só a prova da análise pode mostrar se existem e quais existem isto é quais são suscetíveis de ser descritas Além disso cada formação discursiva não pertence de qualquer forma não pertence necessariamente a um único desses sistemas mas entra simultaneamente em diversos campos de relações em que não ocupa o mesmo lugar e não exerce a mesma função as relações taxionomiapatologia não são isomórficas às relações taxionomiagramática as relações gramáticaanálise das riquezas não são isomórficas às relações gramáticaexegese O horizonte ao qual se dirige a arqueologia não é pois uma ciência uma racionalidade uma mentalidade uma cultura é um emaranhado de interpositividades cujos limites e pontos de cruzamentos não podem ser fixados de imediato A arqueologia uma análise comparativa que não se destina a reduzir a diversidade dos discursos nem a delinear a unidade que deve totalizálos mas sim a repartir sua diversidade em figuras diferentes A comparação arqueológica não tem um efeito unificador mas multiplicador 2 Confrontando a gramática geral a história natural e a análise das riquezas nos séculos XVII e XVIII poderíamos perguntar que idéias tinham em comum nessa época linguistas naturalistas e teóricos da economia poderíamos perguntar que postulados implícitos supunham em comum apesar da diversidade de suas teorias a que princípios gerais obedeciam talvez silenciosamente poderíamos perguntar que influência a análise da linguagem exercera sobre a taxionomia ou que papel a idéia de uma natureza ordenada tinha representado na teoria da riqueza poderíamos estudar igualmente a difusão respectiva desses diferentes tipos de discurso o prestígio de cada um a valorização decorrente de sua antiguidade ou ao contrário de sua data recente e de seu maior rigor os canais de comunicação e as vias pelas quais se fizeram A Arqueologia do Saber 181 as trocas de informação poderíamos finalmente reunindo análises inteiramente tradicionais perguntar em que medida Rousseau havia transferido para a análise das línguas e sua origem seu saber e experiência de botânico que categorias comuns Turgot tinha aplicado à análise da moeda e à teoria da linguagem e da etimologia como a idéia de uma língua universal artificial e perfeita fora remanejada e utilizada por classificadores como Lineu e Adanson Todas essas questões certamente seriam legítimas pelo menos algumas delas Mas nem umas nem outras são pertinentes ao nível da arqueologia O que esta quer libertar é inicialmente mantidas a especificidade e a distância das diversas formações discursivas o jogo das analogias e das diferenças tais como aparecem no nível das regras de formação Isso implica cinco tarefas distintas a Mostrar como elementos discursivos inteiramente diferentes podem ser formados a partir de regras análogas os conceitos da gramática geral como os de verbo sujeito complemento raiz são formados a partir das mesmas disposições do campo enunciativo teorias da atribuição da articulação da designação da derivação que os conceitos entretanto bem diferentes e radicalmente heterogêneos da história natural e da economia mostrar entre formações diferentes os isomorfismos arqueológicos b Mostrar até que ponto essas regras se aplicam ou não do mesmo modo se encadeiam ou não da mesma ordem dispõemse ou não conforme o mesmo modelo nos diferentes tipos de discurso a gramática geral encadeia uma à outra e nesta mesma ordem a teoria da atribuição a da articulação a da designação e a da derivação a história natural e a análise das riquezas reagrupam as duas primeiras e as duas últimas mas as encadeiam em ordem inversa definir o modelo arqueológico de cada formação e Mostrar como conceitos perfeitamente diferentes como os de valor e de caráter específico ou de preço e de caráter genérico ocupam uma posição análoga na ramificação de seu sistema de positividade que são dotados assim de uma isotopia arqueológica ainda que seu domínio de aplicação seu grau de formalização sobretudo sua gênese histórica os tornem totalmente estranhos uns aos outros d Mostrar em compensação como uma única e mesma noção eventualmente designada por uma única e mesma palavra pode abranger dois elementos arqueologicamente distintos as noções de origem e de evolução não têm nem o mesmo papel nem o mesmo 182 Michel Foucault lugar nem a mesma formação no sistema de positividade da gramática geral e no da história natural indicar as defasagens arqueológicos e Mostrar finalmente como de uma positividade a outra podem ser estabelecidas relações de subordinação ou de complementaridade assim em relação à análise da riqueza e à das espécies a descrição da linguagem desempenha durante a época clássica um papel dominante na medida em que ela é a teoria dos signos de instituição que desdobram marcam e representam a própria representação estabelecer as correlações arqueológicas Em todas essas descrições nada se apóia na determinação de influências trocas informações transmitidas comunicações Não que se trate de negálas ou contestar que jamais possam ser objeto de uma descrição mas sim de tomar em relação a elas um recuo medido de deslocar o nível de ataque da análise de revelar o que as tornou possíveis de demarcar os pontos em que se pôde efetuar a projeção de um conceito sobre outro de fixar o isomorfismo que permitiu uma transferência de métodos ou de técnicas de mostrar as vizinhanças as simetrias ou as analogias que permitiram as generalizações em suma de descrever o campo de vetores e de receptividade diferencial de permeabilidade e de impermeabilidade que para o jogo das trocas foi uma condição de possibilidade histórica Uma configuração de interpositividade não é um grupo de disciplinas vizinhas não é somente um fenômeno observável de semelhança não é somente a relação global de diversos discursos com algum outro é a lei de suas comunicações Não se deve dizer pelo fato de Rousseau e outros terem refletido alternadamente sobre o ordenamento das espécies e a origem das línguas estabeleceramse relações e produziramse trocas entre taxionomia e gramática pelo fato de Turgot depois de Law e Petty ter desejado tratar a moeda como um signo a economia e a teoria da linguagem se aproximaram e sua história traz ainda a marca de tais tentativas Mas sim dizer se pelo menos se quer fazer uma descrição arqueológica que as disposições respectivas dessas três positividades eram tais que no nível das obras dos autores das existências individuais dos projetos e das tentativas podem ser encontradas trocas semelhantes 3 A arqueologia faz também com que apareçam relações entre as formações discursivas e domínios não discursivos instituições acontecimentos políticos práticas e processos A Arqueologia do Saber 183 econômicos Tais aproximações não têm por finalidade revelar grandes continuidades culturais ou isolar mecanismos de causalidade Diante de um conjunto de fatos enunciativos a arqueologia não se questiona o que pôde motiválo esta é a pesquisa dos contextos de formulação não busca tampouco encontrar o que neles se exprime tarefa de uma hermenêutica ela tenta determinar como as regras de formação de que depende e que caracterizam a positividade a que pertence podem estar ligadas a sistemas não discursivos procura definir formas específicas de articulação Consideremos o exemplo da medicina clínica cuja instauração no final do século XVIII é contemporânea de um certo número de acontecimentos políticos de fenômenos econômicos e de mudanças institucionais É fácil suspeitar pelo menos intuitivamente que existam laços entre esses fatos e a organização de uma medicina hospitalar Mas como analisálos Uma análise simbólica veria na organização da medicina clínica e nos processos históricos que lhe foram concomitantes duas expressões simultâneas que se refletem e se simbolizam uma à outra que funcionam reciprocamente como espelho e cujas significações são tomadas em um jogo indefinido de remissões duas expressões que não exprimem nada mais que a forma que lhes é comum Assim as idéias médicas de solidariedade orgânica de coesão funcional de comunicação tissular e o abandono do princípio classificatório das doenças em proveito de uma análise das interações corporais corresponderiam para refletilas mas também para nelas se mirar a uma prática política que descobre sob estratificações ainda feudais relações de tipo funcional solidariedades econômicas uma sociedade cujas dependências e reciprocidades deviam assegurar na forma da coletividade o analogon da vida Uma análise causai em compensação consistiria em procurar saber até que ponto as mudanças políticas ou os processos econômicos puderam determinar a consciência dos homens de ciência o horizonte e a direção de seu interesse seu sistema de valores sua maneira de perceber as coisas o estilo de sua racionalidade assim em uma época em que o capitalismo industrial começava a recensear suas necessidades de mãodeobra a doença tomou uma dimensão social a manutenção da saúde a cura a assistência aos doentes pobres a pesquisa das causas e dos focos patogênicos tornaramse um encargo 184 Michel Foucault coletivo que o Estado devia por um lado assumir e por outro supervisionar Daí resultam a valorização do corpo como instrumento de trabalho o cuidado de racionalizar a medicina pelo modelo das outras ciências os esforços para manter o nível de saúde de uma população o cuidado com a terapêutica a manutenção de seus efeitos o registro dos fenômenos de longa duração A arqueologia situa sua análise em um outro nível os fenômenos de expressão de reflexos e de simbolização são para ela apenas os efeitos de uma leitura global em busca das analogias formais ou das translações de sentidos quanto às relações causais elas só podem ser assinaladas no nível do contexto ou da situação e de seu efeito sobre o sujeito falante de qualquer modo umas e outras só podem ser demarcadas uma vez definidas as positividades em que aparecem e as regras segundo as quais essas positividades foram formadas O campo de relações que caracteriza uma formação discursiva é o lugar de onde as simbolizações e os efeitos podem ser percebidos situados e determinados Se a arqueologia aproxima o discurso médico de um certo número de práticas é para descobrir relações muito menos imediatas que a expressão mas muito mais diretas que as de uma causalidade substituída pela consciência dos sujeitos falantes Ela quer mostrar não como a prática política determinou o sentido e a forma do discurso médico mas como e por que ela faz parte de suas condições de emergência de inserção e de funcionamento Essa relação pode ser assinalada em vários níveis Inicialmente no do recorte e da delimitação do objeto médico não é claro que a prática política desde o século XIX tenha imposto à medicina novos objetos como as lesões dos tecidos orgânicos ou as correlações anatomofisiológicas mas ela abriu novos campos de demarcação dos objetos médicos tais como são constituídos pela massa da população administrativamente enquadrada e fiscalizada avaliada segundo certas normas de vida e saúde analisada segundo formas de registro documental e estatístico são constituídos também pelos grandes exércitos populares da época revolucionária e napoleônica com sua forma específica de controle médico são constituídos ainda pelas instituições de assistência hospitalar que foram definidas no final do século XVIII e no início do século XIX em função das necessidades econômicas da época e da A Arqueologia do Saber 185 posição recíproca das classes sociais Vemos aparecer também a relação entre a prática política e o discurso médico no status atribuído ao médico que se torna o titular não apenas privilegiado mas quase exclusivo desse discurso na forma de relação institucional que ele pode ter com o doente hospitalizado ou com sua clientela particular nas modalidades de ensino e de difusão que são prescritas ou autorizadas para esse saber Finalmente podemos compreender tal relação na função que é atribuída ao discurso médico ou no papel que dele se requer quando se trata de julgar indivíduos tomar decisões administrativas dispor as normas de uma sociedade traduzir para resolvêlos ou mascarálos conflitos de uma outra ordem apresentar modelos de tipo natural às análises da sociedade e às práticas que lhe são pertinentes Não se trata portanto de mostrar como a prática política de uma dada sociedade constituiu ou modificou os conceitos médicos e a estrutura teórica da patologia mas como o discurso médico como prática que se dirige a um certo campo de objetos que se encontra nas mãos de um certo número de indivíduos estatutariamente designados que tem enfim de exercer certas funções na sociedade se articula em práticas que lhe são exteriores e que não são de natureza discursiva Se nessa análise a arqueologia suprime o tema da expressão e do reflexo se ela se recusa a ver no discurso a superfície de projeção simbólica de acontecimentos ou de processos situados em outra parte não é para encontrar um encadeamento causai que se poderia descrever ponto por ponto e que permitiria relacionar uma descoberta e um acontecimento ou um conceito e uma estrutura social Mas por outro lado se ela mantém em suspenso semelhante análise causai se quer evitar o revezamento necessário feito pelo sujeito falante não é para assegurar a independência soberana e solitária do discurso é para descobrir o domínio de existência e de funcionamento de uma prática discursiva Em outras palavras a descrição arqueológica dos discursos se desdobra na dimensão de uma história geral ela procura descobrir todo o domínio das instituições dos processos econômicos das relações sociais nas quais pode articularse uma formação discursiva ela tenta mostrar como a autonomia do discurso e sua especificidade não lhe dão por isso um status de pura idealidade e 186 Michel Foucault de total independência histórica o que ela quer revelar é o nível singular em que a história pode dar lugar a tipos definidos de discurso que têm eles próprios seu tipo de historicidade e que estão relacionados cora todo um conjunto de historicidades diversas 5 A MUDANÇA E AS TRANSFORMAÇÕES O que se passa hoje com a descrição arqueológica da mudança Seria possível fazer à história tradicional das idéias todas as críticas teóricas que se quisesse ou pudesse pelo menos para si ela tem de tomar por tema essencial os fenômenos de sucessão e de encadeamento temporais de analisálos conforme os esquemas de evolução e de descrever assim o desenrolar histórico dos discursos A arqueologia em compensação parece tratar a história só para imobilizála De um lado descrevendo suas formações discursivas abandona as séries temporais que aí se podem manifestar busca regras gerais que valem uniformemente e da mesma maneira em todos os pontos do tempo não impõe a um desenvolvimento talvez lento e imperceptível a figura coatora de uma sincronia Nesse mundo das idéias que é por si mesmo tão lábil em que as figuras aparentemente mais estáveis se apagam tão depressa em que em compensação tantas irregularidades se produzem e recebem mais tarde um status definitivo em que o futuro se antecipa sempre a si mesmo enquanto o passado não deixa de se deslocar ela não se mostra como uma espécie de pensamento imóvel E por outro lado quando recorreu à cronologia parece que foi unicamente para fixar nos limites das positividades dois pontos de referência o momento em que nascem e aquele em que se apagam como se a duração só 188 Michel Foucault fosse usada para fixar este calendário rudimentar sendo eliminada ao longo da própria análise como se só houvesse tempo no instante vazio da ruptura nessa falha branca e paradoxalmente intemporal em que uma formação subitamente substitui outra Sincronia das positividades instantaneidade das substituições o tempo esquivouse e com ele desaparece a possibilidade de uma descrição histórica O discurso é subtraído à lei do devir e se estabelece em uma intemporalidade descontínua Imobilizase por fragmentos estilhaços precários de eternidade Mas por mais que se queira diversas eternidades que se sucedem um jogo de imagens fixas que se eclipsam sucessivamente tudo isso não constitui nem um movimento nem um tempo nem uma história É preciso no entanto observar as coisas mais de perto A Consideremos de início a aparente sincronia das formações discursivas Uma coisa é verdadeira por mais que as regras estejam investidas em cada enunciado por mais que por conseguinte sejam reutilizadas em cada um elas não se modificam a cada oportunidade podemos reencontrálas em atividade em enunciados ou grupos de enunciados bem dispersos no tempo Vimos por exemplo que os diversos objetos da história natural durante aproximadamente um século de Tournefort a Jussieu obedeciam a regras de formação idênticas vimos que a teoria da atribuição é a mesma e desempenha o mesmo papel em Lancelot Condillac e Destutt de Tracy Além disso vimos que a ordem dos enunciados segundo a derivação arqueológica não reproduzia forçosamente a ordem das sucessões podemse encontrar em Beauzée enunciados arqueologicamente anteriores aos que se encontram na Grammaíre de PortRoyal Há então em semelhante análise uma suspensão das sequências temporais para sermos mais exatos do calendário das formulações Mas a suspensão tem precisamente por fim fazer aparecerem relações que caracterizam a temporalidade das formações discursivas e a articulam em séries cujo entrecruzamento não impede a análise a A arqueologia define as regras de formação de um conjunto de enunciados Manifesta assim como uma sucessão de A Arqueologia do Saber 189 acontecimentos pode na própria ordem em que se apresenta tornarse objeto de discurso ser registrada descrita explicada receber elaboração em conceitos e dar a oportunidade de uma escolha teórica A arqueologia analisa o grau e a forma de permeabilidade de um discurso apresenta o principio de sua articulação com uma cadeia de acontecimentos sucessivos define os operadores pelos quais os acontecimentos se transcrevem nos