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Descobrindo os Brancos Davi Kopenawa Yanomami Depoimento recolhido e traduzido por Bruce Albert na maloca Watoriki setembro 1998 Há muito tempo meus avós que habitavam Mõramabi araopi uma casa situada muito longe nas nascentes do rio Toototobi iam às vezes visitar nas terras baixas outros Yanomami estabelecidos ao longo do rio Aracá como o Toototobi o Aracá é um afluente do rio Demini ele próprio tributário da margem esquerda do rio Negro Foi lá que encontraram os primeiros brancos Esses estrangeiros coletavam fibra de palmeira piaçaba ao longo do rio Aracá Durante essas visitas nossos mais velhos obtiveram seus primeiros facões Eles me contaram isso muitas vezes quando eu era criança Naquele tempo eles só encontravam brancos ao viajar muito longe de sua aldeia e não iam vêlos sem motivo simplesmente para visitálos Haviam visto suas ferramentas metálicas e as cobiçavam pois possuíam apenas pedaços de metal que Omama deixara os antigos Yanomami possuíam fragmentos de facões e de machados muito gastos que obtinham por um complexo circuito de trocas interétnicas mas cuja origem atribuíam a Omama seu herói cultural Era durante essas longas viagens que de vez em quando eles conseguiam obter um facão ou mesmo um machado Trabalhavam então em suas plantações emprestandoos uns aos outros Quando um tinha aberto sua plantação passavaos a um outro e assim por diante Eles emprestavam também essas poucas ferramentas metálicas de uma aldeia a outra Não era para procurar fósforos que iam ver os brancos tão longe não tinham seus paus de cacaueiro para fazer fogo Evidentemente eles achavam as panelas de alumínio muito bonitas mas tampouco era por isso que faziam aquelas viagens também tinham vasilhas de terracota para cozinhar sua caça Era realmente por seus facões e seus machados que iam visitar aqueles estrangeiros Mas foi bem mais tarde quando habitávamos Marakana mais para o lado da foz do rio Toototobi que os brancos visitaram nossa casa pela primeira vez Na época nossos mais velhos estavam ainda todos vivos e éramos muito numerosos eu me lembro Eu era um menino mas começava a tomar consciência das coisas Foi lá que comecei a crescer e descobri os brancos Eu nunca os vira não sabia nada deles Nem mesmo pensava que eles existissem Quando os avistei chorei de medo Os adultos já os haviam encontrado algumas vezes mas eu nunca Pensei que eram espíritos canibais e que iam nos devorar Eu os achava muito feios esbranquiçados e peludos Eles eram tão diferentes que me aterrorizavam Além disso não compreendia nenhuma de suas palavras emaranhadas Parecia que eles tinham uma língua de fantasmas Eram pessoas da Comissão uma equipe da Comissão Brasileira Demarcadora dos Limites CBDL subiu o rio Toototobi em 19589 Os mais velhos diziam que eles roubavam as crianças que já as haviam capturado e levado com eles quando tinham subido o rio Mapulaú no passado Alusão a uma primeira visita da CBDL ao rio Toototobi em 1941 Era por isso também que eu tinha muito medo estava certo de que também iam me levar Meus avós já haviam contado muitas vezes essa história eu os ouvira dizer Sim esses brancos são ladrões de crianças e tinha muito medo Por que eles levaram aquelas crianças Eu me pergunto isso ainda hoje Quando aqueles estrangeiros entravam em nossa habitação minha mãe me escondia debaixo de um grande cesto de cipó no fundo de nossa casa Ela me dizia então Não tenha medo Não diga uma palavra e eu ficava assim tremendo sob meu cesto sem dizer nada Eu me lembro no entanto devia ser realmente muito pequeno senão não teria cabido debaixo daquele cesto Minha mãe me escondia pois também temia que os brancos me levassem com eles como tinham roubado aquelas crianças da primeira vez Era também para me acalmar pois eu estava aterrorizado e só parava de chorar quando estava