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Jorge Miglioli ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E DEMANDA EFETIVA Tese de Livre Docência apresentada à Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Campinas 1979 UNICAMP BIBLIOTECA CENTRAL Índice INTRODUÇÃO 111 1 A LEI DE SAY E SUAS IMPLICAÇÕES 1 1. A longa vida da lei de Say 1 2. Formulação e significado da "lei" 7 3. Implicações da "lei" 20 2 MARX: ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E REALIZAÇÃO DA MAIS-VALIA 49 1. O circuito do capital dinheiro 49 2. Reprodução simples e ampliada do capital 51 3. Condições materiais da reprodução 53 4. Oferta e demanda de força de trabalho 59 5. Composição material da produção 65 6. O dinheiro na acumulação de capital 71 7. O problema da realização da produção 81 8. Elementos para uma teoria da demanda efetiva 85 3 ROSA LUXEMBURGO: ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E MERCADOS EXTERNOS 95 1. Formulação do problema 95 2. Solução do problema 107 3. Conquista e ampliação de mercados externos 116 4. Os erros na teoria de Rosa Luxemburgo 126 4 KALECKI: A DINÂMICA DAS ECONOMIAS CAPITALISTAS 140 1. Introdução 140 2. O esquema de reprodução 147 3. Determinantes dos lucros (equação simplificada) 153 4. Determinantes dos lucros (equação completa) 160 5. Financiamento dos gastos 170 6. Poupança, salários e renda nacional 183 7. Determinantes do consumo dos capitalistas 192 8. Determinantes do saldo de exportação e do déficit orçamentário 200 9. Determinantes do investimento 208 INTRODUÇÃO 111 1. OBJETO DE ESTUDO O problema da demanda efetiva - que até então só era abordado pelos economistas "heréticos", desligados da tradição clássica e neo-clássica - finalmente, ganhou destaque na década de 1930 e a partir daí inseriu-se definitivamente na literatura econômica, essa mudança (de radical implicação para uma série de questões) se deveu às obras de três autores de diferentes formações teóricas; por ordem de entrada em cena, o sueco Gunnar Myrdal, o polonês Michal Kalecki e o inglês John Maynard Keynes.(1) A matriz teórica de que partiu Myrdal é constituída pela Escola austríaca e por Wicksell, mas sua contribuição para o esclarecimento do problema da demanda efetiva é a mais limitada das três. A matriz teórica que serviu de base a Keynes é bem menos "nobre". Thomas Malthus, J. A. Hobson e outros menos conhecidos, como Silvio Gesell. Pelo menos essa é a matriz reconhecida pelo próprio Keynes, mas na verdade ele sofreu influências de outros estudiosos mais "distintos" do que os acima citados, como Wicksell e Alfred Marshall, cuja obra principal (Principles of Economics, muito bem conhecida por Keynes) contém algumas sementes da questão da demanda efetiva. De todos, foi Keynes quem obteve o maior reconhecimento pelo desenvolvimento da questão; isto se deve, em grande parte, ao fato de ele já ser, quando escreveu sua General Theory, um autor (1) O trabalho de Myrdal foi publicado em sueco em 1931 e em alemão em 1933; em inglês, sob o título de Monetary Equilibrium, apareceu em 1939. O primeiro trabalho teórico de Kalecki foi publicado em polonês em 1933 e em francês e inglês em 1935. O livro de Keynes (The General Theory of Employment, Interest and Money) saiu em 1936. monista de projeção mundial. Contudo, quem mais profundamente tratou do problema foi Kalecki, tomando por base a literatura econômica marxista. É precisamente a corrente marxista ligada à questão da demanda efetiva que constitui o objeto do estudo do presente trabalho. Quando Kalecki elaborou seu primeiro estudo destacando o papel da demanda efetiva no processo de acumulação capitalista (mais especificamente, no movimento cíclico das economias capitalistas), já havia sobre o assunto uma vasta literatura marxista. Nessa literatura o problema da demanda efetiva era considerado então como o problema da 'realização' e como o problema dos 'mercados'. Esse tema havia sido amplamente discutido no fim do século XIX e no início do XX, particularmente pelos marxistas russos. Contudo, no início da década de 1930 ele havia praticamente desaparecido. Em nosso