enunciados Ela não contesta por exemplo a relação entre a análise das riquezas e as grandes flutuações monetárias do século XVII e do início do século XVIII tenta mostrar o que dessas crises podia ser tido como objeto do discurso como podiam elas estar aí conceitualizadas como os interesses que se defrontavam no decurso desses processos podiam aí dispor sua estratégia Ou ainda não afirma que a cólera de 1832 não tenha sido um acontecimento para a medicina mostra como o discurso clínico empregava regras tais que todo um domínio de objetos médicos pôde ser então reorganizado que se pôde usar todo um conjunto de métodos de registro e de notação que se pôde abandonar o conceito de inflamação e liquidar definitivamente o velho problema teórico das febres A arqueologia não nega a possibilidade de enunciados novos em correlação com acontecimentos exteriores Sua tarefa é mostrar em que condições pode haver tal correlação entre eles e era que ela consiste precisamente quais são seus limites forma código lei de possibilidade Não evita a mobilidade dos discursos que os faz agitaremse ao ritmo dos acontecimentos tenta libertar o nível em que ela se desencadeia o que se poderia chamar o nível de embreagem dos acontecimentos Embreagem que é específica para cada formação discursiva e que não tem nem as mesmas regras nem os mesmos operadores nem a mesma sensibilidade por exemplo na análise das riquezas e na economia política na velha medicina das constituições e na epidemiologia moderna b Além disso todas as regras de formação atribuídas pela arqueologia a uma positividade não têm a mesma generalidade algumas são mais particulares e derivam das outras Essa subordinação pode ser somente hierárquica mas pode comportar também um vetor temporal Assim na gramática geral a teoria do verboatribuição e a do nomearticulação estão ligadas uma à outra a segunda deriva da primeira mas sem que se possa determinar entre elas uma ordem de sucessão diferente da que dedutiva ou retórica foi escolhida para a exposição Em compensação a análise do complemento ou a busca das raízes só podiam aparecer ou reaparecer uma vez desenvolvida a análise da frase atributiva ou a concepção do nome como signo analítico da representação Outro exemplo na época clássica o princípio da continuidade dos seres é abrangido pela classificação das espécies segundo os caracteres estruturais nesse sentido eles 190 Michel Foucault são simultâneos em compensação só depois de empreendida essa classificação é que as lacunas e as faltas podem ser interpretadas nas categorias de uma história da natureza da terra e das espécies Em outros termos a ramificação arqueológica das regras de formação não é uma rede uniformemente simultânea há relações ramificações derivações que são temporalmente neutras há outras que implicam uma direção temporal determinada A arqueologia não toma pois como modelo nem um esquema puramente lógico de simultaneidades nem uma sucessão linear de acontecimentos mas tenta mostrar o entrecruzamento entre relações necessariamente sucessivas e outras que não o são Não se deve acreditar consequentemente que um sistema de positividade seja uma figura sincrônica que só podemos perceber colocando entre parênteses o conjunto do processo diacrônico Longe de ser indiferente à sucessão a arqueologia demarca os vetores temporais de derivação A arqueologia não tenta tratar como simultâneo o que se dá como sucessivo não tenta imobilizar o tempo e substituir seu fluxo de acontecimentos por correlações que delineiam uma figura imóvel O que ela suspende é o tema de que a sucessão é um absoluto um encadeamento primeiro e indissociável a que o discurso estaria submetido pela lei de sua finitude e também o tema de que no discurso só há uma forma e um único nível de sucessão Ela substitui esses temas por análises que fazem aparecer ao mesmo tempo as diversas formas de sucessão que se superpõem nos discursos e por formas não se deve entender simplesmente os ritmos ou as causas mas as próprias séries e a maneira pela qual se articulam as sucessões assim especificadas Ao invés de seguir um calendário originário em relação ao qual se estabeleceria a cronologia dos acontecimentos sucessivos ou simultâneos a dos processos curtos ou duráveis a dos fenômenos instantâneos e das permanências tentase mostrar como pode haver sucessão e em que níveis diferentes encontramse sucessões distintas É preciso portanto para constituir uma história arqueológica do discurso livrarmonos de dois modelos que por muito tempo sem dúvida impuseram sua imagem o modelo linear de ato da fala e pelo menos uma parte da escrita em que todos os acontecimentos se sucedem com exceção do efeito de coincidência e de superposição e o modelo do fluxo de consciência cujo presente escapa sempre a si mesmo na abertura do futuro e na retenção do passado Por mais paradoxal que A Arqueologia do Saber 191 isso seja as formações discursivas não têm o mesmo modelo de historicidade que o curso da consciência ou a linearidade da linguagem O discurso pelo menos tal como é analisado pela arqueologia isto é no nível de sua positividade não é uma consciência que vem alojar seu projeto na forma externa da linguagem não é uma língua com um sujeito para falála É uma prática que tem suas formas próprias de encadeamento e de sucessão B A arqueologia fala bem mais à vontade do que a história das idéias de cortes falhas aberturas formas inteiramente novas de positividade e redistribuições súbitas Fazer a história da economia política era tradicionalmente procurar tudo que poderia ter precedido Ricardo tudo que poderia ter delineado antecipadamente suas análises seus métodos e suas noções principais tudo que poderia ter tornado suas descobertas mais prováveis fazer a história da gramática comparativa era reencontrar o rastro bem antes de Bopp e Rask das pesquisas prévias sobre a filiação e o parentesco das línguas era determinar a participação que poderia ter tido AnquetilDuperron na constituição de um domínio indoeuropeu era revelar mais uma vez a primeira comparação feita em 1769 entre as conjugações sânscrita e latina era se fosse preciso remontar a Harris ou Ramus A arqueologia procede inversamente procura soltar todos os fios ligados pela paciência dos historiadores multiplica as diferenças baralha as linhas de comunicação e se esforça para tornar as passagens mais difíceis não tenta mostrar que a análise fisiocrática da produção preparava a de Ricardo não considera pertinente a suas próprias análises dizer que Coeurdoux havia preparado Bopp A que corresponde essa insistência sobre as descontinuidades Na verdade ela só é paradoxal em relação ao hábito dos historiadores É esse hábito e sua preocupação com as continuidades passagens antecipações esboços prévios que muito frequentemente representa o paradoxo De Daubenton a Cuvier de Anquetil a Bopp de Graslin Turgot ou Forbonnais a Ricardo apesar de uma distância cronológica 192 Michel Foucault tão reduzida as diferenças são inumeráveis e de naturezas muito diversas umas são localizadas outras gerais umas referemse aos métodos outras aos conceitos ora se trata do domínio de objetos ora de todo o instrumento linguístico Mais surpreendente ainda é o exemplo da medicina em um quarto de século de 1790 a 1815 o discurso médico se modificou mais profundamente que desde o século XVII que desde a Idade Média sem dúvida e talvez até mesmo desde a medicina grega modificação que fez aparecerem objetos lesões orgânicas focos profundos alterações tissulares vias e formas de difusão interorgânicas signos e correlações anatomoclínicas técnicas de observação de detecção do foco patológico de registro um outro esquadrinhamento perceptivo e um vocabulário de descrição quase completamente novo jogos de conceitos e distribuições nosográficas inéditas categorias às vezes centenárias às vezes milenárias como a de febre ou de constituição desaparecem e doenças às vezes velhas como o mundo a tuberculose são finalmente isoladas e nomeadas Deixemos aos que por inadvertência jamais abriram a Nosographie philosophique e o Traité des membranes a preocupação de dizer que a arqueologia arbitrariamente inventa diferenças Ela se esforça somente para leválas a sério desfazer seu emaranhado determinar como se repartem se implicam se comandam se subordinam umas às outras a que categorias distintas pertencem em suma tratase de descrever as diferenças não sem estabelecer entre elas o sistema de suas diferenças Se há um paradoxo da arqueologia não é no fato de que ela multiplicaria as diferenças mas no fato de que ela se recusa a reduzilas invertendo assim os valores habituais Para a história das idéias a diferença tal como aparece é erro ou armadilha ao invés de se deixar prender por ela a sagacidade da análise deve procurar desfazêla encontrar sob ela uma diferença menor e abaixo desta uma outra ainda mais limitada e assim indefinidamente até o limite ideal que seria a nãodiferença da perfeita continuidade A arqueologia em compensação toma por objeto de sua descrição o que habitualmente se considera obstáculo ela não tem por projeto superar as diferenças mas analisálas dizer em que exatamente consistem e diferenciálas Como se opera tal diferenciação A Arqueologia do Saber 193 1 A arqueologia ao invés de considerar que o discurso é feito apenas de uma série de acontecimentos homogêneos as formulações individuais distingue na própria densidade do discurso diversos planos de acontecimentos possíveis plano dos próprios enunciados em sua emergência singular plano de aparecimento dos objetos dos tipos de enunciação dos conceitos das escolhas estratégicas ou das transformações que afetam as que já existem plano da derivação de novas regras de formação a partir de regras já empregadas mas sempre no elemento de uma única e mesma positividade finalmente em um quarto nível plano em que se efetua a substituição de uma formação discursiva por outra ou do aparecimento e do desaparecimento puro e simples de uma positividade Tais acontecimentos de longe os mais raros são para a arqueologia os mais importantes somente ela de qualquer forma pode fazêlos aparecerem Mas eles não são o objeto exclusivo de sua descrição seria errado acreditar que comandam imperativamente todos os outros e que induzem nos diferentes planos que puderam ser distinguidos rupturas análogas e simultâneas Todos os acontecimentos que se produzem na densidade do discurso não se apóiam uns nos outros Certamente o aparecimento de uma formação discursiva se correlaciona muitas vezes cora uma vasta renovação de objetos formas de enunciação conceitos e estratégias princípio que não é entretanto universal a gramática geral se instaurou no século XVII sem muitas modificações aparentes na tradição gramatical mas não é possível fixar o conceito determinado ou o objeto particular que manifesta repentinamente sua presença Não é preciso pois descrever semelhante acontecimento segundo as categorias que podem convir à emergência de uma formulação ou ao aparecimento de uma palavra nova Inútil fazer a esse acontecimento perguntas como Quem é o autor Quem falou Em que circunstâncias e em que contexto Animado por que intenções e tendo que projetos O aparecimento de uma nova positividade não é assinalado por uma frase nova inesperada surpreendente logicamente imprevisível estilisticamente desviante que viria inserirse em um texto e anunciaria quer o começo de um novo capítulo quer a intervenção de um novo locutor Tratase de um acontecimento de tipo totalmente diferente 2 Para analisar tais acontecimentos é insuficiente constatar modificações e logo relacionálas seja ao modelo teológico e estético da criação com sua transcendência todo o jogo de suas originalidades e de suas invenções seja ao modelo psicológico da tomada de consciência com seus precedentes obscuros suas antecipações suas circunstâncias favoráveis seus poderes de reestruturação ou ainda ao modelo biológico da evolução É necessário definir precisamente em que consistem essas modificações substituir a referência 194 Michel Foucault indiferenciada à mudança ao mesmo tempo continente geral de todos os acontecimentos e princípio abstrato de sua sucessão pela análise das transformações O desaparecimento de uma positividade e a emergência de uma outra implica diversos tipos de transformações Indo das mais particulares às mais gerais podese e devese descrever como se transformaram os diferentes elementos de um sistema de formação quais foram por exemplo as variações da taxa de desemprego e das necessidades de emprego quais foram as decisões políticas referentes às corporações e à universidade quais foram as novas necessidades e possibilidades de assistência no final do século XVIII elementos que entram no sistema de formação da medicina clínica como se transformaram as relações características de um sistema de formação como foi modificada por exemplo em meados do século XVII a relação entre campo perceptivo código linguístico mediação instrumental e informação que era utilizada pelo discurso sobre os seres vivos permitindo assim a definição dos objetos da história natural como as relações entre diferentes regras de formação foram transformadas como por exemplo a biologia modifica a ordem e a dependência estabelecidas pela história natural entre a teoria da caracterização e a análise das derivações temporais como enfim se transformam as relações entre diversas positividades como as relações entre filologia biologia e economia transformam as relações entre gramática história natural e análise das riquezas como se decompõe a configuração interdiscursiva delineada pelas relações privilegiadas entre essas três disciplinas como se encontram modificadas suas relações respectivas com a matemática e a filosofia como se destaca um lugar para outras formações discursivas e singularmente para a interpositividade que tomará o nome de ciências humanas Em vez de invocar a força viva da mudança como se esta fosse seu próprio princípio ou lhe procurar as causas como se nunca passasse de puro e simples efeito a arqueologia tenta estabelecer o sistema das transformações em que consiste a mudança tenta elaborar essa noção vazia e abstrata para darlhe o status analisável da transformação Compreendese que certas mentes ligadas a todas as velhas metáforas pelas quais durante um século e meio concebeuse a história movimento fluxo evolução vejam aí tãosomente a negação da história e a afirmação frustrada da descontinuidade é que de fato não podem admitir que se limpe a mudança de todos os modelos adventícios que se tire dela ao mesmo tempo seu primado de lei universal e seu status de efeito geral e que ela seja substituída pela análise das transformações diversas 3 Dizer que uma formação discursiva substitui outra não é dizer que todo um mundo de objetos enunciações conceitos escolhas teóricas absolutamente novas surge já armado e organizado em um A Arqueologia do Saber 195 texto que o situaria de uma vez por todas mas sim que aconteceu uma transformação geral de relações que entretanto não altera forçosamente todos os elementos que os enunciados obedecem a novas regras de formação e não que todos os objetos ou conceitos todas as enunciações ou todas as escolhas teóricas desaparecem Ao contrário a partir dessas novas regras podem ser descritos e analisados fenômenos de continuidade de retorno e de repetição não se deve esquecer na verdade que uma regra de formação não é nem a determinação de um objeto nem a caracterização de um tipo de enunciação nem a forma ou o conteúdo de um conceito mas o princípio de sua multiplicidade e de sua dispersão Um desses elementos ou vários entre eles podem permanecer idênticos conservar o mesmo recorte os mesmos caracteres as mesmas estruturas mas pertencendo a sistemas diferentes de dispersão e obedecendo a leis distintas de formação Podemse então encontrar fenômenos como estes elementos que perduram ao longo de diversas positividades distintas mantendo a mesma forma e o mesmo conteúdo mas com formações heterogêneas a circulação monetária como objeto de início da análise das riquezas e em seguida da economia política o conceito de caráter a princípio na história natural e depois na biologia elementos que se constituem se modificam se organizam em uma formação discursiva e que afinal estabilizados figuram em outra como o conceito de reflexo cuja formação na ciência clássica de Willis a Prochaska e depois a entrada na fisiologia moderna foram mostradas por G Canguilhem elementos que aparecem tarde como uma derivação última em uma formação discursiva e que ocupam uma posição dominante em uma formação ulterior como a noção de organismo surgida no final do século XVII na história natural e como resultado de toda a empresa taxionômica de caracterização e que se torna o conceito maior da biologia na época de Cuvier o mesmo ocorre com a noção de foco de lesão que Morgagni revela e que se toma um dos conceitos principais da medicina clínica elementos que reaparecem após um período de desuso de esquecimento ou mesmo de invalidação como o retorno a um fixismo do tipo do de Lineu em um biólogo como Cuvier como a reativação da velha idéia de língua originária no século XVIII O problema para a arqueologia não é negar tais fenômenos nem querer diminuir sua importância mas ao contrário medilos e tentar explicálos como pode haver permanências ou repetições longos encadeamentos ou curvas que transpõem o tempo A arqueologia não considera o contínuo como o dado primeiro e último que deve dar conta do resto considera ao contrário que o mesmo o repetitivo e o ininterrupto constituem um problema tanto quanto as rupturas para ela o idêntico e o contínuo não são aquilo que é preciso reencontrar no fim da análise eles figuram no elemento 196 Michel Foucault de uma prática discursiva eles também são comandados pelas regras de formação das positividades longe de manifestarem a inércia fundamental e tranquilizadora a que se quer relacionar a mudança eles