escondido Todos os bens dos brancos me assustavam também tinha medo de seus motores de suas lâmpadas elétricas de seus sapatos de seus óculos e de seus relógios Tinha medo da fumaça de seus cigarros do cheiro de sua gasolina Tudo me assustava porque nunca vira nada de semelhante e ainda era pequeno Mas quando seus aviões nos sobrevoavam eu não era o único a ficar assustado os adultos também tinham medo alguns chegavam mesmo a romper em soluços e todo mundo fugia para a mata vizinha Nós somos habitantes da floresta não conhecíamos os aviões e estávamos aterrorizados Pensávamos que eram seres sobrenaturais voadores que iam cair sobre nós e queimar todos Todos tínhamos muito medo de morrer Eu me lembro que também tinha medo das vozes que saíam dos rádios e da explosão dos fuzis que matavam a caça Perguntavame o que todas aquelas coisas que pareciam sobrenaturais poderiam ser Perguntavame também por que aquelas pessoas tinham vindo até nossa casa Mais tarde realmente comecei a crescer e a pensar direito mas continuei a me perguntar O que os brancos vêm fazer aqui Por que abrem caminhos em nossa floresta Os mais velhos me respondiam Eles vêm sem dúvida visitar nossa terra para habitar aqui conosco mais tarde Mas eles não compreendiam nada da língua dos brancos foi por isso que os deixaram penetrar em suas terras dessa maneira amistosa Se tivessem compreendido suas palavras acho que os teriam expulsado Aqueles brancos os enganaram com seus presentes Deramlhes machados facões facas tecidos Disseramlhes para adormecer sua desconfiança Nós os brancos nunca os deixaremos desprovidos lhes daremos muito de nossas mercadorias e vocês se tomarão nossos amigos Mas pouco depois nossos parentes morreram quase todos em uma epidemia depois em uma outra Mais tarde muitos outros Yanomami novamente morreram quando a estrada entrou na floresta A BR210 Perimetral Norte aberta em 19734 e abandonada em 1976 depois de cortar duzentos quilômetros a sudeste do território yanomami e bem mais ainda quando os garimpeiros chegaram ali com sua malária Mas dessa vez eu tinha me tomado adulto e pensava direito sabia realmente o que os brancos queriam ao penetrar em nossa terra Descobrir o Descobrimento Os brancos são engenhosos têm muitas máquinas e mercadorias mas não têm nenhuma sabedoria Não pensam mais no que eram seus ancestrais quando foram criados Nos primeiros tempos eles eram como nós mas esqueceram todas as suas antigas palavras Mais tarde atravessaram as águas e vieram em nossa direção Depois repetem que descobriram esta terra Só compreendi isso quando comecei a compreender sua língua Mas nós os habitantes da floresta habitamos aqui há longuíssimo tempo desde que Omama nos criou No começo das coisas aqui só havia habitantes da floresta seres humanos a autodesignação dos Yanomami yanomae thëpë significa antes de tudo seres humanos e se aplica também aos outros índios opondose aos animais aos seres sobrenaturais e aos nãoíndios napëpë Os brancos clamam hoje Nós descobrimos a terra do Brasil Isso não passa de uma mentira Ela existe desde sempre e Omama nos criou com ela Nossos ancestrais a conheciam desde sempre Ela não foi descoberta pelos brancos Muitos outros povos como os Makuxi os Wapixana os Waiwai os WaimiriAtroari os Xavante os Kayapó e os Guarani ali viviam também Mas apesar disso os brancos continuam a mentir para si mesmos pensando que descobriram esta terra Como se ela estivesse vazia Como se os seres humanos não a habitassem desde os primeiros tempos Os brancos foram criados em nossa floresta por Omama mas ele os expulsou porque temia sua falta de sabedoria e porque eram perigosos para nós os brancos foram criados por Omama a partir do sangue de um grupo de ancestrais Yanomami devorados por lontras e jacarés numa grande enchente provocada pela quebra de um resguardo menstrual Ele lhes deu uma terra