entender, esse desaparecimento pode ser explicado por dois motivos básicos: primeiro, o fato de Lênin, no início dos anos 1920, ao que tudo indica, ter colocado em primeiro plano a questão dos mercados no processo de desenvolvimento do capitalismo; segundo, com o estabelecimento do 'marxismo oficial', por Stálin no fim da década de 1920, a posição de Lênin em face do assunto foi elevada ao nível de dogma. Assim, o problema da realização, que era um ponto controverso, sumiu da literatura marxista por longo tempo, e até hoje encontramos alguns teóricos marxistas que identificam o problema da demanda efetiva (que, com outra designação, nada mais é do que o velho problema da realização) como um tema típico da economia 'burguesa' em sua versão keynesiana. Kalecki, porém, que não era um marxista oficial, retomou o assunto. A grande crise econômica mundial de 1929-33 abalou profundamente a produção polonesa, cujo nível em 1933 havia caído a menos da metade do nível existente em 1928; Kalecki observava que a produção decrescia apesar de haver equipamento de capital e força de trabalho suficientes para manter a economia operando em nível muito mais alto. Se havia disponibilidade de capacidade produtiva, a queda da produção só poderia ser explicada como uma crise de realização, uma restrição de mercados, uma insuficiência de demanda efetiva. Para formular sua interpretação, Kalecki recorreu às concepções de Marx, Rosa Luxemburgo e Tugan-Baranovski - os autores que mais diretamente o influenciaram. Mas a obra de Kalecki, ao fugir do padrão (de conteúdo e linguagem) do marxismo oficial, acabou sendo identificada como keynesiana. Somente a partir da segunda metade da década de 1950 sua formação marxista foi sendo pouco a pouco reconhecida - em grande parte graças à divulgação de sua obra por Paul Baran, Paul Sweezy e Joan Robinson. Como já dissemos, no presente trabalho pretendemos estudar a questão da demanda efetiva (ou, para sermos mais precisos, o papel da realização da mais-valia no processo de acumulação capitalista) no pensamento econômico marxista. Assim fazendo, daremos especial destaque à obra de Kalecki, posto que, em nosso entender, foi com esse autor que a referida questão encontrou seu maior desenvolvimento. 2. CONTEÚDO DO TRABALHO O presente trabalho é constituído de quatro capítulos, onde são examinados, em sequência, os seguintes assuntos: (1) a influência da chamada "lei de Say" sobre a teoria econômica ortodoxa; (2) as concepções de Marx a respeito do processo de acumulação capitalista e do papel exercido pela demanda efetiva; (3) as "inovações" introduzidas por Rosa Luxemburgo na teoria de Marx; (4) a obra de Kalecki acerca das economias capitalistas maduras, na qual ele esclarece a importância da realização da mais-valia. Cremos ser conveniente esclarecer desde logo duas eventuais indagações: (1) por que começamos este trabalho pelo estudo da "lei de Say" (2) por que dedicamos especial atenção à obra de Kalecki (o que se reflete no fato de o correspondente capítulo ser o mais longo dos quatro)? Comecemos pelo primeiro ponto. A "lei dos mercados" de Say (segundo a qual a produção gera sua própria demanda, o que implica não haver restrição de demanda para a contínua expansão da economia) foi adotada por Ricardo e por John Stuart Mill e depois incorporada aos fundamentos da ortodoxia neoclássica, tendo influenciado profundamente o entendimento de todo um conjunto de questões. Um exame superficial da teoria da acumulação de Marx, baseado apenas em seus esquemas de reprodução ampliada, pode levar à falaciosa conclusão de que também Marx seguia, embora sem o saber, a "lei dos mercados" de Say; isto porque, nesses esquemas, ele adotava a hipótese de contínua acumulação de capital, deixando de lado as possíveis restrições impostas pela insuficiência de demandas. Foi desse modo que Tugan-Baranovski, por exemplo, utilizou-se dos esquemas de reprodução. Até mesmo Rosa Luxemburgo, numa passagem de seu livro sobre Acumulação de Capital, chegou a interpretar dessa forma a teoria de Marx, como veremos no capítulo 3. Mas essa interpretação é totalmente infundada. Marx