próprios são ativa e regularmente formados E aos que seriam tentados a criticar na arqueologia a análise privilegiada do descontínuo a todos os agoráfobos da história e do tempo a todos os que confundem ruptura e irracionalidade responderei Pelo uso que dele vocês fazem são vocês que desvalorizam o contínuo Tratamno como um elementosuporte a que todo o resto deve ser relacionado fazem dele a lei primeira o peso essencial de toda prática discursiva vocês gostariam que se analisasse qualquer modificação no campo dessa inércia como se analisa qualquer movimento no campo da gravitação Mas só lhe deram esse status neutralizandoo e lançandoo no limite exterior do tempo a uma passividade original A arqueologia se propõe a inverter essa disposição ou melhor já que não se trata de emprestar ao descontínuo o papel atribuído até então à continuidade fazer atuar o contínuo e o descontínuo um contra o outro mostrar como o contínuo é formado segundo as mesmas condições e conforme as mesmas regras que a dispersão e que entra nem mais nem menos que as diferenças as invenções as novidades ou os desvios no campo da prática discursiva 4 O aparecimento e a destruição das positividades o jogo de substituições a que dão lugar não constituem um processo homogêneo que se desenrolaria em toda parte da mesma maneira Não se deve acreditar que a ruptura seja uma espécie de grande deriva geral a que estariam submetidas ao mesmo tempo todas as formações discursivas a ruptura não é um tempo morto e indiferenciado que se intercalaria não mais que um instante entre duas fases manifestas não é o lapso sem duração que separaria duas épocas e desdobraria de um lado e de outro de uma falha dois tempos heterogêneos é sempre entre positividades definidas uma descontinuidade especificada por um certo número de transformações distintas Desse modo a análise dos cortes arqueológicos tem por propósito estabelecer entre tantas modificações diversas analogias e diferenças hierarquias complementaridades coincidências e defasagens em suma descrever a dispersão das próprias descontinuidades A idéia de um único e mesmo corte que divide de uma só vez e em um momento dado todas as formações discursivas interrompendoas com um único movimento e reconstituindoas segundo as mesmas regras não poderia ser mantida A contemporaneidade de várias transformações não significa sua exata coincidência cronológica cada transformação pode ter seu índice particular de Viscosidade temporal A história natural a gramática geral e a análise das riquezas constituíramse de modos análogos e todas três no curso A Arqueologia do Saber 197 do século XVII mas o sistema de formação da análise das riquezas estava ligado a um grande número de condições e de práticas não discursivas circulação das mercadorias manipulações monetárias com seus efeitos sistema de proteção ao comércio e às manufaturas oscilações na quantidade de metal cunhado daí a lentidão de um processo que se desenrolou durante mais de um século de Grammont a Cantillon enquanto as transformações instauradas pela gramática e pela história natural não se estenderam durante mais de 25 anos Inversamente transformações contemporâneas análogas e ligadas não remetem a um modelo único que se reproduziria diversas vezes na superfície dos discursos e imporia a todos uma forma estritamente idêntica de ruptura quando descrevemos o corte arqueológico que deu lugar à filologia à história e à economia foi para mostrar como essas três positividades estavam ligadas pelo desaparecimento da análise do signo e da teoria da representação que efeitos simétricos ele podia produzir a idéia de uma totalidade e de uma adaptação orgânica nos seres vivos a idéia de uma coerência morfológica e de evolução regulada nas línguas a idéia de uma forma de produção que tem suas leis internas e seus limites de evolução mas foi ainda para mostrar quais eram as diferenças específicas dessas transformações como em particular a historicidade se introduz de modo peculiar nessas três positividades como por conseguinte sua relação com a história não pode ser a mesma apesar de todas terem uma relação definida com ela Finalmente existem entre as diferentes rupturas arqueológicas importantes defasagens e às vezes mesmo entre formações discursivas muito próximas e ligadas por numerosas relações Assim acontece com as disciplinas da linguagem e da análise histórica a grande transformação que propiciou o aparecimento nos primeiros anos do século XIX da gramática histórica e comparativa precede de meio século a mutação do discurso histórico de sorte que o sistema de interpositividade no qual a filologia estava presa encontrase profundamente alterado na segunda metade do século XIX sem que a positividade da filologia seja posta em questão novamente Daí os fenômenos de deslocamento segmentar de que se pode citar pelo menos um outro exemplo notório conceitos como os de maisvalia ou de baixa tendencial da taxa de lucro tais como se encontram em Marx podem ser descritos a partir do sistema de positividade que já é empregado em Ricardo ora esses conceitos que são novos mas cujas regras de formação não o são aparecem no próprio Marx como referentes ao mesmo tempo a uma prática discursiva inteiramente diversa são aí formados segundo leis específicas ocupam outra posição não figuram nos mesmos encadeamentos essa positividade nova não é uma transformação das análises de Ricardo não é 198 Michel Foucault uma nova economia política é um discurso cuja instauração teve lugar em virtude da derivação de certos conceitos econômicos mas que em compensação define as condições nas quais se exerce o discurso dos economistas e pode pois valer como teoria e crítica da economia política A arqueologia desarticula a sincronia dos cortes como teria desfeito a unidade abstrata da mudança e do acontecimento A época não é nem sua unidade de base nem seu horizonte nem seu objeto se fala sobre ela é sempre a propósito de práticas discursivas determinadas e como resultado de suas análises A época clássica que foi frequentemente mencionada nas análises arqueológicas não é uma figura temporal que impõe sua unidade e sua forma vazia a todos os discursos é o nome que se pode dar a um emaranhado de continuidades e descontinuidades de modificações internas às positividades de formações discursivas que aparecem e desaparecem Da mesma forma a ruptura não é para a arqueologia o ponto de apoio de suas análises o limite que ela mostra de longe sem poder determinálo nem darlhe uma especificidade a ruptura é o nome dado às transformações que se referem ao regime geral de uma ou várias formações discursivas Assim a Revolução Francesa já que foi em torno dela que se centraram até aqui todas as análises arqueológicas não representa o papel de um acontecimento exterior aos discursos cujo efeito de divisão para pensarmos como se deve teria de ser reencontrado em todos os discursos ela funciona como um conjunto complexo articulado descritível de transformações que deixaram intactas um certo número de positividades fixaram para outras regras que ainda são as nossas e igualmente estabeleceram positividades que acabam de se desfazer ou se desfazem ainda sob nossos olhos 6 CIÊNCIA E SABER Uma delimitação silenciosa se impôs a todas as análises precedentes sem que se tenha apresentado seu princípio sem mesmo que seu desenho tenha sido precisado Todos os exemplos evocados pertenciam sem exceção a um domínio muito restrito Estamos longe de ter não digo inventariado mas sondado o imenso domínio do discurso por que ter abandonado sistematicamente os textos literários filosóficos ou políticos Será que nessas regiões as formações discursivas e os sistemas de positividade não têm lugar Se nos restringimos apenas à ordem das ciências por que não ter falado da matemática física ou química Por que ter apelado para tantas disciplinas duvidosas informes ainda e destinadas talvez a permanecer sempre abaixo do limiar da cientificidade Em uma palavra qual é a relação entre arqueologia e análise das ciências a Positiuidades disciplinas ciências Primeira questão será que a arqueologia sob termos um pouco bizarros como formação discursiva e positividade não descreve simplesmente pseudociências como a psicopatologia ciências em estado préhistórico como a história 200 Michel Foucault natural ou ciências inteiramente impregnadas de ideologia como a economia política Ela não é a análise privilegiada do que permanecerá sempre quasecientífico Se chamamos disciplinas a conjuntos de enunciados que tomam emprestado de modelos científicos sua organização que tendem à coerência e à demonstratividade que são recebidos institucionalizados transmitidos e às vezes ensinados como ciências não se poderia dizer que a arqueologia descreve disciplinas que não são efetivamente ciências enquanto a epistemologia descreveria ciências que se formaram a partir ou a despeito das disciplinas existentes Podemos responder negativamente a tais questões A arqueologia não descreve disciplinas Estas no máximo em seu desdobramento manifesto podem servir de isca para a descrição das positividades mas não lhe fixam os limites não lhe impõem recortes definitivos não se encontram inalteradas no fim da análise não se pode estabelecer relação biunívoca entre as disciplinas instituídas e as formações discursivas Eis um exemplo de tal distorção A questão central da Histoire de la folie era o aparecimento no início do século XIX de uma disciplina psiquiátrica Esta não tinha nem o mesmo conteúdo nem a mesma organização interna nem o mesmo lugar na medicina nem a mesma função prática nem o mesmo modo de utilização que o tradicional capítulo das doenças da cabeça ou das doenças nervosas que se encontravam nos tratados de medicina do século XVIII Ora interrogandose a nova disciplina descobriramse duas coisas o que a tornou possível na época em que apareceu o que determinou essa grande mudança na economia dos conceitos das análises e das demonstrações foi todo um jogo de relações entre a hospitalização a internação as condições e os procedimentos da exclusão social as regras da jurisprudência as normas do trabalho industrial e da moral burguesa em resumo todo um conjunto que caracteriza para essa prática discursiva a formação de seus enunciados mas essa prática não se manifesta somente em uma disciplina de status e pretensão científicos encontramola igualmente empregada em textos jurídicos em expressões literárias em reflexões filosóficas em decisões de ordem política em propósitos cotidianos em opiniões A formação discursiva cuja existência a disciplina psiquiátrica permite demarcar não lhe é coextensiva ao contrário ela a A Arqueologia do Saber 201 excede amplamente e a cerca de todos os lados Mas há mais recuando no tempo e procurando o que pôde preceder nos séculos XVII e XVIII a instauração da psiquiatria percebeuse que não havia nenhuma disciplina anterior o que era dito das manias delírios melancolias doenças nervosas pelos médicos na época clássica não constituía de modo algum uma disciplina autônoma mas no máximo uma rubrica na análise das febres das alterações dos humores ou das afecções do cérebro Entretanto apesar da ausência de qualquer disciplina instituída uma prática discursiva com sua regularidade e consistência era empregada Essa prática discursiva certamente era empregada na medicina mas de igual modo nos regulamentos administrativos textos literários ou filosóficos casuística teorias ou projetos de trabalho obrigatório ou de assistência aos pobres Temos então na época clássica uma formação discursiva e uma positividade perfeitamente acessíveis à descrição às quais não corresponde nenhuma disciplina definida que se possa comparar à psiquiatria Mas se é verdade que as positividades não são simples duplos das disciplinas instituídas não são elas o esboço de ciências futuras Sob o nome formação discursiva não se designa a projeção retrospectiva das ciências sobre seu próprio passado a sombra que lançam sobre aquilo que as precedeu e que parece têlas assim traçado antecipadamente O que se descreveu por exemplo como análise das riquezas ou gramática geral emprestandolhes uma autonomia talvez bem artificial não seria simplesmente a economia política em estado incoativo ou uma fase anterior à instauração de uma ciência enfim rigorosa da linguagem Por um movimento retrógrado cuja legitimidade seria sem dúvida difícil de ser estabelecida a arqueologia não tenta reagrupar em uma prática discursiva independente todos os elementos heterogêneos e dispersos cuja cumplicidade se revelará necessária para a instauração de uma ciência Ainda aqui a resposta deve ser negativa O que foi analisado sob o nome história natural não encerra em uma figura única tudo o que nos séculos XVII e XVIII poderia valer como o esboço de uma ciência da vida e figurar em sua genealogia legítima A positividade assim revelada dá conta na verdade de um certo número de enunciados referentes às semelhanças e às diferenças entre os seres sua estrutura visível seus caracteres específicos e 202 Michel Foucault genéricos sua classificação possível as descontinuidades que os separam e as transições que os unem mas ela deixa de lado muitas outras análises que datam no entanto da mesma época e que traçam também as figuras ancestrais da biologia análise do movimento reflexo que terá tanta importância para a constituição de uma anatomofisiologia do sistema nervoso teoria dos germens que parece anteciparse aos problemas da evolução e da genética explicação do crescimento animal ou vegetal que será uma das maiores questões da fisiologia dos organismos em geral Além disso longe de se antecipar a uma biologia futura a história natural discurso taxionômico ligado à teoria dos signos e ao projeto de uma ciência da ordem excluía por sua solidez e autonomia a constituição de uma ciência unitária da vida Da mesma forma a formação discursiva descrita como gramática geral não dá conta de tudo que pôde ser dito na época clássica sobre a linguagem e cuja herança ou repúdio desenvolvimento ou crítica deveriam ser encontrados mais tarde na filologia ela deixa de lado os métodos da exegese bíblica e a filosofia da linguagem formulada por Vico ou Herder As formações discursivas não são pois as ciências futuras no momento em que ainda inconscientes de si mesmas se constituem em surdina não estão na verdade em um estado de subordinação teleológica em relação à ortogênese das ciências Devese dizer então que não pode haver ciência onde há positividades e que estas onde podemos descobrilas sempre excluem as ciências Devese supor que ao invés de estarem em uma relação cronológica em face das ciências se encontram em uma situação de alternativa Que elas são de algum modo a figura positiva de uma certa falha epistemológica Mas poderíamos também nesse caso fornecer um contraexemplo A medicina clínica seguramente não é uma ciência não só porque não responde aos critérios formais e não atinge o nível de rigor que se pode esperar da física da química ou mesmo da fisiologia mas também porque comporta um acúmulo apenas organizado de observações empíricas de tentativas e de resultados brutos de receitas de prescrições terapêuticas de regulamentações institucionais Entretanto esta nãociência não exclui a ciência durante o século XIX ela estabeleceu relações definidas entre ciências perfeitamente constituídas como a fisiologia a química ou a A Arqueologia do Saber 203 microbiologia além disso deu lugar a discursos como o da anatomia patológica a que seria sem dúvida presunção dar o título de falsa ciência Não se pode então identificar as formações discursivas nem às ciências nem às disciplinas pouco científicas nem às figuras que delineiam de longe as ciências que virão e nem finalmente a formas que excluem logo de início qualquer cientificidade O que foi feito então da relação entre as positividades e as ciências b O saber As positividades não caracterizam formas de conhecimento quer sejam condições a priori e necessárias ou formas de racionalidade que puderam por sua vez ser empregadas pela história Mas elas não definem tampouco o estado dos conhecimentos em um dado momento do tempo não estabelecem o balanço do que desde aquele momento pôde ser demonstrado e assumir status de aquisição definitiva o balanço do que em compensação era aceito sem prova nem demonstração suficiente ou do que era admitido pela crença comum ou requerido pela força da imaginação Analisar positividades é mostrar segundo que regras uma prática discursiva pode formar grupos de objetos conjuntos de enunciações jogos de conceitos séries de escolhas teóricas Os elementos assim formados não constituem uma ciência com uma estrutura de idealidade definida seu sistema de relações é certamente menos estrito mas não são tampouco conhecimentos acumulados uns ao lado dos outros vindos de experiências de tradições ou de descobertas heterogêneas e ligados somente pela identidade do sujeito que os detém Eles são a base a partir da qual se constroem proposições coerentes ou não se desenvolvem descrições mais ou menos exatas se efetuam verificações se desdobram teorias Formam o antecedente do que se revelará e funcionará com um conhecimento ou uma ilusão uma verdade admitida ou um erro denunciado uma aquisição definitiva ou um obstáculo superado Vêse bem que esse antecedente não pode ser analisado como um dado uma experiência vivida ainda inteiramente engajada no imaginário ou na percepção que a humanidade no curso de sua 204 Michel Foucault história teria tido de retomar na forma de sua racionalidade ou que cada indivíduo deveria atravessar por conta própria se quisesse reencontrar as significações ideais que aí estão introduzidas ou ocultas Não se trata de um préconhecimento ou de um estágio arcaico no movimento que vai do conhecimento imediato à apoditicidade tratase dos elementos que devem ter sido formados por uma prática discursiva para que eventualmente se constituísse um discurso científico especificado