muito longe daqui pois queria nos proteger de suas epidemias e de suas armas Foi por isso que os afastou Mas esses ancestrais dos brancos falaram a seus filhos dessa floresta e suas palavras se propagaram por muito tempo Eles se lembraram É verdade Havia lá ao longe uma outra terra muito bela e voltaram para nós Na margem desta terra do Brasil aonde eles chegaram viviam outros índios Esses brancos eram pouco numerosos e começaram a mentir Nós os brancos somos bons e generosos Damos presentes e alimentos Vamos viver a seu lado nesta terra com vocês Seremos seus amigos Era com essas mesmas mentiras que tentavam nos enganar desde que também chegaram a nós Depois dessas primeiras palavras de mentira eles foram embora e falaram entre si Depois voltaram muito numerosos No começo sem casa nesta terra ainda mostravam amizade pelos índios Tinham visto a beleza desta floresta e queriam se estabelecer aqui Mas desde que se instalaram realmente desde que construíram suas habitações e abriram suas plantações desde que começaram a criar gado e a cavar a terra para procurar ouro esqueceram sua amizade Começaram a matar as gentes da floresta que viviam perto deles Nos primeiros tempos os seres humanos eram muito numerosos nesta terra É o que dizem nossos mais velhos Não havia doenças perigosas sarampo gripes malária Estávamos sozinhos não havia garimpeiros para queimar o ouro fábricas para produzir ferro e gasolina carros e aviões A floresta e os que a habitavam não estavam o tempo todo doentes Foi apenas quando os brancos se tomaram muito numerosos que sua fumaça epidemia xawara começou a aumentar e a se propagar por toda parte Essa coisa má se tomou muito poderosa e foi assim que as gentes da floresta começaram a morrer a expressão xawara wakëxi epidemiafumaça designa aqui a um só tempo as epidemias e a poluição às quais é atribuída a mesma origem a fusão do ouro dos metais e dos carburantes extraídos da terra para produzir as mercadorias dos brancos e abastecer seus veículos Quando viviam sem os brancos nossos ancestrais não tinham fábricas caçavam e trabalhavam em suas plantações para fazer crescer seu alimento Também não sujavam todos os rios como esses brancos que agora procuram ouro em nossas terras Nós descobrimos estas terras Possuímos os livros e por isso somos importantes dizem os brancos Mas são apenas palavras de mentira Eles não fizeram mais que tomar as terras das gentes da floresta para se pôr a devastáIas Todas as terras foram criadas em uma única vez as dos brancos e as nossas ao mesmo tempo que o céu Tudo isso existe desde os primeiros tempos quando Omama nos fez existir É por isso que não creio nessas palavras de descobrir a terra do Brasil Ela não estava vazia Creio que os brancos querem sempre se apoderar de nossa terra é por isso que repetem essas palavras São também as dos garimpeiros a propósito de nossa floresta Os Yanomami não habitavam aqui eles vêm de outro lugar Esta terra estava vazia queremos trabalhar nela Mas eu sou filho dos antigos Yanomami habito a floresta onde viviam os meus desde que nasci e eu não digo a todos os brancos que a descobri Ela sempre esteve ali antes de mim Eu não digo Eu descobri esta terra porque meus olhos caíram sobre ela portanto a possuo Ela existe desde sempre antes de mim Eu não digo Eu descobri o céu Também não clamo Eu descobri os peixes eu descobri a caça Eles sempre estiveram lá desde os primeiros tempos Digo simplesmente que também os como isso é tudo O Povo das Mercadorias Quando viajei para longe vi a terra dos brancos lá onde havia muito tempo viviam seus ancestrais Visitei a terra que eles chamam Eropa Era sua floresta mas eles a desnudaram pouco a pouco cortando suas árvores para construir suas casas Eles fizeram muitos filhos não pararam de aumentar e não havia mais floresta Então eles pararam de caçar não havia mais caça também