devotava grande desprezo por Say e por sua "lei dos mercados" e não perdoava Ricardo por tê-la adotado e defendido. Podemos afirmar que foi precisamente ao criticar a versão ricardiana dessa "lei" aplicada à análise do processo capitalista de acumulação que Marx começou a formular sua concepção a respeito da importância da realização da mais-valia. Isto pode ser constatado em seu livro Teorias da Mais-Valia (especificamente na parte relativa a Ricardo, onde Marx trata da acumulação de capital e das crises). Voltemos então à perguntar: que faz, no começo do presente trabalho, um estudo da 'lei de Say' e de suas influências? Existe um claro motivo para começar o trabalho com esse estudo: pretendemos mostrar como a referida 'lei' - com todas suas implicações - encontra-se fortemente enraizada no pensamento econômico ortodoxo a partir de Ricardo, e isto serve, entre outras coisas, como pano de fundo para ressaltar o quanto, nessa questão (para ficarmos apenas nessa), o pensamento econômico marxista se diferencia da corrente ortodoxa. Em suma, enquanto os economistas ortodoxos levaram mais de um século, desde Ricardo a Keynes - para descobrir a importância da demanda efetiva no funcionamento das economias capitalistas, a teoria marxista desde o início já destacava essa questão. O segundo ponto a esclarecer-se refere à especial atenção dada a Kalecki. O fato de o capítulo correspondente a Marx ter a metade do número de páginas do capítulo relativo a Kalecki não significa que atribuímos a Marx uma importância menor, ou que o tratamos como um simples "precursor de Kalecki". (2) Isto é tolice. Os motivos de termos dedicado maior espaço a Kalecki são: (1) sua obra é relativamente pouco conhecida e merece ser mais estudada; (2) especificamente na questão da demanda efetiva, (que é o tema central do presente trabalho), sua obra é mais completa e mais clara do que a de Marx (para não mencionar a de Rosa Luxemburgo e outros autores). Quando a este segundo motivo, é preciso ressaltar que Marx não deixou inteiramente esclarecida a questão do papel da demanda efetiva no funcionamento das economias capitalistas. Na verdade, suas (2) No prefácio à segunda edição de seu livro An Essay on Marxian Economics (Londres, Macmillan, 1966), Joan Robinson escreve que Piero Sraffa a atingiu dizendo que ela "tratava Marx como um pouco conhecido precursor de Kalecki", e ela concorda em que há uma certa verdade nessa brincadeira. 'concepções sobre esse assunto se encontram dispersos em diferentes partes de sua obra (tanto em O Capital como na Teoria da Mais-Valia), não constituindo uma completa e integral formulação do problema. Tanto isto é verdade que deu lugar a uma série de dúvidas, e o livro de Rosa Luxemburgo sobre Acumulação de Capital é evidente exemplo disto. Com Kalecki a questão da demanda efetiva passou a ser o próprio ponto de partida para a interpretação do movimento das economias capitalistas, e por isto mesmo sua formulação do problema tinha de ser mais abrangente do que a de Marx, onde a realização da mais-valia era vista apenas como uma das faces do processo capitalista de acumulação. Queremos aproveitar o momento para fazer uma comparação entre Marx e Kalecki no tocante à análise do processo de acumulação. Considerando esse processo como um todo, a análise de Kalecki é mais limitada, porque se atém às condições de realização da mais-valia dentro desse processo, enquanto Marx trata não apenas dessas condições (embora, como dissemos acima, seu tratamento não seja completo) mas também das condições de criação da mais-valia. Sejamos mais claros, Marx trata da mais-valia, ou lucro, tanto pelo ângulo de sua geração (a qual é explicada pela exploração da força de trabalho assalariada) como pelo prisma de sua realização, que determina quanto do lucro produzido ou potencial é efetivamente auferido pelos capitalistas; mas embora Marx tenha estudado exaustivamente o processo de criação da mais-valia, o processo de sua realização não ficou devidamente esclarecido. Com Kalecki aconteceu o contrário: ele se dedicou exclusivamente ao exame do processo de realização. Nesse