não só por sua forma e seu rigor mas também pelos objetos de que se ocupa os tipos de enunciação que põe em jogo os conceitos que manipula e as estratégias que utiliza Assim a ciência não se relaciona com o que devia ser vivido ou deve sêlo para que seja fundada a intenção de idealidade que lhe é própria mas sim com o que devia ser dito ou deve sêlo para que possa haver um discurso que se for o caso responda a critérios experimentais ou formais de cientificidade A esse conjunto de elementos formados de maneira regular por uma prática discursiva e indispensáveis à constituição de uma ciência apesar de não se destinarem necessariamente a lhe dar lugar podese chamar saber Um saber é aquilo de que podemos falar em uma prática discursiva que se encontra assim especificada o domínio constituído pelos diferentes objetos que irão adquirir ou não um status científico o saber da psiquiatria no século XIX não é a soma do que se acreditava fosse verdadeiro é o conjunto das condutas das singularidades dos desvios de que se pode falar no discurso psiquiátrico um saber é também o espaço em que o sujeito pode tomar posição para falar dos objetos de que se ocupa em seu discurso neste sentido o saber da medicina clínica é o conjunto das funções de observação interrogação decifração registro decisão que podem ser exercidas pelo sujeito do discurso médico um saber é também o campo de coordenação e de subordinação dos enunciados em que os conceitos aparecem se definem se aplicam e se transformam neste nível o saber da história natural no século XVIII não é a soma do que foi dito mas sim o conjunto dos modos e das posições segundo os quais se pode integrar ao já dito qualquer enunciado novo finalmente um saber se define por possibilidades de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso assim o saber da economia política na época clássica não é a tese das diferentes teses sustentadas mas o conjunto de seus pontos de articulação A Arqueologia do Saber 205 com outros discursos ou outras práticas que não são discursivas Há saberes que são independentes das ciências que não são nem seu esboço histórico nem o avesso vivido mas não há saber sem uma prática discursiva definida e toda prática discursiva pode definirse pelo saber que ela forma Ao invés de percorrer o eixo consciênciaconhecimentociência que não pode ser liberado do índex da subjetividade a arqueologia percorre o eixo prática discursivasaberciência Enquanto a história das idéias encontra o ponto de equilíbrio de sua análise no elemento do conhecimento encontrandose assim coagida a reencontrar a interrogação transcendental a arqueologia encontra o ponto de equilíbrio de sua análise no saber isto é era um domínio em que o sujeito é necessariamente situado e dependente sem que jamais possa ser considerado titular seja como atividade transcendental seja como consciência empírica Compreendese nessas condições que seja necessário distinguir com cuidado os domínios científicos e os territórios arqueológicos seu recorte e seus princípios de organização são completamente diferentes Só pertencem a um domínio de cientificidade as proposições que obedecem a certas leis de construção afirmações que tivessem o mesmo sentido que dissessem a mesma coisa que fossem tão verdadeiras quanto elas mas que não se prendessem à mesma sistematicidade seriam excluídas desse domínio o que Le rêve de dAlembert diz a respeito do devir das espécies pode traduzir certos conceitos ou certas hipóteses científicas da época isso pode até mesmo antecipar uma verdade futura isso não pertence ao domínio de cientificidade da história natural mas em compensação a seu território arqueológico se pelo menos se puder descobrir em ação as mesmas regras de formação encontradas em Lineu Buffon Daubenton ou Jussieu Os territórios arqueológicos podem atravessar textos literários ou filosóficos bem como textos científicos O saber não está contido somente em demonstrações pode estar também em ficções reflexões narrativas regulamentos institucionais decisões políticas O território arqueológico da história natural compreende a Palingénésie philosophique ou o Telliamed apesar de não responderem em grande parte às normas científicas que eram admitidas na época e ainda menos seguramente às que seriam exigidas mais tarde O território arqueológico da 206 Michel Foucault gramática geral compreende tanto os devaneios de Fabre d01ivet que jamais receberam status científico e se inscrevem antes no registro do pensamento místico quanto a análise das proposições atributivas que era então aceita com a luz da evidência e na qual a gramática gerativa pode reconhecer hoje sua verdade prefigurada A prática discursiva não coincide com a elaboração científica a que pode dar lugar o saber que ela forma não é nem o esboço enrugado nem o subproduto cotidiano de uma ciência constituída As ciências pouco importa no momento a diferença entre os discursos que têm presunção ou status de cientificidade e os que apresentam realmente seus critérios formais aparecem no elemento de uma formação discursiva tendo o saber como fundo Isso abre duas séries de problemas que local e papel pode ter uma região de cientificidade no território arqueológico em que se delineia Segundo que ordens e que processos se dá a emergência de uma região de cientificidade em uma formação discursiva determinada Esses são problemas que não saberíamos aqui e agora responder tratemos somente de indicar em que direção talvez poderiam ser analisados c Saber e ideologia Uma vez constituída uma ciência não retoma a seu cargo e nos encadeamentos que lhe são próprios tudo que formava a prática discursiva em que aparecia não dissipa tampouco para remetêlo à préhistória dos erros dos preconceitos ou da imaginação o saber que a cerca A anatomia patológica não reduziu nem reconduziu às normas da cientificidade a positividade da medicina clínica O saber não é o canteiro epistemológico que desapareceria na ciência que o realiza A ciência ou o que passa por tal localizase em um campo de saber e nele tem um papel que varia conforme as diferentes formações discursivas e que se modifica de acordo com suas mutações Aquilo que na época clássica era considerado como conhecimento médico das doenças da mente ocupava no saber da loucura um lugar muito limitado não era mais que uma de suas superfícies de afloramento entre muitas outras jurisprudência casuística regulamentação policial etc em compensação as análises psicopatológicas do século XIX que também passavam por A Arqueologia do Saber 207 conhecimento científico das doenças mentais desempenharam um papel muito diferente e bem mais importante no saber da loucura papel de modelo e de instância de decisão Do mesmo modo o discurso científico ou supostamente científico não garante a mesma função no saber econômico do século XVII e no do século XIX Encontrase uma relação específica entre ciência e saber em toda formação discursiva a análise arqueológica ao invés de definir entre eles uma relação de exclusão ou de subtração buscando a parte do saber que se furta e resiste ainda à ciência e a parte da ciência que ainda está comprometida pela vizinhança e influência do saber deve mostrar positivamente como uma ciência se inscreve e funciona no elemento do saber É sem dúvida aí nesse espaço de ação que se estabelecem e se especificam as relações da ideologia com as ciências A influência da ideologia sobre o discurso científico e o funcionamento ideológico das ciências não se articulam no nível de sua estrutura ideal mesmo que nele possam traduzirse de uma forma mais ou menos visível nem no nível de sua utilização técnica em uma sociedade se bem que esta possa aí entrar em vigor nem no nível da consciência dos sujeitos que a constroem articulamse onde a ciência se destaca sobre o saber Se a questão da ideologia pode ser proposta à ciência é na medida em que esta sem se identificar com o saber mas sem apagálo ou excluílo nele se localiza estrutura alguns de seus objetos sistematiza algumas de suas enunciações formaliza alguns de seus conceitos e de suas estratégias é na medida em que por um lado esta elaboração escande o saber o modifica o redistribui e por outro o confirma e o deixa valer é na medida em que a ciência encontra seu lugar em uma regularidade discursiva e por isso se desdobra e funciona em todo um campo de práticas discursivas ou não Em resumo a questão da ideologia proposta à ciência não é a questão das situações ou das práticas que ela reflete de um modo mais ou menos consciente não é tampouco a questão de sua utilização eventual ou de todos os empregos abusivos que se possa dela fazer é a questão de sua existência como prática discursiva e de seu funcionamento entre outras práticas Podese dizer grosso modo e passando por cima de qualquer mediação e especificidade que a economia política tem um papel na sociedade capitalista que ela serve aos interesses da classe burguesa que foi feita por ela e para ela que 208 Michel Foucault carrega enfim o estigma de suas origens até em seus conceitos e em sua arquitetura lógica mas qualquer descrição mais precisa das relações entre a estrutura epistemológica da economia e sua função ideológica deverá passar pela análise da formação discursiva que lhe deu lugar e do conjunto dos objetos conceitos e escolhas teóricas que tiveram de ser elaborados e sistematizados Deveremos mostrar então como a prática discursiva que deu lugar a tal positividade funcionou entre outras práticas que podiam ser de ordem discursiva mas também de ordem política ou econômica Isso permite antecipar um certo número de proposições 1 A ideologia não exclui a cientificidade Poucos discursos deram tanto lugar à ideologia quanto o discurso clínico ou o da economia política não é uma razão suficiente para apontar erro contradição ausência de objetividade no conjunto de seus enunciados 2 As contradições as lacunas as falhas teóricas podem assinalar o funcionamento ideológico de uma ciência ou de um discurso com pretensão científica podem permitir determinar em que ponto do edifício esse funcionamento se dá Mas a análise de tal funcionamento deve ser feita no nível da positividade e das relações entre as regras da formação e as estruturas da cientificidade 3 Corrigindose retificando seus erros condensando suas formalizações um discurso não anula forçosamente sua relação com a ideologia O papel da ideologia não diminui à medida que cresce o rigor e que se dissipa a falsidade 4 Estudar o funcionamento ideológico de uma ciência para fazêlo aparecer e para modificálo não é revelar os pressupostos filosóficos que podem habitálo não é retornar aos fundamentos que a tornaram possível e que a legitimam é colocála novamente em questão como formação discursiva é estudar não as contradições formais de suas proposições mas o sistema de formação de seus objetos tipos de enunciação conceitos e escolhas teóricas É retomála como prática entre outras práticas d Os diferentes limiares e sua cronologia A propósito de uma formação discursiva podemse descrever diversas emergências distintas O momento a partir do qual uma prática discursiva se individualiza e assume sua autonomia o momento por conseguinte em que se encontra em ação um único e mesmo sistema de formação dos A Arqueologia do Saber 209 enunciados ou ainda o momento em que esse sistema se transforma poderá ser chamado limiar de positividade Quando no jogo de uma formação discursiva um conjunto de enunciados se delineia pretende fazer valer mesmo sem conseguilo normas de verificação e de coerência e o fato de que exerce em relação ao saber uma função dominante modelo crítica ou verificação diremos que a formação discursiva transpõe um limiar de epistemologização Quando a figura epistemológica assim delineada obedece a um certo número de critérios formais quando seus enunciados não respondem somente a regras arqueológicas de formação mas além disso a certas leis de construção das proposições diremos que ela transpôs um limiar de cientificidade Enfim quando esse discurso científico por sua vez puder definir os axiomas que lhe são necessários os elementos que usa as estruturas proposicionais que lhe são legítimas e as transformações que aceita quando puder assim desenvolver a partir de si mesmo o edifício formal que constitui diremos que transpôs o limiar da formalização A repartição desses diferentes limiares no tempo sua sucessão sua defasagem sua eventual coincidência a maneira pela qual se podem comandar ou implicar uns aos outros e as condições nas quais alternadamente se instauram constituem para a arqueologia um de seus domínios maiores de exploração Sua cronologia na verdade não é nem regular nem homogênea Não é com o mesmo ritmo e ao mesmo tempo que todas as formações discursivas os transpõem escandindo assim a história dos conhecimentos humanos em diferentes períodos na época em que muitas positividades transpuseram o limiar da formalização muitas outras ainda não tinham atingido o da cientificidade ou mesmo da epistemologização Além disso cada formação discursiva não passa sucessivamente pelos diferentes limiares como pelos estágios naturais de uma maturação biológica em que a única variável seria o tempo de latência ou a duração dos intervalos Tratase de fato de acontecimentos cuja dispersão não é evolutiva sua ordem singular é um dos caracteres de cada formação discursiva Eis alguns exemplos de tais diferenças Em certos casos o limiar da positividade é transposto muito antes do da epistemologização assim a Psicopatologia como discurso de pretensão científica epistemologizou no início do século XIX com Pinel Heinroth e Esquirol uma prática 210 Michel Foucault discursiva que lhe preexistia amplamente e que adquirira há muito tempo sua autonomia e seu sistema de regularidade Mas pode acontecer também que esses dois limiares estejam confundidos no tempo e que a instauração de uma positividade seja ao mesmo tempo a emergência de uma figura epistemológica Às vezes os limiares de cientificidade estão ligados à passagem de uma positividade a outra às vezes são diferentes disso assim a passagem da história natural com a cientificidade que lhe era própria à biologia como ciência não da classificação dos seres mas das correlações específicas entre os diferentes organismos só se efetuou na época de Cuvier com a transformação de uma positividade em outra em compensação a medicina experimental de Claude Bernard depois a microbiologia de Pasteur modificaram o tipo de cientificidade requerido pela anatomia e fisiologia patológicas sem que a formação discursiva da medicina clínica tal como fora estabelecida na época tivesse sido posta fora de cena Da mesma forma a nova cientificidade instituída nas disciplinas biológicas pelo evolucionismo não modificou a positividade biológica que fora definida na época de Cuvier No caso da economia os rompimentos são particularmente numerosos Podese reconhecer no século XVII um limiar de positividade ele coincide aproximadamente com a prática e a teoria do mercantilismo mas sua epistemologização só se produziria um pouco mais tarde no fim do século ou no início do século seguinte com Locke e Cantillon No entanto o século XIX assinala ao mesmo tempo com Ricardo um novo tipo de positividade uma nova forma de espistemologização que Cournot e Jevons por sua vez modificariam justamente na época em que Marx a partir da economia política faria aparecer uma prática discursiva inteiramente nova Se só se reconhecer na ciência o acúmulo linear das verdades ou a ortogênese da razão se nela só se reconhecer uma prática discursiva que tem seus níveis seus limiares suas rupturas diversas só se poderá descrever uma única divisão histórica cujo modelo não se deixa de reconduzir ao longo dos tempos para uma forma de saber não importa qual a divisão entre o que não é ainda científico e o que o é definitivamente Toda a densidade das separações toda a dispersão das rupturas toda a defasagem de seus efeitos e o jogo de sua A Arqueologia do Saber 211 interdependência achamse reduzidos ao ato monótono de uma fundação que é preciso sempre repetir Só existe sem dúvida uma ciência para a qual não se podem distinguir esses diferentes limiares nem descrever entre eles semelhante conjunto de defasagens a matemática única prática discursiva que transpôs de uma só vez o limiar da positividade o de epistemologização o da cientificidade e o da formalização A própria possibilidade de sua existência implicava que fosse considerado logo de início aquilo que em todos os outros casos permanece disperso ao longo da história sua positividade primeira devia constituir uma prática discursiva já formalizada mesmo que outras formalizações devessem em seguida ser operadas Daí o fato de ser sua instauração ao mesmo tempo tão enigmática tão pouco acessível à análise tão fechada na forma do começo absoluto e tão valorizada já que vale concomitantemente como origem e como fundamento daí o fato de se ter visto no primeiro gesto do primeiro matemático a constituição de uma idealidade que se desenrolou ao longo da história e que só foi questionada para ser repetida e purificada daí o fato de se examinar o começo da matemática menos como um acontecimento histórico do que a título de princípio de historicidade daí enfim o fato de se relacionar no caso de todas as outras ciências a descrição de sua gênese histórica de suas tentativas e de seus fracassos de sua tardia abertura como o modelo metaistórico de uma geometria que emerge súbita e definitivamente das práticas triviais da agrimensura Mas ao tomar o estabelecimento do discurso matemático como protótipo do nascimento e do devir de todas as outras ciências correse o risco de homogeneizar todas as formas singulares de historicidade reconduzir à instância de um único corte todos os limiares diferentes que uma prática discursiva pode transpor e reproduzir indefinidamente em todos os momentos a problemática da origem assim se achariam renovados os direitos da análise