Depois seus filhos puseramse a fabricar mercadorias e seu espírito começou a obscurecerse por causa de todos esses bens sobre os quais fixaram seu pensamento Eles construíram casas de pedra para que não se deteriorassem Continuaram a destruir a floresta dizendose Nós vamos nos tornar o povo das mercadorias Vamos fabricar muitas delas e dinheiro também Assim quando formos realmente muito numerosos jamais seremos miseráveis Foi com esse pensamento que eles acabaram com sua floresta e sujaram seus rios Agora só bebem água embrulhada que precisam comprar A água de verdade a que corre nos rios já não é boa para beber Nos primeiros tempos os brancos viviam como nós na floresta e seus ancestrais eram pouco numerosos Omama transmitiu também a eles suas palavras mas não o escutaram Pensaram que eram mentiras e puseramse a procurar minerais e petróleo por toda parte todas essas coisas perigosas que Omama quisera ocultar sob a terra e a água porque seu calor é perigoso Mas os brancos as encontraram e pensaram fazer com elas ferramentas máquinas carros e aviões Eles se tomaram eufóricos e se disseram Nós somos os únicos a ser tão engenhosos só nós sabemos realmente fabricar as mercadorias e as máquinas Foi nesse momento que eles perderam realmente toda sabedoria Primeiro estragaram sua própria terra antes de ir trabalhar nas dos outros para aumentar suas mercadorias sem parar Nunca mais eles se disseram Se destruirmos a terra será que seremos capazes de recriar uma outra Quando conheci a terra dos brancos isso me deixou inquieto Algumas cidades são belas mas seu barulho não pára nunca Eles correm por elas com carros nas ruas e mesmo com trens debaixo da terra Há muito barulho e gente por toda parte O espírito se toma obscuro e emaranhado não se pode mais pensar direito É por isso que o pensamento dos brancos está cheio de vertigem e eles não compreendem nossas palavras Eles não fazem mais que dizer Estamos muito contentes de rodar e de voar Continuemos Procuremos petróleo ouro ferro Os Yanomami são mentirosos O pensamento desses brancos está obstruído é por isso que eles maltratam a terra desbravandoa por toda parte e a cavam até debaixo de suas casas Eles não pensam que ela vai acabar por desmoronar Eles não temem cair no mundo subterrâneo Porém é assim Se os brancosespíritostatusgigantes mineradoras entram por toda parte sob a terra para retirar os minérios eles vão se perder e cair no mundo escuro e podre dos ancestrais canibais o universo yanomami compõese de quatro níveis superpostos suspensos em um grande vazio o mundo subterrâneo foi formado pela queda do nível terrestre na aurora dos tempos é habitado pelos ancestrais Yanomami da primeira humanidade que se tornaram monstros canibais os aõpataripë Nós nós queremos que a floresta permaneça como é sempre Queremos viver nela com boa saúde e que continuem a viver nela os espíritos xapïripë a caça e os peixes Cultivamos apenas as plantas que nos alimentam não queremos fábricas nem buracos na terra nem rios sujos Queremos que a floresta permaneça silenciosa que o céu continue claro que a escuridão da noite caia realmente e que se possam ver as estrelas As terras dos brancos estão contaminadas estão cobertas de uma fumaça epidemiaxawara que se estendeu muito alto no peito do céu Essa fumaça se dirige para nós mas ainda não chega lá pois o espírito celeste Hutukarari a repele ainda sem descanso Acima de nossa floresta o céu ainda é claro pois não faz tanto tempo que os brancos se aproximaram de nós Mas bem mais tarde quando eu estiver morto talvez essa fumaça aumente a ponto de estender a escuridão sobre a terra e de apagar o sol Os brancos nunca pensam nessas coisas que os xamãs conhecem é por isso que eles não têm medo Seu pensamento está cheio de esquecimento Eles continuam a fixá lo sem descanso em suas mercadorias como se fossem suas namoradas