sentido específico, sua análise das economias capitalistas é unilateral. Em nosso entender, é essa unilateralidade que explica certas deficiências de sua análise. Onde isto se torna mais evidente é en sua concepção dos determinantes do investimento, Kalecki formula várias explicações desses determinantes, mas jamais ficou, ele mesmo, satisfeito com elas. Em todas essas explicações ele abordou o assunto inteiramente pelo ângulo da demanda efetiva; somente em uma última tentativa ele abandonou esse enfoque, passando a considerar a concorrência entre os capitalistas como o principal determinante do investimento, concorrência esta que só pode ser bem entendida quando examinada pelo ângulo da criação de mais-valia. Em sua última formulação dos determinantes do investimento, Kalecki simplesmente voltou à explicação dada pelo próprio Marx. (Este assunto será tratado na última seção do capítulo 4.) Segundo dissemos antes, um outro motivo para dedicarmos mais espaço à obra de Kalecki é o fato de ela ser relativamente pouco conhecida. Bem menos conhecida, ela é freqüentemente colocada ao lado da Teoria Geral de Keynes. Apesar de sua contribuição para esclarecer a formação marxista de Kalecki, Joan Robinson, por exemplo, jamais deixa de compará-lo com Keynes: o mesmo foi feito, em escala ampliada, por George Feiwel. (3). Muitos poucos são os estudos sobre os fundamentos marxistas da obra de Kalecki. (4) Com o presente trabalho esperamos contribuir para isto. (3) O último artigo de Joan Robinson sobre esse tema encontra-se em Oxford Bulletin of Economics and Statistics, fevereiro de 1977 (número especial dedicado a Kalecki). Ver também, nesse mesmo número, o artigo de Spring Ehag, 'Kalecki's Political Economy, A Comparison with Keynes', de George R. Feiwel, 'The Intellectual Capital of Michal Kalecki', Knoxville, The University of Tennessee Press, 1975 (Ver particularmente os dois primeiros capítulos). (4) Entre esses poucos, deve-se mencionar o artigo de Mariano D'Antonio, 'Kalecki e il Marxismo', em Studi Storici, nº de janeiro-março de 1978. Na introdução que escrevemos para o livro sobre ensaios de Kalecki na série 'Grandes Cientistas Sociais' da Editora Atica procuramos abordar, embora resumidamente, essa questão. 3. O QUE FALTA Como dissemos antes, o presente trabalho pretende ser um estudo do pensamento marxista sobre a questao da demanda efetiva. Para ser um estudo mais abrangente do que realmente é, seria preciso incluir alguns temas que foram deixados de lado. Entre eles destacamos o das crises econômicas e as contribuições de certos autores. A nao incluçao desses temas foi intencional, pelas razões que passamos a explicar. As crises econômicas estao intimamente relacionadas com a realizaçao da mais-valia, a tal ponto que uma corrente do pensamento marxista as interpreta como sendo fundamentalmente crises de realizaçao - isto é, momentos em que uma parte da produçao criada ou potencial nao encontra mercados, nao pode ser vendida, gerando as conhecidas mazelas das crises econômicas: queda do nível de atividades, aumento do desemprego, etc. Assim, é difícil tratar do problema da realizaçao sem falar das crises. Apesar disso, preferimos nao fazê-lo. As crises (ou, mais geralmente, o movimento cíclico das economias capitalistas) é um dos pontos mais controvertidos na literatura marxista (e na literatura econômica em geral), havendo pelo menos três posiçoes divergentes quanto sejam as interpretaçoes das crises como uma dificuldade de realizaçao, ou como um resultado do desequilíbrio setorial, ou como uma conseqüência da tendência decrescente da taxa de lucro. A discussao desse tema seria necessariamente longa e por isto deixamos a questao das crises fora de nosso trabalho; somente em um ou outro capítulo referimo-nos circunstancialmente a elas. Poderíamos também ter incluído neste trabalho dois outros capítulos, e chegamos a pensar em fazê-lo. Um desses capítulos, que deveria vir em seguida à discussao da "lei de Say", trataria daqueles autores que, na mesma época ou depois de Ricardo (como, por exemplo, T. R. Malthus, S. de Sismondi, J. K. Rodbertus), de