históricotranscendental A matemática foi seguramente modelo para a maioria dos discursos científicos em seu esforço de alcançar o rigor formal e a demonstratividade mas para o historiador que interroga o devir efetivo das ciências ela é um mau exemplo um exemplo que não se poderia de forma alguma generalizar 212 Michel Foucault e Os diferentes tipos de história das ciências Os múltiplos limiares que puderam ser demarcados permitem formas distintas de análise histórica De início no nível da formalização é essa história que a matemática não deixa de contar sobre si mesma no processo de sua própria elaboração O que ela foi em um dado momento seu domínio seus métodos os objetos que define a linguagem que emprega jamais é lançado ao campo exterior da nãocientificidade mas se encontra continuamente redefinido ainda que a título de região caída em desuso ou atingida provisoriamente pela esterilidade no edifício formal que constitui esse passado se revela como caso particular modelo ingênuo esboço parcial e insuficientemente generalizado de uma teoria mais abstrata mais poderosa ou de mais alto nível a matemática retranscreve seu percurso histórico real no vocabulário das vizinhanças das dependências das subordinações das formalizações progressivas das generalidades que se enredam Para essa história da matemática a que ela constitui e a que conta a propósito de si mesma a álgebra de Diofante não é uma experiência que permanece em suspenso é um caso particular da álgebra tal como o conhecemos desde Abel e Galois o método grego das exaustões não foi um impasse de que foi preciso desviar é um modelo ingênuo do cálculo integral Acontece que cada peripécia histórica tem seu nível e sua localização formais Tratase de uma análise recorrencial que só pode ser feita no interior de uma ciência constituída uma vez transposto seu limiar de formalização1 É diferente a análise histórica que se situa no limiar da cientificidade e que se interroga sobre a maneira pela qual ele pôde ser transposto a partir de figuras epistemológicas diversas Tratase de saber por exemplo como um conceito carregado ainda de metáforas ou de conteúdos imaginários se purificou e pôde assumir status e função de conceito científico de saber como uma região de experiência já demarcada já parcialmente articulada mas ainda atravessada por 1 Cf sobre o assunto Les anamnèses mathématiques in Hermès ou la communication Michel Serres p 78 A Arqueologia do Saber 213 utilizações práticas imediatas ou valorizações efetivas pôde constituirse em um domínio científico de saber de modo mais geral como uma ciência se estabeleceu acima e contra um nível précientífico que ao mesmo tempo a preparava e resistia a seu avanço e como pôde transpor os obstáculos e as limitações que ainda se lhe opunham G Bachelard e G Canguilhem apresentaram os modelos dessa história Ela não tem necessidade como a análise recorrencial de se situar no próprio interior da ciência de recolocar todos os seus episódios no edifício por ela constituído e de contar sua formalização no vocabulário formal que é hoje o seu como aliás ela o poderia já que mostra do que a ciência se libertou e tudo que teve de abandonar para atingir o limiar da cientificidade Por isso mesmo essa descrição toma por norma a ciência constituída a história que ela conta é necessariamente escandida pela oposição verdade e erro racional e irracional obstáculo e fecundidade pureza e impureza científico e não científico Tratase de uma história epistemológica das ciências O terceiro tipo de análise histórica é o que toma como ponto de ataque o limiar de epistemologização o ponto de clivagem entre as formações discursivas definidas por sua positividade e figuras epistemológicas que não são todas forçosamente ciências e que de resto talvez jamais cheguem a sêlo Nesse nível a cientificidade não serve como norma o que se tenta revelar na história arqueológica são as práticas discursivas na medida em que dão lugar a um saber e em que esse saber assume o status e o papel de ciência Empreender nesse nível uma história das ciências não é descrever formações discursivas sem considerar estruturas epistemológicas é mostrar como a instauração de uma ciência e eventualmente sua passagem à formalização pode ter encontrado sua possibilidade e sua incidência em uma formação discursiva e nas modificações de sua positividade Tratase pois para tal análise de traçar o perfil da história das ciências a partir de uma descrição das práticas discursivas de definir como segundo que regularidade e graças a que modificações ela pôde dar lugar aos processos de epistemologização atingir as normas da cientificidade e talvez chegar ao limiar da formalização Procurar o nível da prática discursiva na densidade histórica das ciências não significa querer reconduzila a um nível profundo e originário ao solo da experiência vivida à terra que se 214 Michel Foucault apresenta irregular e retalhada anterior a qualquer geometria ao céu que cintila através do esquadrinhamento de qualquer astronomia querse sim fazer aparecer entre positividades saber figuras epistemológicas e ciências todo o jogo das diferenças das relações dos desvios das defasagens das independências das autonomias e a maneira pela qual se articulam entre si suas historicidades A análise das formações discursivas das positividades e do saber em suas relações com as figuras epistemológicas e as ciências é o que se chamou para distinguilas das outras formas possíveis de história das ciências a análise da episteme Suspeitaremos talvez que a episteme seja algo como uma visão do mundo uma fatia de história comum a todos os conhecimentos e que imporia a cada um as mesmas normas e os mesmos postulados um estágio geral da razão uma certa estrutura de pensamento a que não saberiam escapar os homens de uma época grande legislação escrita definitivamente por mão anônima Por episteme entendese na verdade o conjunto das relações que podem unir em uma dada época as práticas discursivas que dão lugar a figuras epistemológicas a ciências eventualmente a sistemas formalizados o modo segundo o qual em cada uma dessas formações discursivas se situam e se realizam as passagens à epistemologização à cientificidade à formalização a repartição desses limiares que podem coincidir ser subordinados uns aos outros ou estar defasados no tempo as relações laterais que podem existir entre figuras epistemológicas ou ciências na medida em que se prendam a práticas discursivas vizinhas mas distintas A episteme não é uma forma de conhecimento ou um tipo de racionalidade que atravessando as ciências mais diversas manifestaria a unidade soberana de um sujeito de um espírito ou de uma época é o conjunto das relações que podem ser descobertas para uma época dada entre as ciências quando estas são analisadas no nível das regularidades discursivas A descrição da episteme apresenta portanto diversos caracteres essenciais abre um campo inesgotável e não pode nunca ser fechada não tem por finalidade reconstituir o sistema de postulados a que obedecem todos os conhecimentos de uma época mas sim percorrer um campo indefinido de relações Além disso a episteme não é uma figura imóvel que A Arqueologia do Saber 215 surgida um dia seria convocada a apagarse bruscamente é um conjunto indefinidamente móvel de escansões defasagens coincidências que se estabelecem e se desfazem A episteme ainda como conjunto de relações entre ciências figuras epistemológicas positividades e práticas discursivas permite compreender o jogo das coações e das limitações que em um momento determinado se impõem ao discurso mas essa limitação não é aquela que negativa opõe ao conhecimento a ignorância ao raciocínio a imaginação à experiência já acumulada a fidelidade às aparências e às inferências e às deduções o devaneio a episteme não é o que se pode saber em uma época tendo em conta insuficiências técnicas hábitos mentais ou limites colocados pela tradição é aquilo que na positividade das práticas discursivas torna possível a existência das figuras epistemológicas e das ciências Finalmente vêse que a análise da episteme não é uma maneira de retomar a questão crítica sendo apresentado algo como uma ciência qual é seu direito ou sua legitimidade é uma interrogação que só acolhe o dado da ciência a fim de se perguntar o que é para essa ciência o fato de ser conhecida No enigma do discurso científico o que ela põe em jogo não é o seu direito de ser uma ciência é o fato de que ele existe E o ponto onde se separa de todas as filosofias do conhecimento é que ela não relaciona tal fato à instância de uma doação originária que fundaria em um sujeito transcendental o fato e o direito mas sim aos processos de uma prática histórica f Outras arqueologias Uma questão permanece em suspenso seria possível conceber uma análise arqueológica que fizesse aparecer a regularidade de um saber mas que não se propusesse a analisálo na direção das figuras epistemológicas e das ciências A orientação voltada para a episteme é a única que pode abrirse à arqueologia Deve ser esta e exclusivamente uma certa maneira de interrogar a história das ciências Em outras palavras limitandose até o momento à região dos discursos científicos a arqueologia tem obedecido a uma necessidade que não poderia superar ou tem esboçado em um exemplo 216 Michel Foucault particular formas de análise que podem ter uma extensão inteiramente diferente No momento avancei muito pouco para responder definitivamente a essa pergunta Mas imagino de bom grado aguardando ainda numerosas experiências que seria preciso empreender e muitas tentativas arqueologias que se desenvolveriam em direções diferentes Consideremos por exemplo uma descrição arqueológica da sexualidade Vejo bem de agora em diante como se poderia orientála no sentido da episteme mostraríamos de que maneira no século XIX se formaram figuras epistemológicas como a biologia ou a psicologia da sexualidade e por qual ruptura se instaurou com Freud um discurso de tipo científico Mas percebo também uma outra possibilidade de análise ao invés de estudar o comportamento sexual dos homens em uma dada época procurando sua lei em uma estrutura social em um inconsciente coletivo ou em uma certa atitude moral ao invés de descrever o que os homens pudessem pensar da sexualidade que interpretação religiosa lhe davam que valorização ou que reprovação faziam recair sobre ela que conflitos de opinião ou de moral ela podia suscitar perguntaríamos se nessas condutas assim como nessas representações toda uma prática discursiva não se encontra inserida se a sexualidade fora de qualquer orientação para um discurso científico não é um conjunto de objetos de que se pode falar ou de que é proibido falar um campo de enunciações possíveis quer se trate de expressões líricas ou de prescrições jurídicas um conjunto de conceitos que podem sem dúvida ser apresentados sob a forma elementar de noções ou de temas um jogo de escolhas que pode aparecer na coerência das condutas ou em sistemas de prescrição Tal arqueologia se fosse bemsucedida em sua tarefa mostraria como as proibições as exclusões os limites as valorizações as liberdades as transgressões da sexualidade todas as suas manifestações verbais ou não estão ligadas a uma prática discursiva determinada Ela faria aparecer não certamente como verdade última da sexualidade mas como uma das dimensões segundo as quais pode ser descrita uma certa maneira de falar e essa maneira de falar mostraria como ela está inserida não em discursos científicos mas em um sistema de proibições e de valores Tal análise seria feita assim A Arqueologia do Saber 217 não na direção de episteme mas no sentido do que se poderia chamar ética Eis o exemplo entretanto de uma outra orientação possível Para analisar um quadro podese reconstituir o discurso latente do pintor podese querer reencontrar o murmúrio de suas intenções que não são em última análise transcritas em palavras mas em linhas superfícies e cores podese tentar destacar a filosofia implícita que supostamente forma sua visão do mundo É possível igualmente interrogar a ciência ou pelo menos as opiniões da época e procurar reconhecer o que o pintor lhes tomou emprestado A análise arqueológica teria um outro fim pesquisaria se o espaço a distância a profundidade a cor a luz as proporções os volumes os contornos não foram na época considerada nomeados enunciados conceitualizados em uma prática discursiva e se o saber resultante dessa prática discursiva não foi talvez inserido em teorias e especulações em formas de ensino e em receitas mas também em processos em técnicas e quase no próprio gesto do pintor Não se trataria de mostrar que a pintura é uma certa maneira de significar ou de dizer que teria a particularidade de dispensar palavras Seria preciso mostrar que em pelo menos uma de suas dimensões ela é uma prática discursiva que toma corpo em técnicas e em efeitos Assim descrita a pintura não é uma simples visão que se deveria em seguida transcrever na materialidade do espaço Não é mais um gesto nu cujas significações mudas e indefinidamente vazias deveriam ser liberadas por interpretações ulteriores É inteiramente atravessada independentemente dos conhecimentos científicos e dos temas filosóficos pela positividade de um saber Pareceme que se poderia fazer também uma análise do mesmo tipo a propósito do saber político Tentaríamos ver se o comportamento político de uma sociedade de um grupo ou de uma classe não é atravessado por uma prática discursiva determinada e descritível Essa positividade não coincidiria evidentemente nem com as teorias políticas da época nem com as determinações econômicas da política ela definiria o que pode tornarse objeto de enunciação as formas que tal enunciação pode tomar os conceitos que aí se encontram empregados e as escolhas estratégicas que aí se operam Em lugar de analisálo o que é sempre possível na direção da episteme a 218 Michel Foucault que pode dar lugar analisaríamos esse saber na direção dos comportamentos das lutas dos conflitos das decisões e das táticas Faríamos aparecer assim um saber político que não é da ordem de uma teorização secundária da prática e que não é tampouco uma aplicação da teoria Já que é regularmente formado por uma prática discursiva que se desenrola entre outras práticas e se articula com elas ele não constitui uma expressão que refletiria de maneira mais ou menos adequada um certo número de dados objetivos ou de práticas reais Inscrevese logo de início no campo das diferentes práticas em que encontra ao mesmo tempo sua especificação suas funções e a rede de suas dependências Se tal descrição fosse possível veríamos que não haveria necessidade de passar pela instância de uma consciência individual ou coletiva para compreender o lugar de articulação entre uma prática e uma teoria políticas não haveria necessidade de procurar saber em que medida essa consciência pode de um lado exprimir condições mudas de outro mostrarse sensível a verdades teóricas não teríamos de colocar o problema psicológico de uma tomada de consciência teríamos de analisar a formação e as transformações de um saber A questão por exemplo não seria determinar a partir de que momento aparece uma consciência revolucionária nem que papéis respectivos puderam desempenhar as condições econômicas e o trabalho de elucidação teórica na gênese dessa consciência não se trataria de retraçar a biografia geral e exemplar do homem revolucionário ou de encontrar o enraizamento de seu projeto mas de mostrar como se formaram uma prática discursiva e um saber revolucionário que estão envolvidos em comportamentos e estratégias que dão lugar a uma teoria da sociedade e que operam a interferência e a mútua transformação de uns e outros Podese responder agora à pergunta que se propunha há pouco a arqueologia só se ocupa das ciências e nunca passa de uma análise dos discursos científicos E responder duas vezes não O que a arqueologia tenta descrever não é a ciência em sua estrutura específica mas o domínio bem diferente do saber Além disso se ela se ocupa do saber em sua relação como as figuras epistemológicas e as ciências pode do mesmo modo interrogar o saber em uma direção diferente e descrevêlo em um outro feixe de relações A orientação para a A Arqueologia do Saber 219 episteme foi a única explorada até aqui A razão disso é que por um gradiente que caracteriza sem dúvida nossas culturas as formações discursivas não param de se epistemologizar Foi interrogando as ciências sua história sua estranha unidade sua dispersão e suas rupturas que o domínio das positividades pôde aparecer foi no interstício dos discursos científicos que se pôde apreender o jogo das formações discursivas Não é surpreendente em tais condições que a região mais fecunda a mais aberta à descrição arqueológica tenha sido a era clássica que do Renascimento ao século XIX desenvolveu a epistemologização de tantas positividades não é surpreendente tampouco que as formações discursivas e as regularidades específicas do saber se tenham delineado justamente onde os níveis da cientificidade e da formalização foram os mais difíceis de ser atingidos Mas esse é apenas o ponto preferencial da abordagem não é um domínio obrigatório para a arqueologia CHILDREN AND ADHD CHANGING TENSE SITUATIONS OFTEN Reducing stress in the home often makes a positive difference for children with ADHD Consistent limits and expectations are equally important Each parent should try to maintain a positive but firm handling style Parents should Provide children with opportunities to talk about their feelings Use calmer and more positive words Set clear household rules Provide consistent temperature Use shorter sentences Help children notice their behavior and change it when necessary For more information please contact National 8002334050CHILDRENS HOSPITALS Parent HELPLINE TEXT THE WORDPgh 4HEALTH to 888777 Youth The Childrens Hospital of PHILADELPHIAThe Childrens Hospital of Philadelphia 