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Descobrindo os Brancos Davi Kopenawa Yanomami Depoimento recolhido e traduzido por Bruce Albert na maloca Watoriki setembro 1998 Há muito tempo meus avós que habitavam Mõramabi araopi uma casa situada muito longe nas nascentes do rio Toototobi iam às vezes visitar nas terras baixas outros Yanomami estabelecidos ao longo do rio Aracá como o Toototobi o Aracá é um afluente do rio Demini ele próprio tributário da margem esquerda do rio Negro Foi lá que encontraram os primeiros brancos Esses estrangeiros coletavam fibra de palmeira piaçaba ao longo do rio Aracá Durante essas visitas nossos mais velhos obtiveram seus primeiros facões Eles me contaram isso muitas vezes quando eu era criança Naquele tempo eles só encontravam brancos ao viajar muito longe de sua aldeia e não iam vêlos sem motivo simplesmente para visitálos Haviam visto suas ferramentas metálicas e as cobiçavam pois possuíam apenas pedaços de metal que Omama deixara os antigos Yanomami possuíam fragmentos de facões e de machados muito gastos que obtinham por um complexo circuito de trocas interétnicas mas cuja origem atribuíam a Omama seu herói cultural Era durante essas longas viagens que de vez em quando eles conseguiam obter um facão ou mesmo um machado Trabalhavam então em suas plantações emprestandoos uns aos outros Quando um tinha aberto sua plantação passavaos a um outro e assim por diante Eles emprestavam também essas poucas ferramentas metálicas de uma aldeia a outra Não era para procurar fósforos que iam ver os brancos tão longe não tinham seus paus de cacaueiro para fazer fogo Evidentemente eles achavam as panelas de alumínio muito bonitas mas tampouco era por isso que faziam aquelas viagens também tinham vasilhas de terracota para cozinhar sua caça Era realmente por seus facões e seus machados que iam visitar aqueles estrangeiros Mas foi bem mais tarde quando habitávamos Marakana mais para o lado da foz do rio Toototobi que os brancos visitaram nossa casa pela primeira vez Na época nossos mais velhos estavam ainda todos vivos e éramos muito numerosos eu me lembro Eu era um menino mas começava a tomar consciência das coisas Foi lá que comecei a crescer e descobri os brancos Eu nunca os vira não sabia nada deles Nem mesmo pensava que eles existissem Quando os avistei chorei de medo Os adultos já os haviam encontrado algumas vezes mas eu nunca Pensei que eram espíritos canibais e que iam nos devorar Eu os achava muito feios esbranquiçados e peludos Eles eram tão diferentes que me aterrorizavam Além disso não compreendia nenhuma de suas palavras emaranhadas Parecia que eles tinham uma língua de fantasmas Eram pessoas da Comissão uma equipe da Comissão Brasileira Demarcadora dos Limites CBDL subiu o rio Toototobi em 19589 Os mais velhos diziam que eles roubavam as crianças que já as haviam capturado e levado com eles quando tinham subido o rio Mapulaú no passado Alusão a uma primeira visita da CBDL ao rio Toototobi em 1941 Era por isso também que eu tinha muito medo estava certo de que também iam me levar Meus avós já haviam contado muitas vezes essa história eu os ouvira dizer Sim esses brancos são ladrões de crianças e tinha muito medo Por que eles levaram aquelas crianças Eu me pergunto isso ainda hoje Quando aqueles estrangeiros entravam em nossa habitação minha mãe me escondia debaixo de um grande cesto de cipó no fundo de nossa casa Ela me dizia então Não tenha medo Não diga uma palavra e eu ficava assim tremendo sob meu cesto sem dizer nada Eu me lembro no entanto devia ser realmente muito pequeno senão não teria cabido debaixo daquele cesto Minha mãe me escondia pois também temia que os brancos me levassem com eles como tinham roubado aquelas crianças da primeira vez Era também para me acalmar pois eu estava aterrorizado e só parava de chorar quando estava escondido Todos os bens dos brancos me assustavam também tinha medo de seus motores de suas lâmpadas elétricas de seus sapatos de seus óculos e de seus relógios Tinha medo da fumaça de seus cigarros do cheiro de sua gasolina Tudo me assustava porque nunca vira nada de semelhante e ainda era pequeno Mas quando seus aviões nos sobrevoavam eu não era o único a ficar assustado os adultos também tinham medo alguns chegavam mesmo a romper em soluços e todo mundo fugia para a mata vizinha Nós somos habitantes da floresta não conhecíamos os aviões e estávamos aterrorizados Pensávamos que eram seres sobrenaturais voadores que iam cair sobre nós e queimar todos Todos tínhamos muito medo de morrer Eu me lembro que também tinha medo das vozes que saíam dos rádios e da explosão dos fuzis que matavam a caça Perguntavame o que todas aquelas coisas que pareciam sobrenaturais poderiam ser Perguntavame também por que aquelas pessoas tinham vindo até nossa casa Mais tarde realmente comecei a crescer e a pensar direito mas continuei a me perguntar O que os brancos vêm fazer aqui Por que abrem caminhos em nossa floresta Os mais velhos me respondiam Eles vêm sem dúvida visitar nossa terra para habitar aqui conosco mais tarde Mas eles não compreendiam nada da língua dos brancos foi por isso que os deixaram penetrar em suas terras dessa maneira amistosa Se tivessem compreendido suas palavras acho que os teriam expulsado Aqueles brancos os enganaram com seus presentes Deramlhes machados facões facas tecidos Disseramlhes para adormecer sua desconfiança Nós os brancos nunca os deixaremos desprovidos lhes daremos muito de nossas mercadorias e vocês se tomarão nossos amigos Mas pouco depois nossos parentes morreram quase todos em uma epidemia depois em uma outra Mais tarde muitos outros Yanomami novamente morreram quando a estrada entrou na floresta A BR210 Perimetral Norte aberta em 19734 e abandonada em 1976 depois de cortar duzentos quilômetros a sudeste do território yanomami e bem mais ainda quando os garimpeiros chegaram ali com sua malária Mas dessa vez eu tinha me tomado adulto e pensava direito sabia realmente o que os brancos queriam ao penetrar em nossa terra Descobrir o Descobrimento Os brancos são engenhosos têm muitas máquinas e mercadorias mas não têm nenhuma sabedoria Não pensam mais no que eram seus ancestrais quando foram criados Nos primeiros tempos eles eram como nós mas esqueceram todas as suas antigas palavras Mais tarde atravessaram as águas e vieram em nossa direção Depois repetem que descobriram esta terra Só compreendi isso quando comecei a compreender sua língua Mas nós os habitantes da floresta habitamos aqui há longuíssimo tempo desde que Omama nos criou No começo das coisas aqui só havia habitantes da floresta seres humanos a autodesignação dos Yanomami yanomae thëpë significa antes de tudo seres humanos e se aplica também aos outros índios opondose aos animais aos seres sobrenaturais e aos nãoíndios napëpë Os brancos clamam hoje Nós descobrimos a terra do Brasil Isso não passa de uma mentira Ela existe desde sempre e Omama nos criou com ela Nossos ancestrais a conheciam desde sempre Ela não foi descoberta pelos brancos Muitos outros povos como os Makuxi os Wapixana os Waiwai os WaimiriAtroari os Xavante os Kayapó e os Guarani ali viviam também Mas apesar disso os brancos continuam a mentir para si mesmos pensando que descobriram esta terra Como se ela estivesse vazia Como se os seres humanos não a habitassem desde os primeiros tempos Os brancos foram criados em nossa floresta por Omama mas ele os expulsou porque temia sua falta de sabedoria e porque eram perigosos para nós os brancos foram criados por Omama a partir do sangue de um grupo de ancestrais Yanomami devorados por lontras e jacarés numa grande enchente provocada pela quebra de um resguardo menstrual Ele lhes deu uma terra