3T Medical Center Campus PHILADELPHIA PA 19104 800INFORME wwwchopedufamilyresources 4472 1214 2014 The Childrens Hospital of Philadelphia All rights reserved Printed on recycled paper All CHOP materials are professionally reviewed93033333221133ficiency in the area of social skills and common courtesy at home school and elsewhere In contrast children who do not also have ADHD rarely experience difficulty establishing Genuine from parents and other adults but people can use social skills more effectively with practice caregivers including parents In particularchildren with ADHD and ODD often have difficulty withappropriate social responses to peers This is a majorconcern of teachers and peers and one reason these childrenare often socially rejected CHOP FAMILY RESOURCES FOR PARENTS AND TEACHERS CHILDREN AND ADHD Changing Tense Situations Often Reducing stress in the home often makes a positive difference for children with ADHD Consistent limits and expectations are equally important Each parent should try to maintain a positive but firm handling style Parents should Provide children with opportunities to talk about their feelings Use calmer and more positive words Set clear household rules Provide consistent temperature Use shorter sentences Help children notice their behavior and change it when necessary For more information please contact National 8002334050 CHILDRENS HOSPITALS Parent HELPLINE TEXT THE WORD Pgh 4HEALTH to 888777 Youth The Childrens Hospital of PHILADELPHIA The Childrens Hospital of Philadelphia 3T Medical Center Campus PHILADELPHIA PA 19104 800INFORME wwwchopedufamilyresources 4472 1214 2014 The Childrens Hospital of Philadelphia All rights reserved Printed on recycled paper All CHOP materials are professionally reviewed V CONCLUSÃO no text present in this image Ao longo deste livro você tentou nem bem nem mal escapar do estruturalismo ou do que se compreende comumente por esse nome Acentuou que não usava seus métodos nem seus conceitos que não se referia aos processos da descrição linguística que não tinha nenhuma preocupação com formalização Mas o que significam tais divergências a não ser que você fracassou em empregar o que pode haver de positivo nas análises estruturais o que elas podem comportar de rigor e de eficácia demonstrativa e que o domínio que você tentou abordar é rebelde a esse gênero de empreendimento continuando sua riqueza a escapar aos esquemas em que você queria fechálo Com muita desenvoltura você mascarou sua impotência em termos de método apresentanos agora como uma diferença explicitamente desejada a distância invencível que o mantém e o manterá sempre separado de uma verdadeira análise estrutural Você não conseguiu nos enganar É verdade que no vazio deixado pelos métodos que você não empregou você lançou toda uma série de noções que parecem estranhas aos conceitos hoje admitidos pelos que descrevem línguas ou mitos obras literárias ou contos você falou de formações positividades saber práticas discursivas toda uma panóplia de termos cuja singularidade e poderes maravilhosos você tinha a satisfação de sublinhar a cada momento Mas teria de inventar tantas extravagâncias se não tivesse tentado valorizar em um domínio que lhes era irredutível alguns dos temas fundamentais do estruturalismo e até aqueles que constituem seus postulados mais contestáveis sua mais duvidosa filosofia Tudo se passa como se você tivesse retido métodos contemporâneos de análise não o trabalho empírico e sério mas dois ou três temas que são mais extrapolações destes do que princípios necessários 224 Michel Foucault Foi assim que você quis reduzir as dimensões próprias do discurso abandonar sua irregularidade específica ocultar o que ele pode comportar de iniciativa e de liberdade compensar o desequilíbrio que instaura na língua você quis fechar essa abertura A exemplo de uma certa forma de linguística você procurou dispensar o sujeito falante acreditou que se podia livrar o discurso de todas as suas referências antropológicas e tratálo como se jamais tivesse sido formulado por alguém como se nunca tivesse nascido em circunstâncias particulares como se não fosse atravessado por representações como se não se dirigisse a ninguém Finalmente você aplicoulhe um princípio de simultaneidade recusouse a ver que o discurso diversamente talvez da língua é essencialmente histórico que não era constituído de elementos disponíveis mas de acontecimentos reais e sucessivos e que não se pode analisálo fora do tempo em que se desenvolveu Você tem razão ignorei a transcendência do discurso recuseime descrevendoo a relacionálo como uma subjetividade não acentuei em primeiro lugar e como se devesse ser a forma geral seu caráter diacrônico Mas tudo isso não se destinava a prolongar além do domínio da língua conceitos e métodos que nela tinham sido experimentados Se falei de um discurso não foi para mostrar que os mecanismos ou os processos da língua aí se mantinham integralmente mas antes para fazer aparecer na densidade das performances verbais a diversidade dos níveis possíveis de análise para mostrar que ao lado dos métodos de estruturação linguística ou dos de interpretação podiase estabelecer uma descrição específica dos enunciados de sua formação e das regularidades próprias do discurso Se suspendi as referências ao sujeito falante não foi para descobrir leis de construção ou formas que seriam aplicadas da mesma maneira por todos os sujeitos falantes nem para fazer falar o grande discurso universal que seria comum a todos os homens de uma época Tratavase pelo contrário de mostrar em que consistiam as diferenças como era possível que homens no interior de uma mesma prática discursiva falassem de objetos diferentes tivessem opiniões opostas fizessem escolhas contraditórias tratavase também de mostrar em que as diferentes práticas discursivas se distinguiam umas das outras em suma não quis A Arqueologia do Saber 225 excluir o problema do sujeito quis definir as posições e as funções que o sujeito podia ocupar na diversidade dos discursos Finalmente você pôde constatar não neguei a história mantive em suspenso a categoria geral e vazia da mudança para fazer aparecerem transformações de níveis diferentes recuso um modelo uniforme de temporalização para descrever a propósito de cada prática discursiva suas regras de acúmulo exclusão reativação suas formas próprias de derivação e suas modalidades específicas de conexão em sequências diversas Não quis portanto levar além de seus limites legítimos o empreendimento estruturalista Você há de convir que não empreguei uma única vez o termo estrutura em Les mots et les choses Mas deixemos as polêmicas a respeito do estruturalismo elas sobrevivem com dificuldade em regiões hoje abandonadas pelos que trabalham esta luta outrora fecunda só é conduzida agora pelos farsantes e pelos forasteiros Por mais que você queira evitar tais polêmicas não escapará ao problema pois não é no estruturalismo que ele se encontra Reconhecemos de bom grado sua justeza e eficácia quando se trata de analisar uma língua mitologias narrativas populares poemas sonhos obras literárias talvez filmes a descrição estrutural faz com que apareçam relações que sem ela não poderiam ter sido isoladas ela permite definir elementos recorrentes com suas formas de oposição e seus critérios de individualização permite estabelecer também leis de construção equivalências e regras de transformação Apesar de algumas reticências que puderam ser marcadas no início aceitamos agora sem dificuldade que a língua o inconsciente a imaginação dos homens obedecem a leis de estrutura Mas o que recusamos inteiramente é o que você faz poder analisar os discursos científicos em sua sucessão sem relacionálos a algo como uma atividade constituinte sem reconhecer até em suas hesitações a abertura de um projeto originário ou de uma teleologia fundamental sem reencontrar a profunda continuidade que os liga e os conduz até o ponto de onde podemos retomálos poder assim destrinçar o devir da razão e liberar de qualquer índice de subjetividade a história do pensamento Limitemos o debate admitimos que se possa falar em termos de elementos e de regras de 226 Michel Foucault construção da linguagem em geral da linguagem de outro lugar e de outro tempo que é a dos mitos ou ainda da linguagem apesar de tudo um pouco estranha que é a de nosso inconsciente ou de nossas obras mas a linguagem de nosso saber que temos aqui e agora o próprio discurso estrutural que nos permite analisar tantas outras linguagens nós a consideramos como irredutível em sua densidade histórica Você não pode esquecer igualmente que é a partir dela de sua lenta gênese do devir obscuro que a conduziu ao estado atual que podemos falar dos outros discursos em termos de estruturas foi ela que nos deu essa possibilidade e esse direito ela forma a mancha cega a partir da qual as coisas em torno de nós se dispõem como as vemos hoje Queremos lidar com elementos relações e descontinuidades quando analisamos lendas indoeuropéias ou tragédias de Racine aceitamos ainda que se dispense sempre que possível uma interrogação sobre os sujeitos falantes mas contestamos que se possam tomar como pretexto essas tentativas bemsucedidas para fazer refluir a análise para remontar às formas do discurso que as torna possíveis e para pôr em questão o próprio lugar de onde falamos hoje A história das análises onde a subjetividade se esquiva guarda consigo sua própria transcendência Pareceme que é justamente esse e muito mais que na questão repisada do estruturalismo o ponto do debate e da resistência que você opõe Permitame como passatempo é claro porque como você bem sabe não tenho inclinação particular para a interpretação dizerlhe como compreendi seu discurso de há pouco Claro dizia você em surdina estamos de agora em diante coagidos apesar de todos os combates de retaguarda que travamos a aceitar que discursos dedutivos sejam formalizados claro que devemos suportar que se descreva não a história de uma alma não um projeto de existência mas a arquitetura de um sistema filosófico claro não importa o que pensemos devemos tolerar as análises que relacionam as obras literárias não à experiência vivida de um indivíduo mas às estruturas da língua Claro foi preciso que abandonássemos todos os discursos que sujeitávamos outrora à soberania da consciência Mas o que perdemos já há mais de meio século queremos recuperar em um segundo momento pela análise de todas essas análises ou pelo A Arqueologia do Saber 227 menos pela interrogação fundamental que lhes endereçamos Vamos perguntarlhes de onde vêm qual é a destinação histórica que as atravessa sem que disso se dêem conta que ingenuidade as impossibilita de ver as condições que as tornam possíveis em que clausura metafísica se fecha seu positivismo rudimentar Será irrelevante finalmente que o inconsciente não seja a extremidade implícita da consciência como acreditávamos e afirmávamos será irrelevante que uma mitologia não seja mais uma visão do mundo e que um romance seja algo diferente da vertente exterior de uma experiência vivida pois a razão que estabelece todas essas verdades novas temola sob grande vigilância nem ela nem seu passado nem o que a torna possível nem o que a faz nossa escapa à delimitação transcendental Será a ela agora e estamos firmemente decididos a jamais renunciar a isto que colocaremos a questão da origem da constituição inicial do horizonte teleológico da continuidade temporal Será este pensamento que hoje se efetiva como nosso que manteremos na dominância históricotranscendental Isso porque se somos obrigados a suportar de bom ou mau grado todos os estruturalismos não podemos aceitar que se toque na história do pensamento que é a história de nós mesmos não podemos aceitar que se desfaçam todos os laços transcendentais que a ligaram desde o século XIX à problemática da origem e da subjetividade A quem se aproximar da fortaleza em que nos refugiamos mas que queremos manter solidamente repetiremos com o gesto que imobiliza a profanação Noli tangere Ora obstineime em avançar Não que esteja certo da vitória nem conte com as minhas armas Mas porque achei que no momento era o essencial libertar a história do pensamento de sua sujeição transcendental O problema para mim não era absolutamente estruturalizála aplicando ao devir do saber ou a gênese das ciências categorias que tinham sido testadas no domínio da língua Tratavase de analisar tal história em uma descontinuidade que nenhuma teleologia reduziria antecipadamente demarcála em uma dispersão que nenhum horizonte prévio poderia tornar a fechar deixar que ela se desenrolasse em um anonimato a que nenhuma constituição transcendental imporia a forma do sujeito abrila a uma temporalidade que não prometeria o retorno de nenhuma aurora Tratavase de despojála de qualquer narcisismo 228 Michel Foucault transcendental era preciso libertála da esfera da origem perdida e reencontrada em que estava presa era preciso mostrar que a história do pensamento não podia ter o papel revelador do momento transcendental que a mecânica racional já não tem desde Kant nem as idealidades matemáticas desde Husserl nem as significações do mundo percebido desde MerleauPonty a despeito dos esforços que foram feitos para aí descobrilo Creio que no fundo apesar do equívoco introduzido pelo aparente debate do estruturalismo nós nos entendemos perfeitamente isto é entendíamos perfeitamente o que queríamos fazer Era normal que você defendesse o direito de uma história contínua aberta ao mesmo tempo ao trabalho de uma teleologia e aos processos indefinidos da causalidade mas não era para protegêla de uma invasão estrutural que lhe desconhecesse o movimento espontaneidade e o dinamismo interno você queria na verdade garantir os poderes de uma consciência constituinte pois eles é que eram postos em questão Ora tal defesa devia ter lugar em outra cena e não no próprio local do debate pois se você reconhecia em uma pesquisa empírica em um mínimo trabalho de história o direito de contestar a dimensão transcendental então abria mão do essencial Daí uma série de deslocamentos Tratar a arqueologia como uma busca da origem dos a priori formais dos atos fundadores em suma como uma espécie de fenomenologia histórica enquanto para ela se trata ao contrário de libertar a história da dominação fenomenológica e objetarlhe então que ela fracassa em sua tarefa e que só descobre uma série de fatos empíricos Depois opor à descrição arqueológica à sua preocupação de estabelecer limiares rupturas e transformações o verdadeiro trabalho dos historiadores que seria o de mostrar as continuidades enquanto há dezenas de anos o propósito da história não é esse e criticarlhe então sua indiferença em relação às empiricidades Depois ainda considerála como uma empresa para descrever totalidades culturais para homogeneizar as diferenças mais manifestas e reencontrar a universalidade das formas coatoras enquanto ela tem por propósito definir a especificidade singular das práticas discursivas e objetarlhe então diferenças mudanças e mutações Finalmente designála como a importação no domínio da história do estruturalismo se bem que seus métodos e A Arqueologia do Saber 229 conceitos não possam em caso algum se prestar à confusão e mostrar então que ela não poderia funcionar como uma verdadeira análise estrutural Todo esse jogo de deslocamentos e de incompreensões é perfeitamente coerente e necessário Ele comportava uma vantagem secundária poder dirigirse em diagonal a todas as formas de estruturalismos que é preciso tolerar e às quais já foi preciso ceder tanto e lhes dizer Vejam a que vocês se exporiam se tocassem nos domínios que ainda são os nossos os procedimentos que vocês adotam e que talvez tenham em outro lugar alguma validade aí reencontrariam logo seus limites eles deixariam escapar todo o conteúdo concreto que vocês queriam analisar vocês seriam obrigados a renunciar a seu empirismo prudente e vocês cairiam contra a vontade em uma estranha ontologia da estrutura Tenham pois a prudência de se manter nos domínios que sem dúvida conquistaram mas que fingiremos de agora em diante haver concedido a vocês já que nós próprios fixamoslhes os limites Quanto à vantagem maior ela consiste é claro em mascarar a crise em que estamos envolvidos há muito tempo e cujo âmbito não pára de crescer crise em que estão comprometidas a reflexão transcendental com a qual se identificou a filosofia desde Kant a temática da origem da promessa do retorno pela qual evitamos a diferença de nosso presente um pensamento antropológico que consagra todas as interrogações à questão do ser do homem e permite evitar a análise da prática todas as ideologias humanistas e enfim e sobretudo o status do sujeito É esse debate que você sonha mascarar e de que espera creio desviar a atenção prosseguindo os jogos agradáveis da gênese e do sistema da sincronia e do devir da relação e da causa da estrutura e da história Você está certo de não praticar uma metátese teórica Suponhamos que o debate esteja onde você diz suponhamos que se trate de defender ou de atacar o último reduto do pensamento transcendental e admitamos que nossa discussão agora tenha lugar na crise de que você fala qual é então o título de seu discurso De onde vem e de onde poderia exercer seu direito de falar Como poderia legitimarse Se você não fez nada além de uma análise empírica consagrada ao aparecimento e à transformação dos discursos se você 230 Michel Foucault descreveu conjuntos de enunciados figuras epistemológicas as formas históricas de um saber como pode escapar à ingenuidade de todos os positivismos Como sua empresa poderia valer contra a questão da origem e o recurso necessário a um sujeito constituinte Mas se você pretende abrir uma interrogação radical se você quer colocar seu discurso no nível em que nós próprios nos colocamos você bem sabe que ele entrará em nosso jogo e que prolongará por sua vez a dimensão