muito longe daqui pois queria nos proteger de suas epidemias e de suas armas Foi por isso que os afastou Mas esses ancestrais dos brancos falaram a seus filhos dessa floresta e suas palavras se propagaram por muito tempo Eles se lembraram É verdade Havia lá ao longe uma outra terra muito bela e voltaram para nós Na margem desta terra do Brasil aonde eles chegaram viviam outros índios Esses brancos eram pouco numerosos e começaram a mentir Nós os brancos somos bons e generosos Damos presentes e alimentos Vamos viver a seu lado nesta terra com vocês Seremos seus amigos Era com essas mesmas mentiras que tentavam nos enganar desde que também chegaram a nós Depois dessas primeiras palavras de mentira eles foram embora e falaram entre si Depois voltaram muito numerosos No começo sem casa nesta terra ainda mostravam amizade pelos índios Tinham visto a beleza desta floresta e queriam se estabelecer aqui Mas desde que se instalaram realmente desde que construíram suas habitações e abriram suas plantações desde que começaram a criar gado e a cavar a terra para procurar ouro esqueceram sua amizade Começaram a matar as gentes da floresta que viviam perto deles Nos primeiros tempos os seres humanos eram muito numerosos nesta terra É o que dizem nossos mais velhos Não havia doenças perigosas sarampo gripes malária Estávamos sozinhos não havia garimpeiros para queimar o ouro fábricas para produzir ferro e gasolina carros e aviões A floresta e os que a habitavam não estavam o tempo todo doentes Foi apenas quando os brancos se tomaram muito numerosos que sua fumaça epidemia xawara começou a aumentar e a se propagar por toda parte Essa coisa má se tomou muito poderosa e foi assim que as gentes da floresta começaram a morrer a expressão xawara wakëxi epidemiafumaça designa aqui a um só tempo as epidemias e a poluição às quais é atribuída a mesma origem a fusão do ouro dos metais e dos carburantes extraídos da terra para produzir as mercadorias dos brancos e abastecer seus veículos Quando viviam sem os brancos nossos ancestrais não tinham fábricas caçavam e trabalhavam em suas plantações para fazer crescer seu alimento Também não sujavam todos os rios como esses brancos que agora procuram ouro em nossas terras Nós descobrimos estas terras Possuímos os livros e por isso somos importantes dizem os brancos Mas são apenas palavras de mentira Eles não fizeram mais que tomar as terras das gentes da floresta para se pôr a devastáIas Todas as terras foram criadas em uma única vez as dos brancos e as nossas ao mesmo tempo que o céu Tudo isso existe desde os primeiros tempos quando Omama nos fez existir É por isso que não creio nessas palavras de descobrir a terra do Brasil Ela não estava vazia Creio que os brancos querem sempre se apoderar de nossa terra é por isso que repetem essas palavras São também as dos garimpeiros a propósito de nossa floresta Os Yanomami não habitavam aqui eles vêm de outro lugar Esta terra estava vazia queremos trabalhar nela Mas eu sou filho dos antigos Yanomami habito a floresta onde viviam os meus desde que nasci e eu não digo a todos os brancos que a descobri Ela sempre esteve ali antes de mim Eu não digo Eu descobri esta terra porque meus olhos caíram sobre ela portanto a possuo Ela existe desde sempre antes de mim Eu não digo Eu descobri o céu Também não clamo Eu descobri os peixes eu descobri a caça Eles sempre estiveram lá desde os primeiros tempos Digo simplesmente que também os como isso é tudo O Povo das Mercadorias Quando viajei para longe vi a terra dos brancos lá onde havia muito tempo viviam seus ancestrais Visitei a terra que eles chamam Eropa Era sua floresta mas eles a desnudaram pouco a pouco cortando suas árvores para construir suas casas Eles fizeram muitos filhos não pararam de aumentar e não havia mais floresta Então eles pararam de caçar não havia mais caça também