de que tenta contudo se libertar Ou não nos atinge ou nós o reivindicamos De qualquer maneira você é obrigado a nos dizer o que são esses discursos que você se obstina há 10 anos em pesquisar sem nunca ter tomado o cuidado de estabelecer sua identidade Em uma palavra que são eles história ou filosofia Mais do que suas objeções de há pouco essa questão confesso me embaraça Ela não me surpreende inteiramente entretanto gostaria ainda algum tempo de mantêla suspensa É que no momento e sem que eu possa ainda prever um fim meu discurso longe de determinar o lugar de onde fala evita o solo em que se poderia apoiar É um discurso sobre discursos mas não pretende neles encontrar uma lei oculta uma origem recoberta que só faltaria libertar não pretende tampouco estabelecer por si mesmo e a partir de si mesmo a teoria geral da qual eles seriam os modelos concretos Tratase de desenvolver uma dispersão que nunca se pode conduzir a um sistema único de diferenças e que não se relaciona a eixos absolutos de referência tratase de operar um descentramento que não permite privilégio a nenhum centro Tal discurso não tem por papel dissipar o esquecimento reencontrar no âmago das coisas ditas e onde elas se calam o momento de seu nascimento quer se trate de sua criação empírica ou do ato transcendental que lhes dá origem não tenta ser recolhimento do originário ou lembrança da verdade Tem pelo contrário de fazer as diferenças constituílas como objeto analisálas e definir seu conceito Ao invés de percorrer o campo dos discursos para refazer por sua conta as totalizações suspensas ao invés de procurar no que foi dito o outro discurso oculto que permanece o mesmo ao invés portanto de ele fazer sem interrupção de alegoria e de tautologia opera sem cessar as diferenciações é diagnóstico Se a filosofia é A Arqueologia do Saber 231 memória ou retorno da origem o que faço não pode de modo algum ser considerado como filosofia e se a história do pensamento consiste em tornar a dar vida a figuras semiapagadas o que faço não é tampouco história Do que você acaba de dizer devese reter pelo menos que sua arqueologia não é uma ciência Você a deixa flutuar com o status incerto de uma descrição ou ainda sem dúvida um desses discursos que queria passar por alguma disciplina em estado de esboço o que traz para seus autores a dupla vantagem de não ter de fundamentar sua cientificidade explícita e rigorosa e de abrila a uma generalidade futura que a liberta dos acasos de seu nascimento ainda um desses projetos que se justificam pelo que não são adiando sempre para mais tarde o essencial de sua tarefa o momento de sua verificação e o posicionamento definitivo de sua coerência ainda uma dessas fundações como tantas que foram anunciadas desde o século XIX pois sabemos que no campo teórico moderno o que se gosta de inventar não são sistemas demonstráveis mas disciplinas cuja possibilidade se abre cujo programa se delineia e cujo futuro e destino se confiam aos outros Ora apenas acabado o esboço de seu desenho eis que elas desaparecem com seus autores Assim o campo que deveriam gerir permanece estéril para sempre É certo que jamais apresentei a arqueologia como uma ciência nem mesmo como os primeiros fundamentos de uma ciência futura Em vez de traçar o plano de um edifício a ser construído dediqueime a fazer o esboço reservandome o direito de fazer muitas correções do que realizara por ocasião de pesquisas concretas A palavra arqueologia não tem valor de antecipação designa somente uma das linhas de abordagem para a análise das performances verbais especificação de um nível o do enunciado e do arquivo determinação e esclarecimento de um domínio as regularidades enunciativas as positividades emprego de conceitos como os de regra de formação derivação arqueológica a priori histórico Mas em quase todas as suas dimensões e em quase todas as suas arestas a empresa relacionase a ciências a análises de tipo científico ou a teorias que respondem a critérios de rigor Ela tem inicialmente relação com ciências que se constituem e 232 Michel Foucault estabelecem suas normas no saber arqueologicamente descrito e que são para ela ciênciasobjetos tanto quanto já o foram a anatomia patológica a filologia a economia política a biologia Tem relação também com formas científicas de análise de que se distingue seja pelo nível seja pelo domínio seja pelos métodos e das quais está próxima conforme linhas características de divisão criticando na massa das coisas ditas o enunciado definido como função de realização da performance verbal ela se destaca de uma pesquisa que teria como campo privilegiado a competência linguística enquanto tal descrição constitui um modelo gerador para definir a aceitabilidade dos enunciados a arqueologia tenta estabelecer regras de formação para definir as condições de sua realização daí um certo número de analogias mas também de diferenças em particular no que se refere ao nível possível de formalização entre essas duas modalidades de análise de qualquer forma para a arqueologia uma gramática gerativa representa o papel de uma análise conexa Além disso as descrições arqueológicas em seu desenrolar e nos campos que percorrem articulamse com outras disciplinas procurando definir fora de qualquer referência a uma subjetividade psicológica ou constituinte as diferentes posições de sujeito que os enunciados podem implicar a arqueologia atravessa uma questão que é colocada hoje pela psicanálise tentando fazer aparecer as regras de formação dos conceitos os modos de sucessão encadeamento e coexistência dos enunciados ela se depara com o problema das estruturas epistemológicas estudando a formação dos objetos os campos nos quais emergem e se especificam estudando também as condições de apropriação dos discursos se depara com a análise das formações sociais Tratase para a arqueologia de espaços correlativos Finalmente na medida em que é possível constituir uma teoria geral das produções a arqueologia como análise das regras características das diferentes práticas discursivas encontrará o que se poderia chamar sua teoria envolvente Se situo a arqueologia entre tantos outros discursos que já estão constituídos não é para fazer cora que se beneficie como quer por contiguidade e contágio de um status que ela não seria capaz de dar a si mesma não é para darlhe um lugar definitivamente delineado em uma constelação imóvel mas para revelar com o arquivo as formações discursivas A Arqueologia do Saber 233 as positividades os enunciados e suas condições de formação um domínio específico que não constitui ainda objeto de nenhuma análise pelo menos no que ele pode ter de particular e de irredutível às interpretações e às formalizações mas nada me garante antecipadamente no ponto de demarcação ainda rudimentar em que estou agora que ele permanecerá estável e autônomo Afinal seria possível que a arqueologia não fizesse nada além de representar o papel de um instrumento que permite articular de maneira menos imprecisa do que no passado a análise das formações sociais e as descrições epistemológicas ou que permite unir uma análise das posições do sujeito a uma teoria da história das ciências ou que permite situar o lugar de entrecruzamento entre uma teoria geral da produção e uma análise gerativa dos enunciados Poderia ser revelado finalmente que a arqueologia é o nome dado a uma certa parte da conjuntura teórica de hoje Se esta conjuntura dá lugar a uma disciplina individualizável cujos primeiros caracteres e limites globais se esboçariam aqui ou se ela suscita um feixe de problemas cuja coerência atual não impede que possam ser mais tarde retomados em outra situação de modo diferente em um nível mais elevado ou segundo métodos diversos isso eu não saberia dizer no momento E na verdade a decisão sem dúvida não cabe a mim Aceito que meu discurso se apague como a figura que conseguiu trazêlo até aqui Você mesmo faz um estranho uso da liberdade que contesta nos outros pois você se dá todo o campo de um espaço livre que se recusa até mesmo a qualificar Mas será que se esquece do cuidado que tomou para enquadrar o discurso dos outros em sistemas de regras Será que se esquece de todas as coações que descrevia com meticulosidade Você não tirou dos indivíduos o direito de intervir pessoalmente nas positividades em que se situam seus discursos Você prendeu a menor de suas palavras a obrigações que condenam ao conformismo a menor de suas inovações Você considera a revolução fácil quando se trata de si mesmo mas difícil quando se trata dos outros Seria melhor sem dúvida se você tivesse uma consciência mais clara das condições sob as quais fala mas em compensação mais confiança na ação real dos homens e em suas possibilidades 234 Michel Foucault Receio que você esteja cometendo um duplo erro a respeito das práticas discursivas que tentei definir e a propósito da parte que você mesmo reserva à liberdade humana As positividades que tentei estabelecer não devem ser compreendidas como um conjunto de determinações que se impõem do exterior ao pensamento dos indivíduos ou que moram em seu interior como que antecipadamente elas constituem o conjunto das condições segundo as quais se exerce uma prática segundo as quais essa prática dá lugar a enunciados parcial ou totalmente novos segundo as quais enfim ela pode ser modificada Tratase menos dos limites colocados à iniciativa dos sujeitos que do campo em que ela se articula sem constituir seu centro das regras que emprega sem que as tenha inventado ou formulado das relações que lhe servem de suporte sem que ela seja seu resultado último ou seu ponto de convergência Tratase de revelar as práticas discursivas em sua complexidade e em sua densidade mostrar que falar é fazer alguma coisa algo diferente de exprimir o que se pensa de traduzir o que se sabe e também de colocar em ação as estruturas de uma língua mostrar que somar um enunciado a uma série preexistente de enunciados é fazer um gesto complicado e custoso que implica condições e não somente uma situação um contexto motivos e que comporta regras diferentes das regras lógicas e linguísticas de construção mostrar que uma mudança na ordem do discurso não supõe idéias novas um pouco de invenção e de criatividade uma mentalidade diferente mas transformações em uma prática eventualmente nas que lhe são próximas e em sua articulação comum Longe de mim negar a possibilidade de mudar o discurso tirei dele o direito exclusivo e instantâneo à soberania do sujeito De minha parte queria para terminar fazerlhe uma pergunta que idéia você tem da mudança e digamos da revolução pelo menos na ordem científica e no campo dos discursos se a liga aos temas do sentido do projeto da origem e do retorno do sujeito constituinte em suma a toda a temática que garante à história a presença universal do logos Que possibilidade lhe dá se a analisa conforme metáforas dinâmicas biológicas evolucionistas nas quais habitualmente se dissolve o problema difícil e específico da mutação histórica Mais precisamente ainda que status político pode dar ao A Arqueologia do Saber 235 discurso se nele só vê uma transparência diminuta que cintila por um instante no limite das coisas e dos pensamentos A prática do discurso revolucionário e do discurso científico na Europa há 200 anos não o liberou da idéia de que as palavras são vento um sussurro exterior um ruído de asas que mal ouvimos na seriedade da história Ou será preciso imaginar que para recusar essa lição você se obstinou a desconhecer as práticas discursivas em sua existência própria e que queria manter contra ela uma história do espírito dos conhecimentos da razão das idéias ou das opiniões Qual é pois o medo que o faz responder em termos de consciência quando lhe falam de uma prática de suas condições de suas regras de suas transformações históricas Qual é pois o medo que o faz procurar além de todos os limites as rupturas os abalos as escansões o grande destino históricotranscendental do Ocidente A essa questão estou certo de que a única resposta é política Mantenhamola por enquanto em suspenso Talvez seja necessário retomála logo e de outro modo Este livro foi feito apenas para afastar algumas dificuldades preliminares Tanto quanto qualquer outra pessoa sei o que podem ter de ingratas no sentido estrito do termo as pesquisas de que falo e que empreendo há 10 anos Sei o que pode haver de árido no fato de tratar os discursos não a partir da doce muda e íntima consciência que aí se exprime mas de um obscuro conjunto de regras anônimas O que há de desagradável em fazer aparecer os limites e as necessidades de uma prática no lugar em que tínhamos o hábito de ver desenrolaremse em pura transparência os jogos do gênio e da liberdade O que há de provocante em tratar como um feixe de transformações essa história dos discursos que era animada até aqui pelas metamorfoses tranquilizadoras da vida ou a continuidade intencional do vivido Enfim considerandose o que cada um quer colocar pensa colocar de si mesmo em seu próprio discurso quando tenta falar o que há de insuportável em recortar analisar combinar recompor todos os textos que agora voltam ao silêncio sem que neles jamais se desenhe o semblante transfigurado do autor Como Tantas palavras acumuladas tantas marcas depositadas em tantas folhas de papel e oferecidas a inúmeros olhares um zelo tão grande para mantêlas além do gesto que as articula uma 236 Michel Foucault piedade tão profunda destinada a conserválas e inscrevêlas na memória dos homens tudo isso para que não reste nada da pobre mão que as traçou da inquietude que nelas procurava acalmarse e da vida acabada que só tem a elas daqui por diante para sobreviver O discurso em sua determinação mais profunda não seria rastro E seu murmúrio não seria o lugar das imortalidades sem substância Seria preciso admitir que o tempo do discurso não é o tempo da consciência levado às dimensões da história ou o tempo da história presente na forma da consciência Seria preciso que eu supusesse que em meu discurso não está em jogo minha imortalidade E que falando dele não conjuro minha morte mas a estabeleço ou antes suprimo toda interioridade nesse exterior que é tão indiferente à minha vida e tão neutro que não estabelece diferença entre minha vida e minha morte Eu compreendo bem o malestar de todos esses Foi sem dúvida muito doloroso para eles reconhecer que sua história sua economia suas práticas sociais a língua que falam a mitologia de seus ancestrais até as fábulas que lhes contavam na infância obedecem a regras que não se mostram inteiramente à sua consciência eles não desejam ser privados também e ainda por cima do discurso em que querem poder dizer imediatamente sem distância o que pensam crêem ou imaginam vão preferir negar que o discurso seja uma prática complexa e diferenciada que obedece a regras e a transformações analisáveis a ser destituídos da frágil certeza tão consoladora de poder mudar se não o mundo se não a vida pelo menos seu sentido pelo simples frescor de uma palavra que viria apenas deles mesmos e permaneceria o mais próximo possível da fonte indefinidamente Tantas coisas em sua linguagem já lhes escaparam eles não querem mais que lhes escape além disso o que dizem esse pequeno fragmento de discurso falado ou escrito pouco importa cuja débil e incerta existência deve levar sua vida mais longe e por mais tempo Não podem suportar e os compreendemos um pouco ouvir dizer O discurso não é a vida seu tempo não é o de vocês nele vocês não se reconciliarão com a morte é possível que vocês tenham matado Deus sob o peso de tudo que disseram mas não pensem que farão com tudo o que vocês dizem um homem que viverá mais que ele Com que propósito escrevi este livro Para explicar o que quis fazer nos livros precedentes em que tantas coisas ficaram obscuras Não só nem exatamente mas indo um pouco mais longe para retornar como que por uma nova volta de espiral a um ponto anterior ao que havia empreendido mostrar de onde eu falava demarcar o espaço que torna possíveis essas pesquisas e outras talvez que jamais concluirei em suma para dar significação à palavra arqueologia que eu havia deixado vazia Palavra perigosa pois parece evocar rastros caídos fora do tempo e petrificados agora em seu mutismo Na verdade tratase de descrever discursos Não livros na relação com seus autores não teorias com suas estruturas e coerência mas os conjuntos ao mesmo tempo familiares e enigmáticos que através do tempo se tornam conhecidos como a medicina ou a economia política ou a biologia Gostaria de mostrar que essas unidades formam domínios autônomos embora não independentes regrados embora em contínua transformação anônimos e sem sujeito ainda que integrem tantas obras individuais E justamente no ponto em que a história das idéias decifrando os textos procurava desvendar os movimentos secretos do pensamento sua lenta progressão seus conflitos e recaídas os obstáculos contornados gostaria de revelar em sua especificidade o nível das coisas ditas sua condição de aparecimento as formas de seu acúmulo e encadeamento as regras de sua transformação as descontinuidades que as escandem O domínio das coisas ditas é o que se chama arquivo o papel da arqueologia é analisálo Michel Foucault Debater Foucault A arqueologia do saber representa um marco fundamental na trajetória filosófica de Michel Foucault que é também reconhecidamente um dos grandes historiadores de nossa época A importância desta obra no percurso teórico do autor é um esforço notável no sentido de se restabelecer as bases sólidas para a investigação científica e uma revisão conceitual que enfatizem a natureza recorrente da história epistemológica Foucault nos legou neste livro uma lição de extraordinário valor que irá sobreviver aos ataques radicais de críticos recentes que propõem esquecêlo e o acusam de um niilismo dogmático e empobrecedor A lição do autor é que não temos nada mais o que esperar de um falso conhecimento objetivo nem das ilusões da subjetividade pura mas tudo o que aprender e compreender de uma arqueologia das práticas a medicina a biologia ou a economia política que fizeram de nós aquilo que somos De Michel Foucault leia também O nascimento da clínica A Coleção CAMPO TEÓRICO tem como objetivo publicar textos e análises que definam e explorem campos do conhecimento que vêm sofrendo profunda mudança conceitual como a epistemologia a história e a filosofia das ciências O programa da Coleção ao mesmo tempo em que procura fazer uma crítica às tendências empíricas mecanicistas e reducionistas de algumas correntes da história das idéias marcadamente manipuladoras da ciência e da sociedade propõe um conjunto de obras de autores que lançaram as bases da ciência moderna desde a revolução copernicana a física de Galileu e Newton até os teóricos da economia e da sociedade como Marx e os críticos da razão ocidental como Nietzsche e Freud Contemporaneamente esses cientistas e pensadores passam por um processo de redescoberta crítica e de releitura graças aos trabalhos de Lacan Koyré Canguilhem Althusser e Foucault entre outros em diversas áreas do conhecimento como a física a biologia o direito a medicina e a psicanálise redefinindo conceitos fundamentais e apontando para novas práticas políticas É portanto extremamente oportuno esta reedição da obra A Arqueologia do Saber de Michel Foucault que a EDITORA FORENSE UNIVERSITÁRIA coloca ao alcance dos estudiosos e do público em geral PROVA DISCIPLINA Filosofia e Educação Epistemologia Profa Dra Zuleika Aparecida Claro Piassa Este instrumento de avaliação é composto de 12 questões que abordam os objetivos e conteúdos abordados durante a Disciplina Filosofia e Educação Epistemologia e possui valor 70 Para sua realização você pode utilizar seus registros escritos bem como os 3 textos bases que estudamos Responda as questões utilizando de sua redação pessoal e ou trechos do próprio autor para confirmar as suas afirmações e quando utilizálos não esqueça de colocar entre aspas e o número da página 1 Conceitue Epistemologia e relacione a importância de seu estudo para os pedagogos em formação e atuação 6 pontos Epistemologia é o ramo da filosofia que estuda a origem a natureza e os limites do conhecimento buscando entender como ele é adquirido e validado Para pedagogos o estudo da epistemologia é crucial pois oferece uma base teórica para a prática educacional permitindo que compreendam melhor os processos de aprendizagem e os fundamentos do conhecimento que transmitem aos alunos Além disso promove o desenvolvimento de uma postura crítica e reflexiva essencial para avaliar as metodologias pedagógicas e adaptar o ensino às diversas formas de aquisição de conhecimento contribuindo para uma prática educacional mais eficaz e consciente 2 Leia o texto a seguir A Escola Municipal Aprende Quem Quiser está situada em uma cidade interiorana de um Estado brasileiro mediamente desenvolvido É reconhecida por ser uma escola de tradições Lá estudaram gerações das famílias que compõem a população da cidade que hoje que cresceu e tem mais de meio milhão de habitantes A cidade data do início do século XX e a história está presente em suas paredes de madeira nas ruas estreitas na parte central que aliás deixa o trânsito bem caótico durante a semana A cidade intercala poucos prédios históricos e muitos prédios modernos e sua geografia retrata uma cidade que cresceu naturalmente sem um projeto prévio assim não é estranho encontrar áreas com obras arquitetônicas monumentais com vários andares em ruas estreitas e sem estacionamento A escola está situada em um bairro de classe média possui cerca de 1000 alunos mas foi construída no final da década de 1960 inicialmente para abrigar 300 por isso passou por várias reformas Oferta Educação Infantil e anos Iniciais do Ensino Fundamental Os professores possuem graduação e pósgraduação em nível de Especialização em sua maioria O currículo está organizado por disciplinas e cada turma tem 3 professores para os componentes curriculares sendo um para Português e Matemática e Ciências outro para História Geografia Religião e Artes e outro para Educação Física Em termos metodológicos no projeto político pedagógico afirma que a escola adota metodologia dialéticas ativas com a mediação do professor focada na apropriação dos conteúdos científicos e no desenvolvimento de competências e habilidades No entanto observando as salas de aulas vêse que os alunos estão na maior parte do tempo enfileirados copiando conteúdos do quadro às vezes lendo resolvendo uma apostila de algoritmos continhas antiga contendo centenas de exercícios logicamente agrupados que vão desde os mais básicos até os mais complexos Alguns professores ousam um pouco mais iniciando as aulas com questionamentos levando os estudantes a pensar refletir depois registrar seus pensamentos e por fim chegar a conclusões gerais Mas poderia se dizer que é o máximo a que chegam em termos de atividade no sentido da ação Duas vezes por semana tem Educação Física que os alunos amam e por causa disso se manifestarem indisciplina durante as aulas são ameaçados de ficarem na sala de aula de castigo no horário dessa aula A disciplina e a obediência tem um alto valor ético para o corpo docente e para os pais dos alunos dessa escola Os alunos são muito exigidos quanto ao desenvolvimento intelectual por isso tem grandes quantidades de tarefas para fazer com inúmeros exercícios apostilados o que acreditam os pais ajuda muito no aprendizado das crianças Os professores defendem que seu papel é despertar o interesse dos alunos em aprender Aqueles que não aprendem é porque possuem algum distúrbio ou dificuldade de aprendizagem e nesses casos aconselham os pais a levar em algum especialista A maioria se encontra alfabetizada ao final da primeira série A escola adota um método sintético de alfabetização denominado fônico que se baseia na identificação e no ensino do princípio alfabético ou seja na relação entre grafemas letras e fonemas sons Nele o aprendizado iniciase com as vogais seguido pelas consoantes com foco em como as letras representam sons específicos ajudando os alunos a decifrar palavras a partir desses sons A escola se orgulha de ter excelentes notas no IDEB A partir desse texto responda 3 A escola é uma escola tradicional Ela se apoia em uma concepção de aprendizagem inatista ou empirista Comprove com fatos ou trechos do texto A Escola Municipal Aprende Quem Quiser adota uma concepção empirista de aprendizagem como comprovado pelo trecho que descreve os alunos copiando conteúdos do quadro e resolvendo uma apostila com centenas de exercícios o que reflete a prática repetitiva Além disso o uso do método fônico que ensina a relação entre grafemas letras e fonemas sons também exemplifica a aprendizagem baseada na experiência sensorial e repetição 4 4 pontos 4 Busque no texto fatos que demonstram os itens solicitados a seguir e justifique sua resposta 16 pontos 4 cada a A estética cartesiana No texto a estética cartesiana pode ser observada no modo como a cidade é descrita com poucos prédios históricos e muitos prédios modernos Esse contraste reflete a ideia de organização e clareza que Descartes prezava onde se busca harmonia e racionalidade na construção e organização dos espaços apesar do caos do crescimento desordenado b O dualismo cartesiano O dualismo cartesiano que separa corpo e mente pode ser relacionado ao fato de a escola tratar a disciplina intelectual e a Educação Física de forma separada A valorização da disciplina e obediência mostra o foco no desenvolvimento mental enquanto as atividades físicas são tratadas como algo à parte e até uma forma de punição destacando essa divisão entre o corpo físico e a mente intelectual c O método cartesiano aplicado no contexto da educação O método cartesiano baseado na análise e decomposição dos problemas é aplicado na educação da escola através da organização dos conteúdos em centenas de exercícios logicamente agrupados indo dos mais simples aos mais complexos Isso reflete a ideia cartesiana de dividir as dificuldades em partes menores para resolvêlas de forma mais eficaz d A moral cartesiana A moral cartesiana pode ser identificada na forma como a escola e os pais valorizam a disciplina e a obediência como altos valores éticos Isso se relaciona com a terceira máxima de Descartes que sugere adaptarse às circunstâncias e manter firmeza de caráter especialmente em seguir as normas e práticas sociais consideradas mais adequadas pela comunidade 5 Cite duas consequências atuais do pensamento cartesiano que representam um problema para as atuais gerações resolverem 6 pontos Duas consequências do pensamento cartesiano que representam desafios para as gerações atuais são o dualismo mentecorpo e o excesso de racionalismo O dualismo que separa mente e corpo influencia até hoje áreas como a medicina e a educação onde essas dimensões são frequentemente tratadas de forma desconectada criando um problema já que o bemestar integral requer a abordagem conjunta de ambos Além disso o foco cartesiano na razão como única via confiável de conhecimento levou ao distanciamento das emoções e da intuição criando dificuldades nas relações sociais e nas tomadas de decisões onde a empatia e a inteligência emocional são essenciais 6 No PPP está escrito que a metodologia é dialética O que significa isso em termos pedagógicos4 pontos Em termos pedagógicos uma metodologia dialética significa que o processo de ensino e aprendizagem é construído por meio do diálogo e da interação entre professores e alunos onde há troca de ideias e confronto de diferentes pontos de vista para que a partir dessas discussões se chegue a um conhecimento mais profundo e crítico Essa abordagem valoriza o desenvolvimento do pensamento crítico e reflexivo dos alunos incentivandoos a questionar argumentar e revisar suas ideias com base nas interações que ocorrem no ambiente educacional 7 A obra A Arqueologia do Saber de Michel Foucault apresenta um inovador método de investigação nas ciências humanas denominado pelo autor de arqueologia ou método arqueológico Nesse livro Foucault explica o sentido da palavra arqueologia na busca de afastar o seu significado da ideia de algo do passado petrificado ou de outro tempo Ele enfatiza que o papel do método arqueológico é analisar o arquivo ou seja analisar o domínio das coisas ditas Explique o sentido desta expressão para Foucault 4 pontos Para Michel Foucault a expressão o domínio das coisas ditas referese ao conjunto de discursos que circulam em uma determinada época e contexto ou seja tudo o que foi verbalizado escrito ou registrado como conhecimento O método arqueológico busca analisar esses discursos não apenas como fatos isolados ou estáticos do passado mas como práticas que constroem saberes sujeitos e verdades Foucault não se preocupa apenas com o conteúdo dos discursos mas também com as regras relações de poder e condições que permitem que certas coisas sejam ditas e aceitas como verdade em um dado momento histórico 8 Elenque e defina com suas palavras as formações discursivas apresentadas por Foucault em Arqueologia do saber positividade saber ciência ideologia episteme 15 pontos 3 cada Foucault em A Arqueologia do Saber apresenta diferentes formações discursivas A positividade referese às condições que permitem que certos discursos sejam aceitos como verdadeiros em determinado período histórico ou seja o que legitima um discurso como válido O saber é o conjunto de práticas e discursos que constituem o conhecimento sobre um determinado objeto não se limitando apenas à ciência mas englobando outras formas de conhecimento aceitas e reproduzidas na sociedade A ciência por sua vez é uma forma de saber que adquire um status privilegiado devido às suas metodologias rigorosas e à busca por verdades universais embora Foucault questione sua pretensa neutralidade A ideologia é vista como um sistema de ideias que mascara as relações de poder presentes nos discursos funcionando para manter uma determinada ordem social Por fim a episteme é o conjunto de saberes e práticas que define as condições de possibilidade para o conhecimento em um determinado período histórico sendo a estrutura que molda como o saber é produzido e legitimado 9 Observe o trecho Foucault quer nos dizer que pensamos a partir de regras que estão socialmente dissolvidas que nosso pensamento obedece em cada época histórica a uma ordem que existe fora da nossa existência e que consequentemente existem coisas que são impossíveis de pensar mas que podem vir a se tornar possíveis De fato se analisarmos o passado podemos verificar momentos de ruptura no pensamento que permitem o surgimento de novas formas de pensamento que até então eram impossíveis de serem pensados coisas que não eram possíveis de serem ditas mas que hoje são Em cada época encontramos ideias que lhes caracterizam e quem nem sempre se sabe sua origem Daniel Luiz Gonçalves cidade 2018 A qual formação discursiva o autor se refere Explique5 pontos O autor está se referindo à episteme uma formação discursiva apresentada por Foucault A episteme é o conjunto de saberes e práticas que definem as condições de possibilidade para o conhecimento em um determinado período histórico Ela molda a forma como as pessoas pensam e falam estabelecendo os limites do que pode ser pensado e dito em cada época Isso significa que as ideias e conceitos de uma época não surgem de forma isolada mas estão condicionados por um conjunto de regras invisíveis que estruturam o conhecimento permitindo ou impossibilitando determinados pensamentos O texto destaca as rupturas no pensamento que são momentos em que a episteme muda tornando possíveis ideias que antes eram impensáveis 10 Explique a frase A ideologia não dispensa a ciência ao contrário ela precisa da ciência para se estabelecer 3 pontos A frase A ideologia não dispensa a ciência ao contrário ela precisa da ciência para se estabelecer significa que a ideologia utiliza a ciência como uma ferramenta para se legitimar e fortalecer Embora a ciência busque um conhecimento objetivo suas descobertas podem ser interpretadas e manipuladas de forma ideológica para apoiar determinados interesses ou manter uma determinada ordem social Assim a ciência confere à ideologia uma aparência de verdade e neutralidade tornandoa mais convincente e aceitável dentro de uma sociedade 11 Como diz Paul Ricoeur Não existe lugar não ideológico Isso quer dizer que todos nós compartilhamos de uma ideologia Nesse sentido quando é que a ideologia se torna um problema a ser investigado pelas ciências humanas 3 pontos A ideologia se torna um problema a ser investigado pelas ciências humanas quando ela atua de maneira a mascarar as relações de poder distorcendo a realidade e influenciando a percepção das pessoas de forma inconsciente Isso ocorre quando a ideologia passa a naturalizar desigualdades justificar injustiças ou limitar o pensamento crítico impedindo que indivíduos ou grupos questionem as estruturas sociais vigentes Nesse contexto as ciências humanas têm a tarefa de desmascarar essas ideologias expondo como elas operam e influenciam o comportamento as crenças e as instituições com o objetivo de promover uma compreensão mais crítica e consciente da sociedade 12 Considerando que vivemos em uma sociedade dividida em classes e que estamos em meio a uma luta pela hegemonia qual deve ser o posicionamento do Pedagogo diante da Ideologia que se manifestas nas práticas discursivas educacionais currículos livros didáticos manuais etc 4 pontos O pedagogo deve adotar uma postura crítica e reflexiva diante da ideologia que se manifesta nas práticas discursivas educacionais como currículos livros didáticos e manuais Isso implica analisar como essas ferramentas podem reforçar desigualdades sociais estereótipos ou visões de mundo que favorecem certos grupos em detrimento de outros O pedagogo deve estar atento para identificar e questionar essas ideologias promovendo uma educação que valorize a pluralidade de perspectivas o pensamento crítico e a justiça social Seu papel é fomentar a conscientização dos alunos sobre essas influências ideológicas incentivando a autonomia intelectual e a capacidade de refletir sobre as estruturas de poder que permeiam a sociedade e a educação 13 Faça uma avaliação geral da disciplina colocando suas impressões pessoais e sugestões Considere a Conhecimento da docente b Forma de abordagem dos conteúdos didática c O nível de desafio d Sua participação e seu comprometimento com sua aprendizagem o que dificultou o que facilitou etc e Sugestões A disciplina apresentou uma abordagem sólida e bem estruturada Em relação ao conhecimento da docente foi evidente sua ampla compreensão dos temas discutidos o que trouxe profundidade para as aulas A forma de abordagem dos conteúdos foi didática e clara o que facilitou o entendimento especialmente com o uso de exemplos práticos e atuais O nível de desafio foi adequado promovendo reflexões críticas e exigindo um bom grau de leitura e análise o que enriqueceu o processo de aprendizagem Quanto à minha participação e comprometimento acredito que mantive um envolvimento ativo apesar de alguns desafios relacionados à gestão de tempo e à complexidade de alguns textos O que mais facilitou foi a clareza com que os temas foram abordados e o espaço para debate Por outro lado a carga de leitura densa em determinados momentos foi um fator que dificultou um pouco exigindo maior dedicação Como sugestões talvez incluir mais atividades práticas ou discussões em grupo para aplicar as teorias em situações reais ajudaria a consolidar melhor o conteúdo Foi uma honra ter sido sua professora fião gravo nomes infelizmente um problema neurológico que carece de investigação mas seus rostos ficarão em minha memória E espero do fundo do coração que eu tenha deixado pelo menos um ponto de interrogação em suas mentes aprendizes Um grande abraço em cada um de vocês Zu