Depois seus filhos puseramse a fabricar mercadorias e seu espírito começou a obscurecerse por causa de todos esses bens sobre os quais fixaram seu pensamento Eles construíram casas de pedra para que não se deteriorassem Continuaram a destruir a floresta dizendose Nós vamos nos tornar o povo das mercadorias Vamos fabricar muitas delas e dinheiro também Assim quando formos realmente muito numerosos jamais seremos miseráveis Foi com esse pensamento que eles acabaram com sua floresta e sujaram seus rios Agora só bebem água embrulhada que precisam comprar A água de verdade a que corre nos rios já não é boa para beber Nos primeiros tempos os brancos viviam como nós na floresta e seus ancestrais eram pouco numerosos Omama transmitiu também a eles suas palavras mas não o escutaram Pensaram que eram mentiras e puseramse a procurar minerais e petróleo por toda parte todas essas coisas perigosas que Omama quisera ocultar sob a terra e a água porque seu calor é perigoso Mas os brancos as encontraram e pensaram fazer com elas ferramentas máquinas carros e aviões Eles se tomaram eufóricos e se disseram Nós somos os únicos a ser tão engenhosos só nós sabemos realmente fabricar as mercadorias e as máquinas Foi nesse momento que eles perderam realmente toda sabedoria Primeiro estragaram sua própria terra antes de ir trabalhar nas dos outros para aumentar suas mercadorias sem parar Nunca mais eles se disseram Se destruirmos a terra será que seremos capazes de recriar uma outra Quando conheci a terra dos brancos isso me deixou inquieto Algumas cidades são belas mas seu barulho não pára nunca Eles correm por elas com carros nas ruas e mesmo com trens debaixo da terra Há muito barulho e gente por toda parte O espírito se toma obscuro e emaranhado não se pode mais pensar direito É por isso que o pensamento dos brancos está cheio de vertigem e eles não compreendem nossas palavras Eles não fazem mais que dizer Estamos muito contentes de rodar e de voar Continuemos Procuremos petróleo ouro ferro Os Yanomami são mentirosos O pensamento desses brancos está obstruído é por isso que eles maltratam a terra desbravandoa por toda parte e a cavam até debaixo de suas casas Eles não pensam que ela vai acabar por desmoronar Eles não temem cair no mundo subterrâneo Porém é assim Se os brancosespíritostatusgigantes mineradoras entram por toda parte sob a terra para retirar os minérios eles vão se perder e cair no mundo escuro e podre dos ancestrais canibais o universo yanomami compõese de quatro níveis superpostos suspensos em um grande vazio o mundo subterrâneo foi formado pela queda do nível terrestre na aurora dos tempos é habitado pelos ancestrais Yanomami da primeira humanidade que se tornaram monstros canibais os aõpataripë Nós nós queremos que a floresta permaneça como é sempre Queremos viver nela com boa saúde e que continuem a viver nela os espíritos xapïripë a caça e os peixes Cultivamos apenas as plantas que nos alimentam não queremos fábricas nem buracos na terra nem rios sujos Queremos que a floresta permaneça silenciosa que o céu continue claro que a escuridão da noite caia realmente e que se possam ver as estrelas As terras dos brancos estão contaminadas estão cobertas de uma fumaça epidemiaxawara que se estendeu muito alto no peito do céu Essa fumaça se dirige para nós mas ainda não chega lá pois o espírito celeste Hutukarari a repele ainda sem descanso Acima de nossa floresta o céu ainda é claro pois não faz tanto tempo que os brancos se aproximaram de nós Mas bem mais tarde quando eu estiver morto talvez essa fumaça aumente a ponto de estender a escuridão sobre a terra e de apagar o sol Os brancos nunca pensam nessas coisas que os xamãs conhecem é por isso que eles não têm medo Seu pensamento está cheio de esquecimento Eles continuam a fixá lo sem descanso em suas mercadorias como se fossem suas namoradas